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www.revistaliteratas.blogspot.com Maputo | Ano II | Nº 51 | Fevereiro de 2013 Conecte-nos no As pontes (des)constituídas Angola | Brasil| Moçambique

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Revista de Literatura Mocambicana e Lusofona

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Page 1: Revista Literatas

www.revistaliteratas.blogspot.com Maputo | Ano II | Nº 51 | Fevereiro de 2013 Conecte-nos no

As pontes (des)constituídas

Angola | Brasil| Moçambique

Page 2: Revista Literatas

Poesia de Hirondina

Joshua: viagem,

memória e reflexão

Sumário

O entendimento brasileiro e

português do texto africano

Lourenço do Rosário | Pág. 05 - 06

“Moçambique é um país em

que os poetas lêem os poetas”

Carmen Tindó | Pág. 10 - 13

Entre Moçambique e Angola:

“Esta espécie de virar de costas...

não é bem um virar de costas”

Lopito Feijóo & Luís Patraquim | Pág. 07 - 09

Lua Nova | Pág. 14

A relação entre o tempo

e espaço em “O Sol nas

Feridas” de Ronaldo

Cagiano

Resenha | Pág. 20

O papel do

romancista na

evolução da

literatura nos PALOP

Artigo | Pág. 21

Page 3: Revista Literatas

DIRECTOR GERAL Nelson Lineu | [email protected] Cel: +258 82 27 61 184 EDITOR Eduardo Quive | [email protected] Cel: +258 82 27 17 645| +258 84 57 78 117 CHEFE DA REDACÇÃO Amosse Mucavele | [email protected] Cel: +258 82 57 03 750 | +228 84 07 46 603 CONSELHO EDITORIAL Eduardo Quive | Amosse Mucavele | Jorge Muianga| Japone Arijuane | Mauro Brito. REPRESENTANTES PROVINCIAS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa Jessemuce Cacinda - Nampula REVISÃO LINGUÍSTICA Jorge Muianga

COLABORADORES Moçambique: Carlos dos Santos Brasil: Rosália Diogo Marcelo Soreano Pedro Du Bois Samuel Costa Portugal: Victor Eustaquio Angola: Lopito Feijóo Cabo Verde: Filinto Elísio PAGINAÇÃO & FOTOGRAFIA Eduardo Quive PERIODICIDADE Quinzenal

Ficha técnica

COLABORAM NESTA

EDIÇÃO:

Angola Adriano Botelho de Vascon-celos Brasil Diego Mileli, Neide Medeiros, Rubervam Du Nascimento Cabo Verde

Moçambique

Galiza

Guiné - Bissau Frederico Matos Cabral Portugal Evandro Morgado Timor Leste Palmira Marques São Tomé e Príncipe A revista Literatas é uma publicação electrónica ideali-zada pelo Movimento Literário Kuphaluxa para a divul-gação da literatura moçambicana interagindo com as outras literaturas dos paises da lusofonia. Permitida a reprodução parcial ou completa com a devida citação da fonte e do autor do artigo.

Centro Cultural Brasil-Moçambique | Av. 25 de Setembro, Nº 1728 | Maputo | Caixa Postal | 1167 | Email: [email protected] | Tel. (+258): 84 57 78 117 | 82 35 63 201 | 84 07 46 603

Movimento Literário Kuphaluxa | www.kuphaluxa.blogspot.com | www.facebook.com/movimento.kuphaluxa

Reflectir sobre fronteiras visíveis

E ntão não cerremos o debate iniciado. Porque as fronteiras no mundo existem. Na edição 51, uma espécie de reinício, reinventamos um tema

que andou pelos debates nos bares, encontros académicos e discretos, entre amigos, escritores entre vários.

Adaptamos do I Colóquio ―Encontro dos Brasileiros com a Literatura Moçambicana‖, evento que teve lugar em Novembro de 2012 em Maputo, onde

vários estudiosos de literaturas africanas de língua portuguesa das universidades brasileiras estiveram na ―cidade das acácias‖ para discutir as pontes

que a arte construiu: vir ver (viver) de perto a vida literária moçambicana, discutindo temas mais pertinentes, obras e autores de eterna presença.

Desse encontro que decorreu na Universidade APolitécnica dirigida pelo Prof. Drº Lourenço do Rosário, personagem que também é parte deste

debate agora trazido pela ―Literatas‖, pode não ter surtido efeitos imediatos, mas pensamos que o princípio foi instituído, pelo que nos resta o avaliar das

questões debatidas e outras, que surgiram dessa ―provocação‖ dos brasileiros. Uma iniciativa que se adianta como simbólica em que as nossas literatu-

ras, tão próximas, tão relacionadas podem se desmistificar. Sobre essas possibilidades chamamos a professora de Literaturas Africanas de Língua Por-

tuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Cármen Lúcia Tindó Secco para nos falar.

Tindó foi para além das relações sistemáticas/históricas entre Brasil e Moçambique, preferiu ir ao cerne da questão. Entender ou explicar o mistério

da poesia moçambicana a que tem se dedicado a compreender desde 1993. Portanto, em duas décadas de trabalho estamos perante aquela que diz

sem receio que ―Moçambique é um país de poetas‖ e mais, os poetas moçambicanos lêem-se entre si, seja obedecendo a hierarquia das gerações ao

paralelismo que se vive. Uma visão que traz uma outra perspectiva ao debate que se instalou sobre a poesia (nova) feita em Moçambique em que pou-

cas vezes se estabelece esse cordão umbilical com os nossos mais velhos.

Entre o entender expressado por Lourenço do Rosário sobre as razões do Brasil associar-se, diga-se, sem desdém, à Literatura Moçambicana e afri-

cana de língua portuguesa no geral, estão no facto de: a posição de congénere em termos de história dos dois países (ambos colonizados pelo Portugal

e o Brasil tendo uma grande presença de cultura afro) e o facto de os próprios escritores moçambicanos expressarem várias vezes serem consumidores

do conteúdo literário brasileiro e de sofrerem influência da contagiante escrita desse país das américas. Embora, como o diga Rita Chaves, professora

da Universidade de São Paulo, na vida política brasileira tenha havido, por muito tempo, o desejo deste unir-se ao norte do seu continente. Agora as coi-

sas podem estar a mudar com o efeito do mandato do presidente anterior. A cooperação sul-sul passa a ser por instinto e afinidade.

Rita Chaves, reitera a importância da vontade política para que a cultura exerça a força que tem, em vez do cenário em que os artistas entre si unem

os braços e, por inconveniência política, as fronteiras barrarem o entrecruzar natural, sanguíneo e histórico dos povos. A questão das dificuldades tidas

pelo Brasil para o acesso a obras de autores moçambicanos entra em cena. Mas não só há dificuldades para levar o livro moçambicano ao Brasil como

há para levar à Angola e vice-versa, dois países tão próximos, tão intimamente unidos pelas suas histórias e estórias!

Lopito Feijóo falou com Luís Carlos Patraquim sobre essa ―aparente‖ desconstrução das pontes entre Angola e Moçambique prejud icando o inter-

câmbio cultural entre as duas partes. A ―lusofonia‖ esse termo que provoca outras reflexões, (também pertinentes) faz parte deste debate. Por isso em

duas edições que se seguem haverá espaço onde debateremos as fronteiras que se impõem desde ao termo ―lusofonia‖ com mais personagens envolvi-

das.

Boa Leitura

www.revistaliteratas.blogspot.com

Editorial

Sumário

Page 4: Revista Literatas

Personagem | Brasil

04 | 01 de Fevereiro de 2013

R onaldo Werneck nasceu em Cataguases-MG e morou por mais de 30 anos no Rio de Janeiro.

Jornalista, colaborou com vários jornais e revistas cariocas (Jornal do Brasil, Pasquim, Diário de Notícias, Última Hora, Revista Vozes,

Revista Poesia Sempre - Biblioteca Nacional). Desde 2001 é Asses-sor de Comunicação e Editor de Textos da Fundação Cultural

Ormeo Junqueira Botelho, em Cataguases, e Diretor de Comunica-ção do Cineport, Festival de Cinema de Países de Língua Portugue-

sa.

Poeta, tem nove livros publicados: Selva Selvaggia (1976), pomba

poema (1977), minas em mim e o mar esse trem azul (1999),

Ronaldo Werneck Revisita Selvaggia (2005), Noite Americana/Doris Day by Night (2006), Minerar O Branco (2008), o ensaio Kiryri

Rendáua Toribóca Opé – humberto MAURO revisto POR ronaldo

WERNECK (2009) e os livros de crônicas Há Controvérsias 1 (2009) e Há Controvérsias 2 (2011). Em 2001, gravou em show ao vivo o cd Dentro & Fora da Melodia/Que papo é esse, poeta?

Editor de Suplementos Literários, ensaísta, tradutor e crítico de lite-ratura, cinema e artes plásticas, tem textos e artigos publicados em vários veículos da mídia. Desde os anos 1990, assina a coluna "Há

Controvérsias", publicada em vários blogs e no Jornal O Liberal, de Cabo Verde. Produtor Cultural, foi um dos realizadores dos dois Fes-tivais Audiovisuais de Cataguases – Música e Poesia (1969/1970)

e Coordenador da Exposição Os Mineiros do Pasquim, em 2008.

Às segundas-feiras saiba quem é a personagem da semana em: http://revistaliteratas.blogspot.com

Ronaldo Wernek O mar em mim

(fragmento) aquele centro de mar maraltoceano mar do meio mar de dentro o mar-sea aquele mar preso num peixe o mar daquele fish aquele mar onde the sea grows old in it céu e sal e sol de uma só vez sol insólito luz luz luz pus que solapa o mar turquês o mar de marianne moore na linha do horizonte o mar bifronte incêndio de escamas onde um peixe-chama azul verdeazul azul cinzazul trama de prata o peixe tece no ar o mar que nele envelhece e sacode em mim tardo e triste sim-sim the fish não pode the fish reviver in it revolver seu próprio fim Rio de Janeiro, 1997 de Minas em Mim e o Mar Esse Trem Azul, 1999

Page 5: Revista Literatas

05 | 01 de Fevereiro de 2013

Personagem | Brasil

Portuguesa, ganham o impulso e os primeiros estudiosos dessas literaturas se

deslocaram da área das literaturas portuguesa ou brasileira e outras áreas

destacando professores como Fernando Mourão, Laura Centil, Benjamim

Abdala, que foram os primeiros divulgadores e teimosamente, depois no Rio

de Janeiro a Laura Padilha que induziu a muitas outras.‖

Nesse ritmo surgem a partir dos meados da década de 90, os primeiros

mestres e doutores em que também começam a produzir estudos sistematiza-

dos.

―Lembro-me que quando fui em 1990 dar o primeiro curso de Literatura

Africana em Minas Gerais, levava comigo a primeira edição do ―Vozes Anoite-

cidas‖ de Mia Couto. E Mia Couto era um ilustre desconhecido no Brasil, pas-

sados cinco ou sete anos, o Mia Couto era uma constelação no Brasil. De fac-

to nessa altura a Literatura Africana teve um grande impacto‖ conta Lourenço

do Rosário refere que os estudiosos africanos precisam entrar nos passos já

dados e dar seguimento.

O professor entende que há duas linhas de força que permitem perce-

ber o que é relevante no estudo das literaturas africanas vindo da universidade

portuguesa ou brasileira.

―Sem considerar eventuais linhas de impercepção, os estudos vindos

da universidade portuguesa, privilegiam ainda o processo identitário, numa

perspectiva do processo de autonomização face ao modelo português, com a

busca de recursos estéticos que afastam dos cânones literários usos, buscan-

do legitimidade através da transgressão linguística de retorno a hábitos orais e

de utilização de termos não canonizados no universo literário português. Quer

isto dizer que os estudos assim estruturados, ainda privilegiam a linha de dis-

sidência colonizado, colonizador, colonizado independente, utopia, realidade,

ordem e desordem. O olhar continua a ser a partir do ponto de vista da ordem

O que estará de trás da distância que a própria cultura moçambica-

na, no geral, cedeu de Portugal a favor do Brasil?

Lourenço do Rosário, estudioso de literaturas africanas e portugue-

sas entende que a razão pode ser maior que a própria posição dos acadé-

micos da área das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no Brasil e

no Portugal. O segredo está na história dos três países.

É que, de acordo com do Rosário, os estudos literários sobre Lite-

raturas Africanas de Língua Portuguesa, tem origem fora da universidade

quer em Portugal, quer no Brasil. Só mais tarde é que Manuel Ferreira (no

Brasil, Fernando Mourão) lançou o primeiro mestrado na área no início da

década de 80 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, por isso

―deve-se à universidade portuguesa o início do estudo sistematizado des-

tas matérias ainda no decorrer da década de 80, tendo como espaços des-

tacados a própria Faculdade de Letras de Lisboa, a Faculdade de Ciências

Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa – em que a Fernanda

Cavacas foi uma das frequentadoras desse mestrado - , na Faculdade de

Letras da Universidade de Coimbra – do professor Pires Laranjeira - , e na

Faculdade de Letras da Universidade do porto – com o professor Salvado

Trigo.‖

Foi também na década de 80 que alguns doutoramentos aparece-

ram ou tiveram início. Hoje pode se falar da existência de uma escola por-

tuguesa sobre essas matérias, embora possa ainda notar-se correntes

divergentes em algumas questões.

―Na mesma época, mais precisamente entre os finais de 1980 e

princípios de 90, no Brasil, os estudos das Literaturas Africanas de Língua

O entendimento brasileiro e português do texto africano

Eduardo Quive - Moçambique

E m última análise há

um mistério na escrita de um

autor africano. Nesse segui-

mento, interpretar esse texto,

escrita e forma de contar

expresso na Literatura Africana,

ascende os dons da academia.

Entre as escolas que se aproxi-

mam de Moçambique, está a

portuguesa e a brasileira em

que a sua visão, leitura e inter-

pretação do texto africano tem

duas vertentes, uma antónima

da outra. Quem o diz é Louren-

ço de Rosário a quando da reali-

zação do colóquio “Encontro

dos brasileiros com a Literatura

Moçambicana” em Novembro

de 2012 em Maputo.

