revista amor aos pedaços - a ditadura do amor

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A Ditadura do Amor

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Projeto gráfico, diagramação e algumas ilustrações.

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A Ditadura do Amor

E D I T O R I A

L

2

S e é pra falar de amor, que seja aos poucos. Em doses homeopáticas, que é pra não causar dor. E não há rima melhor do que amor e dor. Mas não sejamos tão pessimistas assim, pois o amor não é um padrão, não precisa ser estático, hermético ou sob encomenda. Sejamos livres para amar como nos couber. Sejamos livres para não amar também, oras. Se amar é permitido seja qual for o molde, escolher estar só também o deve ser. Nada de ditadura do amor. Nada de aceitar passivamente as regras ditadas pela mídia, pela igreja, pela família – que é, em geral, profundamente influenciada pela mídia e pela igreja – ou por qualquer outra instituição da nossa sociedade conservadora. É claro que escolher estar sozinho – o que não quer dizer solitário – requer alguns cuidados e pode causar alguns problemas, mas, tal qual Pollyana, há de se ver o lado bom. Estreitar antigos laços, criar novos, se abrir para novas redes sociais e ganhar autonomia podem ser alguns ganhos da vida de solteiro. É preciso, então, ter consciência dessa possibilidade e saber qual caminho escolher. Porém se, mais tarde, a escolha parecer precipitada e não houver disposição para enfrentar uma vida autônoma, e o contrário aqui também vale, a receita é simples: recomece.

Na verdade, parece simples, mas tal praticidade requer muito treino e, talvez, a aplicação do eterno retorno kunderiano. Uma consideração meramente hipotética, mas que vale a reflexão. Para o mundo real e para esta edição: arrisque, mas com parcimônia. Rafael Moura

EXPEDIENTE

Projeto integrado de disciplinas

Curso de Jornalismo - 2011.1Textos | Gabriela López, Gianni Paula de Melo, Marcella Semente,

Rafael Moura, Tatiana Bottentuit e Vanessa Araújo

Edicão e Revisão | Aaron Athias, Gianni Paula de Melo e Vanessa Araújo

Ilustracão e diagramacão | Aaron Athias

Orientacão do impresso | Wilma Morais

Orientacão do VT | Paula Reis e Yvana Fechine

Contato | [email protected]

3 A Ditadura do Amor

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11

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4 Í N D

I C EÉ impossível ser feliz sozinho?por Gabriela López

“A perfeicão merece desconfianca

em um mundo marcado por dúvidas”entrevista com Antônio Paulo Rezende

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Consumindo amorpor Tatiana Bottentuit

E D I T O R I A

LUm amor desses de cinemapor Marcella Semente

Nem todos estão a favor do amorpor Gianni Paula de Melo

13 Aos Pedacos

“A vida é minha, eu gosto da liberdade”por Vanessa Araújo

22 Gracas a Deus,

era apenas o colíriopor Rafael Moura

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A pouca idade não quer dizer falta de experiência na vida da jor-

nalista Flávia Tavares. Aos 24 anos, ela já casou, tornou-se mãe, desfez o casamento, concluiu um curso de graduação, mudou de cidade, ingres-sou no mercado de trabalho, decidiu não voltar para a casa dos pais e está segura de que relacionamento sério só daqui a alguns bons anos.

Foi depois da experiência de seis anos em um relacionamento sufocante que veio a decisão de dedicar-se apenas a si mesma por um tempo. “Existem ex-periências que dão certo, mas a minha não deu. Não era o que eu queria abrir mão de certas coisas para satisfazer outra pessoa. Hoje, o principal pra mim é o meu bem estar”, explica.

A família da jornalista deu o apoio necessário nos momentos de fragili-dade, mas não esconde a incompreen-são quanto à escolha da filha de ficar solteira. “Minha mãe diz que eu fiquei feminista”, brinca. Para ela, a cobran-ça de ter um relacionamento estável recai muito mais nas mulheres porque “historicamente os homens sempre estiveram em primeiro lugar e nós conquistamos a independência mais tarde do que eles”.

A psicóloga Anamaria Lima explica que ainda há fortes tabus difundidos na sociedade. Especificamente sobre relacionamentos, criou-se um script social de como as coisas devem ser. Quem nunca ouviu “cadê o namora-do?”. Depois que começa a namorar, a pergunta é “quando vai casar?”. Após o casamento, ouve-se “e quando vem o bebê?”.

A cobrança social aparece ainda de outras formas, como a conhecida pressão para o primeiro beijo dos adolescentes ou crianças e o medo, geralmente das mulheres, de ficar “encalhadas”.

