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Memórias de um ex-combatente pára-quedista em ÁfricaTRANSCRIPT
Aquela coisa…
Ontem tive uma agradável surpresa. Quando andava no sótão, remexendo nas
coisas que sempre arrumamos e das quais não nos queremos desfazer. Manias de um
cinquentão ou manias de quase toda a gente.
Encontrei uma coisa que norteou a minha vida precisamente durante 40 meses.
Coisa essa perdida entre livros e outras velharias, daquelas coisas às quais no seu
tempo não dávamos a devida importância mas, que quando as revisitamos, nos contam
histórias, retalhos de uma vida.
Essa coisa que encontrei, e que já tinha dado por perdida, tem muitas histórias por
contar, e todas por escrever.
Essa coisa representa seis por cento dos já muitos dias, meses e anos que por
cá ando.
Essa coisa que desprezei durante quarenta meses, que me dava vontade de sei
lá o quê, apesar da pouca consciência que eu tinha do mundo e principalmente da
política.
Essa coisa azul de treze por dez centímetros, com tantas páginas como eu conto
por anos a minha vida, precisamente cinquenta e cinco.
Essa coisa chamada caderneta militar.
Essa coisa relata, desde dezoito de Dezembro de 1969 a quatro de Outubro de
1973, a vida de um militar na aeronáutica, que serviu nas forças pára-quedistas, por
entre a recruta e os cursos de pára-quedismo, do combate, de minas e armadilhas,
boxe e defesa pessoal e tantas outras coisas. Ainda atravessou uma guerra como tropa
especial, especialmente treinados para combater, sofrer e morrer.
Mil histórias por contar aos retalhos, narrativas verídicas e testemunhadas por
colegas ainda presentes.
Tivesse eu o talento e o bom português necessário e tentaria deixar aqui algumas
dessas histórias.
Vou tentar
Não ouvem suas merdas!
Estávamos em Julho de
1969, quando o astronauta Neil
Armstrong, bem lá em cima na Lua,
dizia aquela famosa frase: "Um
pequeno passo para o Homem, um
salto gigantesco para a
Humanidade" e eu cá em baixo
com os meus quase vinte anos e
com um calor abrasador, vou,
estupidamente, todo pimpão, a
uma Junta Distrital de
Recrutamento Militar situada numa
antiga casa conventual que se
transformou em Hospital Militar
(Enfermaria Militar em pleno séc.
XX, até à década de setenta). Este
edifício deteriorou-se e foi
parcialmente delapidado, entregue ao ostracismo e degradação (anos setenta),
valendo a recuperação pela paróquia que o adquiriu em 1981, procedendo às
necessárias obras de restauro: Centro Social e Paroquial, jardim-de-infância e serviços
de alcance humano e espiritual.
Estávamos todos no átrio, rapazes de todas as classes e origens. Do rapaz
pobre da urbe (como eu), acolhido no largo das almas, junto à antiga Igreja Matriz,
(hoje Igreja das Almas), ao filho de boas (ricas) famílias, que envergonhados por não
pertencer à maioria (a pobreza abundava por estas regiões), se refugiavam num canto.
Dos vulgos saloios das aldeias e das serras, de ceroulas e chancas no verão, até ao
filho do abastado agricultor.
E lá ia vociferando aquele animal fardado:
- “Não ouvem suas merdas, é assim que querem ser militares?”.
Ouvem-se vozes em surdina entre os reguilas de pé descalço cá da urbe:
- “Quem pensa que é este filho da puta?”.
Ninguém teve a coragem de levantar a voz para aquela barriga fardada. Lá nos
pesaram e mediram, sempre nus, não sei porquê, pois aproveitavam coxos e marrecos
e tudo o que viesse à rede. Quem não quisesse, que fugisse a salto para França como
tantos outros. Depois de todos estes procedimentos, deram-nos uns impressos para
preencher: se não quiséssemos ir para o exército, poderíamos escolher entre a
Marinha e a Aeronáutica. O gajo afinal era nosso amigo! Até nos sugeria outras
opções! Nada mais falso: eles queriam era voluntários para tropas especializadas, a
que hoje vulgarmente chamamos “Forças de Intervenção Rápida”.
Nessa altura ainda me martelava nos ouvidos “Não ouvem suas merdas? É
assim que querem ser militares?” e foi com isso a zurzir nos ouvidos que tomei a minha
primeira grande decisão e disse para o João Loureiro, um homenzarrão, mas com cara
de menino, meu amigo de muitas lides e brincadeiras desde a escola primária:
- “Militar como ele não vou ser de certeza! Vamos para a Marinha, Jão?”. - Era
assim que o tratava
Respondeu-me de imediato á minha provocação:
- “Estás maluco, eu nem sei nadar!, vou para o exército que lá não se faz nada”.
E do outro lado do trio, disse o Fiúza, o pescador:
- “Vamos Zé? Eu vou inscrever-me para a Marinha”.
