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Os contos que Machado não aproveitou (1882-1884)
Thomaz Pereira de AMORIM NETO1
Resumo: O presente ensaio analisa 42 contos de Machado de Assis que não entraram na
coletânea Histórias sem Data. Tentamos observar as variações de estilo do autor, bem
como a recorrência de temas que seriam reaproveitados em outros contos, romances e
crônicas.
Palavras-chave: Machado de Assis, Literatura Brasileira, Conto, Editor-leitor,
Literatura Comparada.
Abstract: The present work analyses 42 Machado de Assis' short stories which were not
selected for his Histórias sem Data (Timeless Histories) collection. We are attempting to
observe the author's style variations and the recurrency of themes that would be further
reused in other short stories, romances and novels.
Keywords: Machado de Assis, Brazilian Literature, short story, reader-editor,
Comparative Literature.
Machado de Assis, entre 1882 e 1884, publicou nada mais, nada menos do que
42 contos. Essa produção quase ininterrupta espalhada em três periódicos (A Estação,
Gazeta de Notícias e Gazeta Literária) teve, em Histórias sem data, 24 contos
aproveitados. Os 18 não aproveitados pelo autor são o objeto da presente análise, em
que tentaremos formular algumas hipóteses que expliquem o fato de o editor Machado
de Assis não os ter escolhido para publicação em livro. O presente texto dialoga com
outro ensaio produzido no âmbito da pesquisa financiada pela FAPERJ.
1 Professor Doutor de Literatura Comparada (UERJ – CAPES/FAPERJ) – CEP 20550-013, Rio de
Janeiro/RJ, e-mail – [email protected]. O presente ensaio constitui um dos resultados
parciais do projeto de pós-doutoramento As escolhas de Machado de Assis: um estudo sobre o
processo de seleção e escritura do contista Machado de Assis, financiado pela bolsa PNPD
(CAPES/FAPERJ). Dialoga com outro ensaio de mesma origem: ―Reviravolta machadiana: Histórias
sem data em perspectiva‖, no qual trabalhamos especificamente com o processo de seleção dos 24
contos que compõem a coletânea em questão.
Esses 18 contos apresentam algumas peculiaridades com relação aos contos
selecionados para o livro, e nossa análise pretende agrupá-los sob uma hipótese simples:
em Machado de Assis, os contos não selecionados costumam combinar-se entre si,
como uma espécie de laboratório de produção em que se percebem procedimentos,
alterações e obsessões que ora contribuem para os romances por ele publicados, ora para
os contos mais conhecidos do autor.
Dessa forma, continuamos a seguir o conselho machadiano que exige de cada
um de seus contos ―predicados de observação e estilo‖ (ASSIS, 2003, p. 13), com o
intuito de ver o autor como editor de si mesmo e entender os mecanismos dessa mesma
edição.
Os contos não selecionados: uma nota comparativa
A maioria dos contos que Machado deixou apenas nos periódicos foi publicada
n'A Estação, enquanto grande parte daqueles apresentados para compor Histórias sem
data estava nas páginas da Gazeta de Notícias. Num primeiro momento, o leitor pode
ser levado a crer que o autor de Memorial de Aires estivesse em pleno controle de sua
produção, mandando para os periódicos os contos conforme um determinado plano.
Caso o fosse, não teríamos contos publicados n'A Estação em Histórias sem data, e
vice-versa. De qualquer forma, o que nos chama a atenção de imediato é que houve uma
preferência do autor com relação ao que deixar para a posteridade (leia-se, coletar e
publicar em livro), e o que devia deixar para o limbo literário.
Há uma coisa que chama ainda mais a atenção quando colocamos os contos
selecionados lado a lado com aqueles que ficaram somente nas páginas dos periódicos:
enquanto os primeiros abundam em citações (por vezes comentadas pelo narrador e
apresentando certas deturpações), os não selecionados apresentam uma quase completa
ausência de citações. Temos epígrafes, como em ―Metafísica das rosas‖, temos
experimentações literárias, mas a presença de uma biblioteca imaginária é quase
inexistente nesses contos. Apesar disso, todos eles apresentam certa unidade; não
estamos falando aqui de unidades temáticas, mas de determinadas formas de narração
que Machado estaria experimentando. É nesse sentido que analisaremos os 18 contos
não selecionados; para nossa hipótese, eles não fazem um conjunto, mas conjuntos de
processos que rondam a mente do escritor e que serão reaproveitados com outras
roupagens (seja nos romances, seja em contos posteriores), constituindo, assim, um
verdadeiro laboratório para o autor.
―O imortal‖, conto publicado em partes de julho a setembro de 1882, trabalha
com a história, aparentemente fantástica, de um homem que se tornara imortal ao beber
um elixir que, além de curá-lo de uma doença mortal, não permitiria que ele viesse a ser
acometido por qualquer outro mal, mantendo-se sempre jovem e robusto. A história
apresenta um problema inicial: é narrada pelo filho do tal imortal. Esse filho é descrito
da seguinte forma:
Médico homeopata, – a homeopatia começava a entrar nos domínios
da nossa civilização, – este Dr. Leão chegara à vila, dez ou doze dias
antes, provido de boas cartas de recomendação, pessoais e políticas.
Era um homem inteligente, de fino trato e coração benigno. (…)
Andava propagando o novo sistema. (ASSIS, 2008, vol. III, p. 64)
Dr. Leão não contava a história para qualquer homem com quem jantava, mas
para o Coronel Bertioga e o Tabelião João Linhares. Estando os três numa ―vila na
província fluminense‖, já temos dois escalões do poder representados nessas figuras. É
claro que Machado esconde o procedimento e interessa-se pelo espanto das duas
personagens:
Os dois ouvintes continuavam pasmados. A dúvida fora posta pelo
dono da casa, o Coronel Bertioga, e o tabelião ainda insistiu no caso,
mostrando ao médico a impossibilidade de ter o pai nascido em 1600.
Duzentos e cinquenta e cinco anos antes! dois séculos e meio! Era
impossível. Então, que idade tinha ele? e de que idade morreu o
pai?(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 64)
O espanto leva a uma torrente de perguntas que, por desorganizadas, fazem
com que o Dr. Leão peça para que os dois representantes da vila parem com o espanto e
passem a prestar atenção no que ele iria contar. O leitor tende, então, a acompanhar a
história até seu desfecho. Mas há uma nova intromissão de um narrador onisciente
explicando o procedimento:
– ―Excitada a curiosidade, não foi difícil impor-lhes silêncio. A
família toda estava acomodada, os três eram sós na varanda, o
Dr. Leão contou enfim a vida do pai, nos termos em que o leitor
vai ver, se se der o trabalho de ler o segundo e os outros
capítulos‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 65 – grifos nossos).
