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COOPERAÇÃO INTERNACIONAL BRASILEIRA: DESENVOLVIMENTO,
CONDICIONALIDADES E INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS
Ricardo Alaggio Ribeiro1
Kellen Carvalho de Sousa2
RESUMO
A cooperação internacional brasileira tem crescido nos últimos anos, abrangendo um variado conjunto de ações, ao tempo em que se verificou concomitantemente uma modelagem de instituições voltadas a este aspecto importante das nossas relações internacionais. Este trabalho tem como objetivo apresentar o crescimento da cooperação - em volume e abrangência - e analisar a política externa do país no que tange a promoção do desenvolvimento de outras nações, predominantemente vinculada ao eixo sul-sul. Neste sentido, investigam-se as principais diretrizes que moldaram a cooperação brasileira na década passada, dirigindo um olhar às condicionalidades operadas pelas instituições brasileiras - discutindo, por último, o posicionamento desta política quanto ao caráter democrático dos países receptores.
INTRODUÇÃO
Este trabalho contém a proposta de analisar o crescimento da cooperação
econômica promovida pelo Brasil durante a década dos anos 2000. Além disto,
pretende-se neste texto verificar se o Brasil opera esta cooperação com base em
algum tipo de condicionalidade política ou econômica e com base nesta pesquisa
tentar discernir qual seria o posicionamento da diplomacia brasileira a respeito de
questões envolvendo o posicionamento democrático ou não dos parceiros brasileiros
deste tipo de política.
O interesse no tema partiu da percepção de que a partir do ano de 2004, ou
seja, no segundo ano do governo de Luís Inácio Lula da Silva, verificou-se no Brasil
um aumento contínuo dos recursos destinados a organismos multilaterais e
instituições internacionais, além daqueles destinados diretamente a outros países,
sem o intermédio das organizações de ajuda e cooperação, como também o
fornecimento de perdão dos débitos de inúmeros devedores do Brasil. Como
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Economista, mestre e doutor em Ciência Política pela Unicamp e professor do Departamento de Ciências Econômicas e do Mestrado Acadêmico em Ciência Política na Universidade Federal do Piauí (UFPI).
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Pesquisadora, economista e mestra em Ciência Política pela UFPI
decorrência cresceu a visibilidade da ajuda externa brasileira de um ponto de vista
interno como também externo, por parte de observadores internacionais.
Evidentemente esta percepção trouxe um interesse crescente sobre o tema.
Qual é realmente a natureza da política brasileira de cooperação internacional?
Como ela é implementada? Existiria perfeitamente discernível um modelo brasileiro
de ajuda externa? Deixando de lado a última questão que exigiria uma abordagem
histórica-comparativa este trabalho busca responder as duas primeiras questões.
Mas acredita-se que ao pesquisar os temas delineados se estará ao mesmo
tempo aproximando-se de uma caracterização mais ampla da política de assistência
internacional brasileira. Alguns destes elementos podem ser desde já estabelecidos:
a ênfase em resultados práticos; a idéia de que a cooperação traz ou deve trazer
benefícios mútuos; a diversidade de formas utilizadas: cooperação técnica,
cancelamento de débitos, ajuda humanitária, assistência multilateral, ajuda bilateral,
cooperação militar etc.
Causa certa perplexidade observar que, ao contrário de outras nações, a
cooperação internacional brasileira como um todo, carece completamente de uma
doutrina que dê embasamento às ações do estado. Da mesma forma, apenas a
cooperação técnica está razoavelmente institucionalizada. O discurso oficial, e aqui
se escutará um pouco dele, é fragmentado, disperso e o pesquisador é levado a
fechar lacunas com base nestas condições, se referindo muitas vezes ao discurso
mais amplo das diretrizes da política externa nacional.
Outra característica, se assim se pode falar, é que não se trata da política de
ajuda de um país desenvolvido. Embora o projeto da nação seja o de se tornar um
destes países, o Brasil é ainda para muitos efeitos um país em desenvolvimento. A
ajuda a outros países em desenvolvimento, mesmo que estes estejam em um
patamar inferior de renda e governança – no âmbito das relações sul-sul – deve
levar em conta que a natureza das relações econômicas e políticas brasileiras
certamente impõem limites e outras perspectivas a esta cooperação, quando
comparada com nações mais ricas da OECD.
A cooperação brasileira é característica das novas condições emergentes no
cenário econômico e político internacional e acompanha o crescimento do fluxo
comercial do país. China, Índia, Coréia do Sul, Israel, Chile, Rússia e países
asiáticos emergentes também participam deste novo momento da cooperação
internacional. Neste sentido o trabalho tenta, a seguir, historiar o processo e procura
definir o fenômeno a partir de conceitos já com largo consenso entre as instituições
que performam o jogo da ajuda internacional.
UMA DEFINIÇÃO DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL
Existem muitas dificuldades neste campo de estudo relacionadas à definição
do que seria cooperação internacional ou não, e ao uso de terminologias diferentes
a respeito de fenômenos similares. Nos EUA, a USAID e o Departamento de Estado
costumam usar com certa regularidade o termo “ajuda externa” (foreign aid) ou
“assistência externa” (foreign assistance) para denominar toda uma série de
iniciativas do governo americano: ajuda bilateral para o desenvolvimento, ajuda
humanitária, assistência econômica destinada a objetivos mais estritamente
políticos, ajuda econômica multilateral e ajuda militar (CONGRESS REPORT, 2004).
Quando a assistência externa norte-americana nos anos 60 do século
passado passou a privilegiar durante algum tempo a ajuda para o desenvolvimento o
termo ajuda externa ganhou uma conotação que possui até os dias de hoje, embora
longe de abarcar todas as facetas das experiências observadas: ajuda externa
significaria, grosso modo, o fluxo de recursos técnicos e financeiros do mundo
desenvolvido para o mundo subdesenvolvido. Também se considera próprio da
ajuda externa que o doador seja, pelo menos como idealizador, o governo de um
eventual país. A assistência internacional, em sua forma básica, é um fluxo de
recursos entre governos.
