responsabilidade de proteger - do direito a intervir à responsabilidade de proteger

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Margarida Marques Silva & Inês Alonso Catela Lisboa, 2015 RESPONSABILIDADE DE PROTEGER DO DIREITO A INTERVIR AO DEVER DE PROTEGER

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Lisb

oa, 2015

RESPONSABILIDADE DE PROTEGER

DO DIREITO A INTERVIR AO DEVER DE PROTEGER

ABSTRACT

Os presentes e sucessivos fracassos e negligências perante graves violações de Direitos

Humanos, provenientes das fronteiras internas de Estados, remetem para a necessidade de

uma concordância generalizada na forma de actuação por parte da comunidade

internacional. Perante tais cenários, esperar-se-ia desta, a capacidade de conciliar os

“princípios gémeos da soberania” com os “direitos humanos fundamentais” expressos na

doutrina da Responsabilidade de Proteger e consagradas nas normas jurídicas de Direito

Internacional.

Contudo, interpretações não consensuais sobre a R2P têm contribuído para diferentes

respostas políticas de intervenção e humanitarismo militarizado. Para além de aprofundarem

a controvérsia que envolve os contemporâneos debates em torno das intervenções

invocando fins humanitários, este debate fragmentado, centrado em questões ético-morais

de aceitabilidade universal, autoridade e legitimidade é gerador de uma dicotomia entre

“dever” e “direito”, do que universalmente se deveria afirmar como um “dever de direito”.

Com este trabalho pretende-se explorar sob o ponto de vista teórico, quais os desafios que

subjazem ao princípio da R2P a nível: i) conceptual; ii) normativo; iii) operacional; como

resposta consensual e imperativa perante as complexas emergências que se colocam à

sociedade internacional no que respeita à protecção de civis; no quadro da ONU e no

âmbito do Direito Internacional

Palavras-chave: Responsabilidade de Proteger, Direito Internacional, Intervenção

Humanitária, Organizações Internacionais, Protecção de Civis.

2

Introdução

Impulsionada pelo cenário de horror, causado pela I Guerra Mundial, pelo insucesso da

Sociedade das Nações que se revelou ineficiente, excessivamente burocratizada e

decisoriamente paralisada face às crescentes necessidades de protecção humana

imperantes motivadas sobretudo pelo ressurgir dos nacionalismos, expansões imperialistas /

colonialistas conducentes à II Guerra Mundial, assiste-se em 1945 à criação da ONU,

sucessora da fracassada Sociedade das Nações, empenhada em combater as

inconsistências e debilidades da sua antecessora.

Pautada por uma cada vez maior interdependência, a evolução ocorrida no seio da

comunidade internacional decorrente dos acontecimentos advindos do período pós II Guerra

Mundial, e ainda mais do pós-Guerra Fria, fruto do surgimento de novos estados e de novos

actores, para além do “clássico Estado”, vem exigir por parte destes últimos, uma maior

corporação, participação e cooperação em torno de interesses comuns à escala global.

O fim do século XX trouxe uma mudança na natureza do conflito armado. As guerras entre

os Estados foram aos poucos substituídas por violentos conflitos internos onde a maior parte

das vítimas são civis, assinalando assim a necessidade de se alterar o debate em torno da

prevenção e da resposta face às questões relativas à segurança humana da comunidade

internacional no seu todo, reconhecendo que a mesma deve ser prioridade das instituições

nacionais e internacionais e não somente dos Estados.

Tendo como pano de fundo este enquadramento, por iniciativa do governo canadense é

elaborado em 2001, pela Comissão Internacional sobre Intervenção e Estado Soberano

(ICISS), o relatório que está na origem da emergência do conceito “ Responsabilidade de

Proteger “ criado no sentido de dar resposta à questão submetida pelo então secretário-

geral da ONU Kofi Annan:

“ (...) Se as intervenções humanitárias constituem, com efeito, uma violação

inaceitável da soberania, como deveríamos responder a uma Ruanda, a uma

Srebrenica, a grandes e sistemáticas violações de direitos humanos que afectam

todos os sentidos da humanidade compartilhada entre nós? “1

Se na acepção de Adriano Moreira “é em nome da segurança que os soberanos se

entendem para estabelecerem um direito voluntário, denominador comum do encontro dos

seus interesses”, na manifestação de Kofi Annan “no nosso mundo actual e no futuro

próximo não há lugar para o não envolvimento internacional em conflitos violentos. Em vez

