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Revista.doc ISSN 1982-8802
Ano VIII
nº 3
Janeiro/Junho 2007
Publicação Semestral
Editores
Eduardo Guerreiro B. Losso
André Luiz Pinto
Conselho Editorial
Prof. Eduardo Guerreiro B. Losso - UFRRJ, Rio de Janeiro
Prof. Alberto Pucheu - UFRJ, Rio de Janeiro
Prof. André Rangel Rios - UERJ, Rio de Janeiro
Prof. Fabio Akcelrud Durão - UNICAMP, São Paulo
Prof. João Camillo Penna - UFRJ, Rio de Janeiro
Prof. Luiz Fernando Medeiros de Carvalho - UNINCOR, Minas Gerais
Prof. Vera Lins - UFRJ, Rio de Janeiro
Prof. André Luiz Pinto - UERJ, Rio de Janeiro
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Sumário
Editorial 4
Ensaios
A fala do mundo em primeira pessoa André Luiz Pinto 5
A paixão de Cristo segundo Mel Gibson Manuel Antônio de Castro 10
Artaud e a utopia no teatro Andrea Copeliovitch 23
As totalidades de Francisco Bosco Pablo Capistrano 38
Pensamento, crítica e experiência na poesia Ana Cristina Pinto da Silva 41
Hilda Hilst e a crônica como espaço de subversão metanarrativa Cesar Garcia Lima 55
A "desutilidade poética" de Manoel de Barros - Questão de poesia ou filosofia? Cristiane Sampaio de Azevedo 69
Um lance de dedos - Análise sobre dois livros de André Rios Eduardo Guerreiro 86
Poemas
Franklin Alves 121
Cláudio Oliveira – Hoje 124
Ricardo Vieira Lima - A um Itabirano, com amor 125
André Gardel - Noturno de Chopin 126
Cesar Garcia Lima – Leitor 129
Túlio Villaça 130
Alberto Pucheu 134
Maria Clara - Conflitos espirituais pela Avenida Brasil 140
Eduardo Guerreiro - Improvisações com o plano 141
Fernando Flack 143
Leonardo Gandolfi - Ponto Abstrato 144
Eucanaã Ferraz 146
Ronald Polito – Rotor 149
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Editorial
FECHA-SE UMA PORTA...
A revista.doc inicia suas atividades com nova aparência (será possível?), inovada cara -
da publicação impressa, espontânea (Do it yourself, Bill Gates não sabe o quanto o feitiço
voltou-se contra o feiticeiro!), da publicação em xérox para as telas da rede. Sim, foi nos
corredores da UFRJ que o projeto virtualizou-se, somado à força, à idéia e ao vigor de
novos companheiros (não há referência alguma ao novo governo, mas já se referindo...);
entre eles, André Gardel, Francisco Bosco, Alberto Pucheu, Marcelo Diniz, gente tão
engajada como os de ontem (Túlio Villaça, Eduardo Guerreiro, André Luiz Pinto, Edison
Veoca [cadê você meu filho?]). A .doc - irmã mais velha da Garrafa (fecha divulgação) -
só tem a agradecer; e a abertura aqui é de todos, para todos, em prol de todos. O marginal
legitimou-se (ou deu-se o contrário?). Muitos agradecimentos (a lista seria maior que o
site, façamos o site ‘agradecimentos’ [sic]), João Camilo, Vera Lins, todos os docentes e
discentes que confiaram e ainda confiam nesse projeto. Ser de todos, para todos, em prol
de todos significa: a responsabilidade - ainda que virtual (e por que este ‘ainda’? fecha
janela) - do espaço público. Esse é um espaço que pretendemos prestigiar o texto, não o
autor. É seu anonimato, como todo anonimato que um dia fizera dos professores, dos
alunos de letras, formadores de opinião, o estranhamento e a vontade de assumirem a
literatura nas suas vidas. João Camilo e Vera Lins, voltamos a agradecer. O navio está no
ar. Óbvio que faltam detalhes. Sempre será assim. A internet nos ensinou a trocar o pneu
com o carro andando. Nota: Chico Bosco não é tão novo na .doc; é mais antigo do que
vocês podem pensar. Digamos: de ontem para hoje, ele começou a participar da revista
às três e meia da madrugada. Madrugamos com ele; pela ‘amizade’ (trocadilho infame,
irresistível). A revista .doc, na espontaneidade de sua pre-sença (!!!) convida todos a
participar; esse é o lugar onde o kitsch e o cult experimentam-se, “o nu e o vestido se
enfrentam, absolutos” (salve Armando); a revista .doc, agora em rede, no aperto das
trincheiras de fronteira, com a granada na mão. A .doc convida. Abrem-se as janelas.
André Luiz Pinto - editor (melhor, um dos).
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André Luiz Pinto, nascido no Rio, 1975, é poeta; formado em Enfermagem e Obstetrícia pela
Universidade do Rio de Janeiro (UNI-Rio), atualmente cursa o sexto período da faculdade de Filosofia
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), como bolsista de extensão. Autor dos livros: Flor
à margem (1999), Primeiro de abril, ainda em prelo, para 2004.
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Donizete Galvão, poeta mineiro de Borda da Mata, chega a seu sétimo livro,
mundo mudo, após uma trajetória de quinze anos de edição, onde seu tema principal
consistia na experiência de imigrante que ele fora e é, ao largar o interior de Minas para
o anonimato da cidade de São Paulo. Donizete parece ter encontrado, nesse novo livro,
uma síntese que não só conflui suas indagações sobre o campo e a cidade, como
coaduna aspectos estilísticos difíceis de serem reunidos: consistência e simplicidade.
Este livro, entretanto, pode vir a soar para os leitores de Donizete uma perda nas suas
metáforas e algum maneirismo, que até aqui se mostrou fundamental para sua
caminhada de aprofundamento temático. Mundo mudo, e é isso que procuraremos
apresentar, mostra-se como um salto em relação às obras anteriores, não no que diz
respeito à riqueza das metáforas, tampouco unicamente pela concisão. Donizete Galvão
parece determinado, como já afirma no texto de orelha de seu livro anterior,
Ruminações, ao citar Francis Ponge, “o mundo mudo é nossa única pátria”, em trazer à
tona, do balneário nadificante das coisas imersas no mundo, entes destacados do mundo
que se negam à totalidade, que se revelam tão díspares, que seu modo de ser perde
qualquer esteio, só respondem pela singularidade.
Mundo mudo é um recanto de coisas que não se querem no mundo, que, no
fundo, reclamam para si, pela voz do poeta, uma palavra: como no caso do poema
Deformação (p. 74), onde a “pomba suja”, “urubuzinha da metrópole” é esmagada
diversas vezes, até seu corpo deformar-se numa “chapa”, numa “pasta”; liquidificador
no submundo da cidade. Eis os sinais de um simulacro. Se tomarmos o mote da
filosofia, podemos dizer que o simulacro é um sinal de antinomia ao ser e ao mundo
totalizado; o simulacro, sombra de Platão, está sempre ligado a nós, e díspar de nós
mesmos. Vezes à frente, vezes atrás, as sombras dependem da posição do sol. As
sombras não podem ser engolidas pelas luzes, nem mesmo de uma lâmpada; as luzes da
cidade, representadas na Lâmpada (p.48), procuram ocultar as sombras, entanto são as
luzes artificiais, com seu poder artificial, que produzem as sombras e as concedem
autonomia.
Esses simulacros guardam um “artefato de perfeição” (p. 46); seja a lâmpada,
que por ser produzida industrialmente, já se trata de uma cópia (“De tanto ser vista,/
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gasta-se a beleza/ das coisas que em si/ guardam a perfeição”), ou a berinjela re-descrita
por Donizete a partir do poema de Cláudia Roquette-Pinto (“A berinjela irradia/ um sol
às avessas/ explosão do roxo”). A berinjela é descrita por Donizete como filha de
Vishnu. Vishnu, segundo a mitologia hindu, está diretamente ligado ao evento da morte
e da destruição; tudo está a um passo de ser destruído ou re-criado, de tornar-se
simulacro de si, de encarar-se diante do ridículo, do imprevisível e do nonsense (“E
você vai ficar/ com o diploma de corno/ na mão”, Lapidário órfico, p.47). Donizete opta
pelos entes mundanos, objetos e animais, do que aos homens; é a vingança das coisas
diante da instrumentalidade, tornando o próprio homem mais um objeto, destituído de
sua essência. Mas essa reviravolta é a ponta de um iceberg de um mundo humano mudo
que já está aí: “Agora,/ homens são coisas,/ badulaques pendurados/ como galinhas na
peia/ pelas feiras,/ de cabeça para baixo/ à espera de compradores”; é uma mudez que
assumimos ao mundo. É um homem vestido de espantalho assustando “os pássaros/ da
plantação de arroz” (Arrozal, p. 18). Donizete Galvão, sem desfazer da temática do
imigrante, desdobra seu olhar cindido para outras dualidades: a do corpo e da alma em
Cisão (p.28), dos homens e dos objetos (vale à pena citar os versos, “sem os objetos/ o
corpo não tem gravidade/ diapasão/ rumo// o corpo precisa de contrapesos:/ a mesa/ a
porta/ a cama” , p.37). O enredo da ruralidade permanece, é um mineiro e sua Minas
que se debate nas grades, e uma cidade que agora parece vencer a resistência do meio,
projetando seus tentáculos para todos os cantos.
Um poeta, dizem, pode tomar duas iniciativas após um caminho percorrido: ou
se aprofunda nas veredas que já trilhou, ou se atira no abismo de uma nova verdade –
estilo, tema e preocupações novas. Uma leitura predisposta a juízos que apreciações,
pode reforçar a idéia de que o recente livro de Donizete não oferece expectativas que o
destaquem em relação aos livros anteriores; discordamos, e até entrevemos nisso uma
leitura limitada, a um livro que exigiu de seu autor abdicação de algumas de suas
conquistas mais significativas. Mundo mudo reporta a uma radicalização que eclode
num território anterior à própria escrita. Contradizendo Wittgenstein, é preciso ouvir o
que prefere calar. Estudos para Paulo Pasta (p.50-53) reporta à zona de risco da morte,
porque “não há remédio”; e para com a vida só nos resta “os véus/ do invisível/ em seu
vôo breve”. Mundo mudo é a fala em primeira pessoa que se emudece para que o outro
venha. A frase de Rimbaud, je suis un autre, repercute nesse livro sob nova roupagem,
um desejo de comunicação que simula novas representações. Tal como em Vishnu,
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Baco ou Jesus, o poeta se oferece em sacrifício; pois só se sacrificando, “Virá/ virá a
aurora/ Não mais para mim” (Outra aurora, p.32). Se o poeta não inova seu recorte
léxico ou semântico, reforça os motivos que o levaram a escrever, de que o mundo não
está para ser apreendido; que por detrás da linguagem, não figura a lógica da política e
do interesse. É “a sua dor/ e a dor alheia” que respondem por esse mundo, caminhar
autóctone do caramujo que rasteja suas vísceras (Caracóis, p.38).
Cada poema desse livro parece ressoar o pedido drummondiano por “mãos
dadas”. O escritor não evoca para si a fala do mundo, entanto por ele fala o mundo, ao
pôr o mundo em destaque. Para que o mundo possa ser ouvido, é preciso fazê-lo ouvir.
O escritor põe em relevo uma tela em que ele, e por que não dizer, nós pintamos. A
citação de Emílio Moura no poema Estudos para Paulo Pasta, não nos parece arbitrária,
“É a tela a vida?/ Nós a pintamos?”; é o jogo reflexivo de uma consciência que anuncia
o mundo, pois, sem este jogo, a consciência, e por que não dizer, toda escritura, perder-
se-ia “no limiar da dissolução” (p.50). Uma descoberta que não ocorreria por modismos
ou por vanguarda. O cosmopolitismo de São Paulo, Donizete já não consegue resistir,
avança por todos os lugares, os santos estão sendo roubados, é preciso prendê-los
(Santos nas grades, p. 58-59). Borda da Mata já não precisa ser dita, nem comentada;
ela é a resistência de cada homem em seu subúrbio. É o feitiço contra o feiticeiro,
porque ao instrumentalizarmos tudo, instrumentalizamos a nós mesmos. Despimo-nos
de tantas falácias, que não nos tocamos que o rigor também é uma falácia, e que a casa
do ser não é a linguagem, mas a vida.
O poeta abdica de escrever sobre sua cidade natal, a prosódia de sua terra, no
intuito de apontar o fato de que nós somos únicos e de que essa singularidade reporta a
uma solidão comum; como no poema Exílio (p.73), onde a imigrante vê-se obrigada a
declarar sua morada: “Não sou daqui, não/ Sou de Aracaju, Sergipe”. O lar não se trata
de um instrumento, mas um projeto, o coração de uma vida. Simplicidade e consistência
objetivam um anonimato, uma escritura anônima; que aqui não é marcada por
vocabulário e arcaísmo regionais, mas pelo que há de universal, sem ser impessoal, por
uma objetidade, sem ser prosaica. Os homens reclamam para si uma transcendência.
“Não sou daqui, não”, dito pela sergipana, encontra ressonância com a máxima cristã de
‘meu reino não é deste mundo’. Jesus reclama para si um mundo onde reconheceriam
sua realeza; Buda, sendo príncipe, não reconhece o palacete como lar. Eis o terreno de
uma cisão, de uma falta que nos habita. Os títulos das seções do livro apontam para isso:
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a noite das palavras, os homens e as coisas, e por fim, os homens sem moradas. As
palavras não dão conta dos tropéis da humanidade (vale à pena os versos de Os nomes,
p.15, “Quisera, agora/ repartir com você/ todos os trabalhos/ e os dias./ Sei – e como
dói/ só o saber nesta hora –/ os nomes que me confundiam/ quando a cabeça/ estava
mergulhada em livros.”), elas se perdem em sensações e sentimentos. As palavras, neste
livro, tomam o lugar da mera figuração. O que importa aqui não é o jogo das metáforas,
mas enunciar, em meio à contradição que isso representa, os fatos sem proposição, os
objetos sem nomes, como se o acontecimento pudesse ser apontado (Diz o poeta em
Lady Macbeth, “Que vê/ quando me vê?/ Um cão,/ um ladrão,/ um osso,/ um fosso,/ um
traste,/ um rapaz/ de olhos tristes?”).
Mundo mudo reduz seus recursos no intuito de afirmar o mundo, não como ele é;
mas o que, de fato, ele é. Diz o poeta em Vôo cego, p. 67, “Somos susto,/ fiasco,/
chiaspa,/ fisgada de espinho./ À anos-luz/ de distância,/ nem nos pisca/ o Infundado,/
esse criador/ distraído/ e equivocado.” É a ausência que reverbera seu anonimato no
palco da existência. Teogonia da orfandade que não escuta a voz de Deus. “Quisera ser
de novo/ o filho que engraxaria/ os seus sapatos/ e os deixaria/ na escada do alpendre/
sob o sol da manhã./ Escovados,/ lustrosos/ para a missa de domingo” afirma o poeta
em Os nomes, p.16. Não há maior humildade que um homem debruçado em seu
trabalho. Ainda mais para seu pai. É a humildade de um mundo que se cala para ouvir.
Não havendo como ouvir os mortos, ou os que não podem nascer, resta prestar atenção
a outros órfãos no intuito de ouvir a si mesmo. Toda uma sinceridade e despojamento
que habitam o poeta. Revolução silenciosa, na informalidade, despretenciosa da
vanguarda. É o anonimato de si, valor único e imponderável, que reverbera naquele que
parece o mais belo poema do livro, Solitude, p.23, “Juntos, em solitude./ Cada qual com
sua chaga./ Cada qual com sua cruz./ Dois corpos antes tão próximos,/ separados pela
geografia/ que a mágoa desenha”. O poeta ainda pergunta, “O amor morreu?/ Não.
Condensou-se”; pois o amor não se conserva, preserva-se, “nessas mãos tão íntimas,/
que, mesmo durante o sono,/ permanecem bem fechadas”. Os poemas desse mundo
mudo não devem ser ignorados e despercebidos; ao contrário, eles nos pedem re-leituras
sobre um mundo que, no fundo, é nosso convívio constante.
Rio de Janeiro, Outubro de 2003
André Luiz Pinto
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É um filme extraordinário. Os meios de comunicação fizeram dele algo
ordinário. E, em geral, as pessoas tendem a repetir o que eles dizem. Pena. Não
incentivam a uma visão mais atenta e nem convidam a pensar e a refletir. Daí poder se
dizer deles que são ordinários. Não educam. Então no que diz respeito a este filme só
disseram banalidades. As críticas que tenho lido prendem-se, em geral a aspectos
secundários. Ou então criticam o que o filme não tratou, mas gostariam que tratasse.
Porque não é assim, não é assado: esse seria o filme de quem critica e não o do Mel
Gibson. Há dois problemas, em geral, nessas críticas, provindas de preconceitos. O
primeiro é historiográfico: foi assim, não foi, houve essa violência, não houve. Os
evangelhos não narram isso. Ora, a obra de arte cria a própria realidade e não representa
nada. O que representa a obra de Proust? O que representa Grande sertão: veredas? Se
representassem ficariam reduzidos a meros documentos ou reportagens da época. O
poder manifestativo da obra de arte cria o próprio tempo, o próprio real, um real sempre
em construção. A historiografia nada sabe nem tem a dizer sobre obras de arte. O outro
é mais arraigado: o positivismo com sua secularização. A ciência moderna estabeleceu
como único real o que ela apresenta como real e verdadeiro. Só há uma verdade: a
científica. E então a paixão amorosa não é verdadeira? Nem por isso é científica. O
extraordinário não é real para o positivismo. E aí qualquer dimensão do sagrado se torna
ou ficção ou ilusão ou superstição. É a prepotência da ciência, hoje ultrapassada. A
própria ciência não consegue entender a natureza, daí haver mais de uma teoria. Mas o
ranço positivista e secular ainda perdura. Porém, o sagrado e o mistério se fazem
presentes em toda obra de arte, se for grande.
Ora, justamente, o filme tem como centro o sagrado e o mistério, ligados ao
próprio homem e sua dimensão sagrada.
É um filme extraordinário. Como poucos. Em geral, os filmes de cunho religioso
não se abrem para o questionamento, porque presos a um sistema religioso. Este foge
totalmente a essa regra.
Em termos de mergulho na cultura ocidental dá uma visão profunda e inovadora
da figura do Cristo e seu significado para os muitos povos e culturas que adotaram e
experienciaram e experienciam a possível boa-nova de Jesus, que transformada em
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sistema levou povos e culturas à morte violenta e à destruição. Mas não culpemos Cristo
por isso. É o que nos quer fazer ver Mel Gibson e seu A paixão de Cristo.
Vamos logo ao aspecto mais criticado: a violência “exagerada”. O diretor põe a
mão nas chagas das contradições humanas e isso choca. Ficam com saudades daquele
Cristo doce e suave, cheio de luzes e auras, de choros patéticos para atingir a
sensibilidade dos espectadores. Nada disso acontece no presente filme. A violência deve
ser vista no todo do filme e não isoladamente. Essa violência precisa ser vista também
não como uma representação da violência que romanos e judeus praticaram num tempo
remoto, o tempo de Jesus. Isso seria banalizar o real sentido da figura do Cristo.
Inteligentemente, o diretor faz uma leitura da violência que não aconteceu no passado,
mas acontece hoje. Senão Cristo nada mais seria que uma figura histórica que sofreu
muito e deve ser adorado como salvador e pouco ou nada mais tem a dizer a nossa
época. Não. A violência de que trata o filme é a violência que hoje e como sempre se
pratica para com todo e qualquer irmão de Cristo, para com todo e qualquer homem em
qualquer época e lugar. A violência do filme nada mais faz do que nos lembrar de que
estamos continuamente praticando aquela violência, aqueles sofrimentos. O sofrimento
dos palestinos, dos israelenses, dos iraquianos, dos espanhóis e dos americanos mortos
nos atentados é menor? É menor a violência do sistema para com os marginalizados, os
pobres, os excluídos, as populações civis nas guerras recentes do Afeganistão e da
Bósnia e outras? Certamente não. Onde então o exagero?
Cristo como que chamou a si toda violência, a violência de todos e de todos os
tempos. Ele é um símbolo das contradições humanas. E nisso está o seu poder simbólico
humano e sagrado. Simbólico no sentido da epifania do sagrado e do extraordinário na
vida dos homens pelo qual se tornam homens. Ele é uma figura mítica atual e
extraordinária, porque nele se concentra todo sofrimento humano, mas também a sua
contrapartida: a certeza de que esse sofrimento é o terreno fértil de uma nova vida, do
renascimento, de uma ressurreição que pode acontecer a cada novo dia, com cada ser
humano. E até nisso o filme é genial.
Mas antes de tratarmos disso, vejamos outra banalidade que os meios de
comunicação tomaram como importante, desviando a atenção do que é essencial. É a
questão: os judeus mataram Jesus ou não? É uma falsa questão. Se se caísse no absurdo
de dizer sim, teríamos o paradoxo de que Maria, sua mãe, judia, os discípulos, judeus,
Maria Madalena, judia, e tantos outros judeus que não estavam ali e eram amigos de
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Jesus, judeu, mataram Jesus. Um absurdo. Que a cúpula religiosa judaica planejou e
executou a prisão de Jesus e fez com que Pôncio Pilatos, tão-somente um representante
dos romanos, decretasse a sua morte isso é evidente. O filme nada esconde nem tem
porque esconder. As ações de um grupo dominante do sistema não podem ser
estendidas a todo um povo, que não foi consultado. Eles não agiram em nome do povo
judeu, mas em nome próprio. Isso fica evidente no filme e mais evidente quando um dos
membros da cúpula dos sacerdotes se põe contra os demais e se afasta. Nem toda a
cúpula do sistema esteve a favor dessas ações violentas e injustas. Como imputar então
essa morte aos judeus? Na realidade, o povo judeu foi a primeira vítima das ações
insanas da sua cúpula dirigente. A História está cheia desses exemplos. Em todos os
povos.
Para penetramos nos múltiplos sentidos do filme, devemos ter em mente em
primeiro lugar que Mel Gibson não se propôs a contar a vida, morte e ressurreição de
Cristo numa seqüência linear e historiográfica, com princípio, meio e fim, como é
banalmente comum. O seu filme é genial porque se concentra numa profunda reflexão
sobre o sentido da vida e morte de Cristo e de sua presença mítica, poética e histórica.
Nesse sentido ele nos leva para o mistério da presença do sagrado no humano,
transfigurando-o e dando-lhe (-nos) um sentido extraordinário. E isso só é possível com
paradoxos. Sendo o maior deles a reunião numa só criatura das mais profundas
dimensões do humano e do sagrado. É esse o núcleo forte do filme. Isso solicita
reflexão e abertura de escuta diante da figura excepcional de Cristo. É muito fácil cair
numa dicotomia excludente pela qual se vê em Cristo ou o homem ou o deus. Ou isto ou
aquilo. Ele é muito mais: ele é o mistério vivo e insondável. E é isso que o filme nos
propõe para reflexão. Por isso mesmo é um filme trágico. Mas então quando chamamos
para cena as figuras trágicas tradicionais aí é que se destaca toda grandeza da figura e
sentido de Cristo. A falsa opção humano ou divino esconde todo vigor e todo sentido
desse símbolo mítico vivo e atuante em nosso e em todo momento histórico, e de busca
de redenção e elevação do humano, da própria construção poética do homem e do real.
A dramatização desse grande paradoxo é que faz desse filme algo único e
extraordinário em relação às mais diferentes abordagens anteriores sobre o que ele
significou e significa ainda hoje. É um filme denso e concentrado. Ele se passa, como
nas tragédias, no decorrer das últimas vinte e quatro horas da vida de Cristo. Já nisso o
filme é inovador. E um filme profundamente humano que aponta para a dignidade e
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para o extraordinário do homem. Mostra o homem em sua liminaridade ambígua, pela
qual, ao mesmo tempo se move no que há de mais denso e real no homem: a dor, o
medo, o suar sangue, a angústia e o apelo do sagrado pelo qual tudo se transfigura. Essa
transfiguração é a difícil e trágica ascese da conquista da vida pela morte. Essa é a
experienciação mais radical do homem em sua dimensão sagrada. Essa é a questão
maior do filme: a tensão de eros/thanatos, vida/morte. E que há de maior em nossa vida,
na vida de cada um, do que essa experienciação pela qual realizamos ou não o que
somos. O caminho da vida à morte é o caminho da morte à vida.
Por isso o filme começa num momento altamente dramático: no horto das
oliveiras, prestes a ser traído e preso. É o anúncio da morte. E sua sangue. Chegou a sua
hora e vez. É o início do caminho em direção à morte. Nesse caminho e caminhada se
dará a realização do paradoxo: a morte que se torna vida. Como nos diz o fim do filme,
quando Cristo aparece ressuscitado, mostrando que morrer é preparar a ressurreição. É
uma cena simples e discreta: nem aparece o corpo inteiro, glorioso e cheio de aura como
é costume. Não. Como falar ainda de aura em tempos indigentes e superficiais e de
banais sensações estéticas como o nosso? E nisso, de novo, o filme é genial. O que
aparece? A mão de Cristo se movendo, mas na qual estão os sinais vivos da crucifixão:
a chaga já curada feita pelos pregos na mão, no Cristo ressuscitado. Esta mão simples é
o testemunho vivo da morte e ressurreição. Por que esta discrição em relação á
ressurreição? Por que nada daquelas figuras diáfanas e iluminadas já tradicionais? Ele
não cai nessa simplificação e banalidade. Seria desviar a atenção do espectador e de
todo ser humano de sua verdadeira condição. A ressurreição de Cristo só tem
importância se implica a ressurreição de cada um, ontem, hoje, amanhã. Agora. Como
Cristo fez isso? Como isso é tematizado no filme? Em relação às visões tradicionais isso
é um questionamento profundo. Ele não banaliza o sagrado com falsas auras. Mas, de
novo, não nos podemos deixar levar por superficialidades e idéias preconcebidas e
interpretações estereotipadas e banais. Essas figuras de Cristo tão brilhantes nos alienam
numa idéia e imagem que não fala para cada um de nós em nosso cotidiano e em nosso
interior mais íntimo, onde se dá a vida como experiencação da morte não como fim,
mas como ressurreição. Quem não ressurge a cada dia, a cada hora, jamais um dia irá
ressurgir. E é isso o que o filme nos diz. Certamente todos os que já estão alienados e
deformados por lugares comuns que nada têm a ver com a vida dura e ascética do
cotidiano, gostariam de ver um Cristo glorioso, brilhante, subindo aos céus, não se sabe
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para onde, para que céus. O filme desfaz essas idéias alienantes e nos põe em contato
com nossa condição real e cotidiana: a de que viver é transfigurar-se pelo sentido do
sofrimento e da morte.
Que ressurreição é então essa? Sobre o que não se dev e nem nossa língua pode
falar o melhor é calar-se para que o silêncio fale. E sobre o que não se pode falar senão
experienciar? Sobre o mistério, sobre o mistério da ressurreição. E por isso o filme cala.
Quando se faz da ressurreição uma imagem, substitui-se a ressurreição pela imagem,
desfazendo o mistério. O filme prefere calar-se. Aí o mistério da ressurreição pode
invadir-nos e transfigurar-nos pela voz e vigor do silêncio.
Mas essa cena simples, densa, revolucionária não poderia acontecer se não
estivesse interligada com o todo do filme, com a densidade e profundidade do filme,
uma verdadeira obra de arte, uma verdadeira obra do sagrado e sobre o sagrado,
descendo, portanto ao âmago do humano, onde ele se transfigura pela epifania do
sagrado, redimensionando e dando sentido ao limite de toda liminaridade humana. Esse
final denso e brilhante é preparado pela ação central do filme. E aí é que se dá a maior
criatividade.
Os críticos e espectadores, acostumados a ver uma história linear, em que a vida
de Cristo se dá numa sucessão de cenas e fatos que se coroa na crucifixão e ressurreição
são surpreendidos por uma inovação radical. É essa inovação que não é percebida. O
filme narra os últimos momentos da vida de Cristo: a sua presença no horto das
oliveiras, a traição de Judas, a sua prisão, interrogatório e julgamento, contra todo
direito e costume, feito à noite, o encaminhamento no manhã seguinte às autoridades
romanas, uma vez que não o podiam condenar à morte, o julgamento dúbio e injusto, a
flagelação e, finalmente, a condenação à morte e a caminhada para o calvário, onde
será crucificado. Se o filme narrasse só isso estaria repetindo o que já se fez centenas de
vezes e cairia numa banalidade gratuita. É nessa armadilha que os maus críticos e os
espectadores desavisados caíram. Ficaria reduzido à violência e escárnios humanos.
Todo o filme está constituído e tecido na presença dessa violência tanto interior
como exterior. Começa com a tremenda solidão no horto, os discípulos dormindo, e,
pressentindo que seu kairos (termo grego que diz momento oportuno, de plenificação)
chegou, o homem-Jesus lançado na maior de todas as angústias e solidões: só,
abandonado, traído, busca na oração, no sagrado a força para o enfrentamento da dor e
da violência, e para a realização do seu sentido e transfiguração humana, vigor e
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vigência de toda transfiguração humana. Porque se não fosse a dor e violência de todo
homem, essa dor, violência e solidão não teria sentido. Nesse momento Cristo é todos
os homens em todos os tempos. Ele é cada um de nós. É a caminhada de todos os
homens e também a possibilidade de encontro da dignidade e libertação de todos que
ele realiza.
Mas a seqüência narrativa tradicional do que ocorre depois da prisão no horto
não teria maior significado e sentido se não houvesse uma outra seqüência narrativa, a
que não se presta atenção. E é ela que dá sentido a toda violência e à morte. Há
contraponto entre esses últimos momentos dramáticos e as cenas intercaladas que
precederam esse momento final e que lhe dão sentido. São as falas e cenas da vida
anterior de Cristo, contracenando com as cenas de violência. E isso é que é essencial. A
violência não é gratuita nem encontra explicação em si. Ela tem de ser lida e apreendida
nessa outra narração, nessas outras ações. Na reunião e conjunção das duas narrativas.
Elas foram tiradas de diferentes passagens dos evangelhos. Uma ou outra ação e cena é
que é “inventada” e introduzida pelo diretor, tendo em vista a sua leitura criativa da
vida, morte e ressurreição de Cristo. Destaca sobretudo o amor cuidadoso e carinhoso
da mãe. E isso é absolutamente real e natural. Ninguém nunca negou o carinho e
desvelo das mães. Por que Maria não teria sido? Ainda mais que, em seu silêncio
significativo, se sabia a eleita, como o anjo lhe tinha anunciado. O sofrimento, o
silêncio e a presença da mãe são de uma beleza sem par.
A segunda narrativa se compõe de poucas cenas, de poucas falas, mas
essenciais. Elas estão plenamente integradas no todo que é essa obra de arte. Contudo,
sem elas, a violência seria exagerada e até de certo modo gratuita. Tudo muda quando
se presta atenção a essas falas e cenas.
E as mais densas e essenciais são as da última ceia. Ela é narrada e inserida aos
poucos, em momentos escolhidos. Não é linear, porque nada no filme é linear. Tudo
tem um sentido universal e concreto, vivo e essencial, válido para todos os tempos e
lugares. É um acontecer. É verdadeira poesia trágica. Na ceia se fala de corpo e sangue.
E o que vemos desde o início como sendo aparentemente a narrativa linear e principal: o
corpo e sangue de Cristo evidenciado pela violência. Mas aí duas violências confluem,
deixando de ser uma e outra, para trazerem a epifania do homem, simbolizada na
ressurreição. Ressurreição é isso: o corpo e o sangue do homem transfigurados no e pelo
sagrado. Que duas violências? Quando Cristo na última ceia diz que o pão e o vinho
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que lhes oferece é o seu corpo e sangue que será entregue por todos os homens, não se
trata de um simbolismo pro forma, tão caro a uma visão em que se separam corpo e
espírito. Não é o corpo e sangue espiritual, mas o corpo e sangue concretos que serão
transfigurados pela violência real de que será a vítima. A violência só se explica como
fogo transfigurador. Se não houver isto então realmente será gratuita. Mas não é. É uma
violência concentrada, única, permanente, que valerá para o que foi, é e será. A ceia tem
esse sentido, um sentido de acontecer para todos os tempos e homens. Caso contrário
não teria sentido. Ela diz respeito a todos os homens. Limitar a violência e seu
significado aos judeus é de uma miopia flagrante e absurda. O drama trágico de Cristo é
o drama dos homens. A ceia é um acontecer humano permanente e irreversível. Nela e
por ela o homem se transfigura e ressurge.
A grandiosidade do sentido deste drama trágico para os homens aparece quando
o comparamos a outros dramas trágicos como, por exemplo, o de Édipo e o de
Antígone. Ele é prefigurado por Prometeu. Mas em Cristo se dá o castigo do sagrado e a
transfiguração pela ressurreição (que não acontece em Prometeu), onde a dimensão
humana e sagrada se integram e redimensionam. Nem o homem é mais o mesmo
homem nem o sagrado é mais o mesmo sagrado. Um novo horizonte surge para o
homem e para o sagrado. Isso o filme nos faz pensar e refletir, e nos mostra de uma
maneira tensa, dramática, maravilhosa. Com uma fotografia excepcional, com uma
realização técnica impecável. E por isso é extraordinário.
O homem perdido em tempos de pós-modernidade, meio às realidades virtuais,
em que os sistemas são cada vez mais operantes e presentes, gerando uma violência
cada vez maior, tanto interna como externa, uma reflexão profunda dessas é de uma
atualidade sem par. Como se pode dizer que o filme é violento? Não serão nossos
tempos que serão violentos? Com um senão, é uma violência sem fim, sem sentido. E o
filme faz justamente o caminho inverso. Expõe toda crueldade gratuita dos homens e na
dupla narrativa o seu sentido e possibilidade de transfiguração. É um filme sobre nosso
tempo e para nosso tempo. Quem tem olhos para ver? Quem tem ouvidos para ouvir?
Não os meios de comunicação, não os críticos desavisados e superficiais.
No entanto, o filme está fazendo sucesso, apesar dos críticos e das falsas
questões. Mas será mera curiosidade? Na base do vai ver como é violento. Certamente
não é só isso. Pulsa no homem, em todo homem, em todos os tempos, essa ânsia de
superação da angústia, da solidão, do sofrimento, da dor, da violência, por um sentido
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que o transfigure e lhe afirme a certeza de que fomos feitos para a ressurreição. Que
ressurreição? Por que não ficar com a do filme, onde a simplicidade e o silêncio nos
convidam a experiênciá-la como o abismo insondável do mistério. Nela e por ela o
humano recebe o seu sentido. Jesus, Cristo, sua mensagem, seu evangelho, sua vida e
morte, é simplesmente isso: o anúncio da libertação pela transfiguração da vida em
morte e da morte em vida, a ressurreição.
Apesar e contra todos os sistemas. No filme, outro ponto alto, os sistemas, sejam
políticos, sejam religiosos, são reduzidos à sua truculência e ao seu poder aparente.
Nada mais que isso. Ontem como hoje são sempre os sistemas, os mesmos sistemas
com outros nomes.
E por que eles agem assim? Eles representam a verdade. Esse é outro ponto alto
do filme. Jesus foi entregue pelos sacerdotes a Pôncio Pilatos para que o condenasse à
morte. Não o fizeram eles porque os romanos não o deixavam. Mas sensatamente, e
advertido pela mulher, Cláudia, o governador romano não quer condená-lo. E tenta
arrancar de Jesus algumas palavras que o ajudassem a salvar. E Cristo só lhe diz coisas
estranhas. Aberto para o extraordinário, mas ciente do seu aparente poder, Pôncio lhe
diz que tem o poder de o inocentar ou condenar. E escuta a contraditória resposta de que
nenhum poder teria se não lhe fosse dado pelo alto. Perplexo, lhe pergunta em seguida,
quem ele era. E nova perplexidade: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. O caminho, é
evidente, é o percurso que se faz para achar a vida. Todos os nossos empenhos se fazem
tendo em vista o Penhor: a vida. Mas que caminho então seguir? Só há um: a verdade.