Estas posições opostas, de dois amigos de infância, baralharam-me as contas,
pois fazia intenção de irmos os três juntos para a tropa. Então, sem lhes dizer a
verdadeira razão, pois para mal dos meus pecados também não sabia nadar, disse:
- “Nada disso, vamos para a Força Aérea e o culpado é aquela barriga fardada.
Não quero ir para o Exército”.
E foi assim que eu e o Fiúza nos inscrevemos na Força Aérea. Como dentro
desse ramo das Forças Armadas havia pára-quedismo, e como os putos da rua como
nós eram ávidos de aventura, vai daí… alistámo-nos, os três amigos, nas Forças Pára-
quedistas.
Assim, tomei uma das minhas decisões mais importantes, a qual iria marcar
positivamente o resto da minha vida, quer pelo espírito de grupo e camaradagem, quer
pelos ensinamentos que fui recolhendo ao longo de quarenta meses de serviço militar,
onde o lema era: “Que nunca por vencidos se conheçam”.
Mas a parte “estúpida” desta crónica consiste no que aconteceu a seguir. O
grupo oriundo das aldeias e das serras, munindo-se de bombos e pandeiretas, foi
tocando e bebendo ainda mais, pelas ruas, como quem ia para uma festa muito
importante. Muitos deles acabariam por perecer na guerra…
Só passados uns bons meses é que eu percebi e interiorizei o sentido e as motivações
com que eles, no fim da inspecção militar, foram festejar pelas ruas, como o anunciar
de uma festa ou de uma romaria. Era provavelmente um grito de libertação, por saírem
do mundo atrasado e das aldeias em que o ditador Salazar os tinha deixado.
Sempre que me lembro disto, lembro-me, simultaneamente dos mortos da
guerra, da carne para canhão em que eles se tornaram.
QUE DESCANSEM EM PAZ!
Embarque para a aventura
A doze de Dezembro de 1969 ocorre o "Massacre de Estado": bombas
colocadas por fascistas, e manipuladas pelos serviços secretos italianos que praticam a
"estratégia da tensão" (o que só se saberá anos mais tarde), explodem na estação de
Milão, matando várias pessoas. O anarquista Pietro Valpreda é acusado e preso por
dois anos, injustamente.
Seis dias após estes acontecimentos, lá estava eu também numa estação
ferroviária em Viana. Um belo conjunto arquitectónico edificado entre 1878 e 1982, sob
projecto do Eng.º Alfredo Soares, que incluía uma elegante escadaria voltada para Sul.
Subsiste a obra dos alçados em cantaria; elementos acessórios (gare e coberturas
laterais) com a característica estrutura de ferro fundido, muito em voga nas últimas
décadas de Oitocentos. Hoje está praticamente fundida com o centro comercial
Estação de Viana, com arquitectura temática, inspirada nos caminhos-de-ferro.
Estava pronto para embarcar pelas 22 horas na aventura de fazer trezentos
quilómetros em cerca de sete horas.
Tinha sido convocado para prestar testes nos pára-quedistas em Tancos.
Tancos era uma freguesia de Vila Nova da Barquinha, situada no centro do país, com
uma população civil de cerca de seiscentas almas. Para além do Entroncamento, que
deve o seu nome ao facto de aqui entroncarem duas linhas de comboio (a que liga
Lisboa ao Porto e a que liga a Linha do Norte a Espanha), surge situado numa
pequena ilha escarpada, no curso médio do rio Tejo, o Castelo de Almourol, um dos
monumentos militares medievais mais emblemáticos e cenográficos da Reconquista,
sendo, simultaneamente, um dos que melhor evoca a memória dos Templários no
nosso país.
É desta simpática localidade, sob o comando do general Norton de Matos, que o
Corpo Expedicionário Português (CEP), formado por trinta mil homens, sai em 1917 do
Tejo para França (1.ª Brigada do CEP) a bordo de três vapores britânicos; é aqui que,
em 1956, é criado o Batalhão de Caçadores Pára-quedistas – BCP - dependente da
recém criada Força Aérea Portuguesa. Mais tarde, com o rebentamento da guerra em
África, é criado o Regimento de Caçadores Pára-quedistas (RCP).
Lá chegámos ao RCP por volta das cinco horas da manhã. Cinquenta
candidatos a pára-quedistas de vários pontos de país, cansados da viagem mas
também excitados pela aventura. Ficaram todos à conversa, todos com histórias para
contar. Sentia-se ali um misto de basófilas e valentões e eu lá pensei com os meus
botões: onde é que me vim meter? Acabaria por comentar com o Fiúza pescador:
- “Pá, já viste isto? Acho que não pertenço a esta guerra, só marados e
cabeludos”.
Então, debaixo daquela calma enervante, diz o Fiúza:
- “Tem calma, não há-de ser nada, se eles conseguem… nós vamos conseguir”.
E pensava eu que era um puto reguila da rua… Comparado com os tripeiros da
banharia, alfacinhas do Casal Ventoso e outros, até me sentia meio envergonhado.