Questão de Fundo

Page 6: Revista Literatas

06 | 01 de Fevereiro de 2013

Questão de Fundo Você é um leitor? Envie-nos comentários sobre o livro que está a ler. Mande-nos por e-mail: [email protected]

colonial que historicamente se desagregou. É como se o mito de império ain-

da influenciasse eufórica ou disforicamente a abordagem destas matérias.‖

Por outro lado, disse Lourenço do Rosário, que o olhar brasileiro tinha

que ser necessariamente diferente, tendo como a razão para esse

―descompasso‖ o facto dos próprios escritores africanos mais representativos,

declararam aptas vezes que se inspiraram nos escritores brasileiros para

escreverem as suas obras. Por outro lado a formação da nacionalidade brasi-

leira, também ela, de origem colonial em que a componente africana era

intrínseca, permite um posicionamento diferente.

Assim ―a universidade brasileira oferece-nos estudos que parecem

privilegiar o ponto de vista da diáspora, a postura da produção do conheci-

mento na área das ciências humanas tendo como o sedimento a visão da

diáspora, coloca-nos sempre o seguinte problema, o sujeito que efetua o

estudo olha para o objecto que estuda, como fazendo parte de si próprio, sim-

plesmente, fora do tempo e fora do espaço. Assim ele vai procurar demons-

trar um conhecimento imanente, daquilo que constitui seu objecto de estudo

procurando emparceirar o sujeito que de outro lado procura efectuar o mes-

mo trabalho.‖

―Quer isto dizer que a busca do seguimento da diáspora vem, essen-

cialmente, procurar encontrar uma consonância, de vozes entre si e o outro

porque em algum momento foram um só. A minha apreciação é que o estudo

da universidade brasileira, o estudioso, é como se ele próprio se transformas-

se, no outro. Estudasse o sentimento do outro da mesma forma. Não cria

esse distanciamento que encontro nos estudos da universidade portuguesa.

Não admiro o relactivo atraso em que a universidade portuguesa entrou nes-

tes estudos, nem o facto de terem vindo da área de literatura brasileira e por-

tuguesa, havia a necessidade de se criar o distanciamento necessário para

que a ciência pudesse entrar.‖

―Tirássemos os sentimentos, fizéssemos o distanciamento. Se os

estudos produzidos na universidade portuguesa privilegiam essencialmente o

corpo textual, o fundamento produzido pela universidade brasileira privilegia a

alma do texto, porque esta é a postura de elemento da diáspora, a procura da

identidade, que o façam retornar no tempo e nos espaços perdidos em algum

momento.‖

A atitude do estudioso africano perante Brasil e Portugal

―Se os estudos da universidade portuguesa lidam predominantemente

com o império, privilegiando assim os pressupostos coloniais, os estudos da

universidade brasileira lidam com o mito do eterno retorno, privilegiando,

sobre tudo, a visão pan-africanista da terceira geração que vai ao encontro da

proclamação da era do renascimento pan-africano tão em voga hoje em Áfri-

ca. Por isso, grande parte dos estudiosos africanos que hoje lidam mesmo

com estas matérias, nas próprias universidades africanas tendo vindo ou ten-

do sido formados na universidade brasileira ou portuguesa, podem represen-

tar a síntese desses dois olhares, completando, o vértice do triângulo que fal-

ta construir.‖

―A sugestão que deixo é que esta questão deve merecer uma reflexão

mais aprofundada de modo a que o corpus teórico já produzido, encontre

alguma rede em que possa sustentar-se e não cair em vazio. Portanto é uma

tese que apresento e que me parece que se pode aprofundar.‖

O texto literário africano segundo Portugal e Brasil

o papel do académico africano e o impacto da sua

crítica em África

―Outra questão que carece de apreciação e aprofundamento, prende-

se com a utilização da teoria literária existente para produzir as teorias de aná-

lise e crítica de texto literário africano, em particular o de língua portuguesa.

Relactivamente aos aspectos mais pacíficos há um consenso de conhecimen-

to de que quais factores históricos que determinaram a sua génese, de que

elementos, necessitou o texto literário africano para estruturar o seu percurso

e desenvolvimento, quais as suas marcas distintivas face aos cânones quer da

literatura portuguesa, quer da literatura colonial e de como buscou paradigmas

para procederem aproximações. Isso é suficiente para garantir a universaliza-

ção do seu corpo, por isso a literatura moçambicana é tão importante como a

literatura francesa, do meu ponto de vista. Estamos no contesto da universali-

dade, produzimos a nossa literatura.‖

―No entanto no que tange aos recursos retóricos, estilísticos, e outras

características da sua singularização, há pontos que merecem ser revisitados.

Nós, os docentes das literaturas dos países africanos, não devemos ignorar a

importância que possuímos na formatação desenvolvimento e consolidação do

instrumento que estudamos, nós os africanos nas universidades africanas,

somos muito mais importantes que os brasileiros nas universidades brasileiras

e portuguesas, de ponto de vista de impacto social. Na medida em que nós é

que constituímos uma espécie de faróis de algo que está a ser construído e

ao mesmo tempo estamos a estudar. Naturalmente que o impacto de estudos

literários africanos numa universidade brasileira será dentro do universo só

daqueles que estão interessados pela literatura africana no Brasil. Em Portu-

gal é igual. Mas nós não, para além dos que estudam a literatura africana,

temos a nossa volta os próprios escritores, a própria sociedade e o mundo,

incluindo os próprios políticos.‖

Escrita africana: perigos iminentes

―No universo em que a crítica literária é incipiente fora das academias

tudo quanto dizemos e escrevemos tem um grande impacto nos nossos dis-

centes, no público, nos escritores e na sociedade em geral. A existência de

num determinado modelo como sendo um ponto forte das características des-

sa literatura, pode levar a que toda uma geração de aspirantes a escritores,

recorra a esses modelos acabando por criar não uma corrente literária, mas

um bando de plagiadores de estilos. Mais grave ainda é ver escritores com

algum renome já inebriados pelo êxito se auto plagiarem não progredindo

mais, nem surpreendendo já, isto é um problema que nós vivemos aqui, em

moçambique pelo menos, já conversei com alguns escritores dizendo-os

―muda, dá a volta‖.‖

―No que diz respeito à transgressão da Língua, por exemplo, como

estética e a singularização e símbolo de distanciamento de paradigma do por-

tuguês, julgo começar a haver consenso de que já passou da moda a sua

importância. Mesmo a existência que alguns têm feito de que com este recur-

so se estará a dar voz aos personagens que representam a realidade duma

língua, outra, dentro da língua portuguesa, não deve merecer já atenção em

dissertações, monografias ou capítulos de tese. Esta é a minha posição. Já

ouve tempos em que de facto Fernanda Cavacas trabalhou Mia Couto, pré-

criações, provérbios, etc, mas neste momento penso que já não é matéria

para considerar algo importante para os nossos escritores recorrerem como

instrumento estético de distanciamento à literatura portuguesa.‖

―Neste momento os escritores africanos não devem pensar que se não

transgredir a língua, não estão a ser autênticos. Isso vai nos permitir destrinçar

entre aqueles que para trás transgrediram conscientemente – temos exemplo

do próprio Luandino Vieira – tendo contudo o bom domínio da língua e aque-

les outros que por mão domínio se escondem hoje nessa maneira de escre-

ver.‖

nós os africanos nas universidades africanas,

somos muito mais importantes que os brasileiros

nas universidades brasileiras e portuguesas, de

ponto de vista de impacto social

Page 7: Revista Literatas

Questão de Fundo Você é um leitor? Envie-nos comentários sobre o livro que está a ler. Mande-nos por e-mail: [email protected]

07 | 01 de Fevereiro de 2013

Entrevista www.revistaliteratas.blogspot.com

“Esta espécie de virar de costas...

não é bem um virar de costas”

Conversa entre os poetas angolano Lopito Feijóo e moçambicano Luís Carlos Patraquim

Em breves linhas deixo aqui o perfil do nosso interlocutor deste pra-

zeirento bate-papo ocorrido em Lisboa, no Solar dos Galegos ao Largo da

Santa Casa da Misericórdia ao cair da tarde de um dia de certa pressa e

alguma ânsia no pacote pois o Luís Carlos estava aviado e de malas fei-

tas para mais um regresso às singulares praias do Índico. Ele mesmo que

é natural de Maputo onde nasceu em 1953. Jornalista, guionista, cronista

e autor de uma reconhecida obra poética .

Além de poeta (Monção, A Inadiável viagem, Lindemburgo Blues,

Pneuma, entre outros...) sempre colaborou na imprensa moçambicana e

portuguesa(A voz de Moçambique, A tribuna, Kuxa Kanema, Publico, Jor-

nal de Letras) e foi funcionário do Instituto de Cinema e da Agência de

Informação de Moçambique. Foi coordenador da Gazeta de Artes e Letras

da revista Tempo em 1984/86 tendo logo após fixado residência em Por-

tugal onde se aventurou na escrita dramática tendo assinado algumas

peças. Consultor para a lusofonia no já extinto programa Acontece e

comentador na RDP-África recebeu em 1995 o Prémio Nacional de Poe-

sia de Moçambique.

Eis então a amena e reg(r)ada conversa mantida, entre nós, ao sabor

de um frito chouricinho de vinho e outros entretantos secretos ...de trazer

água na boca de quem com certeza se vai deliciar com o simples papo

cujo registo transcrevo:

L.F.-Dada a tua experiência e os tempos de tarimba jornalística peço

que comeces por fazer uma distinção entre o jornalismo e a literatura.

Entre a escrita jornalística e a escrita literária...

L.C.P.-Há uma fronteira entre a literatura pura e dura (e assim posso

exprimir-me!) e a escrita jornalística. Sem dúvidas! O jornalismo vive de

alguma contingência mas eu estou convencido que o grande jornalismo

comporta, implica e contempla também uma dimensão literária.

Lembro-me daquilo que é, digamos, a obra maior do trabalho jornalísti-

co que é a reportagem. A reportagem que é de uma área próximo de nós

que usamos uma língua neo-latina que é o português. A reportagem de

Gabriel Garcia Marques, por exemplo, com o ―Relato do Naufrágio― que é

uma grande reportagem, antes dele ser o escritor e o contista que conhece-

mos. Faz ali também literatura, portanto, para um verdadeiro jornalis-

mo...mesmo a notícia que obedece às regras de Quintilhano, do lide jorna-

lístico, já implica uma grande preocupação de rigor de texto que não sendo

literatura no sentido de criação metafórica com outro tipo de dimensões e

de liberdades já implica uma preocupação com a linguagem à que a litera-

tura também está obrigada, portanto, havendo fronteiras, são fronteiras que

se diluem.

Outro género jornalístico que todos conhecemos de grandes autores é

a crónica. Basta citar em termos angolanos um Ernesto Lara filho, em ter-

mos brasileiros basta citar Ruben Braga, Carlos Drumond de Andrade e

tantos outros... e a crónica que é vista como um género menor é um género

literário que é visto simultaneamente nas circunstâncias de jornal mas que

é também literatura. Portanto, eu penso que o verdadeiro e grande jornalis-

ta tem também dentro de si preocupações literárias e não me esqueço

daquilo que Ernest Hemingway disse uma vez quando trabalhou, em miúdo,

como repórter no Kansas City Star, à respeito das 110 regras do estilo des-

se jornal que foram para ele a sua aprendizagem do escritor que veio a ser.

Entre Angola e

Moçambique:

Lopito Feijóo, em Odivelas (Portugal)

Page 8: Revista Literatas

08 | 01 de Fevereiro de 2013

Todos os dias em: www.revistaliteratas.blogspot.com

Entrevista

L.F. - Agora vamos falar um bocadinho dos teus primeiros contactos

com a literatura e com os escritores angolanos...

L.C.P. - São antigos, como é óbvio, e inclui obviamente a poesia de

Agostinho Neto concomitantemente com a descoberta da poesia de José

Craveirinha, do Rui Nogar e de tantos outros. O contacto com os cadernos

IMBONDEIRO e CAPRICÓRNIO, Luandino Vieira... depois a geração que

se revela com Pepetela e Manuel Rui e depois a geração dos mais novos

onde estás tu também, aqueles cadernos que se publicaram em Angola do

Geraldo Bessa Victor que apesar de um certo formalismo do ponto de vista

ideológico (...mas não era isso o que me importava!), na altura o mais

importante é que eu estava interessado em conhecer.

Essa relação existe e percebe-se que sendo países com óbvias dife-

renças, e isso é normal e natural, haviam pontos de contacto que conti-

nuam até hoje e , portanto, temos vivências que não sendo iguais são pare-

cidas e depois, escrevendo em português apesar de termos outras línguas

nos nossos países... escrevendo maioritariamente em português e fazendo

cada um de nós as suas experiências em português, não deixa de se per-

ceber correlações que existem e universos que são próximos. Imaginários

e problemáticas culturais e de buscas identitárias e de afirmações.

Estou-me a lembrar de um dos livros que me deu mais gozo de ler e

que é uma verdadeira obra prima da literatura angolana que é o MESTRE

TAMODA e num outro registo o QUEM ME DERA SER ONDA do Manuel

Rui. Isso para me referir a pessoas que já pertencem a uma espécie de

cânone literário angolano.

E não é necessário me referir às gerações mais novas onde estás tu e

o controverso Agualusa ou seja lá quem for.. e eu aí não tenho medo das

palavras porque acho que um escritor é um escritor e as outras dimensões

são outras dimensões e isso é o que é interessante e que faz a dinâmica de

uma literatura. E nesse sentido Angola tem muitos nomes para apresentar e

já não preciso estar aqui a fazer a História da literatura angolana indo até lá

mais para atrás.

L.F.- Já agora podes referir-te com maior incidência à geração de 70

que é mais ou menos a tua?