Caminho, verdade e vida são um e o mesmo. Quem é este mesmo? Cristo. Não se trata,
portanto, de conceitos abstratos. Em todos os mitos esses procedimentos são normais.
Eles não se expressam por conceitos abstratos, mas por imagens concretas. Cristo é a
imagem concreta e o conceito. Cristo é a verdade. Mas o que é a verdade? Essa é a
pergunta que desde esse momento, para nunca mais o deixar, faz Pôncio.
Mel Gibson dá especial importância a essa passagem, tornando-se central. É um
momento decisivo. É o julgamento. Decide-se o quê? Vida e Morte. Decide-se a
verdade. E há três grandes atores: o poder romano, Pôncio Pilatos, o poder religioso
judaico, depositário de uma revelação, da promessa de um Salvador, e Cristo. Toda
verdade é portadora de um poder. Quem tem a verdade, quem tem o verdadeiro poder?
Entre as três verdades como reconhecer a verdade? Cristo já anunciara em suas falas à
multidão que viera para dividir e confundir. E é o que faz no momento decisivo. Ele, o
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frágil, o preso, o desprezado, espezinhado, acusado, reprimido, esmagado, perseguido,
ele, o não do sistema-poder-verdade romana, o não do sistema-poder-verdade judaica,
como poderia se afirmar a verdade se não fosse ele ali naquele instante a não-verdade?
Ou seja, a verdade da não-verdade? Como poderia ser o caminho se estava só,
abandonado? Como poderia ser a vida se estava prestes a morrer? Só se fosse o não-
caminho dos caminhos, a não-vida das vidas. Mas não era morrendo que ele podia e
dava vida? Não era o não-caminho dos caminhos para poder ser o caminho de todos os
caminhos? Em sua fragilidade, em ser o não-sistema, em ser o excluído, em ser o que
está à margem, em não-ser a verdade dos sistemas é que ele podia e era o caminho, a
verdade e a vida. Cristo não enuncia e anuncia um paradoxo: ele é o paradoxo, onde
não-ser é ser mais. Ele é o louco da sabedoria da cruz. Cruz da encruzilhada de homem
E deus, de histórico E mítico, de verdade E não-verdade, de vida E morte, de eros E
thanatos, a experienciação de todas as experienciações. Cristo, o ungido. Pilatos não
simboliza o poder romano, simboliza a crise do poder. Os sacerdotes judeus não
simbolizam o sagrado, simbolizam o limite e crise de todo religioso. Pilatos e os
sacerdotes simbolizam a crise da verdade. Uma verdade que se lhes nega porque lhe é
anunciada a verdade da não-verdade.
Por que Cláudia se faz a portadora especial e avançada dessa verdade perante
Pôncio, perante os sacerdotes? É outro lado importante e maravilhoso do filme: a
presença e ação das mulheres. Se dirigirmos o foco sobre elas, novo paradoxo. Elas não
falam e, no entanto, como falam. São uma das presenças mais marcantes do filme.
Densas, contidas, trágicas, depositárias de toda ternura e compaixão, sua fragilidade é
de uma força extraordinária. Perante o brilho da força dos sistemas, lá estão elas com
sua força de mulheres, a cura e desvelo pelo que embora esteja claramente se mostrando
e desvelando permanece oculto: Cristo que sofre e é levado para a morte, a fonte de toda
alegria e vida. Ninguém lhe dá atenção e nem se importam com elas e, no entanto, são
as guardiãs do enigma da mãe Terra, da fertilidade, da vida que pulsa na morte, elas o
sabem de experiência feita: elas também não morrem a cada filho, a cada nova vida?
Morrer para dar vida. Elas o sabem. Elas velam com desvelo o Cristo, o ungido. As
mulheres se calam para falarem mais alto e profundamente. A presença e lugar das
mulheres no filme é um dos pontos altos. No centro do drama trágico do homem/deus
elas são o silêncio que traz confiabilidade, esperança e libertação. Elas não falam, mas
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escutam. Elas são o contraponto das falas e crueldade dos sistemas. Não poderiam ter
papel mais ativo. Até porque a vida é o poder do silêncio. Elas são vida e silêncio.
Mel Gibson poderia facilmente fazer delas algo melodramático. Mas não, pelo
contrário, seu sofrimento contido e expressivo só faz acentuar e dar sentido ao
sofrimento de Cristo. Seus silêncios são um grito de denúncia da violêncio e apelo de
justiça e amor. Não são simples coadjuvantes. Não. Elas fazem o contraponto tenso e
denso das falas, ações e loucuras dos homens, convergindo para Cristo e divergindo dos
homens. Entre elas se destaca a presença de Maria, a mãe de todas as mães, a mãe
símbolo de nossa maltratada mãe Terra. E levada ao auge da dor, numa cena belíssima,
ela se arroja na mãe Terra e se une a ela apanhando-a em suas mãos, que, lentamente, a
deixam escorrer. Como se só a mãe Terra fosse abrigo de sua dor e a compreendesse e a
recolhesse. É nessas pequenas cenas e detalhes que uma grande obra se diferencia e
afirma.
Como as mulheres, Cristo também pouco fala, só o essencial. Só os homens
falam. Das muitas falas dos evangelhos, a seleção do diretor é de uma densidade
desconcertante. Nada é supérfluo, nada é retórico, nada é estético e diletante. Sem
dúvida, assemelham-se às falas densas e oportunas e próprias das grandes tragédias
gregas, sendo A paixão de Cristo, por sua concentração, questões e experienciação a
tragédia das tragédias. Na realidade há pouca ação no sentido de grandes deslocamentos
ou sucessão de fatos. São ações escolhidas e centradas na dor ou sarcasmo humanos. Há
um jogo constante e maravilhoso do desempenho dos atores pleno de expressividade e
interioridade e o movimento das câmaras.
Entre os pontos altos está o da presença do diabo. Seria tão fácil cair na
tradicional apresentação do diabo como o centro de todo mal, uma figura, afinal,
ridícula que de repente perde o poder ou então se retira não se sabe bem para onde,
quando não para um pretenso fogo do inferno. Mas não. O mal está nos homens em seu
desejo de poder, arrogância vontade de preservação dos sistemas, e sua verdade que
nada mais tem a ver com os homens nem com o sagrado. Mas não é o mal essencial,
senão toda a dramaticidade de Cristo, sua paixão, perderia o sentido. O mal dos homens
é muito evidente. O do diabo é mais sutil. Ele faz um triângulo com Cristo e Maria, a
mãe de Jesus. Ele se faz presente em Cristo no momento de ele aceitar ou não a paixão.
Nisso consiste a tentação: o homem deixando de se medir pela dimensão do sagrado. O
seu lado humano faz o diabo presente como opção de recuo. O diabo perde, ele aceita a
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paixão. O diabo não fala, não é alguém. É o próprio homem se medindo na sua
radicalidade e pela sua radicalidade: o sagrado, o infinito de toda liminaridade. Ele pode
negá-la optando pela solicitação e tentação do diabo, aquele que está jogado entre (dia-
bolo) e por isso mesmo somos nós mesmos em nossa fragilidade e fortaleza, em nossa
finitude e não-finitude. Cristo vence. Opta pela paixão. E a cobra se torna um animal
inofensivo. O diabo desaparece. Depois ele contracena com Maria. Os dois caminham
em lados opostos, em silêncio. Acompanham Cristo. E Maria fica ao lado do filho e
vence. No final, plenificado o drama trágico da paixão, o diabo perde sua função e
desaparece num esvanecer-se visto do alto. Não há mais necessidade de sua presença
nem ele tem mais lugar no drama humano. Está consumada a paixão. E próxima a
ressurreição, onde não há mais lugar para o entre, para o diabo.
Qual o sentido do drama da paixão? A palavra drama em grego significa ação.
Mas não qualquer ação. Ela é definida e determinada pela paixão. O que esta significa?
Qual o sentido profundo? Já dissemos que a paixão de Cristo não é qualquer drama,
qualquer tragédia. Nela como que se concentra o humano/sagrado em sua mais radical
densidade. Tanta que se tornou o centro em torno do qual o ocidente constrói a sua
caminhada e identidade. Identidade em crise hoje. E é aí que o filme cresce porque se
coloca como reflexão no centro dessa crise. Ele coloca a questão originária: qual o
sentido da paixão de Cristo? Ele denuncia ou nos faz, talvez melhor, refletir sobre o
porquê de tanta violência, ontem e hoje. O que se perdeu? Por que não prevaleceu o
sentido da paixão, lida, como o faz o filme, a partir da última ceia? Não há uma
contradição radical entre a violenta morte de Cristo e o amoroso acontecimento da
última ceia? Por que há uma paixão? O que significa a palavra paixão? O que ela nos
sinaliza e assinala? Por que ela implica essa ambigüidade de amor e morte?
A palavra paixão formou-se do verbo grego pascho. O seu significado geral diz
do experienciar uma afeição, sensação ou sentimento, o estar aberto e disposto para,
estar em disposição. Significa, pois, uma abertura para o sentido do que somos e
podemos ser. Esta disposição varia e pode ter o sentido de experienciar dor e
sofrimento, chegando à morte. Paixão significa então morte. Mas por outro lado tal
disposição pode se voltar para alguém. A paixão exige necessariamente os outros. A
paixão como morte tem então o significado de sacrifício pelos semelhantes. E só se
sacrifica quem ama. E para amar tem que ser algo arrebatador. É a paixão amorosa
transformada na doação silenciosa, o amor. Isso não quer dizer nem pena nem anulação
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do outro, mas diz do sofrer com, do compartilhar dores e alegrias. A paixão aparece
então como compaixão. Finalmente paixão nos remete para a disposição pela qual nos
transformamos e buscamos o outro. É o transformar-se o amador na pessoa amada,
gerando uma profunda e essencial identificação.
Ao dar o título ao filme de A paixão de Cristo e ao centralizar o drama na sua
prisão e morte violenta, e ter como pano de fundo a última ceia, o diretor realizou todos
os sentidos implícitos no verbo grego pascho e realizados na palavra paixão. A morte
violenta de Cristo, sua aparente violência gratuita recebe pleno sentido na doação como
pão e vinho da última ceia, transmutados em corpo e sangue no caminho da paixão e
morte. A paixão e a última ceia significam não só amor, mas o que ele supõe, eros e
thanatos, thanatos e eros: a vida como morte e a morte como vida. E há drama maior
para o ser humano? Nele e por ele o homem se realiza, plenifica e liberta.
A paixão de Cristo, o filme, essa obra-prima, se nos apresenta assim em tempos
de indigência espiritual e consumismo, de fundamentalismos e banalização da violência,
como um sinal manifestador do sentido do humano e do sagrado, das contradições
fundamentais do homem, em sua liminaridade, em todos os tempos e culturas. E não foi
é e será sempre isso a arte? Uma presença que reconduz os homens para as questões
essenciais?
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Andrea Copeliovitch é Mestra em Prática teatral pela USP, Doutoranda em Poética na UFRJ, sob
orientação do Prof. Dr. Manuel Antônio de Castro.
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Palavras Chaves:
Ator alquímico; teatro mágico; sombras; transformação
Resumo:
Antonin Artaud, em sua obra critica um teatro realizado de forma mecânica, através de
técnicas conhecidas para propor um teatro alquímico, capaz de causar uma grande
transformação tanto no ator quanto na platéia, para que este teatro ocorra, é preciso
que o ator seja um ator alquímico, atleta afetivo.
A partir da obra de Artaud vamos tentar percorrer a trilha aberta por algumas
questões que ele nos suscita:
O que é o teatro comparado a fome?Nosso mundo tem necessidade do teatro?O que é
teatro e qual a sua linguagem?Seria o teatro mágico de Artaud uma utopia? Como os
atores podem ou têm buscado este caminho, que não é a estrada convencional do
teatro, mas vereda?
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Índice
I. Sobre Arte
II. O teatro e a cultura
III. As Sombras ou o Duplo
IV. O teatro Ritual e mágico
V. O teatro hoje: breve diagnóstico
VI. Breve elegia
VII. A relação ator-espectador
VIII. O Ator Guerreiro
IX. Bibliografia
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I. Sobre Arte:
Arte é sempre uma manifestação de mundo. Mundo é onde e como o ser se manifesta, a
manifestação do ente na terra, que a partir daí (do mundo surgido e em tensão com a
Terra) passa a Ser. A terra se tenciona com esse mundo, criando um movimento que é o
próprio indivíduo e que é próprio dele, que só se dá enquanto indivíduo aí – no mundo –
Mundo é a revelação do ser.
“O mundo é, enquanto a respectiva totalidade do em-vista de um ser-aí, posto por ele
mesmo diante dele mesmo. Este pôr-diante-de-si-mesmo de mundo é o projeto
originário das possibilidades do ser-aí, na medida em que em meio ao ente se
deve poder comportar em face dele. O projeto de mundo, porém é, da mesma
maneira como não capta propriamente o projetado, também sempre o trans-
(pro)-jeto do mundo projetado sobre o ente. Este prévio trans-(pro)-jeto é o que
apenas possibilita que o ente como tal se revele. Este acontecer do trans-(pro)-
jeto projetante, em que o ser-aí se temporaliza, é o ser-no-mundo. “o ser-aí
trancende” significa: ele é, na essência do seu ser formador de mundo, e
formador no sentido múltiplo de que deixa acontecer o mundo, de que com o
mundo se dá uma vista originária (imagem), que não capta propriamente, se
bem que funcione justamente como pré-imagem (modelo revelador Vor-bild)
para todo ente revelado, do qual o ser-aí mesmo faz, por sua vez, parte.”
(Heidegger)1
Arte não pertence ao mundo linear sistemático. Heidegger explica a obra de arte como
aquilo que se oculta e se desvela, como a clareira e a floresta: A clareira só existe
enquanto clareira uma vez que a floresta a oculta e a floresta passa a ser floresta pelo
referencial da clareira que se mostra. É nesse movimento de velar e desvelar que se dá a
arte.
Arte não é regra, é exceção. Arte constitui seu próprio mundo, que é onde há um operar
da verdade - e a verdade não é o que se pode explicar através de esquemas e provar
através de equações matemáticas. A verdade dá-se. A arte, ou melhor, a Obra-de-arte
dá-se. Ora, nossa sociedade metafísica fragmentada está em crise, são tantas exceções
que a venerada ciência não consegue explicar. Surgem “abertos” no terreno sólido do
nosso entendimento racional, e é nesses abertos que a arte se dá, e como Arte não
explica nada, ela acaba também velando, desvelando, velando... criando esse mundo
pulsante oposto à linearidade do culto da razão.
Certa vez havia um homem no ônibus cantando e falando sozinho, mas de um jeito que
havia arte ali... De um lado a Bahia de Guanabara e o cheiro de maresia, de outro
aquele ônibus cinza, fumacento, e aquele homem como um elo perdido, como um bardo
sagrado, fazendo a função de juntar esses mundos através de sua arte latente - A arte
nasce nos abertos que são deixados por aquilo que não se explica, nesse pavimento
aparentemente sólido da representação/ explicação, das grandes questões nasce a grande
Arte, não para respondê-las, mas para alimentá-las e alimentar-nos delas. E a arte desse
1 Heidegger,. Sobre a essência do fundamento, 1973:314 (2. A transcendência como âmbito da questão da essência
do fundamento)
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homem não tinha encontrado seu aberto para brotar, então ela se infiltrava no asfalto do
mundo planificado como uma erva daninha, incômoda, incompreensível.
Artaud compara o teatro à peste, que se infiltra nas casas, que não segue uma lógica em
sua contaminação indiscriminada, que se infiltra nos órgãos, tomando a pessoa por
inteiro... É um teatro poderoso, senhor da vida e da morte, como relacionar esse teatro
mágico de Artaud ao gigante moribundo dos dias de hoje?
Artaud sem dúvida foi o grande semeador de sonhos e de questões que acompanham os
pensadores dessa arte no século XX, grandes nomes como Grotowski e Peter Brook
remetem-se a esse gênio insano para tentar resgatar o enfermo, para penetrar o asfalto
do teatro contemporâneo de má qualidade com suas flores de erva daninha.
Inês: - És capaz de me dizer porque é que as flores crescem no estrume?
O Vidraceiro: - Crescem melhor assim por que têm horror ao estrume. A idéia delas é
afastarem-se, o mais depressa possível, e aproximarem-se da luz, a fim de
desabrocharem... e morrerem. 2
II. O teatro e a cultura3:
Artaud começa o texto O teatro e a cultura contrapondo cultura à fome: aquela velha
pergunta: para que serve a cultura se as pessoas passam fome – como já disse o velho
mestre Heidegger, arte não é utensílio, arte não “serve” para nada. E a Artaud também
não interessa para que serve, mas sim, interessa a busca dessa Arte verdadeira, ele
coloca: nessa civilização a cultura nunca coincidiu com a vida4– o importante é extrair
da cultura aquilo que se assemelha à fome – a busca de Artaud é sempre de uma arte
visceral, viva, vital, mágica – como a idéia de lançar-se no abismo de Nietzsche... essa
arte atinge quem dela participa de forma física, e causa uma transformação (alquimia) –
ora na verdade poderíamos pensar que se arte manifesta mundo, isso já é uma
transformação radical... Artaud pensa no ator como veículo e sacerdote da Obra no
teatro, mas como diz o próprio Artaud, a o mesmo tempo que nós desejamos a magia, a
tememos.
Ele pensa em uma cultura em ação, oposta a essa sistema inerte que se chama cultura.
“um civilizado culto é um homem bem informado sobre os sistemas em formas, em
signos, em representações”. 5
Artaud abomina o que ele chama de cultura inerte, que é a cultura “construída” sobre o
terreno sólido do fundamento, da representação. Assim como ele abomina esse teatro
que encontrou segurança na palavra, no texto. Ele abomina essa idéia falsa de
segurança, que é a própria modernidade estabelecida sobre conceitos científicos, onde o
que não é passível de representação não existe ou é exceção.
Por outro lado a verdadeira cultura atua fora do sistema, fora do tempo e espaço
lineares: “Pode-se queimar a Biblioteca de Alexandria. Acima e além dos papiros,
existem forças: podem nos tirar por um tempo a faculdade de reencontrar essas forças,
não se suprimirá a energia delas. E é bom que desapareçam algumas facilidades
exageradas e que certas formas caiam no esquecimento; assim a cultura sem espaço
2 Strindberg. O Sonho. Ato I, pág 34.
3 Em O teatro e seu duplo.
4 Artaud, A. O Teatro e seu Duplo, 1987: 15
5 Ídem pág 16
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nem tempo, e que nossa capacidade nervosa contém, ressurgirá com redobrada energia
” 6. E essa verdadeira cultura opõe-se à essa arte de museu, “”os deuses que dormem nos
museus”7.
“À nossa idéia inerte e desinteressante de arte, uma cultura autêntica opõe uma idéia
mágica e violentamente egoísta, isto é, interessada: é que os mexicanos captam o
Manas, as forças que dormem em todas as formas e que não podem surgir de uma
contemplação das formas por si só, mas que surgem de uma identificação mágica com
essas formas. E os velhos totens estão aí para apressar esta comunicação.” 8
Os velhos totens em nossa civilização deveriam ser encarnados pelos atores, sacerdotes
modernos e profanos (pois não estão vinculados a nenhum dogma religioso), que seriam
capazes de promover a comunicação com essas forças mágicas, com aquilo que reside
além da forma ( além da representação), uma vez que acessassem o Manas. Esse manas
é o que há além do abismo, é o próprio labirinto onde se perde a razão humana, o que
não é linear, onde todas as possibilidades estão, bastando que essa ator ouse ir até lá,
trazer os símbolos, as forças que fazem parte desta memória universal do Homem,
dando-lhes vida além da forma.
III. As Sombras ou o Duplo:
“Para o teatro assim como para a cultura, a questão continua a ser a de
nomear e dirigir as sombras: e o teatro, que não se fixa na linguagem e nas
formas, com isso destrói as falsas sombras preparando o caminho para o
nascimento de sombras à cuja volta agrega-se o verdadeiro espetáculo da
vida.”9
As sombras no teatro para Artaud são como a clareira/ floresta de Heidegger , o teatro é
a forma mais explícita da Obra em movimento ou do movimento da Obra – o teatro não
se fixa na forma, nem perdura no tempo/espaço, criando outras relações tempo/espaço,
as falsas sombras seriam o que obscurece a visão, diferente do que vela, possibilitando
assim o desvelar e o dar-se da própria obra, que é a manifestação da própria vida,
manifestação de mundo. O ator é parte dessa manifestação/obra. Deixa de ser Fulano ou
Beltrano para ser Obra. Obra de arte viva.
Essa noção do ator integrante e integrado a essa obra foi o que impressionou Antonin
Artaud em seu contato com o Teatro de Bali10, que era um teatro onde existia toda uma
técnica artesanal compondo a obra, técnica e disciplina dos atores, que se colocavam
como parte integrante de uma obra, como cores e traços numa pintura, mas a um tempo
manifestantes dessa própria obra, por ser cada um criador de seu próprio movimento
nela.
Artaud passa a partir daí a pregar a busca de um ator símbolo, movido por essa força da
manifestação da obra, oposto ao teatro corrente da época que ele chamou de “teatro de
6 Ídem pág 18
7 Ídem pág 19
8 Ídem pág 20
9Artaud, O Teatro e seu Duplo, 1987: 21
10Artaud, A., O Teatro e seu Duplo, 1987
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vizinhas” 11, que seria um teatro menor, proveniente da observação e tentativa de
imitação da vida, onde o espectador fica reduzido a um voyeur fofoqueiro que observa a
vida alheia, onde o mágico inexiste e as dimensões são quotidianas. O mágico reside
nesse manifestar mundo.
A sombra para Artaud é também o que ele chama de duplo:
“Toda verdadeira efígie tem sua sombra que a duplica; e a arte se instala a
partir do momento em que o escultor que modela acredita liberar uma espécie
de sombra cuja existência dilacerará seu repouso ”12.
Ou seja junto com aquilo que se revela (a escultura), surge aquilo que se oculta
(sombra), e a tensão entre uma e outra é origem desse movimento – arte.
A sombra, por ser velada, é inexplicável e fundamental para que ocorra arte.
Duplo é a própria máscara invisível do ator, independente de maquiagem ou figurinos, é
o que o torna uma figura mágica, um totem moderno.
Artaud diz que o teatro é a única arte cujas sombras “romperam com suas limitações”.
Por que no teatro o material com o qual se modela a obra é vivo – o ator – e se mexe.
“(Mas) o verdadeiro teatro, porque se mexe e porque se serve de instrumentos
vivos, continua a agitar sombras nas quais a vida nunca deixou de tremular. O
ator que não refaz duas vezes o mesmo gesto, mas que faz gestos, se mexe, sem
dúvida brutaliza as formas, e através da sua destruição, ele alcança aquilo que
sobrevive às formas e produz a continuação delas.”13
O trabalho do ator deve buscar o que produz essa continuação da forma, o que reside
além do visível a partir do corpóreo, uma vez que o corpo é o instrumento que ele
possui. O corpo do ator é também linguagem – linguagem própria do teatro – da arte
viva – porque além de ser viva como arte é viva por que respira, porque nasce
predestinada à morte, como o próprio homem. Segundo Artaud, o ator que gesticula
demasiadamente, sem precisão na sua linguagem, brutaliza a forma, ou seja, consolida
um estereótipo que o impede de alcançar o que está além.
Como bem disse Artaud, o ator é um atleta afetivo14, que através do rigor com que
trabalha o seu corpo, transmite ao espectador o invisível.
E qual seria o trabalho físico para esse ator hoje? Talvez um trabalho rigoroso, mas que
não se cristalize, compondo um processo circular, abissal, que contenha a semente de
sua própria mudança, de sua própria destruição.
11Artaud, A., O Teatro e seu Duplo, 1987
12 Artaud, A., O teatro e seu Duplo , 1987: 20
13Artaud, A., O teatro e seu Duplo , 1987: 21
14 “O ator é como um verdadeiro atleta físico, mas com a seguinte correção surpreendente, que ao organismo do
atleta corresponde um organismo afetivo análogo e que é paralelo ao outro, que é como o duplo do outro, embora
não atue no mesmo plano.” Artaud. O teatro e seu duplo. 1987:162. O que Artaud diz é que o corpo é o
responsável pela transmissão da energia, que traduz em emoções para o público. E que o corpo deve desenvolver
essa capacidade de comunicar de forma precisa, como um atleta desenvolve sua musculatura para uma função
específica. Grotowski e Barba buscaram transformar seus atores em atletas afetivos, em “corpos em vida
atorais”: “A diferença fundamental de Barba com qualquer outro teatro ocidental, exceto com o de Grotowski,
reside na maneira dele se introduzir no ofício, no treinamento e na forma de preparação não canalizada até a
produção imediata de um espetáculo, senão até a criação de um corpo em vida atoral.” (Fernando de Toros, “El
Odin Teatret y Latino America” )
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Os pesquisadores do teatro têm perseguido a idéia de sombra proposta por Artaud,
podemos citar o exemplo de Eugênio Barba e Jerzi Grotowski,15 e Peter Brook16.
Partindo da experiência do ator/indivíduo eles buscam descobrir a semente da técnica,
contextualizando este ator culturalmente, passando para ele técnicas já existentes ou
descobertas por outros atores em pesquisa, e a partir daí trabalham o “mágico”, como
sendo a capacidade do ator de transmutar energia/ realizar o teatro alquímico
(transformar a energia quotidiana em presença cênica, estabelecer uma comunicação
mais sutil com o público, ou, como no caso de Grotowski, utilizar esta energia em
benefício do próprio indivíduo praticante, transformando suas energias mais baixas em
energias mais sutis).
Aqui é importante lembrar que Artaud compara o teatro à peste17, e ao mesmo tempo,
aponta o mesmo teatro como a única cura possível para o Homem. Ainda a peste para
Artaud não é uma doença que possa ser compreendida isolando-se seus vírus em
laboratório, mas é como uma entidade, com vontade própria, arbitrária, que deixa o
homem à mercê de sua vontade, ou do acaso – ou seja tira dele a segurança e atira-o no
abismo do “tudo é possível”, que é também o espaço da Arte.
Mas o ator, o homem, tem esse medo do desconhecido, busca sempre a segurança, um
estado de alerta, mas ao mesmo tempo ele não encara o verdadeiro perigo – em seu
estado de alerta ele busca reafirmar a solidez de seu fundamento, a representação.
Artaud compara esse falso estado de alerta a dormir, não vendo o perigo, não agimos de
fato mas somos levados por essas inércia da segurança.
“Quando tudo nos leva a dormir, olhando com olhos atentos e conscientes, é
duro acordar e olhar as coisas como num sonho, com olhos que não sabem mais
para que servem e cujo olhar está voltado para dentro.
É assim que aparece a idéia estranha de uma ação desinteressada, mas é a ação
de todo modo mais violenta por ladear a tentação do repouso.” Artaud18
O teatro/ arte é visto por ele como aquilo que desperta o homem para esse olhar que não
é com os olhos, esse olhar que é característico de um operar da verdade. Uma clareza
que o mundo sistematizado causal não permite, pois nele não se vê o que há além dos
esquemas (os índios Yaquis falam em ver – podemos também pensar no filme Matrix...)
Artaud compara a ação desinteressada às ações realizadas no sonho, onde tudo o que
nos rodeia é mutável, e por isso ameaçador, mas nem por isso deixamos de agir, na
verdade, agimos sem ponderar, sem passado e sem expectativas, apenas a ação, que
desencadeia outra ação e assim por diante. Vivemos o presente, vivemos o abismo de
Nietzsche.
IV. O teatro Ritual e mágico:
“O teatro é antes de tudo ritual e mágico, isto é, ligado a forças, baseado em
uma religião, crenças efetivas, e cuja eficácia se traduz em gestos e está ligada
15Barba, Aldilá delle Isole Galleggianti, 1990; Grotowski, Em Busca de um Teatro Pobre, 1987
16Brook, O Ponto de Mudança, 1994
17 Artaud: O Teatro e Seu Duplo, 1987: 25
18 Artaud, O Teatro e seu Duplo, 1987: 20
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diretamente aos ritos do teatro que são o próprio exercício e expressão de uma
necessidade mágica espiritual19.”
(Antonin Artaud)
Esta idéia de uma unidade inicial, seu esfacelamento e posterior busca da unidade, ou
seja o Filho Pródigo e seu retorno ao lar20, se relacionada ao teatro, poderá ser
encontrada em Artaud. Ele crê que o teatro seja uma forma da decadência do ritual e
que, atingindo o auge desta decadência, percorreria o árduo caminho do retorno ao lar.
Ritual aqui pode ser entendido por originário, o que está antes e além desse momento
que vivemos onde tudo foi linearizado, representado, racionalizado. Na origem do
mundo e da própria arte existe uma compreensão através do mito, uma comunhão com
as forças da natureza, o homem pertence originariamente a esse movimento do cosmos,
esse movimento que é também caos, perigo e integridade. Originário não é de forma
alguma um momento no tempo cronológico, mas o princípio e fim da existência, o que
há além, e o que unicamente, unamente é.
Voltando ao trecho citado, vamos pensar no que quer dizer eficácia no teatro...
É comum no teatro: “Esta cena funciona; esta cena não funciona”. Só que a cena não é
um objeto mecânico que basta mover-se para sabermos se funciona ou não. A cena
produz uma série de sensações em quem a executa e em quem a assiste. Sensações,
emissão de energia, apreciação pessoal? Na verdade a cena cria mundo, levando ator e
espectador a essa dimensão extra-quotidiana, de um mundo não sistematizado, onde
tempo e espaço agem de forma não linear.
Agora, o que faz com que um ator absorva o espectador de forma quase hipnótica, o
fascine e outro não? O que faz com que uma atriz de mais de cem quilos faça o papel de
uma menina que toma banho no rio e o que o espectador vê seja uma mocinha esguia,
frágil e assustada?
Existem estudos dos processos pré-expressivos, que compõem uma tentativa pragmática
de compreender como se formam os fenômenos, como se produz a energia
“transpessoal” (capaz de conversar com o espectador em uma linguagem não decifrável
em signos). Uma linguagem que é própria ao teatro, e à Arte.
Artaud no texto “O teatro e a metafísica” fala que o teatro deveria ser como o quadro
“As filhas de Lot” se ele “soubesse falar a linguagem que lhe pertence”21. O que o
quadro diz ele diz por si mesmo, ninguém explica o quadro, você escuta o quadro
(escutar das musas), você vê o quadro (ver dos feiticeiros).
Esses ver e escutar são diferentes de uma busca de segurança pelos sentidos do ver e
escutar quotidianos que podem ser bastante seletivos. Existe uma outra disposição, uma
vontade de potência de que fala Nietzsche, talvez – e no caso do ator uma diferente
energia se despende dele.
19 Artaud, Linguagem e vida, O teatro, antes de tudo, rtual e mágico. 1995: 75
20 A parábola do filho pródigo é como Jesus, pelo menos de acordo com as teorias espiritualistas, explicou a própria
história do Homem, que tendo saído do seu estado de luz e de unidade com o divino, teria decido à terra para viver
suas experiências como indivíduo, tendo ali descoberto (ou estando prestes a descobrir) que a grande perfeição, a
experiência perfeita estaria em descobrir o caminho de volta a unidade, isso é voltar ao lar, voltar a Deus, atingir a
iluminação da qual falam os budistas.
21 Artaud. O teatro e seu duplo. 1987:50. (aqui eu mudaria essa tradução para que lhe é própria)
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Eugenio Barba refere-se a este tipo de energia como energia extra-quotidiana22 - e essa
energia existe quando se dá a linguagem poética em cena. Barba explica que a
utilização de energia quotidiana, ou seja para fazer coisas às quais estamos
condicionados se dá de forma a economizar o máximo de energia possível em cada
ação. No caso da energia extra-quotidiana do ator, ele deve procurar expandi-la o
máximo possível.
V. O teatro hoje: breve diagnóstico
O teatro é como um gigante moribundo. Muitos tentam realizar aquilo que chamam de
teatro, mas isto contribui ainda mais para a enfermidade do gigante. É preciso refletir
sobre esta arte, sobre como torná-la viva nessa situação limítrofe. Na iminência da
morte ele precisa de uma transformação radical que o faça reviver. E o movimento da
história não está apontando para esta transformação, por isso a necessidade vital de um
questionamento neste momento. Uma busca pelos fundamentos (ou talvez pela origem
e pela essência) dessa arte. E Artaud o primeiro pensador que pensou o teatro do ponto
de vista (e de ação de um ator) partindo de suas questões radicais, o que é arte? o que é
cultura? O que é atuar? E propôs ainda uma utopia (ou vislumbrou uma
possibilidade?23), o teatro alquímico, tão violento, tão poderoso, capaz de transformar
ator e platéia.
Para o ator cada atuação, cada conquista em sua arte é um salto no abismo – segundo
Artaud, o teatro deveria trazer uma transformação radical tanto para o ator, Quanto para
a platéia – ambos saltariam juntos, o ator levando consigo o espectador.
Existem pesquisas em relação à práxis do ator que visam esse saltar no abismo:
propostas de exercícios físicos e vocais, técnicas de neutralizar o ego, tornar o ator uma
folha em branco24 onde se manifesta sua arte, ou transformar o ator em um “corpo-em-
vida-atoral”, como diz Barba. Mas a técnica não é o fundamento, e nem o fundamento é
a arte: a verdade do ator em cena não é um simples resultado da técnica como uma
equação matemática, mas sem dúvida advém deste ímpeto vertiginoso de ir além, de
saltar no abismo, de transcender.
Quando esses mestres (Grotowski, Brook e Barba) buscam a técnica, não fecham o foco
em uma técnica do ator como uma receita de bolo, mas na técnica pessoal de cada
artista, em que cada um desenvolve em sua arte, como um ponto de partida e
movimento, como a clareira na floresta (citando aqui o movimento do manifestar-se da
obra de arte descrito por Heidegger), e mesmo o mais intuitivo dos artistas possui uma
técnica, um desvelado em sua obra. Mas obra é movimento, é velar e desvelar, se o
desvelado existe é porque ele será oculto neste mesmo instante da sua existência, ou
seja se a técnica existe é porque ela será imediatamente transcendida para se tornar
Obra.
VI. Breve elegia
Artaud... Artaud e seu Teatro Alquímico...Se o leitor me permite, eu vou abrir um
pequeno parêntesis para falar um pouco sobre este gênio louco de nosso louco século.
22 Barba, A Canoa de Papel, 1994.
23 Quem já viu encenações de grandes mestres sabe que a utopia do teatro alquímico, de fato, reside em algum lugar
... talvez seja como teatro do Lobo da Estepe de Hermann Hesse, Teatro mágico: só para raros, mas Artaud
sonhava em mobilizar multidões com seu teatro contagiante como a peste.
24 Expressão de J. LeCoq
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A morte em vida, a loucura, a dor, assim viveu Artaud, como um duplo dramático dos
nossos tempos. Viveu e morreu o teatro e a peste; o teatro como paixão e como cura
(talvez a única possível) e a peste como renovação, a crueldade como necessidade,
como fator de transmutação/enxofre, indispensável para a realização da alquimia.
Artaud pregava a destruição das estruturas, dos esquemas. Anárquico e holista, buscou
uma transformação violenta que se daria, não através da revolução ou da ameaça física
real, mas do outro lado do espelho, no teatro, onde essa ameaça seria física e real por ser
transcendente, onde a violência consiste em quebrar o espelho e a transformação, na
comunicação entre reflexo e refletido.
Mas Artaud não apresenta o teatro como espelho do mundo conhecido, e sim, como
reflexo do mundo mágico e como forma de acesso a este mundo. Ele prega a existência
de um teatro alquímico, um teatro em que haveria uma troca energética tal entre ator e
espectador, que ambos terminariam o processo obrigatoriamente transformados.
Teatro seria a causa, conseqüência e celebração desta transformação.