O procedimento lembra outros que já foram utilizados por Machado de Assis
durante sua carreira como contista. Em ―Confissões de uma viúva moça‖ (1869), por
exemplo, a narradora afirma algo similar para a leitora/amiga: acompanhe as cartas que
seriam enviadas semana a semana, constituindo-se em um folhetim que deveria ser
mostrado às amigas como prova de algo que não deverá mais acontecer a ninguém
(ASSIS, 2005, p. 133-4). Em ―O imortal‖, a ligeira diferença na sentença gera uma
segunda possibilidade: se o leitor ―se der o trabalho‖, lerá o segundo e os outros
capítulos, mas, se o leitor não o fizer e passar imediatamente ao final? Ou seja, a
dubiedade da proposta do narrador machadiano chama a atenção, pois aqui não se trata
de um compêndio moral que deve ser acompanhado semana a semana, mas de uma
narrativa que procura cativar o leitor.
Essa diferença é fundamental e esconde a armadilha mesma do conto: a escolha
do leitor fará com que ele ignore a intenção do narrador em prol do segundo (Dr. Leão),
que conta a história de seu pai nascido em 1600. No final da narrativa, reencontramos o
narrador machadiano, que esclarece as intenções do Dr. Leão:
– (…) Enfim um dia, como eu fizesse a alguns amigos uma exposição
do sistema homeopático, vi reluzir nos olhos de meu pai um fogo
desusado e extraordinário. Não me disse nada. De noite, vieram
chamar-me ao quarto dele. Achei-o moribundo; disse-me então, com a
língua trôpega, que o princípio homeopático fora para ele a
salvação. Similia similibus curantur. Bebera o resto do elixir, e
assim como a primeira metade lhe dera a vida, a segunda dava-lhe
a morte. E, dito isto, expirou. O coronel e o tabelião ficaram algum tempo calados, sem saber que
pensassem da famosa história; mas a seriedade do médico era tão
profunda, que não havia duvidar. Creram no caso, e creram também
definitivamente na homeopatia. Narrada a história a outras pessoas,
não faltou quem supusesse que o médico era louco; outros atribuíram-
lhe o intuito de tirar ao coronel e ao tabelião o desgosto manifestado
por ambos de não poderem viver eternamente, mostrando-lhes que a
morte é, enfim, um benefício. Mas a suspeita de que ele apenas quis
propagar a homeopatia entrou em alguns cérebros, e não era
inverossímil. Dou este problema aos estudiosos. Tal é o caso
extraordinário, que há anos, com outro nome, e por outras
palavras, contei a este bom povo, que provavelmente já os
esqueceu a ambos. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 78 – grifos nossos)
O princípio da homeopatia no conto é o princípio do phármakon
(NASCIMENTO, 2007, p. 21-42), ou seja, o mesmo utilizado para curar pode, se usado
repetidas vezes, matar ou prejudicar o paciente. Para o narrador machadiano, ao
contrário do Dr. Leão, não há nada que justifique o princípio da homeopatia, ou seja, ―O
imortal‖ é um conto que encena a discordância entre o narrador machadiano e o
narrador personagem. Enquanto o segundo deseja ―propagar a homeopatia‖, o primeiro
tenta justamente o contrário, contando a mesma história. Dessa forma, o princípio
homeopático Similia similibus curantur mostra-se para o autor de maneira diversa da
antiga problemática grega. Na história, a única questão que se levanta é a credulidade
dos notáveis da vila. Machado de Assis, dessa forma, utiliza o procedimento que vemos
pela primeira vez em ―Confissões de uma viúva moça‖ de maneira invertida: a
preocupação não é mais dar conselhos moralizadores, mas problematizar o princípio
homeopático de propagação de ideias.
Sobre as viúvas, parece que esse tipo se tornou verdadeira obsessão para
Machado de Assis nesse período. Dos contos não selecionados, em sete uma viúva entra
em cena. Na maioria dos casos, trata-se mesmo da personagem principal do conto. Em
dois deles, não o são, mas auxiliam na dinâmica narrativa. Verdadeira obsessão ou um
tipo feminino que abre margens para um melhor aproveitamento da análise de caracteres
empreendida por Machado de Assis? Uma viúva não é mais uma donzela que, protegida
pela família, não pode passear pela Corte e dialogar com os homens e, dependendo de
sua idade, ainda não haveria maturidade suficiente para adquirir certos trejeitos que são
considerados negativos. De fato, a maioria das viúvas desse período tem entre 21 e 30
anos de idade; vejamos, então, essas moças.
Em ―O programa‖, publicado n'A Estação entre dezembro de 1882 a março de
1883, apesar de as viúvas não serem o objeto de análise do autor, elas contam com um
bom espaço na narrativa. A história narra as desventuras de Romualdo, que,
influenciado pelo seu mestre-escola, deseja fazer um programa. Mas o que seria um
programa? O próprio mestre-escola esclarece a dúvida:
– Programa é o rol das coisas que se hão de fazer em certa ocasião;
por exemplo, nos espetáculos, é a lista do drama, do entremez, do
bailado, se há bailado, um passo a dois, ou coisa assim... É isso que se
chama programa. Pois eu entrei no mundo com um programa na mão;
não entrei assim à toa, como um preto fugido, ou pedreiro sem obra,
que não sabe aonde vai. Meu propósito era ser mestre de meninos,
ensinar alguma coisa pouca do que soubesse, dar a primeira forma ao
espírito do cidadão... Dar a primeira forma (entenderam?), dar a
primeira forma ao espírito do cidadão... (ASSIS, 2008, Vol III, p. 86)
Ou seja, o ―programa‖ é certa objetividade na vida, visando um determinado
alvo. O problema de Romualdo é que ele queria acertar múltiplos alvos ao mesmo
tempo: queria ser ministro, porque vira um ministro; queria ser um rico anfitrião, porque
vira uma festa em que havia um; queria casar-se, porque lera romances românticos com
finais felizes. Ele não acordara poeta como o fizera Luís Tinoco de ―Aurora sem dia‖,
mas tornara-se as três coisas imaginariamente, iniciando, assim, sua vida com alusões a
Shakespeare, Napoleão e Pitt; mas, de maneira diversa do procedimento de Histórias
sem data, essas alusões são somente exemplos, não adentrando a economia do conto em
si.