1 ANNAN, Kofi A. We the Peoples: the Role of the United Nations in the 21st Century. Nova York: United Nations

Department of Public Information, 2000 - Disponível em: www.un.org/millennium/report/sg/full.htm

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disso, há uma escolha entre o envolvimento legítimo e outras formas de intervenção mais

funestas. ”

A capacidade de análise, adaptabilidade e acção perante as complexas emergências que se

colocam à sociedade internacional no que respeita à Protecção de Civis e subjacentes ao

conceito da R2P, bem como ao sucesso da implementação dos seus pressupostos

representam nos dias de hoje um dos maiores desafios que se impõem à Diplomacia

Internacional, onde a necessidade de consenso impera, como forma de garante da

“Segurança Humana”.

No seguimento do acima exposto, passaremos ao desenvolvimento da temática,

procedendo à abordagem dos traços gerais que as caracterizam bem como aos desafios

que subjazem ao princípio da R2P nos domínios: i) conceptual; ii) normativo; iii) e

operacional.

i. Nível Conceptual

Do ponto de vista conceptual, a doutrina associada ao conceito R2P tem sido considerada

como uma reformulação do conceito de Intervenção Humanitária ou Ingerência Humanitária,

tentando ser a resposta para um sem número de dúvidas de questões legais, morais,

operacionais e políticas que sempre se colocaram aquando a invocação de intervenção por

fins humanitários, nomeadamente à pergunta do então secretário-geral da ONU, Kofi Annan,

sobre se, e em que casos específicos a comunidade internacional deve intervir na soberania

de um Estado, por motivos humanitários. Ainda que limitada, representa um assinalável

avanço, dentro do domínio temático que abrange. Não partindo necessariamente de um

conceito novo, poderá ser considerada como um novo advento de modelo de prática

humanitária que se tem vindo a integrar gradualmente no discurso politico reinante.

Subsidiada pelo governo canadense, a International Commission on Intervention and State

Sovereignty elabora o relatório inicial que lhe servirá de base, sendo publicado

posteriormente em 2001. Como propósito, esta doutrina visa sobretudo a conceptualização

material/formal do conceito de “ Proteger” numa perspectiva do “ dever da responsabilidade”

indo além da ideia até agora predominante do “direito a intervir”, acrescentando “

legitimidade” à intervenção militar no caso da necessidade de recurso ao uso da força.

A pedra basilar do conceito, reside no facto, de a “ Responsabilidade” primária da protecção

Humana pertencer ao Estado Nacional, só sendo “transferida” para os restantes membros

da comunidade Internacional, no caso deste primeiro se mostrar comprovadamente incapaz

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de assegurar a protecção dos seus cidadão de crimes que atentem contra a condição

humana. Aliás, o relatório estabelece como valor maior, a protecção de civis no quadro da

defesa dos direitos humanos. De entre os crimes constantes do documento destacam-se: i)

genocídio; ii) limpeza étnica; iii) crimes de guerra; iv) crimes contra a humanidade, sendo

que, somente perante a comprovada manifestação de tal é que poderá ser legitimada uma

operação, frisando o relatório que situações tais como, discriminação racial ou movimentos

repressivos sobre opositores políticos, não constituem motivo para uma intervenção militar

no terreno, não estando contudo estes cenários livres de outro género de participação

visando o termino do conflitos e posterior retorno à paz e à ordem.

Para tal, pressupõe três pilares, orientadores de diferentes tipos de intervenção, entre eles:

I. A responsabilidade de prevenir: no âmbito de diagnosticar as raízes do problema e

também as causas antes do conflito interno, assim como outros focos de crise que

colocam as populações em risco;

II. A responsabilidade de reagir: de forma a responder a situações do foro humano,

todas as intervenções devem ser feitas respeitando o uso de medidas adequadas,

que podem incluir acções coercivas como sanções e punições internacionais mas

também e em certos casos intervenções militares;

III. A responsabilidade de reconstruir, de forma a providenciar, especialmente após a

intervenção militar, total assistência, com direito a recuperação, reconstrução e

reconciliação.

