revista negócios estrangeiros n.º 18 suplemento · revista n.º 18 suplemento . abril 2011....
TRANSCRIPT
Revista NegóciosEstrangeirosN.º 18 Suplemento
Revista NegóciosEstrangeirosPublicação do Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros
DirectorEmbaixador Carlos Neves Ferreira
(Presidente do Instituto Diplomático)
Director ExecutivoJorge Azevedo Correia
Editor ExecutivoJoão Carlos Silva
Design GráficoRisco – Projectistas e Consultores de Design, S.A.
Pré ‑impressão e ImpressãoEuropress
Tiragem400 exemplares
PeriodicidadeSemestral
Preço de capa5
Anotação/ICS
N.º de Depósito Legal176965/02
ISSN1645 ‑1244
EdiçãoInstituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE)
Rua das Necessidades, n.º 19 – 1350 ‑218 LisboaTel. 351 21 393 20 40 – Fax 351 21 393 20 49 – e ‑mail: [email protected]
NúmeroRevista N.º 18 Suplemento . Abril 2011
Seminário Diplomático3 e 4 de Janeiro de 2011
Suplemento
7 Nota do Director
9 Intervenção do Senhor Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros Luís Amado
31 Intervenção do Dr. António Vitorino
49 A Crise Financeira da Zona Euro – palestra proferida no Ministério dos Negócios Estrangeiros
Vítor Bento
Índice
Os artigos reflectem apenas a opinião dos seus autores. E em nenhumas circunstâncias poderão ser invocados para comentar ou como traduzindo posições oficiais dos responsáveis pela política externa portuguesa.
6
7
Como todos os anos, no princípio de 2011 o Ministério dos Negócios Estrangeiros
organizou o seu Seminário Diplomático.
O presente suplemento ao n.º 18 da Revista Negócios Estrangeiros (NE) regista
duas das intervenções aí proferidas: uma do Senhor Ministro que, como tem feito
todos os anos, nos deu a sua visão do ano que havia decorrido e as orientações
genéricas para a actividade diplomática do ano que tinha entrado; outra do
Dr. António Vitorino, sobre a posição portuguesa face à crise financeira interna‑
cional, com uma atenção especial aos problemas do euro e de Portugal enquanto
membro do eurogrupo.
Aproveitou ‑se esta edição especial para, igualmente, deixar o registo de uma
intervenção do Dr. Vítor Bento numa palestra dirigida aos adidos de embaixada,
em Dezembro, no quadro das actividades de formação deste grupo de funcioná‑
rios, recém entrados no Ministério. O tema foi, ainda, o da crise financeira do final
de 2008, um modelo explicativo e as suas consequências para um país com as
características de Portugal.
O texto do Ministro Luís Amado é a transcrição revista no seu Gabinete da sua
intervenção, que foi feita sem suporte escrito e sofre, por isso, daquilo a que os
especialistas chamam marcas de oralidade. Ganha em expressividade o que perde em
estilo literário. Ele nos perdoará não ter sido possível fazer melhor em matéria de
transformação do seu discurso numa forma escrita mais cuidada.
Já o texto do Dr. António Vitorino, que inicialmente padecia do mesmo pro‑
blema, foi transcrito e depois revisto pelo autor, pelo que o brilho das ideias se
junta ao rigor do estilo e à lógica do argumento. Estou ‑lhe, naturalmente, muito
grato pelo trabalho que quis ter e pela colaboração que quis dar ao Instituto
Diplomático.
O Dr. Vítor Bento, na palestra que fez aos adidos de embaixada utilizou um
extenso e detalhado PowerPoint. Não tendo a aula sido gravada, não foi possível
reconstituir um texto que não existia e ter ‑lhe ‑ía dado um trabalho, porventura
Nota do Director
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 7 ‑8
8 excessivo e que não ousei pedir ‑lhe, refazer a sua intervenção e proceder à ligação
“literária” dos diversos quadros, gráficos e blocos argumentativos nos quais assen‑
tou a sua exposição.
Pareceu ‑me, porém, que a estrutura desta exposição e a sequência utilizada se
explicavam por si próprias e o discurso e argumentos a elas subjacentes ressaltavam
sem a necessidade de um “tecido conjuntivo” textual. Dará mais trabalho a enten‑
der do que uma simples leitura, mas isso é bom porque é pedagógico e exige mais
do leitor.
Ou seja, o Instituto Diplomático entendeu que seria lamentável que não ficas‑
se o registo escrito destas três comunicações. Outras houve no âmbito do
Seminário e nas mais palestras realizadas a benefício dos adidos, merecedoras do
mesmo cuidado, mas não foi possível, quase sempre por indisponibilidade dos
autores, juntá ‑las a estas que agora se editam.
A todos quantos se esforçaram para que este número especial da revista saísse
o meu muito obrigado.
Espera ‑se que a sua leitura contribua para a compreensão do difícil momento
presente e para a tomada de decisões informadas.
Março de 2011
O Presidente do Instituto Diplomático
Carlos Neves Ferreira
(embaixador)
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 7 ‑8
9
Intervenção do Senhor Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros
Luís Amado1
Eu quEria ComEçar, naturalmente, por agradecer na pessoa do Director do Instituto, o meu
querido amigo General Rodrigues Viana, a facilidade que nos dá, mais uma vez. É
com muito gosto que aqui estamos nesta casa e que agradecemos, em nome do
Ministério, a disponibilidade sempre muito aberta do Instituto de Defesa Nacional
para colaborar connosco nestas circunstâncias.
E agradecer também, naturalmente, ao Director do Instituto Diplomático pelo
trabalho de preparação deste seminário; e saudar, na pessoa do Secretário ‑Geral, e
em cada um de vós, a todos os diplomatas e a todos os trabalhadores e quadros téc‑
nicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e desejar a todos um Bom Ano, apesar
das dificuldades e das circunstâncias adversas que temos pela frente.
Como é habitual nestas circunstâncias, e do facto de o Seminário Diplomático
acontecer sempre, no nosso caso, no princípio do ano, é sempre natural que se pro‑
cure, nesta primeira intervenção, fazer um balanço do que foi o ano de 2010 e
perspectivar um pouco do que podemos antever do que será o ano de 2011, o ano
que agora se inicia.
Este seminário é um pouco a abertura do ano diplomático na tradição da nossa
casa. Por isso, é sempre com satisfação que nos encontramos aqui neste início do ano
para partilhar ideias, para nos revermos, e também para reflectirmos em conjunto
sobre os problemas com que nos confrontamos no nosso dia a dia. E, mais do que
nunca, todos temos a noção de que 2011 é um ano de profundos desafios para o
1 Intervenção no dia 3 de Janeiro de 2011, no Instituto de Defesa Nacional, no âmbito do Seminário
Diplomático 2011.
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
10 país, naturalmente, mas também para cada um de nós, com as responsabilidades que
nos cabem e que temos, sobretudo, de responder a problemas que passam muito
pela esfera de acção das nossas competências e das nossas capacidades.
E é por isso, e pela circunstância absolutamente extraordinária do ano que
vamos viver, que gostaria, para lá de, como é habitual, reflectir um pouco sobre o
que foi a experiência de 2010 e sobre as perspectivas para 2011, de partilhar con‑
vosco, com franqueza e com sinceridade, um conjunto de ideias e de reflexões, mas
também de inquietações, que não deixam de nos assaltar num momento em que
temos de iniciar um ano de tamanha adversidade.
Creio que a especificidade das nossas funções e das nossas missões – da minha e
das dos Secretários de Estado, mas também da de cada um de vós – impõe uma res‑
ponsabilidade extraordinária no tempo que estamos a viver, porque as nossas missões
prendem ‑se necessariamente com a relação do nosso país com o exterior, com a comu‑
nicação com a comunidade internacional no seu conjunto, num tempo marcado por
uma crise que varre o mundo, e em particular a Europa, e em que estamos na linha da
frente na percepção dos fenómenos que, marcando o ritmo das transformações que
hoje o Mundo conhece, não deixam de ter um impacto extraordinário na vida dos
cidadãos comuns – que também somos. Assumindo essa condição, não podemos dei‑
xar de manifestar a nossa inquietação em relação aos tempos que vivemos.
Por isso, temos responsabilidades, que não podemos de forma alguma ignorar,
face aos problemas com que o país se confronta. Temos, como ninguém, nem nos
governos, nem nas administrações, a responsabilidade primeira de promover e de
defender a imagem e os interesses do nosso país no exterior. Por isso, num ano em
que todos sentimos que o país está exposto – como poucas vezes esteve – às pressões
e às dinâmicas que se desenvolvem a partir do exterior, e que condicionam o nosso
futuro colectivo, é natural que cada um de nós, no exercício das suas missões, em
diferentes planos, não possa deixar de manifestar a sua inquietação face aos proble‑
mas com que nos confrontamos. Tão pouco podemos deixar de reflectir sobre as
condições em que, no exercício das nossas competências e nas nossas capacidades,
podemos e devemos ajudar a resolver os problemas do país. É essa a especificidade
da nossa missão e, também, da missão diplomática. Ninguém mais, na Administração
Pública, tem essa responsabilidade: representar o país, proteger e defender a imagem
do país, proteger e defender os interesses do país.
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
11E quando o país se confronta com uma dinâmica adversa, resultante, sobretudo,
de fenómenos que ultrapassam a nossa fronteira, é obvio que é na frente da acção
política e diplomática externa que os problemas se concentram e é aí que tem de
encontrar um primeiro nível de resposta.
Mas comecemos por 2010. Não podemos dizer, de forma alguma, que 2010 foi
um ano que nos tenha corrido mal. Foi um ano que, pelo contrário, do ponto de
vista dos objectivos da política externa, nos correu bem.
Atingimos, no essencial, os objectivos ambiciosos que nos propusemos, num
esforço conjunto do Ministério – dos seus técnicos, dos seus quadros, dos seus
diplomatas, dos seus responsáveis políticos – que permitiu que o país reforçasse a
sua imagem no exterior, marcasse a sua presença e a sua influência no plano inter‑
nacional e projectasse as competências da carreira diplomática e dos diplomatas
portugueses. Trabalho que foi, aliás, também reconhecido internamente pela genera‑
lidade dos observadores que acompanham a vida da política portuguesa. E por isso
eu reconheço que o ano de 2010 foi um ano em que, apesar das adversidades que o
país conheceu, apesar dos constrangimentos que não deixaram de se sentir também
na nossa actividade e no dia a dia, conseguimos no essencial responder às priorida‑
des que tínhamos definido como fundamentais.
Recordo que aqui, neste mesmo espaço, há um ano atrás, tínhamos definido
como essenciais cinco acções prioritárias. Uma prendia ‑se com o apoio que consi‑
derámos indispensável à recuperação económica do país, pelo apoio à internaciona‑
lização da actividade económica, antecipando a crise que todos identificávamos e
que passava necessariamente, como ainda passa, pelo reforço da internacionalização
dessa actividade. E creio que, de uma maneira geral, cumprimos alguns dos objecti‑
vos que nos tínhamos proposto nesse domínio.
Definimos como segunda prioridade reforçar o espaço geopolítico da Lusofonia,
no quadro do exercício da Presidência Portuguesa da CPLP2 que concluiu, em Julho
de 2010, com a passagem do testemunho para Angola, que exerce pela primeira vez
a Presidência.
2 Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (N.E.).
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
12 Propusemo ‑nos acompanhar a abertura deste novo ciclo do projecto europeu
que representava a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, ao qual estávamos e esta‑
mos natural e particularmente ligados, e cuja responsabilidade pela sua implemen‑
tação assumimos desde a primeira hora.
Propusemo ‑nos ainda – quarta prioridade – contribuir para a renovação da
agenda transatlântica, tendo em consideração, justamente, que realizaríamos no final
do ano a primeira cimeira de Chefes de Estado e de Governo da NATO que se reali‑
zaria em Portugal – como se realizou, com sucesso reconhecido.