Quase sem darmos conta, toca o clarim de alvorada e, como se houvesse uma
mola, todos nos levantámos pensando que era para nós. A partir desse momento, acho
que as pulsações subiram para a centena e por lá permaneceram, durante todo o dia.
Enquanto isso, os militares “verdadeiros” lá se preparavam para a formatura e para
mais um dia de instrução militar.
E lá fomos nós também para a parada, bem desalinhados como convém, para
irmos ao pequeno-almoço. Depois disso, aí é que foram elas, pois na parada avisaram
que íamos ter toda a manhã para exames médicos e a tarde para a parte física. Logo
comentei:
- “Não fizerem já isso no Verão, em Viana?”.
E atalha logo um camarada do lado alentejano de nome Patacão
- “Em Viana exames médicos para ir para a tropa? 'Tás maluco! Na minha terra
só foi para mostrar os tomates e ir para a lista dos apurados!” - não resistimos a uma
sonora gargalhada.
Como é norma, ficámos todos nus, mas agora com uma simples diferença:
estava um frio de rachar. Todos bem alinhados e virados contra uma parede. Lá
chegaram os tipos de bata branca com um marcador preto na mão dizendo ao colega
mais próximo, mas desta vez com educação:
“- Levante o pé se faz favor!”
E nós, apesar de nos sentirmos como simples cavalos a quem vê os cascos,
pela forma educada como fomos interpelados sentimo-nos desarmados. E lá foram
eles fazendo algumas cruzes nas plantas dos pés e eu sem perceber patavina. Chegou
a minha vez, analisaram e deixaram uma cruz num deles, o que me deixou ainda mais
confuso. Mais tarde vim a saber que também tinha os pés um pouco “chatos”, mas com
o resto estava tudo bem. Entre medições, auscultações e pesagens, começaram a
excluir os casados, quem tinha problemas de dentes ou varizes e sei lá mais o quê. Só
sei que nos testes físicos reprovaram metade, sobrando para a parte da tarde vinte e
cinco. Na ida para o almoço um pára-quedista que por lá andava e com ar de “peito
inchado” foi avisando:
- “Da parte da tarde nas provas físicas, „vão de vela‟ mais metade”.
Depois de uma manhã dedicada aos testes físicos, lá fomos para um refeitório
moderno e bem apetrechado, que funcionava já em sistema de self-service onde
registei como primeira nota, e que me agradou de sobremaneira o seguinte: além do
regime militar dos pára-quedistas ser duro, exigente, com uma disciplina férrea, e
apesar de vivermos num período salazarista fascista, ali respirava-se democracia. A
comida que era distribuída ao recluso ou ao recruta, era exactamente a mesma para o
resto das patentes, fosse comandante ou ministro.
Com o sol a pique, logo nas primeiras provas começaram a vir ao de cima
algumas particularidades, sobressaindo dois grupos distintos. O que tinha a ver com
força física bruta... desde o trabalhador agrícola ao que trabalhava nas obras e até na
estiva – o trabalho exigia-lhes apenas força física e pouco mais, tinham poucos
conhecimentos, só a escolarização e aprendizagem até á idade escolar primária e
muitos deles sem a completarem; o outro grupo tinha a ver com menos força física,
mas mais destreza, habilidade e inteligência. Estes eram aqueles a quem eu chamei de
putos da rua, os reguilas habituados às espertezas, aos narizes esmurrados e algumas
cabeças partidas mas que levavam a melhor.
Nós, para além do Fiúza que vinha das fainas de mar sendo uma força da
natureza e muito combativo, éramos também putos da rua.
- “Fiúza, já viste nas que nos metemos? São só brutamontes” – disse eu
baixinho.
Aproveitou para me devolver o incentivo, com um sorriso descolorido, dizendo-
me:
- “Pá, se eles conseguem nós também conseguiremos”.
- “Onde é que eu já ouvi isto?” – respondo eu com ar de gozo.
Lá fomos dando cumprimento ao programa, com corridas, saltos, passagem de
obstáculos e outros que tais, onde eu me sentia como peixe na água.
Há três aspectos que me marcaram: a força física, a inteligência e a coragem.
A Força física
Nunca me tinha passado pela cabeça o difícil que era elevar o peso do nosso
corpo, só com a força dos braços numa barra de aço suspensa.
- “Tudo lá para cima, minhas meninas, ou pesa-vos o rabo?” – dizia o instrutor.
Eu não sei quanto ou o que é que me pesava, mas subindo à força de braços,
esgatanhando ou trepando, eu tinha de chegar lá acima cinco vezes.
A inteligência
Apercebi-me dessa importância numa das provas quando, às tantas, gritou um
sargento nada barrigudo e com um porte físico de respeito:
- “Vai toda a gente junto daquele caixote tirar um par de luvas e regressar aqui
imediatamente!”.
Na terra batida onde o cascalho abundava, lá fomos nós mostrar a nossa
agressividade. Tocou-me em sorte um rapaz alentejano que pesava bastante mais do
que eu. Comecei então a enfardar porrada, mas ia sempre à luta, quanto mais
enfardava, mais ganas e vontade me dava para ir para cima dele.
