revista voilà

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Jul 2010 02 # revistavoila.com.br 02 # revistavoila.com.br 2010

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faça um passeio "caliente", divertido e colorido, adentrando as fronteiras da América Latina na segunda edição da Voilà.

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EDUARDO ROSA // www.eduardorosa.com

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Voilà

“...a moeda foi lançada e girou no ar; às vezes apareciam caras, às vezes, coroas. O homem, que é a medida de todas as coisas, fala através de mim e reconta por minhas pa-lavras o que meus olhos viram. De dez caras possíveis, eu talvez só tenha visto uma única coroa, ou vice-versa: não há desculpa; minha boca fala o que meus olhos lhe disseram para falar. Teria nossa visão sido estreita demais, preconceituosa demais ou apressada de-mais? Teriam nossas conclusões sido muito rígidas? Talvez, mas é assim que a máquina de escrever interpreta os impulsos desbara-tados que me fizeram pressionar as teclas... A pessoa que está agora reorganizando e po-lindo estas mesmas notas, não sou mais eu, pelo menos não sou o mesmo que era an-tes. Esse vagar sem rumo pelos caminhos de nossa Maiúscula América me transformou mais do que me dei conta. Agora, eu o deixo em companhia de mim, do homem que eu era...”

ErnEsTO ChE GuEvArA, De moto pela América do sul, 1952.

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A 2ª edição da voilà conduzirá o leitor a um passeio colorido pela América Mai-úscula de Guevara, uma América de sonho por dias melhores. O enredo inicia-se com o Bicentenário de Independência dos Países Latino-Americanos, escrito por Isabel Cama-ra, jornalista responsável pelo Memorial da América Latina. A edição destaca também as comemorações dos 8 anos de aniversário do programa América Latina Canta, apresenta-do por Azucena Geymonat.

Os editoriais de moda clicados pelo austríaco David Tynnauer e produzidos por soraia Costa, Aurélio hilgenberg e Gerson Martino seguem à risca a temática e ex-ploram os diferentes conceitos de belo das Américas, evidenciando a beleza híbrida de todas as etnias que colonizaram nossa ter-ra. no editorial passista-glam o foco está na brasilidade de nossa destaque-chic depois que o carnaval acaba.

A viagem pelas Américas passa ainda por temas como religiosidade, assunto coloquial e constante entre os latinos, discutido por Gabriela Baggio. Adentra as fronteiras nacio-nais em “Yes, você é um cucaracha!”, artigo escrito e defendido pelo jornalista brasileiro de carteirinha, Fernando Araújo. Chega ao extremo norte em “Viva México!”, narrativa de Marcela haga, que revela seu flerte pela intensa e caótica Ciudad de México. A edição conta também com a entrevista de Gabriela Canale com o argentino Jorge Crowe, artista contemporâneo, produtor de arte interativa--eletrônica. A revista é enriquecida ainda pelo texto de cores gauchescas do poeta e fotógrafo Ygor Raduy.

Direção e Produção: Lilian ManganaroProjeto Gráfico: Pianofuzz Design StudioDiagramação: Pianofuzz e F.Quintanilha*Prepress: F.Quintanilha*

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prólogo

Direção e Produção: Lilian ManganaroProjeto Gráfico: Pianofuzz Design StudioDiagramação: Pianofuzz e F.Quintanilha*Prepress: F.Quintanilha*

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Voilà

CAPAFotografia: David Tynnauer e Soraia Costa www.shootthemodel.comProdução de moda e styling: Soraia CostaModelo: Marilia El-CorabCabelo e maquiagem: Soraia CostaAgradecimentos: G.R.C. Escola de Samba Leandro de Itaquera (SP)Body e casaqueto: Samuel CirnansckMáscara: H&M Turbante: acervoColar: SP Moda AlternativaSapato: C&A

RE-FIL/

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EDITORIALPASSISTA GLAM

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ENTREVISTAJORGE CROWE

Gabriela Canale

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PRÓLOGOLilian Manganaro

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MEMORIAL DA INDEPENDÊNCIA LATINO-AMERI-CANAIsabel Camara

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XAMANISMOGabriela Baggio

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AMÉRICA lA-TINA CANTAAzucena Geymonat

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YES, VOCÊ É UM CUCARACHA!Fernando Araújo

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JORNADASIgor Raudy

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EDITORIALHÍBRIDO

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CRÔNICAVIVA MÉXICO

Marcela Haga

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Passista-LuxoVestido: Neon (acervo)Sapato: ZaraTiara de metal: Artesanatos Bernardo Terra

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Fotografia: David Tynnauerstyling: Soraia Costa

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Destaque-atitudeMaiô e calça pantalona: Neon (acervo)Cabeça de plumas: SP Moda Alternativa

Porta-bandeira chique (página ao lado)Vestido longo: Neon (acervo)Cabeça de plumas: SP Moda AlternativaColar: H&M

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Page 12: Revista Voilà

Rainha-da-bateria rocks!Jaquetinha: Samuel CirnansckBody: Neon (acervo)Colar, pulseiras e cabeça: SP Moda AlternativaBota: H&M

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Bateria-urbanaBody: Neon (acervo)Calça: Walério AraújoSapato: H&MCabeça: SP Moda Alternativa

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Rainha-da-bateria rocks!Jaquetinha: Samuel CirnansckBody: Neon (acervo)Colar, pulseiras e cabeça: SP Moda AlternativaBota: H&M

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Baiana-românticaBody e casaqueto: Samuel CirnansckMáscara: H&M Turbante: acervoColar: SP Moda AlternativaSapato: C&A

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Passista-LuxoVestido: Neon (acervo)Sapato: ZaraTiara de metal: Artesanatos Bernardo Terra

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Comissão-de-frente geométricaBlaser e calça: Samuel Cirnansck

Camisa com laço e sapatos: H&MCabeça de coelho: Walério Araújo

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Rainha-moma clássicaVestido: H&MCamisa e laço: Samuel CirnansckPulseiras: SP moda AlternativaCoroa: Walério Araújo

Page 21: Revista Voilà

FICHA TÉCNICAFotografia: David Tynnauer e Soraia Costa www.shootthemodel.comProdução de moda e styling: Soraia CostaModelo: Marilia El-CorabCabelo e maquiagem: Soraia CostaAgradecimentos: G.R.C. Escola de Samba Leandro de Itaquera (SP) www.spmodaalternativa.com.br (cabeça de penas)

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MeMorial da independência latino-aMericana

MATÉRIA /

MatériaVoilà

ISABEL CAMARA

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O Memorial da América Latina, complexo arquitetônico, cultural e artístico instalado ao lado do Terminal Barra Funda do Metrô,

em são Paulo, prepara extensa programação para participar das comemorações do bicen-tenário de cinco países vizinhos: Argentina, Chile, venezuela, Colômbia e México. E o que tem a ver com isso uma entidade como o Memorial, que em 2009 completou seus primeiros 20 anos?

não fosse por outros motivos, bastaria o fato de que o Memorial nasceu com a mis-são de estreitar as relações culturais, políti-cas, econômicas e sociais do Brasil com os demais países da América Latina. Esse era o conceito do projeto cultural desenvolvido pelo antropólogo Darcy ribeiro, inspirado na idéia de que a união e a solidariedade en-tre os povos latino-americanos é tão antiga quanto as lutas lideradas no século XIX por simon Bolívar e José Marti e san Martin.