Estes pilares, figuram no relatório como complementares, sendo dado primazia sobretudo

ao primeiro, como forma de evitar o degenerar das situações em catástrofes, constatação

esta feita pelo próprio Kofi Annan ao fazer referência a quadros de pobreza, repressão

politica e desigualdade na distribuição dos recursos, como ponto de partida para o principiar

do conflito. No seu relatório de 2011, intitulado “Prevenção de conflitos armados”2, logo no

resumo enfatiza a importância da questão, bem como o compromisso da Organização para

com este fim ao afirmar que “ propus-me fazer com que as Nações Unidas passassem de

uma cultura de reacção para uma cultura de prevenção”, em que “o desafio que se nos

depara é como mobilizar o potencial colectivo do sistema de uma maneira mais coerente e

mais orientada para a prevenção, sem que por isso seja necessário atribuir-lhe importantes

recursos suplementares”. (Annan, 2002)

Em suma, equivale a dizer, que a intervenção não deverá estar centralizada unicamente no

uso da força para a resolução dos problemas de cariz humanitário, devendo unificar os

2 Documento integral disponível em: https://www.unric.org/html/portuguese/peace/Nacoes_Unidas_final.pdf

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esforços em torno da antecipação/prevenção, assentes em dinâmicas que potenciem os

diálogos de cooperação, de modo a permitir às entidades politicas locais cumprir com a

responsabilidades associadas à sua soberania. Primariamente a acção interventiva deve

contemplar a o uso de medidas/sanções políticas, económicas, judiciais e apenas nos casos

mais extremos, as acções militares. As medidas menos coercivas e também menos

intrusivas devem ser sempre as primeiras a serem consideradas e efectivadas, contra

medidas mais intrusivas, de forma a garantir o sucesso das mesmas, sustentado pela

adequação da solução á dimensão do problema, e posteriores causa /efeito ante e após a

sua aplicabilidade.

ii. Nível Normativo

Tendo como princípio fundador e legitimador a Carta das Nações Unidas, assinada em S.

Francisco em 1945, a ONU firmando-se no primado da soberania estatal, na restrição do

uso da força (que carece de autorização do Conselho de Segurança, excepto para os casos

previstos no Cap.VII da Carta) e na prevenção e resolução pacífica de litígios, levou a

alterações significativas no seio do Direito Internacional. Estas alterações serão tanto mais

consideráveis quanto maior forem as alterações advindas da “ era da globalização “ no que

concerne aos riscos e ameaças conducentes à perturbação e rupturas da paz e segurança

mundiais, agregada à responsabilidade dialéctica direito / dever inerentes aos actores

soberanos nela participantes. Paradoxalmente, e face ao sistema até agora vigente saído de

Vestefália, em que se consideravam somente os Estados como únicos sujeitos de Direito

Internacional, estas alterações promoveram o alargar da definição do conceito de “sujeito”

que aqui passa a ser extensível primeiramente às Organizações Internacionais e de forma

mais limitada às Organizações Não-Governamentais e até mesmo às empreses

transnacionais. O indivíduo desempenha também aqui um papel primordial. Embora não lhe

seja reconhecido uma “titularidade absoluta” de sujeito de Direito Internacional, é a

salvaguarda e protecção do mesmo, que constitui o núcleo central de toda a acção

desenvolvida, quer teórica, quer prática, que na acepção de Philip Jessup marca a

transição do direito internacional de matriz clássica para o direito moderno ou transnacional,

que visa a disciplina de todas as acções e comportamentos que transcendem as fronteiras

internas, onde se incluem os Estados, os indivíduos, as Organizações Internacionais e as

empresas transnacionais. Resultante das alterações produzidas, e sendo de momento o

sujeito que mais relevância têm para a questão aqui retratada, destaca-se a posição da

Organização das Nações Unidas. Ao estabelecer uma agenda internacional, a ONU,

assume um papel de destaque, como meio condutor no espaço que conduz ao diálogo e

debate para a prossecução de novos fins.

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Com a codificação presente na Carta das Nações Unidas, dos princípios: da igualdade

soberana, da integridade territorial e a não intervenção nos assuntos internos (excepto nas

cláusulas de excepção previstas no Capitulo VII), na abstenção da ameaça e uso da força,

na resolução pacífica de controvérsias, cumprimento de boa-fé do decorrente das

obrigações internacionais, da cooperação internacional e empenho na promoção e respeito

pelos direitos humanos; assiste-se a um importante passo no âmbito de eliminar uma

interpretação e aplicação desigual de princípios em situações idênticas a par com um

esforço de aplicação dos mesmos princípios de universal definição em cenários desiguais,

elevando deste modo a pressão sob os governos.