E, por último, tínhamos como prioridade reforçar a nossa acção por forma a
garantir que, numa disputada e difícil competição por um lugar de membro não‑
‑permanente para o biénio 2011 ‑2012, pudéssemos garantir a nossa presença no
Conselho de Segurança, o que veio, de facto, a acontecer.
Em todos estes domínios conseguimos, ao longo de 2010 – e, sublinho, apesar
dos constrangimentos e das dificuldades que fomos sentindo ao longo do ano, por
força também da crise que se reflectiu no dia a dia da actividade do Ministério dos
Negócios Estrangeiros e de cada um de nós – realizar muito dos objectivos que nos
propusemos.
Reforçámos as competências do Ministério no acompanhamento da promoção
da acção externa do nosso país, participámos em inúmeras missões comerciais e
económicas que se desenvolveram por todo o mundo, organizámos cimeiras em
Portugal e fora de Portugal com Marrocos, com a Argélia, com a Tunísia, com o
Brasil, com Moçambique, com Cabo Verde, com a França. Um conjunto de cimeiras
significativas em que a vertente económica esteve sempre presente e em que come‑
çámos talvez com renovada acção a contribuir para a formação de uma agenda eco‑
nómica – absolutamente indispensável para garantir também o desenvolvimento
futuro das Cimeiras –. Pudemos, naturalmente, no quadro do modelo da organização
de promoção e de acção externa que temos e que é limitado nas suas circunstâncias,
creio eu, marcar uma presença significativa.
É certo que todos reconhecemos que este é um modelo eventualmente esgotado,
sobretudo num momento em que se percebe que o País tem de diversificar os seus
mercados, que tem de fazer uma aposta definitiva nos bens transaccionáveis, e tem
de orientar o paradigma da sua economia para um modelo exportador. O que signi‑
fica que terá de seguramente garantir que 50% do seu produto, a prazo, possa ser
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
13resultante de actividade orientada para a exportação, o que pressupõe uma reorgani‑
zação do nosso modelo de promoção e de acção económica no exterior, e uma forte
integração no Ministério dos Negócios Estrangeiros das actividades e das instituições
que têm essa vocação.
É assim que todos os modelos de economias centradas na exportação se afirma‑
ram na economia mundial hoje. E se olharmos e estudarmos os modelos de organi‑
zação da actividade económica externa dos países que têm economias de exportação
na base da sua actividade económica reconhecemos as insuficiências, os limites e os
constrangimentos do nosso modelo de organização da promoção da acção económica
externa.
Por isso, no quadro do modelo que temos, pudemos, do meu ponto de vista,
realizar com relativo sucesso as acções que se nos impunham.
Relativamente ao espaço da Lusofonia, gostaria de registar apenas um ou dois
aspectos importantes do ano que passou e que nem sempre são devidamente valori‑
zados. Passámos o testemunho a Angola na Presidência da CPLP, mas gostaria de
salientar o facto de que a Presidência da CPLP se centrou na promoção do papel
internacional da língua portuguesa. E foi a primeira vez que isso aconteceu na CPLP.
A CPLP tem três pilares – a concertação político ‑diplomática, a cooperação para o
desenvolvimento e a promoção da língua portuguesa –, mas todas as Presidências
anteriores a 2009 ‑2010 se tinham centrado em temáticas ligadas aos dois pilares da
concertação político ‑diplomática ou da cooperação para o desenvolvimento.
Nenhuma Presidência tinha tido no centro da sua agenda a problemática da promo‑
ção, da expansão internacional da língua portuguesa.
Sabemos que esse esforço no mundo em que estamos não depende apenas de
Portugal. É um esforço que tem de ser assumido em conjunto pelos países da
Lusofonia, pelos países da CPLP, e por isso a dimensão multilateral da política de
promoção da internacionalização da língua portuguesa era um elemento chave para
estruturar uma política ambiciosa de promoção da língua portuguesa no século que
agora se iniciou.
Foi muito gratificante verificar que, no fim da Presidência Portuguesa, foi ple‑
namente assumido pelos Estados ‑Membros da CPLP que esse objectivo, de promoção
da língua portuguesa como língua de vocação universal, era assumido por todos em
conjunto.
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
14 A circunstância de a Cimeira de Luanda ter aprovado formalmente o Plano de
Brasília e de ter aprovado o novo estatuto internacional da língua portuguesa reflecte
a atenção que todos os Estados passaram a dar ao valor estratégico da língua oficial
de todos os Estados ‑Membros na projecção dos seus interesses no plano internacio‑
nal, em particular nas organizações internacionais que todos integram.
Em matéria de política da língua, passou despercebida a Conferência de Brasília
(porque, enfim, temos a valorização que temos das questões internacionais na nossa
agenda mediática) mas o que é um facto é que a primeira conferência internacional
sobre a língua portuguesa foi organizada durante a Presidência Portuguesa, em
colaboração com o Brasil, em Brasília. Dessa conferência, saiu um plano de acção
assumido por todos os Estados ‑Membros, o que significa que, pela primeira vez, a
batalha da promoção internacional da língua portuguesa deixou de ser uma bata‑
lha de Portugal e passou a ser uma batalha assumida por todos os Estados ‑Membros
da CPLP.
É por isso que eu gostaria de registar, no balanço de 2010, este facto que passou
despercebido mas que tem, do ponto de vista estratégico, um enorme impacto.
Também por essa razão, durante o ano que passou relançámos as bases para a
implementação do Acordo Ortográfico, orientação que durante muito tempo foi
adiada mas que era absolutamente fundamental para podermos multilateralizar a
política de promoção da língua portuguesa no plano internacional. Também por isso,
no âmbito da política da língua, pudemos, pela primeira vez, integrar o ensino do
português no estrangeiro sob tutela do ICA3, sob tutela do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, aproveitando, também, sinergias fundamentais para a nossa própria
política de promoção da língua portuguesa.
Estes elementos estruturais de política foram assumidos discretamente, é certo,
sem grande impacto, mas são elementos de grande importância do ponto de vista
dos interesses estratégicos do nosso país, sobretudo aqueles relativos à política da
língua.
Em relação à política europeia, tivemos um ano particularmente exigente. Vamos
ter, em 2011, um ano ainda mais exigente.
3 Instituto Camões (N.E.).
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
15Trata ‑se de uma área da acção política que se torna, por força das circunstâncias,
absolutamente central na actividade do nosso Ministério, seja do ponto de vista
inter ‑governamental europeu, seja do ponto de vista intra ‑governamental, a nível
nacional. É um facto que algumas decisões importantes foram tomadas em 2010.
Registo a participação muito activa que tivemos na renovação da Estratégia
2020, que substitui a Estratégia de Lisboa – um processo muito participado em que
os serviços do Ministério, e de todos os departamentos do Governo que directa ou
indirectamente lhes estão associados, participaram –, assim como todo o trabalho de
implementação do Tratado de Lisboa, que esteve na primeira linha das prioridades
do Ministério, da Secretaria de Estado e da Direcção ‑Geral, em particular no que diz
respeito ao Serviço Europeu de Acção Externa e no apoio às candidaturas que indi‑
vidualmente se foram afirmando para diferentes posições nas diferentes Delegações
desse Serviço.
Temos neste momento em curso o apoio a uma vintena de candidaturas a dife‑
rentes lugares em vários serviços e Delegações em diferentes regiões do Mundo.
Mas o trabalho essencial nessa frente – na frente europeia – durante 2010 foi,
naturalmente, o acompanhamento da crise económica e financeira na Europa, em
particular da crise do euro e do impacto que esta teve na nossa própria economia,
bem como da própria relação do país com o projecto europeu, em particular com as
suas responsabilidades no âmbito da Zona Euro.
O Ministério, e os serviços competentes, foram obrigados a um esforço muito
grande nesse domínio. Foram confrontados com realidades que não se podiam ante‑
cipar, de grande densidade e complexidade técnica, designadamente no que se refere
às questões ligadas com a estabilidade do euro e ao processo de readaptação da
União Económica e Monetária a uma nova realidade inesperada com a qual a Europa
e o projecto europeu se confrontaram.
Esse trabalho foi um trabalho de enorme exigência para os serviços competentes
do Ministério e será seguramente em 2011 um dos trabalhos mais exigentes, de
maior responsabilidade e de maior exigência técnica e política, e por isso segura‑
mente uma das prioridades para o próximo ano.
Na frente das relações transatlânticas, tínhamos a responsabilidade de organizar
pela primeira vez uma cimeira a nível de Chefes de Estado e de Governo. Tinha havido
já uma reunião a nível ministerial mas não uma cimeira a nível de Chefes de Estado
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
16 e de Governo – que teve lugar em Lisboa, em Novembro. Foi uma organização difí‑
cil, em todos os aspectos, mas podemos hoje reconhecer que correu bem – é essa a
avaliação que todos os observadores e todos os analistas fazem do que foi o resultado
da Cimeira de Lisboa.
A Cimeira foi considerada uma cimeira histórica, que fica também associada
à capital de Portugal, membro fundador da Aliança. Aprovou um novo conceito
estratégico, encerrou uma fase mais crítica das relações com a Rússia e, por outro
lado, adoptou uma nova estratégia e plano de transição para o Afeganistão – a
situação mais complicada com que a NATO e todos os aliados se confrontam –,
para além de ter aprovado também um programa para um sistema antimíssil com
enorme impacto para a defesa e segurança do continente europeu, ultrapassando
dificuldades estruturais que teriam implicações muito sérias na segurança e na
defesa colectiva da Europa se outra via, que anteriormente esteve em desenvolvi‑
mento, tivesse continuidade. Felizmente a Cimeira interrompeu esse processo e
pôde restabelecer, relativamente a esse programa, um conjunto de referências
absolutamente fundamental para a reestruturação da política de segurança e defesa
da Europa para os próximos anos, com as implicações que esse programa em con‑
creto tem, desde logo, no reequilíbrio dos pilares europeu e transatlântico da
Aliança.
Mas independentemente do sucesso da Cimeira, que vem a benefício de inven‑
tário da nossa diplomacia, importa sublinhar que em todos estes aspectos desta
agenda histórica da Cimeira de Lisboa – conceito estratégico, a perspectiva nova das
relações com a Rússia, a revisão da missão no Afeganistão, e a redefinição de objec‑
tivos e de prioridades em relação a essa missão –, o que é mais gratificante é verifi‑
carmos que muitas das ideias que estão assumidas pela Aliança são também o resul‑
tado de contribuições materiais de Portugal, da diplomacia portuguesa e da política
externa portuguesa.
Não fomos agentes passivos em todo este processo e podemos chegar ao seu fim
com a satisfação de ver que, quer o novo conceito estratégico, quer a nova perspec‑
tiva das relações com a Rússia que afasta definitivamente uma era de confrontação,
que identificava a Rússia como um inimigo estratégico – até ideológico nalgumas
concepções que afloraram na fase final deste período –, são ideias que sempre defen‑
demos ao longo dos últimos anos e que quer na Missão da NATO, quer na UE em
Bruxelas, quer nas principais capitais aliadas, sempre defendemos, de início até em
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
17algumas circunstâncias, de forma isolada. Por isso, é com grande satisfação que tam‑
bém vemos que essa parte da nossa agenda política se projecta hoje em documentos
que fecham um capítulo importante da história da Aliança e que a preparam para os
desafios com que se confronta no século XXI.
E, por isso, quando falávamos de uma prioridade para a renovação da agenda
transatlântica, faziamo ‑lo com a perspectiva de um conjunto de ideias que acabaram
por ter uma consagração efectiva nos principais documentos de orientação que hoje
a Aliança assumiu.
Em segundo lugar, nunca perdemos, felizmente, a referência da importância
fundamental do aprofundamento das relações bilaterais com os Estados Unidos da
América, e fizemo ‑lo quer no âmbito da preparação desta Cimeira, quer no âmbito
dos debates relativamente a temas mais sensíveis da relação bilateral, nas missões
aliadas, designadamente no Afeganistão, correspondendo ao apelo bilateral dos
Estados Unidos, e reforçando a nossa participação, apesar das dificuldades e dos
constrangimentos. Participámos também, como é sabido, no esforço para a resolução
de Guantanamo, um problema de enorme complexidade jurídica, política e estraté‑
gica para o Ocidente e para os Estados Unidos. Por isso, o reforço das relações com
os Estados Unidos foi também um contributo importante que procurámos dar para
a renovação da agenda transatlântica e para o aprofundamento de um vector funda‑
mental da nossa política externa.