Artaud quer que ambos, ator e espectador25 corram um perigo ainda maior do que o
desnudamento, o perigo da peste, que mata (transforma), mas antes de matar, contamina
a todos que lhe forem susceptíveis, para ele, a metamorfose deve ser total e catártica
tanto para o ator como para a platéia; o desnudamento deveria ir além da pele, expondo
as vísceras do ator: não um desnudamento, mas uma dissecação.
Mas em ambos os casos, o que se busca é a transformação, e qualquer transformação é
perigosa, pois tira o ser humano de seus condicionamentos, apresenta a ele o novo, o
desconhecido
VII. A relação ator-espectador
A relação que se estabelece entre o ator e o espectador vai além de uma compreensão
objetiva/subjetiva. Existe, como já colocamos, uma linguagem que é própria do teatro,
além das palavras, do texto. O que faz com que um ator se torne mais interessante que o
outro, mesmo que ambos digam o mesmo texto, com a mesma entonação, com os
mesmos gestos? Carisma? O como falava Garcia Lorca o artista possui ou não
“duende”? Talento simplesmente?
É ainda imprescindível que se fale sobre um novo tipo de artista no palco em pleno
século XXI. O velho ator é um espécime em extinção, os aspirantes são muitos, mas
quase não se encontra aquele ator que nos comove, nos tira o sentido do tempo e espaço
presentes, como deveria fazer Constantin Stanislawski no começo do século (já
passado!). E surge o Performer, aquele que Faz, ator (que põe em ação) de uma arte
mais integral. Por vezes este performer começou como ator de teatro, bailarino, músico,
poeta ou artista plástico e ele acaba se tornando uma síntese de tudo isso, capaz de
interagir com o Outro, integrando-o no mundo de sua arte no qual não existe a
dicotomia eu/tu, que se comumente se traduz por separação palco/platéia, ação/ palavra,
canto/ dança, ator principal/ figurante e fragmentos mil que despedaçam a obra.
O performer integra o espectador em sua obra/ mundo, estabelece uma linguagem
comum a ambos que torna este mundo possível, e neste mundo e através desta
linguagem, o espectador deixou de ser um espectador no sentido passivo que a palavra
carrega. Esse mundo se estabelece a partir de ambos, e torna possível que ambos
25uso a palavra espectador pois não me vem à cabeça uma palavra melhor, pois o público de um espetáculo proposto
por Artaud jamais seria um espectador, e sim um participante ativo - A Kompanhia Multimídia de São Paulo,
dirigida por Ricardo Karmann e Otávio Donasci, usa o termo expedicionário para designar os participantes de seus
espetáculos.
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também se estabeleçam desta nova forma; neste movimento, o mundo se abre para eles
e eles se abrem para o mundo, que é talvez como o mundo anterior ao pensamento
ocidental, um mundo pré-platônico, pré-sofístico – que pode ser entendido como um
mundo poético, conforme o pensamento de Heidegger (ou seja além do entendimento
metafísico, onde não há uma separação entre Physys e Logos), ou um mundo
ritualístico, conforme Artaud (o mundo primário, onde o ritual não se separava da arte,
onde a palavra não se separava da ação, onde o homem não se separava do mundo).
Aqui há ainda um acontecimento da verdade, ainda seguindo o pensamento de
Heidegger, onde não há divisão entre o mundo sensível e o mundo inteligível, eles
acontecem simultaneamente, através da linguagem, a linguagem como ação (poética).
O estabelecimento deste mundo e o acontecimento desta verdade é o que estamos
buscando em nossa arte, que seria uma arte viva, um teatro vivo em oposição ao teatro
morto ou burguês criticado por Peter Brook e por tantos outros, aquele teatro onde o
espectador (e aqui ele possui o sentido passivo da palavra) vai para observar um drama
que não lhe diz repeito, do qual ele está essencialmente separado do que acontece, e
esse teatro também provavelmente é feito por atores que vivem esta separação da sua
arte, como se ela fosse um Outro.
O performer não é um ator, mas um ator pode ser um performer.
VIII. O Ator Alquímico
Heidegger coloca: ”O ente, digamos a natureza no sentido mais amplo, não poderia
revelar-se de maneira alguma se não conseguisse ocasião de entrar num mundo. Por
isso falamos de uma possível e ocasional entrada no mundo (Welteingang) do ente.
Entrada no mundo não é algo que ocorre no ente que entra, mas algo que “acontece”
“com” o ente. E esse acontecimento é o existir do ser-aí, que como existente
transcende. Somente quando na totalidade do ente, o ente se torna “mais ente” ao
modo da temporalização do ser-aí, é dia e hora da entrada no mundo pelo ente. E
somente quando acontece esta história primordial, a transcendência, isto é, quando
ente com caráter do ser-no-mundo irrompe para dento do ente, existe a possibilidade
de o ente se revelar.)26
O ator alquímico, atleta afetivo busca constantemente essa possibilidade de revelar-se,
de acontecer no mundo que é a sua arte; essa possibilidade de revelação.
O ator realiza uma busca prática em nosso treinamento27, buscando um estado mental,
que equivale a um estado de disponibilidade, como um pedaço de solo pronto a ser
fecundado. Este estado é também um estado de neutralidade.
Na experiência prática, algumas técnicas como a de uso de máscara neutra proposta por
LeCoq28, levam o ator a esse estado de neutralidade, onde é necessário reaprender cada
movimento, desde como olhar até como andar ou manifestar sentimentos. Outra técnica
26 Heidegger,. Sobre a essência do fundamento, 1973:314 (2. A transcendência como âmbito da questão da essência
do fundamento)
Obs: nota do autor: Através da interpretação ontológica do ser-aí como ser no mundo não caiu nem positiva nem
negativamente, a decisão sobre um possível ser para Deus. Mas pela clarificação da transcendência se alcança
primeiramente um adequado conceito do ser-aí, o qual levado em consideração nos permite então, perguntar qual
é, sob o ponto de vista ontológico, o estado da relação do ser-aí com Deus.
27 O treinamento que eu proponho na minha pesquisa de mestrado: “A construção do personagem através do ritual”.
28 Jacques LeCoq, “Role de Masque dans la Formation de L’acteur”, 1988.
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para chegar a essa neutralidade é o controle do tagarelar interno, os budistas, entre
outros falam em controlar o diálogo interior, pois o silêncio da mente permite que
estejamos conectados com os acontecimentos do tempo presente, com o fluxo do
universo.
É a energia que a movimentação do ator produz que vai colocá-lo em contato com o
movimento do universo, com as sombras.
A ação de criar energia e a um tempo deixar-se arrebatar pela arte é a sua ação de
acontecer no e com o mundo.
Quando lemos Artaud não podemos esquecer de seu fascínio pelo teatro de Bali, em que
existe um rigor extremo no trabalho do ator, e que é desse rigor que ele fala ao pensar
no ator como um atleta afetivo. E esse rigor, se pensarmos em uma divisão Apolíneo/
Dionisíaco, é uma qualidade apolínea, mas que por ser um rigor poético, embebido em
sombras, é também dionisíaco.
Somos lançados nesse aberto em que se dá a tensão entre inesperado e preciso, entre a
disciplina e a fúria do guerreiro, com os quais o ator tenta lidar (já disse Artaud que o
mais difícil para um ator é não cometer um assassinato...), e é nesse sentido que surge
pra mim a idéia da performance, de um teatro de improviso..., mas onde os atores
possuem rigor em sua arte....
No teatro Oriental, no Nô e Kiogen no japão, no teatro de Bali, na Ópera de Pequim,
cada ator especializava-se em um personagem e buscava a repetição mais perfeita
possível, e aí residia a beleza de sua arte: nesta precisão, neste rigor do repetir.
No Ocidente, pela história do teatro a expressão mais próxima e significativa de
trabalho de ator anterior a este século que temos notícia é a Comedia Dell`Arte, em cada
ator especializava-se também em um único papel, mas o improviso e não a repetição era
a base de sua arte.
Aqui temos uma diferença fundamental entre o teatro oriental e ocidental, que talvez
seja a diferença fundamental entre estes dois lados do mundo: um se baseia na tradição
do conhecimento, em sua repetição e outro, nós, buscamos sempre criar algo novo,
muitas vezes desprezando os ritos e a tradição.
No teatro, estes grandes mestres do teatro moderno, especialmente Barba, tem baseado
sua busca em técnicas de teatro oriental.
Grotowski, no final da vida, juntamente com seu discípulo Thomas Richards, voltou-se
para os cantos das ilhas do Caribe.
E Peter Brook volta-se um pouco mais para a questão do improviso em uma busca inter-
racial, trabalhando com atores das mais diversas etnias e tradições, ainda assim
utilizando muitas técnicas ocidentais, mas todos tem em comum a extrema precisão com
que trabalham, o extremo rigor exigido do ator.
E neste século surgem no Ocidente artistas como John Cage, que não planeja
absolutamente o momento seguinte de seu ato. A esta interação improvisada com o
acontecimento presente chama-se performance29.
Então não se pode negar estas correntes ao se pesquisar e discutir um trabalho que faça
existir este ator guerreiro. Aqui também é preciso haver um diálogo, não se pode negar
o rigor e nem o improviso.
O ator guerreiro usa técnicas rigorosas para se preparar, como um guerreiro que treina
com seu arco, mas muitas vezes seu campo de batalha será o caos ou o precipício,
situações das quais somente o inusitado (ou a arbitrariedade da peste) poderá salvá-lo.
29 No Brasil temos um grande artista multimídia que trabalha com performance: Otávio Donasci, criador das vídeo
criaturas, com quem tive o prazer de trabalhar durante três anos.
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Mas essa guerra é jogo, como jogo de criança – extremamente sério - Nesse jogo do ator
há três participantes: o ator, o personagem, o espectador, e a função desse ator
guerreiro/ artaudiano/ performer é criar um jogo o personagem/ platéia; um jogo no qual
ambos estejam em perigo.
Wim Wenders coloca em seu filme “Asas do Desejo” um poema que diz: “Quando o
menino, menino era, fazia a seguinte pergunta: por que eu sou eu e não você?”
E esta possibilidade de ser o outro é tentadora, a idéia de fundir-se, de tornar-se Uno é
quase uma idéia religiosa. É nessa direção que o ator tenta abandonar o sentimento de
dualidade com o qual fomos educados, nesta forma metafísica ocidental de ver o
mundo, é preciso ir além da busca do fundamento e deixar-se integrar em um processo
mais dinâmico de mundo, um processo onde o movimento de nascimento e morte,
desvelamento e ocultação constitui uma ação única, como o símbolo do Yin e Yang,
que é dividido, porém em cada parte dividida encontra-se a semente da outra parte e
ambas se encontram no mesmo círculo, no mesmo movimento.
Para que ator busque este movimento em sua arte, ele precisa renunciar a inúmeros
conceitos internos e tornar-se algo novo, entender a clareira dentro da sua floresta e ser
movimento/ tensão clareira/ floresta. É preciso ser verdadeiro. Grotowski falava em o
ator desnudar-se perante a platéia, rasgar a máscara diária para realizar um ato total30.
Mas ao mesmo tempo que o ator desnuda-se, ele oculta-se sob a forma deste Novo que
surgiu a partir dele e cuja existência ainda é um mistério, e esse mistério que surge a
partir do ator desnudo é a própria Obra do ator.
Onde está a tensão e o movimento? As sombras? É uma utopia, a alquimia no teatro? ...
e quem jamais encontrou a pedra filosofal? Será que em nosso ser fragmentado é
possível saber se de fato alguém realizou a grande transmutação? Nossas narinas e
olhos estão sobrecarregados pelas emanações do enxofre, e no entanto ele não catalisa
nenhuma transformação... As musas presas neste inferno, pois essa é a impressão dada
aos sentidos pela substância, gritam, mas não conseguimos escutá-las. Um ou outro
pressente esse grito desesperado e propõe-se à escuta, mas a parir daí só lhe o possível
falar a linguagem das musas, pois é lá que seu ser agora habita. E também suas palavras
então perdem-se no burburinho infernal...
Porque as palavras que se escutam não têm correspondente na explicação
(representação), então não se pode explicar, e o que não se explica, para aqueles que
querem apenas segurança (muitos), nada é.
Artaud andou por esses caminhos, ou melhor por essas veredas, e também sua
linguagem é vereda, é caminho do campo e é abismo, a linguagem em Artaud não é
fundamento e sim, “aberto” e é nesse sentido que transcende o mundo da contingência,
enquanto linguagem vigorosa, viva. É em sua obra que Artaud realiza a alquimia de
transformar técnica em sombra, palavra em obra – em sua obra escrita, e também,
segundo relatos, em sua obra como ator.
É preciso saltar no abismo para falar do abismo...
‘O homem é uma linha do homem ao além do homem” e é esse caminho que é obra,
obra do homem, operar do homem, que despenca do abismo na tentativa insana (?) de
voar – e voa... ou morre. Mas permanece a dignidade da tentativa...
Andrea Copeliovitch
30 Grotowiski,. Em busca de um teatro pobre, 1987:180
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Pablo Capistrano é escritor e professor de filosofia. [email protected]
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Não se sabe ao certo se Heráclito de Éfeso (filósofo da Jônia) pregou nas
paredes do templo de Ártemis um texto contínuo ou apenas fragmentos. O fato é que
foram apenas os fragmentos que sobraram e foram apenas os pedaços do pensamento
daquele que era chamado de “o obscuro” que nos indicam a totalidade de suas idéias. O
aforismo, como técnica de redação filosófica apresenta uma característica interessante.
Ele reproduz a totalidade na parte. Ele reduz o universo ao pequeno e transforma o
fragmento num cosmos. Esse movimento induz a noção de que “o que está em cima, é
como o que está embaixo” unido a parte ao todo numa costura lingüística a um só tempo
inquietante e espantosa.
No seu livro Da Amizade (editado pela 7LETRAS), o escritor carioca
Francisco Bosco se apropria do aforisma para lançá-lo sob o pano de fundo de uma
prosa poética que revela o lugar que a linguagem ocupa em nossa vida, humana,
demasiado humana. Num livro que fala de livros, leitores, amor e amizade, Bosco
reconstrói o paradoxo que Wittgenstein tornou claro no seu livro Tractatus Lógico
Philosophicus. Só temos a linguagem para intermediar nossa relação com o mundo e, é
essa mesma linguagem, que vai criar as grades que nos afastam desse mesmo mundo
que queremos tocar amorosamente. A trajetória épica de um escritor diante do objeto de
seu amor (philia- amizade): o livro; representa a trajetória de todos nós diante do
instrumento que temos para nos aproximar da vida, para estabelecermos o vínculo de
afinidade (philia – amizade) com o mundo: a linguagem. Se “a poesia é a periferia da
língua” e escrever é “perder o corpo. Para a página” a relação que podemos estabelecer
entre vida e linguagem centra-se no fato de que temos, na maioria das vezes, que dar
forma ao mundo para que possamos estar nele. Se esse tipo de impresão é mais forte no
escritor, talvez porque ele se posicione, perigosamente, na fronteira da linguagem, na
periferia, no limiar. Os aforismos de Bosco nos presenteiam com essa consciência dos
limites que o escritor perigosamente tem de conviver. Transformar esses riscos em uma
narrativa, em flashes de pequenas totalidades, é uma das grandes virtudes do livro Da
Amizade; um verdadeiro passeio pela estrada tortuosa e rica que nos leva, da ansiedade
da fala (“o escritor é um gago”) a materialização do amor pelo risco na forma de um
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livro (“6.os livros tem fundos falsos, como a cartola dos mágicos: 7. terminam aos
poucos e depois, sob hesitações”).
Transitar entre esferas artificialmente separadas pelo “rigor” acadêmico
exige coragem e confiança na força do próprio pensamento. Por isso o texto de Bosco se
torna um artefato obrigatório para quem gosta de filosofia e poesia. Não há uma fôrma
de linguagem que se imponha ao pensamento, a opção pelo aforismo, pelo diálogo, pela
descrição biográfica, pelo poema, não são opções de menor peso na produção de textos
filosóficos. Eles apontam para o fato de que o padrão da Metafísica de Aristóteles não é
o único possível para quem quer produzir filosofia e teoria literária no Brasil. A opção
de Bosco pela forma arquitetônica que nos presenteou com a mais fina reflexão do
pensamento ocidental torna suas pequenas totalidades mais saborosas e nos permite
planar pelas vastas e arriscadas fronteiras que constituem o caso de amor mal resolvido
no ocidente entre a poesia, a filosofia e o sentimento do mundo.
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Ana Cristina Pinto da Silva é mestranda em Ciência da Literatura na UFRJ
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Vivemos sob céus sombrios e... existem poucos seres
humanos. Talvez por isso existam também tão poucos
poemas. 1
(...) só é permitido traduzir os poetas quando se sente uma
energia comparável a deles.2
Mas todos os poetas verdadeiros são necessariamente
críticos de primeira ordem.3
Este ensaio pretende refletir sobre a poesia moderna, tendo por base o
pensamento que orienta poetas-críticos como Schlegel (1772-1829), Novalis (1772-
1801), Baudelaire (1821-1867), Valéry (1871-1945) e Celan (1920-1970), além do
filósofo e crítico Lukács (1885-1971).
À poesia moderna associa-se a idéia de perda, desequilíbrio, fragmentação. É
a poesia que, tal como um peixe de um rio altamente poluído, tenta sobreviver em um
mundo dominado pela técnica, onde máquinas de aço são manipuladas por “seres
humanos” – não menos máquinas! – onde “seres humanos” passam seu tempo
programando suas máquinas – sem que percebam o quanto se deixam programar por
outros. Parece não haver mais lugar para a imaginação.
O pensamento que se desenvolve em tal atmosfera quer-se extremamente
objetivo, livre de qualquer traço de subjetividade que possa interferir na tal ‘busca da
verdade’. Neste sentido, falar de imaginação como meio de aproximação das grandes
questões humanas chega a ser absurdo, para uns. E é, no entanto, a única solução
possível, para outros.
Três questões me parecem fundamentais para qualquer tentativa de
compreensão do que chamamos de poesia moderna, que floresce sob “céus sombrios”: a
relação entre poesia e pensamento, poesia e crítica, poesia e experiência. Lembro que a
separação em três tópicos é apenas uma tentativa de organização formal, uma vez que,
na realidade, estas três questões aparecem estreitamente ligadas: o pensamento é crítico;
a crítica veicula um pensamento; o pensamento e a crítica tomam da experiência os seus
1 Celan. In: Carta a Hans Bender, p.67. 2 Baudelaire, 1988: 114
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fundamentos; a crítica poética mergulha na poesia e trás em si gotas do poético; a poesia
alimenta-se do pensamento o qual se alimenta da experiência; a crítica alimenta-se dessa
poesia que incorpora pensamento e experiência.
(...) se o lógico nunca pudesse ser algo além de lógico, ele não seria e não poderia ser um
lógico; e que se o outro nunca fosse algo além de poeta, sem a menor esperança de abstrair e
de raciocinar, ele não deixaria atrás de si qualquer traço poético. Penso sinceramente que se
todos os homens não pudessem viver uma quantidade de outras vidas além da sua, eles não
poderiam viver a sua.4
Aprofundando estas questões e procurando desenvolvê-las, sempre que
possível, à luz de poemas, junto-me àqueles que enxergam a poesia como espaço onde o
pensamento se dá vinculado à imaginação e à experiência pessoal – portanto, um espaço
onde paira o subjetivo – e onde torna-se perfeitamente possível refletir sobre a realidade
que chamamos de objetiva e que se nos mostra como fragmento. Em última instância,
cada um dos autores selecionados, de uma forma ou de outra, atenta para o caráter
fragmentário, inacabado da poesia moderna, enquanto produto de uma época igualmente
fragmentada.
A oposição que sempre se estabeleceu entre poesia e pensamento é a grande
preocupação do ensaio de Valéry que se apresenta sob o título “Poesia e pensamento
abstrato”, no qual o autor propõe-se a tratar da questão a partir de sua própria
experiência enquanto crítico, poeta e, naturalmente, leitor. O texto abriga, assim, as três
questões sobre as quais me proponho a refletir – pensamento, crítica e experiência em
relação à poesia.
Valéry volta-se para o tema, buscando reaproximar poesia e pensamento e
desfazer a idéia de que as análises e o trabalho do intelecto, os esforços de vontade e
de exatidão em que o espírito participa não concordam com essa simplicidade de
origem, essa superabundância de expressões, essa graça e essa fantasia que distinguem
a poesia.5 Esta oposição associa o pensamento ao esforço intelectual consciente, à
presença da objetividade, à razão, e a poesia à imaginação e simplicidade – o que parece
remeter à idéia de inspiração, também refutada por Valéry:
Como os vestígios do esforço, as repetições, as correções, a quantidade de tempo, os dias ruins
e os desgostos desapareceram, apagados pela suprema volta do espírito para sua obra, algumas
3 Valéry, Varieades, 1999: 208 4 Valéry, Variedades, 1999: 197 5 Id, ib, p. 193
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pessoas, vendo apenas a perfeição do resultado, considerá-la-ão o resultado de uma espécie de
prodígio, denominado por elas inspiração.6
Descarta-se, assim, a atividade do poeta como resultado de esforço, de
elaboração, do mesmo modo que não se admite ao pensador incorporar a imaginação à
sua atividade. Implícita nesta visão parece estar a idéia de que só se pode chegar a
conhecer uma realidade através da razão, representada pelo pensamento, enquanto que a
poesia restringe-se ao universo da fantasia, este totalmente desvinculado da realidade e
da possibilidade de contribuir para o conhecimento dessa realidade.
Contrapondo a linguagem com fim de comunicação (linguagem útil) à
linguagem poética, Valéry atenta para uma peculiaridade da poesia: o recriar-se infinito.
O poema, ao contrário [da linguagem útil], não morre por ter vivido: ele é feito expressamente
para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser. A poesia (...)
tende a se fazer reproduzir em sua forma, ela nos excita a reconstituí-la identicamente.7
Tendo em mente esse eterno recriar-se da poesia, pode-se pensá-la como um
reflexo da infinitude da própria vida, que nunca está pronta – poema que não aceita um
ponto final mas somente reticências, como a indicar que há sempre algo mais a ser dito
ou, então, que tudo poderia ser dito de outro modo:
(...) se não fosse a vida toda um lugar em obras permanente, um canteiro em constante
construção ao qual se precisa voltar volta e meia: aqui, ali, alicerces, acolá, andaimes, andares,
a vida se fazendo desde o avesso todo o dia (...) 8
E tudo que me atingiu
E atiçou e sustentou;
Anos bissestos
de tantos sustos,
ó farfalhar de faias, uma única vez,
e a selvagem convicção
de que isso também possa ser dito de outro modo.9
Valéry concebe o pensamento como o trabalho que origina em nós o que
não existe, ou lhe empresta, queiramos ou não, nossas forças atuais, que nos faz tomar
a parte pelo todo, a imagem pela realidade e que nos dá a ilusão de ver, de agir, de
6 Id, ib, p.207 7 Id, ib, p. 205 8 Armando Freitas Filho. In: Longa vida p. 39. A forma original do poema não foi mantida por motivos
espaciais.
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suportar, de possuir (...)10 Pensar é, pois, criar. A imaginação – a “rainha das
faculdades” para Baudelaire, “o órgão superior” para Novalis – aparece aqui como
inerente ao pensamento, e a poesia, por sua vez, como espaço onde se dá o pensar aliado
à imaginação. Esta idéia remete à analogia feita por Valéry entre a dança e a poesia, em
contraposição ao andar e à prosa: a dança, como a poesia, tem como fim ela mesma e
se recria a cada movimento, a cada leitura que faz do passo. Por isso nunca morre, ao
contrário do passo, que desaparece no momento em que o objetivo que lhe deu origem é
alcançado. Isto é retomado no texto A alma e a dança, quando Fedro declara o que se
passa em sua alma ao contemplar a dançarina – metáfora da experiência poética:
Quanto a mim, Sócrates, a contemplação da dançarina me faz conceber muitas coisas e muitas
relações entre as coisas, que, no momento, constituem meu próprio pensamento, e pensam, de
algum modo, no lugar de Fedro. Encontro em mim clarezas que não teria jamais obtido da
presença sozinha de minha alma...11
O pensamento recorre à imaginação, a poesia remete ao pensar. Poesia e
pensamento parecem, portanto, movidos pelo mesmo desejo: conhecer e fazer conhecer
o que existe, aproximar-se da verdade. A isto nos convida o poeta:
Vem, interpreta o mundo contigo
vem, deixa-me recobrir-vos com
tudo o que é meu,
sou um só contigo
para nos capturarmos,
mesmo agora.12
Neste ponto, é interessante lembrar o que nos diz Merleau-Pointy, ao tratar
da pintura em O olho e o espírito, referindo-se à fotografia: É o artista que é verídico, e
a foto é que é mentirosa, porquanto, na realidade, o tempo não pára. 13, no que é
ratificado por Baudelaire – em um ensaio comentando uma exposição de quadros em
que reina a ausência de imaginação – para quem estas coisas [as pinturas dos cenários
teatrais], porque falsas, estão infinitamente mais próximas da verdade, enquanto a
maioria de nossos paisagistas mente, justamente porque negligencia mentir.14 Daí a
9 Celan, “E força e dor”, 1985: 201 10 Valéry, Variedades, 1999: 206 11 Valéry, A alma e a dança. 1999: 46 12 Celan, “Vem”, 1985, p.219 13 Merleau-Pointy, 1969: 98 14 Baudelaire, 1988: 139
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resposta de Sócrates a Fedro, em A alma e a dança, quanto aos dois remédios para a
alma:
A verdade e a mentira. (...) ansiosos de saber, felizes demais por ignorar, procuramos, no que é,
um remédio ao que não é; e no que não é, um alívio para o que é. Ora o real, ora a ilusão nos
recolhe; e a alma, em definitivo, não tem outros meios exceto o verdadeiro, que é sua arma – e
a mentira, sua armadura.15
A verdade sendo protegida pela mentira, e as duas, em princípio conceitos
opostos, vistas como únicos remédios para a cura da alma! A verdade como arma, (Meu
poema é a minha faca!)16, a poesia como espaço onde se trava uma espécie de batalha,
onde verdade e mentira, realidade e imaginação são cúmplices – onde a verdade existe e
resiste sob a armadura da imaginação.
A relação entre poesia e crítica é tratada por Lukács no ensaio "Über Wesen
und Form des Essays: ein Brief an Leo Popper" ("Sobre a essência e forma do ensaio:
uma carta a Leo Popper") que faz parte de uma coletânea de ensaios intitulada Die Seele
und die Formen (A alma e as formas). O que se destaca no texto lukácsiano é a defesa
do ensaio como a forma mais adequada à crítica artística. Esta noção já estava presente
em Novalis, para quem a genuína crítica requer a aptidão de produzir por si mesma o
produto a ser criticado17, em Schlegel, que define o ensaio como um ‘poema
intelectual’, e é retomada por Baudelaire para quem (...) a imaginação, graças à sua
natureza compensadora, contém o espírito crítico18, além de Valéry e o próprio Lukács.
Estes autores desenvolvem suas reflexões a partir da assunção de que poesia e crítica
estão estreitamente ligadas uma à outra: o verdadeiro poeta tem a sua ‘veia crítica’
assim como o verdadeiro crítico é orientado por sua ‘veia poética’.
Como pode um ser humano ter sentido para algo
Se não tem em si mesmo o seu germe ?
O que eu devo entender tem de se desenvolver em mim organicamente 19
15 Valéry, A alma e a dança, 1999: 21 16 Título da antologia de Hans Bender, citado em “Carta a Hans Bender”, de Paul Celan 17 Novalis, 1988: 122 18 Baudelaire, 1988: 79 19 Wie kann ein Mensch Sinn für etwas haben,wenn er nicht den Keim davon in sich hat? Was ich
verstehn soll, muß sich in mir organisch entwickeln. (Novalis, Blüthenstaub, 2000: 35342, traduzido pela
autora.)
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Espera-se de um tratado de Economia que tenha sido escrito por alguém que
esteja envolvido com o assunto. O mesmo acontece com um texto que trate de poesia: o
autor de tal texto tem de estar em sintonia com os processos que envolvem a criação
poética. As duas atividades não se excluem; ao contrário, se completam, e são como que
condição sine qua non para o sucesso tanto do poeta quanto do crítico. Daí as
expressões ‘poeta-crítico, crítico-poeta’ ao se falar sobre estas duas atividades.
A partir da noção das “duas realidades da alma”, das duas vidas, Lukács
(1971) opõe imagem (Bild) e significado (Bedeutung), sendo este associado ao ensaio e
aquela à poesia. Segundo esta visão, caberia ao ensaísta transformar em significado o
que o poeta concebeu como imagem, o que só se torna possível a partir da ‘veia poética’
presente no crítico. Neste sentido, o trabalho do crítico afasta-se da noção de mero
julgamento da obra. A crítica passa a ser vista como um momento de reflexão,
desprendendo-se da obra:
O ensaísta fala sobre um quadro ou um livro, mas o abandona logo – por quê? Creio que
porque a idéia desse quadro e desse livro tornaram-se-lhe superiores, porque nisto esqueceu
inteiramente tudo o que neles é secundariamente concreto utilizando-o somente como começo,
como trampolim.20
Enquanto reflexão, enquanto pensamento que se desenvolve a partir do
universo poético, a atividade do crítico é, também, criação. Do mesmo modo que a
poesia, da crítica não se espera respostas: ela permite o desdobramento infinito de
reflexões, assim como infinito é o recriar-se da poesia, e infinitas as possibilidades da
vida.
O jovem Lukács assume a verdade como a meta tanto da crítica quanto da
poesia, ainda que seja uma ilusão: assim como a poesia, o ensaio luta pela verdade.
Assim como o poeta, o crítico busca uma verdade e se alimenta da ilusão de poder
alcançar essa verdade. E, enquanto buscam, vivem: a única verdade parece ser o que
experimentam enquanto buscam essa verdade – a própria vida, esse canteiro em
constante construção (...) se fazendo desde o avesso todo o dia. O poeta tem, portanto,
a missão de resgatar o que se desfez com a modernidade, de lançar alguma luz sobre a
escuridão destes tempos, de recuperar o elo perdido, de reaver a totalidade.
20 Der Essayist spricht über ein Bild oder ein Buch, verlät es aber sogleich – warum? Ich glaube, weil
die Idee dieses Bildes und dieses Buches übermächtig in ihm geworden ist, weil er darüber alles
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Diante da impossibilidade de chegar a atingir a verdade, de conhecer o
Todo, o ensaio, enquanto forma fragmentária que parte do que já existe e não se propõe
a alcançar uma verdade mas sim apontar possíveis caminhos, representa essa ânsia
(Sehnsucht) de chegar a um ponto onde tudo se encontre.
Valéry, em texto já citado, nos fala de sua experiência enquanto poeta e
crítico. Observa o que chama de “estados poéticos” e distingue dois caminhos: um que
tem como resultado um poema e outro que dá origem a uma análise intelectual dessa
experiência. Sobre este segundo caminho nos diz Valéry:
Mas, desta vez, em lugar de um poema, era uma análise dessa sensação intelectual súbita que
se apoderava de mim. Absolutamente não eram versos que se destacavam mais ou menos
facilmente de minha permanência nesta fase; mas alguma proposição que se destinava a
incorporar-se a meus hábitos de pensamento (...)21
Parece, pois, que tanto o poeta quanto o crítico encontram-se imersos nas
águas do poético. Tanto o poeta quanto o crítico mergulham fundo nessas águas a fim
de conhecer o que nelas se esconde. O poeta adianta-se e vai mais fundo e, ao emergir,
nos traz imagens do que viu. O crítico, a partir dessas imagens e do que também viu,
busca dar-lhes significado, descobrindo a vida por trás da imagem, ou o destino por trás
da forma, como diria Lukács.22
Ou seria, talvez, o poeta como um menino que se encanta por um pássaro
raro, quase o tem nas mãos, mas este foge e tudo o que resta ao poeta-menino são
penugens do pássaro, com as quais tenta recriar o pássaro que viu. A partir dessa
imagem do pássaro, o crítico cria o seu próprio pássaro, que vai ser recriado pelos
leitores do crítico e daí o recriar-se infinito da poesia.
Assim, ser crítico e poeta são duas formas distintas de se alcançar o mesmo
objetivo, como destaca Uchôa Leite, em ensaio sobre Otávio Paz: Exatamente como
acontece a outros poetas-críticos, crítica e poesia de Otávio Paz interferem uma na
outra, há nelas freqüente intercorrência de signos: são dois modos de exprimir a
mesma apreensão do real.23
nebensächlich Konkrete an ihm gänzlich verga, es nur als Anfang, als Sprungbrett benutzte. (Lukács,
1971: 28, traduzido pela autora) 21 Valéry, Variedades, 1999: 196 22 Lukács, 1971: 16 23 Uchôa Leite, 1986: 09
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À questão do pensamento abstrato e da crítica vem juntar- se uma outra, não
menos enfatizada pelos autores que fundamentam este trabalho: a experiência na poesia.
As reflexões anteriores parecem estreitar os laços que se mostram entre poesia,
pensamento e crítica, e a experiência se faz fortemente presente nestas três atividades do
espírito. Exemplo da importância atribuída à experiência é o já mencionado ensaio de
Valéry (Poesia e pensamento abstrato), no qual o pensamento do autor desenrola-se a
partir de sua própria experiência enquanto poeta e crítico:
(...) acho mais útil contar aquilo por que passamos do que simular um conhecimento
independente de qualquer pessoa e uma observação sem observador. Na verdade, não existe
teoria que não seja um fragmento cuidadosamente preparado de alguma autobiografia.24
(...) o poeta tem seu pensamento abstrato e, se quisermos, sua filosofia: eu disse que ele se
exercia em seu próprio ato de poeta. Disse isso porque observei-o não só em mim como
também em alguns outros. Neste caso, como antes, não tenho outra referência, outra pretensão
ou outro pretexto além de recorrer à minha própria experiência ou então à observação mais
comum.25
A experiência como fomentadora da poesia já aparece no Romantismo
Alemão com Novalis e Schlegel: ambos defendem a poesia que parte do real, tomando
as experiências que vão se acumulando durante a vida no mundo objetivo e
transportando-as para o mundo da imaginação. O poeta não é alguém que vê o mundo a
uma certa distância; ele está no mundo, é parte dele, e busca conhecê-lo. Ao afastar os
olhos do mundo e voltá-los para a poesia, deixa a falsa impressão de que se desliga
desse mundo, isola-se no mundo da imaginação para esquecer os conflitos do mundo
objetivo: todavia, é exatamente no momento do suposto distanciamento que ele mais se
envolve com esse mundo e mais próximo fica de conhecê-lo.
Poetar é gerar. Todo o poetado tem de ser um indivíduo vivente. Que inesgotável quantidade
de materiais para novas combinações individuais não existe ao redor!26
A vida não deve ser um romance dado a nós, mas um romance feito por nós.27
Obras cujo ideal não têm, para o artista, tanta realidade de vida quanto a amada ou o amigo
estarão melhor se não forem escritas.28
A partir desta visão, a poesia não pode mais ser compreendida sem o seu
vínculo com a experiência de quem a concebe, sem a sua ligação com a vida. Merleau
24 Valéry, Variedades, 1999: 196 25 Id, ib, p. 208 26 Novalis, 1988: 122 27 Id, ib, p. 159
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Pointy (1969), em seu ensaio já citado sobre pintura, reflete sobre a experiência como
uma espécie de cúmplice do pintor no desenvolvimento de sua arte: (...) a sua visão só
aprende vendo, só aprende por si mesma. O olho vê o mundo e o que falta ao mundo
para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele mesmo (...).29 O mesmo parece se
passar com o poeta, que vê o mundo e o que falta ao mundo para ser poesia, e o que
falta à poesia para ser ela mesma. Isto nos remete à idéia de poetização da vida
difundida pelos românticos alemães.