Mais normativa e talvez mais influente no cenário internacional é a
terminologia da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) que usa o termo “official development assistance” – ODA, que poderíamos
traduzir como “assistência econômica” ou “assistência para o desenvolvimento”
designando assim os subsídios, ou os empréstimos que possuam um percentual
mínimo de doação, destinados a países em desenvolvimento ou agências
multilaterais e que sejam: (a) promovidos pelo setor público do país doador, (b)
tendo como objetivo principal a promoção do desenvolvimento econômico e social
do país receptor (c) concessionais, ou seja, em casos de empréstimos, pelo menos
25% do total deve constar como elemento de doação. A cooperação técnica é
incluída nesta definição de ajuda, já as subvenções, empréstimos e créditos para
fins militares estão excluídos (OECD, 2010, s.p., tradução não-oficial). Para a OCDE
não há definição especial ou separada para cooperação humanitária.
Com o objetivo de evitar que esforços dos países doadores se sobreponham
e para aumentar o nível de cooperação dentro da instituição, a OCDE produz
também uma Lista de Receptores de Ajuda, onde são mencionados todos os países
de baixa renda e pouco desenvolvimento, a grande maioria localizada nos
continentes africano e asiático. A lista é feita em caráter estatístico a cada três anos,
e de acordo com a organização, não é realizada de forma a beneficiar receptores
(OECD, s.p., 2010), no entanto, ela é utilizada para destacar os maiores
necessitados da ajuda externa.
Neste trabalho será usado o termo “cooperação internacional”, dado que: a)
significa mais que assistência econômica, uma vez que as ações brasileiras neste
campo são bastante amplas e diversificadas como será visto aqui; b) o termo é
usado no discurso oficial do país e encontra certo respaldo entre os estudos
brasileiros.
UM HISTÓRICO DA COOPERAÇÃO MUNDIAL E BRASILEIRA
De um ponto de vista histórico a assistência econômica internacional passou
por várias fases, marcadas por um grande divisor de águas que foi a Guerra Fria.
Em um primeiro momento, marcado pela ação norte-americana surgiu a questão da
reconstrução do pós-guerra quando ocorre o Plano Marshall e a assistência ao
Japão. Posteriormente, a partir da guerra da Coréia os americanos dirigem suas
preocupações para o Oriente para onde vai se dirigir grande parte da ajuda daquele
país.
Desponta então, ainda dentro do quadro geopolítico da guerra fria, uma fase
marcada pela ajuda direcionada ao desenvolvimento das nações do terceiro mundo.
Neste momento cresce a ajuda soviética, surge a ajuda chinesa e começa a se
organizar a assistência para o desenvolvimento da OCDE. Nos anos 70, quando os
EUA entram em crise, tanto econômica como da idéia de modernização que
embasava o discurso da ajuda norte-americana, os países europeus da OCDE e o
Japão tomam a frente do processo e tornam-se desde então os países doadores por
excelência.
A partir do começo dos anos 90, com o fim da guerra fria, o foco da ajuda
internacional, para além da já então consolidada ajuda à África e aos países pobres
asiáticos, se direciona para questões tais como a paz no Oriente Médio, apoio a
países em crises graves, os chamados “failed states” (Bósnia, Haiti, Somália etc.) e
em facilitar o desenvolvimento do livre mercado e da democracia na Europa Central
e nas antigas repúblicas soviéticas. (LANCASTER, 2007).
Com o avanço da ajuda internacional nos anos 70 e 80, passou-se a falar de
um “regime internacional de ajuda”. Um marco na construção deste foi a adoção,
ainda nos anos setenta, de uma meta de destinar à ajuda externa 0,7% do PNB dos
países da OECD – inclusos os EUA – como objetivo de longo prazo proposto pela
Organização das Nações Unidas - ONU.
• Outro elemento importante do regime internacional de ajuda foi a
criação, pela ONU, no ano de 2000, dos “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio”
(ODM), que são oito metas visando “a redução da pobreza, a luta contra a fome, a
redução das mortalidades infantil e materna, a questão de gênero, a reversão do
progresso da Aids, a sustentabilidade do meio ambiente” (PNUD, 2000, p. 02).
• Os Objetivos, que se destinam a todos os países integrantes da ONU,
são: 1º) Erradicar a extrema pobreza e a fome; 2º) Atingir o ensino básico universal;
3º) Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; 4º) Reduzir a
mortalidade na infância; 5º) Melhorar a saúde materna; 6º) Combater o HIV/Aids, a
malária e outras doenças; 7º) Garantir a sustentabilidade ambiental; e 8º)
Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento. Esses Objetivos devem
ser alcançados dentro de cada país que aceitou o desafio. Aqueles que já obtiveram
os níveis básicos em cada uma dessas áreas têm como compromisso ajudar os
países mais pobres a alcançar suas respectivas metas (PNUD, 2000).
Estes desdobramentos tiveram impacto em muitos países – Japão, França e
EUA, por exemplo – que recentemente reformularam seus programas de ajuda. Nos
EUA com os novos objetivos da assistência externa norte-americana o governo Bush
deu início a maior reconfiguração institucional da ajuda externa americana desde o
governo Kennedy. Criou-se a agência, separada da USAID, intitulada Millenium
Challenge Corporation – MCC com o objetivo de prover assistência econômica para
nações de baixa renda per capita que apresentassem indicadores de boa
governança, índices satisfatórios de liberdade econômica e indicadores sociais em
crescimento. Foi criado um fundo de US$ 5 bilhões anuais para o manejo da nova
modalidade de ajuda externa. (LANCASTER, 2008).
Em 2003 foi anunciado também o ambicioso projeto do President’s
Emergency Program for AIDS Response – PEPFAR para o qual foi previsto um
orçamento de US$15 bilhões com o intuito de combater a AIDS, especialmente na
África, nos cinco anos vindouros. Posteriormente, o governo americano propôs
duplicar o orçamento para US$30 bilhões a serem gastos no quinquênio 2007/20123.
Por sua vez, o Brasil durante muito tempo foi um país receptor de ajuda
externa. O ponto de partida pela importância e significado foi a inclusão do país no
programa do “Point Four” – iniciativa do governo Truman de fornecer cooperação
técnica à países em desenvolvimento, a qual no Brasil produziu a expertise
necessária ao planejamento econômico nacional, criou o BNDE e possibilitou o
financiamento de diversas obras importantes para a economia nacional.
