resistÊncia e revoluÇÃo no teatro: arena conta movimentos...

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MICHELE SOARES RESISTÊNCIA E REVOLUÇÃO NO TEATRO: ARENA CONTA MOVIMENTOS LIBERTÁRIOS (1965-1967) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em HISTÓRIA, da Universidade Federal de Uberlândia, como pré-requisito para a obtenção do grau de Mestre. Linha de Pesquisa: História e Cultura. Orientadora: Profª Dr.ª Rosangela Patriota Universidade Federal de Uberlândia - UFU Uberlândia – MG FEV/2002

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MICHELE SOARES

RESISTÊNCIA E REVOLUÇÃO NO TEATRO:

ARENA CONTA MOVIMENTOS LIBERTÁRIOS

(1965-1967)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em HISTÓRIA, da Universidade Federal

de Uberlândia, como pré-requisito para a obtenção

do grau de Mestre. Linha de Pesquisa: História e

Cultura.

Orientadora: Profª Dr.ª Rosangela Patriota

Universidade Federal de Uberlândia - UFU Uberlândia – MG

FEV/2002

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BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

Uberlândia, ____ de ____________ de 20___.

Resultado:_________________________________________________

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Esta dissertação é dedicada à Regina e Natal

(meus pais), Patrícia e André (meus irmãos).

E ao amor de sempre de Felícia (minha avó –

in memorian).

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AGRADECIMENTOS

Esta dissertação jama is seria realizada sem a participação de outras pessoas.

Como em tudo na vida não poderia construí- la sozinha. É um estudo que é resultado,

objetivamente de dois anos de pesquisa. No entanto, sabemos que há elementos – às

vezes, bastante subjetivos – indispensáveis para a sua elaboração e que nos

acompanham há anos, formando-nos pessoal, social e intelectualmente. E são as pessoas

com quem convivemos e que fazem parte de nossa história de vida, que são os agentes

no processo de formação do que somos, trazendo até nós estímulo, solidariedade, afeto,

companheirismo. Por isso, neste momento gostaria de agradecer às pessoas que de

diversas maneiras colaboraram com este trabalho.

Meus agradecimentos iniciais são para a Prof.ª Dr.ª Rosangela Patriota, por

quem possuo profunda admiração, pois com seu trabalho estimula meu compromisso

com as questões sociais e meu amor pelo teatro brasileiro, e que me acompanhando,

nessa trajetória, com extrema sabedoria e generosidade, torna um privilégio ser sua

orientanda.

Ao Prof. Dr. Alcides Freire Ramos, sou eternamente grata pela “co-

orientação” que acontecendo de maneira informal foi um inestimável e prazeroso

aprendizado. Posso dizer que não foram raras as vezes que nossas, nem tão freqüentes,

conversas acabaram com minhas angústias diante da tela do computador. Como disse

Brecht: “algumas pessoas são imprescindíveis”.

À Profª. Dr.ª Regma Maria dos Santos cujas críticas e sugestões durante o

Exame de Qualificação foram valiosos para o andamento e finalização do trabalho.

Aos meus pais, Regina e Natal que são e sempre serão minha base. Terão

eternamente meus aplausos e minha admiração pela coragem com que lutam para que

possamos realizar nossas atividades. O envolvimento, com apoio e afeto foram

fundamentais.

Aos meus irmãos, Patrícia e André, pelo carinho, pelas brincadeiras, pela

confiança...

Aos amigos Carlito e Ana, pelo estímulo e por tê- los como significativos

interlocutores e companheiros no ideal e na luta cotidiana de fazermos, em um lugar de

condições tão adversas, uma arte conseqüente, atuante e comprometida com o social.

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À Márcia Duarte, professora e amiga, por sua disposição em me ajudar, sua

vivacidade e solidariedade. Pela companhia valiosa, em nossas “idas e vindas”.

A todos os meus professores do curso de Histór ia do Instituto Superior de

Ensino e Pesquisa – ISEPI / UEMG que, numa atitude generosa, compreenderam

minhas ausências, devido à minha condição de mestranda.

Aos meus amigos do Grupo Meca e aos alunos da Escola de Teatro

Vianinha, que vêem me acompanhando nesse momento de dúvidas, angústias,

ansiedade com paciência, carinho e assumindo tarefas que deixei nesse período de

afastamento.

Aos meus colegas da graduação, em especial à Sirley, Elaine e Kênia, por

compartilhar comigo o cansaço, os desabafos, as expectativas, os lanches...

Por último, mas não menos importante, aos colegas do NEHAC, que sempre

me recebem com afeto e alegria, ingredientes indispensáveis para prosseguirmos. Ao

lado de todos que não citarei, mas que estão em minha memória, gostaria de agradecer

ao Marcos Henrique, pelas inteligentes e divertidas conversas e à Thaís, pela gentileza e

companheirismo com que sempre me atendeu, ou melhor, “socorreu”.

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Somos profissionais

não vamos agredir

agredir não é fácil, mas transfere responsabilidades

viemos aqui cumprir a nossa missão

a de artistas

não a de juízes de nosso tempo

a de investigadores

a de descobridores

ligar a natureza humana à natureza histórica

não estamos atrás de novidades

estamos atrás de descobertas

não somos profissionais do espanto

para achar a água é preciso descer terra adentro

encharcar-se no lodo

mas há os que preferem olhas os céus

esperar pelas chuvas

ODUVALDO VIANNA FILHO

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RESUMO

Resistência e Revolução no Teatro: Arena conta Movimentos Libertários

(1965-1967) é um estudo que, a partir da interpretação das peças Arena conta Zumbi

(1965) e Arena conta Tiradentes (1967), objetiva compreender a historicidade dessas

obras, ou seja, de que modo os artistas (autores, diretores, atores) se inseriram nos

debates e lutas de sua época. Para tanto, estaremos desenvolvendo um diálogo

interdisciplinar entre duas bibliografias específicas: a produção historiográfica relativa à

pesquisa e a referente à area de atuação, o que nos permitirá compor um quadro acerca

dos aspectos socio-políticos e cultural da década de 60. Neste sentido, tratando-se de

manifestações artísticas que não só buscaram compreender e representar as

circunstâncias históricas vivenciadas, mas também intervir, através da conscientização

de grupos sociais, na transformação da sociedade, podemos analisar períodos recentes

da nossa história, que são aquelas que dizem respeito, por um lado, à posição de artistas,

intelectuais e militantes da esquerda diante da ditadura militar, e por outro, à construção

de uma cultura de oposição, formada pelo engajamento artístico e que foi a base da

resistência democrática desenvolvida no momento. Por isso esses textos são aqui

pensados como documentos de luta, constituídos em um lugar específico e em um dado

momento, por sujeitos que possuem suas referencias teóricas e ideológicas, suas opções

estéticas que são políticas e históricas. Diante de tais questões, preocupamo -nos em não

nos situar como advogados de acusação ou de defesa, mas respeitá-las, o que nos levou

a uma reavaliação do quadro interpretativo, traçado pelas produções acadêmicas, a

respeito do trabalho desse grupo teatral. Entendemos, a partir de nosso estudo, os

musicais do Arena como resposta aos impasses enfrentados por seus agentes no campo

da luta política.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO----------------------------------------------------------------------------------- 9

CAPÍTULO I – INTERPRETAÇÕES ACERCA DO ARENA E

DE SEUS MUSICAIS --------------------------------------------------- 17

CAPÍTULO II – ARENA CONTA MOVIMENTOS LIBERTÁRIOS:

ESTRUTURAS E PROPOSTA TEMÁTICA--------------------- 46

“ARENA CONTA ZUMBI” ---------------------------------------------------------46

“ARENA CONTA TIRADENTES” -------------------------------------------------62

BRECHT E BOAL: UM DIÁLOGO ABERTO -------------------------------------72

O TEMPO DOS MUSICAIS: A ARTE ENGAJADA NA

RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA--------------------------------------------------79

CAPÍTULO III – A HISTORICIDADE DO TEATRO DE ARENA –

A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DE OPOSIÇÃO--- 84

CONCLUSÃO ------------------------------------------------------------------------------------ 111

BIBLIOGRAFIA--------------------------------------------------------------------------------- 116

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INTRODUÇÃO

Este estudo pretende contribuir com as reflexões sobre a

interdisciplinaridade História e Teatro, buscando desvendar as possibilidades de

conexão entre a realidade histórica e a ficção, a arte e a sociedade. Partindo do

reconhecimento e compreensão do teatro, não apenas como meio de entretenimento,

mas também como meio de denúncia, advertência, conscientização, propomos analisar

manifestações artísticas sem perder de vista a historicidade inerente a elas. E dentro

dessa perspectiva evidenciar a obra de arte, em especial, a arte cênica, como documento

histórico capaz de elucidar o aspecto social e político de uma sociedade num

determinado momento, sabendo que se trata apenas de fragmentos da história desta

sociedade. Isso nos permitirá descobrir as possibilidades de análise histórica que essa

documentação nos oferece, dialogando com diversas outras fontes documentais.

No século XIX já havia historiadores que trabalhavam com objetos

artísticos. Segundo Langlois e Seignobos: “as concepções, em si mesmas, são meros

fatos psicológicos; mas a imaginação não cria seus objetos; toma sempre da realidade

os elementos que os constituem. As descrições de fatos imaginários são feitos com os

fatos exteriores que o autor observou em torno de si. (...) Já houve quem se utilizasse de

obras literárias, poemas épicos, romances e peças de teatro, para esclarecer períodos e

fatos de documentação minguada, assim procedendo, também em relação à antigüidade

e à determinação de usos da vida privada. O processo não é ilegítimo, desde que se

subordine a várias restrições, que, infelizmente, estamos sempre sujeitos a esquecer”1 .

Todavia, com o surgimento dos Annales, especialmente, a partir das décadas

de 60/70, “a história começa a se interessar por virtualmente toda a atividade

humana”2 , ampliando o olhar do historiador para diversas manifestações culturais, tanto

as elaboradas quanto as do cotidiano. A preocupação dos Annales “com toda a

abrangência da atividade humana os encoraja a ser interdisciplinares, no sentido de

aprenderem a colaborar com antropólogos sociais, economistas, críticos literários,

psicólogos, sociólogos, etc.”3. Outra questão é a que se refere ao tema de novos objetos,

como as manifestações artísticas e culturais. Não que a utilização dessas fontes sejam

1 LANGLOIS, Ch. V. & SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos Estudos Históricos. São Paulo: Renascença, 1946, p. 135-136. 2 BURKE, P. (org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 11. 3 Ibidem, p. 16.

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novas como centro de pesquisa histórica, ao contrário, é uma prática de longo tempo,

porém é novo “o fato de seus profissionais serem agora extremamente numerosos e se

recusarem a ser marginalizados”4, por acreditarem que não se pode mais ignorar a

possibilidade de pesquisa histórica na ligação arte sociedade, cultura e história. Esse

crescente interesse dos historiadores pelo campo da cultura, justifica as pesquisas que se

baseiam em objetos artísticos e diversas representações.

Tomando essas diversas manifestações como objeto de investigação,

evidencia -se que “os documentos deixam de ser vistos como portadores de evidência de

verdade; eles passam a ser entendidos como documentos de luta, isto é, elaborados em

um dado momento e em lugar específico, por alguém ou por um grupo. Carregam

princípios, posicionamentos e traduzem uma determinada percepção do momento

vivido. Diante destes novos questionamentos a introdução de novos temas, novos

objetos e novas abordagens no universo da pesquisa histórica tornou-se, plenamente,

legítima e, dentro destas aspirações, procurou-se pensar em denominada produção

artística como documento de pesquisa”5, o que possibilitou a conexão História e Teatro.

Assim, por meio das peças Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta

Tiradentes (1967), musicais encenados pelo Teatro de Arena de São Paulo, pretende-se

discutir questões pertinentes ao contexto político e social dos anos 60. Estabelecendo

um diálogo contínuo entre estas peças, o movimento teatral brasileiro e o momento

histórico, buscaremos contribuir para as reflexões sobre a historicidade do texto teatral.

A escolha de tais peças não se deu aleatoriamente, pois nasceu seguindo o movimento

que norteia o conjunto da obra. Os textos estão inseridos num mesmo contexto de

ditadura militar, arte engajada, movimento de resistência e renovação estética. Além de

trabalharem com figuras históricas, que coordenaram movimentos de libertação e

independência. Daí a importância de se trabalhar a historicidade dessa dramaturgia,

entendendo que ela surge do encontro de d uas temporalidades: a época em que o enredo

está inserido e que as peças são escritas. Dessa forma, poderemos perceber como os

dramaturgos Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri fazem a relação passado-presente

em suas obras e qual é a leitura que o Arena faz da realidade de seu momento. Como

assinala Chartier, “a história cultural, (...) tem por princípio identificar o modo como

4 Ibidem, p. 19. 5 PATRIOTA, Rosangela. O NEHAC e as suas perspectivas da Pesquisa Histórica. C DHIS, Uberlândia, v. 11, n. 7, 1994.

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em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,

pensada e dada a ler.”6

A partir destas questões, este trabalho está vinculado à linha História e

Cultura por pretender analisar diferentes aspectos que compõem o real – social, político,

cultural – de um determinado período – ditadura militar – através de um objeto artístico

– o texto teatral – além de propor discutir as relações história e ficção, arte e sociedade.

Obras que constituem um movimento de arte engajada, que possui seu código próprio,

porém não deixando de ser arte, pois não perde sua dimensão estética. “A História

Social (...) nem furta à arte o sentido do prazer ou do belo, nem nega-lhe uma vocação

política, mas propõe uma discussão em torno da relatividade de cada obra, ou seja,

tenta estabelecer mediações entre o nível estético e as instâncias políticas, econômicas

e sociais”7. Procurando evidenciar que seu conteúdo e sua forma são determinados pelo

processo histórico da época, ou seja, evidenciar a historicidade do texto teatral e o

processo histórico, presente na discussão da peça, que busca conscientizar o povo de sua

situação histórica, seus problemas, sua realidade, percebemos “uma outra categoria de

fontes privilegiadas (...) que é constituída pelos documentos literários e artísticos.

História não de fenômenos ‘objetivos’, porém da representação desses fenômenos,

história que se alim enta dos documentos do imaginário ”8. Como bem aponta Ginzburg,

todo documento é precioso para o historiador, até mesmo um documento contra, dá

pistas para a pesquisa.9

Partimos do princípio básico de que toda obra artística está ligada a

sociedade, que traz em si marcas da realidade. Ou ainda: o texto teatral é a expressão

dessa realidade, a representação de uma luta política de um grupo. É a reflexão crítica

sobre esse real e seus problemas, já que o artista é um ser humano que vive numa dada

cultura de uma época específica e a cultura se dá no contato social, como assinala

Ginzburg. 10 Nesse sentido, os espaços de luta e resistência são diversos, podendo se

situar na cultura, na arte.

Sob esse aspecto, Oduvaldo Vianna Filho comenta: “A arte nasce na

6 CHARTIER, R. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro/Lisboa: Bertrand Brasil Difel, 1990, p.16. 7 CONTIER, A. D. Arte e Estado: Música e Poder na Alemanha dos anos 30. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, v.8, n.15, set.87/fev.88, p. 109. 8 LE GOFF, J. As mentalidades: uma história ambígua. In: LE GOFF, J. & NORA, P. (orgs.). História: novos objetos. 2ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, p. 76. 9 GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia das Letras, 1987. 10 Ibidem.

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sociedade. No momento em que os sentidos juntam os dado imediatos da percepção –

percebendo sua estrutura, relacionando-a a abstrações, a representações que já possui,

a sentimentos que já possui – nasce a arte. É o conhecimento que cria sentimentos

complexos – representações de alto nível de abstração – que – servindo e partindo da

realidade concreta que o homem define para sua existência – volta sobre ela,

modificando-a. A realidade é a objetivação de todas as potências do ser humano. E é

na realidade, no mundo exterior ao homem, que a vida humana está ligada. É sobre ela

que se atiram nossas representações e sentimentos. Arte e conhecimento não podem se

separar – existem se interagindo. É o conhecimento que permite que nossa ação sobre

os fenômenos da realidade seja cada vez mais adequada. (...) A arte para mim é a

transmissão de vivências, emoções, relações, representações e valores, que se incluem

no aparelho imediato com que enfrentamos a realidade – desenvolvendo nossa

capacidade de reagir sobre ela, nossa capacidade de inteligi-la e representá-la. Arte

não é útil – porque não ligada à produção de bens materiais, não pode transmitir

conceitos, nem pode definir e formar atitudes diante de fenômenos isolados – mas se

inclui na cultura do homem, no seu aparato imediato com que representa os fenômenos

sociais – determinando suas aspirações, sentimentos, e criando as formas de ação com

que representa e apreende esta realidade. A arte coordena e desenvolve as

necessidades objetivas de representação do mundo que determinadas épocas e classes

têm da realidade. ”11

Outro ponto, porém, não de menor relevância, é a questão do documento,

que sempre foi de grande importância, na tradição historiográfica. Diante do

documento, independente de sua posição, cria-se uma postura para com a pesquisa e

para o papel do historiador. Este deve buscar “investigar como este objeto foi

produzido, tentando reconstituir sua razão de ser ou aparecer a nós segundo sua

própria natureza, ao invés de determiná-lo em classificações e compartimentos

fragmentados, pelo que ‘não é’, e por estar ‘fora do lugar’, ou por ter nascido

‘tardiamente’. E, finalmente, entender a objetividade como o ato de fazer emergir a

trama das relações que tecem a síntese histórica que é o objeto, não uma coisa abstrata

(separada) e observada a distância pelo investigador, mas algo que, ao mesmo tempo,

11 PEIXOTO, F. (org.). Vianinha: teatro – televisão – política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 66-67.

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contém (e participa de) uma exposição do real histórico, tanto o real do passado

quanto do presente.”12

Nessa perspectiva, são de extrema importância as observações do

historiador Robert Paris, que trabalha com a pesquisa em história a partir de textos

literários: “a primeira dificuldade, aliás é de ordem literária. À diferença do seu colega

que exuma uma peça inédita de arquivo, o historiador aqui, não é nunca o primeiro

leitor do documento. Ele aborda esse documento através de uma escala, um sistema de

referências, uma ‘história da literatura’, que já separou o joio do trigo hierarquizando

as escritas, as obras e os autores. Portanto, é necessário, sem ocultar o valor estético

das obras, lhe creditar ‘a priori’ uma igual carga documental sujeita à verificação

posterior.”13 O autor demonstra, nessa passagem, que os objetos artísticos são

documentos portadores de determinadas especificidades, o que traz algumas

dificuldades que precisam ser superadas para se perceber a historicidade desses objetos.