L.C.P.-Eu ia chegar lá começando pelo David Mestre que para além

de um grande amigo é uma figura fundamental na renovação da poesia

angolana e na exigência e no rigor da crítica em Angola e na divulgação

dos autores angolanos também. David é uma figura maior com Rui Duarte

de Carvalho e mais um ou outro pois, no âmbito da poesia, não são assim

tantos os que conheço.

Tenho até uma particularidade interessante com o David Mestre. Eu

conheci o David, sendo eu um garoto que estava a trabalhar na VOZ DE

MOÇAMBIQUE, quando o Eugênio Lisboa entra pela redacção e diz que

tinha acabado de receber uma carta de um presídio de Luanda, de um

jovem poeta angolano que queria entrar em correspondência com ele e

que era o David. O Lisboa começou a falar connosco sem nos revelar o

conteúdo da carta –que era pessoal-, mas começou a falar do poeta que

era jovem e com quem começou imediatamente a corresponder-se pelo

que penso haver um acervo guardado sobre isso e espero que esteja bem

guardado por quem o tem. Daí para frente dá-se a independência e é o

António Ole que uma vez vai a Moçambique e me leva autografado o livro

DO CANTO À IDADE do David. Foi uma grande emoção para mim que

depois vim a conhecê-lo já aqui em Portugal onde tivemos um convívio de

compinchas mesmo!

L.F.-Agora quero ouvir-te dissertar sobre algumas similitudes entre as

nossas literaturas...

L.C.P.- Eu julgo que existem, sendo que Angola tem mais desenvolvi-

mento. Há mais desenvolvimento mesmo no sentido da prosa. Não é

aquela velha coisa clássica que chateia um bocadinho quando se diz que

Moçambique tem poetas e Angola tem prosadores. Acho isso assim um

bocado com pouco rigor.

Há uma mesma circunstância histórica de afirmação identitária, de

Page 9: Revista Literatas

09 | 01 de Fevereiro de 2013

Entrevista Envie-nos os seus comentários sobre a entrevista da semana por e-mail: [email protected]

Entrevista

combate cultural, sendo que aí Angola antecipa-se. O «Movimento Vamos

Descobrir Angola» é anterior ao que está a acontecer em Moçambique

nessa altura. Moçambique só surge mais tarde tirando «O Brado Africa-

no», mas este é um período anterior que Mário Pinto de Andrade chamou

―o período dos pró-nacionalistas‖. Moçambique tem nomes que só se

começam a revelar no princípio da década de 50 em que aparecem nomes

como o de uma Noémia de Sousa, José Craveirinha, Virgílio de Lemos e

Lilinho Micaia que era um dos pseudónimos do Marcelino dos Santos e

Angola já tinha uma literatura que vinha lá de trás desde os finais do sécu-

lo XIX como muito bem sabemos.

Em Moçambique ainda há pesquisas à volta disso e as vezes lá

vamos descobrindo um ou outro nome. Todos aqueles nomes, sobretudo

na prosa e também na poesia angolana, eram de uma dimensão de preo-

cupações e até de afirmação dentro da língua portuguesa , com o mesmo

tipo de pulsão e de necessidades de invenção identitária e de posiciona-

mento político e cultural como nós estávamos a viver em Moçambique e

penso que ambos os países não deixaram de ter sobre isso a influência do

Brasil e até do anterior movimento literário brasileiro com Graciliano

Ramos. As similitudes existem e são todas! Depois há as particularidades,

obviamente, de cada um dos nossos países sobretudo por causa das lín-

guas nacionais.

Angola, particularmente, faz um registo sobretudo na poesia, de retra-

dução da oralidade ou da oratura num sentido muito mais consequente e

com mais preocupação do que Moçambique tem feito até agora.

Moçambique, principalmente na área da poesia, ligou-se imediata-

mente a preocupações mais cosmopolitas. Nós não temos um Rui Duarte

de Carvalho a fazer a poesia trovadoresca dos vários grupos nacionais

que o país tem – prefiro a expressão grupos nacionais!-, e que Angola faz.

Não temos o que a Ana Paula Tavares faz e tu mesmo também o fazes... e

outros mais provavelmente o fazem.

Neste aspecto Moçambique integra isso doutra maneira. Há ali um

outro jogo de combinação poética diferente dessa retradução aproximada

da tradição oral que os poetas fazem. Moçambique não tem um Óscar

Ribas, por exemplo, na área do folclore, que é um termo um bocadinho

pejorativo para mim... mas pronto!

Moçambique não vai pela via dessa investigação profunda dos cha-

mados usos e costumes, que é uma expressão também horrível mas...

acabamos sempre por recorrer a estes termos e expressões que não nos

servem!

Moçambique tem umas coisas mas Angola nesse aspecto está muito

mais desenvolvida. Isso é uma pura e grande verdade.

L.F.- Em tempos houve já muitos mais contactos pessoais e até insti-

tucionais . Podemos falar agora de uma hipótese de saída desta «suposta»

crise de relacionamentos político-culturais

entre nós, para bem da posteridade ou em benefício das novas gera-

ções...

L.C.P.- Tens toda a razão e da maneira como tens falado

até noutras ocasiões, tenho a certeza que também estás de

acordo comigo e que também criticas esta espécie de virar

de costas que não é bem um virar de costas. É que isso não

pode ser. Não pode nem deve acontecer, até porque isso é

um absurdo porque, historicamente, todos sabemos que

desde o processo da luta de libertação que essas ligações

todas houveram e as figuras da literatura angolana e

moçambicana, não só as que estiveram directamente liga-

das à luta mas, também as que tinham uma atitude progres-

sista e nacionalista se conheciam e são amigos e são

irmãos até hoje. Irmãos amigos do peito como o António

Jacinto, o Marcelino dos Santos, Agostinho Neto e todos

outros doutras e mais recentes gerações. E todos são

nomes da historicidade das nossas literaturas, povos e paí-

ses.

Chegou a hora da construção da nação e é verdade que

houve vicissitudes terríveis e em Angola ainda piores do que

em Moçambique. As chamadas guerras civis. Isso atrofiou

um bocadinho de tudo. Hoje vive-se um momento de mais

afirmação que eu considero que é necessário que haja mais

posicionamento para que não se esqueça a dimensão dessa ligação porque

há uma posição estratégica para todos nós que passa pelo conhecimento

mútuo das nossas literaturas e culturas pois se enriquecem mutuamente e

depois porque somos países de língua portuguesa e isso é um dado que

deve ser potenciado a todos os níveis.

Ainda agora uma revista canadiana que é a MONOCLE trazia um grande

dossier sobre a lusofonia (...que é outro termo que eu também não gosto!),

falando sobre a importância estratégica, económica, política e cultural da lín-

gua portuguesa. Não é nada encomendado por alguém. É simplesmente a

apreciação deles e a investigação dos canadianos e de quem para lá escreve

em relação a isso.

O que é preciso é saber que no meio de tudo isso há preocupações de

desenvolvimento. Há vicissitudes políticas. Há o que se queira... há, a cons-

trução de um estado nacional mas, a dimensão cultural e estes elos não se

podem perder e tem que haver uma materialização concreta – em formas

concretas- de acontecimentos como festivais literários e residências literárias

em Luanda ou em Maputo ou noutras cidades porque isso não pode aconte-

cer só nas capitais. Tem de acontecer a circulação do livro. Os Ministérios da

Cultura têm de pensar na circulação do livro entre nós. Não tenho nada con-

tra Lisboa mas, não é preciso passar por Lisboa para que um livro de Luanda

chegue e possa ser lido em Maputo. Hoje isso não faz mais sentido. Até

temos voos directos.

Porquê que o livro que sai em Luanda passa por Lisboa para chegar a

Maputo? Tem de haver mais convívio e uma visão estratégica para isso pois

se há dinheiro para tantas outras coisas –e algumas delas até são mesmo

inúteis!-, tem que haver dinheiro para a cultura porque a área da cultura é

fundamental. É o que perdura. É o que fica. É claro que se a pessoa não tiver

pão ou mandioca para comer, ninguém vai pensar só em poesia, sem dúvi-

das. Mas todos nós, juntos, fizemos esta dimensão cultural , identitária, imagi-

nada ou não mas vivenciada e até de linguagens. Esta gramática da criação

é o que nos constitui e legítima e é o que permanece. O resto é a poética

pois segundo o poeta alemão Holderlin, «o que permanece os poetas o edifi-

cam». Isso é fundamental porque países sem essa dimensão e sem essa cir-

culação universalista, africana e no nosso caso de países irmãos porque o

somos, deve acontecer sem clichés e deve ser uma preocupação política

com visão cultural dos nossos governos e de nós escritores, com as associa-

ções, com a dinâmica da sociedade civil e com as editoras e outros interessa-

dos pressionando os governos.

Page 10: Revista Literatas

Entrevista

10 | 01 de Fevereiro de 2013

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“Moçambique é um em país que os poetas lêem os poetas”

C armen Lucia Tindó Secco é, sem dúvi-

da, uma das estudiosas brasileiras da literatura

moçambicana mais conhecidas em Moçambi-

que, pois tem vários artigos publicados nos

meios moçambicanos de comunicação, anali-

sando profundamente as pegadas e os laços da

poesia deste país. Na sua última estadia em

Maputo – aquando da realização do I Encontro

de Brasileiros com a Literatura Moçambicana –

a “Literatas” teve o privilégio de conversar com

a professora para auferir a sensibilidade do

Brasil em relação à literatura de Moçambique.

Dos temas atuais aos antigos, a professora

Carmen Lucia Tindó Secco tem uma contagian-

te forma de falar de poesia, dizendo poesia. E

dentre as várias conclusões, reitera que

“Moçambique é um país em que os poetas mais

jovens lêem os poetas antigos”. Citando dos

mais velhos aos mais recentes poetas desta

pérola do Índico, vai criando/buscando cami-

nhos que dialogam com o Brasil, país que nos é

familiar, encontrando-se tão perto, literária e

culturalmente dos moçambicanos.

Literatas: O que achou desse I Encontro Brasileiro com a Literatura

Moçambicana?

Carmen Lucia Tindó Secco: Penso que esse I Encontro Brasileiro

com a Literatura de Moçambique cumpriu o papel de demonstrar como diver-

sos autores moçambicanos são estudados no Brasil, uma vez que vários

trabalhos sobre obras e autores importantes da Literatura Moçambicana

foram apresentados e estão publicados no livro Passagens para o Índico. No

entanto, um encontro pressupõe dois lados e, sendo assim, é preciso que

haja, agora, um Encontro Moçambicano com a Literatura Brasileira. Também

senti falta, nesse I Encontro, de mais alunos das faculdade moçambicanas; o

público foi muito reduzido e os professores e pesquisadores brasileiros fala-

ram entre pares. Para que os resultados fossem mais efetivos, precisava ter

sido feita uma maior divulgação que conseguisse reunir um público mais

numeroso.

L: Tendo em conta o trabalho que a professora tem vindo a desen-

volver sobre a Literatura Moçambicana que impressões têm sobre ela?

C.L.T.S: Moçambique já tem um sistema literário formado, não só na

poesia como no romance. Moçambique começou com a poesia, de uma for-

ma mais intensa. É um país de poetas – grandes poetas. Então, se olharmos

para o passado, temos o José Craveirinha, o Rui Knopfli e outros. Antes do

Velho Cravo, há o Rui de Noronha que já apresentava um olhar sobre

Moçambique, uma poesia que revisitava mitos moçambicanos. Lembro o

poema Kenguelekezêêê! Este poeta é um precursor da poesia genuina-

mente moçambicana. Alguns de seus poemas já apontavam para aspectos

culturais moçambicanos.

Como o professor brasileiro Alfredo Bosi afirma em ensaios, a poe-

sia tem várias faces: a poesia dos afetos, a poesia irônica, a poesia guerri-

lheira, a poesia da memória e, ainda, a metapoesia – aquela que reflete

sobre a própria linguagem poética. Há representantes dessas várias face-

tas na poesia moçambicana. O próprio José Craveirinha apresenta várias

dicções em sua poética: faz poemas de denúncia, critica ironicamente o

colonialismo, se insubordina, mas também produz poemas de profundo

lirismo, como os de seu livro Maria.

Na vertente lírica que sempre atravessou o contexto literário

moçambicano, destaco nomes de diversos poetas, entre os quais o de Vir-

gílio de Lemos. Ele sempre escreveu poemas líricos, tratando dos desejos,

do erotismo estético e dos sentimentos. Como ele, há muitos outros poe-

tas: Heliodoro Baptista, Sebastião Alba, Eduardo White, Luís Carlos Patra-

quim. Foi despertada pela poesia deste último poeta que, em 1994, come-

cei a trabalhar com as literaturas africanas e, principalmente, com a

moçambicana. O primeiro livro de poesias que analisei foi Monção, de Luís

Carlos Patraquim. Até hoje, estudo bastante a poesia moçambicana. Gosto

muito desta. Percebo que Moçambique é um país em que os poetas mais

jovens lêem os poetas antigos. E essa prática de leitura também é encon-

trada na geração mais recente de poetas, da qual lembro os nomes de

Mbate Pedro, Sangare Okapi, Adelino Timóteo, entre outros. Todos leram

Rui Knopfli e José Craveirinha.

De acordo com o ensaísta português Eduardo Lourenço, há três

pilares sustentadores do contexto poético moçambicano. São três os anéis

da lusofonia presentes na lírica moçambicana: José Craveirinha, Rui Knop-

fli e Virgílio de Lemos. Lourenço vê Craveirinha, Knopfli e Virgílio de

Lemos como vozes tutelares, cujas poéticas deixaram muitos herdeiros.