A programação contará com a “Mostra de Arte Contemporânea de países irmãos Latino-Americanos em Comemoração aos 200 anos da Independência” como mostra principal; o projeto “Grandes Mestres La-tinos – Caligrafia Frida Khalo e Artur Bispo do rosário”; e a “1º Bienal Internacional de Estampa Contemporanea-México”, que sela a parceria entre o Memorial, o Consulado do México e Museo Nacional de La Estampa, en-tre outras exposições.

Pelo Memorial já passaram grandes ar-tistas como o equatoriano Oswaldo Guaya-samín e o colombiano Fernando Botero. no Pavilhão da Criatividade o acervo permanen-te apresenta as diversas manifestações cultu-rais dos países latinos. A escultura Mão, que reproduz em si o mapa da América Latina se esvaindo em sangue representa a luta dos povos latinos pela identidade e autonomia cultural, política, social e econômica – uma ferida aberta que ainda não cicatrizou.

A história dos movimentos para a liber-tação da América Latina começou em 1810 e

acabou em 1822 com a independência bra-sileira. As lutas resultaram na expulsão dos espanhóis, que durante todo o período colo-nial saquearam as riquezas e massacraram os indígenas, submetendo-os à escravidão, assim como ocorreu com os africanos. As re-públicas foram instauradas à medida em que acabava a escravidão.

Os criollos – descendentes de espanhóis nascidos na América – eram a favor da eman-cipação e, em 1810, iniciaram a luta pela in-dependência. O objetivo era romper com a metrópole espanhola, pois ela dificultava o comércio com os ingleses. Interessados em ampliar seus mercados para a circulação de seus produtos industrializados, os ingleses e os americanos, guiados pela Doutrina Mon-roe – a América para os americanos -, ajudaram nas lutas pela independência.

O general venezuelano simon Bolívar liderou os combates que libertaram a vene-zuela, a Colômbia e o Equador. José de san Martín, militar argentino, liderou a inde-pendência do Chile, do Peru e da Argentina. no ano seguinte, em 1826, Bolívar convidou os representantes dos países recém-libertos para participarem da Conferencia do Pana-má, com o objetivo de criar uma unidade política, a Confederação Pan-Americana. O projeto falhou, pois colidiu com os interes-ses das elites locais que foram apoiadas pelos americanos e pelos ingleses.

A América Latina estilhaçou-se em Es-tados soberanos governados pela aristocra-cia criolla. O desenvolvimento político não acompanhou a revolução social e as estru-turas coloniais sobreviveram ao processo de independência. Por isso, a dependência eco-nômica perpetuou-se em muitos países lati-nos. Com a estrutura enfraquecida e dividida – sob o ponto de vista interno e externo –, os países latino-americanos assumiram uma vez mais o papel de fornecedores de maté-ria-prima e de mão de obra barata. Agora, associado não à Espanha, mas ao capitalismo industrial.

Voilà Matéria

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Voilà

não abra, ou você perderá a garan-tia. É questionando esta interdi-ção, e muitas outras, que o artista argentino Jorge Crowe constrói

obras de arte que parecem brinquedos sono-ros e visuais. É ele quem nos conta como é a arte do século XXI na América Latina. nascido em Tunuyàn, aos pés da Cordilheira dos An-des, o artista de 33 anos, que vive em Buenos Aires, cria, a partir de “lixo eletrônico”, obras que abalam as funções primeiras das máqui-nas e a lógica produtiva da indústria. O resul-tado são trabalhos interativos que têm jeito de jogos e uma força política muito forte – inúteis e ao mesmo tempo imprescindíveis, como ele os define.

Conheci seu trabalho no último Festival Internacional de Linguagem Eletrônica de

são Paulo, onde eu expunha e ele ministrava uma palestra em um simpósio de entusiastas da tecnologia. O que chamou minha atenção foi a forma com que ele trazia a política para o centro dos debates sobre arte e tecnologia.

Como pensar em tecnologia de ponta e ig-norar o contexto de sua produção e o acesso a ela?

As máquinas se modernizam cada vez mais e menos somos estimulados a alterá-las. Para isto, Jorge resgata o Do It Yourself, dos punks. nada mais político.

O seu blog H. Cosas (algo como “faça coi-sas”) traz registros de suas obras e oficinas. Faça coisas nos afasta da letargia e propõe que se brinque. E, como toda brincadeira reflete uma teoria, a de Jorge é uma grande apologia à liberdade.

ENTREVISTA /

gABRIELA CANALE conversa com

JORgE CROWE

Entrevista

Tradução: Azucena Geymonat

do itYoUrSelFpleaSe: do not open!

“Eu me inspiro nas coisas, nos objetos,

nas associações casuais de frag-

mentos de maté-ria que não foram desenhados nem construídos para estarem juntos.”

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Em que você se inspira? Eu me inspiro nas coisas, nos objetos, nas associações casuais de fragmentos de matéria que não foram dese-nhados nem construídos para estarem juntos. Inspiram-me os trajetos azarados que faço na rua colhendo objetos - como quase traçando um mapa - e que essas coisas me digam o que devo fazer com elas.

Qual é o principal tema de seus traba-lhos? Não sei. Talvez a brincadeira, o espírito lúdico. E o som, claro. Do ruído até o silêncio.

Por que escolheu trabalhar com máqui-nas e tecnologia, dois paradigmas de nosso tempo? Gostei dos objetos tecnológicos desde muito pequeno. Desmontar, resgatar coi-sas do seu interior. Sinto-me fascinado colhendo ferros velhos (scrap). Gosto dos objetos jogados fora: os periféricos e excluídos do sistema de bens

materiais, os velhos suportes como a fita cassete, o vinil. Eles têm história, uso, horas de funcio-namento que em alguma parte devem ficar re-gistradas.

Quando começou produzir as suas obras de arte? A minha formação acadêmica é na pintura. Comecei pintando, desenhando, lá pelos 14 anos. Mas os objetos eletrônicos (que me acompanham desde a infância) foram ganhando terreno. Hoje não faço outra coisa.

Você as chama de obras de arte? Sim, ou não. Não é o tema que me causa preocupação. Cer-ta vez li algumas definições acerca da arte falando que a ela era inútil, mas ao mesmo tempo impres-cindível. Creio que as minhas coisas são inúteis (ao menos para o sistema de produção de bens e ser-viços), mas são imprescindíveis (para mim). Quer dizer que eu as chamaria de objetos artísticos.

Voilà Entrevista

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Voilà

Onde encontra os materiais que utiliza? Na rua principalmente. Eu gosto de ir aos lugares que vendem coisas usadas (por exemplo, o exér-cito de salvação).

Onde são expostos seus trabalhos? Em muitos lugares, desde salões de arte tradicional e espaços de arte e tecnologia a espaços educati-vos. Onde tiver pessoas e uma tomada.

Como as pessoas se relacionam com seu trabalho? Creio que abertamente, são ob-jetos com interfaces simples. Convidam a brincar. Não exigem muita informação prévia. As crian-ças desfrutam muito, e isso me dá orgulho.

Qual é seu trabalho que o faz sentir or-gulhoso? Acredito que a Pan PC me faz sentir bastante orgulhoso. É muito simples, quase bobo. Gera formas geométricas coloridas quando se pressionam os botões. É uma obra de tecnolo-gia tão elementar que não tem circuito eletrônico nem necessita da eletricidade (funciona devido a um fenômeno chamado de “piezoeletricidade”). E sua estrutura vem de uma caixa de geladeira que achei na rua.