Texto valioso e que muito nos orienta no desenrolar da pesquisa é Vianinha,

um Dramaturgo no Coração de Seu Tempo, de Rosangela Patriota. A autora, através da

obra de Oduvaldo Vianna Filho, investiga o momento cultural e político brasileiro, além

de resgatar o significado teatral e histórico da obra do dramaturgo. Alerta para a

necessidade de se ampliar a leitura nesse tipo de trabalho, enfrentando “a proposta de

estudo interdisciplinar que articula História e Teatro, sobretudo com o objetivo de

pensar o texto teatral como documento da pesquisa histórica”14, e para isso, levanta

importantes considerações metodológicas para quem pretende percorrer esses caminhos.

Evidencia a historicidade do texto teatral, discutindo “momentos de nossa história

contemporânea à luz da dramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho, partindo do

pressuposto de que a produção estética e, neste caso particular, a dramaturgia são

momentos constituintes do processo histórico”15 Ao trabalhar a relação História e

Teatro, aponta que ela se torna possível, porque “todas as manifestações, artísticas ou

não, são políticas. Elas podem ser diferenciadas pelos níveis de engajamento, mas não

por meio de divisões esquemáticas como ‘político’ e ‘não-político’”16

12 MARSON, A. Reflexões sobre o procedimento histórico. In: SILVA, M. A. da (org.). Repensando a História. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984, p. 49. 13 PARIS, R. A Imagem do operário no século XX pelo espelho de um ‘Vaudeville’”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo/Rio de Janeiro. ANPUH/Marco Zero, v.8, n.15, set.87/fev.88, p.84. 14 PATRIOTA, R. Fragmentos de Utopia (Oduvaldo Vianna Filho – um dramaturgo lançado no coração de seu tempo). São Paulo. Tese de Doutorado. FAFICH – USP. 1995, p. 09. 15 ____________. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p. 19. 16 Ibidem, p. 20.

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A historicidade da obra já era evidenciada por Ginzburg, em O Queijo e os

Vermes17, quando colocou que o romance Gargantua e Pantagruel de François Rabelais

serviam para Bakhtin analisar a cultura popular medieval, o modo que os homens

constrõem relações sociais, através da cultura e a circularidade cultural,

impossibilitando então pensar cultura de forma estanque, dissociada de seu contexto

histórico. E a melhor maneira de analisar os textos é “transportar-se ao próprio terreno

onde foi recolhida a obra, onde ela foi concentrada e interpretada.”18

A partir dessas evidências, acreditamos que seja fundamental contextualizar

os musicais do Arena, seu momento de confecção e apresentação, já que, tendo sido

determinados pelo contexto histórico, são a representação da conjuntura política,

inclusive dos impasses vividos pela esquerda brasileira no pós-64. Além de abordar

temas como repressão, tortura, liberdade, justiça, democracia, independência nacional, a

partir dos quais, pretendiam instigar o espectador para a tomada de posição contrária ao

novo regime imposto. Assim, trabalharemos as peças como resultado de um

determinado momento histórico, inserido no âmbito das relações sociais, com todas as

suas implicações de dominação, reação, resis tência, diferentes comportamentos;

encaradas como documentos de luta, de resistência ao regime militar e que possui,

portanto, o discurso de um determinado grupo em uma época específica. Para isso,

propomos um diálogo interdisciplinar, relacionando-os com outros documentos de seu

período, já que não está isolado, não é absoluto e sim a representação do real, quer

dizer, a visão da realidade filtrada por um sujeito que tem suas referências teóricas e

suas experiências sociais.

Dessa forma, torna-se imprescindível, como já foi dito, circunstanciar o

momento, já que perder a historicidade do trabalho do Arena e dos autores/diretores

Boal e Guarnieri, levando em consideração a forma como estes se inseriram nos debates

e lutas da época, é perder de vista toda a dimensão estética e política de suas obras.

Aqui pegamos emprestado o conceito sobre contextualização elaborado por Alcides

Freire Ramos: “o processo de contextualização nada mais é do que uma construção,

uma operação intelectual, fruto do trabalho do próprio historiador em contato com

documentos históricos. (...) De qualquer maneira (...) mão devemos ter em mente a

possibilidade de recobrir tudo, de esgotar as possibilidades. Por isso, as

17 GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia das Letras, 1987. 18 BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 2ed. São Paulo/Brasília: HUCITEC/Ed. da UNB. 1993, p. 50.

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descontinuidades, as fissuras, lapsos, etc., que constituem este contexto devem ser

incorporados, ao invês de escamoteados mediante artifícios. Contextualizar, portanto, é

buscar estabelecer novas significações para o objeto, analisando, justapondo,

comparando ou contrapondo diferentes documentos históricos. E tudo isso é, como

sabemos há bastante tempo, o produto de escolhas, muitas vezes arbitrária. No entanto,

não menos válida”19 .

Dessa maneira, é pertinente observar que “nossas mentes não refletem

diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de convenções, esquemas e

estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra. Nessa situação,

nossa percepção dos conflitos é forjada por uma apresentação de pontos de vista

opostos do que por uma tentativa de articular um consenso”20. A opção pelo objeto – o

texto teatral – no âmbito da História Cultural, confirma nossa identificação com as

reflexões de historiadores da cultura, para quem “os homens constrõem relações sociais

através da cultura”21 e a resistência ocorre de diversas maneiras. O tema se justific a

pelo pressuposto de que “ ‘real’ e ‘imaginário’ não podem ser separados, mas também

que seria inútil atribuir a um ou a outro desses termos a função privilegiada de

referencial ou de fundamento”2 2.

Este estudo foi organizado em três capítulos, sendo que o primeiro deles,

intitulado “Interpretações acerca do Arena e de seus musicais”, preocupa-se em fazer

um levantamento historiográfico do Arena, para analisarmos como a produção

acadêmica, que parte de pressupostos teóricos e estéticos estabelecidos a priori, muitas

vezes externos a proposta da companhia, e que aceita a periodização formulada por

Augusto Boal, que por sua vez, elide os acontecimentos históricos do processo,

apresenta o grupo e o localiza na História do Teatro Brasileiro. Daí ser fundamental o

questionamento sobre o lugar em que essas interpretações sobre o Arena são feitas, já

que, diversas vezes, estruturam sistematizações a partir de uma carga valorativa a

respeito da obra, preocupando-se em aprovar ou desaprovar suas opções e não em

função de que elas são assumidas, o que permitiria recuperar a multiplicidade estética e

política que permeou a trajetória do grupo e não como transparece em muitos trabalhos,

19 RAMOS, A. F. O Canibalismo dos Fracos: História/Cinema/Ficção – um estudo de “Os Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Almeida). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História) – FFLCH, USP, p. 179-180. 20 BURKE, P. (org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 15. 21 GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia das Letras, 1987. 22 PARIS, R. A Imagem do Operário no Século XX pelo espelho de um “Vaudeville”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo/ Rio de Janeiro. ANPUH/Marco Zero, v.8, n.15, set.87/fev.88, p. 84.

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a idéia de que houve um único projeto, construído linearmente e que perpassou todos os

sujeitos dessa história.

O segundo capítulo, “ ‘Arena conta Movimentos Libertários’: estrutura e

proposta temática”, tem como função central analisar a estrutura dramática de cada

peça, discutindo sobre o processo de criação dos textos, as questões que motivaram sua

confecção, as opções estéticas que são também históricas e políticas e os temas

desenvolvidos no texto. Em resumo, “não é apenas a obra que é preciso interrogar ou

questionar: é também a prática artística, da qual esta obra é o produto. O que nela lê

(...) é o relacionamento do autor com o processo de produção: sua aceitação dos

antigos modos de representação do real ou sua vontade de descobri-los novamente, sua

adesão a uma certa ordem artística (que é também uma ordem social) ou sua vontade

de transformá-la”23 .

O terceiro capítulo, “A historicidade do Teatro de Arena – A construção de

uma cultura de oposição”, é dedicado à análise crítica dos comentários, sendo estes

depoimentos de integrantes do Arena, que deixam vir a tona as diferentes perspectivas

políticas e ideológicas congregadas no interior da companhia, além da relação direta

com os fatos históricos. Através do estudo desse material, objetivamos demonstrar

como toda a trajetória do Arena está em consonância com o golpe de 64 e que não foi

um projeto único e linear, mas que abarcou uma multiplicidade de pensamentos,

trazendo para o debate a situação política e cultural da época que determinou sua

produção, bem como as posições e lutas nas quais os mesmos e o grupo estavam

envolvidos. Partimos de uma questão fundamental em nosso trabalho: considerar os

autores como agentes no processo histórico e pensar os textos como documentos

construídos nos embates políticos do momento.

Dessa forma, propomos discutir historicamente a produção do Arena,

respeitando suas opções teóricas e ideológicas, pois acreditamos que, por meio desse

procedimento, seja possível recuperar os impasses vividos pelos intelectuais e artistas de

esquerda e pela própria esquerda, que se encontrava fracionada; os debates e lutas do

período, nos quais o grupo e os autores estiveram inseridos, como sujeitos atuantes,

agentes na construção do contexto histórico. Para isso, procuraremos enfrentar a

proposta de estudo interdisciplinar que articula História e Teatro, pensando as diversas

possibilidades que as manifestações artísticas oferecem para a pesquisa histórica.

23 DORT, B. O teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 341-342.

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CAPÍTULO I

INTERPRETAÇÕES ACERCA DO ARENA E DE SEUS MUSICAIS

“Que erro? Deu errado o quê? Estava dando tão certo que precisou ser cortado pelas pessoas a quem não interessava que desse certo. O processo cultural, o teatro , especificamente, foi interrompido. Na medida em que as coisas começaram a se tornar explícitas, começaram a se tornar perigosas, porque provocavam a discussão, a polêmica. Então veio o silêncio, impuseram o silêncio. Veio um ataque de cima, isso sim. E se até hoje o teatro brasileiro possui essa imagem de resistência cultural, isso nasceu de onde? Vem de quê? Vem de todo esse processo de busca e pesquisa, acertos e erros, mas de consciência crítica viva” (Gianfrancesco Guarnieri). “Os documentos que descrevem ações simbólicas do passado não são textos inocentes e transparentes; foram escritos por autores com diferentes intenções e estratégias, e os historiadores da cultura devem criar suas próprias estratégias para lê -los. Os historiadores sempre foram críticos com relação a seus documentos – e nisso residem os fundamentos do método histórico” (Lynn Hunt)

Buscando discutir alguns aspectos da realidade sócio-cultural da década de

60, no Brasil, propomos uma abordagem das manifestações artísticas do momento, já

que eram movimentos interessados em representar e discutir a realidade, objetivando

uma intervenção nos problemas vividos pela sociedade.

Nesse sentido, tomaremos o Teatro de Arena 24 (1953-1970 / SP) como base

para resgatar momentos de nossa história, especificamente o período da ditadura militar,

pois nossa pesquisa está centralizada no momento da confecção dos musicais, sendo

eles Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes (1967), já que este é um grupo

que sempre se pautou na concepção da arte como meio de luta política, instrumento

24 “Fundado por jovens formados pela primeira turma da Escola de Arte Dramática (EAD), de São Paulo, o Arena teve esta denominação devido à escolha do palco. De acordo com o diretor José Renato, a leitura do livro Theatre in the round (Margot Jones) fora fundamental para esta decisão, porque destacava as facilidades e as vantagens, principalmente econômicas, do ‘palco em arena’”. (PATRIOTA, R. História, Memória e Teatro: A Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: MACHADO, Maria C. T. &

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capaz de conscientizar o homem de seu papel de agente transformador da sociedade.

Sua história é a representação da mediação entre arte e realidade histórica, o que

fundamenta um exercício de interdisciplinaridade e de historicidade da obra artística.

Procuraremos neste capítulo perceber como vem sendo reconstruída a

história do Arena e como vem sendo constituída a sua historiografia, nos diversos

trabalhos acadêmicos que o tem como objeto de investigação. No entanto, acreditamos

ser importante iniciarmos pela teorização de Augusto Boal (diretor do grupo, de 1956 a

1970, ano em que foi exilado), que é tomada como base pelas interpretações

historiográficas confeccionadas a posteriori.

Junto com a intensa criação artística (peças, direção de espetáculos, criação

do Seminário de Dramaturgia, do Laboratório de Interpretação, da Feira Paulista de

Opinião), Augusto Boal sistematizou suas reflexões e análises sobre o processo do

Arena, tornando-se, inclusive, referência teórica, política e artística sobre o trabalho do

grupo. Em seu livro Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, no capítulo “Etapas

do Teatro de Arena de São Paulo”, percorre as atividades desse mesmo, estabelecendo

uma periodização que passa a ser adotada como base para as posteriores investigações e

produção historiográfica sobre o trabalho do grupo. Para tal, parte do pressuposto de

que os elencos nacionais dividem-se em “clássicos” e “revolucionários”:

“São clássicos não os que montam obras clássicas, mas os que procuram desenvolver e cristalizar um mesmo estilo através de seus espetáculos. (...) Já o Teatro de Arena elabora a outra tendência, a do teatro revolucionário (...) o seu desenvolvimento é feito por etapas que não se cristalizam nunca e que se sucedem no tempo, coordenada e necessariamente. A coordenação é artística e a necessidade social.”25 A partir disso, periodiza as atividades do grupo em quatro etapas, numa

tentativa de localizar a posição do Arena no teatro brasileiro. São elas: Primeira Etapa –

“Não Era Possível Continuar Assim”; Segunda Etapa – “A Fotografia”; Terceira Etapa

– “Nacionalização dos Clássicos”; Quarta Etapa – “Musicais”; como se uma fechasse

naturalmente a outra.

PATRIOTA, Rosangela (orgs.). Política, Cultura e Movimentos Sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia, UFU, 2001. P.172). 25 BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.188.

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Então sob essa perspectiva linear, em 1956, o Arena iniciava sua “fase

realista”, como primeira etapa, que assim se caracterizava, para Boal, por significar um

não respondido ao teatro praticado até o momento2 6. Naquele ano,

“(...) o panorama paulis ta era dominado pela estética do TBC, teatro fundado – e quem o disse foi seu fundador – entre dois copos de whisky, para orgulho da ‘cidade que mais cresce’. Feito por quem de dinheiro para quem também o tivesse. Luxo indiscriminado cobrindo Gorki e Goldoni. Teatro para mostrar ao mundo: ‘aqui também se faz o bom teatro europeu. On parte français. Somos província distante, mas temos alma do Velho Mundo’. Era a nostalgia de estar distante, mas alegria de fazer quase igual. O Arena descobriu que estávamos longe dos ‘grandes centros’ mas perto de nós mesmos – e quis fazer um teatro para quem estivesse perto. Perto de onde? De sua platéia. Quem era? Bem, aqui vem outra história. Quando surgiu o TBC, em nossos palcos estavam os divos, atores-empresários, que em si centralizavam todo o espetáculo, majestosamente pisando num pedestal de supporting-casts e ‘N.N.’. As platéias eram impedidas de ver os personagens, já que as estrelas se mostravam, prioritariamente, idênticas a si mesmas, em qualquer texto. Eram poucas as estrelas e já tinham todas sido vistas. A platéia fartou-se e abandonou-as.”27 Assim, um público mais politizado, farto das encenações abstratas, ricas na

estética, porém distantes da vivência do brasileiro, desejava encenações que fossem de

encontro à realidade.

“o Arena devia responder com peças nacionais e interpretações brasileiras. Porém, peças não havia. Os poucos autores nacionais de então preocupavam-se especialmente com mitos gregos. Nelson Rodrigues chegou a ser ovacionado com a seguinte frase, que consta da orelha de um dos seus livros: ‘Nelson cria, pela primeira vez no Brasil, o drama que reflete o verdadeiro sentimento trágico grego da existência’. Estávamos interessados em combater o italianismo do TBC, mas não ao preço de nos helenizarmos. Portanto, só nos restava utilizar textos modernos realistas, ainda que de autores estrangeiros. O realismo tinha, entre outras vantagens, a de ser mais fácil de realizar. Se antes usava-se como padrão de excelência a imitação quase perfeita de Guielgud, passávamos a usar a imitação da realidade visível e próxima. A interpretação seria tão melhor na medida em que os atores fossem eles mesmos e não atores.”28

26 O grupo de maior destaque no momento era o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), fundado em 1948 por Franco Zampari. Trata-se de uma companhia de teatro que, tendo em seu elenco diretores estrangeiros como Adolfo Celi e Ziembinski, contribuiu para a profissionalização das artes cênicas no Brasil, para o aperfeiçoamento do trabalho do ator, do cenográfo e do diretor. Além da atualização do re pertório dramático que privilegiava sobretudo autores estrangeiros, como Tennesse Williams e Pirandelo, embora o TBC, mais tarde sob influência do próprio Arena, também tenha encenado brasileiros como Jorge Andrade. A companhia acabou em 1964. Para maiores informações sobre o TBC consultar: GUZIK, A. TBC: Crônica de um Sonho. São Paulo: Perspectiva, 1986. 27BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 188-189. 28 Ibidem, p. 189.

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Nesse momento, no Arena, criou-se o Laboratório de Interpretação, onde

Stanislavski29 foi estudado intensamente, em busca de uma interpretação mais brasileira,

no sentido de quebrar a que existia, que era simbólica – adotada pelo TBC,

caracterizado pelo exagero e gestos pré-estabelecidos – e assumir uma que fosse

sinalética, verdadeira, na encenação de peças como: Ratos e Homens de John Steinbeck,

Juno e o Pavão de Sean O’Casey, Os Fuzis da Senhora Carrar de Bertolt Brecht

(embora esta venha mais tarde, pertence esteticamente a esta etapa), entre outras.