A relação entre arte e vida, que acarreta a questão da experiência
(Erfahrung) como fundamental para que o artista tenha êxito em sua tarefa, aparece
mais adiante neste ensaio de Merleau-Pointy: é o artista vivendo no mundo que ele
procura conhecer através do que lhe mostra o seu pincel; é o poeta que tenta conhecer a
realidade em que está imerso através da imaginação com que alimenta a sua poesia: Eu
não o vejo segundo o seu invólucro exterior, vivo-o por dentro, estou englobado nele.
Afinal de contas, o mundo está em torno de mim, e não diante de mim.30
Benjamin (1997), em livro dedicado à lírica de Baudelaire, refletindo sobre
a atitude da imprensa em relação à informação e contrastando-a com o objetivo da
narração, observa que:
[este] consiste em isolar os acontecimentos do âmbito de onde [possam] afetar a experiência
do leitor [sendo que a informação propicia] a crescente atrofia da experiência [ao contrário da
narração, que] não tem a pretensão de transmitir um acontecimento, pura e simplesmente
[mas] integra-o à vida do narrador, para passá-lo aos ouvintes como experiência. Nela ficam
impressas as marcas do narrador como os vestígios das mãos do oleiro no vaso da argila.31
A experiência – o que se vive e se retém na memória involuntária, passando
a fazer parte de nós – e poesia andam, pois, de mãos dadas:
Eu tenho mais recordações que há em cem mil anos.
Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Guarda menos segredos que meu coração. 32
Ocorre, assim, que no mundo moderno, fragmentado, capitalista, dominado
pela técnica, as informações que chegam ao leitor ou ouvinte não se incorporam à sua
28 Schlegel, 1994: 101 29 Merleau-Pointy, 1969: 42 30 Id, ib, p. 76 31 Benjamim, 1997: 106-7 32 Baudelaire, As Flores do Mal.
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experiência, não chegam a fazer parte dele. Distingue-se, então, a Erfahrung
(experiência, associada ao inconsciente, que se incorpora ao indivíduo) da Erlebnis
(vivência, associada ao consciente, que não se incorpora ao indivíduo):
Erfahrung é o conhecimento obtido através de uma experiência que se acumula, que se
prolonga, que se desdobra, como numa viagem; o sujeito integrado numa comunidade dispõe
de critérios que lhe permitem ir sedimentando as coisas com o tempo. Erlebnis é a vivência do
indivíduo privado, isolado, é a impressão forte, que precisa ser assimilada às pressas, que
produz efeitos imediatos. 33
Nesse mundo que se apresenta como fragmentos de um Todo que se desfez
caberia ao poeta resgatar o que se perdeu, recriando o mundo a partir da experiência
levada para a poesia. No entanto, ao homem moderno resta somente a vivência de
choque, marcada pela presença de informações retalhadas, que não se articulam e não
conseguem ser incorporadas por ele como experiência. Neste cenário, a lírica de
Baudelaire se destaca por conseguir trazer para o universo poético a tensão entre
experiência e vivência, que caracteriza o mundo moderno:
Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,
Rico, mas incapaz, moço e no entanto, idoso
Que, desprezando do vassalo a cortesia,
Entre seus cães e os outros bichos se entedia. 34
Em um ensaio sob o título de “Salão de 1859”, em que reflete sobre a
situação da imaginação e da arte a partir de uma exposição de pintura, Baudelaire atenta
para essa experiência que falta aos artistas modernos, os quais ao exprimirem a
natureza, mas não os sentimentos que ela inspira, submetem-se a uma estranha
operação que consiste em matar dentro deles o homem pensante e sensitivo (...)35 É um
“homem pensante e sensitivo” que parece habitar a poesia na visão de Celan: um
homem no qual os acontecimentos da vida conseguem se transformar em experiência;
um poeta para quem o poema parece ser a única arma numa luta desesperada:
O poema torna-se – e em que condições! – o poema de um sujeito que insiste em ser um sujeito
de percepção, atento a todos os fenômenos, e interrogando e apostrofando esses fenômenos: e
torna-se diálogo, muitas vezes um diálogo desesperado.36
33 Leandro Konder, citado em Benjamim: 1997: 146, em nota do revisor técnico. 34 Baudelaire, As Flores do Mal. 35 Baudelaire, 1988: 127-8 36 Celan, 1980: 57
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Essa luta ainda se trava porque, no fundo, ainda parece haver uma esperança
de que se volte ao humano, e a poesia mostra-se como força poderosa nessa luta:
Vocês moem no moinho da morte a branca farinha da Promessa,
(...) que a culpa caia sobre nós.
Que a culpa recaia sobre nós e esses nossos signos de alarme,
que venha o mar gargarejante,
a encouraçada ventania da mudança
o dia da meia-noite.
Que venha o que nunca houve!
Que um Homem saia dessa tumba.37
Valéry nos mostra a dançarina cujos movimentos levam Fedro a pensar.
Celan também tem a visão da dançarina. No entanto, ela dança ao som de bombardeios,
metralhadoras e gritos de dor – o cenário é a Segunda Guerra Mundial:
E eis que aparece a dançarina!
Em nosso olho ela mergulha dedos trançados pela espuma do mar:
Alguém aqui ainda quer chorar?
Ninguém. Ei-la a rodopiar radiante, e o timbale fogoso ressoa.
Ela nos lança anéis, com punhais nós os apanhamos. 38
A visão dos horrores da guerra perpassam toda sua obra. A guerra é a grande
cicatriz que marca sua vida. Trazer para sua poesia essa experiência mostra-se como
tarefa árdua, tornando-o cada vez menos otimista e mais hermético: o silêncio, o que
não foi dito, mais do que nunca, precisa ser ouvido por quem se aproxima de seus
poemas. São eles frutos de uma época que foi obrigada a cultivar o silêncio como meio
de sobrevivência. As cenas que viveu, desencontradas, absurdas de se imaginar, geram
versos que vão sendo jogados no papel, com uma certa violência, sem esperar por
vírgulas nem pontos: versos que, como sangue, são mais derramados do que escritos. A
escuridão não tem fim, o dia já nasce negro, como negro é o leite que são obrigados a
beber:
Negro leite da aurora nós te bebemos de noite
Nós te bebemos de aurora de dia e de tarde
Nós te bebemos bebemos
Um homem habita a casa brinca com cobras e escreve
Escreve quando escurece a Alemanha teu cabelo de sol Margarete
37 Celan, “Tardio e profundo”, 1985, p.41 38 Id, ib, “Semi-noite”, p.25.
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Teu cabelo de sol Sulamith nós cavamos a cova nos ares lá temos espaço.39
Morta, pois, parece estar toda a humanidade, e o que se vê pelas ruas é a
pior das mortes, a morte em vida:
Saiu pela porta, a chuva o seguiu.
Estávamos mortos e podíamos respirar.40
As reflexões a cerca da poesia moderna, desenvolvidas a partir das três
questões propostas apontam para uma inter-relação profunda entre tais questões, e
parece que não se pode pensar em poesia sem que se leve em conta pensamento, crítica
e experiência.
Os “poetas-críticos” e os “críticos-poetas” tomados como referenciais deste
trabalho enfatizam o fazer poético como reflexo do mundo que buscam conhecer. Se o
poeta também busca conhecer esse mundo, ele incorpora o pensar sobre esse mundo; se
busca aproximar-se do mundo, como fazê-lo sem partir do que já viu e vê pelo mundo,
sem trazer para suas obras as experiências que foram sendo incorporadas ao seu ser? Por
outro lado, como falar em experiência se esta, para o homem moderno, não existe? Ao
poeta caberia a missão de tentar trazer de volta o que se perdeu no mundo moderno.
Parece, portanto, que a imaginação se apresenta como aliada do pensamento na ânsia de
conhecer.
No que se refere à crítica, há uma forte tendência a encará-la como
pertencente aos domínios da arte, o que implica na noção de crítica literária como um
espaço de criação ou recriação, de arte, em última instância. No momento em que se
volta para determinada obra, o crítico encontra um meio fecundo para que suas próprias
idéias floresçam e que seu pensamento se desenvolva a tal ponto que supere a condição
de simples intérprete ou juiz, o que torna o seu fazer também um fazer criativo.
Poesia e pensamento têm, portanto, como princípio o mesmo desejo:
conhecer. Para isso, pautam-se pela experiência e encontram na crítica que os retoma
um grande aliado nessa busca.
39 Id, ib, “Fuga da morte”, p 196. 40 Id, ib, “Lembrança da França”, p.29
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César Garcia Lima é Mestre em Literatura Brasileira pela UFRJ.
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RESUMO
O livro Cascos & carícias, que reúne crônicas da escritora Hilda Hilst, é um exercício
de subversão dos gêneros literários. Nesses textos, a autora reflete sobre sua própria
obra enquanto tece uma metanarrativa questionadora dos limites da poesia, do conto e
da escrita jornalística.
PALAVRAS-CHAVE
Hilda Hilst; crônica; metanarrativa; gêneros literários; poesia; conto; jornalismo.
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EPÍGRAFE
Há, provavelmente, duas atitudes básicas que dão origem a dois tipos fundamentais de ficção:
ou se escreve por espírito lúdico, para entretenimento próprio e dos leitores, para passar e fazer
passar o tempo, para distrair ou procurar alguns momentos de agradável evasão; ou se escreve
para pesquisar a condição do homem, empresa que não serve como passatempo, nem é um jogo,
nem é agradável. (O escritor e seus fantasmas, Ernesto Sábato)
A escritora paulista Hilda Hilst tem um lugar distinto na literatura brasileira, o
que não se traduz exatamente em sucesso de vendas e de público. Dona de dicção
especialíssima tanto na ficção quanto na poesia, Hilda mitiga o ressentimento de ser
pouco lida e – pior – pouco entendida. Em Cascos & carícias, livro que reúne as
crônicas da autora entre 1992 e 1995, publicadas no Diário de Campinas e reunidas em
livro em 1998, a autora expõe aspectos multifacetados de sua verve irônica, lançando
mão de recursos metanarrativos em textos nos quais se misturam gêneros como a
poesia, o conto. Hilst parte do estímulo da informação jornalística para o universo da
cultura, no qual reflete, sempre ironicamente, sobre o papel do escritor brasileiro e
perscruta os motivos do distanciamento de seu texto em relação aos leitores.
Neste recorte de sua obra, tento identificar traços metanarrativos que
investiguem a condição humana do escritor e o seu não-lugar em uma sociedade tomada
pela linguagem como jogo lúdico. O texto de Hilst abre espaço para as referências
clássicas e rejeita em alguns aspectos os clichês do narrador ex-cêntrico, em
contraponto a Rubem Fonseca, escritor totalmente inserido na fragmentação pós-
moderna.
A autora tece uma escrita peculiar, perseguindo uma identidade que parece
querer prescindir do gênero e às vezes se impõe através de um narrador masculino.
Desta maneira, abdica das facilidades de representação objetiva da crônica para compor
em crise permanente, da maneira percebida por Adorno (1973) a partir da sociedade
industrial. O objetivo é, assim, desvendar como Hilst faz da crônica um instrumento de
reflexão sobre o papel do escritor em uma sociedade saturada pela mídia.
As crônicas estudadas são permeadas por um tom irônico e auto-reflexivo, exibindo
um narrador que se metamorfoseia em masculino e feminino. Às vezes, assume a voz da
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própria autora a destilar ressentimento, usando com recorrência o recurso da
metanarrativa para se debruçar sobre o texto, único território inalienável ao autor. Hilst,
que escreveu os textos durante sessenta e duas semanas e depois abdicou da tarefa por
não gostar do trabalho de escrever sob encomenda, adota uma postura iconoclasta,
mesclando a perspectiva jornalística e a narrativa literária, fazendo desta última um
meio para a reflexão sobre o papel do escritor e do homem. Com isso, reforça o caráter
apócrifo da crônica, gênero pouco estudado pelos manuais de literatura.
E se eu ficar lúdica, pastosa, permissiva, sonora, casta e contundente e não
disser mais nada congruente, se eu ficar esmolando pelas ruas, lúcida
espirocando, se eu levitar enquanto sobre o meu texto tu flutuas, se eu disser
que aos cinco anos de idade aquela prodigiosa Simone Weil (informe-se)
sentindo frio depois do banho disse ao seu próprio corpo e diante de sua
perplexa mãezinha: “Tu tremes, carcaça?”, o que tu sentirias?
(HILST, 1998: 56)
No excerto do citado texto, há sempre a consciência de Hilst de que sua dicção
não é popular ou de fácil acesso, guardando uma ambigüidade em relação às facilidades
da linguagem. Sem fazer referências diretas a best-sellers ou escritores de ampla
aceitação no mercado, a autora contesta com sua erudição e sarcasmo a escritura pós-
moderna e fragmentada, mais referendada na sociedade de consumo do que na cultura
clássica. A escrita de Hilst nem por isso cabe com facilidade em classificações de estilo
ou gênero. A propósito da crônica, em Cronista: Filho de Cronos com Ishtar, ela
reverte expectativas, indo além do trocadilho mitológico:
Uma das coisas que mais admiro em alguém é o humor. Nada a ver com
boçalidade. alguns me pedem crônicas sérias... Gente... O que fui de séria nos
meus textos nestes 43 anos de escritora! Tão séria que o meu querido amigo,
jornalista e crítico, José Castelo, escreveu que eu provoco a fúria insana, isto é,
o cara começa a me ler e sai correndo pro funil do infinito. Tão séria que
provoco o pânico. E nestas crônicas o que eu menos desejo é provocar o
pânico... Já pensaram, a cada segunda-feira, os leitores atirando o jornal pelos
ares e ensandecendo? (HILST, 1998: 61-62)
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À parte a preocupação de “ser entendida” pelo leitor, Hilst não recorre a técnicas
narrativas ligadas ao new journalism, como faz Rubem Fonseca (1996) em Intestino
Grosso, conto no qual um jornalista entrevista um “Autor”, com trechos inteiramente
baseados em uma entrevista do próprio Fonseca ao jornal O Pasquim. Se neste conto a
crítica à mídia também suscita ácidos comentários (“Os caras que ditavam os livros, os
suplementos literários, os jornais de letras. Eles queriam os negrinhos do pastoreio, os
guaranis, os sertões da vida”), a autora, por sua vez, adota também um cinismo pronto
para capturar o leitor: “Para que desapontar os leitores? Apenas, numa passagem, eu me
refiro à dificuldade que ela tem de comer um pêssego, uma citação poética – do I dare
etc. – para bons entendedores”.
O jogo que Hilst propõe ao leitor subverte a identidade dos próprios personagens
e pede mais do que “bons entendedores” e sim uma disposição para mergulhar com ela
em tramas tão aparentemente banais quanto inusitadas. Tome-se como exemplo os
mini-contos anexos à crônica Ridendo Castigat Moris:
I.
Há dez anos tentava escrever o primeiro verso de um poema. Era
perfeccionista. Aos 30, anteontem madrugada, gritou para a mulher: consegui,
Jandira! Consegui!
Ela (sentando-se na cama, desgrenhada): O quê? O emprego?
Ele: Claro que o verso, tolinha, olha o brilho do meu olho, olha!
Ela (bocejando): Então diz, benzinho.
Declamou pausado o primeiro verso: “Igual ao fruto ajustado ao seu
redondo...”Jandira interrompendo: peraí... redondo? Mas nem todo fruto é
redondo...
Ele: São metáforas, amor.
Ela: Metáforas?
Ele: É... E há também anacolutos, zeugmas, eféreses.
Ela: ?!?!? Mas onde é que fica a banana?
Ele enforcou-se manhãzinha na mangueira. O bilhete grudado no peito
dizia: a manga não é redonda, o mamão também não, a jaca muito menos, e você
é idiota, Jandira. Tchau.
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Ela (tristinha depois de ler o bilhete): e a pêra, benzinho? E a pêra então
que ninguém sabe o que é? E a carambola!!! E a carambola, amor?
(HILST, 1998: 76)
Neste texto, Hilst recorre à metanarrativa indireta, na qual a personagem Jandira
questiona os dotes literários do marido. A autora lança mão do recurso dramático, com
pequenas rubricas sobre o comportamento da tal Jandira que, ao mesmo tempo em que
questiona, também parece ser questionada. Jandira é a metáfora (figura que a
personagem parece não compreender) de um tipo de leitor que não se detém em
entrelinhas. Hilst, que sempre reclamou de não ser entendida, transforma a personagem
em uma provocadora de suicídios, questionadora da criatividade do marido, mas
também repressora do poema que escapa às convenções.
Ainda assim, cabe a Jandira a interrogação final: “E a carambola, amor?”. A
propósito deste texto, cabe citar Gianni Vattimo:
Nesta perspectiva, um dos critérios de avaliação da obra de arte parece ser, em
primeiríssimo lugar, a capacidade que a obra tem de pôr em discussão o seu
próprio estatuto: seja a nível direto e, freqüentemente um pouco tosco; seja de
modo indireto, por exemplo como ironização dos gêneros literários, como re-
escrita, como poética da citação, como uso da fotografia, não enquanto meio
para a realização de efeitos formais, mas no seu puro e simples significado da
duplicação. (VATTIMO: 1987)
Ora, o que Hilda Hilst faz nesses textos é questionar constantemente o estatuto
do que é arte e, consequentemente, do que é o seu texto, ironizando gêneros literários,
entremeando uma busca de critérios estéticos com a própria metaficção, na qual
personagens como Jandira são, ao mesmo tempo, alter ego do narrador e do leitor.
Passemos a outro exemplo de ironia metanarrativa, mini-conto também anexo à
mesma crônica imediatamente citada:
II.
Tínhamos discussões intermináveis. eu lhe mostrava os meus textos e ele dizia:
tu não tens fôlego, meu chapa, tudo acaba muito depressa, tu não desenvolve o
personagem, o personagem fica por aí vagando, não tem espessura, não é real.
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Mas é só isso o que eu quero dizer, não quero contornos, não quero espessura,
quero o cara leve, conciso, apressado de si mesmo, livre de dados pessoais, o
cara flutua sim, mas é vivo, mais vivo do que se ficasse preso por palavras, por
atos, ele flutua livre, entende? Não. E ajeitava os óculos, não e não. Achei
conveniente não lhe mostrar mais os textos. Ele me encontrava e dizia: hof hof
hof, fôlego, meu chapa, fôlego, espanta as nuvenzinhas flutuantes, dá corpo às
tuas carcaças, afunda os pés no chão. Eu implorava: pára com isso, pára, um dia
quem sabe tu entendes. Não entendeu. Na frente dos amigos, de minha mulher,
de meus filhos, ele começava: hof hof hof, fôlego, meu chapa. Um dia fomos à
praia. entre uma caipirinha e outra, propus-lhe nadar até a ilha. Disse um sim
chocho, mas topou. No meio da travessia, enquanto ele se afogava, eu
aperfeiçoava a minha butterfly, e meu ritmo era rápido, harmonioso, cheio de
vigor. Gritei-lhe antes de vê-lo desaparecer: fôlego é isso, negão. Estou em paz.
E dedico-lhe este meu breve texto, leve, conciso, apressado de si mesmo, livre
de dados pessoais, muito mais vivo do que ele morto.
(HILST, 1998: 77)
Mais uma vez, Hilst parte do próprio texto para questionar os seus critérios de
construção literária. Agora, quem tenta convencer de que seu texto tem qualidade é um
narrador que impõe um personagem “leve, conciso, apressado de si mesmo, livre de
dados pessoais”. O mais surpreendente é que não se pode dizer que os textos de Hilst se
adeqüem exatamente a esses preceitos, o que concede à pequena narrativa ainda maior
ironia.
Algumas questões são levadas para a própria estrutura deste texto. Como a
discussão é ritmo, que ganha uma comparação com o próprio fôlego humano, Hilst tece
também uma pequena história em um único parágrafo no qual se defrontam um narrador
que inicialmente reverencia seu interlocutor, mostrando-lhe seus textos, depois recusa
as opiniões dele, humilhando-o no final em que se fundem o fôlego para nadar e o ritmo
butterfly da narrativa, que bate as asas diante de nossos olhos.
Na crônica Nós Escritores: brasileiros-Zumbis), ao mesmo tempo que faz
referência a seu próprio nome em texto elogioso de Anatol Rosenfeld (1999), um dos
mais atentos estudiosos de sua obra, Hilst reclama abertamente de não ter sido citada na
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Feira de Frankfurt de 1991, contemplando o leitor com “um textinho grácil e hermético
para o vosso feliz domingo”. Diz a crônica:
A morte me apareceu certa noite no quarto. Era uma menina vestida de negro,
os cabelos loiros escorridos. O vestido era estufado, brilhoso. assim que a vi, soube que
era a morte. Recostou-se em um canto da parede à minha frente, os pezinhos cruzados,
não usava sapatos.
Então, Hans, está pronto?
Não, respondi-lhe agoniado.
Sorriu. tinha dentes negros e minúsculos. Assustei-me. Esperou que eu me
acalmasse e perguntou:
Quanto tempo você ainda deseja?
Algum tempo.
Respondeu-me que era preciso que eu fosse mais preciso. a frase tinha humor e
pude até sorrir. Disse-lhe:
Mais dez anos talvez.
Dez anos talvez, é hoje.
Impossível.
Não. Para ser mais exata: dez anos e dez dias. O tempo é outro quando eu
apareço.
Senti náuseas e uma dor profunda no peito. Ainda pude perguntar-lhe;
Há uma outra vida?
Sim. Milhões de crianças como eu. Você será uma delas. É tedioso e até
inaceitável, mas é assim.
O espelho do quarto refletiu um menino vestido de negro, calças curtas e camisa
comum, os cabelos loiros escorridos. Olhei-me assombrado. Depois disso, nunca mais
me vi.
(HILST, 1998: 129-131)
Aqui, Hilst propõe um jogo narrativo com a identidade do narrador, em alguns
momentos um certo Hans de idade indefinida, um Hans-dez-anos-depois e um Hans-
menino-vestido-de-negro. A partir do segundo parágrafo, há uma alternância dramática
entre as falas de Hans e da morte (menina-vestida-de-negro). A quem pertence o direito
de contar a história? Hilda leva para o próprio texto o confronto dessas forças
antagônicas: Hans quer viver, a morte quer levá-lo para ser uma criança eterna, à sua
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semelhança. A força da vida e da morte, Eros e Tanatos, se digladiam em um
movimento espectral no que podem se confundir numa mesma imagem, como no último
parágrafo.
Acerca da impregnação dos textos de Hilst pelo dramático, escreve Anatol
Rosenfeld no mesmo texto citado pela autora, sobre o livro Fluxo-floema (1970), mas
que poderia se adequar também aos dois pequenos contos citados:
Para Hegel, o gênero épico-narrativo é o mais objetivo. A ele se
contrapõe, dialeticamente, a antítese subjetiva do gênero lírico, sendo o
dramático a síntese, visto reunir, segundo Hegel, a objetividade épica e a
subjetividade lírica. Semelhante diferenciação perde o sentido em face dos textos
em prosa de Hilda Hilst, já que neles todos os gêneros se fundem.
(ROSENFELD: 1999)
A própria autora dá um chave metafórica de sua busca de identidade narrativa
que, entre larva e asa, procura sua metamorfose, sua metadicção.
Sou tantas
Tantos vivem em mim e pródiga descerro-me
Pródiga me faço larva e asa.
(HILST: 1970)
Em suas crônicas, Hilst alterna posicionamentos auto-elogiosos e iconoclastas e,
ao mesmo tempo, dirige um olhar cúmplice em relação aos excluídos. Ao citar outros
autores, em geral dialoga com o texto e revê, por exemplo, a trajetória da pouco
conhecida poeta iugoslava Giusta Santini, na crônica Mistérios, de quem transcreve o
poema:
Mulheres têm medo de cobras
de lagartas, baratas
mas não têm medo daquilo
que lá no fundo lhes toca.
Mulheres podem ser negras
ou pé de milho ou cegas
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mas reverberam com aquilo
(se são velhas)
e se são moças gostam de espigas
negras
ao invés de batatas nas suas bocas.
(SANTINI Apud HILST, 1998: 159)
Hilst expõe seu espanto diante da auto-permitida lascívia dessa poeta, amiga de
Joyce e Nora Barnacle. A liberdade com a qual registra em seu diário suas peripécias
íntimas repercute na mesma crônica em uma auto-reflexão questionadora sobre a autoria
de sua poesia:
É meu este poema ou é de outra?
Sou eu esta mulher que anda comigo
E renova a minha fala e ao meu ouvido
Se não fala de amor, logo se cala?
Sou eu que a mim mesma me persigo
Ou é a mulher e a rosa que escondidas
(Para que seja eterno o meu castigo)
Lançam vozes na noite tão ouvidas?
Não sei. De quase tudo não sei nada.
O anjo que impulsiona o meu poema
Não sabe da minha vida descuidada.
A mulher não sou eu. E perturbada
A rosa em seu destino, eu a persigo
Em direção aos reinos que inventei.
(HILST, 1998: 164-165)
A indagação aqui transcende as inquietações de gênero para cindir a identidade
do eu lírico. “É meu este poema ou é de outra?”, pergunta. Este duplo que “se não fala
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de amor logo se cala” pode ser a própria narradora ou outra, estrangeira, que só sabe
falar a língua da espontaneidade.
Se na primeira estrofe a dúvida se refere ao terreno da identidade, a uma possível
companheira de trajetória, na segunda a “outra” aparece como uma possível
perseguidora. O que parecia um embate com o espelho ou a figura de outra pessoa,
agora ressurge junto a um terceiro elemento, a rosa, símbolo evocativo do romântico, do
feminino e do instintivo, a flor que espalha seu odor sem consciência de si mesma. A
rosa se uniria à “outra” para perpetuar um castigo que, mais do que evidenciar um
pecado ou transgressão, pressupõe a culpa, derivada da consciência.
A terceira estrofe traz o elemento do anjo, elemento tão caro a Rainer Maria
Rilke e uma das referências de Hilst. Este quarto sujeito a irromper no texto é ao mesmo
tempo demiurgo da lírica da narradora, mas ignora sua “vida descuidada”. E a
narradora, que diz que de quase tudo não sabe “nada”, desvela a ignorância do anjo, o
nivela segundo sua própria humanidade. Cabe relembrar aqui as observações de
Rosenfeld no mesmo artigo supra-citado, a propósito do livro Fluxo-Floema, mas
totalmente cabíveis neste contexto:
Entretanto, este Eu ao mesmo tempo se desdobra e triplica, assumindo máscaras
várias, de modo que o monólogo lírico se transforma em diálogo dramático, em
pergunta, resposta, dúvida, afirmação, réplica, comunhão e oposição dos fragmentos de
um Eu dividido e tripartido, múltiplo, em conflito consigo mesmo. Contudo, as vozes
(que não se manifestam no pretérito da narrativa, mas amalgamando as formas do
presente lírico e dramático) submergem na corrente de uma linguagem de espantosa
invenção (...). Deste modo se fundem de novo, quase irreconhecíveis, no Eu lírico,
portador do rasante turbilhão verbal que, lançado contra pedras e obstáculos, forma
redemoinhos de “floema engasgado”, detendo-se, gago, a língua se tornando objeto de
si mesma, se autocomentando, se autocriticando e autoflagelando, chegando até a
autodestruição, para depois recompor-se e prosseguir, levada pelo impulso da maré
verbal.
(ROSENFELD: 1999)
A quarta estrofe marca justamente esta estrutura identificada por Rosenfeld, de
um eu lírico que se rebela, autoflagela e renasce pela negação. ‘A mulher não sou eu”,
diz o primeiro verso, sem, no entanto, identificar-se quem é esse narrador. Apenas fica
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instaurado que a rosa perturbou-se e existe somente em sua errância, em direção aos
próprios reinos inventados.
A propósito destes “reinos”, vale citar algumas observações de Gaston
Bachelard em A poética do devaneio, no qual cita alguns versos do poeta Géo
Libbrecht, com espantosa similitude com o citado poema de Hilda:
Este sonho em nós é mesmo nosso?
eu vou sozinho e multiplicado
serei eu mesmo, serei um outro?
somos apenas imaginados.
(LIBBRECHT Apud BACHELARD: 1988)
As indagações de Bachelard remetem aos primeiros românticos e à mudança
empreendida na questão da representação:
Quem fixará jamais o peso ontológico de todos os “eu” imaginados? (...) Existe
um “eu” que assume esses múltiplos “eu”? Um “eu” de todos esses “eu” que
tem o domínio de todo o nosso ser, de todos os nossos seres íntimos? Novalis
escreve: “A tarefa suprema da cultura é tomar posse de seu eu transcendental,
de ser ao mesmo tempo o eu de ser eu”.
(BACHELARD: 1988)
Em Cascos & carícias, Hild Hilst resgata este Eu transcendental e referência
romântica, reelabora a estrutura da crônica para nele inserir uma inquietação de
transgressão e resgate de um mundo onírico em que o autor pode ser uno, um mundo
utópico que ele mesmo inventou.
Ou, nas palavras de Octavio Paz:
Se todo objeto é, de alguma maneira, parte do sujeito cognoscente – limite fatal do saber
ao mesmo tempo que única possibilidade de conhecer -, o que dizer da linguagem? As
fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se aqui particularmente indecisas. A palavra é
o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade ou, pelo
menos, o único testemunho de nossa realidade. (PAZ: 1982)
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Em suas crônicas, Hilst não abdica da ironia e do humor de referência erudita,
ainda que em detrimento do sucesso editorial. A metanarrativa se espelha em
personagens que questionam e interferem sobre o texto que está sendo criado no papel e
evolui na mente do leitor enquanto é lido. Assim, Hilst discute o papel da escrita
contemporânea e reavalia, ao longo dos trechos em prosa inseridos nas crônicas, os
critérios estéticos que as norteiam, em busca de uma estilística diferenciada neste
momento da literatura brasileira. Nesse percurso, a escritora mescla elementos de
objetividade épica e subjetividade lírica para formar um texto de expressão
multifacetada, com um narrador em metamorfose, ao mesmo tempo “larva e asa”,
pensador e criador.
No que concerne à metapoesia permeada às crônicas, os textos de Hilst remetem
ao romantismo alemão, no qual um Eu transcendente norteia a carpintaria lírica e se
torna referência para a inspiração individual. O que poderia ser apenas monólogo lírico
se desdobra como diálogo dramático e abre caminho para uma linguagem que indaga,
chegando à afirmação a partir da negação, para buscar unidade em mundo utópico
engendrado por sua própria criação.
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Cristiane Sampaio de Azevedo é Mestranda em Literatura Brasileira na UFRJ
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I . Por que Manoel de Barros?
Se o curso em questão1 propõe uma reflexão em torno da relação entre poesia e
filosofia, por que a escolha da obra de Manoel de Barros para exercitar essa reflexão? O
que, exatamente, sugere que em sua poesia há essa fronteira? E o que seria essa
fronteira? Em seu livro intitulado Livro sobre nada, logo no primeiro poema ouvimos
o eu lírico dizer: As coisas tinham para nós uma desutilidade poética./ Nos fundos do
quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber (p.11) E não só isto. Antes mesmo de
iniciar seu livro, o próprio autor anuncia em seu Pretexto: (...)O que eu queria era fazer
brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis(...)(p.7) A “desutilidade” , o
“dessaber” , o “desúteis” são uma freqüente na obra de Manoel de Barros. Também é
constante o “desaprender”, o “desinventar”, como pode-se verificar em O livro das
ignorãças.”Qual o lado da noite que umedece primeiro/etc/etc/etc/Desaprender oito
horas por dia ensina os princípios; Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao
pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.” Ou seja, é instaurada, na obra do escritor,uma certa poesia do “des”.
Mas, o que seria isto? A poesia do “des” em Manoel de Barros é a poesia da negação, da
desconstrução incessante e radical, é a poesia do sempre inatingível e, portanto,
obscuro2.
Desinventar objetos. O pente,por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear.
Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.(Livro das ignorãças)
A poesia do “des” em Manoel de Barros é a poesia que busca o originário, que
subverte radicalmente a linguagem para apresentar o “real”, pois é construída a partir da
negação. Desconstruir “as coisas” do seu significado mais habitual, desconstruir para
1 Este trabalho foi apresentado como monografia de final de curso, na UFRJ, para a professora Vera Lins
. 2 Alberto Pucheu, em sua tese de Doutorado intitulada “Intervenções na relação entre poesia e
filosofia:uma fronteira desguarnecida” faz uma leitura da poesia de Manoel de Barros comparando esta
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construir, fazer “delirar”, como afirma o próprio poeta, o verbo,descoisificar a realidade.
E quando ele descoisifica o real ele constrói uma gama de significados inexistentes.
Assim,quando o eu lírico,por exemplo, diz: Desinventar objetos, o pente,por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma
begônia. Ou uma gravanha, ele está propondo uma poética que vai levar a linguagem às
últimas conseqüências,pois vai desabrigar a palavra de seu sentido usual. Na verdade, o
que o eu lírico faz é se remeter ao próprio sentido da poesia. É dizer que a poesia é
linguagem que quer o avesso do avesso,ou seja, que quer deslocar ao máximo a
representação da realidade,para que esta possa de fato se revelar no seu sentido mais
originário.
Logo em seguida, no mesmo poema, ele diz: Usar palavras que ainda não
tenham idioma. Como se, ao dizer isto, o eu lírico quisesse dizer: usar palavras
primevas, livres das amarras das línguas, dos idiomas,usar palavras que não foram ainda
utilizadas para um mero ato comunicativo. Usar palavras que não digam o que as coisas
são “aqui”, “ali”, “acolá”, ou seja, naquele ou neste idioma, mas que sejam quase
“intocadas”.
Por isso, o título do livro, O livro das ignorãças, é o livro que remete à realidade
desconhecida, a um desconhecimento prévio dos conceitos, significados, sentidos. Um
livro que guarda a origem das coisas. Desconhecer para conhecer, poderia se dizer, é o
tema , portanto, da poética de Manoel de Barros. Uma poética que,por isso, se aproxima
de uma visão filosófica, se pensarmos que a filosofia precisa partir sempre de um não
lugar, de uma realidade que ignora qualquer tipo de “pré-conceito, a fim de se chegar(?)
a um conhecimento, pois a filosofia é sempre um perguntar pelas mesmas coisas, como
se as coisas estivessem sempre se desfazendo de significados, como se os significados
fossem sempre inatingíveis,como ”as águas de um rio que não podem ser banhadas
mais de um vez, porque não podemos deter o curso de suas águas., como nos diz o
famoso fragmento de Heráclito.
II. “Vício de fontes”
aos filósofos originários, ou seja, Heráclito, Parmênides, que seriam os poetas que guardam certa
obscuridade em sua linguagem.
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Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que
Não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano.
O 2º verso do poema diz: “Minha voz tem um vício de fontes”. Mas, o que seria
exatamente isto? Uma voz que tem vício de fontes é uma voz que guarda um sentido
ainda não contaminado pelas impurezas do uso língua? Sim,pois não é a fonte o lugar
que ,em princípio, resguarda, certa pureza em sua origem ? Mas que pureza é esta?
Algo parecido com uma certa castidade das palavras? Palavras ainda não desvirginadas
pelo uso , intocadas pelas mãos do criador? Um criançamento das palavras ? Eu queria
avançar para o começo./Chegar ao criançamento das palavras./Lá onde elas ainda
urinam na perna.- é o que ouvimos do eu- lírico. Esse desejo de fonte, expresso no
poema, não é algo parecido com um purismo ou coisa semelhante. Chegar ao
criançamento, por exemplo, soa como chegar a uma dimensão não de algo intocado,
adormecido, mas que, ao contrário, está em movimento, em transformação,pois a
criança parece estar sempre nomeando as coisas por conta própria, às vezes chega
mesmo a criar uma língua paralela à sua .Chegar ao criançamento seria, quem sabe,
também,chegar ao um não lugar, a uma não coisa ainda . “Quando a criança garatuja o
verbo para falar o que não tem.”(grifo nosso) Mas, que, justamente, por ser um “não
lugar,”o que não tem”, é que pode vir a ser alguma coisa. Assim , é como se as
coisas(as palavras) tivessem sempre que ser “ignoradas,” esvaziadas de seu significado,
tomar “vício de fonte”,como fazem as crianças , para nomear o mundo.