Vende seus trabalhos? Não. Não tenho vendido nenhum dos meus objetos únicos. Tenho uma série de brinquedos elétricos de baixo cus-to que vendo com freqüência. (http://jorgecrowe.com.ar/2009/07kilombots-en-serie-y-en-parale-lo.html) mas não como obras de arte.

Entrevista

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Qual é o trabalho que ainda deseja fa-zer? Tenho projetos que envolvem maior inves-timento e tempo. Gostaria de ter recursos para dedicar-me por completo a eles, durante um ano, sem preocupação pela minha subsistência diária.

Como é o circuito da arte na Argentina? O circuito das artes tecnológicas é bastante re-duzido. Todos nos conhecemos e, sorte nossa, não existem rivalidades. É uma rede bastante cola-borativa; compartilhamos conhecimentos, infor-mação sobre bolsas, concursos, festivais. Tenho vários amigos ali. Tendo as artes tecnológicas um leque tão amplo, é comum achar músicos, artistas visuais, cenógrafos, cineastas. Trata-se de uma variedade que curto e que me enriquece.

Como é o mercado de arte argentino? Desconheço. Não pertenço ao mercado da arte. Meus ganhos vêm da docência.

Como foi a sua experiência no Foro Mundial Social? Do ponto de vista humano foi muito enriquecedora. Conheci gente de muitos lugares. Aprendi muito sobre sistemas de gestão coletiva e colaborativa. Na Argentina estamos de olho no Brasil. Temos realidades políticas muito diferentes (lamentavelmente para nós). O Brasil é um farol na região; acho muito importante saber o que acontece lá. Por outra parte, acredito que o Foro Social como evento, foi fagocitado (tem auspício da Petrobrás!), consequentemente ficou inofensivo e pouco provocativo. Não acredito que hoje seja um espaço para criar e alimentar novos paradigmas de pensamento e ação. No entanto, aproveito para agradecer ao coletivo Epidemia

(São Paulo) pelo convite para participar.

É possível fazer arte política com a tec-nologia digital? Creio que é inevitável. Hoje as comun delito. Então, a arte é política, o amor é político, a liberdade é política.

Existe espaço fora dos centros institu-cionais como o Malba (Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires) e o Museu de Belas Artes? Há muitos espaços. Na Argentina não contamos com as instituições nem com o Estado. Sabemos que não colaboram e que, muitas vezes, dificultam a criação artística. É neste sentido onde vejo a diferença mais pro-funda entre Brasil e Argentina. De modo que, sem receber ajuda, há milhares de espaços auto-ges-tionados, festas, eventos, encontros, festivais, que existem e vivem por Amor. De qualquer modo, as artes tecnológicas exigem espaços particula-res, hardware, software e outras ferramentas de alto custo. Espaços como o CCEBA (Centro de Cultura Espanhola de Buenos Aires) e a Funda-ção Telefônica têm estruturas e elementos para realizar exposições de arte e novos meios. Ambos, evidentemente, contam com recursos provenien-tes do Estado Espanhol e de uma corporação espanhola.

Você acredita que os argentinos têm, no geral, um caráter mais político que o resto de América Latina? Não sei. Não te-nho certeza. Se assim for, devemos nos perguntar como. Minha percepção é que somos um desastre como políticos, tanto as classes dirigentes como os cidadãos. Sinto que estamos longe de exem-plos mais próximos como Brasil, Uruguai, Chile.

Qual artista argentino os brasileiros ne-cessitam conhecer? Dois artistas são para mim muito importantes (ambos do século passa-do): Victor Grippo e Emilio Renart. Talvez Grippo, pela sua transcendência, seja conhecido no Bra-sil. A dimensão espiritual de sua obra é imensa. Ele é um pioneiro da arte tecnológica (ambos, na verdade). Dos artistas da minha geração interes-sam-me em particular Eduardo Basualdo (e seu Colectivo Provisório/Permanente), Nicolás Bacal, Adrián Villar Rojas e o Colectivo Oligatega.

Voilà Entrevista

“O resultado são traba-lhos interativos que têm

jeito de jogos e uma força política muito forte – inú-

teis e ao mesmo tempoimprescindíveis.”

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Voilà

Entrevista

Qual a obra de arte que ainda não foi inventada? Qual a obra de arte que eu ainda não inventei? Uma que transforme as pessoas que se encontram com ela. Que faça que sua vida, embora seja no detalhe mais insignificante, possa ser distinta antes e depois de conhecê-la. Não sei se a minha vida alcança para criá-la. Se esta vida não der, continuo na outra!

Que obra de arte não foi in-ventada? Todas! Tudo está para ser feito e ser criado. Há tantos artistas que ainda não nasceram, ou que ainda não se descobrem como tais, ou que estão cozinhando seu trabalho em si-lêncio...

Em seu blog H. COSAS (http://jorgecrowe.com.ar) você pro-põe às pessoas que façam coisas. Que ideia está por trás disso? Uma ideia talvez utópica e pretensiosa: a liberdade. A de criar, transformar a matéria, de formar um pensamento crítico como usuários, de estimular a auto-estima e a confian-ça mediante a satisfação de construir e ver funcionar pequenas invenções. Fazer dá poder! E é divertido. Brincar, brincar, brincar...

Gabriela Canale é jornalista e artista multimídia. É especialis-ta em literatura brasileira (UEL), mestre em Letras (UEL) e douto-randa em Literatura Comparara (USP). www.gabrielacanale.com

Revisão: Alessandra Almeida (onnaconsultora.com.ar) e Débo-ra Domke ([email protected]).

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Manifestode Reparo

Voilà Entrevista

1. Faça seus produtos durarem mais Consertar significa a oportunidade de dar a um produto uma segunda vida. Con-sertar não é anticonsumo: é antidesperdício. 2. As coisas têm que ser projetadas para poderem ser consertadas Designer de produtos: faça coisas consertáveis. Forneça informações claras so-bre como consertar. Consumidor: compre coisas que você sabe que podem ser consertadas, ou descubra por que elas não existem. seja crítico, faça perguntas. 3. Consertar não é substituir uma peça não estamos falando em jogar fora a parte que está quebrada, mas de realmente remendar criativamente. 4. O que não mata engorda Toda vez que você conserta algo você acrescenta ao seu potencial, à sua história, à sua alma e à sua beleza inerente. 5. Consertar é um desafio criativo Fazer reparos é bom para a imaginação e ensina a usar novas técnicas, ferramen-tas e materiais. 6. Conserto não sai de moda não se conserta para deixar os produtos na moda. não há datas de validade para produtos que podem ser reparados. 7. Consertar é descobrir Ao consertar você descobre coisas incríveis sobre como os objetos funcionam. Ou não funcionam. 8. Conserte – mesmo quando a crise acabar se você acha que este manifesto tem a ver com a recessão, esqueça. não estamos falando de dinheiro, mas de mentalidade. 9. Coisas consertadas são únicas Mesmo falsificações se tornam originais quando você as conserta. 10. Consertar é ser independente não seja um escravo da tecnologia – seja seu mestre. 11. Você pode consertar tudo, mesmo um saco plástico Mas nós recomendamos arrumar uma sacola que dure mais. E, quando ela es-tragar, consertá-la.

Pare de reciclar! Comece a consertar!