Em 1958, com a encenação de Eles não usam black -tie de Guarnieri, inicia -

se a Segunda Etapa, denominada “A Fotografia”, que durou quatro anos (1958-1962) e

lançou jovens autores, como: Oduvaldo Vianna Filho (Chapetuba Futebol Clube),

Roberto Freire (Gente como a Gente), Edy Lima (A Farsa da Esposa Perfeita), Augusto

Boal (Revolução na América do Sul), Francisco de Assis (O Testamento do

Cangaceiro), Benedito Ruy Barbosa (Fogo Frio ). Na análise de Boal,

“O estilo pouco variava e pouco fugia do fotográfico, seguindo demasiado de perto as pegadas do primeiro êxito da série. Eram as singularidades da vida o principal tema deste ciclo dramatúrgico. E esta foi a principal limitação: a platéia via o que já conhecia. Ver o vizinho no palco, ver o homem da rua, ofereceu de início grande prazer. Depois, todos perceberam que podiam vê-los fora do palco sem pagar entrada. (...) Esta fase necessariamente deveria ser superada. Suas vantagens foram imensas: os autores nacionais deixaram de ser considerados ‘venenos de bilheteria’, já que quase todos obtiveram imenso êxito; entusiasmados pela existência de um teatro que só apresentava autores nacionais, muitos aspirantes converteram-se em dramaturgos, contribuindo com suas obras para a formação d e um teatro mais brasileiro e menos mimético. Porém, a desvantagem principal consistia em reiterar o óbvio. Queríamos em teatro mais ‘universal’ que, sem deixar de ser brasileiro, não se reduzisse às aparências. O novo caminho começou em 63.”3 0

Então, para Boal, a excessiva identificação entre palco e platéia poderia se

constituir no maior obstáculo para a fruição do espetáculo, uma vez que o que estava

sendo mostrado no palco já era conhecido pelo público. Assim, a partir dessas

29 Constantin Stanislavski (1863-1938) foi teórico de teatro, ator e diretor russo, foi o criador de um conjunto de pressupostos e “técnicas” para o desempenho do ator que ficou conhecido como método de interpretação. Sua finalidade era estimular o ator a “incorporar” a personagem o máximo possível, a fim de “vivê-la”. Stanislavski foi o fundador do Teatro de Arte de Moscou, em 1898, que teve entre seus colaboradores fixos Anton Tchecov – que escreveu “As Três Irmãs” (1901) e “O Jardim das Cerejeiras” (1903) especialmente para a companhia. Para maiores informações ver: STANISLAVSKI, C. A preparação do Ator. 11ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. / KUSNET, E. Ator e Método. São Paulo: HUCITEC, 1992. 30BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 192.

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“limitações”, o grupo encerra este ciclo e dá início à Terceira Etapa – “A

Nacionalização dos Clássicos”, em 1963, sendo visto pelo autor como um processo

“natural” de fechamento de algo que finalizou um período. Essa nova fase define-se

pela montagem de textos estrangeiros, em especial, “aqueles considerados como

clássicos pelo pensamento ocidental.”31 Foram eles A Mandrágora de Maquiavel

(1962), O Noviço de Martins Penna (1963), O Melhor Juiz, O Rei de Lope de Vega

(1963), O Tartufo de Molière (1964), O Inspetor Geral de Nicolai Gogol (1966).

Alguns desses foram encenados fora da etapa, mas estão ligados a ela pela proposta

estética. Consistia em interpretar os textos em função do momento histórico do presente,

dos fatos políticos do Brasil, ou seja, uma ênfase em algum aspecto da peça que fosse de

encontro aos problemas nacionais. A “nacionalização” das obras era feita de acordo

com as perspectivas sociais do momento. Essa foi uma etapa importante, sobretudo,

pela prática da analogia que se torna decisiva nos musicais realizados pós-64.

“Esta etapa oferecia, de início, alguns problemas importantes, entre eles o de estilo. Muita gente acreditava que a montagem de peças clássicas seria o retorno ao TBC, e assim não se dava conta do alcance, bem mais distante, do novo projeto. Quando montávamos Molière, Lope ou Maquiavel, nunca o estilo vigente desses autores era proposta como meta de chegada. Para que se pudesse radicar no nosso tempo e lugar, tratavam-se esses textos como se não estivessem radicados à tradição de nenhum teatro de nenhum país. Fazendo Lope não pensávamos em Alejandro Ulloa, nem pensávamos nos elencos franceses, fazendo Molière. Pensávamos naqueles a quem nós queríamos dirigir, e pensávamos nas inter-relações humanas e sociais dos personagens, válidas em outras épocas e na nossa. Claro que chegávamos sempre a um ‘estilo’ – porém nunca aprioristicamente. Isto nos dava a responsabilidade de artistas criadores e nos retirava os limites da macaqueação. (...) ainda no terreno interpretativo, outra ênfase foi deslocada. Cada vez mais passou ao primeiro plano a interpretação social. Os atores passaram a construi seus personagens a partir das relações com os demais, e não a partir de uma discutível essência. Isto é, os personagens passaram a ser criados de fora para dentro. Percebemos que o personagem é uma redução do ator e não uma figura que paira distante e flutua até ser alcançada por um instante de inspiração. Mas redução de que ator? Cada ser humano forma seu próprio personagem na vida real: ri da sua maneira própria, anda, fala, cria vícios de linguagem, de pensamento, de emoções: o enrijecimento de cada ser humano é o personagem que cada um cria para si mesmo. Porém, cada um é capaz de ver, sentir, pensar, ouvir, emocionar-se mais do que o faz no dia -a-dia. Uma vez libertado o ator de suas mecanizações cotidianas, estendidos os limites de sua percepção e expressão, este ator, assim liberto, reduz suas possibilidades àquelas exigidas pelas inter-relações nas quais desenvolve seu personagem.”32

31 Patriota, Rosangela. História, Memória e Teatro: A Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: MACHADO, Maria C. T. & PATRIOTA, Rosangela (Orgs.). Política, Cultura e Movimentos Sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia, UFU. p. 187. 32 BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.194-195.

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Para Boal, desenvolvida mais essa etapa, ficava clara a necessidade de se

buscar outra proposta, pois se a etapa da “Fotografia” restringia-se demais na análise

das singularidades, por outro lado esta limitava-se à síntese de universalidades. O

diretor, coloca que era necessário tentar a síntese. Assim, passa-se para a Quarta-Etapa –

“Musicais” – onde Boal procura dar “unidade” ao processo do Arena, já que era um

período que propunha a destruição das convenções teatrais que se apresentavam como

obstáculos ao desenvolvimento estético das artes cênicas. Dessa forma,

“procurava-se mais: contar uma história não da perspectiva cósmica, mas sim de uma perspectiva terrena bem localizada no tempo e no espaço: a perspectiva do Teatro de Arena, e de seus integrantes. A história não era narrada como se existisse autonomamente: existia apenas referida a quem a contava.”33

Assim, como já dissemos, tomando como ponto de partida essa teorização

de Augusto Boal, foram realizadas diversas pesquisas acadêmicas, tendo o Teatro de

Arena como objeto de estudo, buscando analisar seu projeto estético e político e definir

seu lugar no cenário teatral brasileiro. Estudos foram elaborados no decorrer das últimas

décadas, com diferentes referenciais teóricos e que devem ser consultados quando o

tema é o mesmo. Porém nos restringiremos aos trabalhos que discutem os musicais da

companhia, objeto de nossa pesquisa.

A ênfase no texto está presente no estudo de mestrado de Sonia Goldfeder,

Teatro de Arena e Teatro Oficina – o Político e o Revolucionário, concluído em 1977,

que estabelece comparação entre as realizações destes dois grupos, centrando-se nas

peças Arena conta Tiradentes e O Rei da Vela 34, com o objetivo de determinar o papel

que desempenharam no processo artístico e histórico em que estão inseridos, tendo

como referência os conceitos de “teatro político e “teatro revolucionário”.

Para tal análise, a pesquisadora apóia-se em formulações desenvolvidas por

Brecht e que estão presentes em sua obra, opondo-as ao teatro de Piscator35, que visava

33 Ibidem, p. 196. 34 O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, encenada pelo Teatro Oficina (SP), em 1967, com direção de José Celso Martinez Corrêa. 35 A diferença entre Erwin Piscator (1893-1965) e Bertolt Brecht (1898-1956) se dá essencialmente no seguinte ponto: “Piscator quer mostrar tudo. Quer mostrar a História que se faz, como e por quem ela é feita. Por exemplo, montando Rasputin , utiliza a segment-buhne, isto é, um palco hemisférico com planos múltiplos; no centro, Rasputin age e fala, e à sua volta, em alturas diferentes, desenrolam-se ações paralelas que envolvem as principais personagens da Europa. Brecht, por sua vez, pretende inicialmente nos mostrar a relação entre o homem, entre um homem e a História – não nos expor toda esta História. Para ele, há, de um lado, a vida individual deste homem e, do outro, a História: cabe ao espectador efetuar o vaivém entre os dois e extrair daí a moral, a sua moral.” (DORT, Bernard. O Teatro e a sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p.286.)

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colocar em cena os problemas e soluções para a classe operária, levando-a a exaltação e

agitação, para uma tomada de decisão e não apenas uma atitude reflexiva. Isso criaria

uma relação de comoção com a platéia, para que esta fosse convencida pela paixão e

para isso, segundo Goldfeder, o encenador utilizava-se largamente da figura do herói

positivo. Ao contrário, Brecht combate o abandono do nível artístico em detrimento do

discurso político, pois não se trata de simplificar a realidade, e sim mostrá-la em sua

contradição, em sua imperfeição, propondo “um teatro da consciência, não da ação; do

problema, não da resposta; como toda linguagem literária, serve para formular, não

para fazer”3 6.

Nessa perspectiva, para a autora, manifestação artística revolucionária é

aquela “implicada não na recolocação de uma ordenação social já falsa, já em

decadência, mas sim em denunciar a crise desta maneira (e portanto a crise deste real),

propiciando novas linguagens que se coadunem com o verdadeiro processo de

transformação social”37 . Ou seja, um teatro que leve o espectador à dúvida, ao

questionamento e que não subordine o estético ao político. Porém, acreditamos que não

dá para pensar a relação estética-política de forma estanque, já que eles estão

imbricados, pois um discurso comprometido com a transformação da realidade socio-

política, necessita de uma forma inovadora.

Centrarnos-emos à análise que a autora faz sobre o Tiradentes, apesar de

que percorre a história de alguns espetáculos do Arena, em que discute o seu projeto

estético e ideológico, colocando-o como o grupo impulsionador das mudanças mais

intensas pelas quais passou o teatro brasileiro, especialmente a partir de 1958, ano da

montagem de Eles não usam black-tie, que se insere no projeto de “nacionalização do

teatro” e que caracteriza-se como “bandeira de luta”, na medida em que promove uma

tradição de “teatro político” no país e inaugura uma nova fase no teatro nacional.

No que se refere a esse momento dos textos nacionais, a autora parte da

perspectiva de que ele se traduz em uma visão idealizada das classes oprimidas, porém

com o episódico se sobrepondo ao político, já que é o primeiro que conduz a ação

dramática, recorrendo ao acontecimento político, que irá definir o comportamento dos

principais personagens, pondo em discussão seus valores, aspirações e sua moral. Além

36 ECO, Umberto. Apud: GOLDFEDER, S. Teatro de Arena e Teatro Oficina – O Político e o Revolucionário. Campinas, 1977. Dissertação (Mestrado e Ciência Política) – Depto. de Ciências Sociais – IFCH/UNICAMP, p. 6. 37 GOLDFEDER, S. Teatro de Arena e Teatro Oficina – O Político e o Revolucionário. Campinas, 1977. Dissertação (Mestrado e Ciência Política) – Depto. de Ciências Sociais – IFCH/UNICAMP, p. 13.

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de sobressaltar um esquema maniqueísta entre o bom e o mau, o autêntico e o falso, que

reforça a função didática do texto. A autora chama a atenção para o fato de que todo o

discurso do Arena, se apoia em um tratamento de “idealização” da realidade e

composição do personagem heróico, positivo, representativo do “povo”, aqui

compreendido como classe operária, reforçando a mensagem didática do texto.

Já no momento seguinte, a nacionalização dos clássicos, centra-se na

encenação para analisá- lo, pois nesse momento ela teria sido privilegiada, numa visão

que incorporava o artístico enquanto forma, demonstrando uma reordenação da função

social do teatro e da formulação estética no grupo, porém sem abandonar as

problemáticas sociais. Goldfeder aceita a periodização estabelecida por Augusto Boal,

atribuindo o surgimento dessa nova etapa à tentativa de manter o Arena, que sofria com

o esgotamento da produção de textos nacionais, bem como com a ruptura no grupo, que

levou à saída de alguns integrantes, como Oduvaldo Vianna Filho, Flávio Migliaccio,

Nelson Xavier. Não era, ressalta a autora, uma resposta aos problemas vividos pela

sociedade no momento. Contudo, considera essa uma das melhores fases do grupo, em

que o projeto estético se põe à frente do ideológico e que se consegue “um

amadurecimento nas formas de interpretar. Os personagens são construídos a partir

das relações que mantém entre si e não à partir de uma discutível essência; enfatiza-se

dessa forma a interpretação social em oposição a uma interpretação psicológica dos

personagens”38. A base dessas encenações seria a sátira que, agindo sobre a moral, os

costumes, exerceria seu papel de crítica social.

Sônia Goldfeder evidencia que a segunda fase (Fotografia) localizava a

singularidade, enquanto que a terceira (Nacionalização dos Clássicos) apontava para a

universalidade, ainda numa interpretação calcada nas ponderações de Augusto Boal.

Dessa forma, era preciso buscar a síntese que representava um retorno à perspectiva do

teatro, pensando a realidade imediata, só que agora tendo o estético em função do

político.

Partindo daí, para Sônia Goldfeder, Zumbi é a retomada da proposta de ter

como protagonista do espetáculo o “povo”, retornando ao teatro que reflita e pense a

realidade do momento. Ressurge também a idealização do real: “os negros são

concebidos por Boal e Guarnieri como indivíduos valentes, fortes, líricos, sensuais. Os

brancos arrasam, pisam, esfolam, roubam, matam. E surpreendentemente os brancos

38 Ibidem, p. 121.

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vencem”39. Assim, o personagem positivo elaborado nas peças da “fase nacional”, como

um indivíduo comum mas digno, bom caráter, agora, em Zumbi e Tiradentes, toma a

dimensão de herói “cuja imagem positiva já é aceita a priori, isto é, já pertence ao

repertório do público; estas ‘imagens’ sofrem uma reelaboração que vem a reboque de

uma atualização histórica – transforma-se o ‘herói’ do passado, inserido no

conhecimento comum, em um personagem que responde às necessidades de um

processo atual de atuação no real”4 0, o que enfatiza uma composição maniqueísta e

didática, que serão, segundo a autora, os pontos de maior crítica na época de sua

montagem, além do discurso político que se sobreporá ao episódico, em função dessa

mesma proposta. Por exemplo, na personagem Tiradentes, essa heroicização se daria na

visão lúcida, objetiva e realista que possui da situação, ao contrário do caráter

intelectualizado, oportunista e individualista dos demais inconfidentes. E a didatização

do teatro poderia ser vista no estilo de interpretação, na introdução da música, do

narrador, o caráter explicativo do discurso entre outras. Nesse sentido, a autora

questiona a eficiência desse recurso como forma de esclarecimento das relações sociais

e “explicitação das formas ideais de luta”41.

Sônia Goldfeder trabalha de modo a acentuar a maneira como o discurso

político é utilizado na dramaturgia do Arena. No primeiro momento, a recorrência a ele

se dava de forma indireta, servindo ao episódico; enquanto nos musicais ele ganha

autonomia, subordinando a fábula. Dessa maneira, a autora considera a fase de

“nacionalização dos clássicos” como melhor momento da companhia que, em sua visão,

sobrepõe o projeto estético ao ideológico.

Partindo desse raciocínio, Goldfeder qualifica o Arena como não

revolucionário, por sua concepção de engajamento que “condiciona de forma irrestrita

o sentido de refiguração do real projetado nas montagens ”42 que apresentam verdade

prontas e acabadas, expondo soluções, não dando margem à reflexão pelo espectador à

formulação de respostas para os problemas, o que acabava por obscurecer a realidade

social. E nesse ponto, enfatiza ainda que toda renovação estética surge em função do seu

projeto ideológico: “o compromisso político acaba por superar o compromisso com a

própria, regimentando a criação e transformando-se mais em um meio do que um fim

39 Ibidem, p. 127. 40 Ibidem, p. 148. 41 Ibidem, p. 46.

42 Ibidem, p.228.

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em si. Realizam, (...) um TEATRO POLÍTICO; seu projeto artístico, porém, não se

coloca como ‘revolucionário’”43. Para a autora, teatro revolucionário é aquele que,

“centralizando seu projeto na crítica à sociedade constituída, cerca-se de uma visão

mais fiel da realidade”44 para denunciar suas contradições, levando o espectador à

reflexão, além de romper com os valores antigos da arte. Um teatro que, ao contrário,

represente a realidade a partir de seu projeto ideológico e encare a criação como meio

de luta, não será nunca vanguarda. Então, político seria aquele que trata de uma

temática social, de forma objetiva e direta, servindo-se do estético (que vem deficiente)

para suas formulações ideológicas, simplificando a realidade representada.

Fica claro que a autora faz restrições ao trabalho do Arena, em especial aos

musicais, pela explicitação de seu conteúdo político e ideológico, considerando que o

teatro não é capaz de, por si mesmo, promover a transformação da sociedade. Diz

reconhecer o uso que se pode fazer dele como arma de conscientização, mas que deve

ser visto apenas como mais um elemento numa luta mais ampla.

Dentro dessa discussão, em que a autora parece confundir ou restringir o

conceito “político”, torna-se pertinente o esclarecimento que Rosangela Patriota faz em

relação a este tipo de restrição, que segundo ela “são associadas a interpretações que

acreditam que os trabalhos engajados são superados pelo tempo, ao passo que os que

(pretensamente) não se comprometem com o seu presente podem almejar a perenidade.