Não obstante o já referenciado, numa sociedade anárquica, onde vigora o imperativo da

soberania inviolável do Estado, a ONU desempenha uma importante função, ao conferir

legitimidade às doutrinas e ideias emergentes, sendo um importante motor de divulgação

das mesmas. A sua posição de aceitabilidade, repúdio ou reivindicação sobre determinada

matéria representa um instrumento de desenvolvimento, condicionamento e prossecução de

interesses comuns.

O desenvolvimento conceptual do R2P, e sua aplicabilidade, em larga medida veio espelhar

o enunciado acima descrito. Partindo do relatório que lhe serviu de base - “The

Responsibility to Protect”, da International Commission on Intervention and State

Sovereignty (ICISS) – ainda que lentamente, conduziu à mudança paradigmática do

discurso intervencionista clássico. Assente na (re) definição de soberania, este postula que

sendo da responsabilidade da soberania dos Estados a protecção das suas populações

contra crimes como genocídio, limpezas étnicas e demais crimes considerados contra a

Humanidade, a comunidade mais de que um direito de intervir, tem um dever, o dever de

proteger as populações perante os cenários em que um Estado manifestamente não o

consiga garantir, independentemente de não o conseguir, de o não querer ou em última

instância, pelo facto de ser ele próprio o perpetrador dos actos.

Não tendo a força tão desejável, quanto necessária como se de uma Constituição se

tratasse no que concerne ao seu poder vinculativo e coercivo. Contudo, algumas

semelhanças lhe poderão ser reconhecidas se levarmos em consideração o facto da sua

evolução em muitos aspectos se afigurar a uma tentativa de estabelecer democraticamente

um “contrato social internacional”. Pautando pelo desejo de mudança, este têm promovido a

passagem de um “ direito de coexistência” para um “ direito de cooperação” cada vez mais

abrangente e tipificado, que assente nos princípios da doutrina R2P, é capaz de gerar

costumes internacionais, que por sua vez são fontes de direito das quais emanam normas

de Direito Internacional.

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Uma intervenção com fins humanitários orientada pelos princípios condutores da R2P e

legitimada pelo Conselho de Segurança, para além das dificuldades do terreno, não

encontrará no Direito Internacional grandes resistências teóricas de aceitabilidade no que

concerne às questões relacionadas com a soberania, pois como constatou Mário Bettati “ o

princípio da soberania já não é, pois, a fortificação inexpugnável do Estados com a qual as

solidariedades se deparam em relação aos povos. Foram conseguidos progressos sensíveis

para permeabilizar as fronteiras às entre-ajudas exteriores”. (Gouveia, 2010) Porém, a

questão fracturante coloca-se quando se equaciona “ quem, como e quando intervir”, pois a

tendência de universalização da acção perante a observância de certo tipo de cenários,

violadores dos conceitos institucionalizados, é constantemente delimitada pela multiplicidade

de percepções e interesses individuais subjacentes às questões a resolver e que em alguns

dos casos são conducentes a uma “atitude de indiferença”, suscitando dúvidas sobre a

universalidade dos valores que defende. Apesar dos fortes incentivos inerentes à

colaboração, coordenação, e cooperação entre Estados, esta porém, revela-se em muitos

dos casos complexa, tendo em conta as características do sistema anárquico de Estados,

ainda que ambos se reúnam sob a égide da ONU.

iii. Nível Operacional

Uma das maiores dificuldades inerentes ao conceito R2P, prende-se com a sua

instrumentalização e operacionalidade, assente sobretudo em duas questões.

Primeiramente pelo facto de ser interpretada como uma forma de erosão da soberania dos

Estados, principalmente dos mais frágeis, e por outro, pela possibilidade de existirem

interesses individuais mascarados sob o desígnio da intervenção com fins humanitários, que

por detrás visem a obtenção de interesses particulares. Para corroborar esta situação, em

muito contribui o questionar de porque é que se intervêm em determinados cenários e em

outros não, associado ainda a situações em que não se compreende claramente quais os

motivos que a justificam ao abrigo da R2P, da qual é exemplo o caso da intervenção dos

EUA no Iraque em 2003 após o 11 de Setembro de 2001.