Embora por vezes isso não seja devidamente percebido em certos círculos e por
certos actores, não nos podemos dar ao luxo de desprezar toda e qualquer oportu‑
nidade de reforçar a nossa relação bilateral com a potência marítima e com a potência
americana. Tornar ‑nos ‑íamos rapidamente irrelevantes se não fossemos capazes de
aproveitar toda e qualquer oportunidade para, no quadro dos princípios que regem
a nossa política externa, favorecer o aprofundamento dessa relação. Sobretudo quando
sabemos que a Península Ibérica é, cada vez mais, uma unidade geopolítica percebida
como tal nas principais capitais mundiais e que temos, cada vez mais, uma Espanha
tendencialmente atlântica e que valorizará, de forma irrecusável no futuro, uma
relação privilegiada com os Estados Unidos.
Nessa perspectiva não podemos, de forma alguma, como disse, deixar de apro‑
veitar todas as oportunidades para poder aprofundar a nossa relação bilateral com os
Estados Unidos. E foi isso também que, no quadro da nossa política transatlântica,
procurámos ao longo de 2010: vincar bem essa orientação e essa prioridade.
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
18 E, por último, aproveitámos bem o ano – sempre, refiro, apesar dos constrangi‑
mentos e das dificuldades que todos sentimos, no plano político mas também no plano
da acção profissional de cada um de nós ‑ para projectar a influência, a presença e a
acção internacional do nosso país. Foi um esforço muito grande, aquele que promove‑
mos para a campanha para o Conselho de Segurança, e principalmente no último ano
– é sempre nesse último ano que as coisas se decidem, como sabemos, e esse esforço
foi partilhado por todos nós. O Ministro, naturalmente, os Secretários de Estado, o
Embaixador em Nova Iorque em particular, mas todos os Embaixadores nas diferentes
capitais – mesmo muito Embaixadores que estão na disponibilidade –, participaram
nesse esforço e nessa campanha. E o que é um facto é que pudemos, apesar das difi‑
culdades, apesar da perturbação que a imagem do país não deixou de ter (por força
das mensagens muito negativas que marcaram a segunda metade do ano relativamente
à situação actual), apesar de tudo, garantir uma presença no Conselho de Segurança no
próximo biénio e mostrar que Portugal é um país respeitado, que tem credibilidade
do ponto de vista internacional e que isso se deve, sobretudo, ao esforço da política
externa, à densidade da nossa relação com o Mundo, à sua dimensão histórica e cul‑
tural tão profunda, como podemos hoje identificar em tantas regiões do Mundo, e
naturalmente ao trabalho de todos nós. Esse objectivo foi alcançado.
No âmbito dessa campanha, aproveitámos também, como era desejável, para dar
profundidade aos nossos interesses em muitos domínios e aprofundámos relações
bilaterais com muitos países com os quais não contactamos tão sistematicamente, em
razão dos quatro critérios que temos seguido ao longo dos últimos anos para diver‑
sificar as nossas relações bilaterais com os diferentes membros da comunidade inter‑
nacional: os países com quem temos relações históricas e culturais particulares; os
países que têm fortes comunidades portuguesas; as economias emergentes, das quais
vamos cada vez depender mais no futuro; os países fornecedores de gás e petróleo.
Infelizmente, sabemos que durante muitos anos desprezámos quase totalmente uma
relação mais próxima com os países que nos fornecem o gás e o petróleo que con‑
sumimos. E por isso o reequilíbrio dessa relação é instrumental também para res‑
ponder a outros objectivos da acção externa do Estado português.
Nem tudo correu bem, seguramente. Mas em alguns aspectos correu até melhor
do que podíamos esperar, e por isso é com confiança e com serenidade que encara‑
mos o ano que agora se inicia e os desafios com que estamos confrontados. Temos
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
19todos uma grande experiência, temos todos competências e capacidades afirmadas
do ponto de vista internacional e somos respeitados por aquilo que fazemos no
plano internacional, e por isso não temos que ter medo dos desafios com que o
futuro nos confronta. É essa a orientação que não podemos deixar de assumir quando
se inicia um ano muito importante para o futuro do nosso país no plano internacio‑
nal e no plano interno.
Mas temos também que olhar para a realidade com muito pragmatismo, e, por
isso mesmo, enfaticamente e com reforçado realismo, sem deixar de ter em consi‑
deração alguns princípios e algumas ideias de força, pragmáticas, realistas, mas com
um enquadramento conceptual e teórico ajustado à realidade do tempo que estamos
a viver. Se não formos capazes de fazer esse exercício, também o pragmatismo e o
realismo de pouco nos servem.
Primeiro, temos que ter a noção de que a política externa portuguesa está hoje
no centro da vida política nacional. Nem todos pensam assim, nem todos percebem
esta situação, mas o que é um facto é que, como se viu em 2010 e como se irá ver
em 2011, a política externa de um país como Portugal está no centro da vida polí‑
tica nacional. Não é essa a expressão que ela tem no dia a dia da comunicação social
mas é essa a realidade que temos de assumir. Primeiro porque não temos plena
soberania sobre importantes sectores da nossa actividade interna, do domínio eco‑
nómico e do domínio social.
Estamos todos confrontados com um problema económico sério a nível mun‑
dial, europeu e nacional, sobre o qual não temos plena soberania. Os centros de
decisão estão em Bruxelas, nas capitais europeias e cada vez mais estas, por sua vez,
são condicionadas por centros de decisão internacionais, em particular no quadro do
G20, face à dinâmica dos problemas económicos com que o mundo se confronta e
à necessidade de, cada vez mais, o plano da governação económica global se definir
como o plano inspirador e indutor das principais decisões que são tomadas a nível
regional e a nível dos Estados. Por isso, negociação e decisão internacional pressu‑
põem um esforço permanente das nossas missões, que estão na linha da frente.
Em segundo lugar, porque o mundo mudou muito rapidamente – de forma
porventura inesperada até – e criou uma dinâmica de interdependência económica
e financeira absolutamente inesperada há vinte anos atrás, interdependência essa
também política, o que impõe ajustamentos na matriz de relações externas e na
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
20 matriz de inserção geopolítica de todos os países, e em particular de um país como
Portugal, com a malha de relações que tem, não apenas na Europa, mas em todo o
mundo. Como tal, este é um processo de leitura, de observação, de acompanhamento
desta realidade em mudança, que só em primeira mão os diplomatas e o Ministério
dos Negócios Estrangeiros devem e podem fazer. O que implica mais responsabili‑
dade para a política externa.
Por último, porque a crise que estamos a viver – a crise financeira que se reflec‑
tiu na crise que a Europa hoje conhece e cujos desenvolvimentos nos têm surpreen‑
dido em muitos aspectos – revelou fragilidades estruturais do nosso país, em parti‑
cular na nossa economia, como em outras economias europeias. Percebemos hoje
que a crise nacional que vivemos é uma crise completamente diferente daquelas que
vivemos no passado. Não é uma crise nacional, é uma crise que se encaixa numa
crise europeia, que por sua vez se encaixa numa crise financeira, numa crise de rea‑
justamento macroeconómico global e de redistribuição da riqueza à escala global,
que põe em causa e que exerce enorme pressão sobre o modelo económico e social
e os níveis de bem ‑estar europeus e por isso nacionais.
Ninguém tem mais responsabilidade do que nós para perceber a natureza de
dinâmicas tão complexas, tão interactivas entre os planos nacional, regional e inter‑
nacional. Responsabilidades que cabem a cada um de nós, no exercício das nossas
competências, no dia a dia do exercício das nossas funções.
É por isso que eu digo que esta crise, sendo uma crise diferente daquelas que
vivemos no passado, pela sua dimensão e natureza e pela sua complexidade, exige
muito mais da política externa do que qualquer outra crise alguma vez exigiu. É certo
que os problemas têm de ser resolvidos internamente. É certo que as opções da polí‑
tica interna serão determinantes para ultrapassar a crise que vivemos. Mas é absolu‑
tamente indispensável que percebamos, todos, que é na interacção de decisões de
âmbito nacional, de âmbito europeu e de âmbito internacional, que encontraremos
o rumo e a saída para os problemas com que o país está hoje confrontado.
Não nos podemos reduzir a uma perspectiva puramente nacional – é um erro
fazê ‑lo. A responsabilidade que a política externa tem, por isso, no contexto da vida
política nacional, é cada vez maior, do meu ponto de vista.
Isso coloca um outro tipo de problema: a gestão das relações entre as opções da
política interna e a política externa. É um problema que apresenta uma faceta nova
para o dia a dia da nossa acção. Sabemos que numa situação de plena soberania, a
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
21acção externa é induzida pelas opções da política interna. Mas, no quadro da sobe‑
rania partilhada em que vivemos, os compromissos internacionais – neste caso os
compromissos europeus – impõem e condicionam muitas das opções da política
interna. Em particular, nas áreas de soberania partilhada, como são as áreas da polí‑
tica económica e de muitos aspectos da política social.
Esta circunstância é muito determinante no tempo que estamos a viver, porque
aqui já não se trata, pela natureza da crise que vivemos, de transposição de directivas.
Aprendemos a viver com essa indução na política interna das decisões e dos com‑
promissos que decorrem dos tratados, das políticas, dos processos políticos e dos
processos legislativos consequentes que são assimilados e absorvidos pelas institui‑
ções nacionais. Projecta ‑se, por isso, uma relação mais tranquila com este fenómeno
de indução das opções internas pelos factores condicionantes da política externa
europeia.
Ora, o que esta crise, com a inesperada acutilância com que se manifestou no
nosso país, vem revelar, é que a Europa está numa encruzilhada e o processo político
europeu está condicionado pela vertigem das circunstâncias com que a Europa se
confronta e pela necessidade de tomar decisões que nos confrontam com muitos
problemas do ponto de vista, sobretudo, da gestão dos processos de legitimidade e
de representatividade política interna.
Essa realidade vai ser sentida ainda mais no próximo ano. Sentimo ‑la já este
ano – e quem vai ao Parlamento sentiu isso com particular relevância, mas em
2011 – vamos ter de saber viver com esta realidade, porque estes são problemas
que têm que ver com a própria natureza e gestão do processo europeu.
Se estivéssemos num modelo federal, como Maastricht naturalmente induzia,
tudo seria mais fácil porque não estaríamos no domínio da soberania, nem no domí‑
nio da política externa ao confrontarmo ‑nos com estes problemas. Sucede que o
modelo em vigor é um modelo intergovernamental, que o Tratado de Lisboa assu‑
miu, e portanto um modelo de relação soberana entre Estados. Sendo assim, a polí‑
tica externa tem de estar presente.
A política externa está na primeira linha da gestão deste problema. E o que é
mais contraditório é que o Tratado de Lisboa absorveu todo o capítulo da acção
externa no Tratado Constitucional, que foi rejeitado – designadamente pela França,
é bom sempre recordá ‑lo – e ao fazê ‑lo criou uma dinâmica de esbatimento da polí‑
tica externa no âmbito europeu. Basta ter a noção de que os Ministros deixaram de
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
22 ter assento no Conselho Europeu, precisamente porque havia o entendimento, que
correspondia à visão mais federal, de que as questões europeias seriam questões já
não de política externa mas de política interna europeia.
Ora, os problemas que vivemos nos últimos meses de 2010, e que vamos viver
ao longo do ano de 2011, são problemas de grande melindre do ponto de vista
político, de grande melindre do ponto de vista do enquadramento das relações de
soberania num modelo intergovernamental, não federal, e marcado por estas contra‑
dições e por estes dilemas do próprio projecto europeu.