No entanto, a defesa desta opinião elidiu um aspecto importante da discussão: o fato de

não assumir publicamente posição e perspectivas de análise não significa em absoluto,

ausência deles. Ao contrário, o que não ocorre é a não-revelação dos princípios que

nortearam a elaboração da obra. Assim, torna-se plenamente justificável afirmar que,

por excelência, todas as manifestações, artísticas ou não, são políticas. Elas podem ser

diferenciadas pelos níveis de engajamento, mas não por meio de divisões esquemáticas

como ‘político’ e ‘não-político’ (grifo nosso)”45.

Em 1978, a revista Dionysos lança um número especialmente dedicado ao

Teatro de Arena. Nele a crítica Mariângela Alves de Lima, em um artigo intitulado

“História das Idéias”, registra, cronologicamente, o essencial da trajetória da

companhia, através de informações colhidas em programas de teatro, periódicos,

43 Ibidem, p.232. 44 Ibidem, p.228. 45 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p. 19-20.

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depoimentos e fotos, e discute seu projeto estético, sem perder de vista as circunstâncias

históricas a que está vinculado.

Para a autora, a dinamização do centro cultural irá postular ao Arena o papel

de modificador das coordenadas teatrais. Isso traz a preocupação em formar um público

e captar novos contingentes para a atividade teatral.

Essa preocupação será melhor atendida com a criação do Seminário de

Dramaturgia, em resposta do Arena a essas preocupações, que despertam nos

integrantes do grupo a necessidade de criação de uma dramaturgia nacional, que lhes dê

as temáticas que desejam pôr em cena:

“o Arena se compromete com a invenção de uma dramaturgia enraizada na história do país. É dessa história, ‘enquanto acontece’, que o grupo vai extrair os textos que precisa para reanimar um trabalho que estava próximo a um ponto de estrangulamento. Precariamente pode-se denominar o trabalho de Arena, a partir de Black -tie, como uma linha de nacionalismo crítico. Isso porque o nacionalismo, nesse caso, não tem conotação estreita de um ufanismo da coisa própria. Não se pode, portanto, desvincular o nacionalismo da crítica, na avaliação do trabalho do Arena.”46 Nesse sentido, para a autora, Eles não usam black-tie, de Guarnieri,

encenada em 1958, irá determinar o rumo dos acontecimentos posteriores do Arena,

evidenciando a viabilidade artística de um comprometimento entre a obra teatral e a

história, os fatos presentes. Juntamente com essa transformação no campo da

dramaturgia, surge a necessidade de revolucionar a cena. Começa então a pesquisa do

“gesto brasileiro”, na elaboração do espetáculo, de forma a evidenciar no personagem a

maneira de agir do povo brasileiro. Essa busca leva à formulação de diversos cursos de

voz, expressão corporal, interpretação, além do estudo teórico.

A partir da cronologia proposta por Boal, a autora discute a passagem dessa

segunda fase – da procura do herói nacional, para a de “nacio nalização dos clássicos”,

que considera a etapa de menor êxito e que teria se dado pela dificuldade de construção

desse tipo de herói, que exige tempo integral do autor, o que não era possível no Arena,

já que todos estavam envolvidos nas atividades do grupo, levando a uma interrupção na

elaboração da dramaturgia, além da busca de reformulação estética, que começava a

surgir, instigada por uma insatisfação com os textos produzidos que, muitas vezes,

subordinavam a comunicação artística com o público aos ideais políticos. Aqui, apesar

46 LIMA, M. A. de. “História das Idéias”. In: Dionysos. Rio de Janeiro: MEC/DAC-FUNARTE/SNT. Outubro, 1982, p. 56.

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de, diferentemente de Sonia Goldfeder, não ver grande êxito nesta fase, acaba partindo

da mesma perspectiva de considerar que o Arena submetia o estético a função de servir

ao ideológico, não discutindo, mais profundamente, o contexto histórico nas mudanças

da companhia.

Por outro lado, Mariângela Alves de Lima, em sua análise sobre os

musicais, acentua as características de redundância e emocionalismo, para chegar a

mesma crítica de Sonia Goldfeder, que aponta uma relação empática com o público,

baseada no apelo emocional. Evidencia a ênfase na emoção em diferentes níveis do

espetáculo, como na “comunicação emocional intensa e direta com o espectador ”4 7, que

deve dispor das mesmas informações do teatro, na interpretação dos atores, na

disposição cênica, no canto, entre outros. Porém, esse envolvimento da platéia poderia

impedir a reflexão e o entendimento do sistema a que a peça se refere. Nesse ponto a

autora assinala que,

“Nesses espetáculos há gestos e composições que, pela sua freqüência, tornaram-se signos amplos de uma oposição: opressão vs. Aspiração libertária. O ator apela diretamente para a platéia, num gesto de convite. Convida-a para a participar de uma aspiração coletiva. Enquanto isso, as músicas referem-se com muita simplicidade à tristeza dos oprimidos e à vontade titânica dos ‘heróis humildes’. São heróis que extraem sua força do aniquilamento a que estão confinados pela organização da sociedade. No caso, o sentimento de ser oprimido se sobrepõe à compreensão dos mecanismos de poder.”48 Apesar disso, reconhece que nos musicais, especialmente em Zumbi, há

qualidades literárias e musicais, que promovem uma abordagem inteligente de

acontecimentos históricos, que já foram mistificados pela história tradicional. O que não

elimina, para a autora, a constatação de que “o índice de informações novas é bem

menor que o do tempo em que o Arena procurava conhecer e criticar a realidade

brasileira”49.

Quanto ao que se refere à crítica de ser o público do Arena burguês,

Mariângela Alves de Lima concorda, colocando que esta é a maior contradição do

Arena, que direcionava suas encenações às classes trabalhadoras, que são o agente

transformador da realidade, estando, no entanto, limitado a um público burguês em sua

sede, encontrando o povo apenas quando viajava para o interior do país. Para a

pesquisadora, essa foi uma grande limitação do Arena: o público, que ora era o burguês

47 Ibidem, p. 56.

48 Ibidem, p. 57. 49 Ibidem, p. 56.

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que freqüentava sua sede, ora o povo, que o grupo encontrava esporadicamente no

contato com associações estudantis, sindicatos, ligas camponesas, etc.. Entretanto, numa

análise dos objetivos e conquistas do grupo, a autora discorda quanto ao processo do

modo de produção da arte, destacando que,

“é preciso não perder de vista que, se o Arena não chegou a transferir para as classes populares os meios de produção do teatro, chegou a transferir para outros grupos de teatro a maior parte das suas aquisições. O encaminhamento que o grupo deu às questões do teatro popular engajado foram posteriormente utilizadas, na prática e na teoria, por centenas de grupos profissionais e amadores, nas diversas regiões do país por onde o grupo passou. O teatro feito com uma idéia e poucos recursos, a luz substituindo os objetos de cena, a caracterização social da personagem sobre a caracterização particular, a utilização da música como recurso narrativo, o compromisso social entre o ator e o público, todas essas coisas passaram a circular como moeda corrente em intocáveis grupos de teatro. Propostas certamente revolucionárias na produção teatral de pequenas comunidades do país, onde o teatro iniciava-se apenas como uma das poucas alternativas de lazer. Essas novas idéias o Arena introduziu não só através dos espetáculos, como através da atividade isolada de seus membros junto a essas comunidades.”50

Um ano depois da publicação de Dionysos, Elza Cunha de Vincenzo conclui

sua dissertação de mestrado, intitulada A Dramaturgia Social de Gianfrancesco

Guarnieri, que tem como objeto de estudo algumas peças de Guarnieri,. Como o próprio

título sugere, a autora centra-se na obra do dramaturgo, inserindo-a “no panorama

histórico e sócio-cultural do país, buscando mostrá-la como expressão teatral –

50 Ibidem, p. 50-51. Nesse ponto, essa questão que Mariângela Alves de Lima levanta é de extrema pertinência. Pois como podemos constatar, a grande contribuição do Arena ao transferir suas aquisições técnicas e teóricas para outros grupos de teatro, profissionais e amadores, de diversas regiões do país, inclusive no interior, possibilitando o desenvolvimento e a consolidação desses grupos ou até mesmo a formação de outros, é real. Isso se mostra na própria experiência de teatro de nossa cidade – Ituiutaba. Em 1974 foi fundado o Grupo MECA – Movimento Experimental de Cultura por Carlos Emílio Guimarães e Ana Luiza Guimarães, até hoje presentes no mesmo. A criação do Meca surge da intenção de construir uma intervenção cultural e política na cidade, através do teatro e com isso formar um público consciente e crítico, que encontrasse em cena temáticas atuais e polêmicas inerentes a vida da comunidade, quer tratasse da realidade local ou nacional. Acreditamos que a influência do Arena tenha sido fundamental para a formação do grupo e para a construção, alguns anos depois, de sua sede – o Teatro Vianinha. Apesar de não ser uma influência direta, pois se deu através da repercussão do trabalho do Arena, no contato de Carlos Emílio com este (assistindo aos espetáculos e residindo naquele momento na região onde se localizava o Arena), mas fundamentalmente na identificação com a postura ideológica. Nesse sentido comunga, da visão da arte como meio de luta política, social, que provoque a reflexão e a consciência da necessidade de resistir e atuar, porém com a preocupação de não perder a dimensão estética. Sempre procurando percorrer esse caminho, o Meca hoje é considerado referência artística no município e na região, tendo sido premiado em 1985 pelo Conselho de Cultura da Secretaria do Estado de Minas Gerais, já que é o único grupo que se mantém há tanto tempo (27 anos) com uma atividade constante, entre espetáculos, encontros, shows musicais, cursos de teatro, etc.

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portanto, poética – de determinadas experiências político-sociais que nosso povo tem

vivido”51 .

No estudo de algumas peças, a autora discute momentos do Arena, por

estarem, intimamente, ligados à trajetória deste com a obra de Guarnieri. Inicialmente,

traça um panorama da dramaturgia que era feita antes da criação do Arena, da

encenação de Black-tie e a busca de um teatro nacional e popular.

Especificamente, em Zumbi e Tiradentes, ao contrário de outras abordagens,

focaliza sua análise no processo de trabalho e não no texto, por se tratar de co-autoria, e

por terem sido acompanhadas de “intensa e elaborada teorização de Boal.”

Ao iniciar a análise sobre os musicais, destaca a ligação destes com os

impasses vividos pelo teatro brasileiro, a partir de 64:

“O teatro brasileiro, desde 1964, tal como outras instituições, vinha vivendo sob vigilância e censura rigorosas. A atuação do novo governo, desde a sua 1ª fase, obriga o teatro a desviar-se, em muitos pontos, dos rumos que vinha seguindo. (...) o teatro brasileiro, consciente ou inconscientemente, busca novos caminhos para sobreviver. Alguns desses caminhos, nos primeiros momentos, quando o cerceamento (que será progressivo) não atingiu ainda os núcleos vitais da criatividade, representam de certa forma, um enriquecimento estético. Com o tempo, porém, o represamento – ou repressão – continuando ou acentuando-se tenderá a tornar-se uma força esterilizante. Nos momentos iniciais, entretanto, provoca respostas prontas, que são verdadeiras reações em corpo vivo.”52 Porém, na seqüência do estudo, aceita a periodização proposta por Boal e

suas argumentações, para o fim de uma fase e início de outra. Como é o caso dos

próprios musicais, e que a estudiosa, partindo da explicação do dramaturgo, coloca que

essa 4ª etapa é a busca da síntese entre a singularidade, promovida pela 2ª etapa – “A

Fotografia” e a universalidade da 3ª - “A Nacionalização dos Clássicos”. Além de

representarem, como já disse, uma resposta ao contexto socio-político e cultural.

Assim, para Vincenzo, nesse momento, com estas peças, o Arena pretendia

criar condições para que o público captasse a luta entre opressores e oprimidos, os

mecanismos de exploração daqueles e que era possível alterar essa condição de opressão

e conquistar a liberdade. Levanta dois fins a que os musicais serviram, além dos

assinalados por Boal:

“O primeiro foi criar condições para vencer o cerco da censura por duas vias estratégicas: o recurso à narrativa histórica (que permite deslocar para uma ação do

51 VINCENZO, E. da C. A Dramaturgia Social de Gianfrancesco Guarnieri. São Paulo, 1979. Dissertação (Mestrado em Artes) – ECA/USP, p. II. 52 Ibidem, p. 126.

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passado a discussão sobre o presente) e a utilização do ambíguo poder da música, que, se por um lado generaliza e não define, de imediato, compromissos de ordem conceitual e ideológica, por outro, atua como grande força empatizante e congregadora. (...) O segundo objetivo alcançado pelos musicais, que possivelmente não estava previsto, foi funcionar como oportunidade para uma grande catarse coletiva. (...) O que, na verdade, significa desempenhar ainda que por entre as frestas da cerrada teoria racionalista de Boal uma também importante função social.”53

Ou seja, Elza Vincenzo também registra uma ação catártica na platéia

provocada pelos espetáculos. Porém ressalta a importância de sua função social,

especialmente, numa situação de arbítrio.

No livro Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião – uma interpretação

da cultura de esquerda, Edélcio Mostaço, realiza um estudo sobre o Arena (SP), o

Oficina (SP) e o Opinião (RJ), procurando apreender momentos distintos da trajetória

dos grupos, articulando-os às motivações ideológicas e políticas que instigaram os

trabalhos realizados. Em relação ao Arena, destacou marcos importantes, como a

montagem de Black-tie que foi um “divisor de águas” na companhia, a utilização do

“realismo socialista para externalizar um ideário” de engajamento da arte, que retrate a

realidade; a chegada de Boal e a inclusão do TPE no elenco do grupo, trazendo para este

o sentido político que marcará suas atividades, entre outros. Para tal análise, partiu da

perspectiva do Realismo, como base estética do grupo e procurou analisar as fases

propostas por Boal a partir deste referencial

“Mas que realismo? Praticamente impossível saber. Zulmira Ribeiro Tavares é taxativa: ‘De um ponto de vista teórico, o Seminário de Dramaturgia esteve muito preso às teses do realismo socialista. As relações entre teoria e prática foram nele sempre problemáticas. O procurado ‘reflexo’ da realidade era entendido em sentido estrito, quase documental, e a fuga a isto encarada como um ‘desvio formalista’.’ Outro integrante, Flávio Migliaccio, também sugere esta tônica: ‘Imbuídos daquele entusiasmo todo, era perfeitamente normal considerar válidos somente os textos dentro daquilo que achávamos ser a forma que daria início ao nosso trabalho, que era o realismo socialista.’ Enquanto Guarnieri refuta categoricamente: ‘Não aceitamos o rótulo de realismo socialista. Nosso realismo era, antes de tudo, crítico. Nas primeiras composições, era de um naturalismo de observação social imediata. Tivemos sérias discussões a respeito da existência de realismo socialista num país capitalista.’”54 A partir de uma análise de Augusto Boal sobre o teatro brasile iro e as

condições necessárias para a formação de um teatro popular, em um artigo datado de

53 Ibidem, p. 130. 54 MOSTAÇO, E. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião (uma interpretação da cultura de esquerda) . São Paulo: Proposta Editorial, 1982, p. 43-44.

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1959, Mostaço aponta que as idéias e formulações teóricas do Arena e que refletiam em

sua obra andavam em “perfeita sintonia com o que de mais político se pensava então, e

cujas vertentes principais encontravam-se no ISEB e nas teorizações do PCB”55 . Para

ele, o Arena estava em consonância com as discussões político-culturais do momento,

ao contrário dos grupos anteriores a ele, que não tinham esse caráter engajado de

participar dos debates políticos:

“Os dois primeiros aspectos, que lançariam o Arena decisivamente na procura da realidade brasileira, estão sintetizados no último parágrafo do citado texto: ‘Portanto, à medida que o nosso teatro vai incorporando novas platéias, não vai jamais reduzindo seu campo de ação, mas ampliando-o e buscando uma adequação formal mais enérgica. Lamentavelmente, até as idéias reacionárias e falsas podem encontrar uma forma artística válida e atuante. Por isso, mais do que nunca, requer-se uma definição exata do artista como homem e ser social. A análise do artista como homem vivendo no mundo é certamente mais importante do que a do desenvolvimento do nosso teatro, não sendo, porém, objeto deste artigo.’ Discurso que não deixa dúvidas, o homem político e social sobrepôs-se ao homem estético conferindo ao Arena nesta sua Segunda fase o caráter de um grupo teatral ideológico, o primeiro de uma série de outros que surgiriam na década de 60, caráter preponderante em sua posterior trajetória. (...) foi o Arena o introdutor do caráter funcional da arte, fazendo de sua prática artística um ininterrupto diálogo entre estas duas funções sociais: arte e política. Equações quase sempre transformadas em adequações, sem uma filiação partidária rígida , mas de esquerda, dentro da pluralidade de tendências que este conceito admite. Este caráter revolucionário é novo dentro do panorama que estamos observando. Não é possível falar em teatro no Brasil, depois do Arena, sem levar em consideração sua enorme influência, ao menos se falarmos do teatro cultural e socialmente válido.”56

55A esse respeito Mostaço comp reende o seguinte: “O ISEB congregava uma seleta intelectualidade, organizada em torno da criação de um projeto desenvolvimentista, cuja função básica nos anos JK foi fornecer o necessário respaldo intelectual e ideológico para a presidência da República. Organizado como uma “universidade”, através de aulas, conferências e seminários, influiu decisivamente na formação da intelectualidade jovem dos últimos anos 50 e primeiros da década de 60. Sem ser o portador de um pensamento único, frise-se, pelo contrário, comportando desde neo-positivistas até marxistas, o ISEB como um todo, teve papel decisivo nas discussões econômico-culturais do período, não havendo nenhum movimento importante que dele não se abeberasse, criticando ou negando, mas sempre tendo-o como ponto de referência. (...) Quanto ao PCB, suas preocupações concentravam-se mais nas táticas políticas do que na formação de um pensamento cultural. Após o 20º Congresso do PCUS, onde Nikita Kruschev iniciaria a ‘desestalinização’, o PCB entraria igualmente em confrontos internos que resultariam, em 1958, na promulgação de uma Declaração Política ‘que representaria uma modificação substancial na sua linha’. Esta declaração acirra ânimos internos e será o início do processo que levará o Partido a se subdivid ir posteriormente. Enquanto tática política é a mais clara expressão da constituinte de esquerda na conjuntura do Estado populista que se configurou até 1964. É desta Declaração o trecho: ‘a revolução no Brasil não é ainda socialista, mas anti-imperialista e anti-feudal, nacional e democrática’, destacando ainda a necessidade de formação de ‘uma frente única nacionalista e democrática, integrada pelo proletariado, o campesinato, a pequena-burguesia interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia nacional e mesmo setores de latifundiários em contradição com o imperialismo norte-americano na disputa de mercados ou grupo da burguesia ligados a monopólios rivais dos monopólios norte-americanos e que são por este prejudicados.” (Ibidem, p. 45-47). 56 Ibidem, p. 47-48.