Como falávamos de viúvas, vamos a elas. Romualdo estava decidido a se
tornar uma espécie de Luís Tinoco. Se lembrarmos de ―Aurora sem dia‖, a ordem de
progressão era: literatura, política, amores. O programa de Romualdo misturava as
etapas; vieram juntas a literatura e uma primeira paixão, ―pessoa vulgar e sem graça‖,
produzindo uma poesia que era apenas ―lugar-comum‖ (Vol. III, 2009, p. 88). Após isso,
uma mocinha de quinze anos se apaixona por ele, mas ele a perde por completa falta de
esforço; o esforço de imaginar-se futuramente superara a ação de namorar a moça.
Enfim, ela casara com o promotor que ―tratara logo de cortejar a moça, e tão tenazmente
que ela em pouco tempo estava caída‖ (Vol. III, 2009, p. 92). Neste ponto, há uma
divergência com relação a ―Aurora sem dia‖. No conto mais antigo, a vivência de Luís
Tinoco tinha um ponto de realidade, seu padrinho, que o aconselhava a largar os sonhos;
em ―O programa‖, de maneira diversa, Machado insere Fernandes, um amigo que não
acreditava em si mesmo, mas nos devaneios de Romualdo. Acreditava de tal forma que
lhe arranjou a viúva e aceitou o convite do amigo para trabalhar como seu escrevente
(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 93), de tal forma que tinha ―fé em todos os raios da estrela de
Romualdo: o conjugal, o forense, o político‖. Ao mesmo tempo em que a viúva aparece
na narrativa, aparece um cliente para o advogado Romualdo que, há pouco, abrira um
escritório na Corte. Para o rapaz, tudo estava arranjado: esses seriam os primeiros
passos para uma vida abastada e, com a repercussão de seu trabalho como advogado, a
garantia da carreira política. Porém,
Vieram buscar um artigo para a folha política; Romualdo, que o não
escrevera, mal pôde alinhar, à pressa, alguns conceitos chochos, a que
a folha adversa respondeu com muita superioridade. O Fernandes,
logo depois, lembrou-lhe que findava-lhe certo prazo no embargo da
obra nova; ele arrazoou nos autos, também às pressas, tão às pressas
que veio a perder a demanda. Que importa? A viúva era tudo.
Trezentos contos! Daí a dias, era o Romualdo convidado para um
baile. Não se descreve a alma com que ele saiu para essa festa, que
devia ser o início da bem-aventurança. Chegou; vinte minutos depois
soube que era o primeiro e último baile da viúva, que dali a dois
meses casava com um capitão-de-fragata. (ASSIS, 2008, Vol. III, p.
96)
Aqui, a viúva (que não recebe um nome) é vista apenas por seu valor
monetário. Para Romualdo, o casamento nada mais é do que a garantia de seu
―programa‖, mas o que mais importa é que o esforço é desperdiçado, como se pode
perceber, em sonhos de um futuro sem esforço. O que vemos, depois, é a derrocada de
Romualdo, que termina sem a esposa rica, sem o escritório, sem o amigo que se
esforçara em vão numa eleição. Romualdo, só, volta a seguir os passos de Luís Tinoco e
vai para a roça, mas seu programa ainda viceja na memória, levando-o a tentar a carreira
política por lá. Fracassa e troca de roça. Casa-se e, no espaço de cinco anos, tem seis
filhos. A partir daí, o esforço torna-se a sua vida, pois ―Seis filhos não se educam nem
se sustentam com seis vinténs‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 99).
Já então ia em quarenta e cinco anos, estava todo grisalho, fisionomia
cansada; felizmente, gozava saúde, e ia trabalhando. Tinha dívidas, é
verdade, mas pagava-as, restringindo certa ordem de necessidades.
Aos cinqüenta anos estava alquebrado; educava os filhos; ele mesmo
ensinara-lhes as primeiras letras.
Vinha às vezes à corte e demorava-se pouco. Nos primeiros tempos,
mirava-a com pesar, com saudades, com uma certa esperança de
melhora. O programa reluzia-lhe aos olhos. Não podia passar pela
frente da casa onde tivera escritório, sem apertar-se-lhe o coração e
sentir uns ímpetos de mocidade. A Rua do Ouvidor, as lojas elegantes,
tudo lhe dava ares do outro tempo, e emprestavam-lhe alguma energia,
que ele levava para a roça. E então nos primeiros tempos, trabalhava
com uma lamparina de esperança no coração. Mas o azeite era pouco,
e a lamparina apagava-se depressa. Isso mesmo cessou com o tempo.
Já vinha à corte, fazia o que tinha de fazer, e voltava, frio, indiferente,
resignado. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 99)
O tempo passa e passa para todos. Romualdo, de maneira diversa de Luís
Tinoco, visitava periodicamente a Corte, lembrava-se de seus sonhos e resignava-se por
não ter conseguido algo no mundo. Poucos anos depois, Romualdo, aos 53 anos,
encontra-se com Fernandes. Os dois se cumprimentam, e o dono do ―programa‖ vê que
o amigo tornara-se rico em Curitiba. Fernandes explica-lhe que, por um lance de sorte,
vencera na vida. Cabe a Romualdo, ao retornar à roça, a simples reflexão:
– No entanto, ele não fez programa, dizia amargamente. E depois:
– Foi talvez o programa que me fez mal; se não pretendesse tanto...
Mas achou os filhos à porta da casa; viu-os correr a abraçá-lo e à mãe,
sentiu os olhos úmidos, e contentou-se com o que lhe coubera. E,
então, comparando ainda uma vez os sonhos e a realidade, lembrou-
lhe Schiller, que lera vinte e cinco anos antes, e repetiu com ele:
―Também eu nasci na Arcádia...‖ A mulher, não entendendo a frase,
perguntou-lhe se queria alguma coisa. Ele respondeu-lhe: — A tua
alegria e uma xícara de café. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 100)
Romualdo e Luís Tinoco se encontram novamente. Ambos na roça, mas
Romualdo, saudoso do ―programa‖, encontra na família a consolação necessária para
manter-se. Luís Tinoco encontra a redenção na roça, pois ―Com poucos anos mais estou
rico‖, segundo ele próprio afirma. Machado insere um ponto negro nesta versão da
história de um ambicioso: Tinoco entende que o esforço diário traz recompensas;
Romualdo entende que, para ter o mínimo, terá de se esforçar (ASSIS: 2003 [1873], p.
