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[T] Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 26, n. 38, p. 131-153, jan./jun. 2014 Psicanálise e direitos humanos: o estatuto do ódio e o sujeito LGBT Psychoanalysis and human rights: the statute of hate forward person LGBT Sidney N. de Oliveira [a] , Giani A. Gaiguer [b] [a] Doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), coordenador do curso de Psicologia e professor do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR - Brasil, e-mail: [email protected] [b] Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR - Brasil, e-mail: [email protected] Resumo Este trabalho é um estudo sobre a manifestação da violência pelo recorte da homofobia com sujeitos LGBTs. Adentrou-se a obra freudiana (1905 a 1925), objetivando apreender, pela luz da psicanálise, a condição subjetiva do sujeito em relação à sexualidade. O ponto central da pesquisa foi alcançado pelo desenho do que se denominou estatuto do ódio, que foi com- posto com elementos primordiais da constituição do sujeito. O estatuto denuncia o enlace destrutivo ao outro, aqui representado pelo sujeito LGBT, denuncia uma manifestação do conteúdo arraigado no inconsciente, que alcança o fim último de um gozo do ódio caracteri- zado pela discriminação preconceituosa e cruel. Nessa perspectiva, destacou-se a necessida- de de se construir urgentemente uma realidade social mais justa, mais bem alicerçada sobre DOI: 10.7213/aurora.26.038.DS.06 ISSN 0104-4443 Licenciado sob uma Licença Creative Commons

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    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 26, n. 38, p. 131-153, jan./jun. 2014

    Psicanlise e direitos humanos: o estatuto do dio e o sujeito LGBT

    Psychoanalysis and human rights: the statute of hate forward

    person LGBT

    Sidney N. de Oliveira[a], Giani A. Gaiguer[b]

    [a] Doutor em Psicologia Social pela Universidade de So Paulo (USP), coordenador do curso de Psicologia e professor do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Paran (UFPR), Curitiba, PR - Brasil, e-mail: [email protected]

    [b] Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Paran (UFPR), Curitiba, PR - Brasil, e-mail: [email protected]

    Resumo

    Este trabalho um estudo sobre a manifestao da violncia pelo recorte da homofobia com

    sujeitos LGBTs. Adentrou-se a obra freudiana (1905 a 1925), objetivando apreender, pela luz

    da psicanlise, a condio subjetiva do sujeito em relao sexualidade. O ponto central da

    pesquisa foi alcanado pelo desenho do que se denominou estatuto do dio, que foi com-

    posto com elementos primordiais da constituio do sujeito. O estatuto denuncia o enlace

    destrutivo ao outro, aqui representado pelo sujeito LGBT, denuncia uma manifestao do

    contedo arraigado no inconsciente, que alcana o fi m ltimo de um gozo do dio caracteri-

    zado pela discriminao preconceituosa e cruel. Nessa perspectiva, destacou-se a necessida-

    de de se construir urgentemente uma realidade social mais justa, mais bem alicerada sobre

    DOI: 10.7213/aurora.26.038.DS.06 ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

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    o conhecimento cientfi co, tico e poltico. Abordou-se, por fi m, o enfrentamento desse dio

    por uma educao emancipadora em direitos humanos comprometida com projetos de

    reconhecimento e de valorizao da diversidade, com vistas cidadania, minimizao da

    opresso sociopoltica e manejo de confl itos para uma no violncia.

    Palavras-chave: Psicanlise e direitos humanos. Estatuto do dio e sujeito LGBT.

    Educao emancipadora.

    Abstract

    Through this work, we carried out a study on the outbreak of violence by cropping subjects

    with homophobia LGBTs. Entered to Freuds work (1905-1925), aiming to learn the light of

    psychoanalysis the subjective condition of the subject in relation to sexuality. The focus of

    the research was achieved by the design of which was named statute of hatred that was

    composed with key elements of the constitution of the subject. The statute denounces the de-

    structive link to another, represented here by the subjects LGBT denounces a manifestation

    of the content rooted in the unconscious, which achieves the ultimate enjoyment of a hatred

    characterized by discrimination prejudiced and cruel. From this perspective, they empha-

    sized the urgent need to build a social reality fairer, better grounded on scientifi c knowledge,

    ethical and political. Addressed to fi nally face this hatred for emancipatory education in hu-

    man rights projects committed to recognizing and valuing diversity, with a view to citizen-

    ship, minimizing the socio-political oppression and confl ict management for a non-violence.

    Keywords: Psychoanalysis and human rights. Statute of LGBTs hate and subject.

    Emancipatory education.

    Breves consideraes sobre a sexualidade

    O amplo horizonte das perspectivas freudianas (1905 a 1925)1 permite inferir que os impulsos que sobressaltam o meio de convvio

    1 Refere-se, na lista de referncias deste artigo, s seguintes obras: FREUD, 1996a, b, c, d, e, f, g, h, i, j, l, m, n, o, p.

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    humano podem vir a corresponder aos impulsos dialticos que, no su-jeito, referem uma raiz fundamental e constitutiva da subjetividade.

    De longa data, especialmente a partir do sculo XVI, infi ltraes negativas no repertrio cultural conduziram de forma prevalente perpetuao de preconceitos e de violncias que atualmente esto ex-pressos na prtica da homofobia em nossa sociedade.