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A fase seguinte – “nacionalização dos clássicos” –, representava “o

aprofundamento estético e político do pensamento de Boal” e seria, para Mostaço, uma

etapa de êxito e inovação, de crescimento qualitativo tanto nos aspectos artísticos

quanto políticos, já que propunha mostrar o homem como um ser dialético, enfatizando

o conteúdo político da peça. Assim, o autor propõe que

“a expressão ‘nacionalização dos clássicos’ marcasse não só uma fase estética mas uma preocupação com uma prática e uma teoria teatral voltada para a constituição de uma dramática nova, respaldada em textos que tiveram a grandiosidade de permitir um exercício ideológico conseqüente enquanto praxis artística. Dessa forma também se enfeixariam Os Fuzis da Sra. Carrar, de Brecht e o exercício nordestino, O Filho do Cão, de Guarnieri.”57

Na análise dos musicais, Mostaço aponta que além de “uma opinião sobre o

mundo”, buscavam “uma perspectiva para esta opinião”, que pudesse demonstrar um

caminho como proposta de luta, definindo-se como “grupo ideológico com certo

partidarismo em arte”.

Em vista disso, lança críticas aos musicais, considerando-os maniqueístas

em excesso, em especial a Zumbi : “os negros sãos sempre belos, altaneiros, alegres; os

brancos despóticos, sorumbáticos, desprezíveis e cruéis”58. Destaca que a correlação

entre acontecimentos históricos do passado e do presente, para se chegar a uma analogia

que tenha uma mensagem política, é deliberada, pois vem em função de “demonstrar

uma similitude de fatos, e assim atingir sua mensagem política: a uma fase de

tolerância e de transações de amizade e convivência pacífica entre negros e brancos,

sobrevém um duro golpe militarista, destinado a desbaratar os quilombolas, a apagar a

memória daquele sonho de liberdade e felicidades humanas”59. Ou seja, não impõe um

distanciamento crítico, ao contrário, a platéia é envolvida, tornando-se “cúmplice do

ritual”. Estabeleciam uma comunicação comum para se chegar a uma “cartasis

purgadora”.

E ainda, que o resultado das opções formais do espetáculo, como a

desvinculação ator/personagem, o uso de recursos como slides, o ecletismo de gênero,

entre outros, produziam um resultado que se assemelhava “a um seminário

universitário, uma dramatização feita pelos alunos da classe para os colegas”60. Na

57 Ibidem, p.65. 58 Ibidem, p.83. 59 Ibidem, p.83. 60 Ibidem, p.85.

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relação cena/platéia, caracterizada pelo autor como fechada61, ele aponta o que, em sua

opinião, foi o grande erro, que é transformar o público, formado nesse momento em sua

maioria por estudantes, ou seja, pertencentes a mesma classe burguesa dos artistas, em

agente revolucionário, mistificando-o. Por isso, “considerar os elementos constituintes

da frente ou os estudantes (...) constituiu, no mínimo, uma estranhável abordagem da

teoria marxista”62. Percebe-se, a partir daqui, que Mostaço parte de pressupostos

teóricos, dissociados do contexto histórico em que a obra está inserida. Pois não

deixando de comungar de princípios marxistas, esses “artistas burgueses” (Arena) estão

propondo para os estudantes, seu público, saírem da idéia dominante de sua classe de

origem e comungarem do ideal de justiça, igualdade, democracia e não se enquadrarem

no padrão de vida burguês.

Para o autor, Tiradentes se diferencia de Zumbi pelo fato de que:

“A estética já não é mais do que mera arma de incitamento e o teatro senão o lugar de encontro da seita para ouvir a palavra de ordem a ser cumprida na rua. A mobilização atinge seu grau máximo, onde o mínimo desejável é que o espectador, saído do teatro, apanhe a primeira arma e comece a lutar.”63 Ou seja, a crítica de Mostaço se dá a nível de divergência da posição política

postulada na peça. E vai mais além:

“Não é nenhum absurdo pensar que Boal, ao rebater o caráter ‘clássico’ dos ex-cepecistas do Opinião estava igualmente rebatendo suas posições políticas, assim como, de resto, explicitando através da perspectiva do Arena, sua reprovação à política frentista das esquerdas. (...) Esta perspectiva, vislumbrando a luta armada, era novíssima no Brasil, contrariando as posições ortodoxas do PCB. O racha de 67, de onde surge a ALN e suas táticas preconizava, pela via cubana, a luta armada como única saída para os povos oprimidos, encontra na montagem de Tiradentes não apenas uma apologia estética como a primeira mobilização de opinião pública a nível de sua propaganda. (...) Retórica aplicada, de raro efeito emocional (e emocionante!), Tiradentes demonstrou saber lidar com seu público, bem como fazer para tornar o mais eloqüente possível suas componentes rituais. (...) A platéia, ao declarar sim em seu foro íntimo, em estreita conivência com as idéias apresentadas (...) encontrava-se o mais completamente dentro das malhas da ideologia.”6 4

61 Relação cena/platéia qualificada como fechada, significa nesta abordagem de Edelcio Mostaço, que a peça é constituída por mensagens definidas e acabadas, não dando liberdade para que o espectador reflita e tome sua posição. 62 MOSTAÇO, E. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião (uma interpretação da cultura de esquerda) . São Paulo: Proposta Editorial, 1982, p. 85. 63 Ibidem, p. 93. 64 Ibidem, p. 94-95.

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Outro trabalho de grande importância é Zumbi, Tiradentes, de Claúdia

Arruda Campos, por se deter mais especificamente sobre as peças Arena conta Zumbi

(1965) e Arena conta Tiradentes (1967). A pesquisadora elabora um histórico sobre a

trajetória do grupo, obedecendo a periodização estabelecida por Augusto Boal. Porém,

em relação a esse ponto, considera que é preciso atenuar a teorização feita por Boal, ao

caracterizar o Arena como um teatro revolucionário, por ter-se desenvolvido através de

etapas jamais cristalizadas65, já que a autora classifica-o no máximo como um teatro

ágil, capaz de responder com rapidez às dificuldades enfrentadas.

Percorre cronologicamente o percurso do Arena, antes de se centrar nos

musicais, por considerar que eles são a síntese de todas as realizações do Arena, “são

produtos da maturidade de um grupo”, articulando em seu estudo o material crítico

produzido na época, em especial, de Sábato Magaldi e Décio de Almeida Prado, além

dos ensaios formulados depois, como os de Sônia Goldfeder, Mariângela Alves de Lima

e Roberto Schwarz.

Comenta, entre outros marcos da história do grupo, a encenação de Eles não

usam black-tie, de Guarnieiri, que promovia aspirações como incentivo ao autor

nacional, projeto de um teatro popular e a fixação de um estilo brasileiro de

representação, promovido pela realização de Laboratórios de Interpretação, calcados no

método stanislavskiano, estudado por Boal no Actor’s Studio, leva à criação do

Seminário de Dramaturgia que, para a autora, tem um caráter restritivo, devido as

definições estéticas e políticas estarem submetidas à preocupações conteudísticas.

A partir da perspectiva de Sábato Magaldi, Claúdia Arruda Campos aponta

que as objeções enfrentadas pelo grupo na opção pela dramaturgia nacional, como

textos incompletos próximos da estréia do espetáculo, a necessidade de aumentar o

valor do ingresso, já que precisavam manter o prédio e por isso público restrito e

burguês, reforçando a questão da platéia que se torna o centro da crise entre os

componentes da companhia, causando a perda de colaboradores na produção de peças

brasileiras, levam-no a buscar outro caminho: a nacionalização dos clássicos, que é

considerada, pela autora, a etapa de menor êxito, principalmente, se comparada à

anterior, apesar de ressaltar o aprimoramento técnico, que surge sem pôr em detrimento

a sua postura de engajamento e o desenvolvimento da prática da analogia, que será

decisiva no período pós-64:

65 BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.188.

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“A contribuição mais vigorosa do Arena nesse período está na divulgação e transferência de suas conquistas a diversos grupos amadores e profissionais, numa prática que só será assumida programaticamente em 1968. Esse processo e multiplicação do Arena, entre 1962 e 1964, dá-se, entretanto, com base na transferência dos resultados obtidos em etapas anteriores: a possibilidade de um bom teatro com poucos recursos, a fixação de um teatro de idéias, intimamente comprometido com a realidade social do país. Desse modo, as realizações do grupo entre 62 e 64 não têm a mesma força pioneira da fase anterior.”66 Porém, para a autora, esse é um momento que pode levar o Arena “à surdez

ou à redundância”, já que para entender essa metáfora é necessária uma cumplicidade,

um “código comum à cena e à platéia.”

Quando focaliza os musicais, Claúdia Arruda Campos, por sua vez, destaca

que, a partir deles, o Arena introduz uma nova forma de criação teatral, onde a

elaboração não só do espetáculo, como também do texto se dá coletivamente. Nessas

peças, “o produto vai sendo esculpido através de ampla cooperação, na qual se inclui o

próprio público, cuja cumplicidade lhes emprestou uma parte de sua significação.”67

Outro dado novo, é o uso de elementos da cultura popular, que se vê presente na

composição dos recursos expressivos. Tendo sido assimilado, na construção da obra,

dados da tradição brasileira e de uma arte erudita.

A autora discute o fato de que, por trás do discurso que exalta o “povo”,

estariam

“os pequeno-burgueses, infaustamente oriundos de classe não-revolucionária, mas que assumiram, por motivos diversos, o compromisso com uma transformação social, (...) os artistas de esquerda ousam falar de sua própria dor, de suas perplexidades, de sua derrota, de sua esperança manietada,”68

o que, segundo ela, limita, pois apenas a compreensão do erro não leva à superação, a

peça não indica novos rumos, “não consegue desvendar os mecanismos capitalistas e a

luta de classes, a razão última dos embates políticos que pretende representar ”69.

Assinala, que:

“Tudo estaria bem se a peça terminasse por alertar o espectador contra tal cegueira e a acentuasse como um dos erros a serem evitados. Mas não, ela nos exorta a

66 CAMPOS, C.A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 58. 67 Ibidem, p. 160. 68 Ibidem, p. 162. 69 Ibidem, p. 77.

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prosseguir o mesmo combate na escuridão que arrasou Palmares. Novos deuses, propostos pela peça, ‘Liberdade’ e ‘Terra da amizade’, o exigem.”70

Além disso, a necessidade de que exista uma cumplicidade entre palco/platéia para a

compreensão das alusões feitas, torna, para a autora, a peça datada.

Aponta ainda, que o conflito é esquemático, articulando-se em torno das

seguintes oposições: opressores x oprimido, negro x branco, bem x mal, ou seja, uma

visão maniqueísta. Porém ressalta que, em certa medida, o espetáculo oferece uma

resposta ao momento, sendo que, “um dos sentidos de Zumbi, e no qual a peça é bem-

sucedida, está na reação que constrói contra uma tal força obscurantista”7 1.

Em Tiradentes, para Claúdia Arruda Campos, há um dado importante: a

crítica estende-se aos derrotados, deixando para trás a complacência presente em Zumbi,

no momento em que são apresentados, como causas da derrota, o fato de não haver

participação do povo no movimento e a “composição do grupo pretensamente

revolucionário ”72. Além disso, o recurso da analogia é melhor utilizado, na medida em

que tem abrangência maior, conferindo ao texto duplo sentido: refere-se à dominação

geral e à particular e datada, referindo-se sempre a procedimentos da exploração

capitalista.

Porém, além da postura “paternalista” desenvolvida na idéia de que o

“povo” – sujeito revolucionário, mas que não tem consciência – precisa ser guiado por

aqueles que a tenha, a autora destaca que,

“talvez por desejo de superar a imagem balofa que havia sido dada aos inimigos no primeiro musical do Arena, talvez ainda pela excessiva gana de demolir os pseudo-revolucionários, permite-se ao opressor conhecer e enunciar as verdades que escapam a seus opositores. O procedimento resulta positivo no sentido de alertar para a força dos que detêm o poder, mas possui um dado infeliz na medida em que enfraquece a posição do herói. Este só se resgata pela simpatia, nunca no plano racional da peça. Pode estar aí a única falha mais grave de um espetáculo onde os elementos de análise política (concordemos ou não com seu teor) vêm colocados com rigorosa precisão, selecionando-se, com astúcia só comparável à dos vilões da peça, os recursos literários e/ou dramáticos.”73

Para a autora, o Arena elabora um discurso didático, tornando as peças

doutrinárias, na medida em que expõem verdades prontas, através de uma linguagem e

70 Ibidem, p. 88. 71 Ibidem, p. 90. 72 Ibidem, p. 99. 73 Ibidem, p. 110.

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de recursos emotivos, que buscam do espectador uma tomada de posição a favor desses

ideais e não uma reflexão que leve a questionamentos. Ressalta ainda, que o grupo se

mostra mais preocupado em preservar e aglutinar do que em despertar uma visão crítica,

que busque o novo. Liga-o a uma prática “populista”, no sentido de que tem uma

postura tutelar, “paternalista”, no tratamento com o povo, já que la nça para ele a

solução, o caminho a ser percorrido. No entanto, mesmo que o grupo tenha

desenvolvido tal postura, é importante considerar que ela pode não estar presente em

todos os seus momentos, inclusive nos musicais, período em que tal prática se encontra

em declínio.74

Assim, Claúdia Arruda Campos parte da consulta de um grande número de

críticas da época, mas não vai além na análise do projeto estético e político que formou

o Arena e os musicais. Em sua discussão, considera, a partir da estrutura forma l da peça,

que esta possui uma fábula frágil, personagens pobres, situações maniqueístas e que “os

significados brotam menos do texto que dos sentimentos e idéias suscitados pelas

vivências comuns de autores, atores e público”75. Quer dizer, apesar de indic ar

qualidades estéticas, inovações, a autora conclui que o texto possui muitos problemas do

ponto de vista estético e formal e que não cumpre sua tarefa de despertar a platéia e

propor-lhe uma solução para os embates vividos no presente, já que a envolve num

efeito catártico. Há, nesse sentido, uma cobrança que parece partir de uma noção já

estabelecida do que seria a melhor estrutura dramática de uma peça e da idéia de que

bom espetáculo não é aquele que termina com uma mensagem, mas que deixa o

espectador refletir, pensar. Aponta qualidades e defeitos, sem esclarecer de que

pressuposto estético parte para tal análise.

Dessa forma, é como se os conceitos teatrais estivessem definidos, pairando

sob qualquer circunstância, ignorando a historicidade dos acontecimentos. Análises que

partem de pressupostos teóricos e estéticos externos às propostas do artista. A obra é

vista em si e não como um conjunto que tem, em suas opções estéticas, razões e

74 Segundo Octávio Ianni, por volta dos anos 60 e mais evidente em 64, começa ocorrer o que ele chama de “o colapso do populismo no Brasil”: “os desenvolvimentos da política de massas não foram pacíficos. Ao contrário, as ‘concessões’ consubstanciadas na legislação trabalhista industrial e rural, por exemplo, eram o resultado de reivindicações reais, conseqüentes de tensões e conflitos repetidos e acumulados na experiência coletiva. À medida que se desenvolve e diversifica a economia nacional (em especial a industrialização), multiplicam-se as greves. No jogo entre os empresários, os assalariados e as organizações políticas, as tensões agravam-se e conduzem a situações de impasse. Muitas vezes, as organizações e lideranças de esquerda preparam e comandam a greves”. (IANNI, Octavio. O Colapso do Populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p.98). 75CAMPOS, C.A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 91.

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referências diversas, comungadas por sujeitos que têm suas intenções e seus

comprometimentos. Porém, nem por isso devem ser julgados, mas sim analisados

enquanto agentes na construção do social, se partirmos da premissa básica de que a arte

é a representação da realidade e não seu reflexo.

Por sua vez, Lúcia Maria Mac Do well Soares, em sua monografia O Teatro

Político do Arena e de Guarnieri, concluída em 1980, e que três anos mais tarde foi

publicada em um livro, juntamente com outros dois trabalhos, editado pelo INACEM

(Instituto Nacional de Artes Cênicas) como resultado de um concurso de monografias

em que obteve o 1º lugar, traça um panorama do Teatro de Arena, a partir de temas

como “espaço cênico”, “dramaturgia nacional” e “teatro revolucionário”, e elabora uma

análise de algumas obras de Guarnieri, refletindo sobre a estrutura dramática, a escolha

dos temas e o tratamento dos mesmos.

A partir daí, ao discutir as relações entre produção cultural e atuação

política, busca verificar a eficácia do projeto político e estético do Teatro de Arena,

articulado com um código ideológico não-revolucionário, que é o desenvolvimentismo.

Para verificar tal raciocínio, a autora utiliza-se dos argumentos de Maria Sylvia C.

Franco:

“(...) no pensamento desses intelectuais encontrava-se um grande ecletismo teórico que visava ao escamoteamento das diferenças dos interesses de classe, uma vez que propunha-se como resposta aos interesses da nação como um todo mas, na verdade, não passava de uma ideologia que defendia os interesses da burguesia. Dando-se como ideologia da nação, o desenvolv imentismo trabalhava para forjar o incremento do capitalismo no país, o qual pressupõe desde logo um antagonismo básico entre os interesses do capital e os do trabalho. no entanto, esse antagonismo não se manifesta nos textos teóricos do ISEB e é-nos veiculada a informação de que os grandes obstáculos a serem vencidos pelo país são a dependência e o subdesenvolvimento. Forjando-se o desenvolvimento, por meio da industrialização e do planejamento das atividades produtivas pelo Estado, atacava-se a dependência, o que resultaria do enriquecimento e desenvolvimento do país. O que Maria Sylvia faz, magistralmente, é desconstruir esse discurso, revelando seu caráter ideológico e denunciando a serviço de quem se colocava; mostrando-os como ele tinha por base a acentuação da exploração do capital sobre o trabalho, ficando claro que a libertação do país não seria de todos, mas apenas de uma classe.”76

Nessa perspectiva, seria impossível fazer arte revolucionária, na ausência de

uma mudança nos modos de produção da arte que, ao se identificar com o universo

cultural da classe dominante, estaria mantendo a ordem tal como já se encontra

76 SOARES, L.M.M.D. “O Teatro Político do Arena e de Guarnieri”. In: Monografias/1980. Rio de Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 31-32.