- “Alto lá, parem!” – avisou o instrutor.
Depois virou-se para mim, talvez com um misto de pena por estar a levar uma
boa dose, mas também com admiração pela valentia, apontou com o dedo espetado
para a cara do opositor, gritando-me:
- “Que adianta a valentia se não está a ser inteligente? Vês aqui a cara deste
chaparro todo contente? É aqui que tens de lhe bater. Aqui! Olhos bem abertos e vai-
lhe às fuças sempre que lhe vires a cara destapada!”.
Claro que a partir daquele momento tudo mudou, deixei de ser eu a enfardar. A
partir dali, toda a valentia e confiança do amigo alentejano se esfumou, acabando por
se acobardar e encolher. Isto levou a que fosse eliminado.
A Coragem
Partimos para o último teste só com treze resistentes para o temido salto da
torre. Todos alinhados para ver um salto de demonstração. Quando vimos um pára-
quedista subir a uma torre enorme, preso por uma corda e lançar-se para baixo… um
friozinho subiu pela espinha acima não deixando ninguém respirar até a queda se
consumar. Os cabos retesaram-se, a cerca de um metro do solo, levando o Pára-
quedista a manter os membros completamente firmes colados ao corpo, para que no
momento do choque não virasse espantalho e lesionando-se gravemente.
Lá fui subindo, com as pernas “trémulas de coragem”, até ao patamar superior e,
em posição de salto, lembrei-me do conselho do instrutor de boxe: “Olhos bem abertos
e vai-lhe às fuças!”. Ao sinal, atirei-me com os olhos bem abertos para o espaço,
recusando-me sempre olhar para baixo. Só houve um colega que não conseguiu saltar,
já em cima da torre entrou em pânico e gritou:
- “Nãoooooooooo, não consigo! Não! …”.
De facto, o temível salto da torre mete mais respeito do que saltar de um avião.
Coincidência ou não, apenas metade dos que passaram nas provas médicas foi
apurada.
O famoso pente zero
Foi assim que
nós, os três amigos,
fomos escolhidos para
as Tropas Pára-
quedistas, em dezoito
de Dezembro de
1969, ficando eu com
o Nº 1626/69.
Passados seis
meses… a 11 de Maio
de 1969 apresentei-
me em Tancos, no
Regimento de
Caçadores Pára-
quedistas, para dar
início à verdadeira
aventura - o
alistamento nas
tropas pára-quedistas,
a frequência da
escola de recrutas e
por aí adiante até à
conquista da célebre
boina verde e do
brevete.
Chegámos por
volta das cinco e meia da manhã, depois de uma viagem turbulenta de sete horas num
comboio, procedente do norte, superlotado só com militares. Do fim-de-semana
chegavam ao Entroncamento, de vários pontos do país, militares do Exército, da Força
Aérea e os Pára-quedistas - às centenas.
Um grupo de pára-quedistas esperava por nós à porta de armas, para nos
acompanhar às instalações. Na entrada do quartel, e de forma imponente, estava à
entrada do aquartelamento do RCP, o monumento aos Pára-quedistas mortos em
combate.
A estátua simbolizava um Pára-quedista vindo dos céus; nós, feitos “maçaricos”,
limitámo-nos a olhar com respeito.
. Todos os militares eram obrigados a “bater a pala” em sinal de respeito
Depois das apresentações a cerca de duas centenas de candidatos a recrutas,
os três amigos foram colocados no 7º pelotão da 1ª Companhia. Fomos alojados num
dos três edifícios de dois pisos que albergavam as três companhias de militares, ali
formadas para fornecer homens muito bem preparados para alimentar a guerra em
África.
O facto de continuarmos sempre juntos tem uma explicação simples: quando,
pela primeira vez, em Tancos, nos mandaram formar, ficámos juntos - mais por instinto
de defesa do que por qualquer outra coisa pré-concebida - e assim nos foi atribuída
numeração seguida. Por via disso e durante 40 meses, andámos sempre próximos.
Formámos na parada frontal ao edifício. Distribuíram a cada um o kit de
fardamento com 32 peças. O oficial destacado logo avisou: - “Senhores recrutas, acaba
de vos ser distribuído um kit de fardamento, composto por 32 peças, para iniciarem a
vossa vida militar. No fim do serviço militar - demore este o tempo que demorar - têm
de devolver todas as peças para fazerem o respectivo espólio.”
Depois de uma pausa continuou:
- “O nosso Sargento vai acompanhar-vos e ajudar nas tarefas que se seguirão.
Deixo-vos com ele.”
Notou-se algum agrado na forma educada como nos tratou o Capitão, isso era
visível em cada um de nós.
- “COMPANHIA!!!” – soou o vozeirão do sargento
-” Isto está uma bandalheira, eu quero toda a gente agrupada por pelotões na
próxima formatura. Têm meia hora para arrumar o kit que vos foi distribuído e
regressarem já equipados de ténis, calção e camisola branca!”– gritou o
sargento.