Nos anos 1960 o país foi o maior receptor da ajuda fornecida pela Aliança
para o Progresso (RIBEIRO, 2006), com resultados econômicos limitados o que
levou ao aumento da discussão dentro do país sobre a pertinência e os limites
destes esforços. O governo militar a partir de 1969 decide que deveria acelerar o
desenvolvimento econômico a partir de uma base interna decisória e de uma mescla
de financiamento externo e interno, onde o capital estatal tinha grande importância.
O Brasil nunca mais se configurou como um grande receptor de ajuda externa,
captando recursos marginalmente e para objetivos locais sem uma vinculação com o
planejamento em larga escala.
Posteriormente, na década de 1990 o desenvolvimentismo nacional foi
substituído pelo neoliberalismo e a cooperação externa praticamente reduzida ao
comércio internacional: as cooperações eram, teoricamente, multilaterais (Protocolo
de Kyoto e Tratado de Não-Proliferação Nuclear); os recursos financeiros eram
conseguidos através de empréstimos de mercado; e apenas a assistência técnica se
mantinha como uma efetiva consideração com o menor desenvolvimento relativo
dos países (CERVO & BUENO, 2010, pp. 381-383). Como foi mostrado no capítulo
anterior, nesta época o Brasil já fornece doações de recursos para organismos
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Certamente o programa mais bem sucedido do governo Bush, o PEPFAR até o final de 2007 tinha apoiado dois milhões de órfãos e providenciado ajuda médica para 2,1 milhões de indivíduos vivendo com a doença. (LANCASTER, 2008).
multilaterais, principalmente comerciais, mas somente a partir de meados da década
de 2000 é que se torna um doador maior e mais amplo.
Embora as estatísticas a respeito dos atuais desembolsos brasileiros em
ações de cooperação internacional sejam difíceis de serem completamente
levantadas é certo de que hoje o país é um doador líquido de recursos, ou seja,
fornece mais recursos do que recebe a título de cooperação internacional. A seguir
será apresentada uma tentativa de levantar os recursos fornecidos pelo Brasil nas
diversas categorias de ajuda que permitiram uma pesquisa de dados mais apurada e
confiável.
A COOPERAÇÃO BRASILEIRA: VOLUME E ABRANGÊNCIA
Nesta seção busca-se mostrar o avanço da cooperação internacional
brasileira, analisando as diversas modalidades da cooperação que se afirmaram na
última década. Em primeiro lugar, examinam-se estas modalidades mostrando os
arranjos institucionais construídos pelo governo brasileiro com o intuito de dotá-la de
substância e efetividade, enquanto, ao mesmo tempo o planejamento estatal através
dos seus Planos Plurianuais – PPAs alocava recursos cada vez maiores para a
assistência externa brasileira. Deve-se notar que, excluindo-se o perdão de dívidas
de países em desenvolvimento, as estatísticas abaixo apontadas incluem
basicamente a cooperação multilateral incorporada em um grande número de
tratados e acordos firmados pelo Brasil.
Mas para configurar o aumento da cooperação internacional brasileira deve-
se levar em conta também a entrada do país em novos organismos mundiais e a
criação e expansão de novos fundos de financiamento e doação dos quais o Brasil
participa. É o que será visto a seguir.
Cooperação Técnica
A cooperação técnica no Brasil é supervisionada pela Agência Brasileira de
Cooperação (ABC), do Ministério das Relações Exteriores (MRE) – a única agência
do Estado Brasileiro formatada especificamente para os fins da cooperação
internacional. A ABC/MRE orienta as instituições sobre as normas que
regulamentam a cooperação técnica e sobre os procedimentos necessários para a
elaboração de projetos. Informa também sobre as possibilidades de intercâmbio
junto a governos estrangeiros e organismos internacionais (ABC, 2010, s.p.).
A cooperação técnica é um importante método de promover desenvolvimento
tanto econômico quanto social, auxiliando países a alterar positivamente seus
sistemas produtivos e, assim, superar restrições que atrapalham seu crescimento
científico, social, industrial, agrícola, etc. O objetivo principal dos programas
implementados sob este título é transferir conhecimentos, experiências e até
equipamentos, e assim habilitar trabalhadores e técnicos, fortalecendo as
instituições do país receptor e provocando transformações não somente
conjunturais, mas estruturais (idem). A cooperação técnica constitui-se “pela
transferência de conhecimento (metodologias, tecnologias, boas práticas e demais
conhecimentos com conteúdo técnico que possam ser sistematizados e
disseminados) com aplicação imediata em processos de desenvolvimento” (ABC,
2010, s.p.).
Para promover a cooperação técnica os países firmam um acordo bilateral de
troca ou concessão de conhecimentos e técnicas através de pessoal capacitado.
Especialistas são enviados ao país receptor da ajuda, de modo a transferir o
conhecimento. Algumas vezes, a cooperação técnica é acompanhada de
equipamentos especializados (idem).
Cooperação Humanitária
A prestação de assistência humanitária internacional pelo Brasil tem sido
fortalecida desde o ano de 2006, quando foi criado um Grupo de Trabalho
Interministerial sobre Assistência Humanitária (GTI-AHI), pelo qual o Governo
brasileiro aumentou e intensificou a prestação da assistência humanitária. Entre
junho de 2006 e junho de 2009, mais de 35 países receberam assistência
humanitária do governo brasileiro, entre eles Haiti, Honduras e Timor-Leste (MRE,
2011).
A assistência humanitária brasileira busca promover tanto a segurança
alimentar de populações pobres quanto a prevenção e a redução de riscos de
desastres. Assim, contribui para a formação de um novo modo de assistência
humanitária, recentemente baseado na experiência do Programa Fome Zero
desenvolvido no Brasil. De acordo com o MRE, o Brasil busca o contínuo
aperfeiçoamento de métodos de promoção de assistência humanitária, de forma a
garantir o fortalecimento das comunidades frente a calamidades sociais e naturais,
enfatizando a rápida recuperação e o desenvolvimento após desastres (idem).
Não possui como objetivo primordial promover o desenvolvimento econômico
ou social, pois se destina a retirar os receptores de situações de calamidade; e nem
há transferência de recursos financeiros entre os governos.