Numa tentativa de reforçar o conceito, e dissipar as lacunas que da interpretação do mesmo

pudessem provir, evitando assim polémicas em torno de situações futuras, em Janeiro de

2009 o actual secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, torna público em 2009 o relatório

intitulado “Implementando a Responsabilidade de Proteger”, que baseado no parágrafo 138-

139 do documento inicial emanado da World Summit 2005, visa clarificar o entendimento

sobre as linhas conducentes á acção assente nos três pilares.

i. Responsabilidade primária dos Estados de proteger (as) suas populações, sejam

nacionais ou não, contra a prática de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a

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humanidade e limpeza étnica, bem como seu apelo; ressalvando o facto

responsabilidade de proteger deverá ser considerada como uma “aliada da

soberania, e não sua adversária”, pois consiste na “noção afirmativa da soberania

como responsabilidade”;

ii. Compromisso da comunidade internacional de auxiliar os Estados nas tarefas

estipuladas; na qual o recurso a mecanismos de aviso antecipado como forma

essencial de tornar viável a acção preventiva iniciada;

iii. Responsabilidade dos Estados-membros de agir colectivamente, de maneira

tempestiva e firme, quando um Estado falhar de forma manifesta na protecção de

sua população contra os referidos crimes, devendo a participação ser estreita e

socorrer-se de todos os meios à disposição das Nações Unidas, dos Estados-

membros, organizações internacionais e sociedade civil;

De igual forma, e à semelhança do documento inicial, enfatiza a importância de privilegiar a

acção baseada no primeiro pilar, representando os seguintes um recurso adicional, que por

ser de um espectro mais amplo e por comtemplar a utilização do uso da força, se afigura

como resposta ao desafio em torno da sua implementação e operacionalização associados

ao dilema da intervenção ou não intervenção aliado ao princípio da soberania.

A comunidade internacional recolhe em si diversas opiniões. Certos analistas acreditam que

a intervenção é muitas vezes operacionalizada sem ter em conta a soberania dos Estados,

outros acreditam que o problema real reside na coercibilidade das medidas e na sua

efectivação. Existe também a questão do poder, da hierarquização das grandes potências

sob as pequenas potências, que acabam por manipular a retórica do humanismo e dos

direitos humanos.

Numa análise inicial, deve-se partir do pressuposto da não intervenção, e permitir apenas a

operacionalidade numa base militar para casos extremos. É necessário que cada Estado

tenha a percepção da necessidade de ajuda externa, em caso de necessidade, como consta

no artigo 22º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que define que toda a pessoa,

como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a

satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço

nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de

cada País.

A questão premente está em definir o limite entre o que se sustenta como um caso extremo

e aquilo que não o significa. Deste modo, todos os membros das Nações Unidas possuem o

interesse primordial de manter os seus Estados independentes e as suas fronteiras intactas,

sem interferências nos seus assuntos internos, sendo que a grande maioria dos conflitos

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internos ou mesmo desentendimentos, acabam por se resolver sem a necessidade da

aplicação de medidas coercivas ou mesmo externas. A norma de não intervenção deve a

sua existência à manutenção da ordem interna, protecção do seu próprio Estado e governo,

das suas comunidades e culturas.

Contudo surgem situações em relação às quais a comunidade internacional tem o dever de

reagir quando a ordem de um Estado está extremamente fragilizada, quando o próprio

conflito civil põe em causa a segurança e os direitos básicos das suas populações ou ainda

quando a própria segurança internacional é posta em causa.

A soberania construída sob o pilar da não intervenção, resultado de um desdobramento

jurídico da norma de igualdade soberana entre os Estados levou a diversas práticas de

sujeição e políticas territoriais que terminam por afirmar as fronteiras de um Estado territorial

que se diz soberano.

A questão imperativa encontra-se na exactidão com que se classificam quais as situações

extremas que sugerem uma intervenção militar. E para esta precisão qual o nível de

violência imprimido às populações, a partir do qual se justifica uma intervenção. Qual o

limite?