    Mitos e tabus sobre a sexualidade so fatores de excluso da di-versidade psicossexual e fazem perdurar, dentre outros, toda forma de desrespeito para com a dignidade do sujeito.

    Em Trs ensaios sobre a teoria da sexualidade, Sigmund Freud ([1905] 1996a) abordou pela primeira vez de maneira sistematizada o assunto sobre a escolha do objeto sexual. Nessa poca, j reunia conhecimentos decorrentes de sua prtica clnica e da observao de sujeitos neurticos. Desde sua primeira verso, seguiram-se outras quatro revises2 que, no decorrer de 20 anos de pesquisa, resultaram na atualizao do conhecimento psicossexual pela incluso sempre recente de novas descobertas.

    Pelos estudos na obra de Freud (1905 a 1925) sobre a sexu-alidade, verifi ca-se que as descobertas confrontam muitos mitos e tabus formados culturalmente. Ideias ou conceitos, quando no so bem compreendidos, podem ser repercutidos de forma enigmtica em meio ao convvio social e, assim, propiciam a formao de mitos e tabus que, com o passar do tempo, podem adquirir status de regras de controle social.

    Esses elementos, por meio de processos constitutivos da subje-tividade, propiciam que debates simblicos ocorram na instncia do inconsciente sobre o desigual [ou dessemelhante], tendo em seu ponto de partida a experincia com a falta no outro. Isso provoca, contudo, em carter dialtico alm da dvida que o outro semelhante inau-gura , o desafi o sobre a difi culdade de se aceitar a incompletude identifi cada pela falha humana, especialmente no que se refere falta em si mesmo, dada pela imagem especular da falta no outro.

    2 Acrscimos de pesquisa em 1910, 1915, 1920 e 1922.

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    Construo e operacionalizao do dio

    Por essa dialtica humana, corre-se o risco da prevalncia da agressividade destrutiva defl agrada por um gozo do dio comumente manifesto e/ou fl agrado nas prticas de violncia e crueldade represen-tadas na homofobia.

    Entre as linhas freudianas (1905 a 1925) tramitam as descobertas que recaem sobre o desenvolvimento psicossexual do sujeito. Um dos enfoques o sujeito socialmente considerado como desigual, a quem, no presente trabalho, alude-se como sujeito homoafetivo, estando re-presentado, de forma geral, pelo sujeito LGBT.

    Sob esse ponto de vista, as perspectivas freudianas (1905 a 1925) foram articuladas com o desenho de um estatuto do dio formado com ele-mentos que foram apreendidos como sendo relevantes, por constiturem--se como a raiz que nutre de forma prevalente a expresso de violncias, especialmente por caracterizarem uma dialtica tpica do psiquismo e por pertencerem gama de elementos primordiais na constituio do sujeito.

    Apesar de a banalizao no compor diretamente a anatofor-ma do estatuto do dio, ela considerada uma fora motriz de relevncia que perpetua prticas homofbicas.

    Para o entendimento do desenho do estatuto, requer-se abrangn-cia da viso sobre a agressividade3, a qual deve ser apreendida como uma caracterstica prpria da natureza humana4 em relao ao funciona-mento bio, observando-se que ela ultrapassa essa fronteira para alcanar expressamente elementos dos processos constitutivos do sujeito.

    Os elementos da construo da subjetividade e da violncia do dio amalgamam-se intrinsecamente ao sentimento de ameaa de perda, que faz o preenchimento intersticial da anatoforma dada neste agrupa-mento que eclode nas prticas homofbicas.

    3 Cf. LACAN, 1998a. 4 Cf. Erich Fromm (1987), pensador humanista da Escola de Frankfurt, debate a agressividade, em vrios aspectos, em seu livro

    Anatomia da destrutividade humana. Esse livro serviu de balizamento para as refl exes sobre a violncia, contudo, pelo fato de haver divergncias entre o pensamento humanista e a psicanlise, considerou-se ser impertinente utilizar diretamente as consideraes deste autor na presente pesquisa, muito embora as explanaes de Fromm (1987) serem de reconhecida relevncia para a contribuio do conhecimento na rea humana.

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    No mago estatutrio do dio, encontra-se repercutida a dor ps-quica pela erupo de uma ferida narcsica. O pulsar da dor no sujeito pode vir a provocar nele o desejo de destruio daquilo ou daquele a quem se atribui a causa do mal-estar ntimo neste caso, trata-se da pulso destruidora direcionada ao (des)semelhante LGBT.

    A excitao do mpeto de aniquilamento provocado pela dor do mal-estar narcsico pode, concomitantemente, representar um meca-nismo de defesa interno que, de forma compensatria, vem a se mani-festar socialmente por meio de prticas homofbicas.

    O sujeito LGBT constitui-se representante da diferenciao e da diversidade do sujeito na imagem especular das operaes psquicas e, por isso, fi gura socialmente como desigual, sendo, contudo, rotulado preconceituosamente de forma discriminatria a partir de falsos prin-cpios morais, culturais, polticos e religiosos que se encontram funda-mentados nos ideais (hetero)normatizantes na sociedade.

    Essa discriminao preconceituosa refl ete um gozo sobre o dio dado num livre fl uxo que resulta, socialmente, numa multido de su-jeitos degradados moralmente e marginalizados, obrigados a suporta-rem as mais cruis prticas de violncias aqui se destacam uma vez mais as prticas homofbicas que representam uma forma extremada de violncia, sobressaltando-se, portanto, o gozo perverso.