132).
O segundo conto em que temos uma viúva é ―Três consequências‖, publicado
originalmente em julho de 1883, em A Estação. O conto centra-se em D. Mariana Vaz,
uma viúva de 25 anos. Segundo o narrador, Mariana não contrairia novas núpcias, pois
―Moralmente estava casada. O casamento dela subsistia. Nunca seria infiel ao 'seu
Fernando'‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 123). A fidelidade com relação ao marido morto
enfraquece no momento em que Mariana tem de ir à Corte com o propósito de abrandar
o luto, pois, como o marido morrera há um ano, já era hora de vestir cores além do
preto. Vejamos o impacto que a vida na Corte provocou em Mariana:
Na Rua do Ouvidor, onde a sua beleza era notada, correu logo que era
uma viúva recente e rica. Cerca de vinte corações palpitaram logo,
com a veemência própria do caso. Mas, que poderiam eles alcançar,
eles da rua, se os da própria roda da prima não alcançavam nada? Com
efeito, dois amigos do marido desta, rapazes da moda, fizeram a sua
roda à viúva, sem maior proveito. Na opinião da prima, se fosse um só
talvez domasse a fera; mas eram dois, e fizeram-na fugir. (ASSIS,
2008, Vol. III, p. 123)
O espetáculo da Rua do Ouvidor e a consciência de que era bela despertaram
novamente Mariana para o mundo. No caso de uma mulher ainda jovem e cobiçada, o
mundo significa um casamento. Mas sua beleza conquistava muitos admiradores, o que
tornava a viúva ainda resoluta na solidão. Ao voltar para a fazenda, é claro que a Corte
ainda rondava sua imaginação:
A vida agitada da corte perpassava no espírito da moça como um
espetáculo mágico. Ela via as damas que desciam ou subiam a Rua do
Ouvidor, as lojas, os rapazes, os bonds, os carros; via as lindas
chácaras dos arredores, onde a natureza se casava à civilização,
lembrava-se da sala de jantar da prima, ao rés-do-chão, dando para o
jardim, com dois rapazes à mesa, — os tais dois que a requestaram à
toa. E ficava triste, custava-lhe fechar os olhos. (ASSIS, 2008, Vol. III,
p. 124)
As saudades da Corte são, para Mariana, um novo suplício. No conto, somem
as alusões ao marido e entram em cena as investidas do juiz municipal, que possuía
gravatas ―semelhantes às da Rua do Ouvidor. Pareceu-lhe que sim, e durante os três dias
de ausência não pensou em outra coisa‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 124).
O final do conto mostra como procedeu a troca da viúva:
Casaram-se três meses depois. A tia, experiente e filósofa, acreditou e
fez crer que, se Mariana não tem vindo em pessoa comprar os
vestidos, ainda agora estaria viúva; a Rua do Ouvidor e os teatros
restituíram-lhe a idéia matrimonial. Parece que era assim mesmo,
porque o jovem casal pouco tempo depois vendeu a fazenda e veio
para cá. Outra conseqüência da vinda à corte: — a tia ficou com os
vestidos. Que diabo fazia Mariana com tanto vestido escuro? Deu-os à
boa velha. Terceira e última conseqüência: um pecurrucho. Tudo por
ter vindo ao atrito da felicidade alheia. (ASSIS, 2008, Vol. III, p.
124 – grifos nossos)
Machado de Assis mostra, dessa maneira, como a volubilidade de uma mulher
pode mudar seus horizontes matrimoniais. Mariana estava decidida em permanecer no
luto; prova disso é a compra das roupas na Corte, que são ainda escuras depois do
primeiro ano de morte do esposo, mas esse mesmo fato – ir à Corte – a transformou,
pois o ―atrito da felicidade alheia‖ (o que, no conto, não é mostrado) fez com que
tivesse ideias de se mudar para o Rio com um homem que lembrava um que vira na
cidade. Dessa forma, o segundo marido de Mariana nada mais é do que um símbolo,
ainda que (para utilizar o repertório do autor) oblíquo, da cidade mais importante para o
autor de Quincas Borba.
Nossa próxima viúva será encontrada em outubro de 1883: trata-se da mãe de
Cecília Faria, que se interpõe entre o romance de Venâncio e a mocinha, em ―Vidros
quebrados‖. Diferente das outras viúvas, a viúva Faria apresenta seus 50 anos de idade
e, ainda assim, merece um breve comentário de Venâncio: ―Namorei-me ali de uma
moça de vinte, linda como o sol, filha da viúva Faria. A própria viúva, apesar dos
cinqüenta feitos, ainda mostrava o que tinha sido‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 125 –
grifos nossos).
Venâncio rapidamente se apaixona por Cecília e, após quatro meses, envia
carta à viúva pedindo-lhe a mão da filha. Esta nega, pede desculpas, afirmando que
―Cecília não podia casar tão cedo, mas que, ainda podendo, ela tinha outros projetos, e
por isso sentia muito [...]‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 125). A oposição da viúva vai-se
tornando cada vez mais veemente, e essa mesma oposição vai mudando a forma pela
qual Venâncio a via. Como a objeção da viúva tinha como modus operandi prender a
filha dentro de casa, Venâncio fez um acordo com uma das escravas da casa e pulava o
muro. Em certo dia – conta ele:
A viúva acordou com o barulho, foi à janela dos fundos, e viu-me
saltar o muro, fugindo. Supôs naturalmente que era um ladrão; mas no
dia seguinte, começou a desconfiar do caso, meteu a escrava em
confissão, e o demônio da negra pôs tudo em pratos limpos. A viúva
partiu para a filha:
– Cabeça-de-vento! peste! isto são coisas que se façam? foi isto que te
ensinei? Deixa estar; tu me pagas, tão duro como osso! Peste! peste!
A preta apanhou uma sova que não lhes digo nada: ficou em sangue.
Que a tal mulherzinha era das arábias! (ASSIS, 2008, Vol. III, p.