Eduardo Quive - Moçambique

Page 11: Revista Literatas

Entrevista Entrevista

11 | 01 de Fevereiro de 2013

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Nas universidades, em geral, os estudantes preferem escrever dis-

sertações e teses sobre obras em prosa, porque muitos consideram difícil

trabalhar a poesia. Eu, entretanto, amo a poesia, sou uma entusiasta, acho

que a palavra voa na poesia. Penso que consigo contagiar vários alunos

com meu encanto pela poesia, pois tenho vários orientandos que trabalha-

ram e estão trabalhando obras de poesia. Uma aluna estudou Craveirinha;

outra, Guita Júnior. Há duas, no momento, trabalhando a obra do Rui Knop-

fli; outra estuda a poesia toda de Luís Carlos Patraquim; uma outra se dedi-

ca à obra da angolana Paula Tavares. Outra aluna escreveu sua disserta-

ção e a sua tese sobre a poesia do angolano João Maimona. Um outro

mestrando estuda a poesia de Glória de Sant´Anna. Há uma orientanda

mais antiga que estudou a poesia de Eduardo White em diálogo com a pin-

tura de Roberto Chichoro; uma outra se debruçou sobre a poética de Virgí-

lio de Lemos. Já orientei tese sobre escritoras caboverdianas, como Vera

Duarte, Dina Salústio, etc. É claro que oriento também alunos que esco-

lhem obras de ficção, entre as quais as do Mia Couto, João Paulo Borges

Coelho, Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa, Pepetela, Manuel Rui,

Boaventura Cardoso, Agualusa, Ondjaki e outros.

Eu procuro trabalhar também com vozes atuais da poesia, como,

por exemplo, a do Adelino Timóteo. Observo que há poetas moçambicanos,

hoje, que inovam, mas não se esquecem do legado deixado pelos mais

velhos. Lembro que Patraquim, em Pneuma, faz um balanço da poesia

moçambicana, celebrando o que herdou poeticamente dos poetas anterio-

res a ele. Quanto aos novos poetas, entre os quais Sangare Okapi, perce-

bo, em seu livro Pelos mesmos barcos, uma presença intertextual de vozes

líricas que cantaram essa ilha mágica, considerada o ―Muipithi‖ dos poetas.

Muipithi, pássaro típico local, que originou o primeiro nome dessa ilha.

Todos esses poetas e obras até aqui mencionados comprovam já

haver um sistema literário consolidado em Moçambique. Evidentemente, há

poetas grandes que já se afirmaram por um

trabalho estético bastante elaborado; há

outros que estão, ainda, em processo de

crescimento, buscando novos caminhos

poéticos.

L: Fala-se em dificuldade de acesso a livros

de autores moçambicanos no Brasil. Como

tem sido o seu trabalho?

C.L.T.S: Tive muita sorte, porque viajei a

Portugal em 1994; a Angola, em 1997; a

Moçambique, em 1999; assim, pude adquirir

muitos livros. Quando comecei em 1993 –

completo, em maio de 2013, 20 anos a tra-

balhar nessa área das literaturas africanas –

, consegui algumas obras publicadas pelas

Edições 70.

Estive aqui, em Maputo, em 1999, para o

lançamento de Negra Azul e Ilha de

Moçambique, de Virgílio de Lemos. Fui eu

quem, nessa ocasião, fez a apresentação

do Virgílio de Lemos. Agora, em 2012,

quando a profa. Rita Chaves apresentou o

livro A Dimensão do Desejo, do Virgílio de

Lemos, fiquei emocionada, porque sabia da

vontade de o autor ter o reconhecimento

público de sua obra, lida e analisada por

importantes ensaístas da literatura de

Moçambique. Também sabia da alegria que

sentiria o Virgílio ao ouvir seus poemas

declamados por poetas das atuais gera-

ções. Fiquei com pena de ele não poder

estar presente, uma vez se encontrar hospi-

talizado, muito doente.

Em 1999, consegui levar de Maputo muitos

livros, até dos mais jovens. Foi com esse material que organizei a Antologia

Poética do Mar em Moçambique com os meus alunos. Foi uma publicação

apenas para as minhas aulas, sem fins lucrativos. Nessa antologia, já fui

incluindo poetas novos.

Há, no entanto, até hoje, dificuldades enormes de fazer a circulação,

no Brasil, dos livros publicados em África. Mas, quando a gente tem uma

luta grande, um compromisso, quando isso nos afeta profundamente – e a

minha atual pesquisa é, justamente, sobre os afetos –, as ideias e ações

em que acreditamos ganham força e contagiam.

Na Faculdade de Letras da UFRJ (Universidade Federal do Rio de

Janeiro), onde trabalho até hoje, foi realizado, em setembro de 2001, um

Colóquio sobre a Ilha de Moçambique. E, na minha Universidade, na área

das Literaturas Africanas, eram só duas professoras. Porém, os alunos e

alguns professores de Literatura Portuguesa ajudaram e foi um sucesso o

evento. Foi escolhida a Ilha de Moçambique por ter sido a primeira capital

de Moçambique e por lá terem estado o brasileiro Tomaz António Gonzaga,

Camões, Jorge de Sena e outros poetas. Esse encontro foi realizado em

setembro de 2001. Houve verbas e puderam ser convidados importantes

nomes da cultura moçambicana: o historiador António Sopa; o sociólogo

José Luís Cabaço; os poetas Virgílio de Lemos, Luís Carlos Patraquim, Nél-

son Saúte; Gemuce, o pintor da ilha; as pesquisadoras Ana Mafalda Leite e

Rita Chaves, entre outros nomes. Foi também convidada a escritora Lília

Momplé, mas, infelizmente, não pôde estar presente.

As comunicações apresentadas nesse Colóquio sobre a Ilha de

Moçambique foram publicadas no número 03 da revista Metamorfoses, pela

antiga Editora Caminho, de Lisboa. Nesta edição, além de enriquecedores

Page 12: Revista Literatas

Entrevista

12 | 01 de Fevereiro 2013

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textos, há belas fotos da Ilha de Moçambique e pinturas desta, feitas

pelo artista plástico Gemuce. Esse número da revista esgotou rapida-

mente.

António Sopa e Nélson Saúte foram convidados especiais, pois a

ideia do Colóquio surgiu a partir de uma obra organizada pelos dois: A

Ilha de Moçambique pela Voz dos Poetas. O evento foi uma celebração

da poesia moçambicana, com a presença de vários poetas moçambica-

nos que cantaram a ilha.

L: Francisco Noa fala da tendência de “invasão” na poesia

moçambicana. Temos, aliás, a tendência do Oriente, como escreve

Eduardo White. Encontra essa viagem ao Oriente em suas leituras sobre

a poesia moçambicana?

C.L.T.S: Encontro sim. Eu sinto o Oriente presente não só na lite-

ratura moçambicana, mas também dentro de Moçambique. Desde os

sabores, por exemplo: o açafrão, o ―curry‖, entre outros temperos ára-

bes, indianos. Em Maputo, anda-se nas ruas e se encontra um muçulma-

no, uma mulher com vestimentas árabes. Eduardo White escreveu Jane-

la para o Oriente, metáfora de Moçambique, país banhado pelo Índico,

voltado para o Oriente.

Fiz parte de uma Banca Examinadora de uma tese de Doutorado

que comparava a escrita de Eduardo White com O Livro do Desassosse-

go, de Bernardo Soares. Esse desassossego também está na poesia de

White que acaba de publicar A Escrita Desassossegada. Esse Oriente

poético e metafórico funciona como uma magia que desassossega tam-

bém a alma do poeta que está sempre a procurar as múltiplas identida-

des de sua pátria formada por uma forte hibridação de culturas. Eu vejo

que tal mestiçagem em Moçambique é muito enriquecedora; é uma for-

ma de ser. Quando falo em mestiçagem, penso em termos culturais e

não apenas étnicos.

Eu sou uma professora brasileira e ―vivo com o coração em Áfri-

ca‖. Mas o meu olhar é diferente, acho que sou capaz de entender de

outra forma questões que são muito moçambicanas e que devem ser

discutidas por vocês, moçambicanos. Eu sou uma estrangeira, embora

tenha essa afinidade grande com a poesia de Moçambique. Diferente-

mente de outros países onde o Oriente é mais um recurso retórico e esti-

lístico, aqui, em Moçambique, penso que ele está dentro das paisagens

culturais locais.

L: Há um debate quase que incendiário sobre o atual estágio da

poesia moçambicana; alguns alegam que vai mal e outros que vai bem.

Seja como for, a questão é: o que considera um bom poeta e uma boa

poesia?

C.L.T.S: Olha é tão relativa essa questão da beleza... Há um pro-

vérbio, muito usado no Brasil, que diz: ―mulher e chita não tem feia nem

bonita‖.

Eu penso que há o lado do afeto; este, não considerado como

sentimento, mas como aquilo que abala, que faz estremecer interiormente o

ser. Roland Barthes, no livro O Rumor da Língua, define a poesia como esse

rumor, como aquele tremor da língua que encanta. Para alcançar tal efeito, o

poeta tem que lapidar o verbo, trabalhá-lo esteticamente. A poesia não pode

ser feita em linguagem transparente, tem que haver um labor com a palavra.

Como diz Maria Teresa Horta, uma das ―Três Marias‖, na poesia a palavra

voa. O poeta diz coisas que a gente sente e conhece, mas o faz de forma ino-

vadora.

O conselho que eu dou aos poetas mais jovens é que sempre traba-

lhem a palavra de uma forma inaugural. Devem usar metáforas e outras figu-

ras de linguagem, explorando a dimensão simbólica do verbo criador. A poe-

sia é enigma, tem que desafiar o leitor, instigando-o a decifrá-la. A poesia

pode estar em toda parte; ela é múltipla, multifacetada. É aquilo que abala,

que faz o leitor levantar os olhos do papel e refletir sobre a vida.

Há um livro do Todorov, traduzido para o português, que se intitula

Literatura em Perigo. Essa obra aborda, justamente, como, em muitas univer-

sidades, hoje, diversos professores acabam usando tanta teoria, que enges-

sam a poesia, limitando as leituras e interpretações. Todorov defende que o

importante é a poesia tocar o coração das pessoas e as tornar mais huma-

nas. Para ele, a poesia não deve assumir um viés político-partidário, pois não

deve servir a uma causa externa. O poético, o literário deve sempre trabalhar

com a imaginação criadora. A liberdade do poeta tem que ser cultivada para

que a poesia, cada vez mais, voe e faça os leitores pensarem, imaginarem,

sentirem.

L: Nota alguma influência brasileira na poesia moçambicana? Que

comparação pode fazer em relação a esse aspecto?

C.L.T.S: Não gosto da palavra influência. O que vejo são intertextuali-

dades. Por exemplo, entre Glória de Sant´Anna e Cecília Meireles há alguns

pontos em comum: a musicalidade, ―o mar absoluto‖, o lirismo, o silêncio.

Também entre Eduardo White e Carlos Drummond de Andrade,

encontram-se algumas semelhanças. O próprio White confessa sua sedução

por Drummond, tendo declarado, em entrevista a Michel Laban:

Carlos Drummond de Andrade é o poeta que mais me toca porque

consegue trabalhar a violência da realidade com toda a beleza e a

seriedade com que os olhos de um poeta podem ver essa

realidade. Estou-me lembrando do poema do distribuidor de leite,

do menino que morre com um tiro, onde o sangue se cruza com o

leite derramado. Isso é o Brasil _ mas é toda essa violência do

Brasil dita com poesia.E mais me toca profundamente porque é

também o que eu procurei no País de mim: foi falar do amor,

mas não do amor desajustado da realidade _ quer dizer, o amor

que a gente foi capaz de fazer, fomos capazes de dar e de

receber, mesmo na realidade violenta que foi a guerra no nosso

país. Aí eu aprendi muito com o Mestre Drummond de Andrade.

De facto.

A poesia é enigma, tem que desafiar o leitor,

instigando-o a decifrá-la. A poesia pode estar em

toda parte; ela é múltipla, multifacetada. É

aquilo que abala, que faz o leitor levantar os

olhos do papel e refletir sobre a vida.

Page 13: Revista Literatas

Entrevista Entrevista

13 | 01 de Fevereiro de 2013

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(LABAN, Michel. Moçambique: Encontro com escritores. Porto:

Fundação Engenheiro António de Almeida, 1998. v. III. p. 1203)

Carlos Drummond de Andrade foi e continua a ser uma marcante

referência para a poesia africana em língua portuguesa. Nos anos de

luta pela libertação em África, os poemas de Sentimento do mundo,

José e A Rosa do povo se tornaram paradigmas para uma geração de

poetas comprometidos com o social, com a denúncia da "noite fascista"

a "dissolver os homens e as palavras". Era "tempo de divisas/ tempo de

gente cortada, de mãos viajando sem braços" (DRUMMOND). Era

"tempo de meio silêncio/ de boca gelada e murmúrio/palavra indireta,

aviso/ na esquina./Tempo de cinco sentidos/ num só" (DRUMMOND).

Assim como Drummond acusou a ditadura brasileira do Estado Novo,

poetas africanos também criticaram o autoritarismo dos tempos

salazaristas.

O poeta moçambicano Luís Carlos Patraquim, por exemplo,

embora pertença a um período posterior, tendo publicado seu primeiro

livro Monção em 1980, alude a essa época de censura e medo em seu

país, no poema "Metamorfoses":

(...)

quando o medo puxava lustro à cidade

eu era pequeno

vê lá que nem casaco tinha

nem sentimento do mundo grave

ou lido Carlos Drummond de Andrade

(...)

mas agora morto Adamastor

(...)

falemos da madrugada e ao entardecer

porque a monção chegou

e o último insone povoa a noite de

pensamentos grávidos

num silêncio de rãs a tisana do desejo

(...)

(PATRAQUIM, Luis Carlos. Monção. Lisboa:

Edições 70, 1980. p. 27)

Embora anuncie a chegada da

"monção" e a "morte do Adamastor",

metáforas da Independência e do fim

dos tempos coloniais, o sujeito

poético, intertextualizando seus versos

com os de José Craveirinha e Carlos

Drummond de Andrade, sabe que

ainda é preciso exorcizar o medo, há

séculos, instalado em Moçambique.

Consciente das mutilações físicas e

mentais sofridas por grande parte do

povo moçambicano, aponta para a

premência de se restaurarem as

emoções individuais bloqueadas pelos

anos de arbítrio exacerbado,

exaltando, então, a importância de

cantar o amor, o desejo, os sonhos, a

imaginação.