- “Vamos depois fazer uma visitinha, que se vai prolongar por toda a manhã.”
Apesar de inebriados pela simpatia do capitão, veio o reverso, e acordámos com
aquele vozeirão do sargento, como que a alertar que a tropa começaria naquele
momento.
E começara mesmo: acabaram as palavras simpáticas com que até aí sempre
nos tinham brindado, a bandalheira na formatura como naquele dia, acabara a roupa
civil no quartel e estava quase certo que também iria acabar o cabelo daqueles jovens
cabeludos de uma época de ouro, anos 60 - ainda hoje falam dela com evidente
orgulho.
Numa tremenda confusão, cerca de 200 recrutas rapidamente mudaram de
roupa, como se veio a confirmar, fomos ao nosso amigo e famoso „pente zero‟.
Pela primeira vez na minha vida e em 5 minutos, vi-me despojado do cabelo até
ao casco e o surpreendentemente já não nos reconhecíamos, mais parecíamos almas
penadas. Apesar do tempo quente ou talvez por isso, sentia-se na barbearia um cheiro
esquisito, era o cheiro a carecada que eu acabei por vivenciar, ao longo de 40 meses,
mais de uma vintena de vezes.
Aos mais cabeludos, os barbeiros entretinham-se a fazer as mais disparatadas
tropelias com o cabelo. Ora eram Beatles, oram eram índios moicanos, mas acabavam
invariavelmente de cabeça lisa.
Desta vez senti-me nu, espoliado e violentado com esta carecada higiénica.
Senti-me mais frágil, mais despido e já com saudades do que tinha ficado para trás: os
colegas de trabalho, os amigos e, como não podia deixar de ser, a namorada. Mal
cheguei à caserna fui ao saco e desencantei um bloco para escrever para ela e para a
famelga. Aproveitei para tirar, no interior da caserna, umas fotos comigo já fardado,
com a velha Mauser e capacete de guerra, mas com ar apalermado. Como se não
fosse ter milhentas oportunidades de tirar esses retratos sem ser a fingir. Enfim…
deviam ser efeitos da anestesia que a carecada me provocou.
Na época dos cabelos à Beatles, o famoso „pente zero‟ produziu em nós efeitos
anormais: ficámos todos estranhos e quase não falávamos uns com os outros.
Aproveitei para ir dormir bem cedo, descansando das últimas 24 horas que quase me
derrotaram, mas um pensamento não parou de martelar a minha cabeça desprotegida:
“Lindo começo este!”.
Incha, desincha e passa
Depois do
ataque às nossas
cabeças com o
barbeiro a ser o
único homem capaz
de elevar a sua
cadeira da barbearia
à categoria de um
cadafalso ou mesmo
à da terrível
guilhotina, tal o
sentimento
descabelado que
provoca nas suas
“vítimas”, o dia-a-dia
de uma recruta nos pára-quedistas sem ser um inferno, é sem dúvida terrivelmente
duro em todos os aspectos.
É um embate tremendo esta alteração nas nossas vidas sob o ponto de vista
organizacional. Quase todos os candidatos traziam expectativas erradas pelo fascínio
do voo e dos saltos. Vínhamos pelo espírito de aventura e pelo deslumbramento de
fazer parte de uma tropa especial, movidos por sonhos mais ou menos comuns de
chegar até ao brevete, mas sem avaliar o percurso.
Regras e mais regras nos são impostas. Elas são-nos inscritas para sabermos
com o que podemos contar, desde a primeira hora.
Depois de aprendermos a pôr os atacadores nas botas, a fazer as camas, a
vestir, a arrumar os cacifos e com todos já fardados, ainda com os bonés de pala
espetada da goma, marchando já a passo mais ou menos certo, o instrutor deu pela
falta de um colega que se demorou um pouco mais na casa de banho, e logo gritou:
“- Quando um falha, todos os outros pagam da mesma maneira. Dez flexões
para toda a gente – enquanto cumpríamos” – continuou o sargento:
-“ Aqui senhores recrutas, não há lugar para o individualismo ou egoísmo. São
uma equipa que têm de agir entre si. Por uma questão de sobrevivência e de respeito
pela elite que vos espera, é assim que é e é assim que vai ser sempre no vosso futuro!”
Nesta etapa, fazem-se novas amizades e cumplicidades salutares na acção e
desta vez determinadas pelas alturas de cada um. O Martins (Risotas), minhoto de
gema da Pousada de Saramagos, tinha mais um centímetro do que eu e portanto
precedia-me na coluna. Por esse facto ele foi quase sempre meu colega de exercícios
nas corridas, nas marchas e em quase tudo. Era por assim dizer o meu par.
O Risotas era a boa disposição em pessoa e daí a alcunha. Era um amigo a
sério, sempre disponível em todas as situações. Devo-lhe a sua amizade e
solidariedade nos momentos de maior pressão em que chegava a duvidar das minhas
capacidades.
“- Vamos lá Marques, esta merda incha desincha e passa” - incentivava o
Risotas.