126 – grifos nossos)
Enquanto a viúva não cede aos interesses de Venâncio, a sua imagem para ele
vai-se transformando. Ela é descrita inicialmente como uma mulher bela e, em paralelo
com a filha, um anjo mais velho. Nesse momento do conto, torna-se uma ―mulherzinha
das arábias‖, e a beleza tornara-se impetuosidade, a qual se transforma num plano:
colocar a filha num convento. Venâncio não se opõe a isso, pois poderia retirar a amada
por meio da justiça:
Tudo correu bem. Vocês não imaginam o furor da viúva, quando as
freiras lhe mandaram dizer que Cecília tinha sido tirada por justiça.
Correu à casa do desembargador, exigiu a filha, por bem ou por mal;
era sua, ninguém tinha o direito de lhe botar a mão. (…) Cecília foi
chamada à sala, e não fraqueou: declarou que, ainda que o céu lhe
caísse em cima, não cedia nada. A mãe saiu como uma cobra.
(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 126-7 – grifos nossos)
A descrição atinge o ponto moral mais baixo. A retórica machadiana, aqui,
busca demonstrar como a visão de Venâncio pretende pintar a viúva em cores mais
escuras do que realmente são (procedimento usado posteriormente e com maiores
requintes em Dom Casmurro, como sabemos). Aqui, porém, Machado de Assis tenta um
procedimento que irá repetir-se nos contos: a inserção de um personagem que coloca a
visão do protagonista em perspectiva. Esse procedimento faz com que o leitor reveja
aquilo que estava a acompanhar na narrativa, espécie de quebra da linearidade da
descrição. Esse recurso possibilita uma brusca parada no contexto da narrativa. Vejamos
a cena:
Marcamos o dia do casamento. Meu pai, que estava então em Santos,
deu-me por carta o seu consentimento, mas acrescentou que, antes de
casar, fosse vê-lo; podia ser até que ele viesse comigo. Fui a Santos.
Meu pai era um bom velho, muito amigo dos filhos, e muito sisudo
também. No dia seguinte ao da minha chegada, fez-me um longo
interrogatório acerca da família da noiva. Depois confessou que
desaprovava o meu procedimento.
– Andaste mal, Venâncio; nunca se deve desgostar uma mãe...
– Mas se ela não queria?
– Havia de querer, se fosses com bons modos e alguns empenhos.
Devias falar a pessoa de tua amizade e da amizade da família. Esse
mesmo desembargador podia fazer muito. O que acontece é que
vais casar contra a vontade da tua sogra, separas a mãe da filha, e
ensinaste a tua mulher a desobedecer. Enfim, Deus te faça feliz. Ela
é bonita? (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 127 – grifos nossos)
Venâncio, até esse momento, poderia ser interpretado como um jovem
apaixonado que lutara pelo seu amor. A partir de sua descrição da conversa que tivera
com o pai, a situação muda. O autor coloca uma nota de desconfiança no que o jovem
fizera. Para o pai, ele separou da mãe a filha, não realçou o caráter de aliança familiar
do casamento e, sobretudo, ensinou a mulher a desobedecer. Com isso, cabe ao leitor
perguntar: se a mocinha desobedeceu a mãe, por que não desobedeceria o contrato
nupcial? A partir daí, o leitor machadiano recebe a confirmação: Venâncio se ausenta
por dois meses, Cecília não reata com a mãe, mas desobedece ao noivo, casando-se com
o filho viúvo do juiz que a abrigara. A indignação final de Venâncio revela que ele ainda
não aprendera a lição:
– (…) Realmente, se os casamentos não fossem talhados no céu, como
se explicaria que uma moça, de casamento pronto, vendo pela
primeira vez outro sujeito, casasse com ele, assim de pé para mão? É o
que lhes digo. São coisas arranjadas por Deus. (ASSIS, 2008, Vol. III,
p. 127)
Nesse ponto, o leitor recorda-se do que o pai dissera e pode responder
mentalmente à pergunta do velho Venâncio. Ao se opor à viúva e ao denegrir sua
imagem para a pretendida, ele acabou por denegrir a sua própria imagem (mostrando-se
como uma pessoa que não respeita a hierarquia familiar) e, ainda pior, ensinou à jovem
Cecília a desobedecer. Não assumir seu quinhão de culpa, nesse caso, é não aprender,
mesmo que isso seja dito claramente.
A quarta viúva dá título ao conto e trabalha com outro tema que se repete
nessas narrativas não selecionadas pelo autor para compor coletâneas. ―A viúva do
Sobral‖ explora o tema do triângulo amoroso, o mesmo que atinge sua expressão maior
na obra machadiana em Esaú e Jacó. Aparentemente, Machado de Assis inicia um longo
trabalho com o tema, pois os contos ―Incorrigível‖ e ―O caso de Romualdo‖ trabalham
com a mesma questão. Em cada um deles, há o triângulo: dois homens e uma mulher no
primeiro e no terceiro; duas mulheres e um homem no segundo. Aparentemente,
Machado realiza uma espécie de estudo ficcional do tema.
―A viúva do Sobral‖ é o conto que narra a história de dois homens que veem
D.ª Candinha Sobral como
(…) bonita, afável, dispondo de uns olhos que os dois concordaram
em achar singulares. Os olhos, porém, eram o menos. O mais era a
reputação de mau gênio que esta moça trazia. Disseram que ela matara
o marido com desgostos, caprichos, exigências; que era um espírito
absoluto, absorvente, capaz de deitar fogo aos quatro cantos de um
império para aquecer uma xícara de chá. E, como sempre acontece,
ambos acharam que, a despeito das maneiras, lia-se-lhe isso mesmo no
rosto; Cesário não gostara de um certo jeito da boca, e o Brandão
notara-lhe nas narinas o indício da teima e da perversidade.(ASSIS,
2008, Vol. III, p. 154)
Pouco tempo depois, um deles resolve que conquistará a viúva, apesar de ser
avesso ao casamento e ter notado as narinas perversas. A convivência, porém, abrandou
os ânimos de Brandão. Tal qual em ―Ex cathedra‖ a convivência é mostrada como uma
espécie de amenizadora das avaliações das personagens. Ou seja, Cesário e Brandão
tiveram nada menos do que uma primeira impressão que, aos poucos, foi decaindo e
tornando-se outra: primeiramente, um ―mistério‖; depois, uma paixão. Cesário, por seu
turno, apaixonou-se por empréstimo:
– E não te parece esplêndida? perguntou o Brandão.
– Não, isso não; mais bonita do que a princípio, é verdade; fez-me
melhor impressão; esplêndida é demais.
