“reverie, o sonhar do analista a morte no sonho e a
TRANSCRIPT
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
“REVERIE, O SONHAR DO ANALISTA A MORTE NO SONHO E A MORTE DO SONHO”
Ana Maria Cardoso Castro Eixo: O corpo na clínica
Palavras-chave: reverie, corpo do analista, identificação projetiva
Resumo: O presente trabalho tenta explicar brevemente os conceitos de continente- contido, função alfa, elementos beta e reverie dentro da teoria bioniana e cotejá-la com a experiência clínica. A autora dá exemplos de reveries e sonhos com duas pacientes, que apresentam falhas em sua função alfa. Associa esses fenômenos a aspectos de comunicação por identificação projetiva na relação analítica.
Desenvolvimento
Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.
Fernando Pessoa
Bion partindo de Freud
A partir da teoria freudiana, sabe-se que o processo primário está ligado à
satisfação imediata dos desejos, portanto relacionado ao princípio de prazer, e que
o processo secundário está ligado ao princípio de realidade. Na vigência do principio
de realidade, o sujeito substitui o prazer imediato pelo seguro. Tendo a atenção
vinculada aos orgãos de percepção, estabelece-se o processo de pensar, como
uma antecipação da ação. Os processos oníricos continuam atrelados ao principio
de prazer, assim como o fantasiar, manifestando-se nas formações do inconsciente.
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
Para Bion, a preconcepção quando se encontra com a realização, gerando
satisfação, dá origem a uma concepção. No entanto quando encontra a frustração,
se tolerado pelo ego, poderá resultar num pensamento. Em outras palavras, o
pensar surge como uma de solução para se lidar com a frustração. Mas, se ao
contrário disso, a capacidade de tolerar frustração for frágil, o a experiência do “não
seio” ou nas palavras de Klein, o seio mau será expulso através do mecanismo de
identificação projetiva. .Quando o número de evacuações de elementos beta é
excessivo, dá-se o nome de tela beta.
O modelo que proponho é o de um bebê cuja expectativa de um seio
se una a uma "realização" de um não-seio disponível para satisfação. Essa união é vivida como um não seio, ou seio "ausente", dentro dele. O passo seguinte depende da capacidade de o bebê tolerar frustração. Depende de que a decisão seja fugir da frustração ou modificá-la (BION, 1994).
Nos diz CASSORLA:”O modelo continente/contido (Bion, 1962) baseia-se na
função digestiva: a mente humana deve “digerir”, “metabolizar” elementos brutos,
sensoriais e afetivos– chamados elementos beta–, que devem ser contidos
(acolhidos e metabolizados) por outra mente, continente, e tornados passíveis de
serem potencialmente pensados– elementos alfa. O continente apropriado capaz de
efetuar essa complexa função, chamada alfa, não se deixa dominar ou destruir,
propiciando uma relação intersubjetiva criativamente transformadora.” (CASSORLA,
2007).
A evolução do pensamento de Bion, um aparelho para pensar pensamentos
O autor iniciou seus estudos com grupos, e com eles estabeleceu uma teoria
própria. As ideias de Bion sobre os grupos foram muito influenciadas pelos
conceitos kleinianos de funcionamento mental. Baseado nessa teoria, que tem como
premissa a oscilação entre as posições esquizoparanoide e depressiva, são
estabelecidas aproximações entre os grupos de suposto básico- de funcionamento
PS - e os grupos de trabalho, onde predominaria o funcionamento PD.
Depois disso, Bion passa a trabalhar e teorizar sobre os psicóticos. Pela
primeira vez em 1959 afirma que o paciente psicótico não tem capacidade
de reverie, nascendo assim o conceito que pretendo estudar.
