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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A CONSTRUÇÃO DO CUIDADO DO IDOSO COMO PROFISSÃO1
Guita Grin Debert2
Marcelo Daniliauskas3
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar o modo pelo qual a profissão de cuidador de idosos tem
sido construída no Brasil. Com base numa metodologia qualitativa, são analisados discursos de
ativistas dos direitos dos cuidadores e lideranças de associações de cuidadores. Trata-se de mostrar
os dilemas envolvidos na definição de um espaço que não se confunde como obrigações tidas como
próprias das mulheres na família e também da criação de uma área de atuação que delimite com
clareza as diferenças deste trabalho com o dos profissionais da enfermagem e dos empregados
domésticos.
Palavras-chave: cuidadores de idosos; associações de cuidadores; regulamentação da profissão.
Considerando que não se pode pensar no envelhecimento populacional sem levar em conta a
questão do cuidado e que as políticas relacionadas com o cuidado são resultado da dinâmica de
negociações sociais, o ponto de partida deste artigo é a consideração de que na análise das
dificuldades envolvidas na regulamentação da profissão de cuidador é preciso levar em conta os
impasses que as políticas públicas voltadas para o cuidado enfrentaram e enfrentam em outros
contextos nacionais.
O exemplo francês parece muito interessante para essa reflexão, particularmente, no que diz
respeito às políticas denominadas, se traduzidas ao pé da letra, de “serviços à pessoa”, em que o/a
cuidador/a domiciliar é uma das figuras centrais.
É importante lembrar, antes de mais nada, que só em 2011 a Organização Internacional do
Trabalho (OIT) tratou do trabalho doméstico, reconhecendo que esse/a trabalhador/a têm direitos
trabalhistas, como qualquer outro/a profissional4.
Na França, como mostram Hirata et al. (2012) a expressão “auxiliaire de vie sociale” – que
inclui diferentes tipos de trabalhadores/as domésticos/as, inclusive os/as cuidadores/as de idosos/as,
crianças e deficientes - foi institucionalizado, em 2002 com a introdução do Diplôme d’Etat
1 Pesquisa com apoio da FAPESP, processos nº. 2015/23455-9 e 2016/04642-5 e CNPQ pr. nº. 303756/2013. 2 Professora titular do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), membro do Conselho Científico do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu -
Unicamp e pesquisadora do CNPq e FAPESP. 3 Doutor em Sociologia da Educação (FE-USP) e assistente de pesquisa junto ao Núcleo de Estudos de Gênero Pagu -
Unicamp. Bolsista FAPESP. 4 The International Labour Organization Convention 189 on Decent Work as Domestic Workers, 2011.
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d’Auxiliaire de Vie Sociale, o mesmo ano em que “cuidador” aparece na Classificação Brasileira de
Ocupações (CBO). Naquele país há três modalidades de emprego de trabalhadores/as do cuidado e
domésticos/as: emprego direto, que estabelece um vínculo empregatício imediato entre um
particular e um empregado; mandataire, em que ocorre a intermediação de um organismo (embora
possa envolver o auxílio para, por exemplo, administrar o salário da empregada, o empregador é um
particular); e prestataire, quando o organismo é o patrão das trabalhadoras do care e domésticas
(administrando a mão de obra e a colocando à disposição do particular). A relação de emprego
direto é muito mais importante que as modalidades mandataire ou prestataire.5 Os órgãos
credenciados de serviços a pessoas têm, na França, cerca de 400 mil empregos assalariados, dos
quais apenas 41% sob a modalidade mandataire. As associações dominam o setor, mas as empresas
privadas manifestaram um forte crescimento ao longo deste período.
As políticas públicas voltadas ao setor de serviços à pessoa, de acordo com Florence Jany-
Catrice (2016), desenvolveram-se desde os anos de 1990 e principalmente depois de 2005, com o
chamado Plano Borloo, que tinha como objetivo inicial criar 500 mil empregos no setor. Como
justificativa essas políticas tinham, por um lado, sua capacidade de criação de novos empregos, por
meio da “externalização” de certo número de atividades de trabalhos realizados na esfera
doméstica; e, por outro lado, atender à demanda crescente de cuidados dado o aumento da
proporção de idosos, que corresponde hoje 17% da população francesa. É parte ainda destas
políticas o interesse em valorizar a mão de obra envolvida no trabalho doméstico.