A poiesis de Patraquim é carnívora,

prenhe de metáforas insólitas que

deixam sangrar a memória. Seus

poemas trazem à tona nódoas que

aviltaram o oceano Índico pelo

comércio árabe e pelo tráfico de escravos feito por portugueses, mas resgatam,

também, sinestesicamente, o paladar de temperos fortes, como o caril e o

açafrão, os quais deixaram seu sabor impresso na pele cultural moçambicana,

além da sensualidade de tufos e alcatifas persas, cuja maciez despertou

desejos amortalhados na terra marcada pelo entrecruzamento de diferentes

culturas. Os ventos índicos portam o sopro das "mil e uma noites", vencendo,

desse modo, a morte social pelo acordar da imaginação fraturada pela miséria,

pela fome e pela guerra. Por intermédio do recurso à metalinguagm constante,

o discurso se erotiza; a plasticidade verbal se intensifica e a poesia se

transforma em paixão, em "escrutínio de um sexo fundo com palavras". Nesse

aspecto sua poesia se aproxima da lição drummondiana: "penetra surdamente

no reino das palavras" (DRUMMOND).

O constante labor em relação ao verbo poético, a busca permanente da

beleza estética não são, no entanto, as únicas afinidades entre esses poetas.

Eles operam também com uma poiesis de sonhos, amores e ―relembranças‖,

procurando, no passado, imagens antigas, essenciais à recomposição da

fraturada identidade. Como sonhadores à deriva, reinventam a poesia da

realidade. Penetram nos desvãos das palavras, recriando a linguagem em

combinações inusitadas, devolvendo ao humano a capacidade de voar e

imaginar.

L: Na pesquisa que diz estar a realizar em relação à questão dos

“afetos”, quais são os textos e os poetas moçambicanos que analisa? E como é

que se manifestam esses afetos nessas obras e autores?

C.L.T.S: Ainda estou a levantar textos e poetas. Trabalho os afetos não

apenas como sentimentos, mas, sim, como potências que abalam e afetam os

seres. Entre os poetas estudados, estão José Craveirinha, Virgílio de Lemos,

Noémia de Sousa, Glória de Sant´Anna, Luís Carlos Patraquim, Rui Knopfli,

Armando Artur, Eduardo White, Guita Jr., Sónia Sultuane, Mbate Pedro, Sanga-

re Okapi, Adelino Timóteo. A pesquisa se encontra em andamento. É cedo para

revelar resultados. Prefiro não adiantar as conclusões.

Page 14: Revista Literatas

14 | 01 de Fevereiro de 2013

Lua Nova

No primeiro livro aparece ao lado de outros nomes em revelação e na

última, onde se aventurou no conto, está entre as mais lendárias figuras da lite-

ratura nacional como Mia Couto.

De imediato, voltei a reler Florbela Espanca, ―Livro de Mágoas‖ e Cecília

Meireles no seu livro ―Viagem‖. Há um encontro feminino, desassossegado e

solitário na poesia Hirondina, uma iniciação num expressa poético mais profun-

do. A presença do ―eu‖ que nos leva ao envolvimento torna o seu texto numa

parábola. Há a inesperada vontade de reler, parar e pensar, na verdade, o

maior desejo a que nos leva esta poesia lírica é da introspeção.

Hirondina

Joshua, poetisa

escolhida para inau-

gurar este página

que na primeira edi-

ção de cada mês, na

LUA NOVA, vai

apresentar os mais

―novíssimos‖ autores

da poesia escrita

nas nossas línguas

portuguesas. Ler

Hirondina é desco-

brir uma outra e

nova poesia moçambicana a fluir nos braços do Índico.

Quando se pari na poesia, Hirondina Joshua não se afaga em falatórios.

Começa pelo essencial, o ofício de dizer como quem não consegue. O parto

dessa poesia é a cesariana. Um parto de milhões de horas. Doloroso.

Quando li a colecção dos 20 poemas que esta ―embrionária‖ poetisa

enviou-me, achei que fosse melhor esperar. Esperar que lesse mais vezes.

Esperar que perdesse a astúcia a cada leitura que faria. Esperar para no fim

dizer ―isto não é poesia‖. Mas quando li a resposta de ao ler a resposta de Afon-

so Romano de Sant´Ana em ―O QUE É POESIA?‖ (Confraria do Vento/Calibán,

2009), quando se refere ao que um iniciante da poesia deve considerar no seu

fazer poético, tive a certeza de que esperar, eu como leitor dessa poesia, seria

forçar que o tempo leve o que ainda não se consumiu.

De acordo com o poeta brasileiro que é também um dos mais destacá-

veis críticos literários, um iniciante deve fazer e, passo a citar ―a mesma coisa

que qualquer iniciante em qualquer matéria ou profissão. Iniciar sempre, até o

fim. Ou, no caso da poesia, desconfiar dos que oferecem a receita da verdadei-

ra poesia.

Então, parti deste pressuposto no meu entender, inteligente, de um poe-

ta entre poetas. Nada mais eficaz, até porque como atesta o poema que inaugu-

ra este artigo, expressa com certeza essa veia literata desta que é um embrião

da poesia moçambicana.

Hirondina Joshua, tão virgem aos olhos dos leitores de todo o mundo,

participou apenas em duas colectâneas, nomeadamente ―Esperança e Certeza

I‖ (poesia, AEMO, 2004) e ―A Minha Maputo é…‖ (Conto, Minerva, 2012).

Poesia de Hirondina Joshua: viagem , memória e reflexão

Eduardo Quive - Moçambique

Entre as ruas que te correm Passam rostos distantes Improvisados pelo vento Cantigas longínquas soam Directamente na minha lucidez cinzenta Não te consigo ver Estou presa em mim E com óculos gigantes vejo o Amor E isto não tinha que ser porque o Amor é cego

E isto nem tinha que ser porque o Amor é cego.

Deixa-me ser o que eu sou.

Deixa-me exprimir tudo à minha maneira Não me peças para que melhor me entendas Olha-me apenas como sou, valho mais verdadeira Não procures em mim o que não entendas, compreen-das.

Olha-me levemente e verás-me pura e inteira Por mais razões e conclusões que despendas... Não sustentas a realidade verdadeira e derradeira Dizes-me mentirosa, falsa, espero que defendas.

Que culpa tenho de falsa parecer se não sou, ou De saber fingir, mas representar pessimamente? Deixa-me navegar neste fingimento sem idade.

Quem finge permanece verdadeiro, verdadeira sou, Mas quem representa tem uma procura valente E, eternamente encontra novo ser, nova personalidade.

01.01.2012

Nuvens laranja. Matina dourada Lê-se o primeiro sol a nascer Mergulhado em versos de água Em mar transparente Voz de vento insinua-se na ponta da língua da brisa.

Sensações não se acabam de terminar. Primeiro sol a nascer, primeira vida a emergir na mesma vida de sempre...

Versos aos pedaços.

Monções de silêncio, Momentos devagar. Entornam-se num pedaço do nada, Desviados num caminho perdido. Molhado, num sussuro qualquer, Uma sensação aberta, Num suspiro fechado, Uma saudade a doer em tudo que não te faz. Em tudo que és. Um vazio sorriso, Pensamento deserto, Céu sem côr e finito, Sentimento distante, Tudo isto me basta.

Porque te sei fazer existir.

Espaço aberto a escritores emergentes que não tenham um livro publicado ou que estejam em via de publicação do primeiro livro. Em toda primeira edição de cada mês será apresentado um novo autor entre poetas, contistas, romancistas entre outros. Se pretende revelar-se aqui baste enviar-nos um número mínimo de 10 textos (poesia/prosa) ou o excerto de romance/novela com um máximo de 10 páginas. Os textos em formato word até 2007 devem estar escritos na fonte “Times New Roman” e enviados para o e-mail: [email protected] . Com uma ou duas fotografias do autor em anexo.

Page 15: Revista Literatas

Poesia

15 | 01 de Fevereiro de 2013

as fotografias que tirámos não retratam o crescer das teias nas roldanas dos nossos dias

por isso nos apressamos a mostrar aos amigos

as minhas lágrimas, seguem o mesmo percurso que os pingos da chuva ao deixarem marcas nos vidros da janela do meu quarto; mas as minhas marcas estas não têm cura, não podem ser apagadas e embaciam os dias.

in ―Emoções‖

Leia os poemas da semana às terças feiras em: www.revistaliteratas.blogspot.com

Você também pode publicar. Envie-nos o seu poema pelo e-mail: [email protected]

Na maresia dos dias jorra-se o suor nas profundezas do

oceano. E na muralha das noites descansam flores de

aço nos calos das estrelas apagadas pela luz do fogo.

Aqui as aves acendem o cigarro nos olhos do dragão

molestado pela tempestade olímpica. E o fumo do cigar-

ro descreve uma brecha no espaço azul do mar, onde os

homens mergulham dentro das suas aflições a gruta da

abolição da sua própria primavera.

Adriano Botelho de Vasconcelos - Angola

POEGRAFIAS

Jornada

Amosse Mucavele - Moçambique

17

aqui conservam

casas suspeitas

portas fechadas

janelas semi-abertas

onde esticavam

escassos fios de sol

para breves

passeios dos olhos

de mulheres presas

dia e noite até

acabar a festa

fora e dentro delas

in “ Espólio”

EQUÍVOCOS

Heliodoro Baptista - Moçambique

Os desertos nascem assim. Tempo hou-ve de espigas ao sol. com seu espaço seco e também de chuvas. Mas a paisagem ficou a saldo, o saque reavivou a luxúria e transmudou homens em predadores. Alguns acenam-nos á distância, outros não têm ainda rosto. Com astúcias, tumultos, originalidade ás vezes, reencontramos na dor de tantos a transparência de nossos tardios equívocos.

1987

In “ a filha de Thandi”

Si tivesse sentimentos

Seria humano morto infeliz

Nós os mortos não temos

Sentimentos

O possível e único sentimento

Nos julga viver morte

O paladar nos foge

Sentimentos

O único aroma da terra

Nossa única terra desprezível

Desejo sentimentos

Desejo morte

De sentimentos

A vida dos viventes

Assim povoar

Povoamentos

3

Luís Carlos Patraquim - Moçambique

Rubervam Du Nascimento - Brasil

Numa terra em que o professor não ganha

Mas faz das suas aulas uma aliança,

Numa terra em que o médico tenta salvar

E o estado procura matar,

Numa terra em que o amigo é inimigo

E o inimigo é amigo,

Numa terra em que o sol é favor

E o escrivão é lavrador,

Numa terra em que os homens são amigos da guerra

E as mulheres vão de lenços contra o vento.

Nessa terra,

A felicidade é milagre,

E a paz (é) cheia de tempestade.

Frederico Matos Cabral - Guiné-Bissau

Lua Nova

Numa terra... retrato(4)

Page 16: Revista Literatas

16| 01 de Fevereiro de 2013

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Crónica / Crítica

D o poeta que sou, apenas as lágrimas

transpiram o odor e o lacrimejar que as correntes das chuvas

subjugam a nossa Maputo. A efervescência continua e, de vapor

a vapor, a chuva vai semeando dor e temor sem odor.

Inerte, e ao som das gaivotas que soçobram com as

vagitempestades que atravessam o nosso Índico, projecto praias

virgens nubentes de tanto estarem espamalhos a mil dedos.

Praias que Custódio navega-as entaladas de excrementos e lixo

que com elas transportam ao vil e colorido prazer das câmaras

dos homens da pena. Praias virgens de tanto afundarem as

nossas vaziedades e nulidades.

Hoje, sem a cannabis e a blague, espumas que me

transportam ao avesso, vejo rectas a espumar ondulações que

não equilibram o mar. Vejo homens a soçobrar ao leme de uma

embarcação sem nau. Vejo famílias hilariadas de tanto gritarem

sem fôlego. Vejo chuva e pânico que tomam Maputo. Vejo dor e

luto semeados sem o rufar das estrelas.

E quando desisto, novamente cardumes de peixes

ressurgem e dizem: This is the start. O exercício da

racionalidade desapossa-se de mim e, quando no desespero,

casas e homens são consumidos pelas torrentes novamente.

Reparo e penso, só me resta uma merda de centímetro para ser

engolido pelas águas, a minha casa está ali, à beira do vapor.

O

Zezinho chora sem desassossegar e o seu choro teletransporta-

me para vagilatitudes das quais desperto e recordo-me que,

hoje, o primeiro-ministro, num momento de calamidades e, ainda

a mais, por ser médico, incredulamente visita redacções,

quando as chuvas em Nampula, Zambézia, Manica, Sofala,

Inhambane e Maputo criam caos, locais onde penso que devia

dar a cara e mostrar o seu senso de sensibilidade.

Repito, senso de sensibilidade. A não ser que, por detrás

desta intenção, haja, verdadeiramente, uma real obscura

intenção: abafar a sua pálida e silenciosa imagem perante a

passada greve dos médicos nos media. Seja como for, só me

restam a poesia e a chuva. O resto, já a anestesia engoliu. Até

os tomates!

O conto mente, mas nele está presente uma

lição a toda boa gente.

S. Púchkin)

E ra uma vez... Havia um reino... Certa vez... assim começam muitos contos populares e infantis. Estas expressões remetem a um passado longínquo, a um tempo

indeterminado. Os estudiosos da literatura afirmam que os contos que falam em fadas e reinos encantados estão intrinsecamente ligados aos contos populares.

―O Pássaro de fogo: contos populares da Rússia‖ (Ed. Berlendis Vertecchia, 2011), com tradução do russo por Denise Regina de Sales, ilustrado por Nikolai Troshinsky e

comentário de Flávia Moino, apresenta seis histórias de Alexander Afanássiev.

Afanássiev, por seu trabalho de pesquisa e recolha de contos populares da Rússia, é comparado aos irmãos Grimm. O grande mérito das histórias de Afanássiev é a

preocupação em preservar a autenticidade popular dos contos russos.

Denise Regina de Sales, a organizadora deste livro, foi repórter, locutora e tradutora na rádio Vox da Rússia, em Moscou, defendeu tese de doutorado na USP em Literatura e

Cultura Russa e trouxe para o leitor brasileiro seis contos maravilhosos de Afanássiev traduzidos diretamente do russo.