Cooperação Militar
O conceito de cooperação proposto pela OCDE acima exposto exclui a
categoria de cooperação militar, visto que esta normalmente se realiza através do
fornecimento de materiais e equipamentos bélicos, bem como o envio de tropas (tal
qual um empréstimo) a outro país de forma a auxiliá-lo em um conflito armado. No
entanto, a cooperação militar realizada por parte do Brasil objetiva basicamente fins
científicos, culturais, tecnológicos e de aperfeiçoamento na área militar. Por possuir
finalidades técnicas, muitas vezes é confundida com cooperação técnica; outras
vezes é confundida com a humanitária, visto que o exército brasileiro promove várias
ações de paz através da ONU (CMBP, 2010).
A cooperação militar é realizada através da Adidância do Exército da
Embaixada do país receptor e é promovida através de cursos na área militar
realizados por oficiais brasileiros dentro do território estrangeiro. A cooperação militar
é supervisionada pelo Ministério das Relações Exteriores e pelas comissões criadas
para coordenar e financiar a assistência a cada país beneficiário. O dado mais
antigo disponível sobre a assistência militar é da Comissão Militar Brasileira no
Paraguai e data do ano de 1942 quando o Brasil firmou parceria com o Paraguai
para envio de militares destinados ao treinamento de oficiais paraguaios (idem).
A parte as missões militares brasileiras espalhadas por um bom número de
países, a face mais visível da cooperação militar brasileira é hoje sem dúvida a
participação com grande protagonismo na Missão de Estabilização das Nações
Unidas no Haiti (MINUSTAH) desde 2004. Esta missão possui caráter heterogêneo,
pois contém aspectos humanitários e, mais importante, está vinculada a uma
estratégia de “state building” voltada para a construção das instituições básicas do
estado haitiano.
A questão do financiamento da presença brasileira é complexa uma vez que a
tropa recebe uma série de recursos das Nações Unidas – que reembolsa uma parte
das despesas nacionais, mas os recursos básicos sem os quais a cooperação não
existiria fluem do Ministério da Defesa que cobre um grande volume das atividades
da tropa brasileira. Isoladamente, este pode ser considerado o maior
empreendimento da cooperação internacional brasileira, tendo consumido até 2011 o
valor de R$1,97 bilhões a preços de 2004 (Folha de São Paulo, 2012, s.p.).
Conforme o orçamento do Ministério do Planejamento estão previstos para 2012
gastos da ordem de R$ 240 milhões.
Cooperação Econômica
A cooperação econômica é definida pela Agência Brasileira de Cooperação
como forma a diferenciá-la da cooperação técnica. Chamada também de
cooperação financeira, ela se destina, assim como a cooperação técnica, a
promover o desenvolvimento do país receptor buscando uma mudança estrutural
que possibilite a sustentabilidade:
A cooperação financeira envolve a transferência de recursos financeiros entre países, a partir de condições contratuais privilegiadas, de um ou mais agentes concedentes para outros receptores, por meio de empréstimos ou de contribuições financeiras, destinados à implementação de um projeto técnico que contribua para a melhoria da infraestrutura social e econômica necessária para apoiar os esforços de desenvolvimento sustentável dos países. (ABC, 2010).
Os empréstimos concedidos a outros países podem ser caracterizados como
ajuda externa desde que possuam um elemento de doação de 25% do valor dado,
ou seja, a devolução dos recursos (acrescidos de juros) do país receptor ao país
doador é de 75% do montante total. Entretanto, para que a doação seja completa, e
não apenas empréstimo com elemento de doação, é necessário que o recurso
fornecido seja internalizado no orçamento do país receptor, tal qual um aumento de
receita. Esta ação tem como objetivo dar suporte a esforços do país receptor
visando o desenvolvimento econômico e social (ABC, 2010).
A cooperação econômica no Brasil é supervisionada pela Secretaria de
Assuntos Internacionais (SEAIN), que é um braço do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão (MPOG). Esta secretaria também orienta as instituições
brasileiras que desejam receber cooperação econômica de governos estrangeiros
ou de organizações internacionais. Outros órgãos que regulamentam a ajuda
econômica são o Itamaraty, do Ministério das Relações Exteriores, e a Presidência
da República. Estes são responsáveis não pelo recebimento, mas pela doação da
cooperação econômica brasileira (idem).
A cooperação econômica brasileira pode ser entendida como a transferência
de recursos financeiros do governo brasileiro (Presidência, Ministérios e Agências) a
outros países, órgãos, fundos e organismos multilaterais, com vistas à promoção do
desenvolvimento econômico e social do destinatário do recurso. Se feito de forma
direta, deve integrar o orçamento do país receptor; se feito através de organismos e
fundos, prioriza, além do desenvolvimento econômico e social, a pesquisa e os
esforços de integração regional, seja ela econômica, política ou cultural.
A cooperação e os PPAs
Todas estas definições aqui utilizadas são elaboradas institucionalmente e
com base na legislação brasileira. Para receber ajuda externa, o Brasil se guiou pela
legalidade, com a organização de documentos, contratos, acordos e até mesmo leis
que definiam todas as especificidades dos recursos, materiais ou tecnologias
recebidas. Sendo assim, é de se esperar que ao assumir a função de doador o
Brasil adotasse nas suas ações a mesma organização e legalidade que
acompanhou por tanto tempo.
Por um lado, optou-se coerentemente por apresentar a previsão de
desembolso de recursos da ajuda brasileira conforme os procedimentos
constitucionais previstos. Por outro, existe ainda uma grande falta de transparência
quanto aos valores realmente desembolsados, mormente em relação à ajuda
bilateral, que praticamente não foi estudada neste trabalho – assunto que será
abordado nas seções seguintes. A seguir, apresenta-se os valores referentes à ajuda
brasileira prevista nos planos plurianuais relacionados abaixo e que cobrem o
período que se deseja estudar.