Para Anamaria, a causa disso são crenças “perigosas” ainda arraigadas na sociedade, como a de que só é possível ser feliz com outra pessoa. “Ninguém tem a capacidade de fazer o outro feliz. A felicidade e o bem estar não tem a ver com as coisas externas”, argumenta.

A religião colaborou bastante para difundir este lema ao instituir que o amor tem que ser monogâmico e eterno. A Igreja Católica pregou que,

É impossível ser feliz sozinho?Apesar da pluralidade de valores que convivem na mesma sociedade hoje, ainda é freqüente que a resposta a essa pergunta seja “sim”

Gabriela López

5 A Ditadura do Amor

na relação amorosa, as pessoas se prendem umas às outras como um só. Assim, a família ficou caracterizada como uma entidade fechada, voltada para si mesmo e a felicidade dos inte-grantes dependia do vínculo familiar.

No artigo Pequena história de amor conjugal no Ocidente Moderno, a historiadora Mary del Priore fala do esforço da Igreja de casar os fies. “O cristianismo fez do matrimônio um sacramento. Quebrá-lo era um dos maiores pecados que o homem podia cometer”, afirma no texto. Para ela, essa premissa começou a ser des-construída a partir do século dezoito, quando a sociedade passou a separar amor de matrimônio, filhos, negócios, sexo e religião.

A modernização e a urbanização do espaço físico onde viviam as pessoas causaram uma reorganização das atividades cotidianas, interferindo também na vida emocional. Assim, antigas tradições referentes à escolha de parceiros e às formas de entender o amor foram sendo sepultadas.

O pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) Alexandre Zarias acredita que as modificações mais significativas para a diminuição da cobrança de ter relacionamentos está-veis foram a simplificação do divórcio por meio da Emenda Constitucional nº 66/2010 e o reconhecimento do Su-premo Tribunal Federal (STF) da união homoafetiva como uma entidade familiar, em maio deste ano.

As duas Fridas. Quadro de Frida Kahlo. Data desconhecida

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No primeiro caso, ficou determinado que o casamento civil pode ser ime-diatamente dissolvido pelo divórcio. Antes disso, a união só podia ser desfeita oficialmente após uma prévia separação judicial por mais de um ano (isto é, deveriam ser quebrados os vínculos matrimoniais, como coabita-ção e fidelidade recíproca durante este período) ou se fosse comprovada a separação por mais de dois anos.

Já o reconhecimento judicial da união homoafetiva, proporcionou aos casais do mesmo sexo benefícios legais antes conquistados apenas por hete-rossexuais, como herança por morte do parceiro, acesso a plano de saúde e pensão alimentícia. “A partir destes dois marcos, as pessoas tiveram mais liberdade para escolher se e como querem estar em relacionamentos. Hoje, a socieda-de convive com uma pluralidade de valores. A cobrança depende do grupo no qual o indivíduo está inserido, não é mais uma característica de todas as esferas”, avalia o pesquisador.

Estas mudanças também são causa-das pela independência das mulheres. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do Instituto Brasi-leiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2006 apontou que pessoas do sexo feminino já são 43,7% da População Economicamente Ativa (PEA) do País. São 42,6 milhões de mulheres no mercado de trabalho.

Assim como a união homoafetiva, outros núcleos familiares começa-ram a surgir a partir das mudanças na dinâmica social e da ampliação da liberdade. Os Dink Family (“Double In-come, No Kids” ou “Dupla Renda, Sem Filhos”, em português) como o próprio nome já sugere são casamentos ou uniões estáveis - geralmente entre pessoas com maior poder aquisitivo e escolaridade entre o nível médio e superior - em que o casal opta por não ter filhos. Nos Estados Unidos e no Japão, por exemplo, essa tendên-cia já é observada há pelo menos 20 anos. No Brasil, de acordo com o IBGE essas pessoas já representam 17% da população.

Outra tendência são os chamados Living Apart Together (LAT, sigla em inglês, ou “vivendo juntos separados”, na tradução literal para o português). São pessoas casadas, no papel o não, com filhos ou não, mas que vivem em casas separadas.

7 A Ditadura do Amor

Na contramão dos tabus Novos núcleos familiares

União homoafetiva

Reconhecida em maio deste ano pelo Supremo Tribunal Federal (STF), permite

igualdade de benefícios legais entre casais hetero e homossexuais, como herança por

morte do parceiro.

Dink Family

Em inglês “Double Income, No Kids” ou “Dupla Renda, Sem Filhos”, em português, representam os casais que optam por não ter filhos. De acordo com o IBGE, 17% dos

brasileiros fizeram essa escolha.