    A segregao estigmatizada, no s das travestis e do sujeito LGBT de forma particular, delimita o alvo ou endereamento para onde se d fl uncia violncia, no raro, tonalizada com requintes de crueldade. LGBTs, portanto, esto na vez como alvos de violentas pr-ticas homofbicas em todos os segmentos da sociedade, independen-temente de situao socioeconmica: famlia, religio, escolas, servios pblicos de prioridade, poltica5 etc.

    5 O deputado federal Joo Campos autor do Projeto de Decreto Legislativo n. 234/11, que fi cou conhecido como Projeto da cura gay. Este PDL foi debatido em audincia pblica da Comisso de Seguridade Social e Famlia, em 27 nov. 2012, qual pertence o deputado federal Silas Malafaia, pastor, psiclogo e delegado da polcia civil que fi cou conhecido por sua obstinao e ofensas contra a populao homoafetiva. Os vdeos do debate encontram-se disponveis em: ; ; ; .

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    A homofobia se caracteriza, portanto, como um sintoma mlti-plo, manifestado socialmente, mas que advm das representaes do contedo inconsciente que peculiar dos processos constitutivos da subjetividade do sujeito.

    O sujeito LGBT retrata a dessemelhana, o desigual, sendo, simboli-camente, a expresso da dialtica experimentada na representao do falo6: pode constituir causa de aproximao de um sujeito com outro, motivada pela curiosidade, dado o desejo de saber a verdade e de pos-suir o falo do qual se intui ser dotado o outro; pode constituir causa de repdio por, ao invs de ser identifi cado com o falo, evocar a dvida dada pela exibio da imagem psicossexual encobridora [castrao e pe-nisneid] sobre uma verdade suposta tal qual a dvida que a viso do rgo feminino causa no sujeito no perodo da sua constituio subjeti-va, de acordo com Freud (1905 a 1925).

    Se narciso acha feio o que no espelho7, certamente o sujeito (que, em vez de servir ao outro como espelho para a exibio da ima-gem ideal, deixa a dvida pela exibio de uma imagem encobridora da verdade) estar fadado a constituir-se alvo dos impulsos homofbi-cos expressos por prticas de agressividades mltiplas, voltadas para sua destruio como os crimes de dio ou propostas obstinadas de privaes de direitos criadas ou apoiadas por pessoas comuns ou representantes eleitos que ocupam as cadeiras nas duas casas do Congresso Nacional.

    Pode-se apreender que esses impulsos homofbicos subjazem nos arcabouos da psique desde, portanto, os tempos primordiais; tais impulsos defl agram o dio que se v materializar nas mais variadas formas de violncia contra o desigual, dando expresso crueldade quando alcanam o extremo na manifestao.

    possvel apreender que o sujeito LGBT representa o desseme-lhante que excita impulsos de destruio e a moo do dio na psique

    6 Cf. Jacques Lacan (1998b) aprofunda a dialtica do falo em no texto A signifi cao do falo.7 Quando eu te encarei frente a frente no vi o meu rosto / Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto / que

    Narciso acha feio o que no espelho (Sampa, msica e composio de Caetano Veloso).

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    de pessoas que foram acometidas por profundas marcas da frustrao psicossexual em suas experincias primordiais.

    O dio, portanto, ocorre como um sistema compensatrio da ten-so carregada das experincias primordiais de frustrao que o sujeito no consegue ainda elaborar por outra via.

    Nesses casos em que a pessoa carrega essas marcas da frustrao, o que ela vislumbra no dessemelhante to s uma verdade que se refl ete sobre si mesma e que ela nega de forma defensiva e/ou compensatria ela tenta negar a si mesma a verdade sobre a prpria castrao8.

    Essa experincia psquica, assim como outras que so fundamen-tais, ocorre no perodo da infncia, formando sulcos ou relevos na sub-jetividade, imprimindo-se no aparelho psquico as marcas que o sujeito ir carregar por toda sua vida.

    Tais marcas sulcam o aparelho psicolgico, categorizando-se o contedo inconsciente, que se torna prevalente nas interaes psicos-sociais do sujeito.

    Com isso, no caso das prticas homofbicas, vislumbra-se a for-ma singular de constituio psquica calcada nas primeiras experin-cias da infncia e que vem tona por meio de falhas no mecanismo de recalcamento psquico que opera inconscientemente.

    Nessa perspectiva, a imagem do dessemelhante evoca o horror na-quele que a v, pois a viso da incompletude representa inconsciente-mente a aberrao da criatura (FREUD, [1910] 1996d) e elucida que isso denuncia naquele mesmo que a v a sua prpria incompletude e a falta fundamental da qual ele mesmo dotado e que ele, contudo, persiste em negar.

    O sujeito, ante sua incompletude, reage como no quisesse saber, expressa uma rejeio sobre a verdade do humano. De tanto neg-la ou reneg-la, a cada vez que a incompletude apresentada pelo outro, ela causa novas erupes em forma de feridas narcsicas. Isso pode levar

    8 Pode-se abstrair da obra psicanaltica que o humano fundamentado em sua falta-a-ser busca constantemente no outro o falo e, no caso do sujeito do sexo masculino, a teoria flica sustenta-se a partir do prprio rgo anatmico, constituindo-se o engodo de ser completo, por sua vez a penisneid defl agra o horror e, dada a viso encobridora do sexo feminino, surge a dvida articulada a uma ameaa de castrao.