Tabela 1 - PLANO PLURIANUAL 2000-2003
RECURSOS DESTINADOS A VALOR (R$)
Organizações de Pesquisa 26.350.205,00
Organizações Comerciais 27.222.246,00
Organizações de Integração 95.214.032,00
Sistema ONU 243.585.818,00
Total do Programa 392.372.301,00FONTE: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Tabela 2 - PLANO PLURIANUAL 2004-2007
RECURSOS DESTINADOS A VALOR (R$)
Organizações de Pesquisa 59.597.247,00
Organizações Comerciais 68.725.507,00
Organizações de Integração 190.688.843,00
Sistema ONU 854.019.116,00
Total do Programa 1.173.030.713,00FONTE: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Tabela 3 - PLANO PLURIANUAL 2008-2011
RECURSOS DESTINADOS A VALOR (R$)
Contribuição à Central Internacional Compra de Medicamentos da Organização Mundial da Saúde - CICOM/OMS
173.905.757,00
Contribuição a Outros Organismos Internacionais
91.366.033,00
Contribuição ao Fundo para a Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional do Mercosul – FOCEM
612.521.644,00
Contribuição ao Sistema das Nações Unidas
317.999.041,00
Contribuição à Organização Pan-Americana de Saúde – OPAS
82.592.000,00
Outras contribuições 564.337.832,00
Total do Programa 1.842.722.307,00 FONTE: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Tabela 4 - COMPARATIVO ENTRE OS PLANOS
PLANOS PLURIANUAIS VALOR (R$) CRESCIMENTO %
PPA 2000-2003 392.372.301,00 -
PPA 2004-2007 1.173.030.713,00 198.95
PPA 2008-2011 1.842.722.307,00 57,09
FONTE: Elaboração dos autores
Perdão de dívidas concedidos pelo Brasil
Ao contrário dos valores apontados acima que se referem praticamente a
ações multilaterais, o perdão de dívidas caracteriza-se pela sua bilateralidade: um
governo perdoa a dívida que outro governo tem para consigo.
A concessão de perdão de dívidas, de acordo com a conceituação de
cooperação utilizada neste trabalho, é considerada ajuda externa pois tem impacto
positivo sobre o orçamento do governo que, beneficiado, assemelha-se a uma
concessão de ajuda direta.
Tabela 5 - PERDÃO DE DÍVIDAS CONCEDIDOS PELO GOVERNO BRASILEIRO
CONCEDIDO PELO BRASIL A VALOR (US$)
Países pobres altamente endividados1.011.900.000,00
África 815.200.000,00
Demais Países 196.700.000,00
Outros países em desenvolvimento 241.700.000,00
África 116.600.000,00
Demais Países 125.100.000,00
Total 1.253.600.000,00 Fonte: Relatório dos Objetivos do Milênio, 2010.
Organismos de integração dos quais o Brasil é participante (pós-2003)
O processo de avanço da cooperação internacional pode ser também
avaliado pelo aumento da participação do país em instituições internacionais que
visam algum tipo de integração ou cooperação. Assim, cabe mostrar as principais
iniciativas recentes do Brasil neste campo: BRICs, CELAC, IBAS e UNASUL. A
integração pode ser cultural, econômica ou política. O MERCOSUL é um exemplo de
projeto de integração econômica e cultural. Neste tipo de ambiente institucional a
cooperação, em todas as suas modalidades pode se constituir mais facilmente. O
Itamaraty defende o multilateralismo e a integração regional apesar das críticas que
este último tipo de arranjo tem sofrido:
Desde meados do século XX, a integração regional consolida-se como importante fenômeno internacional. O estreitamento dos laços políticos e econômicos entre os povos que compartilham herança histórica e vizinhança geográfica permite enfrentar melhor os desafios do mundo globalizado (MRE, 2010e).
Os organismos de integração mais importantes onde o Brasil possui
participação são:
a) MERCOSUL
b) G-20
c) BRIC – Brasil-Rússia-Índia-China;
d) CELAC – Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos;
e) IBAS – Índia-Brasil-África do Sul
f) UNASUL – União de Nações Sul-Americanas
O BRIC - Agrupamento Brasil-Rússia-Índia-China – antes de se tornar
efetivamente um grupo institucionalizado, foi um conceito criado por economistas,
em 2001, para demonstrar o poder econômico desses países. No entanto, a união
real deles somente ocorreu no ano de 2006. O BRIC, entretanto, não possui um
documento constitutivo nem fundo de financiamento das suas ações, ele existe
apenas em caráter informal. Neste agrupamento as reuniões são voltadas ao
“diálogo, identificação de convergências e concertação política em relação a
diversos temas da agenda política e econômica internacional; e (b) ampliação de
contatos e cooperação em setores específicos” (MRE, 2010b, s.p.).
A Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos – CELAC – foi
criada em fevereiro de 2010. A intenção é criar um novo espaço de diálogo para os
33 países de uma região que até então não possuía organismo que propiciasse
integração.
A América Latina e o Caribe, apesar da proximidade cultural e geográfica, era talvez a única grande região do mundo que ainda não possuía
organismo próprio de diálogo político e cooperação econômica. Em um contexto de crescente importância da concertação regional em temas de interesse global, a CELAC solidificará os laços políticos e econômicos que nos unem e fortalecerá a nossa capacidade de negociação internacional (MRE, 2010c).
O IBAS – Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul – foi criado em 2003 e é
um projeto de coordenação de três países emergentes visando maior participação
no cenário mundial. Além dessa coordenação política, compartilham o objetivo de
cooperação setorial destinada a um intercâmbio maior de experiências dos setores
públicos de cada país. Outro objetivo do IBAS é a manutenção de um fundo, do qual
falaremos mais adiante (MRE, 2010d).
A União de Nações Sul-Americanas – UNASUL – possui 12 países-membros.
Criada em 2004, somente em 2008 teve seu Tratado Constitutivo aprovado. O
objetivo é de promover uma integração maior do que qualquer outra tentativa de
integração comercial ou cultural da América do Sul:
A UNASUL tem como objetivo construir, de maneira participativa e consensuada, um espaço de articulação no âmbito cultural, social, econômico e político entre seus povos. Prioriza o diálogo político, as políticas sociais, a educação, a energia, a infra-estrutura, o financiamento e o meio ambiente, entre outros, com vistas a criar a paz e a segurança, eliminar a desigualdade socioeconômica, alcançar a inclusão social e a participação cidadã, fortalecer a democracia e reduzir as assimetrias no marco do fortalecimento da soberania e independência dos Estados (MRE, 2010a).