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
Percebe a complexidade do fenômeno psicótico e a importância da formação
e existência da parte psicótica e não psicótica da personalidade. Bion estabeleceu
um significativo trajeto na descrição da mente através de um modelo de “espiral
helicoidal expansiva e ascendente, como um universo em expansão (BION, 1964)
Einstein, quando perguntado sobre suas motivações para a pesquisa, afirmava que
a emoção mais profunda é inspirada pelo senso do mistério:
... a existência de algo que nós não conseguimos penetrar […] da beleza radiante do mundo a nossa volta, acessíveis a nossa mente apenas em suas formas mais primitivas, esta é a emoção fundamental que inspira a arte e a verdadeira ciência. (Gleiser, 1997 )
Para Bion, as experiências emocionais são a base para a formação de um
aparelho mental capaz de pensar. O campo da mente é um mundo de
possibilidades infinitas, como nos diz Einstein. Essa situação permite a constituição
de um mundo interno singular. Bion levou o método socrático de "saber que não
sabe", às últimas conseqüências. Em seu modelo, o analista passou a diminuir a
importância da memória, assim, levando em conta outros os fenômenos contidos no
campo analítico, incluindo a mente, as lembranças, as sensações corporais do
analista. Ele percebeu que as resistências eram contra a contra a dor psíquica e
que o trabalho do analista seria expandir a capacidade da mente de transformar
suas emoções em elementos pensáveis. Bion destaca os requisitos essenciais do
estado mental do analista para promover esse processo: “sem memória e sem
desejo” e com “capacidade negativa, o que corresponde à tolerância ao não saber.
De modo sintético: há um inexaurível fundo de ignorância sobre o qual nos baseamos - e isto é tudo que temos para nos basear. Mas tenhamos a esperança de que existe uma coisa, tal como a mente ou uma personalidade ou um caráter, e que nós não estejamos apenas falando sobre coisa nenhuma. (Bion, 1985)
O Modelo Continente/Contido, Elementos Beta, Função Alfa e Reverie
Quando Bion analisa a relação da mãe e do bebê, tenta estabelecer um
paralelo entre a amamentação e uma “alimentação” psíquica. Neste relacionamento,
a mãe seria responsável pela digestão e metabolização da frustração. Como no
início da vida o bebê não estaria aparelhado com essa função, teria que primeiro
constituí-lo através do relacionamento com sua mãe, auxiliado pela capacidade
de reverie desta, a qual forneceria o continente adequado às vivências do bebê. A
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
conceituação de Bion, quanto à origem, natureza e funcionamento do continente da
mãe ele concluiu que para todo um conteúdo projetado deve haver um continente
receptor. Contando com a capacidade de reverie e continência da mãe, o bebê vai
construindo sua “auto-continência”. A expansão da continência está ligada à
compreensão afetiva das experiência, que vai abrindo espaço e oferecendo
recursos ao bebê ( ou paciente) para enfrentar o doloroso desconhecido. O primeiro
objeto psíquico, o mais fundamental, é o objeto continente, introjetado na relação
com uma mãe com capacidade de reverie (Bion, 1962). O pré-requisito fundamental
para que seja utilizada com o filho é o "amor da mãe pelo pai".
Este conceito implica que a função alfa materna permite a transformação dos
dados sensoriais – protopensamentos e protopercepções - em elementos alfa. São
eles os responsáveis pelo pensamento onírico e pelas capacidades de despertar ou
dormir, assim como pela diferença entre consciente e inconsciente e a memória,
graças à formação da barreira de contato na construção do espaço mental.
Para Bion, a reverie é um fator da função alfa. A reverie é um componente da
função materna, capaz de conter as identificações projetivas da criança,
independentemente delas serem percebidas por esta, como sendo boas ou más.
Ele nos diz:
“O seio bom e o seio mau são experiências emocionais... O componente físico, leite, mal-estar produzido pela saciedade ou o seu oposto podem revelar prioridade cronológica a itens beta em elementos alfa. Intolerância à frustração pode ser tão marcante que a função alfa seria dificultada pela evacuação de elementos beta. O componente mental, amor, segurança, ansiedade, ao contrário do somático, requer um processo análogo ao da digestão. O que isso poderia ser é obscurecido pelo uso de alfa-conceito de
função, mas a pesquisa pode encontrar um valor psicanalítico. “(...) “...quando a mãe ama o bebê , com o que ela faz? Deixando de lado os canais físicos de comunicação, minha impressão é que seu amor se expressa por rêverie.(...) Podemos deduzir de reverie, como uma fonte psicológica de suprimento das necessidades do bebê de amor e entendimento, que tipo de receptor psicológico se requer para habilitar o bebê a aproveitar a reverie, assim como consegue, graças às capacidades digestivas do canal alimentar , aproveitar o seio e o leite que ele provê”.
