revista carta capital: entrevista com kevin ashton

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Economia 40 WWW.CARTACAPITAL.COM.BR O inglês Kevin Ashton é um inovador por excelência. É de sua autoria o conceito “internet das coisas”, atual must do mundo digital. A ideia o levou ao celebrado Massachusetts Institute of Technology. Lá ele tornou-se um dos criadores do Auto-ID Center, labo- ratório responsável por definir os padrões da Identificação por Radiofrequência, uma tecnologia que promete revolucionar o uso de eletrodomésticos e os transpor- tes globais. O RFID (sigla em inglês), po- de ser uma das bases da chamada inteli- gência artificial. Na entrevista a seguir, Ashton explica os impactos imaginados da nova tecnologia. CartaCapital: O que o levou a criar o ter- mo internet das coisas? Kevin Ashton: Foi o título de uma apre- sentação para executivos da Procter "Robôs não são muito úteis se não têm sensores, ou sentidos." O objetivo é dar "aos computadores uma forma de sentir o real" & Gamble para ajudá-los a entender as possibilidades da Identificação por Radiofrequência e a tecnologia de senso- res. Estávamos em 1999 e todos ficaram excitados com a ideia de usar a internet para coletar automaticamente dados do mundo real, físico. O xis da questão na in- ternet das coisas diz respeito à transmis- são automática de dados sem interferên- cia humana. Veremos nos próximos anos uma proporção crescente de tráfego de in- ternet gerado automaticamente por siste- mas de sensores. Um dia eles dominarão esse tráfego. Trata-se de informação ge- rida por máquinas, a construção de siste- mas de machine learning, que transforma- rão dados em informação com significado para os indivíduos. É uma das fronteiras mais interessantes da ciência. CC: Como você explicaria o conceito da internet das coisas para uma criança? KA: As crianças sempre entendem as coisas com facilidade. Hoje eu diria que os computadores que a mamãe e o papai usam, apenas sabem enviar informações de uma pessoa para outra. Além de di- gitar, cuidar das fotos, essas coisas. Mas os computadores que ele vai usar quan- do crescer também vão saber tudo sobre as coisas do mundo real, onde elas estão Inteligência artificial ENTREVISTA Kevin Ashton, criador do termo "internet das coisas", descreve o futuro em que máquinas falarão com máquinas A ALISSON ÁVILA ••CCEconomiaPing.indd 40 30/05/13 21:37

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Conversa exclusiva realizada em junho de 2013 com o criador do termo-quase-definitivo "internet das coisas". Entre outros temas, o impacto da tecnologia RFID na sociedade e nas relações humanas e de produção.

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Page 1: Revista Carta Capital: Entrevista com Kevin Ashton

Economia

40 WWW.CARTACAPITAL.COM.BR

O inglês Kevin Ashton é um inovador por excelência. É de sua autoria o conceito “internet das coisas”, atual must do mundo digital. A

ideia o levou ao celebrado Massachusetts Institute of Technology. Lá ele tornou-se um dos criadores do Auto-ID Center, labo-ratório responsável por definir os padrões da Identificação por Radiofrequência, uma tecnologia que promete revolucionar o uso de eletrodomésticos e os transpor-tes globais. O RFID (sigla em inglês), po-de ser uma das bases da chamada inteli-gência artificial. Na entrevista a seguir, Ashton explica os impactos imaginados da nova tecnologia.CartaCapital: O que o levou a criar o ter-mo internet das coisas?Kevin Ashton: Foi o título de uma apre-sentação para executivos da Procter

"Robôs não são muito úteis se não têm sensores, ou sentidos." O objetivo é dar "aos computadores uma forma de sentir o real"

& Gamble para ajudá-los a entender as possibilidades da Identificação por Radiofrequência e a tecnologia de senso-res. Estávamos em 1999 e todos ficaram excitados com a ideia de usar a internet para coletar automaticamente dados do mundo real, físico. O xis da questão na in-ternet das coisas diz respeito à transmis-são automática de dados sem interferên-cia humana. Veremos nos próximos anos uma proporção crescente de tráfego de in-ternet gerado automaticamente por siste-mas de sensores. Um dia eles dominarão esse tráfego. Trata-se de informação ge-rida por máquinas, a construção de siste-mas de machine learning, que transforma-rão dados em informação com significado para os indivíduos. É uma das fronteiras mais interessantes da ciência.CC: Como você explicaria o conceito da internet das coisas para uma criança?