Living Apart Together (LAT)

Na tradução literal para o português, “vivendo juntos separados”. São pessoas

casadas, no papel ou não, com filhos ou não, que vivem em casas separadas

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E NT R E V I S TAcom Antonio Paulo Rezende

Professor de história da Universidade Federal de Per-nambuco (UFPE), Antônio Paulo Rezende dedica-se

à pesquisa sobre as relações afetivas na modernidade e as artimanhas da contemporaneidade. Além disso, fazem parte dos estudos do pesquisador os temas rela-cionados ao imaginário, à modernidade e à memória. Nesta entrevista, Rezende fala sobre a cultura do amor romântico e suas implicações sociais. Ele explica, ainda, como a sociedade burguesa acaba criando condições favoráveis para a consolidação do amor.

“A perfeicão merece desconfianca

em um mundo marcado por dúvidas”Vanessa Araújo

REDAÇÃO: Podemos dizer que existe uma “criação” do amor na História?ANTÔNIO PAULO REZENDE: O amor é uma invenção histórica, faz parte da cultura humana. Ele tem seu lugar e seu tempo, não possui uma fórmula mágica...

REDAÇÃO: E como essa cultura do amor romântico é passada à socieda-de Ocidental? Quais as implicações sociais que esse modelo traz?ANTÔNIO PAULO RESENDE: O amor romântico é o modelo idealizado do amor. Não deixa de exercer sedução. Não existe nada absoluto, pois somos

marcados pela incompletude. Falar em eternidade, na sociedade huma-na, é uma grande fantasia. Portanto, o amor tem suas imperfeições, mas não falta quem acredite que ele dê conta de tudo. Hoje, há claros inte-resses econômicos que defendem que ele continue sendo uma bandeira a ser lembrada. A perfeição merece desconfiança num mundo marcado por dúvidas e desconfianças. Essas idealizações alimentam o consumo e a chamada sociedade do espetáculo.

com Antonio Paulo Rezende

REDAÇÃO: Como se deu essa origem do “amor burguês”?ANTÔNIO PAULO REZENDE: A nobreza defendia uma sociedade com outros valores e hierarquias. Possuía outra representação de riqueza. As origens familiares eram destacadas. Já a burguesia promoveu mudanças na distribuição da propriedade, instituiu a sociedade de classes e ampliação do trabalho assalariado. A partir dessa nova classe, surgiram hábitos diferen-tes, sentimentos e relações de poder que acompanham a modernidade. O discurso burguês defende autonomia e liberdade. Na prática, as discri-minações continuam e os disfarces também, pois cada época vive suas circunstâncias.

REDAÇÃO: Mas o que de fato caracte-rizaria o “amor burguês”?ANTÔNIO PAULO REZENDE: O amor modifica-se, acompanha as reviravol-tas sociais. Com a sociedade capitalis-ta, as relações ganham pragmatismo e a construção de um mercado de compra e venda de objetos também tem interferência nos sentimentos. O amor não possui uma forma única. Portanto, o individualismo e o jogo de interesses da economia e da política criam condições para que o amor se molde ao tempo, onde o consumo e o descartável crescem velozmente.

REDAÇÃO: A religião também teve esse papel de criar condições favo-ráveis para a consolidação do amor? Qual a relação, por exemplo, do catoli-cismo com a visão burguesa do amor?ANTÔNIO PAULO REZENDE: O catolicismo se adapta às exigências dos costumes dominantes. Ele ajuda a construir instituições que satisfa-zem as relações de poder. Não nega o amor dito burguês, nem se coloca contra o capitalismo, embora haja alguns que contestem a exploração e a desigualdade. Mas o catolicismo é conservador, se pensarmos sua ligação com o poder instituído e a forma como a maioria dos seus adeptos se comportam. A prática diz muito do que as religiões fazem em favor das transformações, visando à melhoria da coletividade.

...o amor tem suas imperfeições, mas não falta quem acredite que ele dê conta de tudo...

9 A Ditadura do Amor

“Coraçãona mão”.J. Borges

P ER

F I L

“A vida é minha, eu

gosto de liberdade”,Vanessa Araújo

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Quando perguntei a Roberto se po-deria entrevistá-lo sobre sua vida

de solteiro, ele riu. Não foi um riso tímido, nem debochado. A naturalida-de com que encara o estereótipo de “solteirão” é que justifica a risada.

Ele nunca casou, não tem filhos e não acredita que a fórmula da felicidade seja ter alguém do lado para sem-pre. A opção por ficar sozinho foi se consolidando com o tempo depois que passou a acreditar que o casamento é uma instituição falida.

Para que isso se confirmasse, basta-ram quatro namoros sérios e alguns relacionamentos aqui e ali. “As mulhe-res não querem o homem pelo que ele é, mas pelo que tem”, justifica. Para a família, a opção por ficar sozinho talvez tenha acontecido após a frus-tração em um dos namoros, sentença que ele, porém, não confirma.