Esta tem sido a questão que mais críticas têm suscitado dentro do contexto operacional,

sendo a questão fracturante no que concerne à efectiva implementação da R2P.

Em ambos os casos, acarreta consigo diferentes nuances e custos independentemente da

sua efectivação ou não, revelando-se assim importante para esta questão a análise de

vários casos e falhas operacionais que lhes são subjacentes:

De entre alguns dos casos, destacam-se:

i. Somália – Marcada sobretudo pelo facto do mecanismo utilizado se basear

sobretudo na intervenção militar em detrimento de todos os outros mecanismos.

Para além do seu planeamento e execução se terem revelado um insucesso, o custo

associado a perda de um elevado número de vidas humanas;

ii. Ruanda – A inacção do Conselho de Segurança perante a necessidade de mandar

uma operação de intervenção pautou-se pela indiferença. Esta inoperação

prejudicou não só Ruanda, mas também as populações dos grandes países

vizinhos. Os efeitos dos acontecimentos ainda hoje é sentida estando presente na

memória como um dos maiores genocídios da História. .

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iii. Kosovo - A Intervenção no Kosovo levanta até aos dias de hoje questões acerca da

legitimidade da intervenção militar no Estado soberano, relacionadas com o

pressuposto de terem sido esgotados todos os meios pacíficos, equacionando-se em

simultâneo se ao tentar melhorar, a intervenção não piorou as condições das vidas

humanas? Se os interesses políticos não foram postos à frente destas vidas

humanas? Se não teria tido um desfecho menos sangrento caso a North Atlantic

Treaty Organization (NATO) não interviesse, ou se por outro lado poderia levar a

uma guerra civil com um desfecho igualmente catastrófico?

iv. Bósnia - No ano de 1995, as Nações Unidas assim como outros membros da

comunidade Internacional falharam na protecção de dezenas de civis que tentaram

encontrar um porto seguro em Srebrenica.

A análise destas falhas em termos de acção e de inacção da comunidade internacional

permite, deste modo, estabelecer novas abordagens tendo em vista o sucesso e a

prevenção deste tipo de catástrofes. Deste modo, devem ser levados em consideração

determinados aspectos, nomeadamente, o cuidado no estabelecimento de procedimentos e

critérios mais claros aliados à escolha do mecanismo de intervenção. Para tal impera a

necessidade de consenso face ao momento de intervir, cumprindo no caso do uso da força

a equação dos pressupostos que a antecedem, entre eles, o esgotamento de todos os

outros mecanismos bem como a justificação associada ao cumprimento do propósito para o

qual se destina, salvaguardando sempre o principio de provocar o menor número de baixas

possíveis, intentando extinguir a causas do conflito com vista à obtenção e manutenção de

uma paz duradoura. Conforme refere o Kofi Annan no seu relatório de 2002 é chegada a

hora de “traduzir a retórica em medidas concretas”, pois “a adopção rápida de medidas, a

nível nacional, para remediar as situações que poderiam conduzir a um conflito armado,

com a assistência internacional, se for caso disso, pode ajudar a fortalecer a soberania dos

estados”. (Annan, 2002; Sovereignty, 2001).

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Conclusão

As inúmeras alterações produzidas pelos acontecimentos que marcaram o decorrer do séc.

XX, foram conducentes a significativos progressos no campo do desenvolvimento do direito

internacional consignado ao direitos humanos e à protecção dos civis, potenciado sobretudo

por meio das Organizações Internacionais.

A indivisibilidade da paz, o carácter colectivo da segurança internacional, e o afirmar dos

direitos humanos como valor máximo da humanidade, a par com a progressiva

adaptabilidade e absorção de matérias outrora pertencentes ao domínio reservado dos

Estados, faz crer que o Direito Internacional, através do Direito das Organizações

Internacionais, tenderá para a evolução; ainda que encontrando resistências no que respeita

à aceitabilidade quanto à delimitação ou redefinição dos princípios subjacentes ao conceito

da soberania clássica, absoluta e indivisível dos Estados. A ONU como representante da

comunidade internacional é em primeira e última instância o exemplo não só da evolução

observada até aos dias de hoje, como também o espelho das limitações e potencialidades

da crença desta evolução.

Mesmo perante os fracassos decorrentes da sua acção, não podemos deixar de referenciar

os sucessos alcançados pela mesma, ainda que substancialmente a observância dos

primeiros ofusquem os ganhos dos segundos.