A emergência das associações de cuidadores/as no Brasil só pode ser compreendida como
fruto de um contexto muito semelhante no que diz respeito à externalização de atividades antes
realizadas no seio da família, aumento do número de idosos dependentes e interesse na valorização
da mão de obra envolvida no cuidado. Contudo, essas políticas na França não propunham uma
separação clara entre as diversas atividades caracterizadas como trabalho doméstico e o cuidado de
pessoas dependentes.
Devetter et al. (2015) apresentam críticas pertinentes às políticas desenvolvidas no setor
naquele país. Consideram que somas enormes de recursos foram investidos para estimular a
demanda e estruturar a oferta. Em 2011, o valor estimado era de 17,6 milhoes de euros,
correspondendo a 1,1% do PIB e a Agência Nacional dos Serviços à Pessoa (Agence Nationale des
Services à la Personne) tinha um orçamento anual de cerca de 30 milhões de euros.
5 Para ver em detalhes a diferença entre mandataire ou prestataire consultar http://www.aide-et-compagnie.org/.
Acesso em 30/06/2017.
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O objetivo principal era democratizar o acesso à ajuda domiciliar para as pessoas
fragilizadas ou idosos dependentes e facilitar a contratação de empregados/as domésticos/as para os
casais economicamente ativos, mas de fato foram os setores mais abastados da população que se
beneficiaram dessas medidas, o que na opinião dos autores são frutos e exacerbam as desigualdade
sociais.6
Ao propor uma estruturação do setor, o objetivo era de combater o trabalho ilegal, mas o
que de fato ocorreu foi a criação de muitos intermediários sem que houvesse uma verdadeira
profissionalização desses trabalhadores e uma melhoria dos salários e das condições de trabalho.
Apesar da remuneração ser feita por hora trabalhada e o valor da hora ser superior a do
salário mínimo, a remuneração dos cuidadores permaneceu sendo muito baixa pelo fato de que o
trabalho em tempo parcial se generalizou no setor. A realidade do subemprego combinada à
inexistência de profissionalização, a insegurança ligada à multiplicidade de formas de emprego
doméstico, as condições precárias de trabalho tanto do ponto de vista físico, psicológico e também
em razão dos horários atípicos manteve a falta de reconhecimento social dessa atividade que
caracteriza o emprego doméstico como “trabalho sujo” por excelencia.
Para alguns analistas essas medidas tiveram o efeito benéfico no que diz respeito a
possibilidade de emprego, pois a questão monetária teve a vantagem de tornar visível as
dificuldades próprias do trabalho doméstico e as competências que são necessárias para realizá-lo.
A mercantilização, nesse sentido, permite a valorização de uma atividade tida como natural e
evidente.
Contudo, Devetter et al. (2015), pelo contrario, apontam para o mito da profissionalização
e da modernização do trabalho doméstico que marcou essas políticas. Consideram que do ponto de
vista social e econômico, o desenvolvimento deste setor está diretamente ligado à desigualdade
6 Hirata et al. (2012) mostram que são vários são os componentes das políticas públicas em relação ao desenvolvimento de
serviços às pessoas, especialmente aos idosos. “Subsídios para promover ajuda em domicílio já existiam desde a década de
1990, como, por exemplo, o “Cheque Emprego Serviço Universal” (Cheque Emploi Service Universel). O Cheque Emprego
Serviço Universal foi votado em 1991, permitindo que as famílias buscassem ajudantes em casa para cuidar das crianças, dos
idosos ou realizar serviços de limpeza doméstica, o que lhes facultaria redução no imposto de renda. A “Alocação
Personalizada de Autonomia” (APA) (Allocation Personnalisée d’Autonomie) criada em 2002 estabeleceu que qualquer
pessoa dependente com sessenta anos ou mais pode se beneficiar da APA; e o montante a receber varia de acordo com o grau
de dependência, a renda do beneficiário e o fato de residir em casa ou em instituição. (...) O Borloo, por sua vez, foi um plano
de desenvolvimento para os serviços às pessoas, (...). Uma consequência deste plano Borloo foi o crescimento do número de
empresas privadas autorizadas pelo governo (Gardin, 2008: 24). (...) O setor do voluntariado e as “organizações sem fins
lucrativos” (...) são também muito ativos na prestação de assistência aos idosos. Eles estão estruturados para realizar uma
verdadeira mediação entre os beneficiários do cuidado e os diferentes atores prestadores do serviço.”.