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    o sujeito, por um mecanismo de defesa, a prticas do estatuto do dio refl etidas em aes homofbicas.

    A dor narcsica experimentada na ruptura da imagem da in-completude excita no sujeito o mal-estar gerador de seus impulsos de agressividade, que fl uem em mltiplas vias, uma das quais pode ser a moo do dio que, de forma compensatria e perversa, expressa-se por prticas de homofobia.

    Inmeras vezes na vida cotidiana, o dio defl agra a violncia e a crueldade praticada contra o dessemelhante LGBT, e fortalecido, no convvio social, pela indiferena para com o sofrimento do prximo.

    No estatuto do dio a que se est a aludir, o par sado-masoquismo d o fechamento para a anatoforma. Isso porque nas mltiplas formas de expresso da violncia h a descarga de uma tenso gerada pelo intrincamento dos elementos estatutrios, sendo que, por meio dessa descarga, d-se vazo a um prazer mrbido.

    Fechando o foco sobre o sadomasoquismo, tem-se, segundo o pensamento freudiano, o seguinte:

    frequente poder-se reconhecer que o masoquismo no outra coisa seno uma continuao do sadismo que se volta contra a prpria pes-soa, que com isso assume, para comear, o lugar de objeto sexual. A anlise clinica dos casos extremos de perverso masoquista mostra a co-laborao de uma ampla srie de fatores [como complexo de castrao e a conscincia de culpa] no exagero e fi xao da atitude sexual passiva originria (FREUD, [1905] 1996a, p. 150).

    Tendo-se em vista as premissas freudianas em relao ao sadis-momasoquismo, pode-se pensar que o sentimento de culpa no maso-quismo representa uma dor psquica arraigada nas marcas das primei-ras experincias do sujeito com seus objetos de amor.

    O sadomasoquismo constitudo em um nico eixo, diferencian-do-se apenas sob o aspecto de que, no primeiro (sadismo), a pulso9

    9 Freud ([1924] 1996o) articula a discusso sobre o sadismomasoquismo com princpio de Nirvana e pulso de morte, princpio do prazer e princpio de realidade.

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    encontra-se voltada para objetos externos e, no segundo (masoquis-mo), a pulso encontrar-se voltada contra o prprio self.

    Dessa forma, pode-se assumir a possibilidade de o sado-maso-quismo manifestar-se como aes socialmente pervertidas e que cau-sam danos queles que se lhe constituem alvos.

    Nessa perspectiva, posiciona-se o sadomasoquismo no fecha-mento do desenho do estatuto como elemento de perversidade dotado da intensifi cao de um gozo do dio que se propaga, desde as aes sutis at as francamente cruis, entre os diversos segmentos sociais em que se estabelecem as interaes dos sujeitos. Lembrando Lebrun (2008, p. 13): [...] o dio est l, em nossa vida cotidiana, em nossas cleras, em nossa violncia, em nossa agressividade, [...] em nossas pretensas gentilezas ou em nossas falsas amabilidades [...].

    Na perversidade do sujeito homofbico, seu sadomasoquismo funciona como uma vlvula compensatria do sentimento de culpa que carrega em relao s experincias com seus objetos primordiais de amor que se tornaram marcas inconscientes.

    As falhas no mecanismo de recalque abrem vias para a manifesta-o do sentimento de culpa, podendo incorrer em prticas homofbicas num circuito perverso e compensatrio para o mal-estar experienciado.

    Em Freud (1905 a 1925), enfatiza-se que os elementos da ana-toforma estatutria excita na dialtica do sujeito o mal-estar que, de forma compensatria e perversa, pode levar o sujeito a tomar o (des)semelhante LGBT como alvo de prticas homofbicas, caracterizando--se uma das extremadas formas de violncia na sociedade.

    Portanto, aqueles que requerem no outro o espelho de uma ima-gem completa e se revoltam, partejando a destruio do sujeito que lhes excita a experincia da incompletude, enunciam que nos arcabou-os de suas vidas psquicas prevalecente o desejo de alcanarem no continente alheio a sustentao daquilo que jamais puderam alcanar em si mesmos, a saber: a plenitude de uma satisfao narcsica10.

    10 Apreende-se, de forma geral, na obra freudiana, que as experincias narcsicas so pertencentes s primeiras vivncias de amor e dio no estabelecimento do lao me-fi lho.

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    Dessa forma, pela impossibilidade de alcanar uma plenitude de ideal narcsico, agita-se no sujeito o mal-estar que advm das insgnias elementares que formam a anatoforma do estatuto do dio, podendo--se defl agrar de forma compensatria , pelo mecanismo de defesa psquico, os mpetos de agressividade destrutiva que desembocam na violncia sociofamiliar, sociopoltica e religiosa.

    Tais mpetos de agressividade esto retratados por cruis pr-ticas homofbicas, nas quais se vislumbram os crimes de dio ou a perversidade dissimulada que se encontra presente e estampada aber-tamente no tecido do convvio psicossocial dos sujeitos, nos vrios seg-mentos da sociedade.