(BION, 1962)
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
Existem outras penumbras associativas ligadas à reverie:
O significado de rêverie transcende a ideia de imaginação e a fantasia se estende a
um cenário, a uma história (Botella, 2007). Junqueira Filho (1991) rastreia sua
origem etimológica:
“Este substantivo que surge no middle english tardio origina-se do
adjetivo rêverie do francês arcaico, que significa júbilo e regozijo, que por sua vez
vem do verbo rever (fazer, agradecer, festejar, regalar). Interessa aqui enfatizar que
no século XVII o termo passou a ser sinônimo de outras expressões. Brown
study (absorvido em devaneio, pensativo) e Day dream (quimera, sonho, devaneio),
ganhando assim seu sentido atual, aquele que Bion atribui potencialmente na
psique materna.3” (p. 57)
Rêverie é um estado particular de consciência receptiva e uma atividade
psíquica para se manter nesse estado (Parson, 2007).
Helena
Elas não tem gosto ou vontade Nem defeito, nem qualidade
Têm medo apenas Não tem sonhos, só tem presságios
O seu homem, mares, naufrágios Lindas sirenas, morenas.
Chico Buarque
Helena é uma paciente na casa dos 20 anos, que está comigo há 6 meses,
na freqüência de uma sessão semanal. Veio após um surto psicótico, quando não
chegou a ser internada, foi medicada e acompanhada em casa. Sua mãe é
enfermeira. Ainda está em acompanhamento psiquiátrico e vem apresentando
melhoras. Disse que lembranças de abusos sexuais cometidos pelo seu pai na
infância irromperam sua mente de modo violento, Nessa época, ela trabalhava
como recepcionista num centro de saúde, onde teve contato com meninas
abusadas. O que mais a exasperava, era o fato de que as meninas eram levadas
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
para tratamento ginecológico pelos próprios abusadores (pais, padrastos, tios ou
conhecidos), e que a equipe de saúde dizia não poder denunciá-los por temer
retaliação. Esses homens eram descritos como perigosos. Ela traz um sentimento
de culpa por ter “deixado“ seu pai abusar dela, revolta por sua mãe não ter
percebido nem a defendido dos abusos, muita raiva do pai e desejo que ele morra.
O descreve como violento na relação com a mãe, principalmente por ocasião do
divórcio deles, quando era adolescente. Mas se lembra que a mãe por trabalhar
muito, a deixava aos desse pai, que era muito atencioso e dedicado. Desde seu
adoecimento não o vê mais. É homossexual, e recentemente passou a morar com
uma companheira, vivendo pela primeira vez um relacionamento afetivo sério.
Numa quinta feira, no dia marcado para a sessão dela, começo a passar mal
um pouco depois do primeiro paciente da tarde. É uma dor de estômago aguda.
Começo a pensar que, se a dor não passar, não vou conseguir trabalhar até o fim
do dia. E não passa. O paciente seguinte se atrasa, o que me dá tempo para
cancelar o último. Mas ainda teria, Helena a penúltima do dia. Resolvo avisá-la
também, por telefone, e sem sucesso por mensagem. Mas ela não me atende, nem
visualiza minha mensagem. Acho estranho. A paciente seguinte chega, mas não
consigo ouvi-la, minha dor é maior. Tenho que explicar a ela minha situação e
interromper a sessão no meio.
Vou pra casa e a dor vai se amenizando. Não tenho ideia do que pode ter
ocorrido, não há explicação lógica para esses sintomas.
No dia seguinte estou melhor, apesar de indisposta. Vou atender meus
pacientes da manhã. A última desmarca, por mensagem, mas ainda teria a
penúltima, Júlia, uma adolescente da qual falarei mais tarde.. Eu simplesmente me
esqueço dela, e saio do consultório minutos antes dela chegar. Recebo um recado
mais tarde de sua mãe, perguntando se eu estava passando bem e que estava
preocupada comigo e pergunta se teria acontecido algo errado. Só então me dou
conta do lapso. E fico sem entender. À tarde, recebo o recado do psiquiatra da
Helena, ele diz que teve que interná-la quinta feira à tarde, pois teve duas tentativas
de suicídio nos dias anteriores.