Quinze dias depois, viu-a o Cesário em casa de terceiro, e pareceu-lhe
que ainda era melhor. Daí começou a freqüentar a casa, a pretexto de
acompanhar o outro, e ajudá-lo, mas realmente porque começava a
olhá-la com olhos menos desinteressados. Já aturava com paciência as
longas confissões do amigo; chegava mesmo a procurá-las.
D. Candinha percebeu, em pouco tempo, que em vez de um, tinha
dois adoradores. Não era motivo de pôr luto ou deitar fogo à casa;
parece mesmo que era caso de vestir galas; e a rigor, se alguma
falha havia, era que eles fossem dois, e não três ou quatro. Para
conservar os dois, D. Candinha usou de um velho processo: dividindo
com o segundo as esperanças do primeiro, e ambos ficavam
entusiasmados. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 158 – grifos nossos)
A viúva, enquanto elemento de mediação entre os rapazes, cultivava a paixão
de ambos. Para o leitor, fica claro que a primeira impressão dos dois acerca dos
caprichos de D.ª Candinha era exata. O narrador machadiano coloca os dois
pretendentes em pé de igualdade: para a viúva, Brandão era o menor dos homens, mas
era melhor do que nada. ―O Cesário sempre é outra coisa, mas também não há de ser tão
fácil guiar. Se o Brandão não fosse tão comum! É ainda mais comum que o outro‖
(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 158). Ou seja, o leitor é informado da superioridade da viúva;
é ela quem comanda as ações e diverte-se com isso. Os dois rapazes, como era de se
esperar, começam a sentir ciúmes um do outro, mas a viúva tudo nega e continua com o
mesmo procedimento. Cesário, então, decide enviar cartas, que a viúva não lê, pois, já
que os dois homens são comuns, não se faz necessária a leitura (e, por parte do narrador,
a escrita) de uma carta que dizia ―as mesmas coisas de todas as cartas de igual gênero‖
(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 159).
Eis que surge, então, um terceiro pretendente: um viúvo médico que ―entrou a
cortejar a viúva‖. Cesário e Brandão não eram médicos, e, dentro de quatro meses, a
viúva estava casada. Tanto Cesário quanto Brandão culparam um ao outro,
impossibilitados de ver novamente a viúva com maus olhos (porque apaixonados), o
que permite que o narrador machadiano chame a atenção para essa circunstância ao
leitor: ―O triste é que ambos começaram por não gostar da mesma mulher, como o leitor
sabe, se se lembra do que leu‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 160).
Nossa próxima viúva machadiana é D.ª Leocádia, de ―Incorrigível‖. Esta
senhora era acometida por ―um composto de curiosidades terrenas e muita devoção‖.
Esse composto era formado por disputas com outras viúvas e pela inveja. A inveja dela
fazia com que disputasse tudo com outras mulheres (pretendentes, vestidos, etc.),
fazendo com que D.ª Leocádia fosse conhecida por todas e objeto de comentários em
qualquer local. Para fugir disso, a senhora rumava à igreja, em busca de paz. Entretanto,
A missa demorava-se; mas o ódio, o despeito, os interesses
mesquinhos trabalhavam antes dela, e o coração de D. Leocádia foi
perdendo a paz. Ela recordou tudo, tudo, as palavras que a outra
dissera o mal causado, as raivas engolidas, e o clangor da guerra
acordou todas as fibras daquele organismo. (ASSIS, 1884, p. 105)
Dessa forma, as disputas de D.ª Leocádia eram nada mais, nada menos do que
caprichos para alimentar ―o coração‖, que sangrava ―aos golpes de uma unha invisível‖
(ASSIS: 1884, p. 105). Dessa forma, D.ª Leocádia é um dos exemplares de Machado
que são movidos pela oscilação entre duas características irreconciliáveis: a devoção e
as curiosidades terrenas.
Em ―O caso do Romualdo‖, a disputa toma um contorno mais abrangente.
Romualdo não disputa somente com outro homem, mas com o homem preferido do
moribundo marido de D.ª Carlota. A narrativa se inicia com o marido da moça ainda
vivo, e revela uma grande antipatia entre a futura viúva e Romualdo, que é declarada à
amiga de Carlota, a viúva Maria Soares. Ou seja, Machado encena, aqui, quase um
quadrilátero amoroso, mas a morte de Vieira muda todo o drama que o leitor
acompanha. Carlota acredita que Romualdo esteja apaixonado por ela, o que é
confirmado pelo narrador. Seu marido almeja uma carreira política e viaja com este para
o Ceará, dando-lhe um belo almoço de despedida, e Maria Soares percebe que a moça
está com a razão. Ao se despedirem, Romualdo faz com que o escrevente – Andrade,
também apaixonado por Carlota, mas muito mais tímido do que o primeiro –
acompanhe a esposa para resolver todas as questões financeiras. Mas,
D. Maria Soares desconfiou previamente do amor do Andrade. Era um
dos seus princípios desconfiar dos corações de vinte e cinco a trinta e
quatro anos. Antes de ver nada, suspeitou que o Andrade amava a
amiga, e só — tratou de ver se a amiga lhe correspondia. Não viu
nada; mas concluiu alguma coisa. Então considerou que esse coração
abandonado, tiritando de frio na rua, podia ela recebê-lo, agasalhá-lo,
dar-lhe o principal lugar, numa palavra, casar com ele. (ASSIS, 2008,
Vol. III, p. 174)
Machado pinta a viúva em tons negativos, algo que não fizera na época de sua
produção anterior a 1880, pois, como afirma Jailson Crestani, ―A ficção machadiana
publicada no Jornal das Famílias não visa exatamente a negação das tendências
vigentes‖ (CRESTANI, 2009, p. 141). Aqui, o abismo se torna cada vez mais claro. Ao
recorrer novamente à figura da viúva, o autor começa a analisar intenções e incoerências
nas decisões de suas personagens. Dessa forma, a atitude posterior de Romualdo
garante-lhe uma virada na disputa.
Durante a estadia no Ceará, Vieira adoece gravemente e decide retornar com o
amigo para a Corte. D.ª Maria Soares já está investindo em Andrade, e Carlota, que
recebera notícias via Romualdo, encontra-se preocupada com o retorno do marido. Este
morre na viagem, mas, antes disso, faz com que Romualdo prometa:
– Diga à minha mulher que a última prova de amor que lhe peço é que
não se case...
– Sim... sim...