As bonitas e expressivas ilustrações do livro são do desenhista Nikolai Troshinsky que nasceu na Rússia, mudou-se ainda criança para Espanha e já ganhou vários prêmios

internacionais na área de ilustração.

Quanto à Flavia Moino, sua dissertação de mestrado em Literatura Russa (USP) versou sobre Afanássiev e o conto popular russo. Por essas breves informações, sentimos que estamos diante de uma obra de reconhecido valor literário e que exigiu a presença de

especialistas da área..

O primeiro conto ―O pássaro de fogo e Vassilissa-Filha-de-Rei‖ fala sobre um reino muito distante, muito além da vigésima sétima terra, habitado por um rei forte e poderoso. O

rei tinha um arqueiro que era dono de um cavalo mágico e com esse cavalo saía pelo bosque para caçar. Certo dia, o arqueiro deparou-se com uma pena dourada do pássaro de

fogo, embora advertido pelo cavalo que não deveria pegar naquela pena, o arqueiro desobedeceu à ordem do cavalo e resolveu levá-la de presente ao rei.

O rei agradeceu o régio presente, mas exigiu que ele trouxesse o pássaro inteiro com estas palavras: ―Se não o trouxer daqui minha espada, daí sua cabeça cortada‖. (2012:

6)

O pedido foi satisfeito e o rei exigiu mais – agora ele queria uma noiva. Para conseguir realizar o novo pedido do rei, o arqueiro encontrou inúmeros obstáculos, mas

contou com a ajuda da princesa Vassilissa e depois de muitos enfrentamentos viu a morte de perto, venceu os perigos e saiu vencedor.

O compositor russo Igor Stravinsky compôs a música para um balé muito famoso chamado ―O pássaro de fogo‖ (1910). O enredo desse balé se baseia nesse conto e em

outro conto de Afanássiev – ―Rei dos mares e Vassilissa, a Sábia‖ que também se encontra neste livro.

O último conto – ―Vá lá-não-sei-onde, traga não-sei-lá-o-quê‖ é o mais longo de todos e apresenta afinidades com outros contos populares ocidentais. É rico em detalhes e

diálogos.

Novamente vamos encontrar um arqueiro que trabalha pra um rei e é considerado o melhor caçador do reino. Todos os dias ele partia para caçar e sempre abastecia a mesa do

monarca com aves. Um dia ele feriu a asa de uma rolinha e estava pronto para matá-la quando ouviu este pedido:

―- Ah fabuloso arqueiro! Não tire a minha vida, não me mande embora deste mundo de Deus: o melhor é me deixar viva, leve-me para sua casa, ponha-me na janelinha e fique

observando: assim que perceber que vou cair no sono, no mesmo instante, bata a mão direita em mim com toda força, e terá muita sorte‖. (2012: p. 45).

O arqueiro ficou admirado, já havia caçado e matado muitas aves e nunca encontrara uma que falasse. Satisfez o desejo da rolinha e mais admirado ficou quando ela

se transformou em uma moça de beleza indescritível. Tempos depois, resolveu casar-se com a moça de bondade e beleza sem igual e passou a sofrer perseguições, inclusive pelo

rei. Todos desejavam possuir aquela mulher bonita.

Neste conto, há as transformações de objetos visíveis em invisíveis e vice-versa, características marcantes das culturas eslavas.

Os contos de Afanássiev são cheios de aventuras, cenas mágicas e de muita emoção. Quando são narrados de forma oral prendem a atenção do leitor pelo clima de

suspense e surgimento do inesperado.

Quando amanhecer,

vou chover em Moz

com o primeiro...

Matiangola

[email protected]

O Pássaro de Fogo e

outros contos popu-

lares da Rússia

Neide Medeiros - Brasil

Crítica literária FNLIJ/PB

Page 17: Revista Literatas

17 | 01 de Fevereiro de 2013

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Conto

E m certo momento dos tempos, um bando de humanos que

convivia em conjunto passeia por uma floresta. Um de seus integrantes tem

à mão um cesto de maçãs. Neste instante o nº 2 do grupo lhe pede uma,

como de costume. Porém, desta vez, o nº 1, que carrega o cesto, reflete:

Por que eu, se sou do grupo o que corre mais rápido, deveria fornecer-lhe

uma maçã se posso tê-las todas para mim? Ante este pensamento, nega o

pedido e declara que, a partir daquele momento, todas as maçãs são dele e

ninguém mais, senão ele, poderá usufruir delas. Assim, do egoísmo e de se

crer melhor que os outros, surge a propriedade.

O nº 2, absorto com a negativa inusitada, completamente

enraivecido, saca seu tacape e golpeia o nº 1 na cabeça, tão rapidamente

que não lhe permite correr, tomando para si o cesto. Agora, da propriedade

nasce o roubo.

Quando o nº 1 saca também o seu tacape preparando-se para o

confronto que, em razão da equivalência de força de ambos, resultaria na

morte de um deles e na

impossibilidade de o vitorioso garantir

a posse do cesto, o nº 3 interfere

para mediar a situação. Esclarece o

fato ao nº 1 e ao nº 2 e sugere

dividirem o cesto de maçãs. Os dois

concordam em fazê-lo. Então, o nº 3,

tendo obtido sucesso em amansar o

conflito, solicita a divisão do cesto em

três como recompensa por ter evitado

o trágico combate que resultaria na

perda das maçãs pelos dois

envolvidos. Creem correto,

aquiescem e a divisão é feita. Desta

forma, da possibilidade de prejuízo

mútuo, devido ao poder igual entre as

partes envolvidas, surge a justiça, e

junto com ela, o judiciário com suas

custas processuais, ou seja, a parte

de maçãs que cabe ao nº 3.

A partir deste momento,

convencionarei chamar o nº 1 de

propriedade, o nº 2 de roubo e o nº 3

de justiça, atrelando cada um às suas

crianças e representando-as

graficamente entre aspas.

A esta altura da história, o nº

4, ao ver que tudo se acertou e todos

foram contemplados com a

possibilidade de desfrutar das maçãs,

acreditando que o compartilhamento,

como o era até há pouco, fora voluntário, aproxima-se dos três e requer sua

parte, tendo, porém, negado o pleito. Indignado, lembrando do que

aconteceu, decide seguir o exemplo do nº 2, ou seja, do ―roubo‖, e saca seu

tacape. Todavia, agora o poder não é mais equivalente, pois seria

necessário golpear três. Insistindo em negar ao nº 4 o acesso às maçãs,

―propriedade‖, ―roubo‖ e ―justiça‖ sacam seus tacapes e surram-no,

expulsando-o do convívio por sua ousadia em querer parte das maçãs para sua

sobrevivência. Assim nasce a exclusão social, fruto da força da aliança repressiva

do ―roubo‖, ―propriedade‖ e ―justiça‖, criando, com isso, uma coligação, o que viria

a ser por eles chamado de ―polícia‖.

Tendo se livrado do nº 4 pela exclusão social gerada pela força conjunta do

―roubo‖, ―propriedade‖ e ―justiça‖, ou seja, pela ―polícia‖, estes passaram a fazer

uso dela contra qualquer um que se aproximasse e que cressem lhes ameaçar o

direito. Ainda que essa impressão não tivesse qualquer relação com a realidade,

agiam valiam-se preventivamente da polícia. Com isso, defendiam suas posses. Às

vezes era possível até supor que agiam mais por prazer que por precaução.

Entretanto, certo dia, acerca-se-lhes uma fêmea que, aconselhada pelo nº 4,

―exclusão social‖, que encontrara no caminho, ao contrário das outras das quais a

―polícia‖ deu conta, não queria participar da divisão das maçãs, aparentando

somente estar interessada em conviver com eles e vale-se, para isso, da sedução.

Após uma noite de satisfação sexual para os três, a fêmea acorda com todos lhe

servindo maçãs. Da lascívia com ―propriedade‖, ―roubo‖ e ―justiça‖, encorajada pela

―exclusão social‖, surge a ―prostituição‖.

Desde então, seguiram-se várias noites de prazer

proporcionados pela ―prostituição‖, até que,

―propriedade‖, tal como fez com o cesto de maçãs

no início da história da humanidade, declara que

―prostituição‖ é direito de uso somente dele.

―Roubo‖, também como no início da história, puxa

seu tacape, sendo que, desta vez, antes do golpe,

―justiça‖ o convida a conversar em separado. Após

longa conversa ―justiça‖ o convence a deixar

―propriedade‖ achar que tem ―prostituição‖ só para

ele enquanto ambos encontram-se com

―prostituição‖ sem ele saber. Este entendimento de

―justiça‖ com ―roubo‖ eles chamam de ―traição‖.

Ao retornarem, explicam para ―propriedade‖ que

aceitam; acatam seu direito. Da união entre

―propriedade‖ e ―prostituição‖ surge a ―família‖,

sendo esta a forma que vai se considerar como

perfeita até os nosso dias atuais. E, do acordo entre

―justiça‖ e ―roubo‖, ou seja, da ―traição‖, para

encontrarem-se com ―prostituição‖ sem

―propriedade‖, nasce, no mesmo instante em que o

casamento, ato que constituiu ―família‖, o

―adultério‖.

Desse modo, do egoísmo de ―propriedade‖ no seu

desejo por posse; do vínculo entre ―roubo‖,

―propriedade‖ e ―justiça‖, gerando ―exclusão social‖,

que encoraja a ―prostituição‖; do fato de

―propriedade‖ acreditar que ―prostituição‖ pode ser

sua posse, criando a imagem da fêmea como

objeto, desconsiderando todas aquelas que

convivem com ―exclusão social‖ e sobrevivem do

fruto de seu trabalho; do anseio de mais posses de ―propriedade‖ fomentando o

surgimento de ―traição‖; da soma de tudo isso, nasce o que hoje conhecemos por

―sociedade‖.

*Publicado em “Pretérito Mais Que Presente” e será republicado em “Livro de Um

Desconhecido”, previsto para o fim de 2012.

Diego Mileli - Brasil

Crónica / Crítica

Breve História da Humanidade

Page 18: Revista Literatas

18 | 01 de Fevereiro de 2013

Outras Artes

Matola: Cidade d´Arte*

Durante anos existiu o Xitiku Ni Mbawula. Entretanto, a verdadeira força

sob a população de Patrice Lumumba e Singathela e, assumamos, de

toda a Matola e Maputo, aos mais jovens no geral, a influência começa

a ser forte no presente século quando três acontecimentos marcam o

grupo:

O forte aparecimento através da rádio, pelos programas Matolinhas¹

e Hiphop Time² da Cidade FM;

Participação em espectácu-

los de grande envergadura;

As pequenas concentra-

ções de recreação e

expressão musical de livre

acesso.

Como pode-se notar, ade-

quar-se às condições possí-

veis, usar as pequenas

influências locais entre ami-

gos e animar o bairro, foi a

varinha mágica que o Xitiku

Ni Mbawula usou para que

a sua música fosse conhe-

cida. Mas que não nos

esqueçamos, o talento e o

trabalho, aposta no conteú-

do e no método da sua

transmissão, são factores

mais valiosos para se che-

gar na boca do povo que

verdadeiramente gosta de

música. Porque a fama com

qualquer ruído, como nos

mostra a realidade em

Moçambique, pode se ter

com qualquer ruído que

depois é atribuído o nome

de qualquer estilo musical e

promovido pelos mass

Mídias. Mas esse é um

outro assunto que precisa

de um fórum próprio para o

seu tratamento. Falemos da

expansão do nome e da

música do Xitiku Ni Mbawu-

la e a influência que os

mais jovens rappers tiveram

e ainda tem deste duo.

Usar a rua para divulgar a

música Hiphop é um dado

histórico. Até porque este

estilo musical é desde sem-

pre apelidado ―arte de rua‖

e nela, a rua, os rappers

são mais livros de o fazer,

cumprimento com seu papel

primário: expressar-se. No caso do Xitiku Ni Mbawula, foi um acto de coragem,

num bairro quase que com reacções imprevisíveis com a junção de culturas e

que de repente se tornou num lugar onde os dias e a vida passa rápido. A

agressividade do comércio com todos os espaços do centro do bairro ocupados

em barracas e mercearias. Com o bazar a não fazer sentido com a saída dos

vendedores de dentro para fora, onde originaram os famosos

―Dumbanengues‖³. Estes que por sua vez, deram fama à famosa Polícia Cama-

rária, Polícia Municipal, por andar atrás do vendedores, muitas vezes espan-

Eduardo Quive - Moçambique

* Este suplemento é criado alusivo ao 41º Aniversário da Cidade da Matola

Xitiku Ni Mbawula: a rua como espaço de divulgação e

intervenção

Page 19: Revista Literatas

Outras Artes Envie-nos os seus comentários sobre este assunto por e-mail: [email protected]

19 | 01 de Fevereiro de 2013

cando e destruindo os bens, em fim. Patrice Lumumba, aquele bairro paca-

to a ser um centro de conflitos pela moeda.

Enquanto isso, o Singathela, bairro onde morra S-Gee, de umas macham-

bas onde se tirava o amendoim e o milho, de onde vinham mangas doces,

cajus e canhús, passou a ser um bairro onde a terra é rara para se morar.

As construções não demoraram e, acompanhando isso, as necessidades

típicas de uma população urbana, transporte, energia eléctrica, água e o

comércio. Os do Patrice passaram a ser os citadinos e os de Singathela

aquelas que estavam em reconhecimento da nova cidade. Uma união de

dois músicos a enfrentar as mesmas realidades, seria um facto inédito na

zona.

Mais tarde, já com o desenvolvimento infra-estrutural, o mesmo Xitiku Ni

Mbwaula que nasceu de uma utopia, veio a invadir as ruas, cantando na

língua que todo o povo entende e em vários casos, contado histórias que

todos vivem. Por tanto, há um território nessa música, há um desassosse-

go, há um desejo, há um acontecimento, é

poesia, é prosa. Xitiku Ni Mbawula. Todos

querem ouvir as histórias contadas em volta

da lareira. Aí vem os famosos jam sessions

feitos na Rua ―U‖ e na barraca do Jasone.