Na primeira linha deste processo, quem pode estar senão nós? A política externa,
o Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, o Director ‑Geral dos Assuntos Europeus,
os serviços competentes para gerir estes processos, que põem problemas políticos
muito sérios, de tipo intergovernamental – e já estamos a ver as tensões que temos
vivido nos últimos meses entre os Governos europeus sobre esta matéria. Ninguém
imaginou ouvir aquilo que alguns de nós já puderam ouvir em alguns Conselhos
Europeus e os Chefes de Estado e de Governo puderam ouvir em particular.
Além disso, põem ‑se problemas intragovernamentais, porque na gestão de todos
estes processos de indução de decisões tomadas pelas instituições europeias sem um
processo político e um processo legislativo adequado à realidade do modelo inter‑
governamental, e portanto de uma soberania partilhada, fomos confrontados em
algumas decisões com opções muito difíceis.
Não apenas Portugal: todos os Estados foram confrontados com essas situações.
Naturalmente, o problema político mais sério que estas situações projectam é o pro‑
blema das relações entre órgãos de soberania, para os quais vamos ter de estar muito
atentos ao longo do próximo ano. Designadamente, tendo presentes medidas que
vão ter de ser tomadas, desde logo no âmbito da política fiscal e orçamental, poderes
e competências reservadas aos Parlamentos nacionais, e que têm de ser devidamente
enquadrados no respeito das fronteiras que o modelo estabelece e que é irrecusável
do ponto de vista da partilha da soberania e da assunção da soberania por parte dos
Parlamentos nacionais.
A gestão desta fronteira entre o poder dos Parlamentos e o poder e as compe‑
tências dos Executivos no confronto com as orientações que, sobretudo em matéria
de governação económica, as instituições europeias projectam com um voluntaris‑
mo incontornável, será sem dúvida um dos problemas mais sérios que vamos ter ao
longo de 2011.
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
23A primeira prioridade para 2011, se me perguntarem, é justamente acompanhar
com muito rigor, com muita atenção política, com muita precisão técnica, o que se
vai passar na primeira metade do primeiro semestre de 2011 na frente europeia.
Temos de dar a estes aspectos absoluta prioridade. Não pelo Tratado de Lisboa e a sua
implementação, pelo Serviço Europeu de Acção Externa, mas sobretudo pela relação
intergovernamental e intra ‑governamental e pela relação entre órgãos de soberania
na aplicação de um programa legislativo muito exigente que as instituições euro‑
peias vão desenvolver durante o primeiro semestre de 2011 em matéria de regulação
económica.
Por isso, a prioridade das prioridades para este ano são as questões europeias. O
país necessita absolutamente de gerir com muita exigência e com muita responsabi‑
lidade a relação com os compromissos que já assumiu na frente europeia – para
além, naturalmente, do acompanhamento do processo relativo à implementação do
Tratado de Lisboa, para além das questões ligadas com a negociação das perspectivas
financeiras, a nova política agrícola comum, a política comercial, a nova política de
coesão, quatro dossiers importantíssimos que estarão na agenda europeia ao longo
do próximo ano e que serão determinantes, também, no estabelecimento de uma
política mais coerente na frente europeia. Temos de dar particular atenção a toda a
agenda relacionada com a governação económica da Europa, pela particular sensibi‑
lidade que esta tem do ponto de vista institucional e político em Portugal, mas tam‑
bém pelas consequências do ponto de vista da nossa política fiscal e orçamental, da
nossa política económica e da nossa situação financeira.
Depois, como segunda prioridade para 2011, vamos ter de dar particular aten‑
ção à agenda internacional, em particular às questões que se reflectem na agenda do
Conselho de Segurança das Nações Unidas.
É uma responsabilidade que assumimos, que temos de saber acompanhar.
Sabemos quais são os problemas principais com que vamos ser confrontados, mas há
muitos que são inesperados – em particular, crises – e surgirão ao longo destes dois
anos. Vamos ser surpreendidos, certamente, por algumas dessas situações, crises e con‑
flitos como as da Costa do Marfim ou do Sudão; em particular a situação no Médio
Oriente, o conflito sobre o programa nuclear iraniano e a situação no Líbano (que é
muito tensa e dramática). Seguramente, situações que vão exigir muito da nossa diplo‑
macia e da nossa acção em diferentes capitais para acompanhar essa agenda.
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
24 A par, naturalmente, do acompanhamento que devemos fazer da situação eco‑
nómica do nosso país, e do apoio à internacionalização da nossa actividade econó‑
mica, no momento em que é absolutamente indispensável garantir o aprofundamento
das relações do nosso Ministério com o Ministério da Economia e com outros
Ministérios e serviços que estão interligados e que têm de trabalhar em conjunto.
No essencial, as preocupações fundamentais que temos do ponto de vista de priori‑
dades para o próximo ano são essas, para além da reforma do Ministério, que se tem
de ajustar à visão que temos da situação internacional.
O enquadramento da nossa acção durante o próximo ano deverá ser dominado
por uma particular atenção e acompanhamento de três questões determinantes
para a nossa agenda em matéria de política externa: a situação económica mundial;
a crise das dívidas soberanas e em particular a crise da Zona Euro; e as tensões
geopolíticas que vamos ter pela frente e com que vamos lidar durante os próximos
anos.
São estas as questões que enquadrarão as nossas acções e que não podem deixar
de estar presentes na definição das nossas opções quando estabelecemos as nossas
prioridades, seja em relação às questões da frente europeia, seja em relação às ques‑
tões da frente internacional ou dos apoios que temos de garantir à internacionaliza‑
ção da nossa actividade económica.
A situação económica mundial é determinante para a forma como podemos
superar a crise da Zona Euro, mas também temos todos a noção de que o colapso do
euro teria um enorme impacto na estabilidade internacional e agudizaria os proble‑
mas da economia internacional. Sabemos que algumas das tensões geopolíticas
podem ter um impacto dramático na recuperação da economia mundial e no desen‑
volvimento de toda a problemática da crise das dívidas soberanas.
São, por isso, três questões que estão ligadas e cuja abordagem deve permitir
uma leitura atenta de toda a dinâmica que estabelecem e projectam também no dia
a dia da nossa política externa.
A situação económica internacional é preocupante porque o crescimento ainda
é fraco, desequilibrado e lento. Tivemos um crescimento negativo, pela primeira vez
depois da Segunda Guerra Mundial, a nível da economia global em 2009: aquilo que
se convenciona já hoje chamar a grande recessão – não a grande depressão – de
2009. Sabemos que esse crescimento é desequilibrado: um crescimento hesitante na
economia americana, um crescimento muito fraco na Zona Euro e um crescimento
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
25mais forte nas economias emergentes. O crescimento da economia europeia no pró‑
ximo ano deverá ser quatro vezes inferior ao crescimento nos países de economia
menos desenvolvida.
Alguns considerarão este desequilíbrio virtuoso porque representa, no fundo, o
reequilíbrio macroeconómico a nível global e um processo de redistribuição da
riqueza entre as diferentes regiões económicas do mundo. E assim é: a realidade
multipolar da geopolítica em transformação é um pouco o resultado do reajusta‑
mento macroeconómico em curso. Outros verão nele o declínio do Ocidente e da
hegemonia da economia ocidental, o que também é aceitável como leitura desta
nova realidade.
O importante é que, apesar de tudo, este processo seja feito sem que os funda‑
mentos da estabilidade económica e social da Europa e do Ocidente sejam definiti‑
vamente postos em causa. Os níveis do desemprego, o baixo crescimento económico
na Europa e o problema das dívidas soberanas, não deixam de lançar inquietantes
preocupações sobre as condições de estabilidade política no Ocidente se, de facto, a
dinâmica do desemprego e do fraco crescimento económico gerar mais instabilidade
social e, por isso, também mais instabilidade política, com consequências imprevisí‑
veis para a estabilidade do próprio sistema internacional.
Por isso, o programa que, desde a Cimeira de Pittsburgh – a primeira cimeira
que reuniu os países mais desenvolvidos e os países em desenvolvimento –, foi apro‑
vado é, no fundo, um programa que tem estado a ser aplicado. É um programa
complexo e lento, mas que, no seu essencial, responde aos principais problemas e
visa, no fundo, reequilibrar dois exercícios diferentes.
Um exercício a nível interno, a nível dos Estados, substituindo o extraordinário
esforço de investimento público e de despesa pública para suprir o bloqueamento
abrupto do investimento e do consumo privados num determinado momento, a
partir de 2008. Esse reequilíbrio entre fazer liderar mais o crescimento pelo investi‑
mento e pelo consumo privado é um exercício que se tem revelado difícil de enqua‑
drar, consoante as diferentes situações de cada economia e de cada país.
Depois, também um exercício de reequilíbrio externo, em que os países que
mais consumiam e que mais poupavam têm de gerir de forma diferente as suas pers‑
pectivas de desenvolvimento económico. Por isso, as receitas que estão a ser aplicadas
têm efeito, naturalmente, no programa europeu e têm consequências na nossa pró‑
pria gestão macroeconómica.
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
26 Continua a preocupação de reabilitar e reformar os sectores financeiros que
foram mais atingidos pela crise. Sugerem ‑se políticas monetárias dos bancos centrais
mais laxistas em relação às situações em que o consumo privado é fraco e medidas
de consolidação fiscal muito exigentes em relação aos países que têm desequilíbrios
macroeconómicos e problemas de endividamento a médio e longo prazo, susceptí‑
veis de gerar desequilíbrios difíceis de gerir. Ao mesmo tempo, propõe ‑se que os
países que têm excedentes apliquem uma parte do excedente no investimento interno
e no estímulo à procura interna.
São estes quatro níveis de intervenção e de orientações que o G20, assumido
pelo programa de estabilização financeira e económica na Europa, tem estado a pro‑
jectar. É um processo lento e difícil de gerir, e, como temos percebido, em particular
na Zona Euro, outro tipo de dinâmicas e outro tipo de problemas têm imposto a sua
lei e têm perturbado uma gestão tranquila deste programa a nível mundial.
Por isso muitas tensões têm vindo a ser geradas justamente em torno da gestão
deste programa: tensões na área da relação do valor entre as moedas, desvalorizações
competitivas, tensões proteccionistas aqui e ali. Não é fácil gerir este processo, mas
não há outra via que não seja a de o continuar a acompanhar, em conjunto com as
principais instâncias internacionais e os principais actores económicos globais, e em
função, também, de um programa ambicioso que o G20 continua a desenvolver
apesar das suas limitações políticas e institucionais.
É com esse programa que temos de viver também no processo de estabilização
da Zona Euro, que tem incidência particular em Portugal. Alertámos, aquando do
Seminário do ano passado, para o problema da dívida soberana, precisamente por
termos a noção de que evitámos uma grande depressão depois da recessão de 2009,
com um forte e massivo investimento público financiado por dívida pública. Por
isso, resolvemos um problema mas criámos outros. Foi, aliás, isso que tive a ocasião
de vos exprimir aqui enquanto inquietação relativamente ao futuro também no
nosso país, uma vez que esta foi uma das situações que o país teve de gerir.
Se tivermos presente que, em Junho de 2009, a Alemanha tinha tomado, uni‑
lateralmente, uma decisão fundamental no domínio da gestão do seu défice e da
perspectiva a médio e a longo prazo da sua dívida pública – que passou desperce‑
bida em todas as capitais –, percebemos as implicações que a gestão do défice e da
dívida pública tem hoje na frente europeia. A Alemanha, como sabem, decidiu
introduzir na Constituição um limite ao défice e ao endividamento, com um
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
27Governo de grande coligação e com o apoio do Partido Liberal e do Partido dos
Verdes. Foi de facto uma opção do país, e ao fazê ‑lo condicionou os mercados e a
expectativa dos mercados, alertou para o problema a prazo da dívida e, sobretudo,
estabeleceu a obrigação do Tesouro alemão como a referência de refúgio relativa‑
mente ao risco dos investimentos e das aplicações financeiras a nível mundial e a
nível europeu. Se repararem – é um exercício interessante que eu tive o cuidado
de fazer –, o que eram linhas paralelas nos spreads da dívida pública de todos os
países da Zona Euro (linhas paralelas, pequenas divergências), a partir de Setembro
de 2009, passaram a ser um processo de divergência. Na base, mesmo caindo,
temos o spread da dívida pública alemã, e depois, daí para cima, temos o arco das
linhas das diferentes dívidas soberanas. Por isso, a questão da dívida soberana
grega não foi de forma alguma inesperada, porque foi de alguma forma induzida
por este movimento.