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social. O trabalho de um/a empregado/a doméstico/a só pode ser rentável na medida em que for
grande a diferença de salário e de outros rendimentos entre o empregador/a e o empregado/a.
Apesar da ajuda que o estado fornece para diminuir os custos da demanda7, a
disponibilidade de mão de obra é a questão chave, pois o estigma da servidão e do trabalho sujo está
ligada a essas atividades, evitadas por quem pode aceder a outras profissões. Os autores mostram
assim que os três dos objetivos voltados para a modernização das relações de trabalho doméstico de
fato não se concretizaram: a formalização da relação que deveria ser facilitada pela presença de
intermediários é ambivalente; essa presença não modificou as condições de emprego que são
fundamentalmente precárias; a democratização da demanda de fato não ocorreu porque o recurso a
esse tipo de serviço permaneceu sendo a de setores sociais com rendimentos mais altos; a
profissionalização apesar dos esforços envolvidos, acaba fracassando dada a dificuldade de
valorização de um trabalho tido como próprio de todas as mulheres, e gratuíto, um trabalho que
qualquer um poderia fazer.
Os autores no entanto apontam soluções que implicam a redefinição do trabalho de
cuidado, separando-o das diferentes atividades domésticas e chamando a atenção para as
responsabilidades coletivas de atender as necessidades das pessoas vulneraveis e que perderam sua
autonomia como os idosos dependentes, os portadores de deficiência e as crianças.
A separação do/a trabalhador/a doméstico/a - que abarca entre outros os trabalhos da
cozinheira, arrumadeira, faxineira, jardineiro e motoristas - do trabalho do cuidado é certamente
uma das pedras de toque das associações de cuidadores/as de idosos na luta pela profissionalização
desse/a trabalhador/a, e é para os dilemas e conflitos envolvidos nessa luta que este artigo se volta.
As associações de cuidadores/as no Brasil, processo de regulamentação da profissão e políticas
públicas
No Brasil, a construção da profissão de cuidador/a tem nas associações de cuidadores/as
um dos atores mais ativos na luta pelo reconhecimento e regulamentação dessa profissão, esta que
já consta na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO).
Para avançar na compreensão desse processo de regulamentação no Brasil, recorremos a
uma pesquisa que estamos realizando junto às associações de cuidadores/as, em particular às ligadas
aos cuidadores/as de idosos, mas não exclusivamente, de modo a compreender sua organização,
7 Crédito, exoneração de impostos, reduções fiscais.
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objetivos e forma como vêm intensificando sua articulação nos últimos anos, tal como sua
incidência junto ao poder legislativo e sua inserção no contexto das políticas públicas.
Atualmente, foram identificadas nove associações de cuidadores que se reuniram em torno
de uma articulação entitulada União Brasileira de Cuidadores (UNIBRACS) em 2016, cujo o
principal objetivo é a reinvidicação da regulamentação da profissão de cuidadores/as pelo
Congresso Nacional.
As entidades que compõem a UNIBRACS até o presente momento são: Associação
Caterinense de Cuidador Social (ACCS, SC), Associação Civil de Cuidadores de Idosos (ACCI)
(São José do Rio Preto, SP), Associação de Cuidadores de Idosos de Bragança Paulista (ACI-BP,
SP), Associação de Cuidadores de Idosos de Minas Gerais (ACI-MG), Associação de Cuidadores
de Idosos – Renascer (ACI-Renascer, Santa Maria, RS), Associação dos Cuidadores da Pessoa
Idosa, da Saúde Mental e com Deficiência do Estado do Rio de Janeiro (ACIERJ, RJ), Associação
dos Cuidadores de Campinas (ACUCA, SP), Associação dos Cuidadores de Idosos de Campinas e
Região Metropolitana (ACICAREM, SP) e Associação dos Cuidadores de Idosos da Região
Metropolitana de São Paulo (ACIRMESP, SP).
Em uma primeira análise do conjunto dessas entidades pode-se dizer que três se propõem
associações estaduais (ACCS, ACI-MG, ACIERJ), enquanto as outras seis se afirmam como de
caráter local.
A maioria, seis dentre elas, se dedicam mais especificamente ao cuidador de idosos e
outras três buscam lidar com a questão e profissionalização de cuidadores de modo mais amplo
(ACCS, ACIERJ e ACUCA), englobando cuidadores sociais, cuidadores de deficientes e da saúde
mental, por exemplo.