KA: As crianças sempre entendem as coisas com facilidade. Hoje eu diria que os computadores que a mamãe e o papai usam, apenas sabem enviar informações de uma pessoa para outra. Além de di-gitar, cuidar das fotos, essas coisas. Mas os computadores que ele vai usar quan-do crescer também vão saber tudo sobre as coisas do mundo real, onde elas estão

Inteligência artificialENTREVISTA Kevin Ashton, criador do termo "internet das coisas", descreve o futuro em que máquinas falarão com máquinasA ALISSON ÁVILA

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CARTACAPITAL — 5 DE JUNHO DE 2013 41

e o que fazer com elas. Isso vai nos aju-dar a gastar menos e a fazer melhor uso das coisas. Robôs não são muito úteis, a não ser que tenham sensores, ou senti-dos, assim como nós não podemos fazer muita coisa sem os nossos olhos, ouvidos, nariz, língua e dedos. A internet das coi-sas é uma maneira de dar aos computa-dores, entre eles a um computador no cé-rebro de um robô, uma maneira de sen-tir o mundo real.CC: Como os seres humanos vão perce-ber o uso da internet das coisas em seu dia a dia? KA: Televisão e telefones celulares são os antigos nomes para coisas que se tor-naram de uso geral e envolvem displays e interfaces conectadas. Tevês são telas com interfaces que penduramos na pare-de. Telefones são telas com interface que cabem em nosso bolso. Usaremos ambos

para interagir com a internet das coisas, para obter os dados necessários e para comandar e controlar esse fluxo. Já a automação residencial é o outro lado da moeda. Uma vez que você tem um bom feedback sensorial sobre o mundo real, pode usar a automação para controlar e mudar as coisas.CC: De que forma há um alinhamento en-tre gestão pública, ou mesmo interesses geopolíticos, e de proteção dos países com a internet das coisas?KA: A maioria dos governos compreende a importância estratégica da internet das coisas para melhorar e fazer crescer suas economias. Acredito que os responsáveis por esses setores também sabem não ser possível ter o seu próprio sistema. Será preciso existir uma operação de nível glo-bal, ad hoc, e que funcionará no topo da in-ternet. E exigirá articulação.CC: Haverá uma enorme demanda por matéria-prima a ser retirada da nature-za para estruturar este sistema. Você se sente confiante para antecipar algum ti-po de impacto ambiental?KA: Muitos equipamentos têm tamanho reduzido. Mas o volume, a escala, são al-tos. Espero que o impacto informativo da internet das coisas seja tão intenso que a contrapartida da pegada ecológica, física, seja pequena na comparação com seu efei-to. Ela vai nos conduzir a uma eficiência grande no uso de recursos.CC: Diante de tanta precisão informa-tiva em tempo real, quais as mudanças em outras áreas estruturais como a en-genharia e o urbanismo ou mesmo nas Ciências Humanas e Sociais? Se não “obsoletas”, poderão ser percebidas co-mo “lentas”?

KA: A internet das coisas é uma ferra-menta. Ela serve para deixar todas as dis-ciplinas exatas ainda melhores, dando--lhes dados e acesso a recursos informa-tivos diferentes de tudo o que já tivemos, pois são mais precisas. Isso também se aplica às humanidades. O consumo tem sido cada vez mais usado como um indi-cativo para o estudo do comportamento humano, por exemplo, e a transmissão de dados automáticos será de grande valia neste sentido. Haverá uma série de con-juntos informativos interessantes para as ciências humanas obterem informa-ção e aprendizado.CC: Vivemos cercados por centenas ou milhares de objetos, e a internet das coi-sas pressupõe a conexão de muitos, ou todos eles, entre si e conosco. O que vai assegurar a ligação desses objetos pa-ra o sistema? E o que vai acontecer se a conexão cair?KA: Haverá uma estrutura de leitura de dados praticamente invisível, um pouco como a estrutura hidráulica e elétrica de uma casa. Esses sistemas têm alguma ca-pacidade de armazenamento para lidar com pequenas interrupções. De vez em quando, haverá uma falha em algum lu-gar, por causa de uma tempestade ou al-go assim, e vamos perceber o quanto de-pendemos dessas estruturas. Não é dife-rente para os telefones celulares, eletri-cidade, água...CC: Transformar as dúvidas da vida diá-ria em dados inquestionáveis não seria demais para a necessidade subjetiva do homem?KA: A dúvida nunca deixará de existir. Torço para que sejam sempre os pri-meiros passos rumo à sua compreen-são. As religiões, por exemplo, sobrevi-veram até hoje a cada nova onda de revo-lução tecnológica. Não há nenhuma ra-zão para imaginar que vai ser diferente, pois as necessidades espirituais, ao la-do das materiais, não vão desaparecer. •

Pioneiro. Ashton desenvolveu o conceito da "internet das coisas" quando trabalhava na multinacional Procter & Gamble

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