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estabelecida. Ao contrário, mudando os meios de produção, a obra de arte concede ao

próprio artista os mecanismos necessários para torná- lo produtor, “quando então se

solidariza com o proletariado”77. Nesse sentido, na visão de Lúcia Mac Dowell, o

Arena não pode ser visto como um teatro revolucionário, na medida em que estava

impregnado por idéias de caráter burguês.

Todavia a autora salienta que o nacionalismo veiculado pelo Arena tinha um

caráter crítico, pois ele não difundia a ideologia burguesa de, através da exploração da

classe proletária, promover o desenvolvimento. Ao contrário, buscavam esclarecer à

platéia de que o operário podia subverter esse estado de subordinação, na medida em

que se organizasse como classe e pressionasse para conquistar melhores condições de

trabalho. Porém, verifica a ligação entre o Arena e ISEB, numa:

“(...) constatação de ordem histórica: à época do estabelecimento do Arena, a ideologia desenvolvimentista encontrava-se no poder, em sua manifestação primeira e bem forte, no governo JK. Nesse período, conforme nos atestam diversos depoimentos, respirava-se um ar de liberdade e de crença no progresso do país. As liberdades democráticas estava garantidas: o movimento operário estava mobilizado, ainda que a partir das lideranças de tipo populista, quer de esquerda quer de direita: a industrialização passa por uma fase de incremento; as cidades modernizam-se através do impulso dado à industrialização, sobressaindo-se, entre elas, São Paulo. Todo esse contexto vinha marcado ainda pela luta contra o imperialismo, onde a noção de nacionalismo (sem dúvida, isebiana) recebia contornos específicos.”78 Assim, o Teatro de Arena estaria inserido na ideologia do ISEB, mesmo que

sustentando a idéia de libertação do povo, pois tem em suas discussões as noções de luta

anti- imperialista, anti-subdesenvolvimento, em favor do progresso, estando inserido no

“universo ideológico dominante da época”, que “passeava por cima das diferenças de

classe, falando muitas vezes em nome do povo”79. E nesse contexto, o intelectual e o

artista, vistos numa função de “ilustrador”, de responsáveis por conscientizar a massa,

que se revela mais fortemente nos musicais, onde será mantido o discurso político

engajado contra o Estado autoritário, anulando as contradições sociais e políticas e

identificando-se com o povo como revolucionários, sendo ambos os reprimidos.80

77 Brecht ao elaborar uma teoria marxista da arte rompe com antigos modos de representação e propõe uma transformação no processo de produção, pois só assim é possível uma mudança da arte, dos conceitos ideológicos e estéticos, para uma utilização da mesma como meio de alteração do que está estabelecido na sociedade. 78SOARES, L.M.M.D. “O Teatro Político do Arena e de Guarnieri”. In: Monografias/1980. Rio de Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 32-33. 79 Ibidem, p. 12. 80 Ibidem, p. 35.

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Em relação aos musicais, Lúcia Mac Dowell, ao contrário dos demais

autores, não aceita, acriticamente, as fases estabelecidas por Boal para periodizar a

trajetória do Arena e que promove a idéia de que esses espetáculos são a síntese de todo

o trabalho da companhia e a estrutura dramática e estética que buscavam:

“É certo que o Arena sempre caracterizou-se por uma resistência cultural e uma tendência à reformulação de seus passos anteriores. Porém é faltar com a verdade a difusão da idéia de que o TA encontrou nos musicais a forma ideal que estaria sendo perseguida. (...) No entanto, a questão assim colocada não responde a nada. Na verdade, o Arena já trazia em si, mesmo antes das possíveis implicações na arte decorrentes do golpe de 64, um esgotamento de fórmulas estéticas. Sem dúvida, a companhia teria que encontrar uma resposta formal a esta questão. Mas nada determinava que fosse o musical, forma que ‘aliava a uma trama relativamente simples o envolvimento emocional da platéia. As idéias encontravam sua expressão conotativa na música, dispensando portanto o arranjo minucioso das peripécias da ação dramática’. (...) Se os musicais serviram como um movimento de resistência à ordem vigente e como um mantenedor da freqüência ao teatro, eles pouco avançaram na dramaturgia nacional. Esta simplificou-se, explorando amplamente o tom emocional da resistência a ser dividido com a platéia. Em nada o Arena avançou na tentativa de discussão e compreensão da realidade brasileira; da nova ordem política do país; das forças sociais e jogo; das caracterís ticas do poder estabelecido e de suas associações e de quaisquer que fossem as questões compromissadas com um teatro político, sempre sua proposta. O texto nacional comprometido com uma visão engajada da realidade brasileira havia surgido em 1958, inaugurando uma vertente fecunda para a dramaturgia brasileira. Esta, no entanto, não encontrará no Arena pós-64 sua continuidade. Ainda ficavam por existir os textos nacionais que tentassem dar um salto no sentido de uma produção mais conseqüente teoricamente e menos comprometida com o real imediato e, particularmente, no sentido de compreender e pensar o contexto histórico de que o país passa a ser palco, a partir de 64.”81 No entanto, a análise de Mac Dowell não se diferencia na concepção de que

o texto comprometido com as questões socio-políticas do momento, do real imediato

tem menos valor, no sentido de que não consegue promover uma discussão e

compreensão da realidade. E nisso, a autora, apesar de encarar o Arena como processo,

sem estancá-lo em fases desligadas do contexto histórico, cobra do trabalho do grupo

uma evolução, tomando como medida o seu desenvolvimento na elaboração de textos

nacionais. O que, para a autora, interrompe o trabalho de “construção da dramaturgia

brasileira”, parecendo-nos um pensame nto equivocado, pois assim estaria anulando toda

uma produção nacional pré-Arena, constituída por autores como Nelson Rodrigues,

Jorge Andrade, Ariano Suassuna, etc.

81 Ibidem, p. 27-28.

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Por fim, a autora conclui que o Teatro de Arena não demonstrou um

conteúdo revolucionário, por ter tido uma postura “paternalista”, na qual o artista é

aquele que impulsiona a ação social através da conscientização que provoca no povo, o

agente transformador. Essa postura ainda se faz notar “ao exortar uma tomada de

posição e não uma reflexão”82, mantendo com a platéia uma relação emocional, o que,

para a autora, não propicia a compreensão dos fatos e de suas relações econômicas e

políticas.

Mesmo que houvesse um projeto inovador da forma, o conteúdo mantinha o

caráter conservador, burguês e ne m um pouco revolucionário, já que estava carregado

de princípios da ideologia burguesa. Chama a atenção para a importância de destacar

que, “se a ‘abertura’ política do governo JK propiciou o estabelecimento de um

discurso crítico da realidade nacional, este discurso circulava num espaço político

onde a ordem do dia eram os conceitos nação/antinação, desenvolvimento e

nacionalismo”8 3.

Aponta ainda que o Arena não contava com condições de interferir na

transformação social, como num teatro engajado, já que não eram textos que

procuravam “dar conta da nova ordem social instaurada no país, das alianças de classe

e da nova organização econômica”84, mas sim que se limitavam “aos textos de

resistência do tipo opressor x oprimido, textos analógicos de vinculações esquemáticas

com o presente”85.

Trabalho de fundamental importância e que muito nos estimulou é o artigo

História, Memória e Teatro: A Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo , de

Rosângela Patriota, que busca recuperar a trajetória do Arena pelo rememorar de seus

ex- integrantes, destacando que a importância de retomar essas memórias, já que o grupo

comporta diferentes propostas de atuação, reside no fato de tornar perceptível essas

diferenças, além de permitir observar como as tentativas de reconstrução de sua história

de forma linear, partindo da idéia de um projeto que existiu a priori, como se tivesse

sido comum a todos os que o integraram, anula as multiplicidades estéticas e políticas

que constituem a trajetória do Teatro de Arena de São Paulo.

Nesse sentido, Patriota aponta questões presentes na historiografia

produzida sobre o Teatro de Arena, como a “ênfase dada à atmosfera sociopolítica do

82 Ibidem, p. 38. 83 Ibidem, p. 33. 84 Ibidem, p. 36. 85 Ibidem, p. 36.

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Brasil de então, à influências teóricas explicitamente assumidas e, principalmente, à

busca de significados para as atividades do grupo ”86.

Além disso, levanta a questão, que nos parece a mais importante, de haver,

por parte dos estudiosos, uma aceitação da “periodização já cristalizada, que, com o

passar dos anos, transformou-se no próprio acontecimento”87. Situação gerada pelo

tratamento dado aos documentos, que se mostra acrítico, segundo a historiadora, sendo

usados como a versão mais correta sobre os acontecimentos ou simplesmente como

ilustrativo dos fatos que compõem essa história. Esquecendo-se de localizar o espaço e

o momento de onde essas interpretações são feitas, sejam de críticos, estudiosos ou até

mesmo dos ex-integrantes do Arena.

Ao constituir essas etapas, Boal busca um significado para as atividades do

grupo, deixando de lado os acontecimentos históricos, como se o percurso do Arena

tivesse um caráter uno e linear. Quando na verdade, sabemos que diversas pessoas

atuaram nele, com suas diferentes referências teóricas e políticas, trazendo- lhe inúmeras

influências estéticas, que iam sendo descobertas e estudadas no decorrer dessa

experiência e sofrendo diretamente as ações políticas, já que se propunha uma postura

de arte engajada que representasse, refletisse e interferisse na realidade brasileira.

Além desses pontos abordados pela historiadora Rosangela Patriota, ao final

da análise dos diferentes estudos, pode-se concluir que todos partem da mesma premissa

de discordar e denunciar a prática política dos autores, não como possibilidade de

investigar as posturas assumidas e as lutas nas quais estes se inseriam, mas como

maneira de condená- las, desqualificá- las, comparando-as com suas próprias opções.

Ao lançarem críticas quanto ao público do Arena e sua relação com este ser

paternalista, parecem estar excluindo todo o contexto político do momento que não

possibilitava outra ação ao grupo, que tentava resistir nas frestas da cerrada ditadura

militar, tentando provocar em sua platéia atitudes de resistência e combate, fosse ela

burguesa ou não. O Arena recorre à analogia histórica para suscitar um movime nto, que

acabou se tornando o mais atuante do período – o estudantil, de oposição ao regime.

Além disso, há uma ostensiva cobrança do por que ter sido essas as escolhas

e não outras e o julgamento por terem explicitado as intenções políticas em sua obra,

como se a arte fosse uma manifestação apolítica, ou que o artista deveria tê-la como um

fim em si mesma, isto é, a arte pela arte. Fica clara a tendência a desvalorizar o teatro

86 Ibidem, p. 203. 87 Ibidem, p. 204.

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político, a obra de arte comprometida com as questões da realidade imediata, como se

este se posicionasse como substituto das lutas de classes, dos embates travados na

sociedade. Quando na verdade, não se trata disso, mas sim de instrumentalizar o homem

– agente revolucionário – para atuar no real, transformando o estabelecido, alterando a

ordem.

E ainda restrições por considerar a obra datada, como se o autor não

estivesse, mesmo que inconscientemente, comprometido com sua produção. Ou ainda,

como se um texto ou qualquer obra de arte não possuísse uma historicidade. Cabe até

mesmo uma pergunta: que obra de arte não é datada? Acreditamos que todo texto,

documento, peça teatral seja datado, sendo uns mais outros menos. No entanto, isso não

invalida a obra, que continua tendo função nos momentos que relacionados à sua

temática. Por exe mplo, uma peça, como os musicais, que trata de um governo ditatorial,

opressor, cumpriria seu papel em qualquer situação de arbítrio, que inclusive a Améica

Latina não está de todo protegida, como podemos ver atualmente. Ou ainda: Zumbi seria

útil em outros momentos, como para o movimento negro; as peças de Brecht que

denunciam o capitalismo exploratório, as injustiças e desigualdades promovidas por

relações de poder e dominação entre os homens não podem ser mais atuais do que são

neste novo século.

Dentro dessa questão, é importante, ainda, assinalar que as peças falam de

um momento (golpe de 64), das impossibilidades que havia e continuam existindo, no

sentido de que a luta opressor/oprimido é atemporal e ainda permeia muitos

movimentos sociais atuais. No entanto, muitas dessas análises são feitas em um outro

momento, posterior a criação da obra e lançadas ao passado, por pessoas que não se

identificam com suas propostas estéticas e seus compromissos políticos e que cobram,

então, diferentes posturas.

Os trabalhos acadêmicos demonstram ainda uma tentativa de dar conta do

Arena como um conjunto homogêneo e linear, buscando apreendê- lo de forma

evolutiva, comparando suas fases, elegendo a melhor e a pior, como se estas não fossem

respostas ao momento social e político, cobrando questões que estavam em seus

projetos. Acabam não o pensando à luz de seu momento histórico e perdem toda a

multiplicidade estética e política que formou a companhia.

Pois na verdade, o Arena foi um projeto político, constituído por sujeitos

que possuíam seus referenciais, sua ideologia e que pretendiam, nos diferentes

momentos dessa experiência histórica, interferir na situação do momento, promovendo,

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através da conscientização que buscavam despertar na platéia, ações de transformação

dessa realidade.

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CAPÍTULO II

ARENA CONTA MOVIMENTOS LIBERTÁRIOS: ESTRUTURA E

PROPOSTA TEMÁTICA

“Eu vivi nas cidades no tempo da desordem. Vivi no meio da gente minha no tempo da revolta. Assim passei os tempo que me deru pra vivê. Eu me levantei com a minha gente, comi minha comida no meio da batalha. Amei sem tê cuidado...olhei tudo que via sem tempo de bem ver...por querer liberdade. A voz da minha gente se levantou. Por querer liberdade. E minha voz junto com a dela. Minha voz não pode muito, mas gritá eu bem gritei. Tenho certeza que os dono dessas terra e sesmaria ficaria mais contente se não ouvisse a minha voz...Assim passei o tempo que me deru pra vivê. Por querer liberdade.” (Ganga Zumba, personagem da peça Arena conta Zumbi de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri). “Quem esquece a própria vontade/ quem aceita não ter seu desejo/ é tido por todos um sábio/ é isso que eu sempre vejo/ é a isso que eu digo não!(...) Quem aceita a tirania/ bem merece a condição/ não basta viver somente/ é preciso dizer não!” (Coro – Arena conta Tiradentes de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri).

“ARENA CONTA ZUMBI”

O elenco entra em cena, ao som de atabaque, com ritmo forte e frenético,

cantando. Os atores cantam sem terem grandes vozes ou serem cantores profissionais e

demonstram trabalhada expressão corporal ao, dançando, construírem imagens,

ambientações com o próprio corpo, sem necessariamente serem bailarinos. Ficam

sempre em cena, assumindo as diferentes personagens frente à platéia, o contrário de

uma encenação realista88, não permitindo que ela se esquecesse de que a história era

88 Teatro Realista: o realismo se baseava na ilusão, procurava-se reproduzir a realidade o mais fielmente possível, escondendo no espaço cênico, qualquer instrumento teatral que remetesse à consciência de que se estava diante de uma ficção. Busca-se o envolvimento do espectador e para isso os atores deviam encantar, mostrando-se “natural’ em cena, agindo como se estivessem em suas casas; os cenários,

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narrada e por quem era feita. Neste momento, não são as personagens que se

apresentam, mas os atores expondo seu ponto de vista e o dos autores. Cantam,

apresentando a peça, o que ela pretende e de que perspectiva se está falando:

“O Arena conta a história pra você ouvir gostoso, quem gostar nos dê a mão e quem não tem outro gozo. História de gente negra da luta pela razão, que se parece ao presente pela verdade em questão, pois se trata de uma luta muito linda na verdade: É luta que vence os tempos, luta pela liberdade! A história que o Arena conta é a epopéia de Zumbi; tanto pró e tanto contra juro em Deus que nunca vi. Os atores têm mil caras fazem tudo nesse conto desde preto até branco direitinho ponto por ponto Há lenda e há mais lenda Há verdade e há mentira de tudo usamos um pouco mas de forma que servira a entender nos dias de hoje quem está com a verdade, (...) quem está com a mentira ...”89

Arena conta Zumbi é uma peça em dois atos, escrita em parceria por

Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, tendo assinatura de Edu Lobo para as

músicas. Estreou em 1º de maio de 1965, no Teatro de Arena de São Paulo. É composta

de 23 cenas, sendo que algumas são cantadas, contendo um total de 18 canções, além

das falas dos cantadores e algumas do coro que têm acompanhamento musical. Porém,

as cenas são autônomas, isto é, não dependem uma da outra, possuem sentido próprio e

recebem, no texto, um título que indica a ação da cena. Por exemplo: “Conquista da

Opinião Pública” – que busca o apoio público na investida contra Palmares, alertando

acessórios, figurinos deviam “refletir” a realidade nos mínimos detalhes, a iluminação criar uma atmosfera ilusionista e a música ressaltar o clima de uma ação. 89 BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 1-2.

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contra o “perigo negro”; ou ainda “Realismo Político” – em que acontece a nomeação

de D. Ayres de Souza de Castro e seu discurso de posse.9 0

A história é uma recriação poética do episódio de Palmares e presta uma

homenagem “a todos aqueles que, através dos tempos, dignificam o ser humano,

empenhados na conquista de uma terra da amizade onde o homem ajuda o homem”91.

No primeiro ato há o cativeiro de Zambi, que na cena anterior, no barco vindo de

Luanda para o Brasil, já se mostra como líder, chamando os negros à ação. Zambi

(Ganga Zumba) questiona:

“Que faz esses negro parado, que faz que não quebra esse bojo e atira tudo no mar? Levanta gente, não adianta ficar aí sentado.”92

Pretende-se atingir o espectador, envolvê- lo, trazê-lo para o centro da arena,

da luta.