Quando não o via com um sorriso malandro, era ele que estava em sofrimento e
só lhe dizia:
“- Vamos lá com essa merda pá, que raio de minhoto és tu?” – ele esboçava um
sorriso – como a dizer que não se queria dar por vencido.
Ninguém se deixa ir abaixo, mas os rostos ilustram bem o ar inexpressivo e
obstinado de quem pretende vingar. O cansaço psicológico é mais duro que o físico.
Estamos todos sempre na expectativa sobre o que se seguirá, a mente acaba por
sofrer mais do que todo o resto.
Quando se está em formação no campo de instrução, uns arregalam os olhos
para afugentar o choque resultante de um tratamento que nos escapa ao controle,
outros erguem a cabeça, dispostos a não vergar. Todos compenetrados e direitos
muito atentos às palavras dos instrutores que nos podem levar do céu para o inferno,
em segundos, nunca se sabem as ideias que
atravessam a mente dos duros e exigentes instrutores.
É tudo ou nada em termos de emoções, começa-
se ali a formar o espírito de equipa, a cumplicidade com
o Risotas alastra no pelotão. Tudo é novo para nós e
por isso apoiamo-nos uns aos outros. Se um cai, caem
todos. Se um vence vencemos todos. Na dureza dos
exercícios, no peso das ordens e no imperativo das
vozes de comando é este o nosso dia a dia.
A primeira semana é terrível pelo choque, pela
violência no tratamento e pela dureza dos exercícios,
logo se registam as primeiras baixas. Não é por acaso
que nas primeiras três semanas ninguém pode sair de
fim-de-semana e mesmo com essas cautelas alguns
desistem, desertando para a emigração.
Os que ficam são os que aceitam com disciplina a
voz rija que os dirige, bem diferente do carinho da família que ficou para trás. Estamos
todos por nossa conta. Longe de casa e muito perto de descobrirmos uma realidade
ainda desconhecida, boa ou má, mas que já nos marca para sempre. Integramo-nos
com muito trabalho e determinação sempre lutando por vencer o medo.
Ao fim de três semanas, foi-nos concedida uma saída para podermos recuperar
energias, visitar a família, os amigos e as namoradas. Quase todos partiram para as
suas terrinhas, só quem morava para lá da serra do Marão, não se aventurou pois os
dois dias de férias iriam direitinhos para a viagem.
Com a farda azul substituindo a velha farda cinzenta, apresentámo-nos em
parada para uma revista ao fardamento com todos bem alinhados, botas reluzentes, e
com o bivaque altivo da aeronáutica bem aconchegado tentando tapar a careca. Surgiu
finalmente a voz de comando mais ansiada:
-“ DESTROOOÇAR…”
Como por magia só se via bivaques no ar a comemorar, como se tivesse
acabado a vida militar e não um simples passaporte de fim-de-semana ao fim de vinte
e um dias.
Foram dois dias que voaram num ápice. Às cinco da manhã de segunda-feira,
estava de volta ao quartel pronto para novas batalhas. Mais de uma dúzia de recrutas
aproveitou para não voltar mais optando pela deserção. Enquanto desfazia o saco da
roupa lavada, que minha mãe tinha esmerado e acautelava o chouriço da ordem no
armário, reparo no Covilhã (um recruta que era pastor na serra da estrela - daí a
alcunha) com aquele porte físico impressionante de farda verde de instrução, deitado
no chão, rejeitando a cama esmeradamente feita, completamente pronto para iniciar a
recruta às oito horas e não resisti:
“- Covilhã, para te deitares no chão deves estar maluco ou com saudades da
serra e das ovelhas.”
“- O gajo está maluco” – diz outro.
Responde o Covilhã com absoluta calma:
“- Malucos estais vós! Prefiro dormir no chão e aproveitar este tempinho do que
perder meia hora a fazer a cama. Logo mais, está na hora de ir dar cabo do cabedal.”
Olhámos uns para os outros e quase todos seguimos o exemplo.
O tempo vai passando e o corpo acostuma-se à dor. Os nervos fintando as
emoções e os desejos para responder apenas perante a razão. Braços treinados e
cabeças frias perante a dureza da recruta.
Em finais de Julho de 1970, com o aproximar do fim da recruta, autocarros azuis
da Força Aérea esperam-nos para uma visita de estudo à Barragem do Castelo de
Bode e à Nazaré. Eis que surge a notícia há muito esperada principalmente por quem
aguarda mudanças: a morte de Salazar. Depois de uma cadeira ter-lhe pregado
realmente uma partida: queda, a cabeça a bater no chão, hematoma cerebral, bloco
operatório, diminuição das
faculdades mentais o que o levou a
dois anos em agonia.
Depois de muito hesitar, Américo
Tomás acaba por nomear Marcelo
Caetano para a Presidência do
Conselho de Ministros. Alguns, junto
de Salazar, fingem que é ele ainda
o Presidente do Conselho ou ele
finge acreditar na encenação e, a
fingir, lá vai dando despacho aos
assuntos correntes. Morre a 27 de
Julho de 1970, com 81 anos de
idade e 42 de poder ininterrupto.