Toda a perturbação da Zona Euro é, em grande parte, o resultado de uma opção
clara, assumida pela Alemanha, em relação à problemática da dívida soberana e da
sua gestão como condicionante da estabilidade do euro, um dos princípios funda‑
mentais do compromisso da fundação do euro e do abandono do marco alemão. Por
isso o problema da dívida soberana passou a ser um problema europeu, um problema
do euro e o problema mais sério com que nos confrontámos ao longo do último ano
e com que nos iremos confrontar em 2011.
Participámos activamente nesse processo, como sabem. Através dos serviços
competentes, acompanhámos todo o debate que conduziu ao bailout da dívida grega
e mais tarde da dívida da Irlanda, à criação da facilidade de estabilização financeira
provisória até 2013 e participámos activamente no debate sobre a criação de um
mecanismo financeiro europeu, cujo programa legislativo será discutido, aprovado e
aplicado ao longo de 2011.
Temos que ter a noção de que este é o problema central da sustentabilidade da
Zona Euro e do desenvolvimento do projecto europeu. Por isso, ele não pode deixar
de condicionar um país que tem a dívida soberana que Portugal tem, como outros
países da periferia europeia. Como tal, temos de saber, ao longo do próximo tempo,
gerir estas tensões resultantes de uma situação muito crítica com que o projecto
europeu hoje vive. Tensões entre o centro e a periferia, que todos temos vivido, mas
tensões também no centro relativamente à linha a seguir e à via a adoptar para resol‑
ver os problemas da estabilidade da Zona Euro.
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
28 Do meu ponto de vista, os problemas no centro são muito mais sérios do que
os problemas da relação entre o centro e a periferia, e é para esses que devemos
orientar a nossa atenção durante o próximo ano. É preciso perceber, e se possível
antecipar, o que podem ser os desenvolvimentos imediatos, já a partir deste ano, do
projecto europeu face a esta tensão em torno das políticas que, relativamente ao
euro, se definem no centro do processo europeu.
Temos, por isso, de dar uma grande prioridade a esse processo e acompanhar
com particular atenção estas tensões da geopolítica europeia, que não podem escon‑
der as outras tensões geopolíticas com as quais vamos ter de lidar durante 2011, em
particular as crises e os conflitos mais sérios – o mais grave dos quais será segura‑
mente, do meu ponto de vista, a situação no Médio Oriente e a situação relativamente
ao programa nuclear iraniano.
Se não formos capazes de gerir de forma equilibrada estes conflitos, teremos
seguramente, então, uma situação internacional absolutamente dramática, porque o
esforço de recuperação da economia mundial, que é hoje lento, desequilibrado e
fraco, será definitivamente posto em causa e o problema dos Estados que têm dese‑
quilíbrios macroeconómicos tão significativos, como é o nosso caso, serão segura‑
mente muito afectados por essa situação. Por isso, toda a frente de gestão e de acom‑
panhamento dos conflitos – até pela responsabilidade que temos de lidar com eles,
no dia a dia, no Conselho de Segurança, porque muitos deles vão ser chamados à
agenda desse Conselho – será, sem dúvida, uma das exigências fundamentais com
que iremos ser confrontados.
Para não ser mais exaustivo – já vos macei demais na manhã de hoje –, termi‑
naria chamando a atenção para a necessidade que temos de fazer alguns ajustamen‑
tos de reforma no Ministério face a este conjunto de exigências com que estamos
confrontados, não apenas pela pressão das circunstâncias do país mas também pelas
mudanças que estão a acontecer no ambiente internacional e europeu. Por isso,
alguns aspectos importantes da reforma vão ser prioridade importante para a acção
do Ministério nos próximos meses, designadamente os Estatutos, a revisão da rede
diplomática e tudo o que tem que ver com a gestão e a administração do próprio
Ministério.
É nesta perspectiva de organizar a resposta necessária para um período absolu‑
tamente extraordinário como aquele que estamos a viver, e sobretudo para desafios
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
29tão exigentes como aqueles que temos pela frente, que eu vos convoco a todos e a
cada um de vós para nos continuarem a acompanhar neste esforço que muito tem
dignificado o país, a carreira diplomática e a actividade do Ministério dos Negócios
Estrangeiros ao longo dos próximos anos, procurando cada um de nós, mais do que
lamentar as dificuldades e os problemas que temos pela frente, saber como reagir e
como colocar as nossas energias e as nossas competências e capacidades ao serviço
do país, sabendo, como nós sabemos, que estamos na linha da frente do combate aos
problemas com que temos de lidar nos próximos meses.
Agradeço a todos a atenção com que me ouviram e desejo ‑vos uma vez mais
renovados votos de Bom Ano, para todos e para as vossas famílias, seja no plano
pessoal seja no profissional.
Muito obrigado a todos.NE
Inte
rven
ção
do S
enho
r M
inis
tro
de E
stad
o e
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 9 ‑29
30
31
Intervenção do Dr. António Vitorino1
quEria ComEçar por agradecer ao Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros o convite e
pedir desculpa por não trazer nenhum PowerPoint. O que significa naturalmente
que, como orador, não passaria no critério da inovação enunciado na intervenção
precedente do Dr. Carlos Costa2 – confesso que em regra me dou mal com a técnica
dos PowerPoint –, mas em compensação talvez não seja pior, nestes tempos incertos
que correm, não deixar muitas coisas escritas...
A resposta europeia à crise financeira assenta num certo paradoxo, porque a
percepção que a opinião pública tem dessa resposta é a de que ela tem sido errática
e, em muitas circunstâncias, tardia. E, contudo, do ponto de vista da substância da
resposta, parece ‑me incontornável reconhecer que nos últimos dois anos houve uma
evolução relevantíssima da orientação política e da produção legislativa da União
Europeia nos domínios económico e financeiro, sobretudo no que diz respeito à
regulação do funcionamento dos mercados financeiros e do sistema bancário.
Há quatro ou cinco anos atrás, falar em Bruxelas de legislação em matéria
financeira – quando o alfa e o ómega na matéria era o chamado “processo
Lamfalussy”, baseado na mera coordenação de indicadores e numa confiança quase
cega na auto ‑regulação dos mercados e das instituições financeiras (a chamada soft
law) – era considerado uma heresia, um estado de espírito profundamente contras‑
tante com aquilo que foi possível obter de facto em matéria de legislação (hard law)
nestes últimos dois anos, alguma dessa legislação, aliás, tendo entrado em vigor
hoje mesmo.
1 Instituto de Defesa Nacional, 3 de Janeiro, no âmbito do Seminário Diplomático 2011 (3 e 4 de Janeiro de
2011). Transcrição de uma intervenção oral sem apoio escrito, revista pelo autor.2 A intervenção do Dr. António Vitorino seguiu ‑se à do Governador do Banco de Portugal, Dr. Carlos Costa.
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
32 Basta a este propósito recordar as novas regras e organismos criados sobre os
denominados riscos sistémicos no sistema financeiro, os novos quadros de regulação
e de supervisão das instituições bancárias de dimensão europeia, as regras destinadas
a regular o funcionamento das agências de rating, a directiva sobre os chamados pro‑
dutos derivados bem como as regras sobre os hedge funds. Estes são, sem dúvida alguma,
exemplos de um novo quadro de governance económica europeia que seriam comple‑
tamente impensáveis há apenas três ou quatro anos atrás.
E contudo, fica ‑nos na boca este sabor amargo de que a resposta é insuficiente,
errática e tardia. Porque será que se tem esta impressão aparentemente contrariada
pelos factos? Basicamente creio que tal sensação se fica a dever ao facto de a resposta
europeia ser essencialmente reactiva (isto é, segue os acontecimentos sem que se
sinta uma capacidade efectiva de antecipação dos problemas) e porque é de facto
lenta – sim, é verdade – é lenta no sentido em que a complexidade do aparelho ins‑
titucional da União Europeia faz mediar um longo período de tempo entre o diag‑
nóstico das necessidades, as medidas em torno das quais se constrói um consenso e
a sua efectiva aplicação prática…
Se compararmos o grau de resposta europeu com o grau de resposta americano,
mesmo levando em conta todas as várias complexidades que o sistema político ame‑
ricano encerra (sobretudo agora, depois da última eleição para o Congresso e para o
Senado e das orientações contraditórias em muitos pontos entre a nova maioria
republicana na Câmara dos Representantes e a Administração Obama), é verdade que
a resposta europeia tem sido mais lenta e parcial, o que muitas vezes tem levado
alguns dos países membros da União a agirem unilateralmente em certos domínios
(como foi o caso da decisão tomada pela Alemanha de proibição do chamado short
selling), o que leva a perder o sentido de conjunto da resposta europeia e consequen‑
temente provoca a descredibilização da capacidade de a Europa, no seu conjunto,
encontrar em tempo útil uma resposta efectiva aos desafios da crise global com que
nos confrontamos.
Acresce como vulnerabilidade adicional que aqui e além prevalece na adopção das
soluções europeias uma lógica de acordo segundo o menor denominador comum, o
que também não é uma questão de somenos importância quando se trata de analisar
(e testar) a vontade política europeia perante as pressões dos mercados. Por exemplo,
na regulação dos hedge funds é forçoso reconhecer que o lobby da City londrina e a estra‑
tégia negocial do governo conservador britânico lograram desarticular algumas das
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
33propostas iniciais da Comissão que se afiguravam mais consistentes com o peso e a
relevância que os hedge funds têm no funcionamento da economia europeia.
Mas porque é que se considera que esta resposta europeia tem sido errática? Em
certa medida esta natureza errática decorre do facto de nem sempre ser facilmente
perceptível, quer na opinião pública quer na própria avaliação dos mercados, em que
medida é que se procura uma resposta europeia a dezasseis (talvez hoje devesse dizer
a dezassete, uma vez que a Estónia acabou de entrar na Zona Euro no passado dia 1
de Janeiro), ou seja, uma resposta articulada dos países da moeda comum, e em que
medida é que a resposta europeia repousa sobre a responsabilidade colectiva dos
vinte e sete Estados ‑Membros da União. Esta hesitação quanto ao universo envolvido
só pode lançar perplexidade sobre a solidez da solidariedade europeia neste momento
tão delicado da vida económica global.
Qual é verdadeiramente o critério que permite identificar o que é da responsa‑
bilidade dos dezassete países da moeda comum e o que é da responsabilidade dos
vinte e sete países da União? Desta hesitação não consigo encontrar um exemplo
mais paradigmático do que o processo decisório que envolveu o denominado bail out
da Grécia. Para além da ambiguidade durante longo tempo assumida pela Alemanha,
que teve efeitos perniciosos no agravamento da situação grega, foi muito sintomático
que os países que não estão no Euro se tenham excluído do esforço de comparti‑
cipação do fundo de estabilização financeira então criado para esse efeito, com
excepção da Polónia (para já não falar da resistência oferecida pela Eslováquia a
assumir a sua quota ‑parte nesse esforço conjunto); por contraste, quando foi neces‑
sário fazer o bail out da Irlanda, alguns países que estão fora da zona Euro, e que por
isso não participaram, como disse, no apoio à Grécia, a começar pelo Reino Unido
e pela Suécia, acabaram por contribuir para o financiamento do bail out irlandês atra‑
vés de acordos bilaterais paralelos à intervenção conjunta do Fundo de Estabilização
Europeu e do Fundo Monetário Internacional. Naturalmente que a ninguém escapou
este pequeno detalhe: a exposição dos bancos britânicos em relação à Irlanda era
“apenas” de 150 mil milhões de euros, pormenor que decerto terá contribuído para
a decisão britânica marcada assim por tão súbita generosidade.