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XaManiSMo

MATÉRIA /

gABRIELA BAggIO

Ilustração Patrícia Araújo

MatériaVoilà

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nno Xamanismo procura-se ouvir as vozes dos ancestrais, das nossas tradições. De acordo com nosso li-

vre arbítrio, podemos escolher um caminho espiritual capaz de melhorar nossa percep-ção com relação à vida em volta e às nossas escolhas.Mas o Xamanismo não se refere apenas às espiritualidades indígenas e latinas. Os indí-genas são os grandes responsáveis por culti-varem essa prática até hoje e difundi-la para o homem branco. Porém, ela começa bem antes, no período Paleolitíco. A palavra “Xamã” é de origem siberiana. Foi criada por antropólogos para definir um conjunto de crenças ancestrais. hoje, repre-senta práticas e rituais universais.O “Xamanismo” ou a “Jornada da Consciên-cia” ultrapassa países, credos, raças e filoso-fias. A premissa básica é o reconhecimento de que todos fazem parte de uma Família universal e que tudo está interligado. O ini-ciado se conecta com o Espírito Essencial dentro dele, na natureza e em todos os se-res. O praticante apreende sua relação com o universo.

Atualmente, o Xamanismo pode ser dividido em duas escolas: O Xamanismo tradicional (das tradições nativas), e o neo-Xamanismo, que inclui práticas terapêuticas de diversas linhas, adaptado a uma realidade urbana. Muitos rituais xamânicos, inclusive no Peru, rezam para Cristo e aceitam que Jesus foi um Xamã Iluminado. Podemos, numa abor-dagem mais abrangente, dizer que a native American Church nos EuA, a umbanda, a união do vegetal, a Barquinha, o Catimbó, os cerimoniais com cogumelos de Maria sabina e outros cultos e filosofias possuem traços do Xamanismo. não somente tais religiões e fi-losofias, mas o próprio Cristianismo, Budis-mo Tibetano, Judaísmo, Tantrismo, possuem traços xamânicos.Existem algumas datas pagãs que o Xama-nismo utiliza em seus rituais. Datas que foram modificadas pelo Cristianismo, tal como a renovação da vida, ou da colheita, no inverno, cujo ritual é denominado Yule. no Cristianismo, o Yule é representado pelo natal. Ostara é a festa que celebra o renasci-mento da Primavera e foi transformada na Páscoa cristã. O Dia de Finados tem origem

A medicina dos pajés brasileiros e dos curan-deiros das várias tribos

latino-americanas e norte-americanas saiu da

redoma de vidro. Hoje é difundida em diversas

áreas espirituais con-temporâneas. Ela é vista, inclusive, como um novo

estilo de vida saudável.

Voilà Matéria

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Voilà

na estação da última colheita, que representa a decomposição, uma forma de reciclagem da vida, denominada samhain no Xamanismo.Com a propagação do Cristianismo, as prá-ticas xamânicas foram excluídas de muitas culturas. Isso deveu-se à crise das religiões greco-romanas, que levou à destruição de templos e à extinção de cerimônias. Tal perse-guição às religiões pagãs teve início na Idade Média e prosseguiu até o renascimento, com a Inquisição Católica. A colonização espanho-la, através dos conquistadores, destruiu as tradições locais e dizimou os praticantes. Os rituais sobreviveram clandestinamente, prin-cipalmente entre os povos indígenas. As culturas africanas de tradição xamânica de-senvolveram um sistema apoiado em deida-des. nos rituais da umbanda e do Candomblé, tais deidades são reconhecidas e manifestadas através dos Poderosos Espíritos da natureza chamados Orixás. na Mitologia Grega cada deus é responsável por uma manifestação da natureza. O Xama-nismo grego é refletido na mitologia de Me-déia, nos Mistérios Eleusianos e outros. Mais tarde, tais práticas foram adotadas pela religião romana. O foco das práticas do Xamanismo centra-se nos ritmos cíclicos da natureza: nascimento, morte e renascimento; masculino e feminino; contato com a natureza; forças da terra, do sol, da lua e das estrelas.

Considera-se o xamanismo a mais anti-ga prática espiritual, médica e filosófica da humanidade. sua filosofia compreende o respeito pela ecologia, o reconhecimento do sagrado, a necessidade de expansão da consciência e de obtenção de respostas em relação ao ser. O contato com outros planos de consciência estimula o iniciante a desen-volver sentimentos de tranqüilidade, paz, concentração profunda, além de desenvolver o bem estar físico, psicológico e espiritual.Os estados alterados de consciência não en-volvem apenas o transe. Estão relacionados ainda à capacidade de viajar na realidade incomum, com o objetivo de contactar es-píritos de animais, plantas, mentores, obter insights, promover curas, oráculos. hoje, pessoas das mais variadas crenças, classes e lugares estão estudando e aplican-do o Xamanismo. O xamã pode ser homem ou mulher. É um mago, curandeiro, bruxo, médico, terapeuta, conselheiro, contador de estórias, líder espiritual, etc. É um interme-diário entre o mundo espiritual, a natureza e a comunidade.se o “conhecimento” é para todos, mas “sa-bedoria” é apenas para alguns, o Xamã com-preende perfeitamente tal aprendizado. Ele conecta-se com a Mãe Terra. Ele sabe que Deus, ou o Criador, como é chamado, dá de presente a cada filho seu, algum talento es-pecial que cada um de nós possui, frequente-mente sem sabê-lo.

As relações entre o Xamã e os animais são de natureza espiritual e de uma tal intensidade mística que torna-se di-

fícil para a mentalidade cética imaginá-la. A relação é tão íntima que os xamãs acreditam ser possível até mesmo tornar-se um animal. Ao se tornar um animal mítico, o homem transforma-se em algo maior e mais forte do

A premissa básica é o reconhecimento de que

todos fazem parte de uma Família Universal e que

tudo está interligado.

Os animais e o Xamanismo

MatériaVoilà

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que ele próprio. O estudo do Xamanismo ensina muito so-bre as interações mentais entre homens e animais. seres espirituais, sejam eles santos, anjos, ancestrais, fadas, duendes ou animais totêmicos, compõem o repertório de nossos mitos antigos nas diversas escrituras. O pen-samento xamânico acredita em uma mente grupal e em um animal arquetípico ou mes-tre, pertencente a cada espécie. Crê ainda que espíritos animais são excelentes profes-sores, guias e auxiliares da humanidade. O Xamã possui um animal de poder, que age como espírito guardião e protetor. Ele é a versão primitiva do nosso anjo da guarda. Tal espírito, diferente da versão cristã do anjo, pode modificar-se com o tempo ou de acor-do com a tarefa para a qual o Xamã solicita sua ajuda. Para o xamã japonês, os animais podem representar uma forma exaltada de uma transformação do Buda. A invocação pode ser entendida como uma espécie de prece, um caminho para atrair o espírito de certos animais. Quando os invo-camos, convidamos literalmente um espíri-to animal para viver perto de nós, para que então possamos compartilhar de seu poder medicinal. A tarefa do animal de poder é manter sadia a energia de quem o invoca. Ele age física, mental, emocional e espiritu-almente, provendo direcionamento e apoio. no dia a dia, qualquer pessoa pode invocar seu animal de poder. Ele pode ser invocado quando precisa-se de energia extra ou assis-tência, quando se está em ambiente perigoso ou em época de enfermidade. na mitologia indígena brasileira, também conhecemos algumas práticas xamânicas e animais de poder. Alguns deles tornaram-se parte do folclore brasileiro.Os índios Yanomami falam de shimiwe, o es-pírito do macaco-aranha; Kaomawe: o espírito das tarântulas; Waroo: o espírito da serpente, entre outros. há também o mito amazônico do boto, que vai à casa de mulheres e as en-