Fundos de financiamento e doação dos quais o Brasil é participante
Como dito anteriormente, alguns organismos de integração possuem fundos
destinados ao financiamento de transações do bloco ou destinados à promoção do
desenvolvimento dos países-membros. Esses fundos são compostos de cotas de
participação de cada país e podem ser reembolsáveis ou não. Deste tipo existem
atualmente o FOCEM (Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul) e o
Fundo IBAS para o Alívio da Fome e da Pobreza.
Por meio de observação do PPA 2000-2003, vimos que o Brasil participava no
período de poucos fundos de doação e financiamento – apenas cinco, recebendo
pouco menos de R$ 2,5 milhões do governo brasileiro. Todos estes organismos
continuaram beneficiários da ajuda externa brasileira nos PPA subseqüentes, sendo
adicionado em 2004 mais um único fundo e quase dobrado os valores a eles
destinados (R$ 4,7 milhões).
Além dos fundos dos organismos de integração, o Brasil também participa de
outras iniciativas de organismos internacionais não ligados à questão da integração
regional, mas que demonstram a preocupação do nosso país com o sistema
internacional. Assim, o Brasil realiza doações à fundos administrados pela ONU
destinados à reconstrução de áreas destruídas, como o Fundo de Reconstrução do
Haiti e Fundo de Reconstrução da Faixa de Gaza.
FOCEM
O FOCEM (Fundo de Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional
do MERCOSUL) visa promover maior integração regional através da redução das
assimetrias, incentivo à competitividade e do estímulo à coesão social entre os
países-membros. O FOCEM passou a existir em 2005 e se destina a promover o
desenvolvimento econômico e social e a infra-estrutura de regiões menos
desenvolvidas do MERCOSUL. É um fundo proporcional ao PIB de cada país-
membro do MERCOSUL – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai (MP, 2010):
O FOCEM é composto por contribuições não-reembolsáveis que totalizam US$ 100 milhões (cem milhões de dólares norte-americanos) por ano, além de possíveis contribuições voluntárias. Os aportes são feitos em quotas semestrais pelos Estados-Partes do Mercosul, na proporção histórica do PIB de cada um deles. Desse modo, a Argentina é responsável por 27% (vinte e sete por cento) dos recursos; o Brasil, por 70% (setenta por cento); o Paraguai, por 1% (um por cento); e o Uruguai, por 2% (dois por cento) (MP, 2010).
Estes recursos que são destinados ao fundo, são não-reembolsáveis e são
utilizados de maneira inversamente proporcional à capacidade de doação. Os países
que detêm o direito de utilizar as maiores quantias do fundo são aqueles que
realizam as menores doações: o Paraguai pode utilizar 48% dos recursos e o
Uruguai 32%. Já o Brasil e a Argentina têm direito a utilizar apenas 10% do
montante destinado anualmente ao fundo (idem).
Conforme visto na avaliação sobre o PPA 2008-2011, o Brasil destinou pouco
mais de R$ 612.000.000,00 divididos em quatro anos para o FOCEM. De acordo
com o tratado constitutivo do fundo, o Brasil deveria destinar US$ 70.000.000,00
anuais, ou seja, US$ 280.000.000,00 em quatro anos. Com a baixa no valor do
dólar, possivelmente o restante do orçamento foi destinado como contribuição
voluntária ao fundo.
Fundo IBAS
O Fundo IBAS (Fórum de Diálogo Índia – Brasil – África do Sul) para o Alívio
da Fome e da Pobreza foi criado em 2004, e se destina a apoiar projetos de
desenvolvimento que contribuam com as prioridades nacionais de países
participantes do fundo que sejam menos desenvolvidos. Além disso, se propõe a
fornecer exemplos de experiências práticas na área da cooperação. Cada um dos
três países-membros do IBAS destina US$ 1 milhão por ano ao Fundo.
Os recursos do Fundo IBAS são administrados pela Unidade Especial de Cooperação Sul-Sul (UECSS) do PNUD. Três projetos financiados pelo Fundo foram finalizados até a presente data: de coleta de resíduos sólidos no Haiti, de apoio à agricultura em Guiné Bissau e de reconstrução de posto de saúde em Cabo Verde. Há ainda quatro projetos em andamento e outros em fase de pré-implementação (MRE, 2010d).
O Fundo IBAS tem completa interligação com os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODM). Assim, desenvolve projetos contra a fome e a
pobreza tanto no Brasil quanto nos países participantes. Ao invés de promover
medidas emergenciais, os projetos desenvolvidos destinam-se a capacitar os países
beneficiários a gerar e gerenciar o seu próprio desenvolvimento econômico. Os
países em desenvolvimento são beneficiários potenciais do Fundo IBAS, que é
administrado pelo Conselho Executivo do PNUD, Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (ABC, 2010).
Fundo de Reconstrução do Haiti
O Fundo para Reconstrução do Haiti (FRH) é uma iniciativa da ONU para
promover a recuperação do país após o grande terremoto ocorrido no início de 2010.
O Fundo foi efetivamente criado em maio de 2010 com a contribuição inicial do
Brasil, no valor de US$ 55 milhões. O Brasil foi o único país participante do FRH que
prometeu, assinou e realmente doou a quantia inicialmente prometida (HRF, 2012).
O Fundo de Reconstrução do Haiti (FRH) é uma parceria entre a comunidade internacional e o Governo do Haiti para ajudar a financiar a
reconstrução pós-terremoto. O FRH mobiliza, coordena e aloca contribuições de doadores bilaterais e outros doadores para financiar projetos de alta prioridade, programas e apoio à orçamento (HRF, 2012, tradução não-oficial).
Além dos fundos de financiamento e doação, o Brasil ainda realiza doações
diretas a governos, como já explicitado quando falamos dos mecanismos de doação.
Através de lei ordinária, o governo brasileiro envia recursos para fins de
desenvolvimento econômico e social do país receptor. Nestes termos, nos últimos 12
anos pelo menos R$ 58 milhões doados por meio de transferência direta (PORTAL
DA LEGISLAÇÃO, 2011).
Esse crescimento do volume e da abrangência da cooperação econômica
brasileira propiciou também o surgimento de novos projetos na área. O mais recente
e maior de todos, é o Plano Brasil 2022. A elaboração de projetos sobre política
externa, mais particularmente sobre cooperação econômica, demonstra a intenção
do governo em se firmar como doador de ajuda externa.