Vistas as coisas na perspectiva dos mercados, o teste à solidariedade europeia
não pode ser mais catastrófico, no sentido de que a capacidade de se encontrar uma
frente comum de resposta é ambígua e, sobretudo, suscita a dúvida de se saber se
essa resposta vai ser levada às suas últimas consequências.
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
34 O que é que isto interessa para nós? Interessa nesta precisa medida em que
(e desculpem se neste ponto vou parecer ser um bocadinho brutal) à luz do que se
passou com os casos grego e irlandês, a grande dúvida que se coloca é saber o que
vai suceder com a situação em que se encontra Portugal, enquanto “caso de fronteira”.
Ou seja, trata ‑se de saber se a nossa exposição aos mercados financeiros globais ainda
vai ser incluída na “técnica do salame”, que presidiu aos casos grego e irlandês (um
a seguir ao outro sem lograr conter o efeito de contágio continuado), ou se já é
tratado à luz de uma nova resposta mais global e compreensiva, resposta essa que me
parece incontornável e absolutamente necessária, e quanto mais cedo essa resposta
envolvente for encontrada melhor será para todos.
Esta dúvida é uma dúvida muito importante para nós, portugueses, pois é uma
dúvida eminentemente política antes de ser uma mera questão técnica e econó‑
mica, e é uma dúvida que vai obviamente obrigar a uma clarificação a muito curto
prazo da vontade dos Estados ‑Membros quanto à sustentabilidade da moeda única
europeia.
Na minha opinião pessoal, neste quadro de transição que estamos a viver, o
nosso interesse nacional é sermos associados à Espanha no sentido de propiciar uma
nova visão da União Europeia quanto aos impactos da crise da dívida soberana e
quanto aos instrumentos e mecanismos disponíveis para lhe responder. Sei que fazer
esta associação com a Espanha, neste local3, faz tremer as paredes do Instituto que
nos acolhe, mas a vida tem destas ironias e dizê ‑lo é ainda, e acima de tudo, defender
o que melhor serve o que reputo ser o nosso interesse nacional. E não é, aliás, iné‑
dito que no contexto europeu, em várias circunstâncias, o nosso interesse nacional
corresponda a estarmos associados à Espanha. Isto por uma razão relativamente sim‑
ples: é que o grupo das três economias periféricas que estão sob pressão dos merca‑
dos financeiros (a Grécia, a Irlanda e, também, Portugal) representa conjuntamente
6% da economia da Zona Euro.
Quando consideramos o caso da Espanha, aí já estamos a falar de um país que,
por si só, representa 12% da economia da Zona Euro, o que significa que com a
inclusão da Espanha no radar de uma solução há uma mudança de escala, e esta
3 Esta intervenção foi realizada no Instituto de Defesa Nacional, que havia cedido as suas instalações para o
Seminário Diplomático 2011 (N.E.).
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
35mudança de escala exige uma mudança de estratégia, porque a lógica do one by one
para conter o risco do contágio já provou ser ineficiente e insustentável a prazo, em
função do interesse superior da sustentabilidade e da credibilidade da moeda única
europeia.
Voltarei mais à frente a falar do que poderá ser uma tal resposta alternativa à
“lógica do salame”, que manifestamente não tem produzido os resultados desejados.
Claro está que, para nós, sermos associados à Espanha na análise da sustentabi‑
lidade da nossa posição, nesta conjuntura conturbada, não é de somenos importân‑
cia. É preciso reconhecer que um eventual bail out português (e isto para os politica‑
mente correctos, chamo a atenção para que reparem bem que disse “eventual”, de
modo a que amanhã não se diga que afirmei que iria mesmo haver um resgate em
relação a Portugal!) é do maior interesse para os bancos espanhóis, que estão parti‑
cularmente expostos à dívida portuguesa. Portanto, esse link entre o que é a dívida
pública portuguesa (pública e privada) e a sustentabilidade do sistema financeiro
espanhol tem, consequentemente, repercussões na sustentabilidade do próprio rating
da Espanha – não propriamente da “República Espanhola” como ouço de vez em
quando dizer na comunicação social portuguesa, mas do Reino de Espanha, já que
parece que para alguns jornalistas existe a impossibilidade de conceberem que uma
monarquia também possa estar sujeita a um rating...
O rating do Reino de Espanha, que também resulta da exposição do sistema ban‑
cário espanhol a Portugal, aconselha a que, na perspectiva do interesse europeu, e já
não na perspectiva apenas do interesse português, as duas economias ibéricas sejam
consideradas em conjunto.
Porque este é o problema central: como é que a resposta europeia é susceptível
de suster o efeito de contágio, que não se deterá por qualquer efeito mágico ali para
os lados do Caia, mas que, ao atingir a Espanha, passará a englobar quase 20% da
economia da Zona Euro, passando a ter uma outra dimensão e um outro peso, sem
comparação com a situação antecedente.
É verdade que, como, aliás, sublinhou há pouco o Dr. Carlos Costa, também a
Itália e a Bélgica têm uma particular exposição aos mercados financeiros externos.
Até certo ponto, as necessidades de financiamento externo apresentam características
diferentes das de outros países, já que as respectivas dívidas públicas são muito supe‑
riores à portuguesa (superior mesmo ao dobro do limite do Pacto de Estabilidade e
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
36 Crescimento que é de 60% do PIB de cada país), mas têm sobretudo a característica
de serem dívidas públicas internas, que assim beneficiam da elevada propensão à
poupança dos respectivos povos. Mas a dimensão dessas dívidas não os isola do efeito
de contágio que decorre da corrente crise da dívida soberana, na medida em que a
pressão em curso afecta a Zona Euro no seu conjunto.
Mas também não é menos verdade que o decréscimo da competitividade da
economia italiana é dos mais acentuados no conjunto europeu e, portanto, o proble‑
ma – não apenas macro ‑financeiro, mas o problema económico de fundo – com que
a Itália está confrontada não é substancialmente diferente do problema económico
de fundo da Espanha ou do problema económico de fundo de Portugal, que é um
problema de produtividade, de competitividade e de crescimento dos custos unitá‑
rios do trabalho em relação aos custos da Alemanha que são tomados como referên‑
cia nesta matéria pelos mercados financeiros.
Aqui não irei exactamente até onde foi, na intervenção precedente, o Dr. Carlos
Costa, ao comparar o crescimento dos custos unitários de trabalho em Portugal com
os custos unitários de trabalho na Alemanha nos últimos dez a quinze anos.
Deixem ‑me ser claro, não me atrevo sequer a discordar da evidência apresentada
pelo Dr. Carlos Costa de que essa diferença seja assim tão significativa como por
vezes se vê escrito.
Mas o meu ponto é um ponto ligeiramente ao lado do argumento técnico ou da
evidência estatística, é um ponto essencialmente político: é que os mercados consi‑
deram que o crescimento dos custos unitários de trabalho em Portugal constitui um
factor de vulnerabilidade da nossa situação económica, e consequentemente uma
vulnerabilidade da competitividade da nossa economia. Na realidade, a diferença
assinalada pelos analistas não se fica a dever a que esses custos tenham crescido exa‑
geradamente entre nós (há vários anos que praticamos uma política de moderação
salarial) mas, sobretudo, ao facto de as reformas adoptadas na Alemanha, nos cha‑
mados quatro pacotes Hartz, terem gerado uma contenção dos custos unitários do
trabalho na Alemanha nos últimos dez anos, o que potenciou a competitividade das
empresas germânicas e, consequentemente, ampliou o gap face aos custos unitários
em Espanha e em Portugal por referência ao benchmark alemão, com a consequente
perda de competitividade comparativa.
Retomando a questão central: a do contágio da crise soberana e a necessidade
de encontrar uma resposta europeia que salvaguarde a sustentabilidade do euro.
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
37Neste ponto fundamental, das duas uma: ou somos credíveis no sentido de dizer que
o que está aqui em causa é a sustentabilidade da moeda única europeia e portanto o
contágio tem que ser imediatamente sustido em nome do interesse europeu comum;
ou, então, cada um actua por si para defender o seu interesse nacional e daí só pode
resultar não apenas o agravamento da pressão sobre a moeda única mas também uma
crise do próprio sentido político último do processo de integração europeia.
Todos aqueles que de entre vós ainda lêem o Astérix, sabem que os gauleses, isto
é, os franceses de antanho só têm medo de uma coisa: que o céu lhes caia em cima
da cabeça. É preciso explicar que os alemães, por seu turno, também só têm medo
de uma coisa: é que os franceses lhes caiam em cima da cabeça!
Qual é, então, a resposta alternativa a esta lógica do cair um a um como resul‑
tado da ausência de um antídoto eficaz ao continuado efeito de contágio?
Os federalistas europeus respondem facilmente a esta questão, dizendo que não
pode haver uma união monetária sem união política, incluindo uma união fiscal.
Logo a resposta consiste em avançar no sentido da união política europeia!
Pelo meu lado tenho o maior respeito pelos federalistas, embora o meu euro‑
peísmo (do qual espero que não duvidem) não assente, propriamente, nesse tipo de
visão. Mas não posso deixar de assinalar que neste ponto se verifica uma curiosa
convergência entre a argumentação dos federalistas e dos eurocépticos... Ambos pro‑
clamam que não há união monetária viável sem união politica, incluindo uma união
fiscal.
Os eurocépticos dizem ‑no, claro está, porque deste modo prenunciam a morte
do euro e os federalistas, pelo contrário, dizem ‑no porque querem salvar o euro e
aprofundar a construção europeia.
Mas, independentemente do ponto de vista que se perfilhe, há duas coisas de
que podemos estar certos no curto prazo.
Em primeiro lugar, parece ‑me seguro que não haverá no curto prazo novas
transferências de soberania a favor da União Europeia e, portanto, fazer depender a
resposta ao problema da sustentabilidade do euro de alterações dos Tratados que
impliquem novos avanços na união politica e, inclusivamente, a configuração de
uma união fiscal de tipo federal (orçamento supranacional e poder fiscal federal),
parece ‑me ser totalmente irrealista.
Em segundo lugar, estou seguro que qualquer avanço no sentido da união polí‑
tica nos termos atrás descritos exige um calendário impraticável para constituir uma
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
38 resposta eficaz à questão da sustentabilidade do euro que é uma questão que se joga
no muito curto prazo.
Há, ainda, um outro ponto que gostava de referir, porque às vezes parece que é
uma questão que cai facilmente no esquecimento: não podemos ignorar que nos
vinculámos livremente a uma União Económica e Monetária desde Maastricht, em
1992, a qual nunca foi concebida como uma união de transferências líquidas entre
Estados. Esta regra, aliás, não foi uma invenção da senhora Merkel, que agora aparece
diabolizada nesta matéria. Só que esta regra essencial da Zona Euro faz parte da
matriz genética da UEM tal como a pretendeu o então Chanceler Kohl que, como
toda a gente sabe, sempre foi considerado um profundo e convicto europeísta. Não
creio, pois, que se possa esperar uma alteração desta postura estrutural da Alemanha,
nem mesmo sob o impacto da actual crise.
Portanto, partamos do princípio de que os alemães, neste ponto, não vão ceder,
o que significa que, como diria a minha avó, “quem não tem cão caça com gato”.
Onde está então o gato? Ou seja, como viver, raciocinar e posicionarmo ‑nos, como
um país que faz parte de uma união monetária que queremos que subsista, mas onde
a política fiscal reside nos Estados ‑Membros?
A resposta passa por aceitarmos como um dado incontornável que não é possível
conceber a sustentabilidade e a credibilidade do Euro como moeda única sem ao
mesmo tempo aceitar que se faça, no contexto da UEM, o escrutínio das políticas
fiscais de cada um dos Estados ‑Membros e do seu efeito agregado no espaço europeu.
Ainda que, há que reconhecê ‑lo, por esta via se esteja a reintroduzir uma concepção
ou um conceito implícito de “risco ‑país” em função das características económicas
de base de cada um dos países que participam na moeda única europeia.
Vivemos à custa do chapéu ‑de ‑chuva da credibilidade da Zona Euro no seu con‑
junto durante estes últimos dez anos, mas não podemos obstar a que em certa medida
os mercados reintroduzam uma avaliação do “risco ‑país” quando se trata de definir
as condições de financiamento dos países mais vulneráveis, como decorrência do
facto de esta ser uma união monetária atípica.