O perfil dessas entidades e de suas lideranças são um reflexo de uma pluralidade de
interesses em torno tanto do objetivo de regulamentação da profissião, bem como dos serviços
oferecidos pelas associações aos/às cuidadores/as.
A maioria das associações, seis delas, são encabeçadas por mulheres e três o são por
homens, sendo que pouco mais da metade são presididas por cuidadores/as em exercício e outras
quatro por pessoas ligadas a outras áreas profissionais como assistência social, enfermagem e
educação física.
Por um lado, verifica-se que a coordenação dessas associações se encontra
majoritariamente sob a liderança de mulheres cuidadoras, reflexo da realidade do público que
exerce a ocupação, e por outro, não se pode ignorar o interesse de outros/as profissionais no que diz
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respeito à demanda pela regulamentação da profissão e que compõem o quadro da diretoria das
entidades. Para compreender o que motivou a criação ou a participação das pessoas nas associações
foram indentificadas as seguintes situações mais frequentes: foram cuidadores/as formais ou
informais; tiveram dificuldades de inserção profissional no ramo ou precisaram contratar
cuidadores/as profissionais e relataram ter tido problemas para encontrar pessoal com formação
e/ou postura adequada à função; estiveram diretamente envolvidos/as na participação e/ou
promoção de cursos de formação de cuidadores/as; ainda fizeram parte de algum curso voltados ao
público idoso; trabalharam ou foram sócios/as em Instituições de Longa Permanência (ILPI), ou por
fim, em algum momento fizeram parte de conselhos de políticas para idosos. Foi, no entanto,
possível verificar que a questão de saber quem realmente pode ser membro da diretoria das
associações é um tema em disputa e para algumas entidades o fato de ser ou ter sido cuidador/a é
uma condição necessária.
As associações de cuidadores/as não possuem sede própria, sendo que algumas possuem
espaços alugados, cedidos ou compartilhados com outras instituições, e em algumas dentre elas as
articulações com membros associados são feitas por meio de celulares, emails, lista de discussão ou
grupos no Facebook e Whatsapp, prescindindo de um espaço físico e telefone fixos. O trabalho
desenvolvido pelas mesmas são exercidos majoritariamente por meio do voluntariado ou na melhor
das hipóteses contam com alguma ajuda de custo e os poucos recursos arrecadados são provenientes
de taxas de mensalidade ou anuidade cobradas pelas associações, que segundo as entrevistas, são
modestas e servem somente para uma manutenção mínima, esta muitas vezes relatada como
precária, cujos aportes principais muitas vezes são feitos por membros da própria direitoria e/ou
alguns associados/as mais envolvidos/as.
Três temas perpassam os objetivos, ações e serviços oferecidos por todas entidades:
formação do/a cuidador/a, assistência aos/às profissionais e ações para a regulamentação da
profissão. O envolvimento e modo de trabalho em cada um desses três eixos variam.
Algumas associações promovem cursos de formação, outras contribuem em cursos não
desenvolvidos por elas próprias ou ainda de uma certa forma analisam e certificam, informalmente,
a qualidade de cursos de formação realizados por outras instituições, verificando quais são
considerados “sérios” e “adequados” ao exercício da ocupação.
É também variável o modo como é realizada assistência ou como normalmente
mencionam ações para “cuidar do/a cuidador/a” que pode envolver espaços de diálogo entre
cuidadores/as e apoio de profissionais de psicologia e/ou terapia ocupacional - para que os/as
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cuidadores/as possam desabafar e refletir coletivamente sobre seus problemas no trabalho e terem
algum suporte na superação do estresse, cansaço físico e mental, conflitos com idosos ou famílias
considerados difíceis, bem como apoio em situações como o processo de luto em caso de
falecimento da pessoa cuidada.
Outro elemento é a assistência jurídica, seja na hora de decidir a forma e termos de
contratação, bem como suporte ao ter que iniciar dispustas jurídico-trabalhistas; e ainda
intermediação em uma colocação no mercado de trabalho. Algumas associações tem a inserção no
mercado no centro de suas ações e serviços, outras o fazem de modo mais pontual, na medida em
que existe uma demanda frequente de pessoas necessitando de cuidadores/as que recorrem às
associações em busca de uma indicação de profissional qualificado/a e de confiança.
Todas entidades acompanham o processo de reconhecimento nacional da profissão de
cuidadores/as, algumas mais ativamente e outras por intermédio de seus pares da UNIBRACS, mas
também foi observado a atuação e interesse na promoção de “micro-regulamentações” na legislação
sobre o exercício da ocupação em âmbito regional ou local.