Morou com os pais até os 45 e cuidou deles enquanto viveram. Terceiro filho de um total de seis, o comerciante Roberto Almeida, 52, viu metade dos irmãos casarem na igreja com todos os detalhes que manda o figurino.Poucos anos depois, o divórcio de um

deles virou um álibi para que ele pu-desse mostrar aos parentes e amigos que sua tese estava certa de que é possível, sim, ser feliz sozinho.

Morando em uma pequena cidade do interior pernambucano cuja população nem chega a 20 mil habitantes, seu pensamento vai de encontro à tradi-ção e convenções do local, onde se casa assim que se começa a trabalhar e ter dinheiro para sustentar a família. Para ele, já pesa a responsabilidade de cuidar de si, o que dificultaria qualquer relação de cuidado com o outro.

Mas com essa cobrança social, Rober-to parece não se importar, embora admita que esteja cansado de explicar as razões por que escolheu ficar só, “como se esse fosse o único caminho para a felicidade”, observa. “Relacio-namento sério só traz problemas. Não quero ninguém dizendo o que eu devo ou não fazer, nem quero que fiquem me perguntando aonde eu vou. A vida é minha, eu gosto de liberdade”, diz.

No sítio pacato para onde resolveu se mudar costuma receber amigos e parentes. Crianças, ele adora. É o tio preferido dos sobrinhos, aquele que os leva para passear, lanchar, jogar. Ape-sar disso, se sente aliviado ao chegar a casa e não ter que cuidar delas.

11 A Ditadura do Amor

Quando Nelson Rodrigues afirmou que toda unanimidade é burra

muita gente concordou. No entan-to, quando o assunto é o amor, esta entidade apresentada como algo essencialmente bom, quem se atreve a demonstrar oposição? Por imaginar-mos que o oposto deste sentimento seja, necessariamente, algo negativo, ninguém quer advogar contra o amor. Mas, e se nós, simplesmente, conside-rássemos a felicidade possível sem re-lacionamentos de casal? Isto também não seria possível? Nem está liberado defender tal tese? Para a professora de comunicações da Northwestern University, Laura Kipnis, está liberado sim. Em seu livro, intitulado Contra o amor – uma polêmica, muitas vezes somos levados a crer que a vida pode ser bem mais saudável se nos manti-vermos afastados deste sentimento daninho.

Autora de vários ensaios de artigos sobre política sexual e cultura contem-porânea, Laura desconstrói a visão otimista que criamos em relação aos compromissos amorosos, tais quais namoros e casamentos. A manuten-ção desta relações, de acordo com

Resenha crítica sobre livro Contra o amor – uma polêmica, de Laura Kipnis

o livro, são muito mais fruto de uma acomodação confortável que, pro-priamente, da perduração do senti-mento no tempo, já que “arriscar-se à estagnação é obviamente preferível a arriscar-se à mudança na economia emocional dominante”.

O que torna o consenso relacionado ao amor duradouro e monogâmico ainda mais curioso é o fato dele se manter tão forte em um momento que as brigas, separações, divórcios, infidelidade e casamentos infelizes são cada vez mais comuns. A pesqui-sadora aponta dados relacionados aos matrimônios que nos fazem perceber como a sociedade insiste em manter este padrão, mas não consegue aten-tar minimamente para suas falências.

R ES E N H

ANem todos estão a favor do amor

Gianni Paula de Melo

Tese da pesquisadora Laura Kipnis aponta que a vida à dois [quase] sempre vai do sonho ao pesadelo

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Além disso, Laura estabelece impor-tantes relações entre o amor e outras esferas da vida do indivíduo como, por exemplo, o trabalho. Ela retoma a fala do sociólogo do trabalho Arlie Russel Horchschild dizendo que uma das principais razões para a ampliação da jornada de trabalho oficial é a decisão dos empregados de fazer horas extras para passar menos tempo em casa. Ou seja, a vida doméstica parece ter se tornado mais estressante e desagra-dável que o ambiente de escritório.

Para os românticos incorrigíveis, a leitura de Contra o amor pode ser uma fronta, por sua tentativa de desman-telar todas as idealizações relativas ao amor à dois. O peso da decepção, porém, pode ser ainda maior. Muitos dos indivíduos que integram uma re-lação de casal vão se sentir diante de um espelho enquanto leem esta obra. Não se trata, propriamente, de de-sencorajar o público a amar, trata-se, sobretudo, de fazê-los perceber que o amor é uma faca de dois gumes e não a redenção da humanidade.