Trata ‑se, portanto, de uma união monetária onde não existe uma política fiscal
comum e, consequentemente, sendo a politica fiscal da responsabilidade de cada
Estado, a reintrodução do “risco ‑país” faz ‑se pela via da pressão sobre as condições
de financiamento dos Estados junto dos mercados internacionais.
Daqui derivam, na minha opinião, dois corolários inevitáveis.
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
39O primeiro está em cima da mesa: a necessidade de se reforçar a credibilidade
do Pacto de Estabilidade e Crescimento tanto na vertente preventiva como na ver‑
tente sancionadora. O segundo, para o qual se evolui lentamente (mas já se evoluiu
alguma coisa), tem a ver com a necessidade da coordenação das políticas económicas
nacionais.
Não pensem que esta frase é uma frase simples de ser dita. O Embaixador Vallera
deverá lembrar ‑se o que sucedeu quando, na Convenção sobre o Futuro da Europa,
se falou na necessidade da governance económica e na necessidade da coordenação das
políticas económicas nacionais. O Grupo de Trabalho sobre este tema não avançou
porque foi objecto de um autêntico veto alemão.
Os representantes alemães tornaram então bem claro que a Alemanha não con‑
cordaria com alterações de substância dos Tratados em matéria de coordenação das
políticas económicas nacionais e daí que o Tratado Constitucional e o Tratado de
Lisboa se tenham confinado a pequenas alterações, apesar de tudo cirúrgicas e inte‑
ressantes, mas não suficientes para responder aos desafios que se colocam hoje à
coordenação das politicas económicas nacionais.
Qual é, pois, o problema politico com que Portugal está confrontado neste
domínio?
Como acho que o nosso destino está na Europa e que o interesse europeu con‑
siste em fazer tudo o necessário para preservar o euro, a nossa preocupação central
deve ser garantir que, a nível europeu, estas duas vias, a via do reforço do Pacto de
Estabilidade e Crescimento e a via da coordenação das politicas económicas nacio‑
nais, sejam tratadas em paralelo, de forma equitativa e equilibrada, já que isso, de
facto, não tem acontecido até aqui.
Voltarei a este ponto um pouco mais à frente, pois não posso, por escrúpulo
intelectual, deixar de falar numa terceira alternativa. E esta terceira alternativa é a da
chamada “purificação do euro”. Não é, contudo, uma tese recente, é uma tese que
surgiu logo a seguir à definição dos países que se qualificaram para a moeda única
europeia, para o euro.
Sem entrar em confidências despropositadas nesta sede, recordo ‑me perfeita‑
mente de que os britânicos costumavam dizer, entre o sério e o irónico, que para
que a libra esterlina entrasse para o euro havia cinco critérios mais um: os célebres
cinco critérios económicos de Brown mais um que não se atreviam sequer a formu‑
lar: que o euro pusesse fora aqueles que tinham entrado e não deviam ter entrado!
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
40 Esta tese não é tão pouco comum quanto se possa supor. Podem facilmente
encontrar ecos dela quando falarem com responsáveis suecos, holandeses ou até
mesmo alguns alemães. Se, por exemplo, atentarem no debate interno no partido
liberal alemão, que é um dos partidos da coligação governamental alemã, verificam
que esta tese da “purificação do euro” está presente, não é inocente e tem eco real
nas respectivas opiniões públicas.
Esta tese é hoje glosada de várias maneiras, com maior ou menor cinismo, no
debate político europeu e na grande imprensa internacional. Uns falam na teoria do
harmónio: os prevaricadores do Pacto de Estabilidade e Crescimento deveriam sair
da moeda única com a promessa de que um dia, quando tiverem a casa em ordem,
poderão voltar a entrar no euro. Só que esta teoria do harmónio implicaria, para os
que saíssem da moeda única, a reintrodução absoluta do “risco ‑país”, tendo como
consequência o estabelecimento de uma taxa de câmbio à custa de uma desvaloriza‑
ção brutal, instantânea e muito provavelmente não controlada. Alguns estudos feitos
a propósito da Grécia indiciam que esse “novo dracma”, por exemplo, sofreria uma
desvalorização superior em 40% com as consequências inerentes no plano das con‑
dições de vida dos cidadãos e nas condições de operação das empresas.
Acresce que uma tal dissociação da Zona Euro só poderia ser feita desde que se
respondesse a uma questão política central: neste caso onde é que se poria a fasquia
dessa pretensa “purificação” do euro?
Voltamos ao que atrás já referi: seria politicamente sustentável que a teoria do
harmónio visasse apenas os dois (eventualmente os três) pequenos países expostos
à pressão dos mercados?
Além dos efeitos políticos que tal opção teria na recorrente questão dos equilí‑
brios entre os pequenos e os grandes países dentro da União Europeia, pergunto ‑me
se de facto uma eventual saída dos pequenos países resolveria algum dos problemas
de fundo da credibilidade da Zona Euro, para já não falar da ineficácia de tal solução
para suster o assinalado efeito de contágio. Mas como não incluir também a Espanha
neste grupo quando os respectivos basics económicos e financeiros não são substan‑
cialmente diferentes dos demais países periféricos? E como gerir, à luz desta lógica
“purificadora”, os casos italiano e belga?
Uma tal operação dita “purificadora” seria sempre, pois, politicamente muito
complexa e muito difícil, mas, em função das vozes que a preconizam, não nos
podemos distrair quanto ao seu alcance.
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
41Convém, ainda, deixar claro que os efeitos disruptores de uma tal operação de
“purificação” do euro iriam muito para além do estrito domínio da União
Económica e Monetária e o seu significado e alcance acabariam por atingir ineluta‑
velmente o coração do projecto europeu na sua própria essência.
Em Portugal ainda não surgiram com intensidade as vozes dos que defendem a
saída de Portugal do euro – mas acabarão por surgir, não tenho sobre isso a menor
dúvida. E esta será uma grande linha de demarcação das posições políticas em
Portugal durante os próximos tempos. Espero, sinceramente, que o consenso euro‑
peísta que se gerou entre nós desde há quase três décadas sobreviva a este risco e a
esta tensão. Acho que a exposição do Dr. Carlos Costa, sob esse ponto de vista, foi
totalmente clara e consistente na demonstração de que uma eventual saída de
Portugal do euro não resolveria nenhuma das questões essenciais do ponto de vista
económico e financeiro, e nenhuma das questões cruciais que se colocam à susten‑
tabilidade do nosso país!
A nossa tarefa, em meu entender, é demonstrar que os problemas económicos e
financeiros com que estamos confrontados não só não passam pela saída do euro,
como a apresentação da saída do euro como solução é apenas uma maneira de fugir
à analise das questões essenciais para a nossa economia e não representaria nenhuma
solução de fundo para os problemas nacionais.
Concluo a minha intervenção com a resposta à questão sobre qual a solução
alternativa aos riscos do egoísmo nacional e da desagregação do actual núcleo cons‑
titutivo do euro, por um lado, e à “fuga para a frente” de um federalismo europeu
inviável no curto prazo?
Entendo que a solução passa, por um lado, pelo reforço dos mecanismos do Pacto
de Estabilidade e Crescimento, por muito duras que essas imposições possam ser para
o nosso país e, por outro, por um quadro inovatório de coordenação das políticas
económicas nacionais dos países da Zona Euro. Convém, aliás, recordar a este propó‑
sito que os primeiros grandes prevaricadores do Pacto de Estabilidade e Crescimento
foram exactamente a França e a Alemanha em 2003, no quadro de um processo por
défices excessivos que lhes foi instaurado pela Comissão Europeia e que culminou por
uma decisão salomónica do Tribunal de Justiça da União Europeia. Uma solução que,
por não ter sido exactamente favorável ao papel das instituições comunitárias na gestão
da moeda única europeia, esteve na base das limitadas alterações introduzidas pelo
Tratado de Lisboa nas bases legais da União Económica e Monetária.
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
42 Importa, portanto, assumir que, na presente conjuntura, a construção de uma
vontade política comum para garantir a credibilidade da moeda única europeia passa
pelo reforço dos mecanismos de Pacto de Estabilidade e Crescimento, de que decorre
a prioridade absoluta para Portugal de cumprir o objectivo de reduzir o défice do
Orçamento de Estado para 3% do PIB no prazo previsto (em 2013) e de iniciar, neste
mesmo período de tempo, a trajectória de redução da dívida pública.
Note ‑se que, neste ponto, tentei ser cauteloso nas palavras que utilizei: iniciar a
trajectória da redução da dívida pública, que é isso que está em causa no curto prazo.
Inverter uma trajectória não é, obviamente, reduzir a dívida pública para o limiar dos
60% do PIB tal como estatui o Pacto de Estabilidade e Crescimento! O início dessa
trajectória de desendividamento passa, em primeira linha, pela inversão do curso de
evolução da dívida pública, mas exige, de igual modo, ter em linha de conta o pró‑
prio peso da dívida privada bem como a perspectiva de evolução do nosso défice
externo corrente. A sustentabilidade da nossa posição perante os mercados passa,
pois, por este triângulo: dívida pública, dívida privada e défice externo, cujas com‑
ponentes não podem ser dissociadas entre si. Para compreender esta ligação basta
recordar que se a dívida pública se situa em valores próximos dos 82% do PIB, a
dívida privada colo cada no exterior estaria perto do dobro desse valor. Por seu turno,
o nosso défice externo (que deve ter conhecido já uma ligeira redução por força da
retracção económica implicada pelas medidas de austeridade em curso de aplicação)
não andará longe dos 7% do PIB.
Reduzir o défice público, iniciar a trajectória de redução da dívida (tanto pública
como privada), reverter o curso de evolução das contas externas por via do aumen‑
to sustentado das exportações: eis o que estará sob escrutínio dos mercados para
efeitos de análise e de avaliação da sustentabilidade do processo de ajustamento em
Portugal.
Em segundo lugar, a sustentabilidade da moeda única europeia exige, a par do
reforço do Plano de Estabilidade e Crescimento, um novo quadro de coordenação das
políticas económicas nacionais que tenha como eixo orientador limitar os efeitos
recessivos da austeridade. Sobre este ponto – e no que diz respeito a Portugal – não
poderia dizer nem mais nem melhor do que já foi aqui dito pelo Dr. Carlos Costa,
quer no que diz respeito ao crescimento das exportações, quer no que diz respeito
à selectividade do investimento, quer no que diz respeito aos ganhos de produtivi‑
dade decorrentes da inovação, da investigação aplicada, etc.
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
43O ponto que gostava de focar tem sobretudo a ver com o que é que significa a
coordenação das políticas económicas nacionais como elemento constitutivo indis‑
pensável da sustentabilidade da moeda única europeia. É neste domínio que reside
o grande défice de cidadania do projecto europeu e que, também, tem havido um
certo défice de ideias para alimentar o debate inadiável.
Na minha visão das coisas, esta coordenação das políticas económicas nacionais
a nível europeu tem que assentar em dois grandes eixos. O primeiro tem a ver com
a leitura do efeito agregado das políticas fiscais nacionais a nível europeu. Este ponto
é um ponto muito importante, na medida em que, se estamos no quadro de uma
união monetária onde a politica fiscal está nas mãos dos Estados ‑Membros, é eviden‑
te que para que uma tal união monetária funcione torna ‑se necessário avaliar qual é
o efeito cumulativo das politicas fiscais nacionais, sem o que a lógica de funciona‑
mento do sistema sai irreparavelmente afectada. É este o “gato” que substitui o “cão”
na história da minha avó! Não existindo uma política fiscal supranacional, a sua
função tem que ser desempenhada pelo efeito coordenado das políticas fiscais nacio‑
nais em função dos objectivos comuns da moeda única europeia.