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
Nessa noite tenho um sonho bastante inquietante. Vou sair de viagem, mas
tenho como bicho de estimação uma cachorra. Um passarinho entra como intruso e
é odiado por isso. Por um motivo inexplicável, eles estão num recipiente parecido
com um aquário gigante. O passarinho deverá ser assassinado por afogamento.
Como vou viajar, deixo a mangueira ligada dentro do aquário e saio. Vou me
angustiando com a possibilidade das mortes, me sinto culpada – pela cachorra que
não devia morrer- e arrependida - já não acho que o passarinho deve morrer. Me
sinto impotente em evitar, estou a quilômetros de distância. Ao acordar em pânico
de madrugada, demoro a perceber que estou em casa, e que está tudo bem. Vou ao
local onde no sonho estariam os bichos. E me lembro imediatamente das duas
pacientes, Helena e Júlia.
Entendo que no instante que Helena estava sendo internada, ela me
comunicou “a quilômetros de distância” por Identificação projetiva sua dor, que em
mim foi vivenciada no corpo, como uma dor de estômago, que fala de algo
completamente indigesto, tanto pra ela quanto pra mim. Essa angústia-dor, que é
da ordem do irrepresentável, ocupa a analista, sua mente é invadida por elementos
beta, trazendo o impedimento de estar com outros pacientes.
Só consigo visitar Helena na clínica uma semana depois. Ela me parece
disposta. Está tentando se livrar da idéia de que ela tem culpa pelo abuso sexual
que sofreu do seu pai. O colapso atual veio de uma lembrança nítida, uma cena
onde ela estava sendo penetrada pelo pai. Ela diz que não agüentou e quis morrer.
Foi pra um bairro próximo a sua casa e se aproximou de um abismo, ia pular. Mas
de repente viu a pena de um pássaro no chão, e resolve voltar pra casa. A pena a
fez recuar. Depois junta todos os seus remédios, mas sua companheira chega e ela
não os ingere.
Quando a função alfa está perturbada, o paciente não tem condições de sonhar. Os elementos beta por ele eliminados, muitas vezes consequentes à destruição de formação simbólica incipiente (reversão da função alfa) (Bion, 1963) demandam que o analista os sonhe. Isto é, o analista transformará experiências emocionais brutas do paciente em imagens visuais. (CASSORLA,2009)
Do nosso caso, ao de transformar as experiências insuportáveis da paciente,
eu as vivi no corpo e depois sonhei, numa tentativa de elaborar minhas próprias
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
experiências e da paciente. . “Os elementos beta por ele (paciente) eliminados,(...)
demandam que o analista os sonhe. Isto é, o analista transformará experiências
emocionais brutas do paciente em imagens visuais,(...) A diferença também foi que
o que ocorreu não foi no encontro da dupla. A analista sonha só, em sua casa, mas
usando alguns materiais – tela beta- da Helena.Dessa forma ressalto o que
Cassorla diz: “Naturalmente este sonho é seu e ele foi fruto de vicissitudes de sua
própria personalidade (…)Ao percebermos que o sonho sonhado pelo analista,
ainda que tentativa de sonhar o do paciente, é um sonho próprio, do analista, fica
evidente que fatores próprios, da pessoa real do analista entram em jogo. Eles
serão tanto mais exigidos quanto menor a capacidade de simbolizar do paciente.”
(CASSORLA, 2009)
Júlia
"Estou sendo antimelódica. Comprazo-me com a harmonia difícil dos ásperos contrários"
Clarice Lispector
A mãe me procura por orientação da escola. Júlia, que prefere ser
chamada(o) Júlio ou simplesmente Ju, quer ser menino, ela tem treze anos
incompletos nessa ocasião. A mãe não parece demasiado angustiada ou
preocupada, pelo contrário. É muito risonha e leve. Teve descompromissado
namoro com o pai da menina. Quando engravidou, sem planejar, pois o namorado
era vasectomizado, ela resolve se separar, pois considerava-o imaturo. Fez toda a
preparação pré- natal sozinha, com o apoio de seus pais. Quando questiono como
seus pais reagiram a ideia ela diz que “eles adoraram, pois estavam se
aposentando e foi ótimo ter um bebê pra cuidar!”