Laura Kipnis defende em seu livro que o amor não é um mar de rosas

13 A Ditadura do Amor

AO S P ED A C O S

Nenhuma série deixa tão explícita a iniciativa de perseguir e manter a vida sem relacionamento sério quanto Quero ser solteira, idealizada e dirigida pela carioca Cláudia Sardinha. A protagonista Nina é uma mulher independente e moderna acos-tumada a uma rotina de encontros casuais, mas com verdadei-ra aversão a compromisso. Na história, os homens com quem se envolvem se apaixonam, justamente, por seu jeito desapegado, sua postura de não persegui-los. No entanto, Nina não está interessada em ninguém apaixonado por ela e recorre ao amigo Leo para saber como se livrar destes pretendentes. Em geral, a solução, paradoxalmente, é agir como alguém interessada, dizer que estar apaixonada e falar em casamento. O que nos leva a crer (e, embora pareça meio absurdo, é bastante comum) que o desinteresse atrai as pessoas e interesse as repele.

Websérie

“A verdadeira liberdade é um ato puramente interior, como a verdadeira solidão: devemos

aprender a sentir-nos livres até em um cárcere, e a estar sozinhos até no meio da multidão”

Massimo Bontempelli

Citacão

No hall das canções que reafirmam a unanimidade do amor e da relação a dois está a canção Wave, do maestro Tom Jobim. Durante muito tempo, a máxima “fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho” rei-nou absoluta nas vitrolas românticas e na boca deste povo apaixonado. No entanto, em 2006, com o lançamento do CD Universo ao meu redor, Marisa Monte afrontou a unanimidade e defendeu a paz na solidão. Satisfeito, composição da intérprete em parceria com Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown – os ex-Tribalistas – questiona o maestro Tom: “Quem foi que disse que é impossível ser feliz sozinho? Vivo tranqüilo, a liberdade é quem me faz carinho. No meu caminho não tem pedras, nem espinhos. Eu durmo sereno e acordo com o canto do passarinho”. A letra ressalta, justamente, certa tranqüilidade associada à solidão e também a liberdade resguardada.

Música

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Vende-se amor!” Esse poderia ser um dos lemas da sociedade

contemporânea. E isso não signifi-caria que estamos descartando o amor. Muito pelo contrário! Para o capitalismo, sistema econômico ao qual estamos submetidos, cooptar o maior número de “artigos” para se tornarem bens de consumo (durável?) é a sua maior fonte de riquezas. E, o amor como conhecemos, enquanto prática cultural que corresponde a um repertório de discursos, ações e rituais, estruturado na unidade entre paixão sexual e afeição emocional, tem se mostrado um nicho bastante lucrativo.

Em meados do século XX, um public-itário paulista, no intuito de melhorar as vendas de um mês pouco provei-toso para o comércio, criou o seguinte slogan para uma grande rede de sapa-tarias: “Não é só de beijos que vive o amor!”. Esta campanha, apoiada pela Confederação do Comércio de São Paulo, proporcionou então, a criação do nosso Dia dos Namorados. Contu-do, mais do que demonstrar a origem pouco romântica desta “data comem-orativa” o slogan demonstra aquilo

que vivenciamos diariamente: a co-brança do comércio para que todas as nossas ações, incluindo as expressões de sentimento, sejam guiadas por uma lógica de mercado. Podemos mesmo afirmar que se na origem do amor romântico as obras literárias eram as difusoras dos modelos de comunicação e ação para os amantes, na atualidade cabe à indústria cultural e à publicidade a função de instigar a prática do amor.

A prática do amor romântico apre-senta uma série de discursos e rituais. Diariamente somos submetidos a um repertório de modelos para as práticas amorosas, e cobrados a consumir bens e serviços necessários aos rituais românticos. Essa “liturgia amorosa” é estimulada pela indústria cultural, que por meio de filmes, livros e teledrama-turgia, nos vende artefatos carrega-dos de aura romântica. Os que estão solteiros se sentem pressionados a pertencer a este mundo. Os casais, por sua vez, são levados a recorrer às mercadorias e serviços etiquetados como românticos para “se transpor-tarem” ao “mundo encantado do amor”: jantares em restaurantes finos,

Consumindo AmorÀ despeito da tão estimulada e lucrativa “ditadura do amor”, o modo de vida atual dificulta a prática do amor romântico enquanto estilo de vida

Tatiana Bottentuit

15 O Amor doentio e o Ciúme

jóias e vinhos, viagens à Europa. Não pertencer a essa “indústria dos rituais românticos” gera, em muitos casos, a sensação de que o relacionamento está incompleto.

No entanto, um paradoxo tem se apresentado nessa relação amor-capi-talismo. Por um lado, há um constante estímulo social (influenciado pelos citados interesses econômico-mer-cadológicos) para estarmos con-stantemente envolvidos em situações amorosas e “provando nosso amor” através de produtos. Por outro lado, questiona-se a possibilidade de se conciliar as lógicas e padrões impostos pelo modo de vida atual (compressão do tempo e do espaço, racionalização,

impessoalização e desterritorializa-ção das relações sociais) com o amor romântico, construído na história social moderna como o último refúgio da espontaneidade e do aconchego, da entrega altruísta e da suspensão das relações instrumentais.