– Mas, se ela, a todo o transe entender que se deve casar, peça-lhe que
a escolha do marido recaia no Andrade, meu amigo e companheiro,
e...
Romualdo não entendeu essa preocupação da última hora, nem
provavelmente o leitor, nem eu – e o melhor, em tal caso, é contar e
ouvir a coisa sem pedir explicação. Foi o que ele fez; ouviu, disse que
sim, e poucas horas depois, expirava o Vieira. No dia seguinte, entrava
o vapor no porto, trazendo a Carlota um cadáver, em vez do marido
que daqui partira. Imaginem a dor da pobre moça, que aliás receava
isso mesmo, desde a última carta de Romualdo. (ASSIS, 2008, Vol III,
p. 175-6)
O narrador passa, então, a contar as angústias da personagem, pois, sem o
marido, o caminho estava aberto, mas a promessa a um moribundo tinha grande peso
moral. Romualdo, então, decide contar tudo a Carlota, sem pormenores, mesmo com a
visita repentina de Andrade, seu rival. A fórmula tem efeito, a imagem de Romualdo
muda na mente da moça:
Carlota fez um gesto de resignação; depois perguntou-lhe se na volta
do Norte.
– Na volta.
– Daqui a quatro meses?
– Não posso afirmar nada.
Romualdo saiu; Carlota ficou pensativa algum tempo.
– Singular homem! – pensou ela. – Achei-lhe a mão fria e,
entretanto... (ASSIS, 2008, Vol III, p. 180 – grifos nossos)
Apesar de a mão continuar fria, fato que distanciava Carlota, Romualdo não era
mais um homem ―desagradável‖, mas singular. A decisão de Romualdo mostrou-se
acertada, tanto que D.ª Maria Soares percebera que os dois estavam prestes a iniciar
namoro. Mesmo tendo conquistado Andrade, a viúva mais antiga começa a cercar
Romualdo de ―especiais atenções‖. Machado, aqui, pede que o leitor se lembre das
primeiras impressões que ele descrevera das duas: Carlota achava Romualdo
desagradável, mas, como vimos, isto mudara por conta de seu comportamento frente ao
último desejo de Vieira; D.ª Maria Soares queria tão somente um casamento vantajoso
para sua gastança. É claro que as duas viúvas começaram a disputar o mesmo homem.
Andrade, por sua vez, disputava somente a viúva mais velha, e Romualdo parecia estar
um tanto alheio a tudo:
A luta que então começou teve diferentes fases, e durou cerca de cinco
meses mais. Carlota, no meio dela, sentiu que alguma coisa batia no
coração de Romualdo. As duas viúvas em breve descobriram as
baterias; Romualdo solicitado por ambas, não se demorou na escolha;
mas o desejo do morto? No fim de cinco meses as duas viúvas
estavam brigadas, para sempre; e no fim de mais três (custa-me dizê-
lo, mas é verdade), no fim de mais três meses, Romualdo e Carlota
iam meditar juntos e unidos sobre a desvantagem de morrer primeiro.
(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 180)
Numa contradição em termos, o cumprimento da promessa de Romualdo
serviu para mostrar a Carlota que ele era o pretendente maior, o que culminou em seu
casamento, contrariando, por sua vez, a aceitação do marido tão estimado. Essas
contradições são, em suma, aquilo com que Machado está trabalhando
ininterruptamente: a contradição como meio operacional tanto da narrativa quanto da
análise de caracteres. Em todos os contos desse período, em maior ou menor grau, o
tema é retomado. Vejamos, então, com que outras formas de contradição o autor
trabalha.
A eterna rede de contradições machadianas
A contradição é um dado que une todos os contos não selecionados desse
período. Parece que Machado de Assis está desenvolvendo um longo estudo ficcional
sobre o tema. O autor cerca o problema com todos os recursos de que dispõe. Não se
trata mais de colocar a contradição humana somente em personagens periféricos; ela
toma mesmo a centralidade das narrativas desse período. Como vimos inicialmente,
quase não existem alusões a autores e a outros temas; dos 18 contos, apenas 4 fazem
alusões e discussões propriamente literárias. Há um conto, todavia, em que a
contradição e a alusão literária aparecem: trata-se de ―Metafísica das rosas‖.
O conto, da mesma forma que ―A igreja do Diabo‖ (selecionado para a
coletânea de 1884), trabalha com uma deturpação da Bíblia. Machado de Assis repetirá
esse procedimento mais algumas vezes ao longo de sua carreira de contista, sendo que a
maioria desses contos integra coletâneas preparadas pelo autor2. Trata-se de uma
paródia do início do ―Gênesis‖, a narrativa que fundamenta a premência do homem na
escala de importância divina. O autor subverte o sistema, colocando as rosas como os
organismos para os quais Deus (ou o Jardineiro) criou o mundo. Tendo isso em vista, o
narrador tem de adequar a criação do homem para que as rosas continuem a exercer o
seu papel de principais criaturas do mundo:
– (…) Vou criar um ente à minha imagem que vos servirá,
contemplará e viverá milhares e milhares de sóis para que vos sirva e
2 Referimo-nos a ―Sermão do Diabo‖, da coletânea Páginas recolhidas (1900), e ―Na Arca – três
capítulos inéditos do Gênesis‖, de Papéis Avulsos (1882).
ame.
E, dizendo isto, tomou de um velho tronco de palmeira e de um facão.
No alto do tronco abriu duas fendas iguais aos seus olhos divinos,
mais abaixo outra igual à boca; recortou as orelhas, alisou o nariz,
abriu-lhe os braços, as pernas, as espáduas. E, tendo feito o vulto,
soprou-lhe em cima e ficou um homem. E então lançou mão de um
tronco de laranjeira, rasgou os olhos e a boca, contornou os braços e
as pernas e soprou-lhe também em cima, e ficou uma mulher.