Curiosamente, os dois sítios são pontos

fronteiriços entre Patrice Lumumba e Singa-

thela. O despertar da partilha de territórios,

afinal, os problemas são os mesmos.

Tal como nos tempos em que surgem, finais

dos anos 90, há um grupo de seguidores

que surgem e que poderá em algum

momento, terem sigo o mesmo aglomerado

Xitiku Ni Mbawula antes até de se chegar a

conclusão do nome do grupo⁴, há uma chu-

va de adolescentes e jovens que a partir de

2005 acompanham de uma forma atenta e

mais activa os acontecimentos no envolta

do grupo; as músicas são partilhadas de

mão-a-mão, pessoa a pessoa, telemóvel a

telemóvel, computador a computador.

Enquanto isso, os free styles são também

atentamente ouvidos, com o orgulho de se

ouvir os nomes desses bairros a serem

invocados pelos artistas. Há uma sede que

aumenta cada vez mais. Estamos em 2008.

Quando várias camisetas dos Xitiku Ni Mba-

wula são artisticamente produzidas e são

explosivamente procuradas por um número considerado da juventude e

adultos.

Lembro-me que nessa altura, viveu-se uma grande euforia. Foram surgindo

outros grupos, que iam estabelecendo o seu propósito e o seu sentido de

―rebeldia‖ e diálogo com o quotidiano cada vez mais árduo. Surge o Ndlele-

ni⁵ Hiphop e Tsaka⁶, este último um projecto mais ambicioso, com um estú-

dio em funcionamento numa casa. Os dois grupos, reuniam artistas do rap

composto por vários entusiastas, uns claramente inspirados nos jovens do

Xitiku Ni Mbawula.

O Ndleleni localizado no bairro onde mora S-Gee, Singathela mais actuante

com regulares noites de espectáculos de rap no centro do bairro, onde che-

gavam a participar vários artistas da cidade de Maputo, usando a influência

do próprio SG como factor de catalisação de nomes sonantes. Aliás, lembro

-me de ter já visto os Timbone Ta Dja, um agrupamento da zona de Compo-

ne, arredores de Maputo. O Tsaka tinha a concentração de uma maioria

adolescente na rua ―U‖, entretanto, com muitos constrangimentos estrutu-

rais e até do local onde faziam os espectáculos, uma vez que era uma zona

residencial.

Portanto, nota-se com veemência, a afluência dos suburbanos ao hiphop da

sua própria zona, o Xitiku Ni Mbawula, tendo os grupos em surgimento, tido

a força de dá-los, também, nomes em línguas nacionais e até, cantando

nas mesmas. Esse grupo passou a ser a figura de cartaz em quase todos

os eventos, embora em muitos deles, como se certificava depois, não tenha

tido se quer conhecimento.

Mas o eco, foi crescendo certamente, por fora da Matola, com o grupo parti-

cipando em grandes eventos da capital. Os aniversários do próprio progra-

ma Hiphop Time, era o ponto de maior concentração de fãs desse género

musical e os Xitiku Ni Mbawula, com a sua singularidade e característica

inconfundível, faziam o seu rap, com temas a mistura de suor, fúria e espe-

rança, tudo no olhar atento ao quotidiano por si vivido, na Matola, no Patri-

ce Lumumba, no Singathela e até pelo País.

—————————————————

Glossário

¹Matolinhas – denominação de um programa da rádio ―Cidade‖ da capital

do país virado à difusão dos acontecimentos da cidade da Matola, desde a

actualidade política, social, económica e principalmente artístico-cultural.

No referido programa, foi criado a rubrica ―Top Matola‖ onde passavam,

digamos, o melhor da expressão musical da Matola.

²Hiphop Time – programa radiofónico da rádio Cidade de Maputo. Pioneira

entre os mídias, na divulgação deste estilo musical em Moçambique. Para

além das regulares emissões aos domingos a tarde, promove grandes festi-

vais de hiphop com participações internacionais.

³Dumbanengue – mercado informal, típico de zonas suburbanas.

⁴Fontes ligados à história do surgimento do grupo, informaram-me que a

quando da junção desses jovens rappers a ideia de grupo era mais abran-

gente, chegando a atingir mais elementos. Aliás, o nome Xitiku Ni Mbaula

terá se inspirado num programa de um programa da Rádio Moçambique

denominado África Xitiku Ni Mbaula, certamente, com certo impacto nas

comunidades. Acrescido a isso está o nome Dingzwai de um dos elementos

do grupo que o terá adoptado tempo depois de ter mergulhado no mundo

hiphop.

⁵Ndleleni – expressão em xi-ronga que quer dizer “no caminho”.

⁶Tsaka – expressão em xi-ronga que quer dizer “feliz(felicidade), alegria

(alegre)”.

Page 20: Revista Literatas

Resenha

A penas o poeta sabe a dor do parto da palavra. Há, na ver-

dade, dores que só o poeta as conhece. Mas há dores maiores, dores de

carne, o fulgor do que a sociedade vive e padece.

Isso remete-nos de imediato à uma dor física, eis porque Ronaldo

Cagiano coloca-nos estendidos ao sol para assarmos e fermentarmos as

dores que as grandes metrópoles enfrentam que sob caiem directamente

ao cidadão.

―O Sol nas Feridas‖ em 63 poemas reunidos, entre a lírica amorosa

e a crítica social, é a solução vista por muitos olhos, mas que só um poeta

embondeiro, maduro e vivido sabe justificar a dor do corpo com a sagaci-

dade que o assunto exige.

Lembrar Maria Teresa Horta

nestas alturas pode-nos ser uma

saída mais eficaz para justificar o

sentido desta análise. De acordo

com a escritora portuguesa, a escri-

ta e a vida caminham juntas ―tem

que viver para se ser escritor‖ – diz

ela.

Em Moçambique, de onde

me chegou o livro enviado atrevida-

mente pelo autor, sem temer os

oceanos que o mesmo atravessaria

desde o Brasil, há um outro embon-

deiro, Suleiman Cassamo, autor do

clássico e símbolo nacional ―O

Regresso do Morto‖, tornar-se-ia

cúmplice da poesia deste ―velho

poeta‖, pois disse uma vez que ―é

preciso ter vivido para escrever‖.

É o escritor, o poeta, e os

seus devaneios; é o poeta, o cida-

dão e as razões da sua poesia mis-

sionária, não alheia aos mistérios

do corpo. Ronaldo Cagiano sabe

ser o que tem que ser na indaga-

ção e no desassossego a que a

sina poética nos remete. Com a devida serenidade é lírico, cuida de si e

dos seus sentimentos, mas com a incompreensão dos tempos é externo,

exógeno, sente no lugar dos outros refém da engajada posição do poeta

zelador e consciente de que ―o ofício da verdade é proibido pôr algemas

nas palavras‖. Liberta-se e fala de sangue, abismos, precipícios, a gênese

e o fim.

Reinaldo Cagiano, este meu desconhecido poeta ―conta‖ na sua

poesia convulsiva em ―O Sol nas Feridas‖ que ―entre a fuga/e os deslizes/

o poema vinga‖, mas mais do que esse olhar atento em ―Gênese‖, o

encontramos a consciência e a saudade de algum tempo ao olhar já nós,

atentamente o poema ―Escamas‖:

(…) A vida, em suas estranhas latitudes,

território lisérgico onde dormiam meus fantasmas

já não é mais o cemitério onde cultivo desilusões

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20 | 01 de Fevereiro de 2013

hoje, planeta do qual não me escondo,

catapulta-me sobre os abismos.

Ao a poesia de Cagiano, com certeza não se sairá sem se indagar: como

esconder as ferias do sol, quando o meio mundo desconhece, o seu próprio para-

deiro? E a poesia é chamada a tão estremo papel de contar o que todos sabem.

A essa dura tarefa cabe ao poeta que poderá não ser compreendido.

Sobre esse aspecto, Reynaldo Damazio já chama atenção na sua nota de

leitura no livro ao dizer que ― o sentimento de impermanência e de precariedade

ronda a poesia e exige do poeta uma tomada de posição, no sentido de enfrenta-

mento das verdades provisórias.‖ É essa a posição que Ronaldo

Cagiano escolheu tomar ao ver o que viu:

Enquanto o cortejo seguia

alheio aos gestos automáticos

das mãos que cerravam as portas

Outros continuavam a vida

imunes à que passava,

despojada de sua última chamada.

A cidade não seria diferente

porque amanhã

outras notícias viriam

É assim que Ronaldo Cagiano faz a relação dos males do seu tem-

po desde a nascença em Cataguases, Minas Gerais, passando por

Brasília, onde formou-se em direito chegado à São Paulo onde resi-

de e tem o seu trabalho. Mas não parou por aí escalou Buenos

Aires, Teerã, Berlim, Pirapetinga, Lisboa, Paris, Adrogue, Alentejo,

Morrinhos, Persépolis, Itabira, essas ―geografias do acaso/ no arre-

mate dos acasos/ onde pululam pássaros aziagos/ e homens ensimesmados/

habitam cidades sem memória,/ cemitério dos vivos.

É assim que o poeta faz a sua poesia, não omitindo o tempo e o espaço,

numa forma perplexa de li dar com o texto que quer também contar histórias dos

nossos dias. Uma poesia, que se pode dizer de combate aos males de hoje, inclu-

sive a da falta de amor, saudade e das irmandades manobradas pelos contextos.

Certamente seja por isso que até os males do passado são elementos

indispensáveis dessa matéria concentrada nessa obra que pode-se chamar de

antologia, onde o autor termina com uma pergunta, no mínimo socorrista ―Onde

está Deus/ cujo poder não exercita?/ cuja vontade não realiza?/ cujas bênçãos

nunca vêm?‖ pergunta o poeta, sabendo da ineficiência da sua função perguntati-

va. Pergunta para não dizer que não perguntou e que todos testemunhamos.

Quem o responde?

A relação entre o tempo e espaço em “O Sol nas Feridas” de Ronaldo Cagiano

Eduardo Quive - Moçambique

Page 21: Revista Literatas

Resenha Artigo

21 | 01 de Fevereiro de 2013

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Q uase me pergunto se ainda há pachorra para ouvirem esse tal

que vem já com o fim da colheita a ver-se, com a lavagem dos cestos praticamente iniciada. Para agravar o meu destino, venho falar depois de o terem feito com a notabilidade que lhes é própria, dois ilustres moçambicanos chamados de propósito para darem ampla luminosidade à festa da nossa mais resistente associação amiga da Cultura. É um arrojo meu tentar acrescentar seja lá o que for ao que já disseram sobre José Luís Cabaço e João Paulo

Borges Coelho.

De qualquer maneira, ―kanimambo‖ aos dois, por se entregarem antes de mim ao ―fogo amigo‖, esperando vir a beneficiar do seu trabalho como

desbravadores.

Pois cá vamos para as nossas ideias sobre o papel do romancista na

evolução da literatura nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa.

Constato pelas contas das leituras esparsas e das notícias episódicas dos jornalistas que a produção literária no universo dos PALOP anda de boa saúde, quer o que se avalie seja a poesia ou o romance, sem menosprezo para

outros géneros como o conto, a novela ou a escrita dos dramaturgos.

A começar, já é muito bom que seja essa a realidade dos factos, perante o impetuoso avanço do desinteresse pela leitura, um fenómeno pelos vistos transversal e que vai obrigar os nossos Estados, os nossos sectores da cultura, os nossos investigadores a desafios imaginativos para que as sociedades do futuro não venham a ser uma infeliz e deslustrada reprodução dos longevos habitantes das cavernas, recolectores de frutos, caçadores de mamutes, fornicadores inveterados e pouco mais! Como dizem que a moda e a História andam aos ciclos com vaivéns infalíveis, tenho medo que venhamos a ser substituídos (se calhar mais cedo do que se pensa) por gerações grotescas

de trogloditas e mentecaptos olimpicamente alheados da festa da leitura.

Retomando o fio, temos pois como primeira ideia a existência de uma literatura pujante, sólida, com sinais de uma produtividade a toda a prova, no conjunto das nossas cinco nações que se comunicam em português no

continente africano.

O bom momento da nossa literatura é resultado da contribuição efectiva dada por todos os que um dia nas suas vidas descobriram o secreto e irrecusável apelo que vem de dentro, para que mais do que os mundanos affairs comuns e correntes do quotidiano, a passagem pela terra faz mais

sentido quando se pratica o dom da partilha.

Escrever, na verdade, não é outra coisa senão entregar-se aos outros

depois do egoísmo momentâneo e perdoável da produção.

Sinto que há cada vez mais gente a interessar-se pela escrita. Ou seja, temos romancistas a reproduzirem-se quase como cogumelos em tempo de

chuvas.

Relativamente ao modo copioso como o romance vem reforçando o património intelectual dos nossos países, talvez valha a pena trazer à tona um punhado de perguntas que às tantas nos fazemos mas sem grandes preocupações com o que pode ser o leque de respostas correspondentes. Por exemplo, os romancistas estão mais motivados a escrever quando as sociedades em que vivem enfrentam tempos críticos como a guerra que por longo tempo nos acompanhou em Angola ou, pelo contrário, os tempos de

acalmia, de paz, de sossego, sugerem mais temas, mais ideias, mais trabalho?

A observação que mantenho da nossa realidade não privilegia nem um nem outro cenário. A ideia na qual acredito é a de que, basicamente, os romancistas estão activos a tempo inteiro e vão buscar ao estado da sociedade os temas inspiradores que depois trabalham segundo balizas ideológicas

subjectivas e os seus próprios ritmos produtivos.

A contribuição dos romancistas dos nossos países para o crescimento

das respectivas literaturas é, claramente, muito presente.