Mas entendamo ‑nos sobre o que significa (e o que implica) tal coordenação das
políticas fiscais nacionais: não se trata de dizer aos alemães que têm que começar a
gastar mais ou a consumir mais (essa foi a versão simplificada francesa, há alguns
meses atrás, da qual, aliás, rapidamente se libertaram...). O problema do consumo
privado na Alemanha é, aliás, um problema muito complexo, que tem a ver não
apenas com a tradição aforradora e a obsessão com a inflação, mas também com o
facto de a Alemanha ter uma perspectiva de evolução demográfica das mais terríveis
no conjunto dos países europeus. Com efeito, as previsões demográficas dizem ‑nos
que a Alemanha será, provavelmente, dos países mais envelhecidos do mundo no
curto intervalo de dez anos e, consequentemente, não se pode alicerçar uma estraté‑
gia comum europeia que passe por dizer aos alemães para não aforrarem quando
existe a perspectiva de um impacto demográfico profundo poder atingir em pleno a
Alemanha. Isto com todas as consequências económicas e sociais dele decorrentes,
muito em particular quando, no plano europeu, não há um sistema de segurança
social federal que lhes permita contar com os países mais jovens para compensar o
envelhecimento da sua própria população.
Acresce que não está demonstrado que um aumento do consumo interno ale‑
mão tivesse um impacto significativo na resolução dos problemas económicos dos
países periféricos.
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
44 O primeiro eixo passa assim pela avaliação conjunta do efeito agregado das
políticas fiscais nacionais e pela necessidade de um instrumento de regulação con‑
juntural das políticas orçamentais nacionais.
É por isso que o princípio do denominado “semestre europeu”, proposto pela
Comissão Europeia como instrumento de coordenação das políticas económicas nacio‑
nais, é tão importante, dado que ele se prefigura como o mecanismo de ponderação
das opções de política económica dos Estados ‑Membros e seu efeito sobre a sustenta‑
bilidade do euro. Fico, por isso, muito perplexo com o argumento de que com o
“semestre europeu” e a coordenação ex ante dos princípios orientadores dos orça‑
mentos nacionais, os países membros da Zona Euro perdem soberania. Sinceramente,
a realidade, como nós próprios estamos hoje experimentando, mostra ‑nos que os
países já não têm essa mítica soberania e que, pelo contrário, a dinâmica do “semestre
europeu” constitui o único instrumento possível para permitir que haja uma visão
de conjunto do que é o efeito agregado das politicas orçamentais nacionais no fun‑
cionamento de uma economia que assenta numa moeda única europeia.
O ex ‑presidente da Comissão Europeia Jacques Delors fez recentemente uma
referência complementar ao objectivo da coordenação dos orçamentos nacionais que
me parece muito clarificadora da necessidade de uma visão de conjunto do binómio
ajustamento estrutural/relançamento económico: para alcançar tal objectivo torna‑
‑se indispensável integrar o processo de coordenação das políticas fiscais nacionais
com um instrumento destinado a conduzir politicas anti ‑cíclicas que permitam que
na Zona Euro, em períodos de crescimento económico débil em alguns países
(designadamente naqueles onde se aplicam medidas de austeridade que comportam
sempre um efeito recessivo), seja possível recorrer a estímulos a essas economias
sem que isso signifique uma oneração dos orçamentos nacionais cujos défices se
pretendem precisamente reduzir. É um fundo novo? Poderia bem sê ‑lo. Mas pode ser
mais realista pensar que essa função possa ser desempenhada mediante uma reorien‑
tação da lógica de utilização dos fundos estruturais disponíveis para um tal fim,
mediante uma reformulação das condições dessa utilização designadamente no que
concerne à respectiva componente nacional. Esta segunda perspectiva, que me parece
mais realista tendo em conta a improbabilidade de um aumento do orçamento
comunitário no curto/médio prazo, significa, contudo, que os Estados ‑Membros,
individualmente considerados, poderão, neste novo quadro, perder parte da capaci‑
dade de decidirem a alocação dos fundos estruturais ao nível a que decidem hoje,
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
45para aceitarem que os fundos estruturais, que hoje são divididos por países, possam
ter um efeito agregado adicional para conduzir politicas anticíclicas a nível europeu
em função de objectivos macroeconómicos comuns e, consequentemente, reforçar a
sustentabilidade do euro.
Esta discussão é uma discussão que não vai levar muito tempo a ter de ser feita,
porque a Comissão Europeia vai apresentar em Junho deste ano o primeiro draft das
Perspectivas Financeiras para o período 2014/2020 e, ou este elemento é integrado
nessas Perspectivas Financeiras como uma das componentes da gestão económica e
do governo económico da Zona Euro, ou então teremos perdido uma oportunidade
única para reforçar a sustentabilidade da moeda comum europeia mediante o recurso
às disponibilidades financeiras comuns da União.
Este é o primeiro eixo. Mas em meu entender há um segundo eixo que me
parece incontornável, se pretendemos parar mesmo o efeito de contágio da crise da
dívida soberana. Terá de existir no curto prazo uma forma qualquer de mutualização
do stock existente das dívidas soberanas dos Estados em zona de risco.
Não se trata de pôr os alemães a pagar a dívida pública portuguesa, mas já há
alguns sinais no sentido de que o mecanismo de apoio pontual adoptado em relação
à Grécia e à Irlanda está a ser repensado para o futuro. Aliás, há pouco, o Dr. Carlos
Costa já fez uma descrição da intervenção do Sistema dos Bancos Centrais Europeus
na aquisição de dívida dos Estados que constitui um elemento desta preocupação a
que ora faço referência. O que, de facto, tem sido nestes últimos meses o papel do
BCE e do Sistema de Bancos Centrais Europeus senão uma forma de mutualização da
dívida pública dos Estados ‑Membros naquilo que pode competir especificamente às
autoridades monetárias em defesa da sustentabilidade da moeda única europeia?
Só que este instrumento me parece insuficiente para estancar o aludido efeito
de contágio. A que acresce que estas intervenções não têm garantias de durar o
tempo suficiente para permitir aos países que estão debaixo da pressão dos mercados
ultrapassarem esta situação de emergência com que estão confrontados.
Portanto, alguma coisa mais terá de ser feita, e a prazo que espero não seja
muito longo. Nesta sede, estou ‑me a referir a mecanismos de natureza política para
criar o espaço e a margem de manobra necessários para que os Estados vulneráveis
possam gerir a reconversão das trajectórias das suas dívidas públicas. Este mecanismo
tem sido apresentado sob a designação genérica de eurobonds, de dívida pública con‑
traída centralmente pela própria União. Pessoalmente, não vejo alternativa a que, a
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
46 prazo, esse tipo de mecanismo venha a ser utilizado. Contudo, a questão essencial é
a de saber se virão a tempo de evitar maiores males, ou se a estratégia é obrigar os
prevaricadores a fazerem a via ‑sacra da austeridade até à décima segunda estação e
só depois, então, se adoptará uma solução do tipo dos eurobonds.
Apesar das reservas que a este propósito têm sido emitidas, estou certo de que até
os alemães perceberão que, no limite, lhes sairá mais barato recorrer a uma forma de
mutualização do stock acumulado da dívida pública de alguns países da Zona Euro do
que continuar com o sistema actual que não corta cerce o círculo vicioso em que nos
encontramos. Para grandes males, grandes remédios, e acho que a lógica alemã é essa:
os eurobonds são um grande remédio que só se justifica quando houver um grande mal.
Ora o mal actual já é suficientemente preocupante para justificar que, mesmo sem a
adopção imediata dos denominados eurobonds, se justifica procurar soluções que criem
o espaço necessário para os países sobreendividados reconverterem a trajectória de
evolução das suas próprias dívidas públicas mediante uma “almofada europeia”.
Concluo dizendo que estas preocupações da gestão económica da Zona Euro e da
União no seu conjunto, têm de ser incorporadas no debate sobre as novas Perspectivas
Financeiras 2014/2020, sobre as quais, contudo, não tenho à partida grandes ilusões.
Em primeiro lugar, para mim é claro que não haverá aumento do tecto da des‑
pesa, ou seja, não haverá reforço do orçamento da União. A cruzada britânica é evi‑
dente sob esse ponto de vista e a situação portuguesa é uma situação relativamente
desconfortável, por duas razões: primeiro, porque hoje mesmo vi num jornal que a
taxa de execução do QREN é baixa, estamos na ordem dos 20%. É bom não esquecer,
ou não ignorar, que um dos elementos importantes quando se estabelece a pool position
para a definição da afectação de fundos para o próximo período plurianual, o que
conta em primeiro lugar é a taxa de execução efectiva (não a alocação formal de
fundos) e, em segundo lugar, a avaliação que a Comissão sempre faz da credibilidade
das alocações no período que falta ainda transcorrer até ao final das Perspectivas
Financeiras em curso.
Neste sentido, portanto, não temos muito tempo para garantir que a taxa de
execução efectiva seja sustentadora da nossa posição negocial das Perspectivas
Financeiras 2014/2020.
Mas isso também não significa desbaratar dinheiro, e aí é que está o essencial
do exercício de uma boa governação. Temos que aumentar a taxa de execução efec‑
tiva dos fundos europeus colocados à nossa disposição para o período 2007/2013,
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
47mas temos que o fazer à luz da selectividade do investimento e em função dos objec‑
tivos de que falava há pouco o Dr. Carlos Costa – e aqui a estrada é estreita e a janela
de oportunidade pequena.
Em segundo lugar, temos que definir um perfil dos interesses nacionais para
efeitos da negociação das Perspectivas Financeiras subsequentes, para o período
2014/2020. E aqui há dois perfis possíveis.
Podemos adoptar uma perspectiva conservadora e continuar a apostar nos paco‑
tes nacionais como apostámos até aqui, com assinalável sucesso, aliás, na negociação
das anteriores Perspectivas Financeiras. Chamo, porém, a atenção para o facto de que
os pacotes nacionais, nas próximas Perspectivas Financeiras, vão ser mais difíceis de
obter. Em primeiro lugar porque o grupo de países que têm o mesmo tipo de inte‑
resses que nós temos alterou o seu perfil. Em segundo lugar porque não estou con‑
vencido de que nas próximas Perspectivas Financeiras tenhamos interesses conver‑
gentes com a Espanha, no que diz respeito às prioridades da alocação dos fundos
numa perspectiva conservadora, e a Espanha terá porventura mais interesse numa
lógica conservadora do que Portugal. Por isso, temos que nos preocupar não apenas
sobre quais são os nossos objectivos, mas também, em segundo lugar, sobre quais
possam ser os nossos aliados na consecução desses objectivos.
É bom não esquecer que os novos Estados ‑Membros, que em 2007 ainda não
tinham grande traquejo na gestão e na utilização dos fundos, têm já agora um track
record muito apreciável e, portanto, o argumento que Portugal usava para defender o
seu interesse nacional, que era a limitada capacidade de absorção dos novos Estados‑
‑Membros, já não poderá ser reeditado nas próximas negociações. Portanto, o debate
sobre os envelopes nacionais vai ser muito mais complexo, muito mais difícil. Por
outro lado, uma mudança de paradigma na alocação das Perspectivas Financeiras,
tendo em linha de conta as novas regras da governance económica europeia, parece ‑me
ser não apenas a forma mais inteligente de defender o interesse nacional, como tam‑
bém a única forma possível de se ser convictamente europeísta, o que é, apesar de
tudo o que lhes disse, aquilo que sinceramente continuo a ser!
Muito obrigado.NE
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 31 ‑47
Inte
rven
ção
do D
r. A
ntón
io V
itor
ino
48
49
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
Vítor Bento*
* Economista, membro do Conselho de Estado e Presidente do Conselho de Administração da SIBS.
A Crise Financeira da Zona Euro – palestra proferida no
Ministério dos Negócios Estrangeiros
50
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
51
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
52
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
53
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
54
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
55
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
56
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
57
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
58
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
59
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
60
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
61
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
62
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
63
NegóciosEstrangeiros . N.º 18 Suplemento Abril de 2011 pp. 49 ‑63
A C
rise
Fin
ance
ira
da Z
ona
Euro
– p
ales
tra
prof
erid
a no
Min
isté
rio
dos
Neg
ócio
s Es
tran
geir
os
64