canta . Ele aproveita a ausência de homens, trans-forma-se num rapaz vestido de branco, possuidor de poder sedutor irresistível. O uirapuru é um deus que transformou-se em pássaro, protetor dos negócios e do amor. Quando canta, todos os pássaros fazem silêncio absoluto para ouvi-lo. O Boiúna é uma cobra gigantesca que vive no fundo dos rios e igara-pés. seu corpo é brilhante, capaz de refletir o luar. De seus olhos emana uma poderosa luz. Assim, ela atrai os pescadores, que se tornam sua refeição. O Anhangá pode assumir a forma de vários animais. É um espírito que vagueia pela mata. Prefere aparecer como um veado com olhos de fogo. Ele é um protetor da vida na floresta. A Mula-sem-cabeça tem um facho luminoso na ponta da cauda. Mata a coices quem a en-contra. Quando está desencantada, transfor-ma-se em uma linda mulher. O Boitatá é um boi que solta fogo pela boca, tocando fogo nos campos. É espírito de gen-te ruim que vagueia pela terra.Já os índios Kaigangues acreditam que o mundo é governado por Mboi, um deus em forma de serpente e filho de Tupã, o deus supremo. não é possível praticar o verdadeiro Xama-nismo sem incluir os cuidados com a pre-servação da vida de todos os reinos - ani-mal, mineral, vegetal, espiritual - em nosso planeta. Por isso, é comum que os pratican-tes do Xamanismo levem uma vida mais saudável. Costumam cuidar da alimentação (alguns são vegetarianos), do bem estar físi-co, da capacidade de percepção da energia em torno, da tranquilidade e da harmonia entre corpo e espírito. O caminho xamâni-co conduz a um relacionamento de amor com a Mãe Terra.

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Fotografia: David Tynnauerstyling: Soraia Costa

Jaqueta: GucciAcessórios: Bernardo Terra

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Calças (turbante): Levi´s 501Acessórios: Bernardo Terra

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Calça (corpo): H&M Acessórios: Bernardo Terra

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Calça: stylist´s ownAcessórios: Bernardo TerraBolsa: tribo xavantes (página ao lado - R. Zovico acervo)

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Calças: Diesel e H&MAcessórios: Bernardo TerraBolsa: tribo xavantes (página ao lado - R. Zovico acervo)

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Calça: Levi´s 501Acessórios: Bernardo Terra

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Jaqueta: GucciAcessórios: Bernardo Terra

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Calça: A Mulher do PadreAcessórios: Bernardo Terra

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FICHA TÉCNICAFotografia: David Tynnauer e Soraia Costa www.shootthemodel.comStyling: Gerson Martino e Soraia CostaProdução de Moda: Soraia Costa Make-up: Aurélio HilgenbergAcessórios Indígenas: Trabalhos Artesanais Bernardo Terra bernarddoterra.blogspot.comModelos:Isaack Ferreira David TynnauerAlessandro DelarissaFaraoni FontesEduardo ArikawaGerson Martino

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Calça: H&MAcessórios: Bernardo Terra

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ViVa MÉXico

MARCELA HAgA

CRÔNICA / Meus flertes com a América

Latina já são antigos: tudo começou com uma viagem a

Buenos Aires há 3 anos. nas férias se-guintes, o destino foi o Chile (santiago e seus arredores). Depois, o paradeiro foi o México. Por sorte, meu namorado também compartilha dessa simpatia pe-los nossos hermanos e me acompanhou em algumas dessas viagens. É impossí-vel falar de América Latina sem falar do México, pois lá estão todas as caracterís-ticas tão familiares a nós: o calor, o colo-rido, a culinária (muito) bem temperada e também a bagunça.

Chegamos na Ciudad de México em uma sexta-feira chuvosa e pegamos um táxi para o hotel, situado no Paseo de la reforma, ou simplesmente la reforma, como eles dizem. É uma das principais avenidas e, nas palavras do taxista, “uma das avenidas mais belas do mundo “. Os mexicanos se orgulham bastante de sua capital muito grande, antiga e populosa, um tanto caótica. Logo na chegada, fui saudada por um trânsito pesado digno de finais de semana chuvosos. Embora eu more em são Paulo há quatro anos e esteja bastante acostumada a esse tipo de situação, nunca vi nada pareci-do. Em são Paulo, todos ficam parados em grandes avenidas em fila única, indo para algum sentido ou voltando de ou-tro. no México, eles também ficam pa-rados em fila nas grandes avenidas. O problema é que todos querem virar nos cruzamentos, em todos os sentidos pos-síveis. E nada melhor do que uma boa buzina para avisar aquele que está atra-palhando seu caminho... um grande e barulhento ziguezague de carros para todos os lados... Divertido, não? Ainda mais depois de 11 horas de viagem com direito a uma escala no Peru.

Basílica da Virgem de GuadalupeFotografias: Marcela Haga

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Apesar de todo o caos, quando o dia che-ga e a chuva passa, o trânsito melhora. A ci-dade é muito interessante, há muitos bairros a conhecer e muita coisa a se fazer. O centro histórico é bem conservado, principalmente a Plaza de la Constituición, um grande lar-go também chamado El Zócalo. no meio da praça fica o Palácio nacional, sede do gover-no, que abriga um mural enorme de Diego rivera. Existem outros prédios públicos na região que também exibem murais de rivera e de outros artistas mexicanos como Orozco e siqueros. O movimento muralista começou naquela região, no Colegio de san Ildefonso, onde existem muitas dessas obras. O interes-sante do movimento é que ele era feito para o povo. Os artistas pintavam sob encomen-da, em locais de livre acesso à população. As temáticas envolviam a história do povo me-xicano, a conquista dos índios e das civiliza-ções antigas pelos espanhóis, a revolução e seus representantes (Zapata, Pancho villa), os

antigos governos e figuras conhecidas (Frida Kahlo, Trotsky, rockfeller). O tom era de crí-tica, principalmente nos murais de rivera, o mais polêmico dos muralistas. O muralismo não é o tipo de arte que se aprecia em livros, pois as obras são tão grandes e cheias de de-talhes que só mesmo ao vivo para conseguir entender.

E por falar em Frida e rivera, vale a pena conhecer o bairro onde eles moravam, Coyo-acan, assim como o bairro vizinho, san Angel. Antigamente, eram considerados distritos da Cidade do México mas, hoje em dia, já foram incorporados. Pode-se ir a pé de san Angel até Coyoacan, num passeio muito agradável pelo México antigo: as ruas arborizadas e de para-lelepípedos; o caminho com várias igrejinhas, vielas e praças; muitos casarões coloniais de arquitetura espanhola, com portões de fer-ro maciço, grandes janelas, pátios internos e seus jardins. são verdadeiros paraísos, sempre com uma fonte no meio. Foi no bonde a ca-

Mariachis na Plaza Gabaribaldi.“Pepe Legal e El Cabong devem estar por aí.”

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minho da antiga villa de Coyoacan que Frida Kahlo sofreu o acidente em que uma barra de ferro atravessou-lhe o corpo. Foi lá também que morou e morreu Leon Trotsky. As casas foram preservadas e hoje viraram museus. Muitos dos objetos pessoais ainda estão como os respectivos donos os deixaram.