Estando a nossa escola de
recrutas praticamente concluída e o
pessoal devidamente fardado fomos
aproveitados para irmos ao
Mosteiros dos Jerónimos onde o
ditador estava em câmara ardente,
fazer a visita da ordem, na segunda
metade da aprazada visita.
Cerca de duas semanas
depois, terminei a minha recruta
com aproveitamento, em 14 de
Agosto de 1970.
da recruta até à boina…
Concluí a recruta, com a
Cerimónia do Juramento de Bandeira,
sem a presença de qualquer dos
meus familiares, pois a disponibilidade
era pouca e os cobres não
abundavam. A minha pobre mãe, para
além deste rapaz, ainda tinha o meu
mano velho, o Manuel Elpídio, no
exército em Sacavém. Este, acabou
por não ir para a guerra, mas sim, por
passar os últimos dias na prisão, à
custa de um episódio curioso que,
bem lembrado, até dá para rir.
O Manel era casado, por via
daqueles deslizes fortuitos entre
namorados e quem o queria ver
contente, era em casa, junto da
mulher e mais tarde do fruto dessa
relação que eu apadrinhei Então vai
daí, surripiou os passaportes de saída
do quartel, autorizando-se a si próprio
a ir visitar a família. Se juntarmos a
isto, o facto de, enquanto cabo da
guarda, ter permitido a saída do
quartel, de colegas não autorizados, deu como resultado uns dias à sombra.
Ah valente mano, só por isso já valeu a pena, de entre os três irmãos que nós
éramos, só eu ter batido com os costados na guerra.
Finda a cerimónia, gozei alguns dias de férias, que bem merecia, findas as quais
e precisamente no dia em que o meu outro mano, o Fernando, fazia 15 anos, inicio a
segunda fase da minha aventura, o Curso de Pára-Quedismo, para a conquista do
almejado brevete.
O primeiro dia, confesso que não me agradou muito, pois começou logo pela
vacinação contra a febre-amarela. Éramos umas centenas de recrutas alinhados e
sentados no chão, já sem camisa, à espera do sacrifício. Passava o primeiro
enfermeiro com um tabuleiro de algodões ensopados em tintura de iodo, com que
desinfectava a zona onde seria dada a picada. O segundo, vinha com as agulhas e
sem parar, espetava uma no sítio assinalado. O terceiro, trazia uma seringa enorme,
que enroscava na agulha e comprimia o líquido, que rapidamente era injectado,
provocando uma sensação muito dolorosa, agravada pelo terror às enormes agulhas.
O quarto, passava com outro recipiente, retirando e enfermeiro, com novos algodões
molhados em tintura de iodo, fazia a desinfecção final para minimizar os efeitos da
vacina, que provocava uma tremenda reacção deixando o braço quase imobilizado, e
impedir a formação de um hematoma.
Assim, demos início ao primeiro dia, das três semanas em terra, com uma
bateria de exercícios, especialmente duros, onde se privilegiavam os movimentos de
braços, para que o corpo não "emperrasse”. A amostra do primeiro dia, não augurava
nada de bom para o cabedal. O curso iria culminar com uma semana no ar, de forma a
serem executados seis saltos em cinco dias, para finalmente podermos ostentar no
peito, o brevete de pára-quedista.
Acho que nunca sofri tanto na minha vida, como nestas três semanas.
- Quem disse que o homem não chora? Puro engano, chora por amor e chora também
pela dor. Senti que o meu arreganho, destemor e vontade de vencer, não chegavam.
Valeram o espírito de corpo e os amigos. Destaco o Risotas, sempre com uma palavra
de ânimo e coragem apesar do seu sofrimento.
Os exercícios eram desumanos e violentos demais para que, quem está de fora possa
acreditar na sua execução. Os que eram feitos em especial com toros de madeira,
eram de uma violência extrema, especialmente: os Alás, a Ama-seca, a Rosca, o
Combinado, o Lançado e o Cumprimento.
Ao fim de cada sessão diária eu só dizia para o Fiúza, colega da escola primária:
“- A minha mãe não criou um filho para isto, vão para o raio que os parta”
“- Zé falta só um dia e vamos conseguir, depois do banho vamos ao bar e pago-
te uma cerveja.”
“- Não brinques comigo pá, acho que ia morrer bêbado” - dizia sem fôlego.
“- Ai de ti pá, se contas esta merda em Viana, a minha mãe, coitada, tinha um
chilique”.
Ao longe passava um pelotão de novos recrutas, na maior bandalheira, com
passos algo trocados. O Fiúza não se conteve:
“- A figura que nós fazíamos pá, já pensaste que para a semana já vamos
saltar?
“- Como o tempo passa - atalhou ele” – alguém dizia: incha, desincha e passa.
Lá voltámos à temível torre de saltos uma e outra vez. Como a foto ilustra, eram
quedas a 45º com embate violento, em que ninguém se magoava, pois bem treinados e
preparados fisicamente, o corpo enrolava-se ao tocar no chão.