AJUDA EXTERNA E CONDICIONALIDADES
A partir do fim da guerra fria e dentro do contexto da ajuda externa da OECD,
surgiu na década dos anos 90 um novo elemento da política de assistência que se
mostrou notavelmente durável e crescentemente influente neste campo de atividade.
Tratava-se de impor condicionalidades à assistência para o desenvolvimento,
referentes à promoção dos direitos humanos, da democracia e da boa governança
(CRAWFORD, 2010). O movimento começou a partir dos estados social-democratas
do norte europeu e rapidamente espalhou-se pelos principais doadores da OECD,
tendo alcançado um largo consenso no regime de ajuda internacional. Os
instrumentos deste tipo de ação são desdobrados em dois tipos de política: por um
lado, os países que apóiam as diretrizes do “desenvolvimento político” recebem o
apoio esperado. Por outro lado, os países que não obedecem as condicionalidades
democráticas ou de boa governança são penalizados com sanções que podem
chegar a própria suspensão da assistência.
Certamente é razoável imaginar que estas condicionalidades surgidas a partir
do “welfare state” europeu possuíam e possuem um elevado grau de legitimidade
porque representam a projeção de critérios de justiça social consensuais nestes
estados transplantados para as suas relações internacionais (NOEL, THÉRIEN,
1995). Posteriormente, as condicionalidades entraram com grande força na agenda
de países tais como os EUA – no caso da criação recente do Millenium Challenge
Corporation, que defende estritos padrões de governança para a doação de ajuda.
Isto fez com que surgissem reservas quanto ao fato de que poderia haver
problemas nesta matéria, tal como houve durante a guerra fria, quando a retórica
democrática e dos direitos humanos oficialmente proclamada em alta e boa voz
muitas vezes não era transplantada para a prática, especialmente quando o país
receptor era um aliado do bloco ocidental ou passível de cooptação para os fins da
política de então.
A emergência destas restrições políticas veio de certa forma substituir as
condicionalidades econômicas típicas dos anos 80 quando o Banco Mundial e o FMI
aliados aos organismos e agências de ajuda impunham medidas liberalizantes aos
países em desenvolvimento, que deveriam mover-se para um tipo de capitalismo de
mercado como condicionante da prestação da assistência.
A mudança dos anos 90 veio rápida com apoio e embasamento na mudança
concomitante no discurso e na doutrina de ajuda dos países da OECD. Embora
alguns países da Ásia neste momento estivessem expandindo largamente seus
programas de ajuda – especialmente China, Coréia do Sul e Tailândia – apenas o
Japão como seria de se esperar de um país da organização declarou adesão aos
novos princípios (SODEBERG, 2010).
Não seria possível aqui apresentar um detalhado estudo comparado das
diversas definições dos conceitos, conforme os principais países da OECD. Mas
pode-se apontar com certa clareza a substância principal de cada um. Para
praticamente todos os doadores direitos humanos são definidos como um “conjunto
definido e protegido de liberdade e direitos civis” (CRAWFORD, 2001). Democracia
significaria livres e justas eleições dentro de um sistema multipartidário, em uma
sociedade onde vigorasse o império da lei – o Estado de Direito. O conceito de
governança é definido de forma menos rigorosa, mas de forma quase consensual
significa uma capacidade do estado de “planejar e manejar serviços básicos
incluindo a formulação de políticas, a tomada de decisões no curto e longo prazos e
a entrega de serviços essenciais para a sociedade”.
Este modelo ocidental sofre hoje um desafio fundamental colocado pela ajuda
chinesa aos países em desenvolvimento em especial na África e na Ásia. Esta
possui pelo menos cinco características principais: a) apresenta um forte aspecto
bilateral, exibindo desconfiança em relação a esquemas multilaterais; b) possui um
forte “link” com a promoção do investimento direto externo – IDE e das exportações
chinesas; c) muitas vezes aparece vinculada a busca de recursos primários –
agrícolas e minerais, importantes para o desenvolvimento chinês; d)
costumeiramente, a ajuda bilateral é condicionada à contratação de firmas e
serviços chineses, incluindo mão de obra e cooperação técnica, o que costuma se
chamar de ajuda “atada”; e) trabalha com nenhuma restrição ou condicionalidades
políticas (SODEBERG, 2010).
Outras características da ajuda externa chinesa são a forte ênfase nos
projetos bilaterais de infraestrutura – muitas vezes apresentando um “show case”
com forte apelo publicitário – e a composição desta ajuda em um quadro amplo de
cooperação econômica muitas vezes superior a qualquer oferta ocidental.
Estas características e a decorrente implementação da cooperação chinesa
dentro dos parâmetros acima trouxeram uma série de críticas vindas principalmente
de observadores ocidentais (LENGAUER, 2011), que pode ser apresentada
sucintamente:
- o governo chinês não vincula a sua ajuda a nenhuma condição de
transparência econômica ou “boa governança” por parte do país doador;
- verifica-se pouca cooperação com organizações não-governamentais;
- China seria um “rogue donor” incentivando direta ou indiretamente a
corrupção de regimes autocráticos ao mesmo tempo em que explora os recursos
naturais do país;
- a ação da cooperação chinesa não obedeceria aos padrões mundiais de
respeito ao meio ambiente;
- a abordagem de não-condicionalidades políticas minaria os esforços da
OECD de construir exatamente estes objetivos nos países receptores;
A resposta a estas críticas baseia-se em alguns pilares principais: a) a não-
interferência nos negócios internos dos países receptores e o respeito a soberania
são as principais razões da falta de condicionalidades políticas; b) o principal
propósito da ajuda chinesa é o de fomentar a auto-confiança dos países receptores,
c) o foco no uso direto de equipamentos, serviços e mão de obra chinesa diminui a
corrupção e o mau uso de recursos; d) a ausência do ocidente em algumas regiões
ou em setores de certos países criou um “gap” preenchido pela cooperação chinesa.
Contudo é certo que os padrões ambientais e de proteção ao trabalho são
piores na China e em seus empreendimentos de cooperação econômica (MELBER,
2010). O importante, porém, é que se pode, a partir da contraposição destes
“modelos” – ocidental e chinês – pensar a relação existente entre a cooperação
brasileira e as condicionalidades políticas e econômicas.