Embora tenha sido interessante conhe-cer as casas-museus de Frida Kahlo e Trotsky, nada me fascinou tanto quanto a Casa de los Azulejos, localizada na alameda central. Tra-ta-se de um palacete do século XvI todo fei-to de azulejos azuis e brancos trazidos de Puebla, uma cidade nos arredores, fa-mosa pela cerâmica. hoje, há um restau-rante na Casa, com mesas no pátio inter-no (agora coberto) e nos cômodos supe-riores. Como o lugar é muito antigo, exis-tem muitas lendas. Diz-se que certa noi-te, dois condes rivais tentaram atravessar a ruela da frente da casa com suas carruagens em sentidos opos-tos. Como o espaço era muito estreito, uma teria que dar passagem à outra. As carrua-gens permaneceram ali por dois dias e duas noites até que os condes pararam de brigar e seguiram viagem, cada qual para o seu lado. É o que o povo diz, mas o fato é que na casa realmente moraram um conde e sua esposa. Tal conde foi assassinado na escadaria da en-trada, ilustrada por um mural do Orozco. Às vezes a realidade é mais assustadora…

uma característica forte da arquitetu-ra local é o uso das cores. Tudo é colorido, desde a estação de metrô, onde cada linha é designada por uma cor, assim como em são Paulo. Porém, ao contrário de sampa, cada

estação das linhas é totalmente pintada com a cor respectiva. As estações da linha rosa são todas pintadas de rosa por dentro. se há uma integração entre duas linhas, nada mais nor-mal do que pintar cada lado da estação com a cor conveniente. As casas são pintadas em tons vibrantes, nada de tons pastéis. Além disso, ainda há o costume de utilizar os azu-lejos decorados. Psicodelia pura!

Em uma região um pouco mais degra-dada, ao norte da alameda central, existe a Plaza Garibaldi, onde ficam os Mariachis.

se Pepe Legal e El Cabong estão em algum lugar do Mé-xico, com certeza deve ser por aqui! As pessoas passam o dia em busca de trabalho e, às vezes, se enfiam no meio do trânsito para tocar. Ao redor, há alguns botecos cheios de malandros e outros com me-lhor aspecto. no dia em que fomos, havia uma festa de aniver-sário em um peque-

no restaurante e os Mariachis faziam uma serenata para um pessoal na praça. É incrível perceber como eles ainda mantêm certas tra-dições vivas.

Talvez, a mais forte de tais tradições seja o Dia de los Muertos, o feriado de Finados. A relação do povo mexicano com os mor-tos é completamente diferente da nossa. Isso acontece graças à influência das antigas culturas indígenas que, ao contrário da bra-sileira, não consideram a morte exatamente como o fim de tudo. nessa data, os mexica-nos acreditam que os mortos saem do além e vêm dar uma voltinha pela terra para visitar os entes queridos que continuam por aqui. Eles fazem verdadeiras festas nos cemité-

Não dá pra falar de América Latina sem falar deles, está tudo lá, todas as características que nos são tão familiares, o ca-

lor, o colorido, a culinária (muito) bem temperada e

também a bagunça.

CrônicaVoilà

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rios, enfeitam os túmulos e levam comidas, caso o defunto esteja com muita fome. Existe grande alegria na celebração. Alguns meses antes de novembro, as lojas já estão cheias de peças decorativas como as Calaveras. As caveiras (Calaveras, em espanhol) são sím-bolos do fascínio dos mexicanos pela morte. são decoradas com pinturas e enfeites. Às vezes, escreve-se até o nome do falecido ne-las, como forma de homenagem. Escreve-se também os nomes dos vivos, para dar sorte. A Calavera mais famosa é a La Catrina, uma caveira sorridente que usa um chapéu florido e trajes de dama antiga, obra do artista José Guadalupe Posada. La Catrina é tão célebre e bem quista pelos locais que aparece até em um mural de rivera chamado “sonho de uma tarde de domingo na Alameda Central”.

O forte catolicismo dos mexicanos é re-sultado da colonização espanhola. A padro-eira do país, a virgem de Guadalupe (nues-tra señora), segundo eles, é a padroeira das Américas. Dizem que esta santa de pele morena certo dia apareceu para um índio e pediu que ele construísse uma igreja. Isso foi levado tão a sério que hoje existem duas Ba-sílicas: a antiga, do século XvIII, e a moder-na, construída no século XX. Fui visitá-las por mera curiosidade, uma vez que não sou mui-to religiosa. O mais interessante foi a frase que ouvi de um casal europeu que conheci durante a visita: “nós não somos religiosos, mas em todos os lugares por onde viajamos sempre tem uma igreja para conhecer”.

A culinária local merece destaque. se-gundo um mexicano que nos guiou, “ En México todo tiene salsa, limón y sal ”. Em bom português, “em todo México há pimen-ta, limão e sal”. E dá-lhe pimenta! É incrível

como a comida mexicana que se come aqui é muito mais suave do que a de lá. Tacos, guacamoles, feijão, tudo tem que ter mui-ta pimenta. nas tortillas, um pouquinho de limão e sal serve para aguçar o paladar. nos restaurantes, serve-se a comida acom-panhada de alguns potinhos de salsas locais que acentuam o sabor dos pratos. há quem diga que é coisa de país muito quente, onde a comida deve ser bem condimentada para abrir o apetite. O fato é que eu nunca havia visto tanta variedade de pimentas durante um passeio ao Mercado Municipal. A fixação é tão grande que, até quando você compra um “sanduba” natural, eles colocam um chilli extra num saquinho à parte, caso faça falta…

no México tudo é assim: intenso. não basta ser temperado, tem que ser muito api-mentado. Para que pintar quadros e deixá-los em museus, se você pode pintar uma parede inteira? Isso é perceptível até no comporta-mento das pessoas: as mulheres são todas muito maquiadas, como nas novelas. Os ho-mens não hesitam em usar camisas floridas e o tradicionalíssimo bigode. Faz sol e calor durante uma boa parte do ano, mas não é abafado o tempo todo, talvez devido à alti-tude. O trânsito é bagunçado, todos querem virar para todos os lados ao mesmo tempo. A herança espanhola é muito presente na arquitetura e nos costumes, mas a tradição indígena também é muito forte. O povo é caloroso e está sempre pronto a ajudar. Mas é preciso cuidado, porque eles adoram empurrar coisas para turistas. Por tudo isso, depois de conhecer a Ciudad de México, pas-sei a compreender melhor o significado do adjetivo “caótico” que quase sempre é usado para descrevê-la.

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Por do Sol em Acapulco.

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aMÉrica latina canta

AZUCENA gEYMONAT

MATÉRIA /

América Latina Canta: Esse foi o nome escolhido, há oito anos, para um espaço radiofônico que servisse como canal para mostrar

a diversidade musical da América. Como é sabido, a designação Latinoamérica deve-se ao fato de seus conquistadores e coloniza-dores terem vindo dos países de idiomas derivados do latim.

Passado uns meses, descobri que Amé-rica Latina Canta era o título de uma série de LP´s (discos grandes de vinil) dedicada a canções folclóricas de diversos países e intérpretes. Após mais um tempo no ar, descobri uma outra coincidência: El Sur también existe, frase da abertura que acom-panha a cortina musical, é o título de um poema do entranhável poeta/escritor uru-guaio Mario Benedetti, e se repete algumas vezes ao longo do mesmo. Começa assim:“Con su ritual de acero (aço), sus grandes chi-meneas (chaminés) / sus sabios clandestinos,

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Mercedes Sosa

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su canto de sirenas, / su cielo de neón, sus ven-tas navideñas, / su culto del dios padre y de las charreteras / con sus llaves del reino, el norte es el que ordena.Pero aquí abajo, cerca de las raíces / es donde la memoria ningún recuerdo omite / y hay quienes se desmueren y hay quienes se desviven / y así entre todos logran lo que era un imposible / que todo el mundo sepa que el sur también existe.

um espanhol/catalão que criou fortes vínculos com uruguai e Argentina, Joan Ma-nuel serrat, escolheu esse e outros poemas de Benedetti para cantar, e produziu um ál-bum que tem precisamente o título El Sur também existe.