    Tendo em vista os argumentos apresentados at aqui, especial-mente os que remetem constituio do aparelho psquico, possibilita--se afi rmar que o dio se categoriza como elemento inerente condio humana, sendo, portanto, impossvel de ser suprimido da criatura e, contudo, exercendo papel de relevncia nas possibilidades de sobrevi-vncia do sujeito.

    Lebrun (2008), ao discorrer sobre esse ponto de vista, enfatiza:

    Mas ento, se o dio to original como o pretendemos aqui, que trajeto ele deve seguir em cada indivduo para no deix-lo pura e simplesmente se satisfazer? Por que no nos contentarmos em deix-lo saciar-se, dado que ele reao normal nossa condio humana? que no o dio que em si para desacreditar, dado que ele tambm a vida (basta pensar em que bem aceito, no caso de situaes de legtima defesa, por exemplo). Ser capaz de dio , tambm, assumir ter de se defender se for ameaado, ter a obrigao de preservar-se, de assegurar a sua viabilidade. Mas, sobretudo, devemos aqui introduzir a diferena entre o dio e o que chamamos de gozo do dio, em outros termos, a satisfao que se pode tirar do fato de autoriz-lo, de deix-lo em livre curso, e, portanto, gozar de odiar aquele ou aquela que est encarregado ou encarregada de transmitir-me esse tra-o na minha condio, mais do que assumir que o meu dio se enderea ao vazio. o no discernimento entre esses dois lugares de endereamento que gera, igualmente, o assassinato e a violncia (LEBRUN, 2008, p. 28).

    Esta citao possibilita, dentre outros, o discernimento entre dio e gozo do dio. Pelo prisma de Lebrun (2008), portanto, apreende-se que

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    o gozo do dio se reproduz pelo excesso ou, da mesma forma, por tudo aquilo que extravasa os limites da sustentao de laos psicossociais, sendo esse excesso um fi el representante do vis que leva destruio.

    De forma ilustrativa, toma-se a educao pela caracterstica elemen-tar de representar uma prxis de abrangncia multidimensional que se encontra presente na vida do sujeito desde seu nascimento e o acompa-nha de modo formal, informal ou no formal por toda a sua vida.

    Assim, tem-se que, por incontveis vezes, as prticas tidas como educacionais podem ser encontradas representando prticas de auto-ritarismo e/ou sadomasoquismo exercidas por pais, por responsveis pedaggicos, dentre outros.

    O autoritarismo transfi gurado por pseudoprticas de educao constitui o excesso que leva submisso e priva o sujeito de experimen-tar-se como sujeito. Caracteriza uma das frequentes formas de castrao no convvio sociofamiliar e sustenta-se por esse gozo que, muitas vezes, refl etido no prazer perverso e desenfreado que faz de um sujeito puro objeto de satisfao sado-masoquista de outrem.

    A partir disso, em muitos lares, desde muito cedo, o sujeito LGBT torna-se refm do sintoma homofbico que inmeras vezes ganha cres-cente fora prevalente, por encontrar-se mitigado numa educao sa-domasoquista os que sobreviverem11 fi sicamente ou simbolicamente podero tomar conhecimento posteriormente, pela ressignifi cao sub-jetiva, da violncia a que foram submetidos.

    A contribuio do cristianismo conservador

    Apesar de haver excees, o convvio social evidencia a rejeio da maioria de adeptos religiosos homoafetividade e identidade de gnero, ou seja, h prevalncia do pensamento de que as relaes ocorridas fora de um padro de heteronormatividade (SEEDPR, 2009)

    11 O Grupo Gay da Bahia (GGB) emite, anualmente, relatrios sobre agresses que incorrem em assassinatos de sujeitos LGBTs, possibilitando conhecer o grave panorama da homofobia.

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    podem ser respeitadas, porm no devem ser aceitas ou incentivadas na sociedade.

    Em aspecto geral, o preconceito da maioria dos representantes religiosos favorece a marginalizao, alm de degradar moral e so-cialmente as relaes homoafetivas. Muitos homofbicos so tambm representantes no meio poltico12, inclusive compondo cadeiras nas Casas do Congresso Nacional atuam rechaando as discusses so-bre a identidade de gnero, alm de incentivarem campanhas para a cura do sujeito LGBT.

    Exemplo disso o Projeto de Decreto Legislativo n. 234/11, do deputado Joo Campos do PSDB/GO, representante da Frente Parlamentar Evanglica no Congresso Nacional, cuja atividade prin-cipal prevalece com caractersticas de boicote a projetos de interesse de feministas e gays, conforme noticiado por Arruda (2012).

    O projeto do referido deputado fi cou conhecido pelo nome pro-jeto da cura gay. Em audincia pblica realizada em 28 de novembro de 2012, na Comisso de Seguridade Social e Famlia em Braslia, hou-ve um debate13 em que Joo Campos exibiu claramente, por meio de seu enunciado, que seu trabalho como homem pblico norteia-se para desvalidar a Resoluo n. 001/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), a qual probe a patologizao do sujeito homoafetivo14 na atua-o (prxis) dos profi ssionais psiclogos.