A criança foi reconhecida pelo pai, mas a mãe não forçou o contato entre eles.
A mãe nos primeiros meses teve depressão pós parto. Quando tinha dois anos,
Claudia se casa com seu atual marido, que aceitou Júlia, mas sem assumi-la como
filha.
A mãe me diz que a filha é linda, e até 6 meses antes era super feminina. A
mudança, segundo ela, ocorreu com o crescimento dos seios. Passa a usar roupas
que cobrem o corpo, corta o cabelo. Tem medo de ser estuprada por homens.
Começam a pesquisar sobre mudança de sexo, em blogs e sites.
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
Na escola tem problemas com os colegas e professores, desde que passou
a se vestir como menino. Tem comportamento de auto-mutilação quando fica
angustiada.
Quando recebi essa paciente, antes mesmo de vê-la, enquanto realizava as
entrevistas iniciais com a mãe, me lembrei de um trecho de um conto de Clarice
Lispector, que se encontra no livro “Laços de Família”. O conto é intitulado “A Menor
Mulher do Mundo”. Nele, um pesquisador descobre uma rara mulher de cinco
centímetros na África. A fotografia dessa mulher batizada pelo pesquisador de
Pequena Flor se espalhou pelos jornais da cidade causando nos personagens do
livro grande comoção. “Sentimentos mistos de ternura e violência foram
despertados”. Foi em especial o trecho da menina no orfanato que me fez pensar na
paciente. Gostaria de dividir esse meu sonho com vocês. :
“A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a.” (LISPECTOR, 1998).
Num primeiro momento, a impressão que tive da mãe da paciente foi muito
marcante. Ela me pareceu muito despreocupada com a dificuldade da filha, não
existindo uma sintonia com seu sofrimento. Além disso, seu olhar tinha algo
estranho, como se sua íris fosse maior do que o normal, como se ela não fosse
humana. Sua frieza negligente se confirmava com os relatos dela e da paciente. A
falta de planejamento dessa gravidez e as circunstâncias em que ocorreram, levam
a pensar que Cláudia não estava preparada psiquicamente para a maternidade. Ela
não era um continente para a filha, que passa então a viver “um terror sem nome”. A
mãe precisava depositar em Júlia todas as suas angústias, sobrecarregando a
criança, e fazendo com que a mesma não conseguisse dormir uma noite inteira até
os dois anos de idade. Bion esclarece que no início da vida o bebê necessita de
um continente para seus conteúdos. E a mãe de Julia não se dispõe a isso, nao tem
capacidade de reverie e por isso, não forneceu o continente adequado às vivências
do bebê. Dessa forma se dá a orfandade da Júlia, ela não teve uma mãe psíquica,
apenas biológica. E isso não bastou. Como no conto da Clarice, a órfã, pode
parecer viva, mas brinca com a morte e com a morta, o tempo todo. A angústia de
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
morte impera. A mãe de Júlia não a pariu mentalmente. O pré-requisito fundamental
para que a reverie seja utilizada com o filho é o "amor da mãe pelo pai". Nesse
caso, de um pai anulado e supostamente estéril, esse pré- requisito não existe,
impossibilitando a reverie.
Ao pensar no conto e me intrigar com o olhar da mãe, procuro sair do nível
concreto e aumentar a função alfa. Tenho uma lembrança sonhante e toda a idéia
de orfandade psíquica, morte e falta de continente, passam a ser pensáveis. Do
decorrer da análise, essas impressões me auxiliam a acompanhar Júlia e suportar
sua solidão. A mãe não conseguiu amamentar a filha e teve depressão pós parto. A
mãe capturou a menina e a manteve na condição de objeto, na condição de menina
morta. Uma menina morta que não pode desenvolver-se. O aparecimento dos seios
coincide com sua drástica mudança e desejo de ser homem. A paciente nesse
episódio estaria revivendo a experiência de um não seio. A expectativa que o bebê
Júlia teve de um seio não encontra uma realização. O olhar vazio da mãe anula
qualquer possibilidade de um elemento feminino disponível para identificação.