Tão martirizado pela intensidade dos exercícios e pelos vários embates a que
era sujeito: cambalhotas no empedrado, crosses de botas calçadas, luta em que
predominava o boxe, pistas de cordas onde queriam fazer de nós uns Tarzan‟s, pistas
vermelha e branca como meras toupeiras, cada vez me sentia com menos tempo para
estar cansado. Ficava á mercê dos instrutores, mas nunca dos abutres. Já interiorizara
que eles tinham razão e portanto nem em pensamento os questionava.
Instrução dura, Combate fácil, era o lema que nos norteava sempre. Pensava
comigo:
“- Vamos para a guerra? Então, há que prepararmo-nos como deve ser.”
A semana dos saltos, há muito tempo almejada, tinha chegado, finalmente ia
saltar.
“- Para a semana serão os saltos” – gritou o sargento de cima do palanque –
“vão finalmente dar corpo a estas semanas de treino intensivo e ganharem
merecidamente a vossa boina verde e o brevete.”
E gritando a plenos pulmões:
“- INSTRUÇÃO DURA…”
“- COMBATE FÁCIL” – Responderam forte, mas com emoção, as centenas de
vozes dos futuros pára-quedistas.
Estas seis semanas de instrução reduziram-se a poucos segundos de forma
vertiginosa no meu cérebro. O esforço, testado ao limite, o calor a bater no corpo, o
suor a escorrer por cada milímetro da pele, o querer vergar pelo cansaço ganho a cada
dia que passava, a voz austera, firme e sabedora do instrutor, o testar toda a energia
física e mental, era superior a tudo o que eu julgava poder aguentar.
Não me sentia especial, nem diferente dos outros, era sim, um futuro pára-
quedista!
A boina era ainda uma miragem, mas estava tão perto... iria consegui-la. Todos
os instrutores estavam ali, em frente a nós, a incutir-nos na alma e no sangue o que é
ser Pára-quedista... Tudo transpirava à tão falada mística dos Boinas Verdes. Senti o
peso de um toro, travando com ele a teimosia de ambos. As calistenias, pareciam
minutos intermináveis, mas cada gota de suor ali largada era para que o verde da boina
fosse merecido. Os crosses, com os instrutores, que noutra vida quase de certeza
foram lebres nunca derrubadas pelo predador, faziam com que no final pensasse que
não existia oxigénio suficiente para me restabelecer de tal cansaço... mas foi mais um
que concluí! A pista de cordas, cada vez que olhava para ela, só pensava que nada ali
era fácil mas ia conseguir! A sensação de se mandar para o chão como se do avião
estivesse a sair, fazia com que nesse instante, pensasse que poderiam vir os crosses,
as calistenias os saltos da torre e tudo o mais, porque estava ali para ser aquilo que
tantos queriam e poucos conseguiam! Realmente o sonho comanda a vida... e agora o
sonho vai tomar forma, a forma da placa de embarque do Nordatlas com o seu som
inconfundível, o azul do céu e para concluí-lo, os campos do Arrepiado ali ao lado do
Tejo.
Quando saí destes segundos que me trespassaram, dei por mim sobrevoando o Tejo e
o campo de saltos do Arrepiado. Um barulho ensurdecedor aliviava-me o medo, olhei
para os colegas e nem um sorriso de confiança, tal a concentração de todos. Lá ao
fundo vislumbrei o Risotas, que mesmo com um sorriso amarelo me acalmou e me fez
lembrar do “vai-lhe às fuças”.
Até que chegou a minha vez...
finalmente o “já”, aquilo que tanto
ansiava, a pancada confiante do
largador nas minhas costas, atirou-me
para aquilo por que tanto lutara... o
salto... o esticão da fita extractora, foi
como se alguém me tivesse dito:
“acorda, conseguiste!” Ao mesmo
tempo o vento a batia-me na cara, com
carícias que nunca mais vou esquecer.
Olhei para baixo e vi árvores tão
pequeninas, que pensei que o chão
ainda estava longe, mas qual quê, eram
árvores do Ribatejo, muito pequenas.
Aterrei da pior maneira, comendo terra
lavrada e ainda tive que correr atrás do
pára-quedas, qual barco à vela.
Apesar disso, o encontro com o
solo foi uma experiência que queria
repetir vezes sem conta. Claro que
repeti, sempre com a alegria que só um verdadeiro Pára-quedista pode descrever...
Seguiram-se mais cinco saltos e no último obtive aquilo que tanto esperava. Agora sim,
era merecedor... Depois de tanta luta, tanto sacrifício, tanta lágrima caída, os
instrutores, que tanto me tinham ensinado, sendo para mim exemplos a seguir, com ar
orgulhoso, colocaram-me na cabeça o meu justo prémio... a Boina Verde! Uma luta
contra as lágrimas que teimavam em cair-me, só provava que, somente quem passa
por tão duras provas, lhe sabe dar o valor. Era minha e juntamente com ela, já erguia
ao peito o meu brevete.