    Como apontado por Lus Corra Lima (2010) em referncia ao ca-tecismo dos seguidores da religio catlica e que pode ser estendido a seguidores evanglicos: Evocam-se as Sagradas Escrituras, que os consideram graves depravaes. As pessoas homossexuais devem ser acolhidas e nunca discriminadas, mas so chamadas a viver a continn-cia sexual permanente (CATECISMO DA IGREJA CATLICA, 1992, n. 2357-2359 apud LIMA, 2010, p. 54).

    12 Exemplo: deputado Joo Campos PSDB/GO, que autor do Projeto Legislativo n. 234/11 que fi cou conhecido como projeto da cura gay.

    13 Disponvel em: .14 Vdeo disponvel em: .

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    Em documento pblico do Vaticano, de 2003, o prefeito Joseph Card. Ra inger (Papa Bento XVI) conclui:

    A Igreja ensina que o respeito para com as pessoas homossexuais no pode levar, de modo nenhum, aprovao do comportamento homos-sexual ou ao reconhecimento legal das unies homossexuais. O bem co-mum exige que as leis reconheam, favoream e protejam a unio matri-monial como base da famlia, clula primria da sociedade. Reconhecer legalmente as unies homossexuais ou equipar-las- ao matrimnio, signifi caria, no s aprovar um comportamento errado, com a consequ-ncia de convert-lo num modelo para a sociedade atual, mas tambm ofuscar valores fundamentais que fazem parte do patrimnio comum da humanidade. A Igreja no pode abdicar de defender tais valores, para o bem dos homens e de toda a sociedade (CONGREGAO..., 2003).

    Essa declarao constitui grande peso no contexto psicossocial de vrios pases, prejudicando principalmente o sujeito homoafetivo e seus familiares. Representa, na melhor das hipteses, um grande entra-ve no desenvolvimento das relaes sociais do sujeito LGBT.

    Poderia ser apenas mais uma dentre as inmeras afi rmaes alie-nadas e inconsequentes que se perpetuam no meio sociocultural. No entanto, por partir de um posicionamento do representante mximo de uma igreja que, ainda hoje, tem o poder de infl uenciar a poltica e a sociedade de forma signifi cativa, essa declarao adquire status de mola propulsora que fortalece e reafi rma a excluso social, agravando--se, com isso, a degradao moral e social que culmina com a margina-lizao do sujeito LGBT na sociedade.

    As igrejas crists, sobretudo a ala conservadora catlica, compor-tam um grande nmero de fi is em todo o globo. Essa realidade remete a um paradoxo, visto que a multiplicidade de sujeitos representa, in-clusive, a multiplicidade de pensamentos, havendo, portanto, diver-gncias em relao ao posicionamento papal citado anteriormente. Ou seja, h movimentos catlicos favorveis homoafetividade.

    Alm disso, a aceitao da diversidade sexual faria circular a palavra da tolerncia em instituies marcadas pelo imobilismo

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    conservador e pela represso sexual. Essa nova posio implicaria re-ver dogmas e praticas arraigadas em sculos e, seguramente, instituiria e representaria um outro imaginrio do sagrado.

    O contraponto da educao emancipadora

    O problema de convvio do sujeito LGBT no meio educacional, na melhor das hipteses, crnico. A discriminao praticada tanto por estudantes como pelos prprios profi ssionais da educao. Alm da violncia fsica, ocorre outra forma que, por ser mais silenciosa, torna-se ainda mais difcil de ser combatida. Trata-se do isolamento, da rejeio, de brincadeirinhas e piadas de mau gosto que, consequentemente, ter-minam por defl agrar o agravamento do quadro de evaso escolar.

    Esses elementos marcam negativamente o sujeito LGBT por toda a vida, sendo um dos fatores que contribui para um elevado ndice de suicdio e de transtornos mentais.

    Questes corriqueiras na estrutura do prprio ambiente fsico, como o fato de comumente se encontrarem as identifi caes femini-no e masculino nos banheiros, caracterizam mais um grande obst-culo para a frequncia escolar desse sujeito, alm disso, testemunham um dos contrassensos da forma sutil com que a excluso social se esta-belece, progride e se mantm.

    Tendo em vista a grande variedade de problemas no meio educa-cional, em fevereiro de 2011, a Unesco rgo da ONU que responde pelo acompanhamento e fomento da Educao, Cincia e Cultura deu parecer favorvel para que se distribussem kits informativos de combate homofobia nas escolas pblicas do Ensino Mdio de todo o pas.

    Esse material criado por equipe multidisciplinar comprometi-da com os Direitos Humanos inicial previa sua distribuio e debate, ainda em 2011, de 6 mil exemplares que eram originariamente com-postos por: caderno abordando de forma refl exiva o tema da homo-fobia em sala de aula e no ambiente escolar; vdeos em linguagem co-loquial sobre a temtica LGBT; pster; mais uma srie de seis boletins e cartas de apresentao para profi ssionais gestores e educadores das

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    escolas pblicas. Mas o governo, cedendo a presses, suspendeu o kit e as edies que estavam sendo produzidas pelo Ministrio da Sade e Ministrio da Educao.

    Em Curitiba, no estado do Paran, a Secretaria de Educao de Estado (SEED/PR), em parceria com a Coordenao da Educao das Relaes de Gnero e Diversidade Sexual (CERGDS), produziu cader-nos temticos com contedo de expressiva qualidade para abordar a causa LGBT no meio educacional15. Esses cadernos esto sendo uti-lizados desde 2009 com a comunidade escolar, especifi camente com professores, educadores e gestores da educao, tendo em vista o en-fraquecimento dos preconceitos, da discriminao e da excluso social sofrida pelo sujeito LGBT. Alm disso, os estudantes matriculados na rede estadual de ensino podem optar pelo nome civil ou social na lista de chamada, sendo-lhes garantido o devido sigilo a respeito.