O sociólogo Sérgio Costa comenta essa disparidade entre as relações mercantis e as amorosas “Enquanto no mercado prevalecem relações impessoais e instrumentais e o que conta é a qualificação, o desempenho técnico ou o dinheiro que se tem no bolso, esperando-se de cada indivíduo disciplina, capacidade de seguir regras aprendidas e previsibilidade de com-portamento, nas relações amorosas,

(São Valentin) “Faça amor, não compras”

16

conforme a idealização romântica, de-veria supostamente contar o oposto: a espontaneidade, a imprevisibilidade, a transgressão de regras e convenções”. A dificuldade em desempenhar esses tão distintos papéis sociais explicaria, portanto, a decisão de várias pessoas em seguir suas vidas sem qualquer parceiro fixo para dividir a existência. No entanto, pesquisas apontam que o anseio por uma relação amorosa que envolva plenamente os amantes continua sendo uma aspiração gener-alizada.

No livro Consumindo a utopia român-tica, a socióloga Eva Illouz, da Uni-versidade de Jerusalém, defende que amor romântico e capitalismo constituem um par bem resolvido. Segundo a autora, o consumo massivo de rituais amorosos constitui o núcleo do amor romântico contemporâneo, revigorando tanto o capitalismo quan-to os amantes. Se, na modernidade, o romance era entendido e interpretado como uma grande narrativa, quase religiosa, o entendemos atualmente enquanto um micro-ritual emocional,

São Valentin (Eu não estou à venda) “Faça amor, não compras”

Ilustrações francesas da Brigade Antipub. 2005

17 A Ditadura do Amor

um rompimento da vida cotidiana em momentos determinados. Diante disto, Eva aponta que a escolha de um parceiro não é “espontânea e desinteressada”. Ocorre, na verdade, um julgamento racional no intuito de avaliar se aquela pessoa se adequa ao seu plano de vida. Contrariando as fábulas sobre o amor que ultrapassa todas as fronteiras sociais e físicas, as estatísticas mostram que possuir capi-tais culturais equivalentes é condição sine qua non para o vínculo amoroso. Ou seja, os relacionamentos agem na mesma lógica das ações mercadológi-cas: planos estratégicos, investimen-tos emocionais e cálculos de retorno.

O médico psiquiatra Flávio Gikovate, após mais de 40 anos de clínica, afirma que é preciso ser competente em ficar sozinho para estar preparado para uma relação afetiva. “O que se busca hoje é uma relação compatível com os tempos modernos, na qual exista individualidade, respeito, alegria e prazer de estar junto, e não mais uma relação de dependência, em que um responsabiliza o outro pelo seu bem-estar”. Podemos dizer que estamos substituindo a “relação a dois” por uma “parceria de objetivos”.

Contudo, apesar da realidade em que vivemos apontar para esse novo tipo de estrutura amorosa, a sociedade ainda apregoa o modelo de relaciona-mento baseado no amor romântico do século XIX, incorporado num amplo

leque de produtos, objetos, locais e rituais. O capitalismo projetou este tipo de relacionamento como forma de experimentação do sagrado. Porém, o mercado não é capaz de, efetivamente, gerar a energia amo-rosa.

Mesmo colocando à disposição dos amantes uma ampla gama de produ-tos que podem facilitar e intensificar a interação amorosa, essa indústria não tem o poder de despertar o real sentimento. Termina por causar o efeito contrário: após seguir todas as fórmulas pré-determinadas como ga-rantia de “final feliz”, muitas pessoas se frustram por não terem atingido à plenitude vendida. O fracasso de um romance acaba por desestimular a busca por um novo amor. No entanto, continuam presos no paradigma do amor romântico. Gikovate alerta “Há muitos solteiros felizes. Levam uma vida serena e sem conflitos. Quando sentem uma sensação de desamparo, aquele ‘vazio no estômago’ por es-tarem sozinhos, resolvem a questão sem ajuda. Mantêm-se ocupados, cultivam bons amigos, lêem um bom livro, vão ao cinema. Com um pouco de paciência e treino, driblam a solidão e se dedicam às tarefas que mais gostam. Os solteiros que não es-tão bem são geralmente os que ainda sonham com um amor romântico”. Ou seja, é possível a felicidade longe dos paradigmas vendidos pela “indústria do amor”.