Segue uma cena, em que o mercador apregoa seu produto (negro) e em que

são descritos pelos atores, de forma explicativa e ilustrados por slides, os castigos e

formas de tortura usados. Nesta passagem, há grande referência ao momento do regime

militar que utilizava essa prática na prisão e que era sabida por todos. O rei Zambi

revolta-se contra o cativeiro e ganha as matas. É um incentivo para que inúmeros outros

negros fujam, em busca de uma sociedade livre e pacífica, onde poderão trabalhar

livremente as dádivas da natureza, na construção da prosperidade dos quilombos:

“Negros de todos os lugares procuravam as matas fugindo desesperados. Horror a chibata, ao tronco, às torturas. Buscavam no desconhecido um futuro sem senhor. Enfrentavam todo perigo. Fome, sede, veneno, flexas dos índios, capitães do mato. Agonia pela liberdade. Idéia de ser livre”93 .

Os senhores vão até o governador Dom Pedro de Almeida reclamar da fuga

dos escravos, mas constatam que lhes é mais vantajoso importar outros negros do que

recuperar o “fujão”. Um dos momentos mais belos do espetáculo é quando rezam Ave

Maria, misturando elementos do cristianismo e de rituais africanos, numa narração de

90 O recurso de intitular as cenas é uma influência direta de Brecht que chegava a colocar na encenação esses títulos através de cartazes ou projeções, como mais uma maneira de evidenciar que se t ratava de uma representação, de uma teatralização, servindo também para introduzir os acontecimentos. No Brasil, essa técnica já era utilizada pelo CPC (ver nota 30) e havia sido empregada por Augusto Boal em sua Revolução na América do Sul, encenada pelo Arena, em 1960, com direção de José Renato. 91 BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 3. 92 Ibidem, p. 4. 93 Ibidem, p. 6.

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sua vida, seus sonhos, o que valorizam, como resistem e lutam:

“ZAMBI – Ave Maria cheia de graça. Olorum é convosco Bendito é o fruto de vosso ventre. Bendita é a terra que plantamos Bendito é o fruto que se colhe.

CÔRO – Ave Maria, bendito seja Ave Maria cheia de graça, Olorum.

ZAMBI – Bendito é o trabalho neste campo Bendita é a água que se bebe Bendita é a mulher de quem se gosta Bendito é o amor e nossos filhos.

CÔRO - Ave Maria cheia de graça Ave Maria bendito seja, Olorum ZAMBI – Bendita é a palmeira, o rio, o canavial

Bendito é o peixe que se come Bendito é o gado que se come.

CÔRO - Ave Maria cheia de graça Ave Maria bendito seja, Olorum ZAMBI - Bendita é a caça e a f lecha CÔRO - Ave Maria, bendito seja ZAMBI - Bendita é a enxada e a semente CÔRO - Bendita seja, cheia de graça, Olorum ZAMBI - Perdoai os nossos erros CÔRO - Ave Maria cheia de graça ZAMBI - Perdoai, Ave Maria

Perdoai a morte que matamos O assalto, o roubo, Perdoai, perdoai Ave Maria

CÔRO - Ave Maria cheia de graça Perdoai, Ave Maria, Olorum. ZAMBI - Perdoai o nosso orgulho CÔRO - Perdoai, Ave Maria. ZAMBI - Perdoai a nossa rebeldia CÔRO - Perdoai, Ave Maria. ZAMBI - Perdoai a nossa coragem CÔRO - Perdoai, Ave Maria. ZAMBI - Perdoai a fuga do cativeiro CÔRO - Perdoai, Ave Maria. ZAMBI - Perdoai as nossas dívidas CÔRO - Perdoai, Ave Maria. ZAMBI -Perdoai-nos Ave Maria. Assim como nós perdoamos os nossos

senhores. CÔRO - Perdoai, Ave Maria.

Ave Maria cheia de graça Olorum, Amém, Amém, Amém, Amém”94.

Tempos depois, chega Ganga Zona, neto de Zambi, pelo navio negreiro, de

Luanda. Os negros de Palmares o libertam e o conduzem aos quilombos. Trabalhando a

94 Ibidem, p. 12-13.

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terra, começam sua produção e negociam com os comerciantes e com várias cidades

brancas em troca de armas. No quadro “A Bondade Comercial”, realiza-se a aliança

entre os brancos comerciantes e os quilombolas que remete ao acordo das classes

trabalhadoras com setores da burguesia, na década de 60. Naquele momento, isso era

interessante para os brancos pois atendia seus objetivos de lucro:

“Nós os brancos comerciantes sabemos ter muita amizade pelo negro que trabalha tão distante da cidade. Queremos paz, prosperidade, chega de raiva, e de maldade, de tudo um pouco nós compraremos e muitas armas venderemos”95 .

Já para os donos das sesmarias essa paz não era desejada, não servia, pois

significava perdas já que investiam alto na compra dos negros que agora ganhavam

mais estímulo e força para manterem os quilombos ou no caso dos cativos para fugirem:

“Nós os brancos senhores da terra fiéis vassalos de Portugal aqui chegamos, lutamos, vencemos e desbravamos esse país. O que aqui pertence só a nós pertence, Aqui trabalhamos, nosso sangue correu O negro trouxemos, o negro compramos Pagamos bom preço ao barão espanhol. A paz que se pede com o negro rebelde (...) é perda de ouro, da honra e de tempo. (...) A paz é a vitória do subversivo”96.

A palavra “subversivo” faz clara referência ao presente, lembrando de que

época e do que se está falando: os acontecimentos de 1964. Diante de tal declaração, os

comerciantes saem em defesa dos negros, ou melhor, de seus interesses. E em resposta,

os negros confiantes que têm proteção dos brancos, com quem negociam, resolvem

deixar de comprar armas e aumentar o valor de suas mercadorias. Para os autores, o erro

que os levará a derrota está aí: são movidos pela ingenuidade e vencidos pela violência

e crueldade do inimigo. Então, a partir de tais resoluções, os comerciantes atingidos em

suas maiores ambições, reagem aliando-se aos senhores de terra para destruir os negros

rebeldes. Apesar de suas contradições, unem-se contra o povo e recorrem à Igreja para

95 Ibidem, p. 20. 96 Ibidem, p. 20.

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fundamentar suas ações, como podemos ver no uso que fazem de trecho do Evangelho,

mais uma vez simbolizando a dominação ideológica:

“COMERCIANTES: Nós os brancos comerciantes, nos guiamos pela bíblia o livro santo prevê este caso no Evangelho de Ezequiel: - Com a rebeldia não há concordia, punir com firmeza é uma forma de demonstrar misericórdia. COMERCIANTES E DONOS DAS SESMARIAS: - Nós os brancos, senhores da terra - Nós os brancos, comerciantes Resolvemos em santa união dar fim ao povo rebelde exterminar a subversão”97. Nesse momento, a liberdade do negro e a prosperidade conquistada se

mostram como grande ameaça:

“Há algo melhor que a liberdade ? Não há. A liberdade é a glória de uma coroa, a glória dos bem nascidos. (...) Mas pobres valores da nossa sociedade se se admite que o negro, naturalmente inferior, por vontade de Deus destinado ao cativeiro, que não o infelicita, mas ao contrário, o humaniza – a escravidão dignifica o negro! Integrando-o na sociedade na posição que lhe compete. Eis a ameaça que pesa sobre o Brasil. E veja Excelência: esses negros, inferiores pela própria natureza, ameaçam destruir uma sociedade bem mais aparelhada, produtiva e forte do que a nossa. É anti-histórico”9 8.

Vendo toda sua estruturação social ameaçada, os brancos buscam

apoiadores de todas as formas e começam uma campanha de conquista da opinião

pública, alertando contra o “perigo da infiltração negra”, para reunir forças no seu

intento de destruir Palmares.

À Ganga Zona se juntará, mais tarde, Ganga Zumba, seu filho, nascido no

cative iro e que será aclamado rei de Palmares. Para ele, Ganga Zona canta a esperança

de se conquistar a liberdade, em Upa Negrinho, composição de Edu Lobo e que foi a

música de maior sucesso:

“Upa negrinho, upa! Upa pra lá e prá cá Virge que coisa mais linda

97 Ibidem, p. 21. 98 Ibidem, p. 27.

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Upa, negrinho começando a andá Cresce negrinho, me abraça cresce me ensina a cantá eu vim de tanta desgraça mas muito te posso ensiná Ziquizira, posso tirá valentia eu posso emprestá mas liberdade, só posso esperá”9 9.

Momento que coincide com importantes acontecimentos, como a destituição

de D. Pedro de Almeida, que havia firmado paz com os negros, oferecendo- lhes terras

para produzir e comércio com o seu trabalho, mas é substituído e nomeado. Em seu

lugar está D. Ayres de Souza Castro, mais enérgico, que comandará a organização de

repressão e destruição ao quilombo. O novo governador discursa com o seguinte som de

fundo sugerido na rubrica: “rufo, flauta e violão agressivos. Prenunciando canção de

guerra”100. Elemento musical, no caso do rufar de tambores, que remete ao período

militar, à presença do exército.

No segundo ato, acontece toda a elaboração do ataque à Palmares. Os

negros possuindo pouco armamento são surpreendidos e condenados à derrota. Ganga

Zona é aprisionado. Zambi comete suicídio. No comando dos quilombos fica o jovem

Ganga Zumba. Logo depois, os últimos redutos da resistência negra são arrasados pela

tropa do bandeirante Domingos Jorge Velho, que fora recomendado pelo bispo para

comandar o ataque a Palmares, dando a sua bênção a expedição. A primeira fala do

comandante é uma referência ao presente, mais especificamente à tríplice que compõe o

poder no regime militar:

“Salve Governador...Ah, Eminência há quanto tempo! Assim é que eu gosto, Estado e Igreja em perfeita harmonia! Só faltava o Exército, hein?”101

Mas, apesar da derrota que sofrem os negros, a peça se encerra por uma

exortação onde se afirma a validade da luta. Há uma otimização em relação às

perspectivas de transformação no futuro. Ganga Zumba, cercado pelo inimigo, dirige à

platéia a seguinte fala:

“Eu vivi nas cidades no tempo da desordem. Vivi no meio da gente minha no tempo da revolta. Assim passei os tempo que me deru pra vivê. Em me levantei com a minha gente, comi minha comida no meio da batalha. Amei sem tê cuidado... Olhei

99 Ibidem, p. 31. 100 Ibidem, p. 33. 101 Ibidem, p. 44.

Comentário:

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tudo que via sem tempo de bem ver... por querer liberdade. A voz da minha gente se levantou. Por querer liberdade. E minha voz junto com a dela. Minha voz não pode muito, mas gritá eu bem gritei. Tenho certeza que os dono dessas terra e sesmaria ficaria mais contente se não ouvisse a minha voz... assim eu passei o tempo que me deru pra vivê. Por querer liberdade”102 .

Em seguida, a peça termina com a exaltação da liberdade, pelos atores:

“Entendeu que lutar afinal é um modo de crer é um modo de ter razão de ser”103.

Entende-se a derrota apenas com uma batalha perdida numa guerra que

ainda não terminou. Resta a esperança, a perspectiva de transformação a partir de um

movimento revolucionário, que se pretende desencadear no público, através dessa

tomada de posição instigada pela peça.

O texto é a reconstrução da história de Zumbi, formado também por

documentos, discursos, canções, dados e fatos da época. Para argumentação, Boal e

Guarnieri utilizaram-se do romance Ganga Zumba de João Felício dos Santos, além de

recorrerem às fontes documentais, que nem sempre eram usadas com exatidão, havendo

distorções dos fatos, assumidamente pelos autores. 104 Recorreram também à apropriação

e reelaboração de diversos textos históricos e literários, em que, numa interpretação

irônica ou distorcida, os autores aproveitaram para expor e reafirmar suas idéias, sua

perspectiva. Isso acontece, por exemplo, com cartas de Pero Vaz de Caminha ou poesias

de Padre Antônio Vieira105, como podemos ver na seguinte passagem, que pretende

mostrar a dominação ideológica, que busca convencer o negro sobre a existência de

vantagens na escravidão:

“Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à cruz e à paixão de Cristo do que o vosso”106.

É possível elencar várias passagens da peça que aludem aos

acontecimentos de 1964. Por exemplo: o discurso de posse do rígido governador D.

102 Ibidem, p. 49. 103 Ibidem, p. 49. 104 BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 203. 105 CAMPOS, C. A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 72. 106 BOAL, A. & GUA RNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 6.

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Ayres, que foi construído a partir de documento histórico e da fala do presidente Castelo

Branco ao tomar posse, de modo a acentuar o furor repressivo posto a serviço de um

poder externo107 :

“Senhores da discussão nasce a sabedoria. Opiniões diversas devem ser proclamadas, defendidas, protestadas. O dever dessa Capitania é a de todos ouvir, porém devem agir exclusivamente segundo lhe ordena sua própria consciência individual. Sejamos magnânimos na discussão, mas duros na ação. Plurais na opinião, singulares na obediência de minha ordem. Descontentes haverá e sempre. Um governo enérgico toma medidas impopulares de proteção à Coroa, não aos insatisfeitos. Meu governo será impopular; e assim, há de vencer, passo a passo dentro da lei que eu mesmo hei de fazer. Senhores, vós guerreais como quem faz política, eu farei política como quem guerreia. Vossas entradas são derrotadas pela pluralidade de opiniões e partidos de pensamento. Minhas entradas serão vitoriosas pela unicidade do ataque. A independência é necessária na teoria, na prática vigora a inter-dependência. Não é aqui, neste Brasil, que as decisões devem ser tomadas: é na Metrópole, nossa Mãe Pátria, a quem devemos lealdade, a quem devemos servir como vassalos fiéis”108.

A aliança dos quilombolas com os brancos comerciantes, em analogia à aliança das

classes trabalhadoras com setores da burguesia; diversas expressões como “infiltração

negra” (que se pode ler comunista), “exterminar a subversão”, “moralização”, “valores

de nossa sociedade”; e os papéis da campanha militar, da Igreja, da religião, como já

apontamos, presentes em ambos os períodos.109 A peça está intimamente ligada aos

acontecimentos do país naquele momento, já que é possível percebê- los no texto e a

própria encenação acompanhava o desenrolar dos fatos.

É um momento de total renovação estética. O caráter épico110 remete a

influências brechtianas, no que Boal define como “poética marxista”111. Isso impõe um

107 CAMPOS, C. A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 75. 108 BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 33.

109 CAMPOS, C. A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 75. 110 No capítulo “Hegel e Brecht: Personagem-Sujeito ou Personagem-Objeto”, Augusto Boal discute o conceito de épico, a partir de elaborações de Brecht: “A chamada forma ‘épica’, segundo Brecht – poética marxista: 1.o ser social determina o pensamento (personagem-objeto); 2.o home m é alterável, objeto de estudo, está ‘em processo’; 3.contradições de forças econômicas, sociais ou política movem a ação dramática, a peça se baseia em uma estrutura dessas contradições; 4.historiza a ação dramática, transformando o espectador em observador, despertando sua consciência crítica e capacidade de ação; 5.através do conhecimento, o espectador é estimulado à ação; 6.razão; 7.o conflito não se resolve e emerge com maior clareza a contradição fundamental; 8.as falhas que o personagem possa Ter pessoalmente não são nunca a causa direta e fundamental da ação dramática; 9.o conhecimento adquirido revela as falhas da sociedade; 10.é narração; 11.visão do mundo; 12.exige decisões”. (BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.115-116). 111 Discutindo o conceito de “épico” e a definição de personagem para Hegel e Brecht, Augusto Boal levanta a seguinte questão: “A objeção de Marx a Hegel e, portanto, de uma Poética marxista a uma poética idealista, inverte os termos da proposta. Qual dos dois termos precede o outro? Para Brecht, evidentemente a objetividade é anterior. Se, por um lado, para a poética idealista, o pensamento condiciona o ser social, por outro lado, para a poética marxista, o ser social condiciona o pensamento social. Para Hegel, o espírito cria a ação dramática; para Brecht, a relação social do personagem cria a

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distanciamento, uma visão crítica pela platéia que tem em sua frente o ator

representando um acontecimento e ao mesmo tempo expondo sua opinião e a do autor a

respeito do assunto. Desenvolve-se a função analógica, em que se comenta ao mesmo

tempo passado e presente, no intuito de demonstrar, metaforicamente, através da

representação do Teatro de Arena, uma batalha travada há anos e que deve ser

recuperada no momento.

Todos os elementos cênicos revelam um novo tipo de encenação. A

começar pela ambientação, que é sugerida pelo próprio texto, por efeitos sonoros e de

iluminação, pela interpretação dos atores. Não há cenário, nem figurino caracterizado.

Os atores se vestem da mesma maneira (calça Lee e camiseta colorida) e o jeans, ao não

remeter mais ao Brasil Colonial, alude ao presente, ou ainda à realidade do Brasil sob a

ditadura militar. Ou seja, com uma concepção que busca evitar o ilusionismo 112 e

demonstrar a teatralidade, acaba-se por aproximar do tempo de que fala a peça: 1964.

Dessa forma, podem fazer todas as personagens, pois serão reconhecidos pela palavra,

pelo gesto, pela postura, além de música e iluminação própria.

A personagem deixa de ser um indivíduo com conflitos particulares para

mostrar-se como integrante de um grupo social, com conflitos dete rminados pelo social,

pela relação com o outro grupo. Propositadamente, os papéis são estereotipados,

representando forças sociais antagônicas e não conflitos psicológicos internos, angústias

vividas na relação com o outro, mas vividas na sua inserção na estrutura econômica e

social. Questão que esteve presente em todos os momentos do Arena, mas que nos

musicais se mostra mais definidamente, por estar inserido em um outro contexto: o

regime militar, em que as liberdades estão restringidas e a arte sofre com a censura.