    Mas como se v, essas aes so mnimas em relao ao todo, e demoram para alcanar maior abrangncia; quando realizadas, na maioria das vezes permanecem longa data restringidas ao local de ori-gem, como o caso do Paran, onde as aes do CERGDS, apesar de virem ganhando fora, ainda no conseguiram transpor as fronteiras de forma satisfatria para se expandir para os demais estados do pas evidentemente, pela falta de interesse governamental na causa.

    Assim, enquanto h pouca abertura para disseminarem-se aes contra a homofobia, as agresses perduram, assumindo vrias nuances, que alcanam formas extremas (sequelas, morte e assassinatos) a se ma-nifestarem principalmente nos recnditos silenciosos da excluso social ou familiar (BERUTTI, 2010). Outras vezes manifestam-se publicamente, pelos noticirios da mdia televisiva, de larga abrangncia nacional, que do testemunho vivo dessa infeliz realidade por imagens fl agradas, den-tre outros meios, por cmeras de segurana. Muitas vezes, esses notici-rios so assistidos com descaso ou indiferena pela maioria.

    15 Alm dos cadernos temticos, outras aes referentes sexualidade foram desenvolvidas na Secretaria de Estado de Educao do Paran (SEED) por meio da CERGDS (Coordenao da Educao das Relaes de Gnero e Diversidade Sexuais), representando um importante diferencial deste estado. Mais informaes podem ser acessadas pelo endereo: .

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    Alm da informao, merecem destaque a relevncia e a neces-sidade da construo do conhecimento. A esse respeito, reporta-se ao papel das universidades pblicas que integram o campo do ensino e da pesquisa, podendo, com isso, manifestar a relevncia social no desem-penho de seus papis, pelos quais elevam potencialmente o patamar no combate das prticas homofbicas na forma de pesquisa e exten-so do conhecimento. As universidades caracterizam-se pela funo de produo e disseminao do conhecimento cientfi co por excelncia.

    Carecemos no Brasil de refl exo acadmica mais extensa que d su-porte aos movimentos sociais, demonstrando o claro divrcio entre a universidade, espao privilegiado para o desenvolvimento de um pensamento crtico a respeito da sociedade, e os movimentos sociais, capazes de alavancarem as transformaes polticas, sociais e cultu-rais por eles almejadas. Muitos motivos podem ser arrolados para tan-to, mas, certamente, do lado da crtica literria, o divrcio resultado do apego tradio e do desprezo pela ousadia do contemporneo (LUGARINHO, 2010, p. 65).

    As palavras de Lugarinho (2010) elucidam o distanciamento co-mum entre a prxis do conhecimento e a dinmica do cotidiano social, destacando-se a necessidade de aproximao destes dois campos: o acadmico-cientfi co e o do contexto social.

    As universidades podem se assumir como agentes na promoo de mudanas de relevncia, por meio de pesquisas, e com isso entre-cortar linhas de resistncia social, operacionalizando avanos na garan-tia e preservao dos direitos do sujeito LGBT.

    possvel tomar o vis da violncia voltada em suas inmeras nuances contra o sujeito homoafetivo como segmento dado opres-so experimentada na excluso e que repercute, para o sujeito, os mais severos prejuzos no convvio social e familiar. Os mais comuns referem-se impossibilidade de estudar, de trabalhar, de ter acolhi-mento na famlia.

    Pelo vis da excluso encontram-se, especialmente, prti-cas educacionais opressoras pautadas em modelos normatizantes,

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    tradicionalmente nutridas nos crculos familiares e fortalecidas nas experincias escolares.

    A grande maioria das instituies educacionais fi rma-se na pro-pagao de ideais neoliberais, caracterizando-se, com isso, como um brao extensor a perpetuar prticas de opresso em nome da boa edu-cao, da boa conduta, da moral, da disciplina, da cidadania.

    Esse em nome da... apenas meramente menciona de forma ilus-ria a essncia que deveria ser o constructo de uma franca educao vol-tada a aes de cidadania, dada pelo incentivo da refl exo crtica, e aes de reconhecimento e valorizao da diversidade psicossocial. Oculta, por conseguinte, na prtica, a arbitrariedade advinda pelo gozo do dio.

    De acordo com Sidney de Oliveira (2010, p. 6):

    A dominao psicossocial conveniente, pois cria as condies neces-srias para que o indivduo confi e, idealize e comprometa-se com a organizao. Este processo gera o clima ideal para o estabelecimento de vnculos polticos, cognitivos e afetivos entre o indivduo e a orga-nizao. A modernidade neoliberal em uma sociedade do espetculo favorece a construo de uma cultura narcisista na qual subsistem de-terminadas formas de subjetivao e de regulao dos objetos de dese-jo privilegiados. Ela favorece a constituio fragmentada e ilusria de uma subjetividade narcisista, uma tica e uma esttica convenientes ao status quo dominante.