As sociedades africanas, ou seja, as nossas, têm a grande vantagem de não serem sociedades exauridas, exangues, recauchutadas nos modelos. Encerram um potencial de matéria virgem que é, na verdade, uma enormíssima dor de cabeça para os escritores, pois morrem de raiva pelo facto de os dias terem apenas 24 horas quando eles gostariam de dispor de mais tempo para

trabalhar em tanta coisa que sabem estar à mão de semear.

Escrever em África, como africanos e sobre questões africanas, é uma

infinita bênção.

Qualquer de nós que sucumbiu à tentação de seguir as peugadas do romance sente que ao escrever ajuda a mostrar o que somos, como vivemos, o

que sentimos, ao que aspiramos e o que nos atormenta.

Nos nossos países agimos como se, sobre os nossos ombros, repousasse o peso da estruturação da História e do adensar de outras disciplinas surgidas da necessidade natural de se perceber e debater a teia

complexa das inter-relações humanas.

Quando lemos Pepetela nas suas múltiplas entregas ficámos logo com um claro entendimento daquilo que estou a tentar teorizar aqui. O mesmo se dirá da linha de intervenção de Ismael Mateus, Manuel Rui Monteiro ou Aníbal Simões, valendo a extrapolação para Luís Bernardo Honwana, o moçambicano de quem a criançada em Angola leu ―Nós Matámos o Cão Tinhoso‖ nos tempos de ingênua e saudosa lucidez em que se acreditava que os nossos podiam merecer, afinal, um espaço e um lugar no contexto do ensino que nos fazia (e faz) falta; ou o incontornável Mia Couto, que carrega às costas, pode dizer-se, a palpitante história presente e sem esperar pelo amanhã esquivo, da vida dos moçambicanos; referência também, e pelas mesmas razões, ao cabo-verdiano Manuel Lopes, que nos legou os ―Flagelados do Vento Leste‖, escrito quando o arquipélago era ainda uma colónia de Portugal mas insubstituível na descoberta do Cabo-Verde real, com as suas calamidades, as secas, a vida em condições extremas num lugar

agreste.

Admitamos que não é uma mera retórica a contribuição do romancista na consolidação, fortalecimento e projecção da literatura nos PALOP. Nem é, muito menos ainda, uma simples pergunta que se formula para preencher mais um painel que debate e dá trabalho a dois, três ou quatro teóricos que se

esfalfam em explicações: nada disso!

O romance, felizmente, está presente na realidade dos nossos países como a panóplia de outras conquistas e degenerações próprias de um percurso de vida imparável. O que há é, de resto, uma indestrutível relação de causa e efeito: as sociedades produzem as sementes, o adubo, as mudas; os romancistas tratam de capturar essa atmosfera com o receio ancestral de se

perder na voragem dos dias, e fazem os livros.

Portanto, a hipótese improvável de que os romancistas deixem de cumprir com o seu papel de alimentadores da literatura nos nossos países só se daria se, por um qualquer eclipse existencial, as nossas sociedades se tornassem amorfas, deixassem de produzir eventos nos mais distintos campos

da vida, numa palavra, se extinguissem como factores de transformação.

Havendo países, havendo vida, havendo acção humana, os romancistas lá estarão eles sempre de ouvido arrebitado para servir a sua geração e as que virão, interpretando os fenómenos e fixando-os no papel dos

livros.

Não tenhamos pois o receio de que o que está a acontecer hoje diante dos nossos narizes (com a nossa contribuição consciente enquanto cidadãos ou na condição de impotentes observadores apenas) se perca no lusco-fusco do tempo. A classe dos escritores, ao longo da civilização humana, nunca se caracterizou pela distração nem pela preguicite. De tal sorte que, no caso dos nossos países, temos e continuaremos a ter preservado em livros o amplo e incrível caleidoscópio de fenómenos próprios da nossa evolução como comunidades. Os livros que lemos e leremos no futuro vão continuar a falar das dores da colonização como aqui mesmo neste evento da Chá de Caxinde tivemos testemunho, com a obra de Alberto de Oliveira Pinto ―Angola e as Retóricas Coloniais‖; do parto difícil que foram as nossas independências; da utopia dos primeiros anos, o sonho do céu e o paraíso depois de vencido o colonizador estrangeiro; da trapalhada risível que é a tentativa de nos tornarmos empresários ganhadores e novos ricos nos países que agora são efectivamente nossos pela legitimidade das independências; de tudo o que lhe está subjacente, as ―catanadas‖ entre ―iguais‖; as ostentações bizarras; o fausto patético das festas em sociedade, onde desfilam com ar triunfal caricaturas humanas de que os lúcidos se riem; o cancro da corrupção; dos que vão ficando pelo caminho, frustrados porque lutaram pela pátria mas a riqueza não os contemplou; das mulheres e homens astutos que alimentam os mais estranhos submundos, que tão bem os retrata o nosso Pepetela; dos mercadores que hegam de todo o mundo para iniciar entre nós os seus mundos, com fahitas que seduzem até meninos alimentados desde sempre com produtos da Nestlé; das novas fés e novas rezas que fecham ruas em bairros onde os nativos passaram quase à clandestinidade; dos doutorismos em voga, porque os diplomas pendurados na parede são uma mescla irresistível de fetiche e status; da enganosa felicidade dos jovens por cada vez lerem menos e renderem-se aos subprodutos de uma cultura que não é nenhuma; enfim, um universo vasto de retratos que só poderá produzir como resultado uma literatura evoluída porque densa, diversificada nos temas que

aborda, extraordinariamente rica até pelos acasos do Destino!

Saio de cena com um desejo impossível de reprimir, que é o de voltar a exaltar a capacidade de sofrimento da Chá de Caxinde, que todos percebemos que há anos que faz do deserto o seu lugar de pregação, mas não atira a toalha ao chão, não desiste, não desfalece, não se rende à tentativa silenciosa de se secundarizar a alma cultural de uma cidade como Luanda, que já foi lugar de fervorosas tertúlias e emotivas loas ao conhecimento e ao saber. Mantenham-se à tona, pois não há tsunamis que

vos varrerão do mapa, enquanto acreditarmos todos que LER É UMA FESTA.

O papel do romancista na evolução da literatura nos PALOP

Luís Fernando - Angola/Jornal Cultura

Page 22: Revista Literatas

Ideias Finais

22 | 01 de Fevereiro de 2013

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Livro: evolução ou revolução

Evandro Morgado - Portugal

A s tecnologias alteraram irremediavelmente o ritmo da sociedade e do mundo. A fluidez da informação é vertiginosa e exige ubiquidade, pelo que as caraterís-ticas atuais intrínsecas à informação exigem novos dispositivos de acesso e um novo modelo para a conceção e para a apresentação – esta tem sido uma das tarefas mais

difíceis de cumprir neste processo de mudança de paradigma.

A leitura num registo digital – tablets, e-readers, smartphones, entre outros – tomou as ruas e está a conquistar as salas de aula, as bibliotecas e outros espaços de acesso a informação. Esta ofensiva tecnológica, associada a outras tendências das tec-nologias educativas e comunicacionais, tem estimulado a comunidade científica e esco-lar a repensar o conceito de sala de aula, o paradigma de ensino e de aprendizagem e a forma de proporcionar o acesso à leitura. Por outro lado, o tecido empresarial tem estado atento a esta tendência e tem apresentado lentamente novos produtos adapta-dos a esta metamorfose. Não obstante, a margem de evolução deste mercado é gigan-

tesca, dado o seu estado de desenvolvimento.

Os pedagogos, cientes dos riscos desta democratização relativamente à produ-ção e ao acesso à informação, reconhecem as mais-valias dos novos padrões de pro-dução e apresentação de conteúdos digitais: variedade de elementos gráficos, anima-ções, hipertexto, ligação a matérias complementares, apresentação multimodal da infor-mação, reciclagem de conteúdos, acessibilidade, omnipresença, preços normalmente

mais baixos, entre muitas outras vantagens.

Neste contexto, urge reconhecer as características do atual processo de comu-nicação e de acesso à informação e perceber a tendência evolutiva das tecnologias associadas, para reformular os processos de produção, apresentação e distribuição e

deconteúdos.

A evolução tecnológica a que temos assistido, sem prejuízo da que se antevê, tem dado estrutura ao conceito de sociedade de informação e, simultaneamente,tem levantado questões acerca da natureza, evolução, função e eventual extinção do livro-materializado na formacomo o vemos tradicionalmente – no papel. A WorldWide Web (WWW) tem ampliado a experiência do conteúdo digital em rede, proporcionando e potenciando a ubiquidade, a partilha, a interação,a intertextualidade e a hipertextualida-

de.

É certo que, ao longo da história do livro e das formas de comunicação, regista-ram-se grandes transformações. A imprensa, por Gutemberg, revolucionou o acesso ao livro, mas não alterou a estrutura do livro que o códice introduziu. O próprio códice, enquanto evolução do rolo de pergaminho, não alterou os meios de produção de texto. Hoje, assistimos à revolução integral do livro enquanto conceito, já que decorrem trans-formações simultâneas em diferentes vetores: (i) modelos de produção de texto (ii) téc-nicas de reprodução de texto; (iii) recursos de divulgação; (iv) meios de disseminação; (v) forma e materialização do objeto. Segundo José Afonso Furtado (2002), estas alte-

rações ficam a dever-se a três revoluções globais: técnica, morfológica e material:

Mas hoje estas três revoluções - técnica, morfológica e material estão perfei-tamente interligadas.‖ Essa singularidade leva a que enfrentemos uma crise nas categorias que têm permitido a nossa ligação com o livro e com a sua cultura. Por exemplo, (…) as que dizem respeito à propriedade e ao copy-right, que se cristalizaram durante o século XVIII, encontram agora diversas dificuldades face às características do texto electrónico. Mas o mesmo se passa com a noção da identidade do livro, identidade que é simultaneamente textual e material. Até agora, os géneros textuais podiam distinguir-se imedia-tamente pela sua materialidade específica. ―Todos sabemos que um livro não é um jornal, que por sua vez também não é uma carta... Mas no mundo dos textos electrónicos esta diferença tende a desaparecer. (Furtado, 2002).

O livro é ainda ícone de verdade, fonte de conhecimento – é lei, doutrina, políti-ca, história, literatura, saber – e espelho das criações e das invenções, o que lhe confe-re uma imagem de autoridade que torna difícil o processo de relação entre o conceito

livro e a associação à sua imagem enquanto objeto.

A destruição de um livro era a destruição do seu autor, pois enquanto objeto era o legado das suas ideias e da sua visão do mundo, fazendo o com que o livro se

confundisse com o seu conteúdo.

Referências Bibliográficas

Furtado, J. A. (2002). ―Livro e Leitura no novo ambiente digital‖ in Projecto Enciclopédia e Hipertexto. FCUL, Lisboa. Acedido no dia 2 de março de 2012 em http://

www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/afurtado/index.htm

Retalhos

A crónica que nunca

escrevi sobre meu pai

Eduardo Quive - Moçambique

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N asce o dia. É bom dia – mandam as nossas origens –

na dúvida do que os próximos tempos nos darão. Não importa.

Quando se acorda o dia é mesmo bom – bom dia! Meu pai sentado

na sala, tão imóvel quanto seu corpo! Um televisor ligado a barru-

lhar, uma mesa dos anos 80 encostada a parede, rompe de quando

em vez, a escuridão. Os ratos circulam sem temer. Uma secretária

que apenas guarda um prato com a comida de ontem apodrecida.

Um copo cheio de nuvens de poeira quase que cinzento. Um reci-

piente de dois litros contendo água quase aquecida pelo calor. De

onde se encontra, contempla a luz do dia que vai buscando horizon-

te. Vê tudo de lá. As pessoas que da rua passam, seus filhos que

não o saúdam, seus netos, galinhas, plantas, e a mafurreira. O seu

desejo é de contemplar tudo isto de perto. Tenta se levantar. Força

um movimento. Volta a cair na cadeira. Agora com a mão segura a

secretária onde encosta uma parte do corpo. Agora com mais força

se empurra o corpo para frente. Eis que consegue com mais sacrifí-

cio. Seu pé direito é aleijado. Sofre. A ferida verte sangue e pus. Às

vezes caem, enquanto anda, bichinhos. Cheira a merda e se prolife-

ra por toda a sala. Porém, quando a abre para a lavar, trata-a com

gosto. Lambe-a. Acaricia-a. são os seus vermes. Seus males. Suas

dores. Sua herança. Seu passado. Seu futuro. Uma ferida que se

alonga pelo corpo. Dá alguns passos modestos. Tudo no reforço a

moribundice. Contemplo-o. Olho sem piscar. Enfrenta cada paço

com meta e desafio. É doloroso. Mas enfrente é o caminho. Só não

sabe que os caminhos são vários. Ou há vida ou há morte neles.

Desta vez escolhe o da morte. Galga com gosto. Antes caiu, levan-

taram-no, tomou o chá de silêncio. Calou-se. Gesticulou. Tudo se

calou, apenas os olhos falaram. Mas como entender os desejos de

um olhar? Como ouvir a voz que nos olha? Agora está mais imóvel

ainda. Seu corpo quente e mais aquecido ao calor da urina na cama

onde aguarda sua morte, arde. Saem-lhe feridas. É muita dor. Mas

como expressar? Chora meu pai. Chora!. Não, os homens não cho-

ra. Não chora meu pai. Só os gestos dos que o vigiam tendem a

comunicar. Há lágrimas. Há sorrisos desesperados. Há visitas de

última hora. Há amigos instantâneos. Padres e madres, ausentes.

Minha mãe, reza. Reza, a sagrada tarefa das mulheres prestes a

ser viúvas. Não é um exercício de pedir saúde. É uma preparação

ao luto. Nenhuma lágrima contornará o percurso. O horizonte está a

espreita. Agora é por todos conhecidos. Levá-lo à medicina 2? Não.

É morte certa. Mas o que é morte certa? Ele já está morto. É tudo

suspiro das almas. Os olhos ainda movem. As feridas ainda abrem-

se. Com sua única mão sobrada da paralisia já não pode acaricia-

las, beija-las, cura-las. Já não é vida. Morrer é solução – disse meu

pai. Ninguém mais merece um eterno descanso.