Associações
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido? Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial? Álvaro de Campos / Fernando Pessoa
Uma vivência do dia anterior, que me ajuda na elaboração do sonho é um
seminário clínico. Uma colega leva o caso de uma criança, uma menina, que ganha
um filhote de cachorro, mas, por descuido dos pais, entra num balde d’água e morre
afogado. Os pais não lhe contam a verdade e lhe dizem que ele morreu porque não
teria mamado o suficiente.
O balde, em meu sonho, ganha maiores dimensões e se torna uma grande
recipiente transparente. Penso no aquário, mas também num grande útero, que
pode gestar vida, mas que também pode levar à morte, caso os bebês não nasçam
no tempo esperado, ou se o alimento for insuficiente.
Fazendo uma analogia com a função analítica percebo que me sinto
responsável por não ter percepção o sofrimento de Helena a ponto de intervir –
partejar- a tempo, fazendo-a correr risco de morte- o próprio suicídio se desenhando
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
assombroso naquele momento. “O líquido amniótico é o fluido que envolve
o embrião, preenchendo a bolsa amniótica, que desta forma o protege de choques
mecânicos e térmicos.” É um fator de proteção do bebê, mas no meu sonho é
instrumento de morte.
Sinto-me irresponsável por não ter dado sessões-alimento em quantidade
suficiente. Teria sido negligente como os pais da pequena paciente. E como a mãe
de Helena, que ignorava os abusos perpetrados pelo marido.
Minha negligência se repete no dia seguinte, ao esquecer Júlia. Confesso
que são duas pacientes muito difíceis. Estar um com elas por vezes é penoso. A
mãe de Júlia parece perceber meu mal estar ao perguntar se eu estava bem. Eu
realmente não estava.
Penso ainda naqueles tanques de formol, onde se conservam corpos
intactos. Será que eu gostaria de poder conservá-las artificialmente, até que eu
pudesse me recompor, isto é, recompor minha capacidade analítica?
A pena do pássaro que a faz recuar me faz pensar no passarinho de meu
sonho. Seria uma comunicação entre mentes ou uma transformação em alucinose
da analista? O ambiente da clinica psiquiátrica propiciaria este tipo de
transformação. (BION, 1965). Para Bion a alucinose é um mecanismo bastante
freqüente em pacientes neuróticos, os quais quando submetidos à forte pressão,
operam com transformações psicóticas, projetivas e em alucinose.
Passarinho seria também o símbolo do órgão masculino, o pênis. Elemento
masculino invasivo- intruso, que satisfariam os desejos manifestos da paciente
Helena de matar o pai.
Nas duas pacientes a figura paterna é problemática. Helena não teve um pai
protetor e sim um invasor, um predador. A mãe não conseguiu protegê-la disso. Mas
o pai era carinhoso, o que faz referência ao conto de LISPECTOR. A criatura
Pequena Flor – nome que pode ser sugerido como símbolo do órgão genital
feminino- provocava um misto de ternura e violência. Júlia teme o estupro, Helena é
estuprada. Estupro: ternura e violência.
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
Júlia não teve pai, de fato, e se traveste de homem para procurar buscar essa
referência nunca encontrada. As duas mães, de Helena e Júlia, não foram capazes
de reverie com suas filhas porque “O pré-requisito fundamental para que (a reverie)
seja utilizada com o filho é o "amor da mãe pelo pai".
A cachorra é o elemento feminino que corre risco de morte. Vai morrer
injustamente, apenas por violenta negligência.