    Com isso, o sujeito homoafetivo no se enquadra no que lhes imposto socialmente e deixa, assim, de corresponder aos ideais narcsi-cos16, passando, em seguida, a ser censurado em sua voz e obrigado excluso social paga o alto preo da excluso (SEEDPR, 2009).

    Destaca-se que a submisso do sujeito alcanada por meio das mais variadas prticas opressoras caracteriza a atroz ao de violncia contra o sujeito LGBT aqui em questo.

    16 No desenvolvimento desta pesquisa tambm se destacou o fato do sujeito LGBT no corresponder aos ideais da moral crist e cultura reminiscente do padro familiar burgus.

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    Pela submisso furtam-lhe a autonomia, a liberdade de pensar e de agir, furtam-lhe direitos e a dignidade, nega-se a ele, alm dos direi-tos, tambm a alteridade no convvio sociofamiliar.

    Negar a alteridade e o direito cidadania plena nos torna cada vez mais objetos que sustentam o ideal, estampado na sociedade brasileira, de banalizao da injustia social e diluio dos valores humanistas e de alteridade. Essa negao privatiza as relaes sociais e sucumbe pro-jetos comuns, instituindo um vcio autofgico na civilizao. Antes de ser um sintoma dessa cultura narcsica, a exploso da violncia emerge como um dos fatores constituintes dessa mesma cultura ao naturalizar e banalizar os feitos nefastos do neoliberalismo na sociedade. A obra freudiana rica em exemplos de como o estabelecimento da civilizao passou a regular a sexualidade e a agressividade humana. Mas a mo-dernidade foi alm da represso instituindo uma cultura que infl acio-nou o egosmo e o individualismo excludente, sem falar do preconceito e das diversas formas de violncia (OLIVEIRA, 2010, p. 6).

    Consecutivamente, e de acordo com Sidney de Oliveira (2010), a expresso das capacidades de criar ou transformar encontra-se desfa-vorecida para o sujeito e, concomitantemente, as faculdades essencial-mente humanas como o pensamento e a refl exo crtica sofrem o boico-te social, tendo em vista a celebrao de ideais narcisistas. Observa-se tambm que, na prtica de se educar o sujeito, tendo em vista que des-de muito cedo a opresso fala mais alto, determinando que o melhor a se fazer obedecer sem questionar, equivocadamente se alimenta em seu seio o germe da violncia que, em suas expresses psicossociais mais severas, rotineiramente e em qualquer momento, todo sujeito pode constituir-se refm independentemente de etnia, credo religio-so, gnero, idade, situao socioeconmica etc.

    Consideraes fi nais

    Ao se realizar o percurso a partir de uma perspectiva psicanaltica, partiu-se da premissa de que o sujeito homoafetivo no se constitui como criatura patolgica ou imoral e que a patologia e a degradao moral que

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    a sociedade pretendeu durante anos atribuir diversidade sexual decor-rem do padro de heteronormatividade ainda hoje prevalente.

    A homofobia a evidncia mais clara de um sintoma que advm de contedo inconsciente que ultrapassa a fronteira individual e alcana o espao de convvio socialmente compartilhado entre os sujeitos.

    Ao tempo em que se destacam alguns avanos no combate mar-ginalizao do sujeito LGBT, tambm se testemunham pelos noticirios de rdio, televiso, revistas, jornais e internet a gravidade da extenso das prticas homofbicas no cenrio brasileiro.

    Ademais, possibilita-se compreender que a prtica homofbica representa para o sujeito que a reproduz uma forma de compensar o mal-estar que experimenta no advir do sentimento de culpa, alm do fato de o sujeito LGBT no lhe sustentar, simbolicamente, o engodo sobre aquilo que em si mesmo no pde realizar-se nos tempos primor-diais da relao com os objetos de amor.

    Decorrido mais de um sculo das afi rmaes psicanalticas, no restam dvidas sobre a existncia da diversidade sexual humana e da urgncia em se combater especialmente a injustia socioeconmica, so-ciofamiliar e sociopoltica que degrada cruelmente as possibilidades e os direitos fundamentais em relao ao sujeito LGBT.

    Na impossibilidade de desvendar a verdade frente ao desigual, o sujeito experimenta a frustrao e os incmodos que tornam o campo da subjetividade frtil para a emerso do dio, possibilitando defl a-grar-se o mpeto de destrutividade para com isso que, supostamente, constitui, para ele, a causa de repulsa.

    O estranhamento do outro quer embaar o refl exo das prprias contradies e dos fantasmas mais temidos. Em uma sociedade do es-petculo e da competio, a moral conservadora guarda o trunfo mais cobiado pelo status quo dominante: o resgate da felicidade perdida. Em cima dessa promessa se erguem os argumentos de defesa da tradi-o e se repele o que se acredita ameaar a integridade dessa ideologia.

    Alm da mudana da posio que o sujeito ocupa e da pro-duo de uma subjetividade diversa da que hegemoniza a cultu-ra do espetculo, uma educao emancipadora poderia ser outro

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    elemento importante para compor um cenrio de respeito favorvel ao progresso da diversidade. Mas se a educao uma das tarefas impossveis, entend-la numa perspectiva emancipadora certamen-te acirra essa impossibilidade. Mas no por isso que no pode ser feita. Muito pelo contrrio.

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    Recebido: 13/12/2013Received: 12/12/2013

    Aprovado: 10/03/2014Approved: 03/10/2014