É possível afirmar que apesar de compartilharem os três eixos anteriormente citados, a
forma como na prática lidam com eles são bastante variáveis de acordo com suas especificidades
locais e regionais, particularmente no que diz respeito ao perfil e dinamismo de seu mercado,
nomeadamente a oferta e demanda em relação ao serviço de cuidados; relação com outros parceiros
como instituções engajadas nas questões do envelhecimento e de outras situações de dependênica,
tal como com a oferta de serviços privados e políticas públicas ofertadas na localidade.
Dois principais desafios foram apontados como comuns a todas as associações: a)
encontrar e reunir os/as cuidadores/as, pois como a profissão não se encontra regulamentada, não há
um sindicato que necessariamente englobe a maioria desses profissionais, logo se encontram
“espalhados/as”, “dispersos/as”, sendo difícil ter acesso e dialogar diretamente com os/as
mesmos/as e quantificar com precisão quantos são os/as cuidadores/as que estão exercendo a
ocupação e qual seu perfil social, econômico e educacional, assim é um público difícil de ser
identificado, caracterizado, reúnido e alcançado para então poder promover ações voltadas a esse
grupo; b) avançar na regulamentação da profissão de cuidadores/as de idosos pelo legislativo
federal, processo que se estende desde meados de 2006 e até o presente momento inconcluso. A
regulamentação da profissão é condição legislativa necessária para a criação de sindicatos e as
associações consideram que a sindicalização forneceria recursos necessários para a manutenção de
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seus trabalhos, assim como para a unificação dos/as cuidadores/as em torno de uma classe
profissional.
Um terceiro desafio apontado, apesar de não unanimamente, foi o problema de
precarização e desvalorização na contratação de cuidadores/as intermediados/as por empresas, ou
até mesmo cooperativas, no qual a empresa recebe das famílias que buscam seus serviços um valor
bastante elavado em relação ao salário efetivamente repassado aos/às cuidadores/as e ainda sem
oferecer suporte jurídico, psicológico e profissional em caso de necessidade, além de formas de
contratação e termos dos serviços prestados bastante prejudiciais e desvantajosos ao exercício da
função.
Retomando o processo de formalização da articulação em torno da criação da União
Brasileira de Cuidadores, a UNIBRACS, um passo fundamental nesse sentido se deu no ano de
2016 durante o encontro de cuidadoers do estado do Rio de Janeiro8 com o tema “de Cuidador para
Cuidador” - Experiência e Ética no Cuidado & Protagonismo dos Cuidadores e que contou em sua
abertura com a fala de quatro representantes de diferentes associações de cuidadores/as, sendo elas
a ACIERJ, ACIRMESP, ACICAREM e ACIMINAS, e posteriormente uma mesa de debates que
além dessas entidades, englobou a participação da ACCS, segundo os relatos.
Nesse encontro reunindo presencialmente mais da metade das associações de
cuidadores/as do Brasil, se estabeleceu o acordo de fortalecer o intercâmbio entre as mesmas, e a
criação de uma plataforma comum de ação na demanda de reconhecimento e regulamentação da
profissão de cuidadores/as pelo Congresso Nacional. Além das associações ali reúnidas nesse
processo, outras quatro entidades passaram a integrar a UNIBRACS.
Em decorrência dos debates na ocasião do encontro citado, se até aquele momento as
entidades estavam apostando na aprovação do PL 4702/2012, que dispõe sobre o exercício da
profissão de cuidador da pessoa idosa, de autoria do Senador Waldemir Moka (PMDB/MS), a
plataforma comum reviu suas posições em relação aos novos desdobramentos legislativos
considerando o PL citado como “engavetado” e “moroso” e passou a considerar novas
oportunidades abertas em 2015 com o projeto que tramitava na Câmara dos Deputados, o PL
1385/2007 de autoria do Deputado Felipe Bornier (PHS/RJ), que dispunha sobre a regulamentação
da profissão de babá, mas que então sofreu substanciais alterações sob a relatoria da Deputada
Cristiane Brasil (PTB/RJ) junto à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) incorporando a
regulamentação de diversos setores do cuidado e se tornando um projeto de lei que “cria e
8 Desde 2012 é realizado anualmente um encontro estadual de cuidadores no estado do Rio de Janeiro, evento
promovido pela ACIERJ e que conta com o apoio e parceria de diversas outras instituições públicas e privadas.