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As palavras finais das personagens de uma das maiores histórias

de amor já contadas, apesar de não tão conhecidas como seu romance, enaltecem bela e formalmente o ideal do amor romântico. Aquele ideal per-sonalizado em virtudes como pureza e bondade e onde os seres humanos ou as possuem ou as desprezam. Adapta-da para literatura, teatro, cinema, dança e música, Romeu e Julieta traz a máxima de que uma vida sem amor não é digna de ser vivida. A Megera Domada, que no início tratava-se de uma negativa à necessidade do amor e do casamento, também acaba por

mostrar um Shakespeare rendido aos finais românticos e felizes. O romant-ismo, naquela época e ainda hoje, explica como o amor deve ser, uma narrativa para uma vida individual, es-tendendo uma reflexividade do amor sublime. O início do amor romântico coincidiu com o surgimento do gênero literário da novela, descobrindo-se da conexão entre eles a forma narrativa do romance.

Após a era dos casamentos arran-jados, os ideais do amor romântico inseriram-se nos laços emergentes entre a liberdade e a auto-realização.

Um amor desses de CinemaROMEU — Ó meu amor! querida esposa!

A morte que sugou todo o mel de teu

doce hálito poder não teve em tua

formosura. Não; conquistada ainda não

foste; […] Ah! querida esposa, por que

ainda és tão formosa? Pensar devo que a

morte insubstancial se apaixonasse de ti

e que esse monstro magro e horrível para

amante nas trevas te conserve? Com

medo disso, ficarei contigo, sem nunca

mais deixar os aposentos da tenebrosa

noite; aqui desejo permanecer, com os

vermes, teus serventes. […] Eis para

meu amor. (Bebe.) Ó boticário veraz e

honesto! tua droga é rápida. Deste modo,

com um beijo, deixo a vida. (Morre.)

JULIETA — Ouço barulho. Preciso andar depressa. Oh! sê bem-vindo, punhal!

(Apodera-se do punhal de Romeu.) Tua bainha é aqui. Repousa ai bem quieto e

deixa-me morrer. (Cai sobre o corpo de Romeu e morre.)

Marcella Semente

Cena do terraço de Romeu e Julieta, retratada por Ford Madox Brown. 1870

19 O Amor doentio e o Ciúme

Nas ligações deste tipo de amor, o elemento do amor sublime predomina sobre aquele do ardor sexual. O amor rompe com a sexualidade, embora ainda esteja presente. Mas é a virtude que assume o sentido para o casal, o das qualidades de caráter que fazem desta outra pessoa “especial”. Mesmo a séculos de distância, os amores – ou suas representações – nas mídias e nas artes permanecem semelhantes, de-pendentes e obedientes às qualidades e virtudes vistas como necessárias. Apesar da atração imediata, do amor

à primeira vista comum nos filmes holywmoodianos, ele normalmente é separado das compulsões sexuais e eróticas do amor apaixonado. O pri-meiro olhar é como uma compreensão intuitiva das qualidades do outro, faz parte do processo de atração por al-guém que pode tornar a vida da outra pessoa completa.

Assim como as outras metanarrativas que não conseguiram dar explicações universais para determinados temas, o romantismo também fracassou e

Rick Blane e Ilsa Lund,

vividos por Humphrey

Bogart e Ingrid Bergman

no clássico do cinema,

Casablanca

Nicole Kidman é Ada

Monroe e Jude Law é

Inman em Cold Mountain

20

por isso é preciso reinventar o amor, porque o amor romântico é incom-patível com o mundo atual. O seu fantasma, contudo, continua apare-cendo em filmes, seriados, novelas, romances e canções. A mesma história de amor vista em Casablanca hoje se repete em Cold Mountain. O resultado é que, para obtermos sucesso nesta área da vida, acreditamos que pre-cisamos realizar o amor idealizado do cinema, da televisão, dos livros e da música.

Fracassar no amor acabou se tornando um sinônimo de incompetência. O problema não estaria nos indivíduos, mas sim na maneira de encarar este modelo de amor que foi

herdado da Europa romântica de dois séculos atrás. Enquanto, naquela época, a cultura valorizava a capaci-dade de sofrer e o romantismo servia para equilibrar o desejo de felicidade individual e o compromisso com os ideais coletivos, hoje, há um en-fraquecimento desses ideais coletivos. Esse fantasma romântico que ronda os amantes dá origem a uma con-tradição emocional presente na maio-ria dos indivíduos. Aprende-se, desde cedo, a amar como Romeu e Julieta, vendo no amor romântico caminho para a felicidade eterna. Só que, ao mesmo tempo, não abre-se mão da cultura do prazer que a sociedade con-temporânea nos

Romeu + Julieta, versão moderna cinematográfica de Baz Luhrmann para o romance. 1996

autoriza a usufruir. Por isso, o romant-ismo, que foi feito sob medida para um mundo que era diferente do atual, acaba se tornando um fantasma.