BRASIL: CONDICIONALIDADES POLÍTICAS E ECONÔMICAS
Assim como a China, a Índia, a Coréia do Sul e outros, o Brasil é um doador
emergente e é obrigado a criar as suas próprias regras do jogo em um campo já
ocupado por outros jogadores. Estes novos doadores que não pertencem ao quadro
da OECD, visivelmente ampliaram a sua ajuda internacional e se posicionaram a
favor de gastos crescentes nos últimos anos. A ajuda brasileira é característica de
um novo fluxo de bens e serviços, de novas perspectivas políticas que se abriram
com o final da Guerra Fria. O fluxo comercial vem crescendo a um ritmo mais rápido
que o da ajuda, mas são fenômenos que possuem uma dinâmica conectada. Por
outro lado, por uma série de motivos que não serão discutidos aqui, o Brasil optou
focar a sua cooperação no eixo Sul-Sul, onde se localiza praticamente 100% do
desembolso.
Como já foi dito, a pesquisa não foi capaz de encontrar documentos que
caracterizem ou propriamente exponham uma doutrina brasileira de cooperação
econômica ou de ajuda externa. Questões mais sensíveis, como a do apoio a países
não-democráticos ou de baixa governança são evitadas no campo da doutrina, nos
documentos oficiais e nas declarações públicas que se referem geralmente a
questões vinculadas a democracia de forma genérica, sendo mesmo impossível
encontrar, ao contrário do que se verifica a respeito dos países da OECD, conceitos
operacionais de direitos humanos, democracia e boa governança.
Este trabalho não se debruçou sobre um aspecto importante da cooperação
brasileira: a da ajuda bilateral levada a cabo através de empréstimos do BNDES e
firmemente atada à presença de firmas e equipamentos brasileiros para a realização
das obras. Este tipo de ajuda está presente em muitos países receptores da
cooperação brasileira onde o governo local recebe os empréstimos do Banco e
firmas brasileiras são incumbidas dos trabalhos majoritariamente na construção de
infraestrutura: Bolívia, Peru, Equador, Paraguai, Venezuela, Angola, Moçambique
etc.
A consecução desta cooperação “atada” caracteriza o uso por parte das
autoridades brasileiras do instrumento da condicionalidade econômica enviesada
para a proteção dos interesses das grandes empreiteiras nacionais já vinculadas há
muito tempo aos contratos nacionais de infraestrutura e que mais recentemente se
tornaram instrumentos das ações nacionais e internacionais do BNDES. A seguir são
elencadas algumas das características principais da ajuda brasileira:
- falta de condicionalidades políticas conforme o modelo da OECD;
- condicionalidades econômicas conforme o modelo da ajuda “atada”;
- balanço entre a ajuda bilateral e multilateral;
- apoio a obras de infraestrutura em países em desenvolvimento;
- baixo nível de transparência geral, excetuando-se o caso da cooperação técnica;
- baixa cooperação com organizações não-governamentais;
- foco nas relações sul-sul e nos países menos desenvolvidos;
- política de não-intervenção nos negócios internos do país receptor;
A posição brasileira de não cobrar condicionalidades políticas e de não se
imiscuir nos negócios internos de nações beneficiadas, é defendida por agentes do
governo, tal como na China, através do argumento de que o Brasil sempre respeitou
o princípio da soberania que sempre foi defendido pelo governo brasileiro em causa
própria.
Contudo existem críticas a respeito de que a ajuda brasileira se dirige muitas
vezes a estados onde normalmente existe um alto grau de conflito interno, graves
problemas de governança que expõem a ajuda brasileira à instabilidade política e a
falta de efetividade dos esforços de cooperação. Conflitos latentes que podem ter
influência sobre as relações internacionais brasileiras tendem a ser menosprezados
e dificilmente antecipados pela cooperação nacional, em parte por força da ausência
de doutrina e de pessoal especializado em analise política nos quadros diplomáticos.
Este tipo de problema é também causado pela postura do governo brasileiro
de muitas vezes trabalhar em projetos específicos ao invés de participar
multilateralmente de um “donor club consortium”. De resto, cabe notar que nem
sempre a postura multilateral é sinônimo de sucesso como bem mostra o caso
haitiano. Mas este é também o exemplo de que existem sérios riscos de curto e
longo prazos relacionados com baixos padrões de governança local.
Em relação aos princípios democráticos, o Brasil não pode defender a sua
posição como faz a China, declarando que segue princípios culturais e políticos
internos – ou seja, não democráticos. O fato de não impor condicionalidades parece
estar vinculado ao histórico pragmatismo das relações internacionais brasileiras e a
falta de demandas por parte de parceiros importantes que desafiem a atual posição
política.
CONCLUSÃO
Este trabalho mostrou o avanço sensível da cooperação internacional
brasileira nos últimos anos movida por motivos diversos - busca de projeção
internacional, motivos humanitários, liderança regional – também conectada a um
padrão de comportamento mais amplo verificado historicamente nos países da
OECD e mais recentemente em países emergentes os quais possuem uma
cooperação internacional da mesma forma emergente.
A ajuda brasileira é pouco institucionalizada – somente a cooperação técnica
é conduzida por uma agência estatal formatada para esta missão e não possui uma
doutrina que dê embasamento às suas praticas. Esta falta de uma doutrina oficial
soma-se a falta de transparência a respeito dos valores e das clausulas dos acordos
de cooperação sobre os quais muito existe a ser pesquisado.
Como pode se ver a cooperação brasileira oscila entre ações multilaterais e
bilaterais. Sem dúvida no atual momento é necessário um escrutínio sobre o papel
jogado pelo multilateralismo e o bilateralismo e o peso ponderado destes nas
relações internacionais brasileiras atuais e futuras, levando em conta os interesses
da nação e se aproximando um pouco mais do modelo ocidental aqui descrito.
Nesta direção, considerando a falta de condicionalidades políticas exigidas
pelo Brasil em ações de assistência seria essencial pensar em termos de um
balanço entre responsabilidades coletivas e soberanias nacionais – colocadas na
mesa das discussões, dos tratados, dos fóruns internacionais onde o país tem se
destacado. Para usar um termo consagrado, a assistência externa é certamente um
instrumento “soft power” que, bem usado, é um excelente vetor para a expansão
dos interesses maiores da sociedade brasileira.
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