O começo aparece,assim, não com um sentido negativo,mas positivo. É o
começo, a “fonte”, o “criançamento,”não um retrocesso,mas como um avanço,pelo
menos é o movimento que declara fazer o eu lírico com relação ao começo-o
movimento de avanço:Eu queria avançar para o começo.
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Esse sentido positivo do começo se assemelha a um sentido positivo da
ignorância(ou ignorãça como quer Manoel de Barros). Pode-se observar isto no seguinte
verso,do primeiro poema de Livro sobre nada : Nos fundos do quintal era riquíssimo o
nosso dessaber. (p.11) Parece,assim,que o poeta persegue uma corrente contrária ao
curso usual das coisas, o avesso do avesso ,como já foi dito, para criar os seus
sentidos,ou para dar sentido às coisas.É preciso avançar para o começo, pegar gosto por
dessaber, ter voz com vício de fontes, para que o mistério, ou como ele mesmo diz, o
arcano , possa ser descortinado: Eu queria avançar para o começo.(...)Abrir um
descortínio para o arcano(...)(p.47)Lá onde ele pode “pegar no estame do som”, “ser a
voz de um lagarto escurecido”.
Além deste sentido positivo , há ,também, um sentido sagrado que envolve os
primórdios que tanto procura o poeta Assim ,ouve-se o eu- lírico dizer, logo no primeiro
verso deste poema: Carrego meus primórdios num andor.Percebe-se este sentido
sagrado através da palavra andor, que é uma espécie de tabuleiro(uma padiola)
ornamentado , e que serve para transportar as imagens nas procissões.Este verso,
Carrego meus primórdios num andor, juntamente com o último verso,Abrir um
descortínio para o arcano , enfatiza este sentido sagrado a que se está referindo aqui.
Mas, que sentido sagrado seria este? Sagrado é o próprio advento da criação , que por
sua vez caminha bem próximo do mistério, do “arcano”.Assim, é como se o eu- lírico,
neste poema, confessasse sobre a matéria de sua poesia, de sua criação, ou pelo menos,
a matéria que deseja descortinar; e esta matéria é tecida através de tudo que guarda um
sentido originário, e mais ainda, ele busca não só a matéria que é tecida do originário,
mas ele, o eu lírico, deseja “pegar”, como ele mesmo diz, na própria tessitura da coisa:
Eu queria avançar para o começo(...)/ Pegar no estame do som. Esta diferença entre
buscar(ou ter simplesmente) e pegar a” matéria”, “a coisa’, a que acabou-se de referir,
parece apenas uma sutileza . No entanto, ela diz mais do que se pode imaginar. Pegar a
matéria, Pegar no estame do som,ou seja, pegar no fio que tece o som, é querer também
modelar a palavra, o som, é chegar, como o próprio eu- lírico diz, “Antes mesmo que
elas sejam modeladas pelas mãos”, pois também se deseja participar da criação,
também se deseja significados para a realidade que sejam tecidos com as próprias mãos.
Convém, também, observar neste último verso que destacamos(“Antes mesmo que elas
sejam modeladas pelas mãos”), quando eu lírico diz : (...)modeladas pelas mãos. Esse
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trecho destacado parece também bastante revelador, pois está se referindo a uma
massificação da palavra , já que tem um sentido generalizante. Não é “pela mão”, o que
daria uma individualidade à expressão, mas “pelas mãos”,ou seja , por todas as mãos ,
pelo uso, como acabou-se de dizer, massificante da linguagem. Assim, chegar antes que
as palavras “sejam modeladas pelas mãos” é chegar antes que elas ganhem “fôrma”, é
chegar no que elas, as palavras, ainda tem de arcano.
A experiência do eu-lírico aparece, assim, como algo que está para além de uma
aparência(como o caso da linguagem de massa), mas que, ao contrário disto, tem a ver
com existência, com ser . Desta forma ,ouve-se o eu- lírico dizer: Eu queria avançar
para o começo(...)/ Ser a voz de um lagarto escurecido. Quando se depara com esse
último verso,por exemplo, percebe-se através da imagem construída, “a voz de um
lagarto escurecido”, a radicalidade dessa busca de origens, desse “vício de fonte”, de
que nos fala o eu-lírico. Ser a voz de um lagarto escurecido é ser o que de menos
aparência um lagarto pode ser; um lagarto que não é nem visível, é escurecido, como
diz o eu- lírico. Ser a voz de um lagarto seria, então, ser o que de mais primevo restou
do lagarto, ou o que nele, visível ou invisível, sempre foi presente; ser o que antecede o
próprio lagarto.
III. “Administrar o à-toa”
Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também
sabedoria mineral.
O à-toa , o inútil, também ,aparece ,neste poema, como algo que não possui um
sentido negativo na poesia de Manoel de Barros. Mas, ao contrário, o à-toa é
“administrado” pelo eu-lírico. “ Nasci para administrar o à-toa/ o em vão/ o inútil”-
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diz o eu lírico, logo nos três primeiros versos. Mais uma vez se depara na poesia de
Manoel de Barros, então, com este sentido desconstrutor, a partir do qual o poeta retoma
a todo instante o próprio,repetimos, sentido da poesia. A tal ponto essa aparece em sua
“essência”, ou seja, em sua “inutilidade”, em seu “em vão”, que o poeta, ou melhor, o
eu-lírico, ao modo do que ele chama de fazer delirar o verbo, “mascara” o verbo
precisar, freqüente do campo semântico do que é útil, do que é próprio do mundo no
qual as coisas têm sua utilidade, seu lugar, e utiliza o verbo pertencer. Desta forma, ao
contrário de dizer preciso de fazer imagens, o eu lírico “delira” e diz: “Pertenço de
fazer imagens.Mas, o que seria esse “pertencer de fazer imagens”? O verbo precisar dá
idéia de urgência, de imediatismo e ,também, em certo sentido, de precisão, pois quando
se precisa, precisa-se, geralmente, de algo já determinado, exato e, também, de uma
certa utilidade Ao contrário disto, pertencer tem um sentido que parece ultrapassar o
imediatismo, a exatidão e a utilidade .Pertencer dá idéia já de um certo
“entranhamento”, de algo que já “corre nas veias”, de algo que não se precisa, porque já
se é. Assim, o à toa, o em vão , o inútil, não é nada que se precise, mas que, primeiro, se
pertence. Desta forma, também, a matéria poética, a natureza, se confunde com o
criador, pelo menos é o que entende-se ao ler os seguintes versos: Retiro semelhanças
de pessoas com árvores/ de pessoas com pedras/de pessoas com rãs/Retiro
semelhanças de árvores comigo. No entanto, talvez seja necessário abrir um
parênteses para esclarecer uma certa dubiedade que pode surgir quando se lê esses
últimos versos e ,também, o seguinte: Preciso de obter sabedoria vegetal.Mas, como
assim? Ao dizer o eu lírico “retiro” e “preciso”, algumas dúvidas, talvez, surjam com
relação ao que se disse um pouco antes quanto a não utilidade , a um “espírito não
imediatista”, que domina o discurso do eu-lírico, e que, talvez, também, por isso,
coloque em questão o que se disse sobre o pertencimento, quando exatamente, se
comentou o verso: Pertenço de fazer imagens.
Em outro verso mais adiante declara o eu-lírico: “Opero por semelhanças”. Ou
seja, pelo que se assemelha, pelo que algo parece pertencer a outrem. A semelhança
nunca é o que as coisas são na sua precisão, mas uma sugestão, que não quer servir, que
não deseja ser útil, já que não opera por exatidão, mas apenas fazer pertencer , pertencer
uma coisa a outra.
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Assim, o que parece “confuso” e “contraditório’, esse não “operar” por
exatidão,mas por “semelhanças”, é assumido através do seguinte verso: “Não tenho
habilidades para clarezas”. Com esse verso o eu-lírico mais uma vez se situa num
lugar de imprecisão. Essa imprecisão ,essa não habilidade para clareza é ,na verdade,
um modo de dizer que não se está em busca de respostas, de definições,de “retirar”
coisas objetivamente,ou de “precisar” de algo na sua “precisão”,na sua imediaticidade ,
mas em busca de algo que parece mais que isso - de experiência( a “erfahrung”),pois ao
dizer que quer desconstruir o eu-lírico não parece fazê-lo para chegar a uma
“construção”. A desutilidade poética anunciada em sua poesia não pressupõe ,assim, um
lugar já assegurado, ou uma mera oposição a uma construção, a uma “utilidade poética”.
A desutilidade poética parece muito mais um primeiro instante, e não um lugar de
chegada, para a experimentação de que acabou-se de falar. Mas, o que significa
“exatamente” essa experimentação? No último verso do poema o eu-lírico diz: “E
quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral”. Esse “estar
apropriado” vem ao encontro do que está se chamando de “experimentação”,
“experiência”.Não são as coisas que são apropriadas pelo eu-lírico, mas o eu-lírico que
se apropria ou não para as coisas.De estar “apropriado para pedra”ou não, por exemplo,
depende a sua “sabedoria vegetal”.
IV . “Os desencontros” de Manoel de Barros
Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras.
Sou formado em desencontros.
A sensatez me absurda.
Os delírios verbais me terapeutam.
Posso dar alegria ao esgoto(palavra aceita tudo).
(E sei de Baudelaire que passou muitos meses tenso
porque não encontrava um título para os seus poemas.
Um título que harmonizasse os seus conflitos. Até que
Apareceu Flores do mal. A beleza e a dor . Essa antítese o acalmou.)
As antíteses congraçam.
Novamente neste poema temos o eu-lírico anunciando o seu “desencontro com
o real”, ou , quem sabe, o seu afastamento da representação habitual da realidade .
Assim, ele diz: Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras. Sou formado em
desencontros. A sensatez me absurda. Esse desencontro é ,na verdade, aqui, mais do
que nunca, assumido como “formação” desse eu-lírico(Sou formado em desencontros)
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.Assim, o desencontro não é algo em vão, mas ao contrário, assume mais uma vez um
sentido “positivo” na poesia de Manoel de Barros, pois o desencontro é a formação do
eu-lírico deste poema. Ou seja, não é qualquer desencontro, mas o que permite formar
algo, produzir algo, produzir poesia. Mas, o que significa esse formar a que se está se
referindo? Formar dá idéia de algo pronto, fechado,no entanto, na poesia de Manoel de
Barros, esse formar não parece ter esse significado, já que a” sensatez absurda” o eu-
lírico. Isto porque o desencontro do eu-lírico nasce de uma tensão permanente,que não
descansa. Não é , repetimos, o desencontro, pelo menos não nos parece, apenas uma
oposição ao encontro, como um “ou isto ou aquilo”. Esse desencontro do eu- lírico é a
tensão constante e sem definições entre isto e aquilo. Assim, o eu-lírico se refere à
“tensão” ,à “indefinição” existente em “Les Fleurs du mal” , de Baudelaire.A
ambigüidade, essência da linguagem poética, é o que permite dizer que o desencontro ,
que dissemos formar o eu-lírico deste poema, não é um lugar assegurado, mas um
eterno desencontro. Por isso, a poesia de Manoel de Barros pode ser inserida nessa
poesia que , ao contrário de ser clara, é obscura, e até mesmo de difícil acesso, ainda
que de início ela pareça simplória e de pouca importância .Não é a toa,portanto, a
referência a Baudelaire, que é um dos poetas caracterizados desta forma, ou seja, de
obscuros, de difícil acesso, que é a poesia moderna, uma poesia que não é “formada” de
“encontros’, de “sensatez”, mas de uma natureza que deseja resguardar uma
incompreensão constante, uma tensão capaz de provocar sempre o leitor, pois não o
deixa tranqüilo diante do poema,mas sempre com a sensação de uma compreensão que
é escorregadia, que é sempre “impalpável”. Assim, declara o eu-lírico em outro verso,
afirmando ainda mais a sua proximidade da poesia de um Baudelaire: Posso dar alegria
ao esgoto(Palavra aceita tudo). Mas, o que seria isso? O que seria dar “alegria ao
esgoto”?Novamente inserido na poesia moderna, o eu-lírico do poema de Manoel de
Barros anuncia a sua natureza poética- alegria,criação que brota do esgoto, de coisas
“putrefatas”- em decomposição,em esfacelamento, tão ao gosto da poesia que rompe
com a representação de mundo ideal. A desconstrução de Manoel de Barros é, portanto,
uma desconstrução de mundo(por que não?)ao modo de um Baudelaire, de um
Mallarmé, de um Valéry. Ou seja, de poetas que romperam com uma representação de
mundo já de “formas feitas”, consagradas.
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É preciso observar também que a desconstrução de mundo , de que nos fala o
eu-lírico nos poemas de Manoel de Barros, não aparece como algo que não pertença à
poesia , como uma “novidade”, essa desconstrução é da natureza da poesia. No entanto,
ela não é um dado pronto, uma receita, pois se o fosse ela seria tão banal, “tão clichê”,
como a construção habitual do real, como as “formas feitas”.Ela, aliás, é tão “sem
lugar”, tão “infinita”, que difícil é falar de uma desconstrução que pelo seu uso ,pela
sua referência constante,caia no mesmo plano de uma “construção”. Constatamos isso,
de alguma forma, nos versos : (E sei de Baudelaire que passou muitos meses tenso
porque não encontrava um título para os seus poemas. Um título que harmonizasse os
seus conflitos.Até que apareceu Flores do mal. A beleza e a dor. Essa antítese o
acalmou.) Os conflitos,como diz o eu-lírico, se harmonizam, mas não cessam. Essa
harmonia surge, justamente, da “aceitação” do próprio conflito. Assim, diz o eu-lírico:
(...)Até que apareceu Flores do mal. A beleza e a dor. Essa antítese o acalmou.
Abrindo um parêntesis para pensarmos mais essa questão de incompletude que,
como dissemos, a poesia de Manoel de Barros aponta, lembramos ,então , do texto de
Paul Valéry, A alma e a dança, um diálogo, no qual temos como personagens Sócrates,
Erixímaco e Fedro. A passagem que nos chama a atenção,neste diálogo, para pensarmos
a questão da incompletude , parte dessa ambigüidade do real que a poesia reflete como
a sua principal essência, é a de quando Sócrates , contrariando o médico Erixímaco,
que ao proclamar a sua renúncia às drogas inconstantes, “que o comum dos médicos
impõe à diversidade de seus doentes”, diz ater-se estritamente ao uso dos remédios
evidentes e que segundo ele seriam oito(o quente, o frio; a abstinência e seu contrário; o
ar e a água; o repouso e o movimento, declara que para a alma só há dois: a verdade e a
mentira. Assim, Sócrates coloca esses dois “conceitos’ como os dois lados de uma
mesma moeda,ou seja, como altamente interligados, dependentes, e sendo questionado
por Erixímaco a respeito, ele diz que nada pode fazer, pois “é a própria vida que assim
o quer; sabes melhor que eu que ela se serve de tudo. Tudo ajuda a vida, Erixímaco,
para que a vida nada conclua”.(p.22,grifo nosso). Além disso, ele, para completar essa
idéia, compara a vida a uma mulher que dança. Assim são suas palavras: (...)”Ela é uma
mulher que dança , e que deixaria de ser mulher divinamente, se o salto que fez,
pudesse obedecê-lo até as nuvens. Mas como não podemos ir ao infinito,nem no sonho
nem na vigília,ela,de modo semelhante, reconverte-se sempre a si mesma; deixa de ser
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floco, pássaro, idéia;-de ser enfim tudo o que a flauta quis que ela fosse feito, pois a
mesma Terra que a mandou a convoca, e entrega-a toda palpitante à sua natureza de
mulher e a seu amigo...(p.23). Sócrates ao fazer tal analogia, refere-se a essa condição
de incompletude que mencionamos anteriormente. Primeiramente, dizer que a verdade e
a mentira são os únicos remédios da alma e que eles se integram mutuamente é dizer
que há um real que extrapola o exato, o objetivo, o meramente racional que o discurso
científico, tal como o de Eurixímaco ,com seu discurso científico de médico, trabalha.
Segundo, ao comparar a vida a uma mulher que dança,e que por pouco deixaria de ser
mulher de tão divina que se apresenta(como uma deusa), mas que sempre retorna à sua
condição “terrena” de mulher,já que a completude é impossível, ou melhor, que não
podemos ter uma completude porque o infinito não pertence ao homem, pois é
inatingível, realiza a perfeita imagem da poesia, que é essa ambigüidade , essa eterna
incompletude do real, mas que por isso mesmo , por ser ambíguo, e por ser
incompleto, provoca o poeta , o escritor para a criação.A imagem da mulher que dança
tão divinamente que parece uma deusa , mas que “de repente” retorna à sua condição de
humana, é essa fronteira, esse “limite”,da representação do real.
Voltando, então, a Manoel de Barros, podemos dizer que a desconstrução que
propõe o poeta em seus poemas é uma desconstrução que se situa nesse limite, nessa
“linha imaginária” de que fala o personagem Sócrates,no texto de Paul Valéry, através
da metáfora que constrói da vida .Essa “linha imaginária” é uma “fronteira” que não se
ultrapassa, que não se supera,mas que,ao contrário, é preciso nela permanecer,pois é a
única possibilidade do real aparecer . O poeta se alimenta dessa “linha imaginária”,
desse “infinito” que busca ,mas que sabe tão bem que é fugaz, porque ,como diz
Sócrates, personagem do diálogo de Valéry: “é a própria vida que assim o quer”.
Talvez, por isso, o poeta seja esse ser tão “sem partido”, sem um real que o
sustente,ainda que a realidade seja sua “substância”.
Em outro texto de Valéry , por exemplo, intitulado “Poesia e pensamento
abstrato”, o poeta compara a dança à poesia e o andar à prosa.
“O andar,como a prosa,visa um objeto preciso. (...)/Quando o homem que
anda atingiu seu objetivo-como eu disse antes-, quando atingiu o lugar, o
livro, a fruta, o objeto que lhe causava desejo e cujo desejo tirou-o de seu
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repouso, no mesmo instante essa posse anula definitivamente todo o seu
ato;o efeito devora a causa, o fim absorveu o meio;e qualquer que tenha sido
o ato,permaneceu apenas o resultado. Acontece exatamente a mesma coisa
com a linguagem útil: a linguagem que acabou de me servir para exprimir
meu propósito,meu desejo,meu comando,minha opinião, e essa linguagem
que preencheu sua função desvaneceu assim que chega.(...)/ O poema , ao
contrário, não morre por ter vivido: ele é feito expressamente para renascer
de suas cinzas e vir a ser indefinidadamente o que acabou de ser. A poesia
reconhece-se por essa propriedade: ela tende a se fazer reproduzir em sua
forma, ela nos exercita a reconstituí-la identicamente”.
Nesta passagem , observamos como a poesia não só é tecida nesse “limite”,
nessa “linha imaginária” a que nos referimos, mas que o próprio poema é uma eterno
“espaço” a ser “decifrado” , a ser repensado continuamente e tudo a partir de possíveis
aproximações, pois ele, o poema, é o “caminho” que não se constrói por “linhas retas”,
e nem mesmo é caminho de chegada ou de partida. O poema é mais um caminho de
“aceno” , insinuante ,e sobre o qual tentamos construir significados que sempre ficam
aquém de “verdades” encontradas .O que mais “ incomoda” no poema é isso: a sua
“desorientação”, a sua “descontrução”. E por nos sentirmos “incomodados” relemos
muitas vezes o mesmo poema.
Na obra de Manoel de Barros , por exemplo, percebe-se ,com freqüência, que
não há uma obra pronta, um poema “feito”. O poeta parece muito mais estar
experimentando as coisas.Essa experiência aparece quase como uma atividade lúdica.
Desta forma, curiosamente,o poeta inicia , por exemplo, Livro sobre Nada com o poema
que tem alguns versos que dizem assim : “As coisas tinham para nós uma desutilidade
poética./ Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber./A gente
inventou um truque pra fabricar brinquedos com palavras./O truque era só virar
bocó./ Como dizer:Eu pendurei um bentevi no sol.../O que disse Bugrinha:Por dentro
de nossa casa passava um rio inventado”(p.11) A essa “brincadeira” se junta a
desconstrução a que nos referimos, ou quem sabe é a própria desconstrução que é
habitada de “brincadeira”.Tudo tem, então, nos poemas de Manoel de Barros, a
seriedade e, ao mesmo tempo, a ingenuidade e gratuidade de criança brincando. Em
outro poema do mesmo livro ,por exemplo, percebemos essa relação quando lemos:
“Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:quando cheias de areia de
formiga e musgo - elas podem um dia milagrar de flores./ (Os objetos sem função
têm muito apego pelo abandono.)/Também as latrinas desprezadas que servem para
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ter grilos dentro – elas podem um dia milagrar violetas./(p.57) . Nestes versos , a
relação do eu-lírico com o mundo parece uma relação de criança remexendo o
“imprestável” para impulsionar o “faz de conta”, a imaginação,ou para “habitar o
inabitável”.E como em brincadeira de criança tudo dá a impressão de improviso,
experimentação. Há também que se lembrar que assim como a criança constrói
algo,uma brincadeira , um castelo de areia, para logo depois desfazê-lo ou esquecê-lo
sem a menor culpa, a desconstrução em Manoel de Barros não tem “compromissos”.Por
isso, talvez, o poeta está a todo momento retomando o tema da desconstrução, como se
estivesse, como a criança em suas brincadeiras, construindo e desconstruindo
(experimentando),o real. Em uma de suas entrevistas o poeta ,ao ser questionado sobre
as funções da poesia no mundo atual e se ela realmente seria necessária, declara :
(...)Além disso a poesia tem a função de pregar a prática da infância entre os homens.
A prática do desnecessário e da cambalhota,desenvolvendo em cada um de nós o
senso do lúdico.Se a poesia desaparece do mundo, os homens se transformariam em
monstros, máquinas, robôs.(p.311)
V. O “condão de advinhar” versus a linguagem informativa
A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá
Mas não pode medir seus encantos .
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
Existem
Nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar:divinare.
Os sabiás divinam.
No penúltimo verso deste poema, o eu-lírico diz: “Quem acumula muita
informação perde o condão de advinhar:divinare”. Neste verso percebe-se uma outra
nuança da poesia de Manoel de Barros, ou seja, a oposição entre a linguagem
informativa e a que poderíamos chamar criadora, “advinhativa” (“Quando a criança
garatuja o verbo para falar o que não tem” -p.47). O eu-lírico neste poema se
refere,então, à linguagem informativa como aquela que não consegue extrapolar o
âmbito estritamente objetivo da realidade, como é o caso da linguagem científica. Na
verdade, essa outra nuança vem confirmar ainda mais o tema que até então estávamos
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tratando em torno da obra de Manuel de Barros,ou seja, o tema da desconstrução, pois a
linguagem científica(a linguagem informativa) é aquela que prescinde da desconstrução,
já que se alimenta da visão objetiva do real. Para “ironizar” essa oposição o poeta
“brinca”,por exemplo, com o vocábulo sabiá que “sugere” sabia(o). O verbo adivinhar
é outro vocábulo que,também, ganha sentido muito especial neste poema, quando é
comparado a “divino”, ao sagrado, que é o âmbito da poesia, deixando, com isso, a
linguagem da ciência num plano inferior, de “reles mortal”.
Ao fazer tal oposição é preciso notar que o poeta não está apenas mostrando
uma diferença ,mas construindo uma identidade. No entanto, para construir essa
identidade o eu-lírico se vale ,paradoxalmente, de uma desconstrução. Neste poema , a
desconstrução se dá através da desmistificação da ciência como “a linguagem”, o
discurso supremo. A ciência é desmascarada como “técnica”impotente de ato maior,
que é o de divinare. Assim , o eu-lírico parece comparar a poesia à “magia” e a ciência
à técnica:”Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar:
divinare”.Perder o “condão de adivinhar”(perder “a varinha mágica” que transforma o
real) é perder o mistério da magia, disso que não se explica através da informação, da
notícia, do dado objetivo, porque pertence a uma outra dimensão, à dimensão dos que
“divinam”,como os “sabiás”.
Também é bastante curioso observar como o eu-lírico desconstrói ,na própria
forma de construir o poema, o discurso científico. Primeiro ele afirma para depois
negar. Assim temos: A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá(afirmação)/mas não pode medir seus encantos/A ciência não pode calcular
quantos cavalos de força existem/nos encantos de um sabiá(negação).(p.53).Ou seja,
há uma desconstrução expressa a partir do conteúdo que também é refletida na forma
deste poema, o que acentua ainda mais o caráter não “retilíneo” do discurso poético em
questão. Em “As lições de R.Q.” , outro poema de “Livro sobre Nada”, temos,por
exemplo, os seguintes versos que expressam muito bem esse caráter “não retilíneo” a
que nos referimos: “Aprendi com Rômulo Quiroga(um pintor boliviano):/ A expressão
reta não sonha”( p.75). Esse caráter “não retilíneo” também é expresso em outro verso
do mesmo poema, em que o eu-lírico sugere um movimento de aproximação das coisas
,da natureza, que é sempre um movimento de retomada, “circundante” ,de
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experimentação,exaustiva e gradativa, e não objetivamente,como o faz o discurso
científico:” O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê./É preciso transver o
mundo./Isto seja:/Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o
mundo: Tirar da natureza as naturalidades”(p.75)
Esse “movimento de aproximação” a que nos referimos, esse movimento
circundante e não retilíneo nos parece uma forma do discurso poético ir penetrando nas
coisas , ir “habitando” o real ,ir penetrando seus “encantos”, ou melhor, seus “recantos’,
ao contrário da ciência que tem uma relação um tanto quanto isenta , “de fora” ,das
coisas de que se aproxima. A respeito dessa “isenção” assim se refere Merleau Ponty
em seu ensaio O olho e o espírito: “A ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-
las”(p.25). Essa frase , que aliás abre o texto do autor, nos parece bastante significativa
quando pensamos neste poema . De fato, o discurso do eu-lírico vem ao encontro desse
pensamento . A idéia de uma ciência que manipula as coisas simplesmente sem habitá-
las está presente nesse poema logo nos dois primeiros versos: “A ciência pode
classificar e nomear os órgãos de um sabiá /mas não pode medir seus
encantos”(p.53). Ou seja, a ciência pode medir “tecnicamente”,objetivamente, o real,
mas não pode medir o que foge a essa linguagem técnica.Essa idéia de uma ciência que
possui suas limitações, que não dá conta com sua técnica do real é uma visão
desconstrutora, mas não é destrutiva,niilista,pois a “humaniza”,se quisermos, à medida
que a tira de seu lugar de detentora do saber, que a “fragiliza”.
VI. Manoel de Barros – poeta de “tempos sombrios”
A escolha da poesia de Manoel de Barros para pensarmos o tema do nosso
curso- “Poesia em tempos sombrios”- se explica muito por percebermos,de alguma
forma, em sua obra, um certo comprometimento com esses tempos.Em certa
entrevista3 , o poeta fala de seu papel , o de poeta em “tempos sombrios’: (...)”Li em
Chestov que a partir de Dostoievsky os escritores começam a luta por destruir a
realidade. Agora a nossa realidade se desmorona. Despencam-se
deuses,valores,paredes...Estamos entre ruínas. A nós ,poetas destes tempos,cabe falar
dos morcegos que voam por dentro dessas ruínas.Dos restos humanos fazendo
3 BARROS,Manoel. “Sobreviver pela palavra”.In:Gramática expositiva do chão,p.308-309.
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discursos sozinhos nas ruas. A nós cabe falar do lixo sobrado e dos rios podres que
correm por dentro de nós e das casas. Aos poetas do futuro caberá a reconstrução- se
houver reconstrução. Porém a nós, a nós, sem dúvida-resta falar dos fragmentos,do
homem fragmentado que, perdendo suas crenças, perdeu sua unidade interior. É
dever dos poetas de hoje falar de tudo que sobrou das ruínas- e está cego. Cego e torto
e nutrido de cinzas(...) . Sobre esse homem fragmentado , esse homem que vive entre
ruínas, esse “homem que vive em tempos sombrios”, podemos ,também, de alguma
forma, verificar ao lermos seus poemas. No entanto, o tema que buscamos enfatizar em
sua obra e que acreditamos que é através desse tema que o poeta busca falar desse
tempo de fragmentos, é o tema da desconstrução .A todo momento, como já dissemos
anteriormente, o poeta está “des” isto, “des” aquilo,ou seja , está desconstruindo . Essa
desconstrução não é simplesmente a negação pela negação, um simples niilismo, mas
uma “desconstrução construtora que se desconstrói a todo instante”. Ou seja, sua poesia
é também fragmento , mas não qualquer fragmento. É um fragmento que “transvê”o
mundo, como diz o eu-lírico de um de seus poemas também aqui já vistos . Para isso, o
poeta é ,como ele mesmo diz, muito mais de “faro”do que cerebral: “Me guio pelo
faro. Não serei nunca um poeta cerebral. Tenho um substrato de ambigüidades e
disfarces em mim4”. Dessa forma, podemos dizer que a poesia de Manoel de Barros é,
sim, uma poesia que vai tocar nesses “tempos sombrios”.
“Qual a matéria de sua poesia”?
Os nervos do entulho- como disse o poeta português José Gomes Ferreira.
Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima – é também matéria
de poesia- eu repito. Só bato continência para árvore, pedra e cisco. Em estudo sobre
O Processo, de Kafka, o humanista Gunter Anders, observa o amor de Leni pelos
processados. Leni acha que a miséria da culpa os torna belos. Sua compaixão pelas
vítimas é que a leva ao amor. De muita dessa compaixão é feita a poesia de nosso
século. Um fundo amor pelos humilhados e ofendidos de nossa sociedade, banha
quase toda a poesia de hoje. Esse vício de amar as coisas jogadas fora – eis a minha
competência. É por isso que eu sempre rogo pra Nossa Senhora da Minha
Escuridão,que me perdoe por gostar dos desheróis.Amém.(p.331)
4 ______.(s/d),p.331
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Bibliografia
BARROS,Manoel. Livro sobre Nada. Rio de janeiro:Record,2001
_____.Gramática expositiva do chão.Rio de Janeiro:Civilização Brasileira,s/d.
MERLEAU- Ponty. O olho e o espírito. Rio de Janeiro:Grifo,1969.
PUCHEU,Alberto. “Intervenções na relação entre poesia e filosofia:uma fronteira
desguarnecida.”(FL/UFRJ)
VALÉRY P .Variedades.SP:Iluminuras,1999.
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Eduardo Guerreiro Brito Losso é Doutorando em ciência da literatura na UFRJ
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Ó geral, da mediocridade!
Ó claque ignobil do vulgar, protagonista do normal!
Ó catitismo das lindezas d'estalo!
Ahi! lucro facil,
cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos!
Ahi! dique-impecilho do Canal da Luz!
Ó coito d'impotentes
a corar ao sol no riacho da Estupidez!
Ahi! Zero-barometro da Convicção!
bitola dos chega, dos basta, dos não quero mais!
Ahi! plebeismo aristoctaisado no preço do panamá!
erudição de calça de xadrez!
competencia de relogio d'oiro
e corrente com suores do Brazil,
e berloques de cornos de buffalo!
E eu vivo aqui desterrado e Job
da Vida-gemea d'Eu ser feliz!
E eu vivo aqui sepultado vivo
na Verdade de nunca ser Eu!
Sou apenas o Mendigo de Mim-Proprio,
orphão da Virgem do meu sentir.
E como queres que eu faça fortuna
se Deus, por escarneo, me deu intelligencia,
e não tenho, sequer, irmãs bonitas
nem uma mãe que se venda para mim?
Almada Negreiros, A cena do ódio
Que será a celebridade? Eis a obra infeliz a que devo a minha. É certo que essa peça, que me valeu um
prêmio e me deu um nome, será, no máximo, medíocre e, ouso acrescentar, uma das menores deste
repositório. Que abismo de misérias não teria evitado o autor, se esta primeira obra tivesse sido recebida
como o merecia? Mas era preciso que um favor inicial injusto me trouxesse, aos poucos, uma severidade
que ainda é mais injusta.
Jean-Jacques Rousseau, Advertência ao Discurso sobre as ciências e as artes.
Escreverei sobre a obra1 de André Rangel Rios. Trata-se de um doutor em
filosofia medieval e professor-adjunto do Instituto de Medicina Social da Uerj. Mas a
“obra” a que nos referimos não inclui sua dissertação sobre Hegel nem sua tese sobre
Suarez. Não escreveremos sobre o André Rios que provavelmente se encaixa neste
trecho do indelineável narrador de Nada ou isto não é um livro: “Mas acabei achando
1 Além de vários inéditos, André publicou um romance A Ilha dos Prazeres (Rio, Uapê, 1997); um longo
discurso metaficcional, Nada – ou Isto Não É Um Livro (Rio, Garamond, 2001); e uma coletânea de
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um tema que, parecia, agradaria, nos limites de uma tese de mestrado, a todos. Decidi
escrever sobre Husserl ... Sua pretensão à universalidade, sua certeza de estar propondo
algo que perduraria por séculos não me repeliu. Na época cheguei a dizer que Husserl
era como um paranóico que toma LSD: ele quer sistematizar tudo cada vez mais avante
com seus delírios e promessas. Escolhi um tema bem sóbrio: o juízo... Foi divertido e
trabalhoso”2. Quando li este trecho, pensei que se trocássemos Husserl por Hegel,
teríamos uma semelhança do narrador com o autor. Por isso digo que não se trata do
André Rios que cumpriu o dever de ser um doutor em Filosofia, o “André acadêmico”,
se formos subdividir (o que já é problemático) este autor em dois ou mais3. Interessa-
nos as ligações entre o André ensaísta e o André escritor de “ficções”. Se formos
chamar a complexa reunião desses dois autores num só de “André auto-irônico” (só
para dar um nome provisório), talvez seja ele que se confessa encarnado no narrador de
Nada..., no terceiro capítulo “Se”, depois de dois difíceis capítulos que desdobram uma
questão atrás da outra, trabalhando e se divertindo com o agravamento dos problemas:
Sempre sofri defrontando-me com a mediocridade por todos os
lados. Vivi tentando ultrapassá-la, excedê-la. Mas sempre me vi reenvolvido
por ela. Sempre quis combatê-la. Comecei tentando debelá-la do modo mais
básico, mais ingênuo talvez, isto é, sempre tentei denunciá-la: sempre tive a
mediocridade como meu tema. Mas tudo o que escrevi sobre a mediocridade
nunca foi mais do que medíocre4.
Se a inserção de André Rios no mundo acadêmico filosófico é trabalhosa e
divertida, segundo a ironia do narrador na citação anterior, essa citação nos apresenta a
obsessão do autor e a produção que dela deriva, com a qual vamos nos ocupar. Pelo
tom, dá a impressão de não ser tão divertida, até porque parece dizer respeito às grandes
e reais inquietudes de seu espírito conturbado; no entanto, nos artigos reunidos no livro
Mediocridade e Ironia, a abundância de sua “ironia” nos levaria a constatar que tais
artigos e ficções também proporcionam sua mais profunda diversão (ou quem sabe,
prazer?). Mas, pelo tom confessional da citação, tal ironia advém dos mais insuportáveis
ensaios, Mediocridade e Ironia (Rio, Caetés, 2001). Trabalho aqui, na verdade, somente com essas duas
últimas publicações. 2 RIOS, André Rangel. Nada ou isto não é um livro. Rio de Janeiro: Garamond, 2001, p. 60. 3 “Filosofia e Ascese. A filosofia como vivência existencial e o ensino de filosofia” (1999). In: RIOS,
André Rangel. Mediocridade e ironia: ensaios. Rio de Janeiro: Caetés, 2001, p. 194: “Assim também há
vários André. Digamos, há um André acadêmico ou mesmo academicista, e há um André ensaísta. E há
ainda outros”. 4 Ibidem, p. 53.
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incômodos existenciais e não motiva nenhum deleite com a própria criação, muito
menos orgulho narcísico, de modo que não é possível decidir se há prazer ou desprazer.