O canto é uma privilegiada forma de transmitir mensagens e valores, embora a música em geral possa ter muitos e diversos significados, dentre eles o apelo poderoso do mercado.“Si se calla el cantor calla la vida / porque la vida, la vida misma / es todo un canto...” de Atahualpa Yupanqui, foi cantado

por Mercedes sosa, quem também cantou “canta, canta, canta/pueblos que cantan siem-pre tendrán futuro...” são estes apenas dois exemplos de alguma coisa especial que uma parte da canção latino-americana transmite: “...yo no canto por cantar nomás...”.

O programa América Latina Canta foi se estruturando como um espaço para veicular o canto, mas também a poesia, a literatura, recortes da cultura e, sobretudo, a enorme variedade de ritmos, estilos e manifestações musicais.

O material colhido ao longo de minha vida, e que continuo a colher, constitui um verdadeiro manancial que semanalmente derrama-se nas ondas da rádio uEL FM; manancial alimentado pelos anos vividos em uruguai e pela formação recebida sob certos valores, pelos desejos de conhecer a história e a cultura dos povos do continente; pelos sonhos de liberdade e justiça, pelo período de residência e trabalho no Chile, mais tar-

Mario Benedetti

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de na Argentina e por último Brasil. Enfim, pela própria vocação de professora. A for-mação de minha família, que conta com um marido brasileiro, dois filhos nascidos em Buenos Aires e um londrinense, acaba sendo uma espécie de concretização da integração necessária e possível, símbolo de uma pro-funda convicção de que, para alcançar maior liberdade, justiça e dignidade, é preciso co-nhecer-nos, aproximar-nos, reconhecer-nos como irmãos.

A responsabilidade de produzir, semana após semana, um programa novo significa estar numa constante busca dos cultores da arte, sejam intérpretes, compositores, poetas, escritores, etc. O contato com tudo isso faz a minha vida mais rica, justamente pelo fato de contribuir para que tal material esteja ao alcance de muitos.

um outro elemento que constitui incen-tivo inegável é a constatação da permanente competição em que tudo se transforma em mercadoria - o que importa é o negócio, o lucro, o dinheiro. Estamos submetidos a uma cultura massificante e massificada que não prioriza os mais altos valores humanos, nem reconhece o sentido de comunidade huma-na e pátria.

Ernesto sábato escreveu:”não devemos nos equivocar. A competição é uma guerra não armada que tem como base o indivi-dualismo, que nos afasta dos outros, contra quem combatemos. se tivéssemos um sen-tido mais comunitário, muito diferente seria a nossa história, e também o sentido da vida que gozaríamos”.

É bom reconhecer que existem artistas que não se encaixam nessa categoria. Para tomar apenas dois casos recentes, veja o que Ceumar, excelente cantora mineira, expres-sou numa entrevista: “Às vezes me sinto como uma estranha no ninho, aqui ou em qualquer lugar. A música que eu faço não é produzida para venda, e sim para o enlevo... Tenho algum espaço em veículos de comu-

nicação, mas são raros e cada vez mais ina-cessíveis”.

O outro caso é Lhasa de sela, também “cantautora”, nascida nos Estados unidos mas com fortes raízes no México. um jor-nalista expressou que “Lhasa não estava in-teressada na fama nem no dinheiro. Ela can-tava por imperativo de sua consciência, sem grandes preocupações pelo mercado”. Lhasa, lamentavelmente, faleceu no primeiro dia de 2010, aos 37 anos.

na minha atitude aberta e expectante para o acontecer e o acontecido, neste nos-

so continente, não faltam casos curiosos e estimulantes, que mostram como a arte e a cultura podem estender sutis e fortes fios, como a aranha e sua teia, surpreendentes, profundos e fecundos entre pessoas, comu-nidades, países. Algumas situações vêm ime-diatamente à minha memória, pois foram temas de programas. Duas delas ocorreram em ocasião do FILO.

1. Assistia eu um espetáculo do conheci-do e admirável Odin Theatre (do Teatro An-tropológico), da Dinamarca, por tê-lo conhe-cido em outras oportunidades. Tratava-se de uma espécie de conto de fadas. A certa altura um ator começou a cantar em um claro espa-

O canto é uma privilegia-da forma de transmitir

mensagens e valores, em-bora a música em geral

possa ter muitos e diversos significados,

dentre eles o apelo poderoso do mercado.

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nhol “Yo pregunto a los presentes / si no se han puesto a pensar / que esta tierra es de nosotros / y no del que tenga más...”

A emoção tomou conta de mim: este era um tema do uruguaio Daniel viglietti, “A desalambrar, canção de protesto de tempos efervescentes já idos, viglietti apresenta, há anos, um programa chamado Tímpano, na rádio Expectador, de Montevidéu.

2. O espetáculo era na praça central de Londrina. A obra de títeres (teatro de bo-necos) iniciou-se com uma carrocinha em miniatura, semelhante à carroça que Javier villafañe usava nas suas andanças de titiri-tero pela Argentina e Brasil. Os atores eram de Porto Alegre e haviam conhecido pesso-almente o famoso bonequeiro argentino que fabricava seus títeres, escrevia suas obras e as apresentava. Eles, com quem tive uma con-versa, eram admiradores incondicionais de villafañe.

3. “Era uma casa muito engraçada, não tinha teto não tinha nada...” Muitas crianças conheceram e cantaram esta canção de vi-nicius de Morais. Mas não se conhece como surgiu! vinicius de Morais visitou uma vez seu amigo Páez vilaró, artista uruguaio que havia decidido construir uma casa simples, junto aos pescadores da costa atlântica. A casa era elementar, tendo usado parte das madeiras que o mar devolvia. “Era una casa muy alocada, no tenía techo no tenía nada...” Era esta a versão em espanhol feita pelo pró-prio vinicius. Páez vilaró construiu, mais tar-de, uma enorme casa na parte alta da costa, que chamou Casapueblo (Casapovo). Até hoje é, além de casa, atelier e museu para receber a visita dos viageiros que vão de Punta del Este a Piriápolis.

4. América Latina Canta trouxe incontá-veis vozes de intérpretes, de diversos estilos e épocas, do México à América Central, do Chile à Argentina, como Jorge negrete, M. Aceves Mejía, Chavela vargas, Maná e Lila Downs, do México; silvio rodríguez, Pablo

Milanés, Bola de nieve, Lecuona, Guadalupe urbina, ruben Blades dos países caribenhos; Totó la Momposina, Cecilia Todd, Juanes, In-ti-Illimani, Quillapayun, Zupay, Zitarrosa, Los Olimareños, Yupanqui, Falú, Mercedes sosa, Gieco. sem falar dos brasileiros, pois Brasil também é América Latina.