Ainda que não se assuma como resposta efectiva para a resolução de todas as questões

teóricas e praticas que se colocam à intervenção com fins humanitários, relatório “

Responsabilidade de Proteger” foi conducente, em larga medida a uma maior abertura do

dialogo em torno do tema, constituindo-se como um importante avanço nesta área, e na qual

a ONU, através dos seus órgãos e baseada nos princípios da Carta, desempenha um papel

fundamental como meio apaziguador da tensão discursiva existente entre “direitos

humanos“ e “soberania”, por via da elaboração de uma nova abordagem e linguagem para o

humanitarismo associado á soberania.

Somente através da superação das reservas para com os princípios doutrinadores da R2P,

se pode avançar no sentido de uma maior produção normativa conducente à promoção e

garantia de uma justiça internacional aplicada à salvaguarda da vida humana, não obstante

toda a que até esta altura já se encontra vigente, expressa sobretudo nos Tratados

negociados e assinados em torno dos Direitos Humanos e na proibição e ameaça do uso da

força. À parte disto é inegável que o sucesso, evolução e efectivação da mesma só se

poderá manifestar, se por parte do Estados se obtiver um empenho e compromisso

genuínos, aliados a uma generalizada vontade politica para com os objectivos superiores

12

considerados como os da comunidade internacional em detrimento de eventuais interesses

particulares.

Para que a doutrina não se afigure somente a um discurso humanista de desenvolvimento

teórico é fundamental que a mesma seja conducente a uma acção cujo objectivo final e

primordial, seja o da implementação e operacionalização do conceito, livre de resquícios de

dúvida face à questão de se o envolvimento não “ contempla diferentes interpretações “ do

conceito, tendo em conta a dúvida da possibilidade de em alguns casos se agir em função

da protecção de eventuais interesses particulares dos Estados, principalmente dos cinco

membros permanentes do Conselho de Segurança detentores do poder de veto;

intensificando deste modo o decorrer do diálogo conducente a adopção de uma acção que

devido à importância e fragilidade do que visa proteger se quer célere e eficaz.

A natureza cada vez mais globalizada dos fenómenos que ameaçam a ruptura da paz e

seguranças mundiais, requerem que o conceito de soberania clássico seja adaptável às

exigências que se colocam, pressupondo que a invocação deste não seja fundamento válido

para a justificação da “indiferença” e “não acção”. Tal assume-se como um desafio à

capacidade dos Estados se unirem em torno de uma prática internacional solidária e

humanista que ultrapasse a abordagem até agora tida em consideração. Cabe aos mesmos

evitar que de futuro episódios como o Ruanda ou a Somália se voltem a repetir. Ainda que

de todo não se possam prever com a antecedência necessária os acontecimentos, os

mesmos não devem ser ignorados após a constatação das primeiras evidências. Para tal é

necessário que a intervenção não se baseie somente nas tradicionais operações de paz

levadas a cabo até aqui, que por muitas vezes se traduzirem numa acção no terreno já em

fase avançada do conflito, não permitem a abertura à possibilidade de emprego de outros

métodos de acção, menos intrusivos e com custos materiais e imateriais mais reduzidos.

Acima do conceito instituído de soberania, deverá prevalecer a responsabilidade associada

à soberania de cada Estado, transferida para a comunidade internacional no caso de se

registarem acontecimentos que violem os seus princípios.

Somente perante a defesa consensual e generalizada de valores conducentes à protecção

da vida humana em todos os seus aspectos e fragilidades é que se poderá imperativamente

ir de encontro ao fundamento e aos votos expressos aquando a criação da ONU, ou seja:

“ Nós, os povos das Nações Unidas, decididos:

a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma

vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade;

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a reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa

humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações,

grandes e pequenas;

a estabelecer as condições necessárias à manutenção da justiça e do respeito das obrigações

decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional;

a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de um conceito mais

amplo de liberdade;

e para tais fins:

a praticar a tolerância e a viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos;

a unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais;

a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será

usada, a não ser no interesse comum;

a empregar mecanismos internacionais para promover o progresso económico e social de

todos os povos;

Resolvemos conjugar os nossos esforços para a consecução desses objectivos.”

14

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