Mas por que estou me questionando sobre o trabalho e a diversão do autor?
Como assim, “diversão”, “trabalho”? O que poderia diverti-lo? Por que o prazer do
autor seria relevante teoricamente hoje, já que é mais produtivo pensar a existência do
próprio texto, ou de seus atos de leitura? O que é “diversão”, não só neste contexto
(trabalho intelectual), mas em geral? Todavia, cabe perguntar “o que é diversão”? Já
não estaríamos procurando definir um conceito de acordo com um certo platonismo?
Aliás, o que me faz colocar, logo nas primeiras palavras deste texto, que estou
escrevendo sobre a “obra” de André Rios? Que “obra”? Como assim, “obra”? Essa obra
existe? André quer existir como autor? Mesmo se não quiser e nós o tomarmos como
tal, ainda assim, não seria nossa palavra que estaria impondo o conceito de “obra” ao
que não passa de uma diversão, de uma imensa ironia? Mas, como assim, “ironia”?...
Depois de ler “isto”, que pode não ser uma obra, da qual pode não ser feita de
livros, nem “ficções”, nem “artigos”, podemos duvidar de tudo o que acabamos de
escrever. Para começar, talvez o narrador de Nada... nada reflita o autor, ao contrário,
tudo indica que tenha sido escrito só para confundir o crítico. Portanto, embora André
Rios escreva tanto sobre mediocridade, talvez isso não passe de uma diversão irônica e
trabalhosa, diversão que finge ser tão conturbada. Talvez a idéia de mediocridade
encubra uma obsessão outra, que faz um crítico ser medíocre ao comentá-la. O fato de
eu copiar a mise en abyme de perguntas uma atrás da outra encontradas em Nada..., em
“A estilização da mediocridade em Clarice Lispector”(1995)5 e em vários outros textos
seus, não é mais do que um simulacro medíocre do crítico para tentar absolver sua
ironia. Até minha afirmação de que sou medíocre ao mimetizar seus procedimentos
como crítico para absorver a lógica de sua disfarçada e falsa modéstia estratégica6 não
passa de uma estratégia medíocre e falsa, e assim por diante.
Por outro lado, talvez o narrador reflita sim algo do autor, talvez a mediocridade
seja de fato sua obsessão, mas de uma forma inabordável ao crítico, e por isso mesmo
minha mediocridade seja ainda mais radical, por tentar abordar o inabordável dizendo
que ele é inabordável.
5 RIOS, André Rangel. Mediocridade e ironia: ensaios. Rio de Janeiro: Caetés, 2001, p. 29-61. 6 Ibidem, “A ironia irrestrita de Jacques Derrida”. Seria o equivalente à “exímia peça de retórica
acadêmica, com tom de modéstia afetada, com o reconhecimentos dos limites...”, que ele identifica em
Derrida, na p. 282.
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Diante de tanto impasse, posso me decidir a não escrever mais sobre André Rios,
negar a primeira palavra deste texto, negar a primeira frase, e fazer do silêncio da crítica
a derradeira mediocridade que não mais se suporta escrevendo.
Com efeito, a leitura dessa “obra” (daqui por diante, não usaremos mais aspas
tentando disfarçar a mediocridade do termo, pelo menos desse) nos convida a todas
essas atitudes. Defrontamo-nos com uma mediocridade desmedida, “sublime”, segundo
Kant, de nós mesmos. A essas alturas, citar levianamente um filósofo mais que canônico
é mostrar que já relaxamos e aceitamos a “onipresença da mediocridade” em nosso
pensamento. Mas ainda poderíamos tentar nos revoltar com essa onipresença pensada
por André e dizer que é ele o único medíocre em jogo; devolver o peso desta carga,
denegar tanta excrescência ao próprio autor, pois foi ele (autor, narrador, narrador das
teorias, autor das ficções) que se perdeu em seus abismos. Nesse caso, procurando ver
sua obra de fora, diríamos que a mediocridade, na cultura ocidental, não é nem tão
onipresente nem tão astuciosa e sutil assim, foi sua obsessão que fez dela uma
pessimismo incurável, oriundo de um certo uso problemático da desconstrução
contemporânea.
Independente da escolha de todas essas possibilidades ou pior, da resolução ou
argumentação impossível de cada uma delas, parece que este texto crítico já foi
irremediavelmente levado pelas aporias da obra. Isso dificultaria a exposição da mesma.
Fingindo ser menos conturbado e mais sereno, vou organizar numericamente as etapas
deste meu texto crítico ignorando, inevitavelmente, os problemas de cada termo usado7:
1- pretendo apresentar a obra do referido autor através da questão da
mediocridade, que é seu grande motivo condutor, e a ironia como difícil (e
talvez impossível) clinâmen a ser extraído a partir da própria mediocridade
para atacá-la;
2- desenvolverei o problema da minha posição de crítico diante da obra desse
autor, o que é incontornável; não é cabível a usual neutralidade dos papers já
que sua produção ensaística não deixa de pensar exaustivamente a relação do
sujeito crítico com as obras analisadas e toda a problemática das chances do
7 Ibidem, “Autobiografia e segredo. Ensaio sobre a fama e a imortalidade” (1997), p. 126: “... questões
sem fim, inesgotáveis, infinitas. Sempre haveria algo mais a dizer. Sempre haveria uma explicação a mais
a ser dada, um porquê a mais para ser discutido”.
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crítico-autor e sua posição político-institucional frente ao cânone literário ou
filosófico8;
3- argumentarei a validade, importância e pertinência de suas indagações
ensaísticas bem como o valor dos textos ficcionais mediante a
interdependência entre um e outro e a descoberta de uma ironia onipresente
possível de ser lida na obra como um todo, ainda que não deixe de ser uma
hipótese (invenção, o que leva em conta a problemática da invenção) nossa;
4- criticarei o alargamento excessivo da noção de mediocridade, ainda que
produtiva;
5- Com tal crítica, pensarei minha posição teórica frente à provocação desta
obra, mesmo que de maneira grosseira, nutrindo-se e construindo-se a partir
dela.
O texto não segue à risca a sucessão numérica proposta, mas o que apresento se
baseará nela.
1- A SOMBRA DO TITEREIRO
1.1 - Onipresença universal
A imensidão do poderio da mediocridade fica bem clara nestes dois trechos, o
primeiro dos ensaios e o segundo do Nada...:
A mediocridade não é medíocre para se reproduzir e para ampliar
seus domínios; para defender-se ela sabe ser bem sutil e erudita”9 e “Como já
disse, a mediocridade é onipresente. Protéica. Pode-se ironizar aqui: a
mediocridade não é medíocre ao buscar perpetuar-se. Ela é extremamente
criativa em se apropriar de meios de mediocrização10.
Essas citações revelariam a prova cabal de que a “onipresença” da mediocridade
não passa do sintoma de um obsessivo que acredita não tanto numa teoria conspiratória,
8 Ibidem, “Filosofia e Ascese. A filosofia como vivência existencial e o ensino de filosofia” (1999), p.
189: “Um dos meus esforços dos últimos anos tem sido construir uma posição crítica, digamos, uma voz
crítica em relação à prática do ensino e da pesquisa da filosofia”. 9 Ibidem, “Itaguaí é aqui. Sobre o Alienista de Machado de Assis”, p. 14. 10 Nada ou isto não é um livro, p.57.
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mas num estado de coisas incontornável? Mas o texto que segue a última citação é
menos generalizante: “Se a mediocridade está e se impõe por toda a parte, então
também há por toda a parte os meios de neutralizá-la”11. O que segue, entretanto, não é
tão tranquilizador.
Mas, ao que parece, é para o lado da mediocridade que pende o
resultado, isto é, se se faz qualquer, qualquer coisa que seja, ainda que
teoricamente qualquer coisa que se faça possa resultar em algo de não
medíocre, em algo de extraordinário, é sempre algo de medíocre o que
resulta. Há que se ir armado contra a mediocridade12.
Apesar de sempre estarmos desconfiados da confusão entre narrador e autor,
parece que em Nada... a argumentação que relativiza a mediocridade aparece mais do
que nos ensaios, embora, por outro lado, confirme a obsessão.
Mas o que, afinal, é tão onipresente e astuto que pode dominar a mais alta
cultura, ou seja, até aquilo que estaria dela mais distante? O que é, afinal, mediocridade?
De acordo com sua peculiar orientação desconstrutiva, André não nos autoriza a
formular essa pergunta:
O mais difícil é estabelecer o que seja mediocridade. A
mediocridade é algo que não se pode estabelecer traçando limites claros. A
mediocridade parece ser camaleônica. A mediocridade parece não ser nada
medíocre em sua capacidade de se dissimular e se renovar13.
Logo, não podemos defini-la justamente devido a sua astúcia, ou ainda, sua
onipresença. Se ela está, ou pode estar, em todo lugar, como podemos isolá-la?
A própria questão: o que é a mediocridade? Parece já se mostrar, ela
própria, uma questão medíocre, como uma forma de pensar medíocre que se
mantém limitada à tradição metafísica do “O que é...”14
Querer defini-la é cair em suas garras. Se o ato de definição é medíocre, não é
possível deixar de ser medíocre enquadrando-a e afastando-se da mediocridade. É por
esse motivo que a estratégia discursiva de André é complexa, e precisa ser examinada
com cuidado.
11 Ibidem, p.57. 12 Ibidem. 13 “A estilização da mediocridade em Clarice Lispector”(1995) in Mediocridade e ironia, p. 45.
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Quem pergunta pela mediocridade, quem quer pôr-se frente a frente
com a mediocridade se faz de tolo; já está perdendo a primeira batalha. Daí a
arriscada tática da zombaria, de se ironizar a mediocridade. A ironia busca
atacar a mediocridade já esquivando-se dela. É a tática milenar de Sócrates.
O risco desta tática está exatamente em se pensar que a mediocridade é
risível, é esquecer-se da violência e da tirania dos medíocres.15
Se não podemos nos isolar da mediocridade, se é necessário não só lidar com
ela, mas incorporar boa parte do que ela domina ou contamina, podemos nos esquivar,
nos desviar, cortar sua correnteza dominante com a ironia. A ironia se vale das forças
dessa correnteza para alimentar sua própria força e inscrever seu traço singular contra as
tolas retas paralelas. Mas de nada adianta se esforçar por deixar este traço visível e
reconhecível como tal: a ironia que se orgulha de si mesma é medíocre e, além disso,
será destruída pela força tirânica e sempre maior da ditaduras medíocres.
Já que não é possível nem definir, nem reconhecer essa onipresença, nem
praticar a mais rigorosa ascese de renúncia a tudo o que foi dominado pela
mediocridade, pensar a mediocridade é já entrar numa batalha, numa luta com a
linguagem, com o próprio pensamento, e procurar experimentar ironias tentando
encontrar uma eficaz. Como André diz, a respeito da Laus Stultitiae de Erasmo, “Como
se opõe ele então à stultitia, à mediocridade universal? Como já se disse, com a
ironia”16.
A ironia é a um só tempo a arma e a oposição à mediocridade, e só se for
manipulada de uma maneira peculiar, especialmente na literatura e na filosofia.
Poderíamos nos perguntar por que não existiriam outras armas, por exemplo, a
educação? É aqui que a idéia de mediocridade comprova sua diferença em comparação
com outras categorias da comunicação, da sociologia ou da filosofia, tais como:
“indústria cultural”, “cultura do simulacro”, “sociedade do espetáculo” ou
“banalização”. Mesmo que de forma muito enfraquecida e suspeita, muitos acreditam
que a educação escolar e universitária pode amortecer a força da cultura de massa pós-
moderna, baseando-se numa certa herança iluminista. Mas, por mais esforço que se faça
nesse sentido, nunca tal proposta tocaria na grandeza da mediocridade. Se Godard,
Berio, Stockhausen, Zappa, Beckett ou Guimarães Rosa se contrapõem radicalmente à
indústria cultural, assegurando um mercado de arte e experimentação fora do mercado
14 Ibidem, p. 46. 15 Ibidem. 16 Ibidem, “A Stultitia de Erasmo” (1998), p. 87.
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submetido à lógica do consumo, nenhum deles é capaz de banir para fora sua própria
mediocridade. A mediocridade existe de forma bem evidente no cinema americano e
nas canções de rádio, mas essa é apenas sua faceta facilmente reconhecível.
Bem mais difícil é ter olhos para ver a mediocridade de Kant, de Deleuze, de
Foucault, de Godard, de Duchamp, da Volume (ops, essa não é tão difícil) e do próprio
André. Não porque, no fundo, todos eles sejam pretensos intelectualóides que nada têm
a dizer e por isso produzem qualquer coisa de muito complicado, só para confundir os
leigos (essa é a visão evidentemente medíocre do leigo). O que os leva a se
mediocrizarem é o fato de eles terem como condição de possibilidade da existência de
suas obras a pobreza infalível da cotidianidade, e se partem daí, vão retornar para esse
lugar, por mais sofisticadas que sejam. Da mesma forma que a desconstrução não
substitui a metafísica por outra coisa, a mediocridade não pode ser substituída pela
grande arte ou pensamento; as obras mais sublimes ou anti-sublimes, que chegam até a
absolver a indústria cultural em si mesmas (Andy Warhol), nunca chegarão a anular sua
dimensão medíocre, principalmente quando são reconhecidas como sublimes ou anti-
sublimes.
Nesse ponto, chegamos ao que poderíamos arriscar a identificar onde se
encontra, para André, o cerne da mediocridade, onde ela não pode deixar de estar, onde
sempre a encontramos, com toda certeza: no reconhecimento, ou melhor, na fama, no
sucesso. Precisamente, o mais preocupa (e/ou incomoda?) André é a mediocridade dos
cultos, entediados e hábeis como ele17, principalmente os que, além disso tudo, possuem
o reconhecimento. Esse “reconhecimento” em larga escala André Rios ainda não possui,
mas pode estar em vias de possuir no contexto nacional, e a hipotética aceitação ou
recusa que André Rios fará desse reconhecimento é um dos problemas mais
interessantes que abordaremos posteriormente. O grande “perigo” é que “a
mediocridade sabe ganhar para o seu lado os espíritos mais brilhantes, são estes que por
vezes melhor esmagam aqueles que ousam opor-se ao poderio desta deusa”18.
Mas o que faz esses espíritos brilhantes se tornarem medíocres? Depois de ter
lido a crítica de André à Derrida, Foucault, Heidegger, e principalmente aos seus
seguidores, a resposta não está clara, mas tudo indica que se trata do problema de se
colocar numa posição de reconhecimento, de sucesso intelectual, pois esse é o lugar por
17 Ibidem, “Itaguaí é aqui. Sobre o Alienista de Machado de Assis”, p. 15. 18 Ibidem, p. 15.
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excelência da mediocridade. Mas cabe aqui perguntar, por quê? O que indica a
competência de um intelectual não é, justamente, o interesse que suscita nos demais e a
importância que toma em uma dada discussão? Parece que André não desenvolveu
muito essa questão (mas em “Filosofia e Ascese” ele propõe uma argumentação contra
o culto dos grandes nomes no ensino de filosofia), o que comprometeria, talvez, o
estatuto de negatividade que impõe ao sucesso. Sem tratar desse problema agora, já que
ainda estamos tentando expor seu pensamento, aceitemos que toda posição de
reconhecimento, ou pior, de “estar na moda”, já é um enfraquecimento de uma obra e
uma condescendência fatal à mediocridade.
Em outras atividades intelectuais, como por exemplo, nas artes, também
encontramos espíritos brilhantes. Mas é justamente nesse meio que o contraste entre
suas obras e a mediocridade de seu reconhecimento se torna doloroso, por exemplo, na
idolatria da biografia de Beethoven (por mais que a quinta e a nona sinfonias sejam
brilhantes, sua popularização dificulta uma audição não medíocre), no aburguesamento
dos surrealistas ou dos Beatniks (por mais que seus integrantes ainda proclamem uma
postura revolucionária ou indiferente ao sucesso, a exibição dessa recusa é a melhor
estratégia, intencional ou não, para manter e aumentar o sucesso e tornar a subversão ou
a indiferença medíocre), na afirmação da banalidade do consumo de Andy Warhol (por
mais que todo o sucesso seja parte de sua própria estratégia artística, o poder desse
sucesso fez a própria estratégia de Warhol passar para o lado da mediocridade!).
O corpus de André, ao contrário, nos sugere que, independente das tentativas
mais desesperadas e fracassadas da vanguarda modernista de sair da mediocridade,
podemos aprender como a discrição de alguns conhecidos do cânone literário brasileiro
e mundial – Rosa, Erasmo, Clarice e Machado – foi capaz de manter um silencioso
distanciamento em relação à mediocridade de seus críticos, mesmo carregando o
(complexo, fácil, difícil, desejável, indesejável?) peso do sucesso. Todos eles
conseguiram isso através do que André chama de “ironia pervasiva”, aquela “que não
emana de nenhum personagem nem de qualquer narrador. Esta ironia, digamos assim,
impessoal, sendo a mais móvel é a mais apta a conter a também rápida, ágil e
assimiladora mediocridade”19.
19 Ibidem, “Itaguaí é aqui. Sobre o Alienista de Machado de Assis”, p. 23.
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1.2- Contra-ataque do vazio
Parece que André vê esse tipo de ironia como a melhor forma de se manter na
consagração ou no cânone sem ser “canibalizado” pela mediocridade20. No texto
“Itaguaí é aqui”, ele já começa dizendo que a ironia de nosso “bruxo” Machado de Assis
mal foi decifrada pelos críticos de sua obra, Luiz Costa Lima e Kátia Muricy. Primeiro
ao tomarem o partido do personagem Porfírio, de Machado de Assis, estariam sendo
vítimas da ironia a que Machado submete o próprio personagem21. Segundo, aceitam
que o narrador deste conto, “O Alienista”, se identifique com o autor, e não percebem
que o narrador, conivente com o patriarcalismo, é tão medíocre quanto os personagens,
o que é a estratégia básica da ironia especular do autor Machado para lidar com a
mediocridade: deixar a mediocridade falar e se exibir como ela gosta para que a ironia
pervasiva não se comprometa, não se exponha facilmente; que a “especularidade” da
mediocridade do narrador com os leitores ingênuos possa se multiplicar livremente pelo
texto, fazendo com que a hýbris da ironia da mediocridade se traia e se perca22. Quem
não perceber as armadilhas dessa ironia, cairá nas artimanhas da mediocridade e será
motivo de riso da ironia que a domina. Assim, a mediocridade “vencida” se torna uma
armadilha da ironia especular. Se um autor quiser exibir sua ironia orgulhosamente,
ocorrerá o contrário: sua ironia será mais uma armadilha da mediocridade.
Terceiro, os críticos não perceberam que Machado ironiza o patriarcado ao
deixar entender que, entre D. Evarista e a esposa do boticário, há uma relação
homossexual e, segundo André, “a única prática que efetivamente escapa e, assim, se
contrapõe e resiste ao patriarcalismo, isto é, que se mantém fora e não é assimilada por
ele, é o lesbianismo”23. Portanto, os críticos, ao não se darem conta dessa informação da
narrativa sutil mas essencial, se tornam cúmplices do patriarcalismo. No entanto, essa
afirmação de André de existir todo esse poder subversivo no lesbianismo, de estar do
lado de fora do patriarcalismo, poderia ser contestada pela própria impossibilidade de se
estar fora das instituições metafísicas dominantes analisada por Derrida e que André
conhece tão bem.
20 Ibidem, “A ironia irrestrita de Jacques Derrida”, p.277-9. 21 Ibidem, “Itaguaí é aqui. Sobre o Alienista de Machado de Assis”, p. 11-3. 22 Ibidem, “Itaguaí é aqui. Sobre o Alienista de Machado de Assis”, p. 18. 23 Ibidem, “Itaguaí é aqui. Sobre o Alienista de Machado de Assis”, p. 26.
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Mas, se podemos fazer essa crítica a esse ensaio, que termina dando tanta
importância ao lesbianismo, resta uma possibilidade mais complexa: o próprio André
pode estar praticando uma ironia especular em seu texto, e inviabilizando uma crítica
deste tipo, aliás, qualquer crítica a seu texto, sob pena de o crítico ser conivente com a
mediocridade que Machado expõe por meio de sua ironia, ironia essa que André
aparentemente está decifrando. Como André é (ou tenta ser) suficientemente hábil, ele
mesmo se auto-ironiza quando diz “Fico até pensando o quanto ele (Machado), ao fim
deste ensaio, também não rirá de mim”24. Assim, essa modéstia, retórica e acadêmica,
pode muito bem ser a armadilha (mas também o segredo da armadilha) da ironia crítica:
de deixar falar a própria mediocridade da crítica para subvertê-la silenciosamente,
realizando assim uma espécie de desdobramento mise-en-abyme que a interpretação de
Machado faz do próprio Machado25. O fato de essa estratégia ser ao mesmo tempo a
armadilha e a saída da armadilha toca numa grande questão para a crítica. Ela nunca
pode estar certa de que encontrou, decifrou ou desvelou a ironia do autor, nem pode
estar certa de que sua ironia decorrente seja o desdobramento da do autor ou mais uma
ironia medíocre. André deixa isso claro no final do ensaio:
O que imortaliza Machado não são nossas análises textuais
laudatórias e medíocres, são as boas risadas que ele, zombando de nossa
pretensão em domesticá-lo, pode dar de sua tumba. Pelo que vejo ele muito
ainda se rirá de nós, leitores incautos de suas obras. Talvez a melhor maneira
de comentar essas obras seja nos pormos em busca das risadas póstumas de
Machado de Assis.
Apesar (ou por causa) do sempre duvidoso “talvez”, manipulado pela cautela de
André (que evita qualquer afirmação para se manter no difícil equilíbrio da permanente
incerteza), encontramos aqui uma verdadeira proposta alternativa de leitura do texto
literário: ir à busca da ironia do autor não para dominá-la, mas para ser voluntariamente
sua vítima, aumentando seu poder. A melhor forma de valorizar nossos “bruxos” é
duelar a magia de nossa ironia com a deles e, perdendo a luta, enfeitiçados, doar nossas
energias e agravar o feitiço para que o próximo crítico seja a próxima vítima. A
“imortalidade” de Machado é uma risada eterna, incessante, alimentada por cada novo
desastre ridículo da crítica. Entretanto, como estamos tentando demonstrar, a operação
também pode ser invertida. A ironia de Machado pode ter sido decifrada, interpretada
24 Ibidem, “Itaguaí é aqui. Sobre o Alienista de Machado de Assis”, p. 13. 25 Desenvolveremos melhor essa hipótese logo adiante, no item 2.3.
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ou até inventada (não podemos decidir) por André para que ele mesmo se sirva de suas
energias com vistas a aumentar a sua própria ironia. Estas “energias” são, entre outras
coisas, a própria autoridade canônica do grande nome que é Machado de Assis. Nesse
caso, o crítico seria uma vítima aparente do feitiço do autor, pois sua “ironia pervasiva”,
silenciosa, justamente, estaria aí para se fingir vencida? Quando fracasso ou vitória se
tornam indecisos é porque ambos se equivalem. Mas se há equivalência, a armadilha
fica ainda mais complicada: um finge a vitória do outro em sua falsa derrota e vice-
versa, quer dizer (queremos tentar ser claros), um finge a derrota do outro em sua falsa
vitória. Logo, tal relação deixou de ser duelo, deixou de haver luta para que haja uma
reciprocidade simbiôntica na simulação do duelo.
De qualquer forma, a falsa subversão do lesbianismo pode ser, portanto, uma
falsa interpretação fraca, voluntariamente (ou não, o que levanta a hipótese de uma
involuntária falsa interpretação fraca!) posta por André para que um crítico desavisado
(medíocre) critique essa tolice justamente para cair na armadilha.
Toda essa série con-fusões que desconstroem relações binárias e as desdobram
indefinidamente são a grande característica da ironia especular: ela provoca uma mise
en abyme do pensamento, como André escreve a respeito de Erasmo: “Trata-se de ironia
em mise en abyme ou ironia especular, isto é, de ironias que se espelham umas nas
outras e se potencializam reciprocamente”26.
Além de Machado, André analisa as ironias de Guimarães Rosa, Clarice
Lispector e Erasmo. No “Grande sertão Veredas” de Rosa, André mostra como a crítica
é insensível às ironias tanto do autor (com o neoplatonismo, por exemplo) quanto do
próprio narrador, Riobaldo. Mais uma vez, André afirma que não é possível ser senhor
do texto como crítico, pois a própria figura do “senhor” é ironizada: “é importante que
nos lancemos à tarefa de ler um livro aceitando que não iremos compreendê-lo, que não
se pode compreendê-lo, que não nos tornamos senhor dele.. Pois, nele, o senhor é
implacavelmente ironizado. Inclusive o senhor escritor”27. De forma diversa de
Machado, André critica o autor Rosa por estar comprometido com a canonização, “ele
se proclama sertanejo e estende esta mesma honraria a não menos que Goethe,
Dostoievski, Tolstoi, Flaubert e Balzac, ou seja, onde ele se inclui modestamente no
26 Ibidem, “A Stultitia de Erasmo” (1998), p. 89. 27 Ibidem, “Narrativa e ironia no Grande sertão de Guimarães Rosa” (1999), p. 72-3.
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cânon internacional se auto-sacralizando, assim, como senhor”28. Portanto, a ironia de
sua obra ultrapassa sua própria autoria.
Embora André não tenha dito isso de Machado, podemos colocá-lo na mesma
situação, já que Machado foi, afinal, condescendente com a política dominante de sua
época, foi o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras etc. Portanto, neste
texto, André justifica aquilo que já antevimos: a ironia do autor também pode ser
ironizada pela ironia do crítico (que pode então participar da ironia do texto do autor
contra o próprio autor), e uma pode derrubar e/ou elevar a outra.
Neste ensaio, André questiona mais profundamente a autoridade dele mesmo ao
descobrir a silenciosa ironia especular que os outros críticos ignoraram:
Não estou liberando Riobaldo, que tão soberanamente ironizou os
leitores canonizantes modernos, para emaranhá-lo em uma rede de sutilezas
pós-modernas, de modo a, agora sim, com tão mais eficácia, submetê-lo à
academia?29,
Em outras palavras, André mostra que ele pode estar se afastando ainda mais do
texto, ou domando-o, ao pretender decifrá-lo com uma eficácia ainda maior.
No final, ele ainda desautoriza o próprio Riobaldo, que foi sempre motivo da
simpatia de toda a crítica e até então a dele mesmo, mas é, no final das contas, um
criminoso, perverso e no final da vida semelhante a um bom burguês. Finalmente,
ficamos com a impressão de que a ironia do crítico, do autor e do personagem ultrapassa
toda individualidade para se tornar uma espécie de entidade superior que se serve de
cada um para ironizar a todos, superior justamente por não estar limitada a uma
identidade, logo, por não ser exatamente uma entidade. Como André afirma a respeito
da ironia de Derrida:
A ironia está inscrita no texto, ela depende intimamente do texto ... e
do contexto ..., mas também não pode nunca ser totalmente descrita, ela
sempre excede toda a escrita, inscrição ou descrição. Toda a determinação
descritiva de uma ironia é sempre não mais que um ícone para indicar o seu
excesso. A ironia trabalha com a inesgotabilidade do contexto; ela amplia,
reduz, muda, desestabiliza os contextos30.
28 Ibidem, p. 73. 29 Ibidem, p. 74. 30 Ibidem, “A ironia irrestrita de Jacques Derrida”, p.282.
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Essa inesgotabilidade justifica o fato de ela poder nunca ser descoberta num
autor, ou só ser descoberta pelo André em alguns autores parcialmente e nunca
totalmente. O problema da ausência de recepção para a ironia especular é abordado na
ironia de Erasmo:
Mas, do mesmo modo que a Stultitia precisa de seu público
conivente, o ironista radical também precisa do seu, porém o ironista deixa
que seu público e sua ironia ‘aconteçam’: quanto mais raramente seu público
(o segundo público) acontecer, mais saborosa será sua ironia31.
André distingue a ironia do texto da Laus em três características: a especular já
analisamos. A pervasiva é aquela que se alastra para além do texto enredando cada um
dos leitores e intérpretes de modo que eles contribuam para a tolice da Stultitia
(traduzida por André como “mediocridade”) que é exibida no texto. A ironia em
acontecimento – é a que estamos tratando – não tem
(...) a função instrumental de persuadir um grupo imediato e
delimitável, mas que vai acontecendo na medida em que surgem seus
intérpretes que tanto mais rirão quanto mais ficar caracterizado o quão pouco
a ironia foi percebida. Este tipo de ironia pode, inclusive, ser proposta como
que visando um público futuro, ou seja, uma ironia que corre o risco de não
ser nunca compreendida.32
Pervasiva é a ironia que se alimenta da reprodução da mediocridade feita pelos
leitores que, justamente, não a atingiram; ao passo que a ironia em acontecimento se
serve do acúmulo de ironia pervasiva para potencializar o riso do intérprete que a
descobre. Como se vê, uma depende da outra: a pervasiva está à espera da ironia em
acontecimento, e a ironia em acontecimento absorve toda a espera da ironia pervasiva
no seu riso raro.
Desta forma, se, em extremo, não há público para a ironia em acontecimento, ela
pode não ser mais do que uma ironia narcísica; logo, se o “ironista radical” pretender rir
dos que não a entenderam, tal ironia pode-se converter em vaidade e resvalar para a
mediocridade. Como não é possível se jactar da própria ironia, ela deve-se introduzir de
forma impessoal, mas se nossa intenção for introduzi-la silenciosamente esperando um
leitor (para que ela se reconheça especularmente e libere a mise en abyme), há aí um
problema. Essa impessoalidade não pode ser motivo de seu contrário, ou seja, de uma
31 Ibidem, “A Stultitia de Erasmo” (1998), p. 89.
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especularidade narcísica (André diz, sobre isto, que “há algo de heróico”33), pois seria
uma falsa impessoalidade.
André não analisa em profundidade a aporia da ironia em acontecimento, mas a
justifica. Diz que Erasmo não está imune à sua própria ironia. Se nenhum homem está
acima da “atmosfera” mesma em que a mediocridade respira, a mundaneidade, não se
pode não ser, integralmente, medíocre, o que já vimos. A mediocridade é a “pedra no
meio do caminho” de todo ironista, por mais radical que possa ser, e a ironia, se pode-
se esquivar da “pedra”, nunca pode destruí-la totalmente. O que interessa reter aqui é
que a individualidade do ironista deflagra a ironia em acontecimento, mas não pode nem
se deve apoderar de sua existência. É ela que se apodera do ironista e de seus
intérpretes, e se um deles se posicionar como seu “criador”, não criará senão seu próprio
infortúnio de ser mais uma vítima da ironia pervasiva. Para sair da dificuldade de não
existir uma ironia pessoal, André, portanto, tenta resolver o problema com a noção de
kénosis (substantivo grego que é usado no sentido de vazio, vacuidade, esvaziamento,
passado para o português como “quenose”).
A ironia em Erasmo é um exercício de esvaziamento de si mesmo: esse é o
“caráter, por assim dizer, iniciático que há na Laus”34. Erasmo violenta contra sua
própria identidade por que ela está comprometida “por esta mundaneidade fechada
sobre si que é a mediocridade”, e convida alguns leitores a o acompanharem nesta
mesma quenose. No entanto, tal ascese não procura o abandono de si no êxtase cristão.
A ironia não é uma prática que visa um gozo para além do eu, mas apenas uma
“serenidade jocosa”35, justamente porque tal êxtase seria mais uma pretensa saída
absoluta da mediocridade, e justificaria uma finalidade, uma teleologia sublime para a
ironia em acontecimento.
Essa valorização da quenose também precisa ser esvaziada, de modo que a
quenose irônica radical seja uma quenose da quenose, uma mise en abyme da quenose
que se esvazia de si mesma para que o próprio vazio da ironia não seja nunca o
“mesmo”, que seja sempre redobrado especularmente na diferença de si mesmo.
Pressupondo que este uso da ironia de Erasmo interpretado por André (não temos
condições de saber se tal leitura de André é válida ou não dentro da scholarship sobre
32 Ibidem, p. 90. 33 Ibidem, p. 90. 34 Ibidem, p. 93. 35 Ibidem, p. 97.
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Erasmo, ela nos serve somente como invenção teórica de André) fundamenta, justifica e
afirma sua própria ironia, este seria um meio de sair da trivialização de práticas
ascéticas que não proporiam nada que conteste os valores dominantes36.
Tradicionalmente, segundo André, a compreensão retórica da ironia define três
individualidades distintas, necessárias para a ocorrência da ironia: o ironista, a vítima e
o intérprete37. Analisando um texto de Derrida, André afirma que, mesmo quando há
auto-ironia, ou seja, quando a vítima se identifica com o próprio ironista, pode-se
reconhecer a diferença entre as três instâncias. No entanto, em Derrida, não há
determinação dessas instâncias, portanto, ele pratica a ironia pervasiva, assim como
Erasmo, Rosa, Machado e Clarice. O paradoxo da posição de intérprete de André é
assumir ter sido o único a teorizar e desvendar a ironia em acontecimento desses autores
(principalmente de Derrida) e, assim, arriscar-se a cair numa valorização de si mesmo.
Mas no próprio ensaio “A ironia irrestrita de Jacques Derrida”, ele repete a hipótese da
pervasiva risada póstuma de Machado para, implicitamente, estar de acordo com a
prática da quenose, quer dizer, é uma maneira de esvaziar sua condição de intérprete
para levantar a hipótese de que Derrida pode estar rindo dele, tornando-se (ele, André)
sua vítima, ou de que seu lugar mesmo não é tanto de intérprete como também de
ironista do seu leitor-intérprete por vir etc. Aqui fica mais claro o quanto a quenose
irônica, mediante uma mise en abyme do eu ensaístico, indetermina as instâncias, de
modo que Derrida, André e eu mesmo perdemos nossa individualidade.
2 - CHANCES CRÍTICAS
2.1- Sóbria insignificância
Além dos textos sobre literatura, os ensaios de André também trabalham com
textos filosóficos, dos quais citamos um sobre Erasmo e outro sobre Derrida. “O
aniversário da morte de Heidegger” (1996) é uma ironia pensando sobre o quanto a
ocasião das homenagens levam os teóricos a praticar justamente aquilo que Heidegger
despreza, a Gerede, conversa fiada38, imbuída de vários procedimentos medíocres.
36 Ibidem, “Filosofia e Ascese. A filosofia como vivência existencial e o ensino de filosofia” (1999), p.
195. 37 Ibidem, “A ironia irrestrita de Jacques Derrida” (1998), p. 270. 38 Ibidem, “O aniversário da morte de Heidegger”, p. 101.
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Outros procedimentos medíocres, que o próprio pensamento de Heidegger praticava,
como, por exemplo, sua reprodução do dispositivo de controle que a história da filosofia
faz da “seleção de nomes, de textos e de como lê-los”39 são denunciados.
Há outro ensaio sobre Heidegger em Mediocridade e Ironia, onde o “intérprete”,
em vez de analisar a ironia de outros autores ou discutir as contribuições e limitações de
um pensador, usa de toda sua ironia para “desconstruir”, ou melhor, ironizar o pensador
analisado: “Uma mera ficção. A viagem de Heidegger à Grécia” (2000), tarefa que já
fora empreendida parcialmente em “O aniversário da morte de Heidegger”. Explorando
a questão da relação entre o valor e a importância de seu próprio nome e de seus colegas
do colóquio que participou, André desdobra, em “Autobiografia e segredo. Ensaio sobre
a fama e a imortalidade” (1997), todas as implicações de ter uma existência menor que
um “infame” (apropriando-se de um termo de Foucault), uma existência absolutamente
desinteressante; mas também leva em conta o fato de, talvez, quem sabe, ser valorizado
e alcançar a glória justamente por causa de ter analisado habilmente sua insignificância,
mesmo que o texto termine com uma bela citação do Esperando Godot, de Beckett, que
possui um poderoso efeito estético dentro de um texto teórico ao ironizar as esperanças
de uma glória possível, quer dizer, os desejos medíocres de um professor de filosofia
insignificante:
Mas será que por trás desta minha tentativa de pensar
insignificantemente não estou dissimulando mais uma metatécnica filosófica
que nega, ou a Tradição da Filosofia, ou as glórias desta Tradição, para tentar
voltar triunfalmente carregado sobre os ombros desta Tradição que
ardilosamente desvalorizei? Não vejo nenhum perigo disto, estou bem sólido
em minha insignificância. Mas se sou tão lúcido dela, será que não vou ainda
achar um caminho para fora dela e – heroicamente – alcançar a glória? Será?