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regulamenta as profissões de Cuidador de Pessoa Idosa, Cuidador Infantil, Cuidador de Pessoa
com Deficiência e Cuidador de Pessoa com Doença Rara”, parecer este aprovado e encaminhado à
Comissão de Assuntos Sociais do Senado e desde o final de 2016 sob a relatoria do Senador
Elmano Férrer (PMDB/PI) por meio do Projeto de Lei da Câmara CÂMARA nº 11 de 2016.
A relatoria da Deputada Cristiane Brasil incorporando a regulmentação de diversos setores
do cuidado foi recebida e avaliada positivamente por algumas das associações pelas seguintes
razões a) por ampliar o escopo de profissão de cuidadores/as, indo além da regulamentação
especificamente do/a cuidador/a de idosos, uma bandeira de ação de parte das associações-membro
da UNIBRACS; b) o PL mais abrangente, abriu margem para a inclusão de um maior número de
atores no apoio pela aprovação do novo PL editado; e c) a tramitação do projeto de lei em questão
foi aprovado com prioridade, respondendo também ao anseio de “desengavetar” o debate e a
aprovação da regulamentação da profissão, reascendendo o ânimo das entidades. No presente
momento essa se tornou a principal aposta legislativa pelas associações que compõem a
UNIBRACS.
Outras importantes parcerias junto às entidades de cuidadores/as são a Associação
Brasileira de Gerontologia (ABG) e a Associação Nacional de Gerontologia (ANG), essas entidades
estão se apoiando mutuamente pela regulamentação da cuidadores/as, mas também pela profissão
de gerontólogo/a. Estas duas últimas associações nacionais também possuem cuidadores/as em seu
quadro de associados/as e em alguns momentos também promovem atividades ou formações
conjuntas com entidades da UNIBRACS.
Ainda sobre desdobramentos e discussões do V Encontro de Cuidadores do Estado do Rio
de Janeiro e o processo de regulamentação da profissão de cuidadores/as, pode-se destacar a
publicização da articulação pela aprovação da lei, e posteriormente promulgada pela Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro - Lei Nº 7332 de 14 de julho de 2016, que estabelece normas para o
exercício da atividade profissional de cuidador de pessoa idosa, no âmbito do estado do Rio de
Janeiro, de autoria da Deputada Enfermeira Rejane (PC do B)9. A aprovação dessa lei estadual
estimulou que outras associações de cuidadores/as estudassem a possibilidade de realizar demandas
políticas semelhantes em seus respectivos estados.
Avançando na discussão sobre a relação entre as associações de cuidadores/as, a demanda
pelo reconhecimetno da profissão e políticas públicas, vale lembrar que esses/as profissionais
costumam figurar em número expressivo dentro das equipes multidisciplinares em diversos
9 Para um estudo detalhado dos antecedentes em torno desta lei ver Groisman (2015).
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equipamentos e serviços públicos, e muitas vezes também no setor privado, como nas ILPI, no
Programa de Acompanhamente de Idosos (PAI) e Centro Dia para Idosos10.
Por exemplo, no PAI, a composição do quadro técnico é formada por 1 coodenador com
formação em Serviço Social, 1 médico clínico, 1 enfermeiro, 2 auxiliares de enfermagem, 1 agente
administrativo, 10 Acompanhantes de Idosos (cuidadores/as) e 1 motorista; e no Centro Dia para
Idosos é composta por 1 gerente, 1 enfermeiro, 1 nutricionista, 1 psicólogo, 1 terapeuta
ocupacional, 1 assistente social, 1 cozinheira, 1 auxiliar administrativo, 10 cuidadores/as e 4
operacionais de limpeza. E ainda, além de ser o maior contingente, os/as cuidadores/as são os/as
profissionais que normalmente estão o maior tempo em contato direto com o público-alvo do
serviço/equipamento.
Em suma, a depender se a profissão é ou não regulamentada, bem como o seu teor, ela
passará a exercer influências sobre o perfil de contratação, nível de escolaridade exigido,
reconhecimento/padronização dos cursos de formação de cuidadores/as e assistência e proteção
trabalhista e social oferecidas, consequentemente afetando o quadro de funcionários/as, tal como o
funcionamento e prestação de serviços públicos ou privados e que envolvem majoritariamente
cuidadores/as, que são os/as profissionais mais constantes na relação direta com as pessoas
dependentes nos serviços citados.