Fora das telas de cinema e tv, as pes-soas envelhecem, tornam-se feias, o Príncipe Encantado tem hérnia de disco, a Princesa se contorce em uma crise renal e o romantismo some, porque as pessoas não suportam frus-trações e limites aos prazeres. Como nada disso é compatível com a idéia de que um dia se encontrará alguém que nos complete totalmente, este tipo de amor condena a quem o aspira a frustração.

De acordo com Michel Bruschi, mestre em Psicologia Social e da Personali-dade e doutor em Psicologia, se son-har com Príncipes e Princesas é bom, melhor ainda é saber que na vida se amará pessoas comuns que são pare-

cidas conosco, com nossas fraquezas, imperfeições e, também, com nossa eventual generosidade. A metanarra-tiva do romantismo mostra o caminho a seguir a partir do momento em que se conhece a pessoa amada até o casal conseguir vencer as dificuldades para ficar junto. Mas não diz o que se faz depois do “e foram felizes para sem-pre”, depois que se conhece mais a outra pessoa, depois que se fica íntimo dela, depois que conhecemos os seus defeitos que não estavam presente na narrativa idealizada do amor român-tico. Para evitar sermos perseguidos por esse fantasma, é preciso construir novos caminhos para a paixão. Se no primeiro amor, segue-se ao pé da letra o roteiro do romantismo dos filmes, seriados, romances, novelas e músi-cas; nos outros, é preciso inventar algo diferente, outras emoções e compro-missos.

21 A Ditadura do Amor

Dilatar a pupila é, definitivamente, uma das piores experiências de

uma pessoa. As gotinhas caem e o olho já começa a arder. Hoje foi o meu dia de ir ao oftalmologista. Nada poderia ser pior. Alias, poderia.... e foi. Pra piorar, a Dr. Ana Karina decidiu que o seu consultório precisa ser mais escuro do que o normal. Ai, como vocês podem imaginar, o resultado da dilatação da minha pupila somada à diferença de luminosidade entre o consultório e a rua foi o de uma momentânea sensação de cegueira branca. Me senti como num ensaio de Saramago. Pra piorar ainda mais, volt-ei andando (cambaleando) para casa, mas no meio do caminho, ainda um pouco cego, decidi esperar um pouco na porta de uma Igreja (tão escura quanto o consultório que eu acabara de sair). E foi aí que aconteceu o pior. Quando entrei no templo sagrado, estava acontecendo um casamento.

Eu falei ali em cima que dilatar a pu-pila era uma experiência ruim. Talvez entre as piores. E continuo achando isso, mas casamento também não fica muito pra trás. Cego como eu estava, acabei percebendo mais os

sons da situação do que propriamente a situação em si. E foi um horror. Algo como uma farsa medieval, porém sem o devido ensaio. E o pior dessa en-cenação é que todo mundo realmente finge acreditar naquilo apenas para não ser chato ou desrespeitoso com as regras e as lendas religiosas. E aí é um tal de “viver feliz para sempre”, “até que a morte os separe”, “sim”. Todo mundo fala, e repete, e aceita o que o padre diz. Muitas vezes sem perceber o teor daquelas promessas.

Naquela igrejinha de bairro, naquele casamento atípico (numa manhã de um dia de semana), tudo parecia profundamente normal. Dentro do padrão ao qual estamos mais do que acostumados e com o qual aceita-mos viver sem maiores questiona-mentos. Mas eu fiquei ali parado me perguntando algumas bobagens. A mais simples delas foi: “por que será que as pessoas insistem em fazer um casamento religioso cheio de convi-dados”? E não é uma pergunta sem fundamento. Ninguém gosta (apesar de não assumir) daquela cerimônia enfadonha. A roupa é profundamente desconfortável (principalmente para

Gracas a Deus, era apenas o colírioRafael Moura

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quem mora perto dos trópicos). O padre nos faz concordar com um monte de coisas que todo mundo sabe que no fim acontece exatamente ao contrário. Tudo é uma grande farsa, uma grande encenação. A única verdade ali era a senhora que estava sentada numa das primeiras fileiras. Chorava um choro apertado. Estava ali sozinha. Pude jurar que ela era aquela tia da noiva que, como existe em toda e qualquer família que se preze, “ficou pra titia”. Era um choro tão verdadeiro e tão silenciosamente alto que eu tive a impressão de poder ouvir o lamento. Algo como: “Coitada da minha so-brinha”. Pra mim foi como um sopro que me devolvia a visão. De repente, ao ouvir o lamento, recuperei minha pupila e consegui voltar para casa são e salvo. E agradecendo à vida por não ser tão cego quanto parecia. Graças a Deus, o meu problema era apenas o colírio.

Gracas a Deus, era apenas o colírio

23 A Ditadura do Amor

RECIFE, JUNHO, 2011