Quem sabe? “Então, vamos lá?” “Vamos.”40
Não vou me alongar em toda a discussão que André levanta sobre sua
insignificância, somada à importância de o ensaísta levantar e questionar sua
autobiografia. Mas percebe-se que há uma rara e sofisticada denúncia da subserviência
da universidade, da intelectualidade e da política cultural brasileira por quase não
permitir a mínima chance de participação do laborioso professor universitário no debate
público, muito menos dá a ele condições de ganhar a pequena parcela de uma glória
medíocre, mas, de qualquer forma, necessária para financiar tanto a interminável ironia
39 Ibidem, p. 102. 40Ibidem, “Autobiografia e segredo. Ensaio sobre a fama e a imortalidade” (1997), p. 162.
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pervasiva quanto a felicidade da ironia em acontecimento. O pior e o mais complicado é
tentar desconstruir um habitus da universidade brasileira de não inventar e não construir
sua própria independência, mesmo quando glorifica um pensador próprio ou, o que é
ainda pior, justamente expõe humilhantemente sua fraqueza ao valorizar teóricos
medíocres41, justificando a ausência de prestígio do professor universitário em geral.
Talvez, pensando melhor, não precise existir uma glorificação de grandes nomes, mas
apenas condições para uma boa discussão. Mas como um país com nossa tradição
cultural pode “investir” em boa discussão se nem sequer produzimos grandes nomes que
a justifiquem?
Sem mais nos alongar nessa discussão, não há dúvidas de que André é um dos
poucos que levanta essas questões com a inquietação que elas merecem. É difícil
observar a vida de tantas pessoas (não quero citar números nem estatísticas) na
universidade fingindo que esses problemas não existem, ou fazendo pouco caso deles,
ou sustentando (implicita ou explicitamente) que não faz diferença abordá-los ou não.
Lendo André, ficamos com a impressão de que ele se esforça para que as chances de
diferença do pensamento universitário brasileiro apareça por meio do questionamento
de sua indiferença habitual consigo mesmo. Mas, como ele assinala, essa própria
reflexão pode não ser mais do que uma mera derivação da desconstrução francesa ou
americana. André faz um imenso esforço para cercar todas as possibilidades de um
provável fracasso, e procura antever, obsessivamente, seus sinais. Tal obsessão de ser
modesto pode ser o sintoma da impossibilidade da modéstia, não só dele, mas de
qualquer ensaísta42.
André articula várias mises en abyme em cada ensaio (principalmente em “O
aniversário da morte de Heidegger”), mas não perde uma verdadeira clareza estilística.
Sem dúvida, tal clareza é a condição para que tais mises en abyme não levem a um
arriscado hermetismo. O abismo da autoralidade teórica é clareado o máximo possível
para que se torne visível uma possível singularidade de idéias, talvez a singularidade de
ser uma clara articulação filosófica da mise en abyme, que nos permite ficar atentos à
mise en abyme obscura de todo e qualquer texto literário ou filosófico. O barroquismo
das mises em abyme são contrabalançados por uma certa leveza explanativa. Talvez seja
essa sobriedade o derradeiro golpe contra a mediocridade mais astuta, a do hermetismo
41 Ibidem, “A ironia irrestrita de Jacques Derrida” (1998), p. 280. 42 Esse problema levará mais adiante à relação entre quenose e glória.
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erudito, signo pueril de dificuldade e profundidade. André trata de problemas
complexos, mas os destrincha com um generoso cuidado com o leitor. Por não tratar de
nada simples, o risco dessa clareza é o de simplificar. Mas não há como fazer uma tal
acusação.
2.2- Primeira crítica hipotética
No entanto, podemos lançar uma hipótese mais... complexa. Agora já duvido de
afirmar que existe “a mediocridade mais astuta”. Achar que se pode medir os graus de
mediocridade e daí poder identificar o seu máximo é uma ingenuidade. Por isso,
podemos lançar a hipótese (bem de acordo com a obsessão de André) de que a
mediocridade pode-se servir de qualquer forma discursiva, de qualquer estratégia. Logo,
toda a clareza de André pode ser medíocre. Todo seu cuidado com a compreensão do
leitor, levantando problemas complexos, pode ser um sinal de que, afinal, a abordagem
de tais problemas e o modo como ele sempre os suspende, sem nunca propor uma saída,
é, não simplificada, mas medíocre. Ele não se permite traçar novos caminhos a partir de
suas indagações, ele prefere se manter imóvel diante do excesso de questões que
levanta, contemplando extasiado (mas alegando uma sobriedade) a falta de respostas
e/ou suas infinitas possibilidades.
Pelo menos essa é a crítica que levantaríamos do texto “A diferænça” (2000),
que faz uma interessante crítica a Derrida. Ele diz que o impensado em Derrida é não se
questionar do imperativo de extirpação (impossível) da metafísica do pensamento
ocidental, o que é, do nosso ponto de vista, uma valiosa crítica à desconstrução. A
necessidade imperiosa e nunca relativizada de “desconstruir” uma herança que é vista
em todo lugar, e que sempre é negativizada como um malefício perigoso, é muito
suspeita. A obsessão contra a metafísica em Heidegger, Nietzsche e Derrida (ou
metafísicas, como o último prefere), reconhecendo uma invariante da história da
filosofia da qual é impossível a superação (essa impossibilidade é mais visível ainda em
Derrida), é o sintoma de um aprisionamento do pensamento em seus próprios fantasmas
históricos, e não uma tentativa mais desprendida de encontrar novas linhas de fuga,
menos insistindo na obsessão do novo do que aceitando melhor certas cargas inevitáveis
do passado. Todavia, quando André se opõe ao imperativo do “il faut” derridiano ele
assume uma postura niilista:
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Sem todo este meu parasitismo, que é inútil para saber o não-saber,
eu não estaria aqui convidado, falando e escrevendo sobre o não-saber. O a é
desnecessário, minha carreira acadêmica é desnecessária, este evento é
desnecessário. Como se diria, numa linguagem entre a mística e psicanálise
[André refere-se aqui a Michel de Certeau], é tudo lixo. O a é lixo43.
André entende que o professor universitário chegou a um impasse. A différance
é um não-saber, mas justifica todo um trabalho com o saber para chegar a esse não-
saber. No limite, o professor não vai oferecer mais ao aluno do que o que ele não sabe.
Portanto, já que ele nada transmite, ele é, no fundo, um parasita, logo, tudo o que faz é
desnecessário, e tentar mostrar a necessidade da transmissão de um não-saber é
medíocre, até porque pode facilmente cair numa certa mística, alimentada pela aura
idólatra de admirar aqueles que dominam o “saber do não-saber”. O problema que
André pareceria não ter se dado conta, pelo menos na maneira como ele termina este
ensaio, é que ele mesmo propõe o mais absoluto parasitismo. O contato com o não-saber
e todo o excesso de dúvidas que ele provoca só pode nos levar a nada empreender, nada
arriscar, nada pensar e nada mudar, enfim. Assim, a onipresença da mediocridade de
André cai num problema pior do que a onipresença da metafísica que ele apontou. A
obsessão pela metafísica provocou toda uma reavaliação das potencialidades das
práticas filosóficas, mas a obsessão pela mediocridade parece não fazer mais do que
projetar o fracasso do inexistente pensamento brasileiro na filosofia mundial e, por
extensão, na existência como um todo.
Talvez a própria clareza estilística de André, embora admirável e louvável, seja
um convite à imobilidade, e não ao entusiasmo pelo deciframento, tão presente nos
alemães e em alguns franceses. Ao evitar o eruditismo e o hermetismo medíocres,
André ainda cairia numa (falsa) sobriedade medíocre44. Uma afirmação como essa que
acabei de fazer evidencia o quanto é complicado lidar com a falta de critério para
diferenciar o que é e o que não é medíocre. Dependendo do contexto, tudo pode ser
medíocre, e dependendo ou não do contexto, tudo pode ser irônico para que a ironia
ultrapasse o seu contexto. Podemos até afirmar que a ironia não é nem histórica nem
anistórica, ela se mantém sempre em suspenso no devir histórico, e a mediocridade é
43 Ibidem, “A diferaença” (2000), p. 237. 44 Seria falsa por cair num mal disfarçado fascínio pela imóvel contemplação do excesso de dúvidas do
não-saber. A extrema mobilidade do pensamento da suspeita equivaleria à imobilidade política do
intelectual.
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histórica e anistórica, sempre dominou um contexto histórico, é a invariável pobreza dos
contextos mais variáveis. O parasitismo sóbrio de André nega toda possibilidade de
mudar seu contexto simplesmente porque não há como superar a dominância da
mediocridade em qualquer contexto, e todo esforço de mudança é uma vã agitação ainda
mais medíocre que a paralisia dos professores coniventes com suas instituições. Manter-
se na suspensão irônica é, portanto, gozar do excesso abismal de dúvidas e
possibilidades, usufruir das ironias em acontecimento encontradas nas obras literárias e
filosóficas e propagar o poder de tais ironias com os próprios artigos. O
“acontecimento” irônico captado na leitura silenciosa só é presenciado ausentando-se
dos acontecimentos mundanos.
Toda essa crítica pode ter suas razões. No entanto, precisa ser examinada com
mais cuidado, pois a obra de André oferece vários indícios para torná-la supérflua perto
de sua própria riqueza de contradições, contradições essas que – como analisaremos
agora – talvez estejam bem articuladas, ou seja, não são ingenuamente contraditórias.
Agora procuraremos mostrar como a “força” dos ensaios é galvanizada pelas prosas
literárias (analisaremos, por enquanto, só uma). Façamos um pequeno esboço de uma
obra ficcional de André, Nada ou isto não é um livro.
O narrador do primeiro capítulo não narra nenhuma história, apenas deixa fluir
uma reflexão plena de mises en abyme e seus barroquismos, por isso mesmo está longe
de um fluxo de associações livres, pois possui uma ordem: a ordem que é necessária
para formular uma série de problemas sem solução, a ordem obsessiva da máxima
suspensão possível de certezas sem o prejuízo da clareza estilística e exposição de
idéias, compulsão à repetição do inconcluso. O narrador ordena seu discurso só para
tocar num ponto irrespondível, ou numa região de problemas insolúveis. Quando tal
região esgotou seu poder de perplexidade, o narrador volta a ordenar outros problemas
para chegar a mais um arroubo aporético, mas nunca sem abandonar, é claro, o tom
sóbrio.
Essa situação se repete em quase todos os outros capítulos. Se o primeiro deles
desenvolve a impossibilidade de “não fazer nada” e pensa tematicamente o fazer da
escrita que escreve sobre o “não fazer nada”, o segundo pensa a impossibilidade de se
orar para Deus não só por se desacreditar de Deus, mas por se desacreditar da identidade
do eu que ora e sua capacidade de crer em algo e portanto de se identificar com esse
“algo”. O quarto capítulo propõe um diálogo entre uma voz que problematiza toda e
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qualquer noção e uma voz simplificadora. Tal diálogo é sobre o acontecimento de se
estar escrevendo um livro, explorando todo o abismo ou a distância que a temporalidade
da escritura invoca entre o pensamento, o ato da escrita, o ato de leitura do leitor e o ato
de publicação. O quinto capítulo problematiza a existência do livro, e coroa todo esse
cortejo de esvaziamento das noções com a insuportabilidade de ser escritor e de ser o
autor do livro escrito, analisando a sugestão de se colocar uma epígrafe de Nietzsche
que não se tornou epígrafe mas mereceu um longo comentário sobre o fato de se estar
no final do livro. Principalmente neste último capítulo, fica claro que o excesso de
indagações de todo o livro se produz a partir de noções ou categorias da crítica literária
(autor “autoral”, autor “ficcional”, narrador, personagem etc). Em todos esses capítulos,
a devoção ao abismo de dúvidas e possibilidades, que identificamos nos ensaios, é ainda
mais emergente. A liberdade imagética (poética) do texto literário não é nem um pouco
explorada, e a ficcional, somente um pouco. André, neste livro, parece interessado em
usar a liberdade do texto literário para experimentar melhor suas indagações como
teórico até onde elas produzem um tipo singular de texto. Por isso, o livro inteiro
confunde os gêneros (prosa/ensaio) e as fronteiras entre literatura e teoria.
O terceiro capítulo é o único que desenvolve alguma narrativa: o narrador, aqui
um personagem relativamente definido, é um professor de filosofia que conta sua luta
“inglória” contra a mediocridade. Neste capítulo se encontra uma conexão bem clara
com a discussão dos ensaios.
Retomando a crítica feita anteriormente, constata-se que o parasitismo acima
denunciado é existencialmente muito bem explorado em Nada ou isto não é um livro. O
narrador, no primeiro capítulo, já que não narra, somente reflete sobre sua própria
escrita, pode ser chamado de escritor, talvez ficcional, que é e não é (há um jogo com a
ambigüidade) o escritor autoral. Esse escritor começa o texto dizendo que pretende não
fazer nada: “Hoje não vou fazer nada” (p. 7). Mas logo percebe que para não se fazer
nada é preciso fazer algo que não exija muito esforço. Então o escritor começa a se ver
complicando a questão e se esforçando com perguntas “dialéticas”. Ele quer fazer
alguma coisa que seja nada, mas não quer sentir tédio, que torna qualquer coisa muito
trabalhosa. Depois começa a pensar o que é estar escrevendo sobre nada, e embrenha-se
na dificuldade de saber se o “nada” é ou não um assunto, alguma coisa.
Sabemos que a questão sobre o “nada” ou o não-ser foi tratada das mais diversas
formas e movendo grandes obras ao longo da história da filosofia e da literatura, e
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sabemos que André sabe disso melhor que nós, com seu doutorado em Berlim, cume de
toda uma formação em filosofia. Portanto, o autor não é nada ingênuo ao escrever a
partir de uma indagação tão explorada. No entanto, não é o que parece. Este primeiro
capítulo nada acrescenta aos grandes textos que trataram dessas questões, ou seja, sua
abordagem do “nada” é medíocre.
Mas ainda assim ele tem uma boa serventia para nossa análise. Se André cai no
parasitismo, e até quer ser parasita, o início do Nada... prova que ele não consegue. Ele
prova não só que não é possível não fazer nada para qualquer pessoa, como ainda
mostra que André (na hipótese de ele se confundir com o escritor ficcional) não
consegue fazer outra coisa senão escrever, pensar, produzir conhecimento, produzir
saber sobre o não-saber. Nesse caso, embora esse saber seja um lixo (seja ele medíocre
ou não), sua práxis é inevitável no momento mesmo em que o pensamento se embate
com o não-saber ou o não-fazer. Se tal produção é o resto do nada, podemos concluir o
seguinte: todo saber filosófico ou literário não pode ser senão o saber do não-saber, e
fazer do não-fazer, assim como o não-fazer e o não-saber de André não pode ser senão
um fazer e um saber já bem “dialético”. Se André não consegue nada fazer, então o que
escreveu em “A diferænça” não pode ser tomado ao pé da letra.
2.3- Onipresença da ironia
De fato, não, e o ensaio “Filosofia e Ascese. A filosofia como vivência
existencial e o ensino de filosofia” (1999) vai retratar um André bem diferente,
totalmente engajado com a melhoria da filosofia no Brasil45. Somos obrigados a reler
esse aparente parasitismo de André como, bem ao contrário de tudo o que criticamos, o
desânimo provisório, e compreensível, de um verdadeiro guerreiro contra a
mediocridade da universidade? Ou podemos ler nesse parasitismo uma dimensão que
não contradiz o engajamento, mas indica uma reflexão mais “existencial” de um
professor de filosofia a respeito de sua própria ascese, para podermos, enfim, concluir
que tal “existencialismo” é, se não um “humanismo”, ainda uma forma de
aprofundamento que não deixa de alimentar uma revolta ativa?
Pode ser, mas, evidentemente, a imagem de um “verdadeiro guerreiro” soa
ridícula, não só por dizer respeito a um mero professor de filosofia (ou de estudos
45 Ver nota 8.
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interdisciplinares), mas principalmente por ser um mero professor de filosofia
brasileiro. E, no entanto, a “voz crítica” que André assume no ensaio “Filosofia e
Ascese. A filosofia como vivência existencial e o ensino de filosofia” se presta a esse
ridículo concomitantemente ao fato de apontar os atrasos ridículos da universidade
brasileira. Por isso, André parece não sair do habitus de uma cultura que não encontra
seu clinâmen salvífico, uma cultura sem chances filosóficas, um solo para pensamentos
sem chances, onde não há saída nem pelo parasitismo encenado, nem pela revolta.
Mas é nesse quadro desolador que encontramos a chave para propormos como
André pode pretender ter essa chance. Se o escritor de Nada... não se esforça para
ultrapassar sua própria mediocridade ao escrever sobre o nada, todavia, ao mesmo
tempo, não deixa de ser um curioso texto que goza de abismos teóricos literariamente.
Ao ser cotejado com os ensaios, esta prosa nos leva a uma hipótese mais interessante
que as outras. Se o Nada... é uma prosa teórica, que não é ensaio, e, sim, literatura,
literatura dos abismos da reflexão teórica, os ensaios podem se contaminar
intertextualmente com essa prosa de forma que eles mesmos não sejam nada do que
analisamos aqui. De fato, tais ensaios podem não ser mais do que literatura, a ficção do
próprio ensaio. Não só porque hoje o ensaio é formalmente livre e se beneficia de sua
crise, mas principalmente porque, em André, pode-se ler todo o seu engajamento,
parasitismo, análise desconstrutora, formulação e problematização de conceitos como
uma caricatura, paródia de todos esses procedimentos ensaísticos. Nesse caso, se André
não se mostra um pensador muito interessante comparado a toda a discussão francesa e
americana sobre a desconstrução, o Nada... informa que a intenção pode ser justamente
essa, a “intenção” de André é dar voz à mediocridade de sua própria mediocridade
“literariamente” (como mero professor de filosofia brasileiro, fazendo de toda sua vida,
toda sua ascese, uma ficção ridícula) e, assim, detonar uma ironia pervasiva.
Em “Autobiografia e segredo. Ensaio sobre a fama e a imortalidade” (1997),
André escreve
Nunca se chegaria a fechar um “eu próprio” que não tivesse
contradições e lacunas, sempre faltaria algo de próprio a esse “eu próprio”,
algo que deslegitimaria o “próprio” deste “eu”, que deixando de poder ser
considerado como um “eu próprio” deixaria também de poder ser
considerado como sendo propriamente “eu”; sempre haveria pois algo de
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impróprio no “eu”, algo que eu não seria, algo que nunca será tornado claro
para mim mesmo.46
Esse esvaziamento do eu próprio no questionamento de seu conteúdo remete
logo para a quenose dos ironistas radicais analisado anteriormente. Por isso mesmo, é
um indício de algo que, por trás de toda essa complexa e sóbria desconstrução, não se
encontra nessa desconstrução. Se pensarmos que essa forma de esvaziamento do eu é
típico de grande parte do pensamento contemporâneo, e que tudo o que se escreve
sempre articula esvaziamentos desse tipo, André não está dizendo nada de mais47. Mas
o fato de ele estar ironizando a mediocridade da própria desconstrução, sua compulsão à
repetição de reproduzir sempre articulações semelhantes e chegar a mais ou menos aos
mesmos impasses é uma hipótese que dá outro gosto a tudo o que lemos dos ensaios.
Neste trecho, André está esvaziando seu eu próprio ensaístico encenando um
esvaziamento e assim produzindo relações de cumplicidade intertextuais com o Nada...,
e ao mesmo tempo preenchendo-o com a ironia em acontecimento dessa encenação,
garantindo uma chance. Se ele não é nada, nem um infame, tal esvaziamento é
corroborado pela realidade, portanto, é mais um esvaziamento desprezível. Mas se ele
estiver manipulando uma ironia em acontecimento, ele está se esvaziando de si mesmo,
quenoticamente preenchendo a chance de seu nome como escritor-pensador. Podemos
até pensar que, para se tornar um grande nome, é necessário uma determinada estratégia
de esvaziamento do eu autoral que leve ao preenchimento do nome próprio, e é para isso
mesmo que o acionamento de uma ironia pervasiva trabalha.
Nesse caso, a voz de tal ironia os ensaios não revelam, e sim, ao contrário,
trabalham por ocultá-la. Contudo, esse trabalho deixa marcas, e é seguindo esses traços
de ocultamento que pretendemos descobri-la. Podemos realmente suspeitar dessa ironia
porque sua leitura de Clarice Lispector segue exatamente esse caminho: os maiores
defeitos do texto clariceano – “recurso exagerado a frases de efeito com tiradas patéticas
ou solenes, existencialóides, pseudo-dialéticas e tautologias tolas; elaboração de uma
46 Mediocridade e ironia: ensaios, “Autobiografia e segredo. Ensaio sobre a fama e a imortalidade”
(1997), p. 127. 47 Sempre podemos indicar algo interessante: André pode estar criticando a ontologia fenomenológica do
poder-ser próprio existencial e originário de Heidegger, sendo que tal esvaziamento do “sujeito” é feito
no seio do Ser e tempo, e pelo menos desde Nietzsche é uma constante contra o subjetivismo romântico,
idealista, e o humanismo. De qualquer forma, isso é uma espécie de movimento “já-sabido” na teoria
contemporânea, mas que pode ter suas singularidades de articulação e novas conseqüências, como
procuraremos analisar a seguir.
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metafísica superficial e associação com um misticismo piegas ...”48 – são lidos como
uma estetização da mediocridade cruelmente parodiada em sua existência polimorfa. Há
uma frase deste ensaio que arregala nossos olhos quanto ao perigo de ler no Nada...
uma confissão (terceiro capítulo, “Se”), ou ainda, uma especulação “sincera” (o resto do
livro), sem jargão, de um professor de filosofia: “Quanto mais apaixonado e intimista o
desabafo, mas chavonesco e vulgar”49. Diferentemente do esforço modernista em
assimilar a simplicidade da linguagem informal, cotidiana e coloquial, Clarice cultiva a
mediocridade e realiza-a com “originalidade e garbo” através de uma tensão entre o
paródico e o não paródico.
Se o Nada... é o desabafo de um combatente contra a mediocridade, desabafo
que multiplica vagalhões de raciocínios contraditórios e pseudo-dialéticas um pouco
vertiginosas e difíceis de entender para leigos mas talvez, no fundo, barrocamente
medíocres (devido mesmo a sua clareza sóbria), André estaria cultivando desse modo o
auge dos clichês cultos da teoria contemporânea contra sua própria mediocridade para,
através dela mesma, “invaginar” (André articula esse termo de Derrida, em La Vérité en
peinture, que pensa como o exterior da vagina, ou qualquer órgão com cavidade, se
torna interior ao corpo) sua obsessão para além ou aquém de si mesma, e assim,
finalmente, alcançar originalidade, garbo e glória. O que mais corrobora essa hipótese é
o fato de o escritor sempre insistir em sua falta de talento, de sutileza e de destreza para
escrever, e por isso se sentir vítima de uma invencível mediocridade na luta infinita e
inglória contra uma grosseira escolha de palavras50. Essa modéstia é uma voz medíocre
mal disfarçada: afirmando ser vítima da mediocridade por falta de habilidade com a
linguagem, apela para a confissão da “pura” intenção de não querer ser medíocre, como
se essa “intenção” também já não o fosse. O leitor desavisado cai na ironia pervasiva
dessa encenação da pura intenção sem linguagem, que é um bom disfarce para a ironia
em acontecimento não ser facilmente reconhecida. Essa pura intenção pretende um certo
heroísmo dizendo ser uma vítima inglória, o heroísmo de combater a mediocridade de
frente, sem rodeios, sem obscurecimentos, disfarces e os mil requintes das mensagens
indiretas no hábil uso da linguagem. O páthos desse heroísmo romântico, que procura
uma luta sincera para além dos jogos de linguagem, moraliza a luta contra a
48 Ibidem, “A estilização da mediocridade em Clarice Lispector”(1995), p. 33. 49 Ibidem, p. 37. 50 Ibidem, p. 55-7. Essa “grosseira escolha” é uma modéstia retórica que toma uma qualidade (a sóbria
clareza) como uma vulgaridade.
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mediocridade. Todavia, todo esse desejo pela clareza e honestidade não passa de
encenação da ironia em acontecimento, que manipula habilmente, sem nenhum
escrúpulo moral, todo esse páthos romântico pseudo-anti-medíocre da mediocridade
para, sem nenhuma clareza, numa voz bem silenciosa, indireta e repleta da artifícios,
vencer a mediocridade.
Toda essa estratégia soluciona a contradição de André hipostasiar a ironia de
alguns autores canônicos ao mesmo tempo em que condena o culto aos grandes nomes
feito pelo ensino de filosofia em “Filosofia e ascese”; pois, no ensaio sobre Rosa,
mesmo que ele faça uma crítica da glorificação do “senhor escritor” que Rosa faz (na
entrevista com Günter Lorenz) para sublinhar a que Rosa desfaz (textualmente em
Grande Sertão Veredas) de si mesmo, o conceito de ironia em acontecimento ainda
depende dessa ironia se sustentar na estrutura da glorificação dos grandes nomes (André
diz sobre Machado que a melhor maneira de imortalizar os autores é perseguir a
gargalhada irônica da ironia em acontecimento, portanto, tal perseguição à ironia em
acontecimento é um exercício de glorificação). Como vemos, a glorificação que a
análise irônica faz da ironia dos escritores e pensadores se torna, agora, a mediocridade
de glorificação dessas análises, e assim, libera uma ironia em acontecimento sem
glorificação de si mesma que ironiza tanto sua própria glorificação (apontada como
possível em “Autobiografia e segredo”, ainda que ironizada com a citação de Beckett,
agora vemos que é ironizada duplamente de forma mais eficaz) quanto a glorificação
dos ironistas analisados. Além disso, ironiza a própria crítica à glorificação da crítica
literária feita por ele, que pouca eficiência possui quando constatamos que ele não deixa
de citar e comentar os grandes nomes. Com tudo isso, André desenvolve uma estratégia
para se tornar um grande nome, ou seja, glorificar-se desglorificando-se, ocupando um
lugar ambíguo de estar ao mesmo tempo dentro e fora das formas de glorificação que
analisa.
3- O CRÍTICO, A CRÍTICA
Aqui cabe citar este comentário sobre Clarice: “pois se Clarice Lispector se
erguesse ostentando superiormente ironia ela teria imediatamente a sua estilização da
mediocridade anulada, a estilização do medíocre parece poder avançar ainda mais na
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medida em que Clarice deixa como que o texto atue sobre si e sobre a crítica”51. Nesse
caso, toda a ironia de André sobre a crítica literária de Clarice, Machado de Assis e
Guimarães Rosa serve como um ameaçador aviso para aquele que ocupar a posição de
crítico de sua obra. Se ele não se cansa de repetir que tais autores riem dos críticos
dentro do caixão, inclusive dele, por caírem na mediocridade que eles estão habilmente
combatendo, que será de mim, que sou praticamente o primeiro que escreve sobre essa
obra fora das limitadas resenhas de jornais? Como posso lidar com a fantasmática ironia
de Nada... que me assombra na imagem da cruel gargalhada de um autor vivo?
Mas qual seria a chave desta ironia tão velada? Será que não estamos caindo na
velha pretensão do crítico de desejar revelar o oculto? E, mesmo que isso fosse possível,
não seria a pretensão mais descabida, já que eu, Eduardo Guerreiro, sou um doutorando
que não tenho nem um por cento do embasamento filosófico e anti-filosófico, das
leituras e anti-leituras, da experiência, da cultura, da erudição e a negação de tudo isso,
nem, quem sabe, do talento52 do autor de meu objeto de estudo? Além disso, digo que
nem mesmo na minha “especialidade”, a teoria da literatura, posso estar certo de que
tenho algo a acrescentar ao autor, ou seja, uma visão de outro lugar, já que ele
demonstra um interesse e uma produção ligados a essa disciplina. Desse modo, seria
inviável, para mim, pensar sobre uma obra tão sutil, sofisticada e fronteiriça (entre
filosofia, teoria da literatura e literatura), devido ao meu estado de pré-formação.
Portanto, estou mais que me arriscando. Há vários riscos: de ser incoerente,
impreciso, redutor, pretensioso etc, enfim, modalidades da mediocridade inerentes a um
jovem crítico entusiasmado53. Não preciso dizer que toda essa retórica defensiva minha
é uma estratégia discursiva para heroicamente superar todas essas dificuldades com uma
sutileza especial que quer produzir seu efeito extraordinário, o que tornar-se-á a maior
das pretensões, que é, por sua vez, a pior das mediocridades.
Depois de todo esse mea-culpa, o André, que antes era um mero professor de
filosofia brasileiro, tornou-se um enigma monstruoso.
51 Mediocridade e ironia: ensaios, “A estilização da mediocridade em Clarice Lispector”(1995), p. 41. 52 Nada ou isto não é um livro, p. 54: “Talvez o caminho do sutil e sofisticado embate fosse o mais difícil,
provavelmente inviável, por exigir – isto é tão misterioso e do que se duvida da existência – o talento”. 53 Mediocridade e ironia: ensaios, “Autobiografia e segredo. Ensaio sobre a fama e a imortalidade”
(1997), p. 125-7. André mostra porque o entusiasmo de ter lido Heidegger na juventude e ter iniciado o
estudo de filosofia não passava de uma empolgação medíocre, mas depois pensa que não é possível dar a
última palavra sobre a verdade desse acontecimento numa visão posterior, mais “amadurecida”.
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Ou ainda, posso estar espelhando toda a modéstia e subterrânea ironia de André
para participar da sua ironia em acontecimento. Também posso estar escondendo uma
ironia subterrânea minha, que nem André sonhou conceber, e que é ainda mais
monstruosa e sutil do que toda a sua estratégia, cabendo a outro crítico desvendá-la com
sua própria monstruosidade. Todas essas ironias em mises en abyme são possíveis.
Propomos essa interpretação da obra de André, cuja estratégia pode ter sido
intencional ou não. Se foi intencional, desvendamos seu segredo, se não, inventamos
para ele um segredo desvendado. Podemos pensar que, mesmo se não foi intencional,
foi inconsciente, logo, possui uma intenção outra, à revelia da vontade do autor. Nesse
caso, desvendamos uma intenção oculta para ele mesmo, que seria sua verdadeira
intenção. Também pensamos que essa não foi uma intenção nem consciente nem
inconsciente, mas foi nossa intenção de crítico que passa por cima de suas intenções
consciente e inconsciente grosseiramente. Ou ainda, essa interpretação pode não ser
minha verdadeira intenção neste texto, outro crítico pode descobrir tal intenção, que
nem eu sei; ou não, pode permanecer para sempre um segredo, juntamente com a
verdadeira intenção de André. Ou ainda...
Post-scriptum ou continuando...
1- MAIS CRÍTICAS, MAIS DISTANCIAMENTOS
Será que todas essas possibilidades importam verdadeiramente? Será que elas
não passam de incertezas que pouco contribuem para o trabalho crítico? Será que
existem questões que contribuem e outras que não contribuem?
Toda essa estratégia interpretativa inventada (ou não) por mim pode não ser
nada de interessante perto das estratégias de leitura que estão sendo praticadas
atualmente na crítica francesa e americana da desconstrução, ou fora da desconstrução,
ou fora da França e dos Estados Unidos. Portanto, embora eu tenha tentado encontrar
uma chance para André e para mim, nós não passamos de dois pretensos professores
brasileiros presos no habitus reprodutor das idéias de fora. Ou talvez André encontre
outro crítico que pelo menos salve a chance dele, ou ainda posso ter a esperança de
encontrar um crítico que salve a nossa chance. Mas será necessário tanto “dedo”, tanto
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cuidado para lidar com todas as possibilidades imagináveis de sucesso e fracasso? De
que adianta abolir a surpresa do acaso no “lance de dados” que é escrever um texto num
computador que já exige o trabalho de todos os dedos? Quer dizer, o pensamento
teórico contemporâneo já não está excessivamente tomado de cuidados virtuais ao se
atualizar na escrita? Cito aqui um trecho do poema de Armando Freitas Filho:
um lance de dedos
jamais abolirá a vida
sempre à beira
das letras, das lágrimas
de mallarmé.
Um livro é um leque
uma rosa-de-ventos
com muitas leituras
voltadas para a amnésia
ou para a manhã.54
Podemos fazer, então, uma crítica a esse cerco de possibilidades de recepção das
próprias idéias que eu e André praticamos. Por isso, é justamente nesse sentido que
levantaremos mais uma crítica possível contra André, se ele se encaixa nessa hipótese
de interpretar sua obra. Se aqui encontramos o barroquismo e a obscuridade da crítica
de André, parece-nos que há uma ligação desse abismo de dúvidas com a aparente
clareza estilística. Toda essa ironia pervasiva que habita seu livro e seus ensaios acabou
nos mostrando que sua clareza é falsa, é um artifício para deixar falar o tom pedagógico
da mediocridade. Até tais dúvidas incessantes podem não ser mais do que a
interminável indecisão de um teórico medíocre que, fazendo parecer que está cônscio de
suas limitações e de seus possíveis fracassos, na verdade tenta esconder sua própria
insegurança frente à iminência de tais fracassos. Logo, o teórico medíocre está fingindo
segurança (conscientemente o não) com a segurança de enunciar tantas dúvidas, e a
ironia, ao contrário, está efetivamente segura de manipular esse fingimento barato.
Portanto, a ironia em acontecimento pode tanto rir dos que acham que a enunciação de
dúvidas do teórico são seguras quanto rir dos que acham que são inseguras. No final das
contas, a ironia pode ironizar qualquer coisa, qualquer posicionamento sobre qualquer
coisa, qualquer procedimento que se considere medíocre ou irônico.
Portanto, podemos expor mais essa hipótese contra André. Será que a pretensa
construção quenótica da ironia em acontecimento encontrada subterraneamente em sua
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produção aqui analisada não passa de um álibi para justificar qualquer procedimento
medíocre, em vez de tentar sair da mediocridade com uma proposta mais ... clara, ou
melhor, mesmo que seja hermética, que não seja mediada pela voz indireta de uma
ironia sempre oculta? Nesse caso, por um lado, o teórico se arriscaria a se passar por
ridículo e medíocre, sem o álibi da ironia radical, mas, por outro, não se apoiaria num
eterno jogo de esconde-esconde que é menos sagaz do que pretende ser. Assim, a
própria interpretação que André faz de Machado, Erasmo e Clarice, em vez de valorizar
tais autores com a descoberta da ironia em acontecimento, ao contrário, revela a
pretensão destes autores (e do próprio André) pelo riso derradeiro de uma ironia em
acontecimento que, agora sim, revela-se como mais uma fracassada mediocridade.
Portanto, a ironia radical, dentro dessa hipótese, é a mais falsa arma contra
mediocridade. A mediocridade de André, desta vez impossível de salvação justamente
por contaminar o crítico com a mesma, pode ter-se propagado em forma de pretensa
ironia em mim. O abismo de ironias se revela, por fim, um abismo de mediocridades
cada vez mais astutas, cada vez mais sutis e, no entanto, mais pretensiosamente sutis. A
ironia em acontecimento seria, então, ao mesmo tempo, a menor e a maior das
mediocridades, a mediocridade desmedida, sublime.