Por fim, retomando o que foi dito anteriormente, as associações de cuidadores/as estão
direta ou indiretamente envolvidas em cursos de capacitação de cuidadores/as e frequentemente
estabelecem parcerias para sua realização junto ao poder público, instituições de educação públicas
e privadas como universidades e outros órgãos, e eventualmente também dialogam com os
conselhos de políticas públicas, como por exemplo os conselhos do idoso - dentre outros, tendo
alguma influência sobre a arquitetura, divulgação e funcionamento desses serviços e políticas.
Dilemas das Associações e os mitos da profissionalização e modernização; à guisa de conclusão.
Como mostram Debert e Oliveira (2015), a regulamentação da profissão de cuidador/a
enfrenta um duplo desafio. Encontrar, por um lado, um espaço profissional que delimite com
clareza as fronteiras dessa atividade, de modo a não confundi-la com as atividades de outros/as
profissionais que operam em áreas paralelas, como aqueles ligados/as à enfermagem; e, por outro,
10 Os nomes dos programas e políticas públicas como PAI e Centro Dia se referem à realidade praticada no município
de São Paulo e os números apresentados podem variar dependendo da localidade do equipamento. A nomenclatura,
oferta e estrutura desses serviços e políticas também variam de acordo com a implementação estadual e municipal nas
diferentes cidades e regiões brasileiras.
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dar dignidade a esse/a trabalhador/a, evitando que suas funções se confundam com a de empregada
doméstica, profissão tida no nível mais baixo na escala das profissões. A emenda constitucional
sobre o/a trabalhador/a doméstico/a (EC nº 72/2013) garantiu a esse setor uma série de novos
direitos e afetou os debates em torno da profissão de cuidador/a, na medida em que
automaticamente garantiu ao/à cuidador/a doméstico/a um conjunto de direitos que antes lhes era
negado. As associações interessadas na alocação desses/as profissionais em domicílio enfrentam,
portanto, dificuldades de mobilizar esse/a trabalhador/a que passou a gozar de novos direitos.
Um tema em debate quando a profissionalização do/a cuidador/a entra em pauta, como
mostram as autoras, é o que diz respeito aos requisitos necessários ao exercício da profissão,
particularmente a escolaridade mínima e a formação do/a profissional. Como tratar os indivíduos
que com um mínimo de escolaridade vêm exercendo há anos o trabalho de cuidado? Como
estabelecer um diferencial entre as atividades de cuidado e o trabalho das empregadas domésticos se
um nível educacional mínimo não for exigido do/a cuidador/a? Como garantir uma formação
específica que não seja confundida com o trabalho de técnicos/as e auxiliares de enfermagem?
As dificuldades de estabelecer critérios claros de como deveria ser a formação do/a
cuidador/a se somam a outros dilemas que as associações enfrentam e que o exemplo francês
mostra que exige um cuidado especial.
Qual é o papel da associação na relação entre o/a empregador/a e o/a cuidador/a,
particularmente no que diz respeito ao trabalho doméstico? Como oferecer serviços capazes de
evitar a proliferação de empresas que se beneficiam do trabalho do/a cuidador/a? Como garantir a
sobrevivência das associações se a condição de serem transformadas em sindicatos lhes for negada?
Como combater o trabalho ilegal e garantir bons salários e condições de trabalho? E, sobretudo,
como evitar que o/a cuidador/a se transforme num privilegio dos setores mais abastados da
sociedade?
A luta pela regulamentação da profissão deve se somar à reivindicação de outros recursos
capazes de estimular a demanda e estruturar a oferta dos serviços.
Na França somas enormes de recursos foram investidos pelas organizações
governamentais para estimular a demanda e estruturar a oferta. Porém, vimos que a
profissionalização e a modernização do setor são mitos que não impedem a precarização do/a
trabalhador/a, como ocorreu no caso francês.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Referências bibliográficas
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The construction of "senior caregiver" as a profession
Abstract: The aim of this paper is to analyze how the profession of “senior caregiver” is being
shaped in Brazil. Drawing from qualitative methodologies, this analysis is based on interviews with
caregivers' rights activists and organizers of caregivers' associations. Additionally, this paper
explores dilemmas involved in defining a work space that cannot be confused with the assumed
women´s family obligation, and with the work of nursing professionals or domestic workers.
Keywords: Senior caregivers; Elderly caregiver associations; regulation of the profession.