E como o homem e a mulher adorassem o Jardineiro, ele disse-lhes:
– Criei-vos para o único fim de amardes e servirdes as Rosas, sob
pena de morte e abominação, porque eu sou o Jardineiro e elas são as
senhoras da terra, donas de tudo o que existe: o sol e a chuva, o dia e a
noite, o orvalho e os ventos, os besouros, os colibris, as andorinhas, as
plantas todas, grandes e pequenas, e as flores, e as sementes das flores,
as formigas, as borboletas, as cigarras os filhos das cigarras. (ASSIS,
2008, Vol. III, p. 1297)
A realidade passa a ser colocada, então, sob a ótica das rosas, que têm nos
homens uma espécie de curadores de sua beleza. Se todo o mundo foi criado em redor
da beleza das rosas, há algo que soa um tanto contraditório: por que as rosas tinham de
permanecer nos jardins? Por que, como as cigarras, as formigas, as borboletas e os
homens, as rosas não poderiam movimentar-se livremente pelo mundo? Notando isso, o
narrador machadiano mantém-se no mesmo tom:
Mas, como as Rosas parecessem enfaradas da glória que tinham no
jardim, disseram os filhos dos homens às filhas das mulheres:
Façamos outras grandes festas que as alegrem. Ouvindo isto, o
Jardineiro disse-lhes: – Não; colhei-as primeiro, levai-as depois a um
lugar de delícias que vos indicarei. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1297)
Ao colher uma rosa, ela começa a morrer, mas a narrativa indica que os
homens as levavam a um lugar ―misterioso e remoto‖, onde todos os filhos dos homens
e todas as filhas das mulheres as adoram prostradas no chão, ou seja, levavam as rosas a
uma igreja. Não há igrejas para as rosas, mas elas habitam as igrejas dos homens. Mas
que fim levam as rosas? Segundo seu próprio ―Gênesis‖, o narrador explica que, à noite,
o Jardineiro pega as rosas e as leva para os céus, tornando-as estrelas. Dessa forma, o
narrador machadiano resolve as questões, exceto uma: se o Jardineiro pega um regador,
ele, para o leitor, não é Deus, mas um homem. E como conciliar sua grandeza na visão
das rosas e sua supremacia? Machado não resolve a questão, deixa-a em aberto.
―Metafísica das rosas‖ encena, dessa forma, a maior das contradições: trata-se
da contradição narrativa que depende somente da visão de realidade, que é o primeiro
passo de qualquer material narrado. Vejamos mais um exemplo para que possamos
entender o empreendimento do autor com relação à contradição.
Em julho de 1883, o autor publica o conto ―Questões de Maridos‖, no
periódico A Estação. O conto trata de duas irmãs que se casaram no mesmo dia. Luísa
elogiava o marido e era extremamente apaixonada, tudo confirmado nas cartas que
enviava à mulher do narrador do conto. A irmã, Marcelina, estava desgostosa e triste,
pois o marido parecia-lhe frio: ―não correspondia ao meu sonho de marido‖ (ASSIS,
2008, Vol. III, p. 120), escreveu. As cartas das duas sobrinhas seguem o mesmo ritmo,
Luísa radiante e Marcelina triste e grávida. É exatamente nesse ponto que o tio mostra a
contradição das sobrinhas. Ele conclui as leituras e volta à afirmação do início do conto
―O subjetivo... o subjetivo...‖; todos pedem-lhe explicações e prontamente a ouvem:
– Está explicado, ou adivinhado, pelo menos. Comparados os dois
maridos, o melhor, o mais terno, o mais fiel, era justamente o de
Marcelina; o de Luísa era apenas um bandoleiro agradável, às vezes
seco. Mas, um e outro, ao passarem pelo espírito das mulheres,
mudavam de todo. Luísa, pouco exigente, achava o Candinho um
arcanjo; Marcelina, coração insaciável, não achava no marido a soma
de ternura adequada à sua natureza... O subjetivo... o subjetivo...
(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 122)
A explicação deixa claro o caráter contraditório do conto: deve-se entender,
antes de mais nada, que Marcelina e Luísa não são iguais, apesar de irmãs, e, mais
ainda, não são as típicas donzelas românticas. Elas são contraditoriamente implicadas
em seus sonhos; por isso o marido de uma, que é ―bandoleiro‖, é visto como homem
muito melhor do que o da outra, pois esta não tinha ambições. O marido de Marcelina,
que passa pelo crivo de uma mulher muito mais exigente, é visto de maneira contrária,
pois não a trai, dá-lhe um filho e não passa, aos olhos da esposa, de um homem menor,
vulgar.
Todos os contos desse período que não estão selecionados apresentam
contradições que são estudadas pelo narrador machadiano. Em ―Letra vencida‖, temos a
relação da imagem com o tempo, que tudo muda, mudando até mesmo algo que é dito
como destinado a todo o sempre: numa palavra, amor. ―A ideia do Ezequiel Maia‖ é
centrado na contradição entre imaginação e ação, como se houvesse um abismo entre a
visão subjetiva e a visão social, abismo que só pode ser enxergado por alguém
considerado louco (o próprio Ezequiel Maia). Ou seja, Machado está, sistematicamente,
tentando analisar as contradições humanas a fim de tecer uma narrativa em que o
fenômeno seja o elemento fundamental da narrativa. Se o leitor, nesse ponto, pensou em
Quincas Borba, romance publicado em 1891, não errou de todo, mas o que estamos
vendo é que o autor inicia em 1884 um longo experimento acerca do tema.
Considerações finais
Os contos não selecionados por Machado de Assis para compor Histórias sem
data revelam algumas particularidades acerca do escritor. Em um primeiro momento,
vemos que determinadas abordagens e personagens rondavam a mente do escritor no
mesmo período em que ele desenvolveu alguns de seus contos mais conhecidos.
Mesmo após Memórias póstumas de Brás Cubas, romance que funda a
segunda fase (ou fase madura) do escritor, vemos que ele ainda está experimentando
abordagens e formas diversas para lidar com um mesmo material temático. Ao vermos
os contos como uma espécie de laboratório de experimentação ficcional, podemos
perceber também que alguns deles se inter-relacionam, seja por conta de uma fixação
por determinado tipo, seja pelo procedimento adotado pelo escritor.
A cada período estudado, deparamos com um Machado diferente, que reordena
seu narrador e seu estilo segundo toda uma gama de preocupações diversas. Talvez seja
isto que torne Machado de Assis um autor tão reverenciado pelas gerações. Talvez o
entendimento da contradição enquanto elemento estrutural de sua narrativa tenha uma
progressão sistemática em momentos futuros, mas, ao que tudo indica, o autor pensava
os temas e abordagens de maneira orgânica, relacionando conto e romance numa
unidade de sentido para sua obra.
Referências Bibliográficas:
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______. Obra completa em quatro volumes. Volumes 2 e 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
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CRESTANI, Jaison Luís. Machado de Assis no Jornal das Famílias. São Paulo:
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