5. surpreendente é a lista dos brasileiros que gravaram em espanhol e, para citar ape-nas alguns, mencionamos Chico Buarque, Caetano, simone, Elis, Titãs, Maria Bethânia, nara Leão, Toquinho, simone, Marina de la riva...

um intelectual do começo do século XX (1872-1917), uruguaio, cujo pensamento se projetou em todo o continente, escreveu naquele tempo palavras que não perderam o profundo sentido em nossa atualidade. Autor de Ariel, Jo e Enrique rodó expressou:

“Yo creí siempre que en la América nuestra no era posible hablar de muchas patrias, sino de una patria grande y única; yo creí siempre que si es alta la idea de la patria, expresión de todo lo que hay de más hondo em la sensibilidad del hombre - amor a la tierra, poesía del recuerdo, arrobamiento de gloria, esperanzas de inmorta-lidad -, en América, más que en ninguna otra parte, cabe, sin desnaturalizar esa idea, mag-nificarla, dilatarla; depurarla de lo que tiene de estrecho y negativo, y sublimarla por la propia virtud de lo que encierra de afirmativo y fecundo. Cabe levantar sobre la patria nacional, la Patria Americana, y acelerar el día em que los niños de hoy, preguntados cuál es el nombre de su patria, no respondan con el nombre de Brasil, ni con el nombre de Chile, ni de Méjico...porque respon-dan con el nombre de América.

Toda política internacional americana que no se oriente en dirección a esse porvenir y no se ajuste a la preparación de esa armonía, será una política vana y descarriada”.

se fosse este o final de um programa de rádio ouviríamos o Cuarteto Zupay Can-tando: “Somo Latino-América no lo olvidemos nunca más”.

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YeS, Você É UM cUcaracHa!FERNANDO ARAÚJO

CRÔNICA /

na década de 40, em meio à se-gunda Guerra Mundial e a preo-cupação mundial de qual o lado seria vencedor, os Estados uni-

dos iniciaram uma política de “boa vizinhan-ça” para estimular que os países abaixo de sua fronteira encerrassem o flerte que haviam iniciado com a Alemanha nazista. A ferra-menta mais útil, além do dinheiro empresta-do aos milhares, foi ideológica e veio através de Walt Disney, o gênio criador de um uni-verso de fantasia que voltou seus olhos para o que existia após a fronteira com o Texas.

Disney juntou as malas de seus animado-res e desceu por toda a América conhecendo países, coletando informações e criou duas obras de arte. A primeira chamada “Aquarela do Brasil”, onde Zé Carioca apareceu pela pri-meira vez e que trabalha com cores aquarela-das e um formato de metalinguagem radical. O segundo é talvez uma das iniciativas mais modernas da animação e imitada até hoje. “saludos Amigos”, de 1943, acompanha uma viagem do Pato Donald pela América do sul e mescla animação com imagens gravadas. Genial.

Mas o título incomoda. saludos Amigos é coisa de cucaracha, é definição de quem é la-tino-americano, ouve rumba, salsa e meren-

gue, mora em uma república de bananas e grita arriba! Os brasileiros nunca aceitaram a definição grosseira do estilo “south american way” registrado por Disney e encravado no ficcional norte-americano que pasteurizou as diferenças. E Buenos Aires virou capital do Brasil e o rio de Janeiro é a meca festiva de toda a América do sul.

Essa má formação cultural norte-ame-ricana incomodou já que nós não somos iguais aos outros e os exemplos de repúdio estão por toda a parte. O Brasil nunca im-portou nenhum fenômeno cultural “latino” e se a Xuxa e os Paralamas do sucesso foram sucesso na Argentina, não tivemos a contra-parte deles por aqui. nas novelas tudo que veio mexicanizado se transformou em exo-tismo, pois produzimos as melhores novelas do mundo e “Carrosel” ou “Chiquititas” era só bom porque é ruim. Até o samba é mais chique, porque se misturou com jazz e se transformou em bossa nova.

só que mais do que reafirmação de uma cultura, o brasileiro acabou se achando mui-to diferente do restante dos “hermanos”. Tão distante que não se aceita como “latino”, deixando a definição para generalizar quem mora na América do sul e Central e fala espa-nhol. reproduzimos um preconceito gerado de outro preconceito e esquecemos que, sim, estamos no mesmo balaio. Porque, meu que-rido brasileiro criado em são Paulo, quando você chega em nova York, é mais um cucara-cha tentando deixar o “south american way”.

Fernando Araújo é jornalista, brasileiro, detes-ta samba, rumba, salsa e escreveu esse texto ou-vindo Bob Dylan e Johnny Cash.

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Jorna-daS

IgOR RADUY

POE-SIA /

Íamos ao sul, vestidos a caráter, com bombachas e as almas filtradas – íamos calados, valorosos. Com as almas em brasa laboradas íamos, os pés em alpar-

gatas calçados, guarnecidos na alma, íamos ligeiros, como quem vai ao mundo. E no ca-minho, sob o sol meridional veríamos, posta-da sobre o Olimpo e muito tesa, toda uma es-tatuária. Pois há o panteão, sabíamos, e Apolo nos oferecia o mate muito verde, em cuia de prata preparado. Íamos sem pressa e sempre. Como quem navega, íamos com força porém calmos e Apolo, com seus cachos, nos oferecia o flanco mal assado de cordeiro. Éramos pou-cos e no entanto ávidos. Como se um vento oculto nos impulsionasse. Tínhamos cigar-ros, e de quando em quando fumávamos. Quando Apolo, com seus lábios, nos oferecia a carne, aceitávamos. sob a estepe aberta, avançávamos. Era o sul, sabíamos, que nos atiçava. Era o sol do sul que nos iluminava, era a cor do sul que nos preenchia as retinas. sem cavalos íamos, porém audazes. E quando Apolo, com o peito aberto, nos oferecia o laço, rodeávamos as cristas espalmadas das costas, o óleo da carnadura nos lubrificava, os mús-culos das pernas nos erguiam, éramos mato e pastagem. Depois, o rio Grande, imenso, se abriu. Entrávamos. E palmilhávamos a carne das campanhas, o sumo da América, o coração lavrado de um amor antigo. E nos recessos do campo serenávamos. E no torpor das clareiras ao meio-dia caçávamos de um e doutro o cheiro – como se tateássemos. O espelho imóvel das aguadas espelhava o céu. E cada invernada era o espaço vasto onde gi-

rávamos. urgentes íamos, e derramávamos a vista na planura e no horizonte que a planu-ra desenhava. Íamos, afoitos como fletes, e o barro do bebedouros nos guardava o rastro. E a floração do pomos nos anunciava – “é a hora da vida”. Para a vida íamos, olfateando nas rajadas de vento o perfume da erva ma-cerada depois da chuva. Éramos fogo e forja, e sobre matéria rude da alma laborávamos. O rio Grande era o oceano onde singrávamos. Mas quando o corpo abrasado do deus atrás das coxilhas se ocultava, e a escuridão como um traje encobria a campanha, era nas rama-das que, ainda cobertos com o pó da jorna-da, enfim, com o peito repleto de um amor exausto, instantaneamente adormecíamos.

Pequeno glossário de termos sulinos.

Aguada: lugar nos campos em que os ani-mais encontram água para beber.Alpargata: sandália que se prende ao pé por tiras de couro ou de pano.Campanha: região ondulada do extremo sul do Brasil, de vegetação rasteira, em que pre-domina a pecuária.Cuia: recipiente em que se bebe o chimarrão.Flete: cavalo bom e formoso, arreado com luxo e elegância.Invernada: pasto de longa extensão que se destina ao descanso ou engorda de animais de criação.Olfatear: captar um cheiro.Ramada: cobertura feita de ramos que serve como abrigo para pessoas ou para o gado.

Voilà Poesia

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VOE AQUI // DIEGO MORALES

MEDIAINVIA // wwwmediainvia.com

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www.rntw.com.br