Se o sublime é um estado de transposição de fronteiras (segundo sua
etimologia), especialmente das fronteiras da arte, como a “arte bela” da mediocridade é
não ser medíocre para se propagar, usando inclusive de ironias diversas, a “arte
sublime” da mediocridade seria propagar-se com a ironia “radical”. Mas isso não
salvaria a mediocridade de si mesma, ao ultrapassar a si mesma? Talvez, mas a hipótese
não parece poder-se reverter de forma otimista. O transbordamento da mediocridade
dessa ironia parece levar a algo ainda pior que a mediocridade, e não melhor. A quenose
da ironia não passaria da maior das pretensões, a pretensão da mediocridade de querer
esvaziar a si mesma acabaria por transbordar a si mesma e, com isso, ser mais medíocre
que o medíocre: o miserável, se quisermos dar um nome. Tentando se opor ao
narcisismo da fama na mídia, a solidão dos intelectuais, literatos e filósofos cai no
narcisismo que tenta se disfarçar de quenose. Essa seria a sublime miséria da filosofia,
mais miserável do que os problemas ético-políticos que estão atualmente em discussão.
54 FREITAS FILHO. Armando. Longa vida (1979-1981). Edição particular: Rio de Janeiro, 1963, p. 127-
8.
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Contra o fraco otimismo do pessimismo generalizado de André, essa hipótese
seria uma espécie de pessimismo hiperbólico, conseqüência (evitada, ou talvez até
recalcada) da própria fraqueza do ativismo proposto por ele. Toda a clareza de André
não passa de uma dissimulação. Tal dissimulação sistemática e permanente trai a
incapacidade de obter um movimento criativo direto claro, que não se protege dos
abrigos do auto-encobrimento. André não conseguiria uma clara complexidade, à
maneira de Deleuze ou de Foucault (para dar grandes nomes como exemplo), porque
sempre aposta numa simplicidade dissimuladora da falsa complexidade, e no entanto
pensa ser, desta forma, verdadeiramente complexa.
Essa segunda crítica à obra de André parte de nossa interpretação, mas mesmo
sem nossa interpretação ela faz efeito. Todas as análises da ironia de outros textos, feita
por André, é desmontada por essa crítica. No entanto, essa crítica absorve a noção de
mediocridade de André, que já é exagerada e obsessiva, e a radicaliza. Ela mostra que a
ironia de um estilo ou um tipo de linguagem não deixa de se contaminar pelo que
ironiza, a ponto de perder as rédeas que a diferenciaria de sua vítima. O ironista
acabaria por ser a vítima da vítima, o que é ainda mais humilhante. A vítima teria a
vantagem de encarnar, pelo menos, uma mediocridade inocente, despretensiosa. Mas
toda pretensão não seria, já, inocente, já não estaria, de início, ligada às perversões e
ambições essencialmente infantis, partindo da psicanálise?
De qualquer forma, a partir dessa crítica, outras interpretações podem aparecer,
mais radicais ainda ou não, seguidas de outras críticas. O que me parece impressionante,
no cotejo desses dois livros de André, é constatar o estado crítico da crítica que ele nos
leva a enfrentar, aparecendo na forma de uma inevitável suspensão de um juízo ou
posição determinada. O que parece evidente é que tais críticas, por mais devastadoras
que sejam, apontam para a riqueza destes textos. Se essa riqueza é medíocre ou não, se é
falsa ou não, nem a ironia nem a mediocridade de nossas hipóteses pode decidir.
11/04/2003
2- O TEMPO REALMENTE PODE MUDAR?
Esse jogo infinito de redes, conexões, rupturas, tensões, ligações e variações
entre prazer e desprazer, mediocridade e ironia, complexidade e simplicidade, inocência
e esclarecimento, crítica e elogio, glória e esquecimento, sublime e cotidianidade,
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distanciamento e envolvimento, é o que observamos ter feito durante todo esse percurso.
Mas “observar” supõe aderir, no final deste texto, a um pólo da última das dicotomias.
Teríamos que desconstruir também isso: afinal, a última frase, a última articulação
estará tão envolvida no posicionamento do autor deste texto quanto qualquer outra frase.
As últimas palavras são inevitavelmente as mais medíocres e pretensiosas, e não adianta
tentar tematizar a dificuldade dando ares de distanciamento analítico.
Escrevo esse final um ano depois, e afirmo que ainda faltariam mais críticas
possíveis a serem abordadas, e, num certo sentido, sou levado a me repetir. A mais
conhecida e importante delas seria feita do lado de um certo marxismo atualizado, de
um Terry Eagleton nos anos 8055, por exemplo – teórico bem irônico e divertido, diga-
se de passagem – que considera todos esses infinitos debates da desconstrução no fundo
muito acadêmicos, afastando demais a teoria da prática e inflando artificialmente os
debates com contra-críticas infinitas. No limite, o crítico, ao forçar seu lado teórico,
precisa, ao pôr em jogo uma crítica, já adiantar-se com outras possíveis críticas e
produzir loucamente uma série de heterocríticas, sem, afinal, estabelecer ligações mais
sólidas com o mundo concreto, com objetos concretos de estudo, e finalmente encontrar
um posicionamento menos artificialmente confuso. A complexidade teórica, de base
dialética, serve para nos levar a posicionamentos, no fundo, muito simples, em vez de se
deixar levar pela complexidade beirando à pura indecisão pessimista. Talvez eu tenha
caído nesse problema, bem mais que André, ou talvez eu o tenha parodiado,
representado comicamente, em todo o texto, principalmente agora, que coloco a
questão. Como ficou claro nas críticas anteriores, minha situação incorre sempre no
risco de estar num lugar a mais ou a menos em relação a André, e não sei ainda se esse
mais ou menos é uma mera ou uma grande diferença.
Embora não seja possível aqui abordar essa crítica satisfatoriamente, digamos
assim, não adianta ignorar que a desconstrução – no “para adiante” de Derrida que nos
leva a André Rios – sofistica (academicamente, se se quiser), sim, a crítica, a ponto de,
hoje, qualquer posicionamento crítico perder “tecnologia teórica” se ignorar suas
55 EAGLETON, Terry. A função da crítica. São Paulo: Martins Fontes, 1991 (original: Verso, London,
1984), p. 94: “O repúdio à autoridade, que caracteriza a desconstrução, está nitidamente afinado com a
política dos anos 60; contudo, em nada se aproxima do simplismo da concepção segundo a qual as
preleções constituem uma forma de violência. Pois, afinal, o que poderia ser mais autoritário do que um
discurso que, no próprio ato de puxar o tapete de seus adversários, apresenta-lhes um perfil tão atenuado
que não há espaço para golpeá-lo, e que não pode ser nocauteado porque está o tempo todo arrastando-se
desesperadamente pelo chão? Seria impossível imaginar uma forma mais agressiva de kenosis, a não ser
as últimas heroínas de James”.
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manobras e volteios, e acredito que Eagleton não ignora. Isso implica, certamente, uma
perigosa relativização do próprio gesto crítico, problema esse que não pode ser
rapidamente resolvido nem por recusa nem por aceitação. Trata-se da própria
contaminação da indeterminação do sujeito do autor literário com o autor teórico (algo
semelhante é abordado na diferença analisada por Barthes entre escritor e escrevente),
motivo central deste ensaio.
6/08/2004
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Franklin Alves
Anzóis
Não fisgar o peixe deixá-lo (de leve)
tocar a isca tremular a linha Assim o poema
E ao voltar com o aço
com o náilon saber que a carne (conformada ao
primeiro) não é mais a mesma
*
Céu vermelho
Neste ringue aberto de todos os dias
Em qualquer round (pode ser o primeiro o último)
Depois do golpe (vertigem de agulhas)
beija a lona vê estrelas
(não as de Pequim) num céu vermelho
de supercílios abertos
*
Manchamos o pano claro do dia com sangue. Manchamos outro pano ao tentar limpar o primeiro. Não limpamos o primeiro. A menina japonesa não tinha nenhuma mancha preta no céu claro de sua pele: nenhuma revelação. Calçava botas ortopédicas. Nenhum cego ri daqueles que enxergam (Com o garfo, Borges ciscava o prato tentando encontrar pedaços de carne). Ninguém incendeia objetos ao tocá-los. Ninguém tem formigas deslizando nas veias. Nenhuma puta tem mil bocas, pois só temos um pau. Ainda não tiramos a poeira das coisas.
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*
Miles Davis
De nada adiantará esta música - verso cego
Depois do sopro no barro do sopro no metal
dos improvisos do acaso a desviar linhas
milhas da vida e dádivas
perde o fôlego
Deixa que toquem por você esta música cheia de erros
necessários
*
Palmilhar de- vagar o corpo
torpor A língua inclusa na pele como
agulha subpor
Cometer de mão cheia cabeça
vazia os mesmos erros
Descompor de- vagar o corpo
etc
*
O grande Buda
Incisa o corpo Retira dele
essa pequena peça de metal
cirúrgico: a angústia
Depois sem porquês
Morre
*
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Céu vermelho
O homem que ia atravessar as caixas, de uma margem a outra, morreu ontem. O outro homem, aquele que ia receber as caixas na margem oposta, desistiu logo após a notícia da morte. Ficamos deste lado com os embrulhos, pensando em abri-los. A dúvida cheia de olhos nos espreitava. Não abrimos. Sob um céu vermelho, meditamos a morte das coisas que elegemos, e que estariam, agora, no outro lado. Meditamos o imprevisto das caixas, que não nomeamos acaso, mas uma ordem que regula desde átomos até casos como este.
Franklin Alves (?)
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Cláudio Oliveira
Hoje
E, às vezes, andando ao sol,
pela calçada de uma rua
movimentada, em meio ao trânsito,
à fumaça e às buzinas, percebo
um andar contente, - de volta
de pequenas compras - só porque
o dia está bonito, a luz brilha
e o céu se apressa azul
junto ao vento. Caminho entre todos,
mamífero entre mamíferos, parecido com todos,
e é quando finalmente tenho
a minha cara, para usá-la
- enfim alguém - entre iguais
e o destino do mundo não pesa mais
sobre as minhas costas e o que quer que eu faça,
faço apenas parte, e tudo segue
como é.
Cláudio Oliveira
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Ricardo Vieira Lima
A UM ITABIRANO, COM AMOR
E como eu percorresse atentamente uma obra de Minas, majestosa, que ilumina corações e mentes
e devolve ao povo a sua rosa, descobri que o poeta é, sobretudo, um exemplo de vida dolorosa.
Mas a vida, como se sabe, é tudo, e a morte, essa visita derradeira, pode atrasar, mas chega - não me iludo.
A lição dessa obra é a primeira: nascemos para amar. O resto é espuma que se esvai entre todas as besteiras
que dizemos e fazemos. Em suma, o amor, essa "palavra essencial", justifica a vida. Então, nenhuma
outra é mais bonita. Ou mais banal. Quando o poeta itabirano nasceu, há cem anos, um coro celestial
de anjos, na verdade, emudeceu. Porque diante de um ser muito amoroso, não há anjo, arcanjo ou orfeu
mais puro, mais sagrado, mais zeloso. Quando o poeta itabirano se foi, em busca de um amor tão venturoso,
que unia pai e filha, os dois, irmanados na alegria e na dor, não sabia que, quinze anos depois,
um obscuro poeta, em seu louvor, dedicaria estes versos à glória de um itabirano, com amor.
Amor que não me sai mais da memória.
Ricardo Vieira Lima
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André Gardel
Noturno de Chopin
Um turbilhão de aves cegas Olhares expressionistas Murmúrios insanos Prazeres insaciáveis Levando carros, dias felizes Supermercados, cenas de filmes Viagens, gozos, drinks Luares, idas à praia Crianças, quadros, cães e gatos Se distancia ante meus olhos Em movimentos disformes, mutantes Assumindo cores vivas Pálidas, mortas Um turbilhão descalço Desnudo, descarnado Se lança ao passado Rolando ribanceiras Batendo nas pradarias Acendendo flashs Cheiros, acordes Canções Fotos esmaecidas Achadas na lixeira De algum prédio abandonado Ocupado por mendigos Usando qualquer papel Para fazer fogueiras Para fugir do frio Da noite De cactos e ruas Crimes e cortes Perdas amargas Vazios infinitos Transbordamentos vitais Um turbilhão de aves cegas Dilacerando Meu ser Membros, órgãos, células Espalhados Ao sol Estalando nas águas Silencioso Noturno De Chopin.
Eles apareceram de repente A cabeça pendente De um...
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A perna cruzada De outro... A janela de vidro do quarto Inesperadamente Um quadro vivo... Chegaram aos montes De todos os lados Formas presas Soltas No ar... A missão era especial: Recuperar uma bola caída No telhado do prédio em frente... Gritei: saiam daí! É perigoso! O menorzinho já Se aventurava por uma calha suspeita Nada escutavam... Todos muito hábeis Lépidos Leves Líricos Trabalhando em equipe... Saí para procurar ajuda Um deles poderia morrer... Voltei com os bombeiros Mas não havia mais ninguém lá Nem a bola...
Até bem pouco tempo atrás Havia um sentimento Um desejo, uma meta Impulsionando tudo Farejando arbustos Lendo luminosos Improváveis À caça De uma idéia Absoluta De uma palavra Fatal Até bem pouco tempo atrás Todo o meu corpo se projetava Na tela cega desse desejo Cego Agora vejo A Praia Do Flamengo O Pão De açúcar A Baía De Guanabara E tudo o que sou Navega Na paisagem.
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Velho demônio
Pena minha dor voltar diante da Lagoa Pena eu não viver todo o prazer desse dia Não rir à toa com as crianças brincando Não ficar na boa com a vida circulando Pena esse velho demônio retornar Justo no meu dia de descanso, em pleno Sol de verão sob a benção do Redentor... Quando ele volta sob a escolta da dor No peito, não há luta, tudo é luto Em volta só um fato inesperado solta A corda do pescoço, a corrente das mãos: Um detalhe na beleza da paisagem Uma canção que atravessa os olhos Uma frase solta, um vôo vadio Nunca se sabe bem ao certo o quê Mas que vem, vem, uma hora vem E veio: Sua mão na minha mão Sem receio.
Labirinto
Há muito tempo que eu não vou à praia, que não vou aos pés do mar, há muito tempo que não tenho tempo para perder tempo, para ganhar a vida perde-se muito, ganha-se pouco há muito tempo me encontro Nesse labirinto em que sinto Sem sentir e vivo sem viver Há muito tempo não amo mais você mas não consigo esquecer há muito tempo o sol não gruda-se em mim ao som plácido de aves, marulhos, crianças automóveis, manhãs...
André Gardel
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Cesar Garcia Lima
LEITOR
poemas publicados são angústia filhos imperfeitos ao alcance dos erros
encadernados os versos proclamam independência e morte no nacionalismo impune da leitura
crescem plantas sem poda cabelos e unhas irrecuperáveis estrelas
poemas publicados são parábolas de gravidade lírica emoldurada de um pulsar à desconstrução dos cálculos
Cesar Garcia Lima
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Túlio Villaça
A MORTE NOSSA DE CADA DIA
Na 1ª vez que Gabriele foi à janela Dois carros bateram bem em frente à sua casa. Ninguém se machucara, mas Os motoristas saltaram dos carros, Um sacou uma arma, Apontou contra a cabeça do outro E disparou.
Na 2ª vez que Gabriele foi à janela Dois homens conversavam na entrada do beco próximo. Um, em pé, segurava pelos cabelos O outro, ajoelhado à sua frente. O 1º sacou uma arma, Apontou contra a cabeça do outro E disparou.
Hoje Gabriele tem medo de ir à janela. Mas nem precisa. Toda noite assiste em sonhos novamente Aos dois assassinatos. E, quando acorda, Pra não ficar pensando nessas coisas, Vai assistir televisão.
CÂNCER
Os funcionários do Banco do Brasil estão em greve. No Centro Cultural Banco do Brasil acontece a exposição Iberê Camargo, Mestre Moderno. A exposição é no segundo andar. Devido à greve, o segundo andar está fechado ao público. Ninguém pode assistir a exposição.
Enquanto isso, Iberê Camargo, mestre moderno, O maior pintor brasileiro vivo, Morre.
A ARTE DE NAVEGAR SEM BÚSSOLA
Um elétron Dispara em linha reta
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E se choca com outro elétron em direção contrária, Provocando uma explosão microscópica Que libera um feixe de energia Que por sua vez dispara em linha reta Até se chocar com um pedaço de metal, Refletir e perder-se no espaço.
Um relógio de pulso digital Avança em frente na dimensão do tempo em velocidade constante Impulsionado por um chip minúsculo, Do tamanho de uma unha, Impulsionado por sua vez Por uma bateria ainda menor, Que, em última instância, Governa a vida de uma pessoa.
Um homem Está sentado num banco De um coletivo que avança pela rua, Olhando para ontem e pensando No trabalho de onde acabou de sair, Na casa para onde vai, Nos filhos que tem para criar E na vida que está deixando se perder.
Um menino Brinca em frente à TV ligada Sem dar atenção à programação Nem a nada que não seja a brincadeira Sem saber que, sem se dar conta, Dá sentido à vida de seu pai, À passagem do tempo E ao movimento dos elétrons pelo espaço.
L'ESPRIT DU FIN DE SIÈCLE
Vim, vi e vendi.
DIGRESSÃO
O prazer de assistir os amigos envelhecerem Em seus casamentos e aniversários, Sem, contudo, poder ter certeza Se são realmente eles que envelhecem Ou apenas nosso olhar sobre eles.
(Como quando esqueci o violão no Shopping. Cheguei quinze minutos antes do cinema,
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Comprei o bilhete e sentei na praça. Na hora da sessão, me levantei E deixei o instrumento encostado no banco.
Assisti o filme, peguei o metrô E voltei para casa. Uma hora depois, Lembrei do violão abandonado. Dia seguinte voltei para busca-lo, Torcendo para ter sido encontrado.
O segurança disse que sim, Haviam lhe entregue um violão ontem, E foi busca-lo para mim. Mas súbito Tive medo, não que não fosse o meu, Mas que não me reconhecesse mais.
Pois tanto eu teria mudado em uma noite Sem notar, por estar sempre comigo, Porém ele, assim distanciado Momentaneamente, perceberia, E não quereria retornar comigo.
E, com efeito, onde está esse violão Que não aparece? O guarda, Embora garanta que o recebera, Não consegue encontra-lo, e imagino Que ele se esconde de mim.
Mas não, ei-lo que aparece, E é o mesmo, não mudou nada, Salvo um clip que colocaram Para melhor fechar a capa rasgada. Agradeço e levo-o para casa.
Mas ele parece me olhar estranho, Como quem desconfia de mim. Claro, já foi esquecido uma vez, E, por sua vez, não se esquecerá. Mudamos, não seremos mais os mesmos.)
O prazer de envelhecer e assistir os amigos Enquanto é assistido por eles, Mudando continua, paulatinamente, Tornando-se outros, distintos, diversos, E mutuamente se reconhecendo
NEGROS
Ver de olhos negros, fechados como os do bisavô - índio - e da
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bisavó - escrava - em cueiros pela manhã; o ranço ainda rebenta com nocaute de esteta o fluxo de vergonha e gozo. É a brevidade de um dia de uma vida solícita ao pedido deles também pouco vividos que minha alma ao ver seu retrato, é negra.
Túlio
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Alberto Pucheu
A FORÇA MAIOR
Pode falar o que quiser, são sempre tantos
e inúmeros motivos, hoje, ontem
ou amanhã, para se mandar, pra mandar tudo às favas,
pense só, Aquiles do outro lado, enraivecido,
feras nos esperando ali na arena, onde em breve entraremos,
uma América então velada por terríveis monstros
marinhos, ou melhor, uma ante-América, sim,
acredite, os fatos sempre mudam, mas não nossos persistentes
medos (de assaltos, desempregos, coisas vindas de algum
arranha-céu...), os fatos mudam, meu amigo,
tal nuvens, corredeiras, tal trânsito contínuo de cidade, tal
tudo que não pára um só segundo, os fatos mudam,
assim como tudo, tudo, tudo, mas nossos medos não,
portanto, meu amigo, não descanse, não pense
duas vezes, não espere um mundo favorável a seus sonhos,
acate o que vier, seja o que for
– não há mesmo outro jeito –, acate a dor
e a flor que aparecerem no caminho, acate o asfalto urbano
e o shopping center, mate a morte no peito e marque um gol
de placa, o da virada, o da vitória,
firme-se nos esteios dos amigos, do amor, das aventuras que
estimulam a coragem, o sangue, o fazer da arte, firme-se
no prazer e nas bebidas, nas conversas,
nas danças tão festivas, nos trekkings das montanhas
assombrosas, firme-se, sobretudo,
na alegria: se ela não muda a duração do medo,
aumenta, com certeza, a força viva.
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A VOZ DO SANGUE, O SANGUE DA VOZ
Tanto silêncio no ringue, no ringue
e na fome, tanto burburinho zoando simultaneamente,
que não posso distingui-los. E mesmo antes dos golpes
na cabeça, e mesmo antes de qualquer golpe
revolvendo as entranhas pelo avesso
(antes dos 4.500 quilos por impacto), e, mesmo antes,
tanto silêncio no ringue, no ringue
e na fome, tanto burburinho zoando
simultaneamente, que não posso distingui-los.
O ringue é o ringue, a fome é a fome, mas no ringue
(como na fome, como na fome do ringue, como no ringue
da fome), o silêncio é silêncio e burburinho,
e o burburinho, burburinho e silêncio. Quando,
no canto do amparo — sentado, curativos imediatos,
os segundos trabalhando a meu favor, a respiração em busca
de um ponto pacífico —, ouço a voz nítida do treinador
se erguendo do alarido da multidão e de ninguém,
não a escuto como um mandamento: infiel
e pecador, poderia traí-la. Escuto essa voz
desenrolar as últimas ataduras que envolvem o punho
do meu coração, espremê-lo ao sumo,
ao ponto de o gosto do sangue (de o gosto da fome) brotar
comprimindo as gengivas por entre os dentes e o protetor,
me dando a certeza de que o próximo soar do gongo
será o último badalo com o qual meu adversário sonhará
antes de beijar a encardida lápide da lona.
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TRADUÇÃO DE UM FRAGMENTO RECÉM-
DESCOBERTO DO PROÊMIO DA COSMOGONIA DE
LINO
Houve um tempo em que todas as coisas cresciam juntas,
esse tempo gerou outro tempo e mais outro e outros
que geraram o tempo de agora, e o agora ainda
traz o tempo em que todas as coisas cresciam juntas,
e o agora é esse tempo em que todas as coisas crescem
juntas, crescem confusas, assim como outrora, crescem
essas coisas confusas de dentro do caos criador,
invisíveis, as coisas, bem antes de serem coisas
aparentes, já crescem de dentro do caos, borbulham,
essas coisas sem nomes, sem rostos, sem nada mais
que o crescer latejante daquilo que nem coisa é,
mas que cresce, esperando somente o oportuno instante
de ganhar seus contornos, seus brilhos, seus nomes,
de ganhar tudo aquilo que é coisa e que, coisa sendo,
já era coisa, invisível, latente, crescente, coisa
em um tempo em que todas as coisas cresciam juntas,
e que juntas, agora, inda crescem, e surgem, coisas
com feições – plantas, sol, animais, o correr do rio –,
essas coisas que quando aparecem revelam que
o que surge é um rosto, um possível, do próprio caos.
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QUINZE OU VINTE FRASES PARA INTUIR A
ESPESSURA DE UM SENTIMENTO LONGÍNQUO
Que distância existe entre um colchão de molas e um homem
alquebrado sobre ele? E, num sofá de couro ressequido,
onde duas pessoas se sentam, qual a distância entre os corpos
quase vazios? O que quer que você tenha feito,
não precisa fugir. Seus sentimentos teriam a cor e a
temperatura de uma privada na diagonal do banheiro de 1m2
daquele velho cinema, se a porcelana tivesse leveza suficiente
para querer voar. O mais interessante é a lentidão
estampada na emergência de nossos rostos.
Não adianta correr, tudo acontece mesmo antes do tempo,
excedendo-se. O jornal do que se considera impossível.
Não adianta morrer, tudo acontece mesmo antes do tempo,
excedendo-se. Sob perigo constante e enfrentando
a ausência de qualquer noção, tudo ganha forma com vagar.
Uma música, talvez, ou, quem sabe,
a sombra de uma memória praticamente perdida necessitando
um mínimo de invenção para poder viver, ou, ainda,
o jogador de um baralho cujas figuras e números já foram há
muito apagados pelo manuseio,
desenha uns traços no papel, alguns, ilegíveis, outros,
nem tanto. O estilhaço pontiagudo de vidro que traz entre a
manga e a pele sobrou de um atentado alheio, cuja violência
ecoará quando encostar o formão
na têmpora de uma carne adormecida.
Ali, todos se movem como uma camisa suada pendurada há
muito no cabide. Esses ruídos são de uma similaridade
inesperada
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com o silêncio. Esses grunhidos são de uma similaridade
inesperada
com o indiferenciado entre o homem e o animal. Esse bulício
é por de dentro do corpo, da viscosidade do sangue, da
porosidade dos ossos, da textura da carne, não do rosto.
Mas há um rosto por debaixo da pele
e uma víscera estampada na face.
O que quer que você tenha feito, não precisa fingir
o contrário. Eu sei, a qualquer momento,
o avesso pode eclodir, a qualquer momento, dessa paciência
tamanha, algo acaba explodindo. Apesar do que pode
acontecer, apesar do que, às vezes, sufoca, apesar do apesar,
a vida é para ser distribuída, protegida pelo canto. A voz
ainda resiste. Oscilante como o fogo. Como a água.
Com o dispositivo automático da surpresa que alarma. As
máquinas continuam me atravessando. Movo o pé. Tenho
somente o esquecimento, o outro, o desconhecido, por
isso conservamos uma ausência
que nunca lutou para se conservar. Ele não é daqueles
que acreditam com a bolsa ou com o coração. Ele nem é
daqueles que acreditam. Você vai ver,
você vai acabar concordando, hoje,
as paredes das películas inventam vidas que, melhor do que
ninguém, conhecem os relentos do mundo.
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ARRANJO PARA ESSES CAMPEÕES DA PALAVRA Não posso ser poeta, não sei contar histórias... Se eu fosse um toureiro,
faria o público acreditar que eu estava a poucos centímetros da morte,
mas manteria minha margem de segurança. Foi o que fiz no ringue. Nós,
lutadores, compreendemos as mentiras. O que é uma simulação? O que
é pensar uma coisa e fazer outra? Os melhores garotos são aqueles que
até podem tomar um murro na cara, mas são inteligentes o bastante para
não o querer. Quando soa o gongo, somos apenas duas solidões. Não
temos medo de apanhar, mas temos medo de perder. Uma derrota no
ringue não se compara a nenhuma outra. Eu combatia com qualquer um.
Não me interessava quem eram. Era simplesmente indiferente para mim.
Eles me batiam, eu não me importava. Quando estou no ringue, luto pela
minha vida. A luta pela sobrevivência é a única luta. Por cinco dólares,
eles podiam me golpear no queixo com uma marreta. Quem já ficou dois
dias sem comer poderá entender. E comer é um vício difícil de largar.
Quando se luta, se luta por uma coisa: dinheiro. Acho que o campeão
que eu sou hoje é pela dificuldade que eu passei. Nunca fui nocauteado.
Já estive inconsciente, mas sempre de pé. Detesto afirmar isso, mas é
verdade: quando começa a doer, é quando eu mais gosto deste negócio.
Quando vejo sangue, fico como um touro. Sou um animal selvagem,
inimigo declarado de toda a raça humana. Uns dizem que sou arrogante,
outros, que preciso de uma boa surra, e outros, que falo muito. Mas eu
garanto o que digo. Eu não quero nocautear meu adversário... quero
golpeá-lo, me afastar e vê-lo ferido. Quero o seu coração. Ele pode
fugir, mas não pode se esconder. Tento acertar na ponta do nariz do meu
adversário porque tento lhe enfiar o osso no cérebro. Se abrirem minha
careca, vão encontrar uma grande luva de boxe. É tudo o que sou. É
disso que vivo. Celebridade? Eu? O pessoal lá de onde venho diz que eu
sou um vagabundo sortudo que sabe dar uns socos. Quando você não é
mais o campeão, está sozinho. Alguns ficam insanos, outros começam a
beber, pois o boxe é muito intenso, e muita gente se perde. Você agüenta
até certo ponto, depois quebra. Tenho tudo de que preciso: o médico
mora aí em frente, o farmacêutico trabalha na esquina; daqui, posso ver
a câmara-ardente, e o cemitério é logo ali embaixo na rua.
Alberto Pucheu
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Maria Clara Carneiro
Conflitos espirituais pela Avenida Brasil
Só Jesus expulsa demônios das pessoas, Compro carro batido Só Jesus expulsa, demônios das pessoas Não vote Só Jesus, expulsa demônios das pessoas Quércia vem aí Só Jesus expulsa demônios, das pessoas A rebelião se justifica Só, Jesus expulsa demônios das pessoas Trago a pessoa amada em três dias Só, Jesus, expulsa demônios das pessoas Supletivo em um ano Só Jesus expulsa, demônios, das pessoas Brasil pra frente Só Jesus expulsa demônios das, pessoas CV Só, Jesus, expulsa, demônios, das, pessoas Só Cristo salva da vida eterna
MC (14/05/2003)
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Eduardo Guerreiro
IMPROVISAÇÕES COM O PLANO
Diário de Plim,
a máquina psicótica que está programada para realizar o plano.
Não tornar o plano realidade,
tornar a realidade o plano.
Plim Plim (O primeiro Plim é o nome, o segundo, o sobrenome)
A - FUNÇÃO ESTRUTURAL DO ACASO
1- O acaso é o mecanismo de concretização do plano. Quando tentamos nos organizar e nos orientar em direção a um objetivo, nosso objetivo pessoal media o objetivo absoluto do plano. Mas quando o acaso, sempre não orientado, nos assalta, como um criminoso do destino, é a imediaticidade objetiva do plano que opera diretamente em nossa vida.
2- A máquina do plano opera por acaso, o arbitrário é seu modo de agir na existência. A frase “nada é por acaso” deve ser corrigida por: “todo acaso é obra do plano”.
3- A ação concreta do plano se manifesta no acaso.
4- O acaso é um estado de graça concedido pelo plano.
5- O acaso dá os passos mais seguros para a realização do plano, atraindo não tudo, mas qualquer coisa, para si mesmo.
6- O arbitrário radical é o caminho mais curto em direção ao plano.
7- Só se pode estar absolutamente certo do que se fez se se fez por acaso.
8- O acaso efetiva o mecanismo mais preciso de atuação do plano.
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B- A ASCESE DO ACASO
1- Não significa que precisamos negligenciar uma ordenação relativa de nossas atividades e nos abandonarmos ao caos. Pelo contrário, o mais difícil (que é quase sempre o melhor, segundo as exigências rigorosas do plano, não pelo sofrimento, mas pelo prazer da dificuldade) é elaborar um propósito claro, uma orientação segura e quase infalível em todos os nossos atos, pensamentos e intenções para, quando falharem ou afrouxarem, captarem e atraírem o vigor do acaso. Só a precisão e a ascese esforçada do propósito é capaz de receber a precisão absoluta das mensagens e graças do acaso.
2- O acaso é o êxtase do controle.
3- Sísifo não sofre, goza. O acaso não é a pedra no meio do caminho, é a do inesperado fim-reinício. Sísifo é o Don Juan do destino.
4- Quanto mais orientada for nossa atividade, mais atrairá a desejada desorientação certeira do acaso.
C- ENCANTAMENTO DO MINIMALISMO CONCEITUAL
1- Repetir o mesmo pensamento diferentemente sobre o acaso é clonar a idéia do acaso controlando o acaso da idéia até o ponto em que, cansada, a mesma idéia seja a causa de uma outra que a habita nas mudanças mais mínimas. É sempre a outra que importa: o mesmo é uma máscara.
2- O Psicanalista- Plim, a compulsão da repetição é a negação do acaso.
3- Plim- Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo Concordo.
4- O Psicanalista- Plim, a denegação é a afirmação do acaso.
5- Plim- Discordo.
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Fernando Flack
Um sombreiro Um bandolim acompanha-o um doce som acompanha-o uma irritação Não é jazz Futuras moças virgens comentam sobre sexo especulando E algo se confirma: Não estamos preparados para o presente para o futuro
Fernando Flack
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Leonardo Gandolfi
PONTO ABSTRATO
As cortinas estão fechadas Por detrás das cortinas há uma imensa janela Essa imensa janela também está fechada E por detrás da janela há o mundo O mundo da mesma forma está fechado Por detrás do mundo há alguma coisa E essa foi justamente a primeira coisa que se fechou
*
Dizê-lo por sobre tudo repeti-lo até o cansaço prosseguir embora mudo e escrevê-lo até alcançá-lo Conquanto que agora em vão seria que estar contravia - deixar aqui quiçá as mãos os ombros a ventania
*
Posto que pasma querer o que doravante morre melhor em ti indolor ser aquilo que outrora escorre - sem mão onde se salvar nem vontade de deter o que vive ora a acabar ora portanto a se erguer
*
Presente em alguma coisa não há tanto pouco ou nada Quase um motivo secreto tão remoto que não pode saber se está dentro ou fora se é quando como ou porquê Pois daqui não vemos muito - brilham as mesmas estrelas
*
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Esta mão não é tua mão aliás mãos nunca são mãos se percebidas quais são por este ponto abstrato não porque não tenham dedos ou mesmo vontade própria mas porque não é tua mão e porque é uma promessa
*
Aos poucos saíram da sala um por um como se não fosse permitido sair todos a um só tempo Mesmos os mais apressados abriram mão da pressa mesmos os mais fortes abriram mão da força A apreensão girava em torno de quem apagaria a luz de quem fecharia a porta
Leonardo Gandolfi
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Eucanaã Ferraz
HABITARE
I Mais que nenhuma outra: casa.
Mais que nenhuma outra: branca.
Mais inteira que possa: sem porta, sem tranca.
Ei-lo: ovo (Parthenon, barraco).
II Estranho granito, estranha guarita. Gradil compacto, excêntrica parede.
Chão, teto, dobradiça: é tudo. Ostras habitam o outro da casa.
Porém, sobre o pátio prosaico da mesa, carapaças, capas-pedras de livros nunca abertos,
quando abertas mostram glândulas, tripas, transístores, dentros
de um dentro sem mistérios.
SENTENÇA
Na canção, perdoar. Deixar que os inimigos durmam
na canção, enquanto caminhamos à cata de comida, de pátria, de beleza.
Na canção, tentar não morrer, tentar não estar mudo.
Aceitar o acorde ruim, dormir ao relento, ter um filho,
dar a outra face ao silêncio da canção, na canção.
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NÃO SÃO
Podem vir abruptas, íngremes, arrevesadas. Podem ser afabilidade e pele. Podem ser inflamar-se, Podem ser guarida.
Acontece: chegam inteiras, toda justeza cada sílaba, definitivas, despóticas ou privam-se do silêncio em que vivem, livres, para serem acaso e litígio no unto de páginas e telas de computador, à espera de alguma dignidade.
Não há obstetrícia certa para com elas. Palavras não são farinha do mesmo saco.
POR ISSO
Se quer dedicar-se à pintura deve começar por cortar a língua.
Matisse, penso nele, sempre, que cismava Tolouse-Lautrec.
Quer dedicar-se à poesia? Inicie com abrir os olhos.
Leve, obediente, a mão: não deve a criada tornar-se patroa.
Aprender, aprender, aprender, encontrar, descobrir,
até que um dia se possa afirmar: finalmente, já não sei fazer.
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VIAGEM
Não levaremos a alma. Entraremos descalços ali
onde visível anel tudo alinhava e o corpo se descubra mais contente. Alma nenhuma.
Nada que não caiba na fome. A carne cantará docemente de não sabermos quem somos.
RELOJOARIA
Dizem diante de quem morre: chegou sua hora. Hora que,
certa e da qual não se foge, não é grão n'ampulheta, o digital não desenha,
barco algum espera e, pulso nenhum, oco, é à prova de cronômetros.
Mais que marco do instante em que se quebrou a máquina, é ela,
a hora, que, inexorável, gasta, morde, rói e rompe a corda.
Eucanaã Ferraz
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Ronald Polito