Conclusão
As pacientes em questão tem deficiências na função alfa, com conseqüência
dificuldade de sonhar. Muitas vezes tem pesadelos. A morte no sonho da analista
desvenda que é a própria capacidade de sonhar que morre, ou corre o risco de
morrer, em cada uma delas. Sonho como desejo, como atividade mental, como vida
psíquica. A analista procura sonhar com elas, às vezes no lugar delas, mas nem
sempre tem êxito. No caso do episódio da identificação projetiva exitosa de Helena,
só resta viver um pesadelo a dois. No caso da Júlia, a mente da analista mais
preservada naquele momento pode sonhar, ter reveries e pensar. Sonhando sonhos
com quem não aprendeu a sonhar...vivências como essas evidenciam a
atemporalidade nas trocas psíquicas inconscientes. Bion, em uma palestra em 1976
na Sociedade Britânica de Psicanálise, propôs um modelo para pensarmos o
método psicanalítico. Este seria como uma bengala para o cego. A bengala para o
cego é como a psicanálise para o paciente, um modo de apreensão de realidades
que fazem parte de algo maior. A bengala nos remete ainda de sustentação, de
orientação, e de como podemos perscrutar o mundo, sonhando, pensando e
criando.
Vida é sonho
“É certo; então reprimamos
esta fera condição,
esta fúria, esta ambição,
pois pode ser que sonhemos;
e o faremos, pois estamos
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
em mundo tão singular
que o viver é só sonhar
e a vida ao fim nos imponha
que o homem que vive, sonha
o que é, até despertar.
...
Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que em outro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.”
Calderón de la Barca (1600-1681)
Referências bibliográficas
BARCA, C. A vida é sonho, Editora Scritta, Rio de Janeiro, 1992.
BION, W. (1991). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1991. (Trabalho original publicado em 1962.)
BION, W (2014) O aprender com a experiência. (Trabalho original publicado em 1962.) Traduzido por Martha Prada e Silva
BION, W.R. (1957) Diferenciação entre a personalidade psicótica e a personalidade não psicótica. In Estudos Psicanalíticos Revisados, Rio de Janeiro, Imago, 1988,
BOTELLA, C. (2007). Rêverie-reverie e o trabalho de figurabilidade. Rêverie: Revista de Psicanálise, 1 (1), 77-83.
BUARQUE, C. Mulheres de Atenas, música composta em 1976
CAMPOS, A. Poesias Escolhidas ( heterônimo de Fernando Pessoa), Editora Afrontamento, 1996
CASSORLA, Roosevelt M. S.. A reverie nesta arte da psicanálise. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo , v. 17, n. 4, p. 940-942, Dec. 2014 .
Organiza Federación Psicoanalítica de América Latina
Septiembre 13 al 17 de 2016 Cartagena, Colombia
CASSORLA, Roosevelt M. Smeke. Do baluarte ao enactment: o "não-sonho" no teatro da análise. Rev. bras. psicanál, São Paulo , v. 41, n. 3, set. 2007 .
CASSORLA, Roosevelt M.S.. Reflexões sobre não-sonho-a-dois, enactment e função alfa implícita do analista. Rev. bras. psicanál, São Paulo , v. 43, n. 4, 2009 .
COELHO, N. E. Jr, Tempo do sonho, tempo da rêverie e o terceiro analítico, Cad . Psicanál.-CPRJ, Rio de Janeiro, v. 35, n. 28, p. 49-60, jan./jun. 2013
DIAS, Vera Lucia Linhares; VIVIAN, Aline Groff. Bion e uma mudança de paradigma na psicanálise. Aletheia, Canoas , n. 35-36, dez. 2011 .
GLEISER, M. (1997). A dança do universo. São Paulo: Companhia das Letras
Junqueira Filho, L.C.U. (1991). Função: "sonhar". Jornal de Psicanálise, 24 (47), 49-58.
OGDEN, T.H. (2007). Rêverie e interpretação. Rêverie: Revista de Psicanálise, 1 (1), 61-64.
OGDEN, T.H.(2013). Reverie e interpretação: captando algo humano. São Paulo: Escuta
LISPECTOR, C. Laços de Família, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1998
LISPECTOR, Clarice. Água viva. São Paulo: Círculo do Livro, 1973.
ZIMMERMAN, D. E., Uma Teoria do Pensamento em Bion da Teoria à Prática, Artes Médicas, 1995.
ZIMERMAN, D.E. Manual de Técnica Psicanalítica , Artmed, 1986