Dessa forma, através de uma linguagem analógica, em que se falando do passado fazia-

ação dramática. (...) A Poética brechtiana não é simplesmente épica: é marxista e, sendo marxista, pode ser lírica, dramática ou épica.” (BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.113-114). 112 Até certo tempo, mais especificamente fim do século XIX, a preocupação era buscar o poder ilusionista do espetáculo para que se pudesse levar o espectador a uma confusão ou fusão da ficção com a realidade. E para isso “todo e qualquer instrumento de produção da ilusão teatral devia estar camuflado, tornado invisível ao espectador, sob risco de lembrar-lhe que estava assistindo a uma tentativa de mistificação da qual ele era, com seu próprio consentimento, a vítima. Eis por que, na tradição ocidental, o palco fechado suplanta o palco aberto (...) A abertura do palco é delimitada por uma moldura opaca (reguladores e bambolinas cuja função consiste precisamente em esconder da vista do público tudo que produz a ilusão – varas e urdimento para o cenário, ribalta e gambiarras para a iluminação). Já a cena aberta (o teatro medieval, o palco elisabetano, os tablados da commédia dell’arte) que está sendo redescoberta hoje em dia oferece perspectiva mais ampla, possibilidades teatrais de extrema variedade, sem se preocupar especialmente em camuflar os instrumentos do espetáculo.” (ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral – 1880-1980. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.)

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se uma leitura do presente, buscava-se discutir os acontecimentos de 64. E para isso,

novas formas teatrais foram utilizadas, visando a eficiência do discurso político.

Dá-se a desvinculação ator/personagem, permitindo um elenco menor e

uma economia financeira. Aqui há grande influência do teatro grego 113, que trabalhava

com dois ou três atores, dividindo vários papéis e usando máscaras para diferenciarem

os personagens. No Arena também usava-se a máscara114, porém social, isto é, os atores

construíam coletivamente o gestual, o modo de falar, as entonações, a movimentação de

cada personagem. Por exemplo, o rei Zambi, que deve ser sempre majestoso, ter uma

postura ereta, a voz forte e emocionada e destacar-se dos demais. Tudo isso permite a

encenação de uma história com tantos acontecimentos, em variados lugares e

personagens. Havendo cenas que se passam em pleno alto mar, por exemplo, sendo a

ambientação toda caracterizada pela movimentação dos atores, que no caso se jogam no

chão remando, simulando um barco.

Outro aspecto inovador é a ausência de unidade de estilo. Há um ecletismo

de gênero, que varia de acordo com a necessidade de cada cena. Daí a possibilidade de

conciliar cenas inspiradas em Brecht e outras em Stanislavski, operando com o

distanciamento e a identificação, para que o teatro possa cumprir seu papel daquele

momento, que era tanto criticar como entusiasmar. 115 Não há um rigor que a peça seja

113 O poeta Tespis teria sido o primeiro a representar o papel de ator num drama das dionísiacas (festas ao deus Dionísio) das cidades gregas. Ésquilo, escritor de tragédias, aumentou o número de atores para dois, diminuiu a importância do coro e criou o primeiro diálogo. Sófocles elevou o número de atores para três, colocando-os em cena. Os atores, todos masculinos, são conhecidos através da pintura ou escultura, mas ignora-se seus gestos e sua voz. Assim, só se pode falar deles através de seus aspectos simbólicos: máscara e traje. O ator antigo se “apaga” atrás de seu papel, mesmo fisicamente: a máscara oculta seu rosto e deforma, ampliando, sua voz; a veste e o manto, igualmente amplos – ao menos na tragédia – esconde seu corpo tão bem que ele se torna aos olhos do espectador, o personagem que representa naquele momento. Pois no instante seguinte pode interpretar outro papel, já que o traje (que pode rapidamente ser trocado) permite a um ator desempenhar na mesma peça vários papéis diferentes. (GASSNER, John. Mestres do Teatro I. 2ª ed., São Paulo: Perspectiva, 1991). 114 No teatro grego, quando falamos em máscaras, estamos falando dos objetos usados no rosto pelos atores para evitar a confusão da platéia ao alternarem entre si a interpretação de todos os personagens da peça e que representavam um “poderoso meio de prender a atenção, criando excitação e expressando a essência do drama. Todos os atores usavam máscaras alongadas e grotescas de linho, cortiça e madeira, que se tornaram maiores e mais curiosas com o tempo. Ainda que bastante estereotipadas, retratando atributos gerais, tais como a crueldade, a astúcia e o sofrimento, esses disfarces possuíam considerável variedade”. (Ibidem, p. 30). Porém, quando estamos nos referindo ao Arena, a máscara já não é essa física que vemos, “mas sim um conjunto de ações e reações mecanizados dos personagens. (...) Em Zumbi, independentemente dos atores que representavam cada papel, procurava-se manter, em todos, a interpretação da ‘máscara’ permanente de cada personagem interpretado. Assim, a violência característica do Rei Zumbi era mantida, independentemente do ator que interpretava em cada cena. A ‘aspereza’ de Don Ayres, a ‘juventude’ de Ganga Zona, a ‘sensualidade’ de Gongoba, etc.” (BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 199-200). 115 SCHWARZ, R. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 84.

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encaixada em uma ou outra técnica dramatúrgica. Encontram-se cenas elaboradas desde

o teatro de agitação até o naturalismo116, todas girando em torno da mesma temática: a

luta entre o opressor e o oprimido e a busca deste por liberdade. No que se refere a

utilização de slides, projeções, fotos, leitura de poemas, documentos, cartas, notícia de

jornal, exibição de filmes enfim, recursos extrateatrais que pudessem ajudar a explicar e

tornar mais evidente a realidade na qual a peça se baseia, para evitar que se pensasse

nos símbolos por eles mesmos e não em analogia a outros elementos, constata-se a

influência de Piscator que usou esses elementos pela primeira vez em um espetáculo

teatral. Mas também remete-se ao CPC117 (Centro Popular de Cultura) que já utilizava

em suas encenações essa forma do teatro de agitação, de intervenção. E “é nesta

perspectiva que o recurso ao ‘teatro-documento’ ou ao ‘teatro de fatos’ adquire todo

seu sentido. Sabemos: trata-se de colocar em cena fatos verdadeiros, dados brutos (...)

Pois, como afirmava Piscator, ‘a realidade é sempre o melhor teatro’. Não se deve ver

aí uma retomada da ambição dos naturalistas: não se trata de reconstituir no palco

uma aparência de realidade coerente e acabada. Este teatro de fatos procura

essencialmente despertar o espectador, tirá-lo de seu entorpecimento e de suas

certezas: mais que imitar a realidade, emprega-a para violentar as defesas de seu

público. Literalmente, lança pedaços desta realidade ao público. Quer obrigá-lo a

tomar posição”118.

116 Teatro Naturalista: sustenta-se na idéia de colocar a vida no palco, mostrá-la, representar no teatro a sociedade, mas de maneira a envolver o espectador, fazendo-o se sentir parte da história contada. Assim era urgente alargar o quadro de personagens representadas – aristocratas, burgueses não bastavam mais, era necessário colocar em cena o povo, porém, seu drama individual predominava sobre a situação histórica geral. Dessa forma, a encenação busca a espontaneidade e a verdade na interpretação dramática, em que o ator deve observar e imitar as atitudes da vida cotidiana; os personagens não devem ser representados, mas vividos; a linguagem cênica deve ser autêntica, jamais superficial, aproximando-se da linguagem falada e não da literária; o espetáculo deve desenvolver-se como que atrás de uma “quarta parede”, para que o espectador tenha diante de si um “pedaço da vida”. Seu grande representante foi Émile Zola – romancista, dramaturgo e crítico. (DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977). 117 Oduvaldo Vianna Filho ao sair do Teatro de Arena, funda juntamente com Leon Hirzman, Chico de Assis, Carlos Estevam Martins entre outros, o Centro Popular de Cultura, mais tarde o CPC da UNE, que existiu de 1960 a 64. Vianinha justifica sua saída do Arena pela incapacidade do grupo em atingir parcelas maiores e mais populares da população e vai em busca de seu projeto que era instrumentalizar o teatro para a realização da transformação política. A produção no CPC influencia bastante os musicais do Arena no que se refere à construção formal dos espetáculos, já que trabalhava com elementos do teatro político alemão (Piscator/Brecht), como pode ser visto na ruptura com a cena realista que promove, esquecendo o drama psicológico e evidenciando a noção de representação, com a utilização de slides, cartazes, do rompimento palco/platéia através da construção do texto, da interpretação do ator que revele para o público sua intenção, sua opinião. Além disso, o CPC decide não assinar individualmente nenhum texto, valorizando as produções coletivas. Entre elas estão: A mais-valia vai acabar, seu Edgar e O Auto dos 99%. 118 DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 27-28.

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Porém, apesar desse ecletismo de gênero, o espetáculo em seu conjunto

pode ser classificado dentro de um, especificamente, que perpassa a obra: o musical.

Mesmo trazendo semelhanças com o teatro de revista, no que se refere à comicidade, a

piada descomprometida, Arena Conta Zumbi inova por tratar de um tema histórico, com

preocupações políticas.

Às vezes, um mesmo recurso é aproveitado de diferentes maneiras, como a

comicidade. A diferença do humor usado para as cenas dos negros, em que se pretende

ressaltar alegria, sensualidade, positividade, por exemplo, na seqüência das músicas

Dádivas da Natureza, Samba do negro valente e das negras que estão de acordo, A mão

livre do negro e depois na cena Construção de Palmares119; e quando é utilizado para os

brancos, em que se busca invocar a falsidade, a negatividade, a malícia, o mau-

caratismo. Assim, no momento em que a comicidade é empregada aos escravos, há uma

diferença de objetivo: busca-se a simpatia, a aproximação, ao contrário das cenas dos

inimigos, em que se quer provocar o distanciamento, o repúdio.

No decorrer da peça, também no que se refere à ausência da unidade de

estilo, há ainda uma divisão esquemática: os negros atuam no terreno da tragédia, do

poético (por exemplo, as falas do rei Zambi são quase sempre em versos), enquanto os

brancos estão localizados na paródia, na farsa, no cômico. A comicidade e o poético são

grandes pilastras no espetáculo, que vão se alternando entre as cenas curtas.

A partir da constatação da “existência de uma hierarquia que privilegia

temas/narrações trágicas e/ou dramáticas em detrimento da comédia e da farsa”120, a

historiadora Rosangela Patriota, discute no texto “O lugar da tragédia e da comédia na

construção do erudito e do popular na tradição literária”, os pressupostos hierárquicos

que envolvem a classificação destes gêneros. Dialogando com os autores Aristóteles e

Mikhail Bakhtin, a autora observa “que o canon ocidental, ao excluir a comédia,

(ancorado na escassez de informações de sua produção na antigüidade grega), forjou,

119 “- Êi negro motá, vem cá me ajudar com essas estacas./ - É gente trabalhando, e gente nascendo e gente batizando e gente desbatizando./ - Meu nome de escravo era João Romão./ - Em nome de Olorum pois fica sendo É-Bilaí./ - Meu nome de escravo era Pedro./ - Em nome de Olorum pois fica sendo É Turiandú./ - Meu nome de escravo era Zé Firi./ - Em nome de Olorum pois fica sendo É Firiri./ - Num mudou quase nada.../ (...)/ - Tem gente trabalhando, tem gente nascendo, tem gente crescendo e gente casando./ (...)/ - Ei, Segé, tu nim casou ainda aintes de ontem com a Milena?/ SEGÉ – Foi./ - Pois que faiz tu aqui com a desconhecida.../ SEGÉ – Casei inda agorinha. Agora são a Milena, Micoti, Rainha, Turiadá. E agora mais a Eforge. Dentro da lei e com todas as benção./ - Ei, Palmares crescendo./ SEGÉ – As quatro de antes já estão com cria no bucho. Agora vou botar no buchinho desta aqui também./ (...)/ - Ai!/ - Que foi bantú?/ - Martelei o dedo.” (BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 18). 120 PATRIOTA, Rosangela. O lugar da tragédia e da comédia na construção do erudito e do popular na tradição literária. História: Fonteiras. p. 833.

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também, os parâmetros do erudito e do popular, na medida em que o primeiro

associou-se ao trágico e o segundo à comédia. Esta opção possui implicações estéticas

e políticas , pois, como bem lembrou Umberto Eco, o riso tem a capacidade de liberar e

produzir questionamentos, pois a comédia, ao contrário da tragédia, não propicia a

identificação do espectador com o que ocorre em cena, pelo contrário, ela pode

suscitar o ‘estranhamento’, a crítica, bem como permite romper o espaço das

hierarquias estabelecidas”121.

Porém, não é o que ocorre, pelo menos em parte na construção dramática de

Zumbi. Aqui opera-se o contrário: aqueles que estariam localizados no plano do

“erudito” – os brancos – estão associados ao cômico, enquanto outros que estariam no

plano do “popular” – os negros – associam-se ao trágico. Mas como aponta a discussão

de Patriota, o riso provoca o distanciamento, suscita a crítica, derruba as hierarquias,

tornando possível rir, gozar de um personagem representante da alta classe, do poder,

que busca a subserviência, o respeito e a obediência dos outros pela imposição, mas o

que consegue então é tornar-se ridículo e patético aos olhos da platéia. Enquanto a

tragédia procura despertar a empatia, a identificação e em decorrência uma tomada de

posição ao lado desses personagens trágicos.

Então, partindo desse ecletismo de gênero, para que haja clareza na estrutura

dramática da peça e não aconteça um caos comprometendo a compreensão do público,

há a presença do cantador e do coro, mais uma influência do teatro grego, que podem

ser desempenhados indiferentemente por todos os atores e que têm como função

reforçar o seu caráter narrativo, orientando o espectador no entendimento das cenas ou

de acontecimentos que não são encenados, mas apenas contados, fazendo a ligação entre

elas, resumindo- lhes o conteúdo, para analisar o que acabou de ser mostrado ou

introduzir o que virá. Além de servir de porta-voz para os autores que reafirmam seu

ponto de vista:

“CANTADOR – É justo neste instante, instante de espanto e emoção que paramos nossa história prá aliviar atenção. Temos nós nosso direito de dar descanso à falação Tome café no barzinho que depois vem continuação. Até já meu senhorzinho, se não gostou peço perdão, Até já irmão, até já irmão”122.

121 Ibidem, p. 840. 122 BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 34.

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Dessa forma, a música vem como suporte de conceitos, prepara a platéia

para a reflexão ou para a emoção, poupa o espetáculo do discursivo, quebra um

momento, desalienando o público, que tem os atores posicionados à sua frente, expondo

um comentário irônico, alegre, às vezes sério que procura desmanchar qualquer

possibilidade de entorpecimento pela ficção. Sua intervenção não busca realçar o clima

de uma cena, mas ao contrário provocar rupturas e ela se mostra exatamente como

música de teatro, não hesitando, se necessário, “em citar-se a si mesma, em pegar

emprestadas certas fórmulas que remetem a formas tradicionais , familiares,

conhecidas do espectador: a ópera, o cabaré, o circo...”123. Aqui também pode-se ver

bastante influência de Brecht que atribuía à música a seguinte função: “interromper a

continuidade da ação, romper a unidade da imagem cênica, despsicologizar o

personagem opondo-lhe uma contradição; enfim destruir todos os efeitos do real

eventualmente induzidos pelo espetáculo”124 . Brecht justapõe as referências mais

diversificadas, sem fundi- las. E Boal e Guarnieri trabalham essa multiplicidade em

Arena Conta Zumbi, como podemos ver, por exemplo, na cena em que o cantador

anuncia festa no palácio do governador, com presença de Dom Ayres. Vêem-se

justapostas as idéias de festa, religião (reza), a música clássica (flautim com música

seiscentista), a feira popular (cantador que deve cantar firme, aludindo aos repentistas

do Nordeste).

A peça propõe contar a história de Zumbi de Palmares, uma luta travada no

passado “que se parece ao presente/ pela verdade em questão/ (...) é luta que vence os

tempos,/ luta pela liberdade!”125 pretende-se mostrar “quem está com a verdade,/ quem

está com a mentira”, de forma esquemática, maniqueísta mesmo, assumidamente pelos

autores, para mais direta e claramente atingir suas propostas.

Ao dedicar o espetáculo “a todos aqueles que, através dos tempos” lutam

pela liberdade, os autores querem chamar a atenção da platéia para o presente,

mostrando que ainda se trata de algo a ser conquistado. Na fábula, os escravos são

convocados à ação, a saírem da passividade, mas o tom de conclamação ultrapassa a

arena, busca-se o espectador.

Dentro da temática da escravidão o negro está configurado como o valente,

o rebelde, o herói. Porém, na cena em que toma as matas, um deles diz:

123 ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral – 1880-1980. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. p. 140. 124 Ibidem, p. 141. 125 BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Zumbi. p. 1.

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“Não quero ser livre. Ser livre pra que? (...) Quem muito quer cai em desgraça. Deixa de ser tão querençoso, mano. Aqui se come, se bebe, se tem teto pra dormir. Negro ladino consegue escapar da chibata e até que a sinhá daqui não é das mais malvadas.”126. A resposta a esse questionamento vem em forma de canção, mostrando o

negro que busca um mundo mais justo, mais igual, construído por sua força e união,

onde possa ser feliz com sua família, numa idéia ampla de liberdade:

“Só o verde da mata num dá/ pra um homem ser feliz/ é preciso ter mulher, pra saber o que se diz./ liberdade somente não dá, - não!/ pra se Ter um bom viver,/ sem o carinho da minha nega é melhor morrer”127.

A última fala de Ganga Zumba é uma afirmativa da validade da luta e uma

retomada do discurso de Zambi antes de sua morte, pois, antes de suicidar-se, confia a

seu bisneto a liderança do movimento, da batalha. Então, na cena final, os negros estão

derrotados, mas não vencidos, encontram-se ainda dispostos a lutar e resistir. Aliás essa

é a idéia que percorre a peça: uma guerra que não terminou, que ainda deverá ser

definida na luta pela liberdade, contra a tirania e a opressão. O espetáculo busca suscitar

na platéia uma atitude de resistência.

Nesse sentido, o texto ganha amplitude, saindo da idéia de datada, conforme

inúmeras críticas apontam. Pois mesmo que haja circunstâncias que façam alusão a seu

tempo, até porque o tema prende-se ao imediato, às questões políticas do momento, não

se esquecendo que uma obra é filha de seu contexto histórico, Zumbi contém algo

universal e atemporal (daí também o seu sucesso internacional): a luta do oprimido

contra o opressor.

E mostrando isso no palco, ainda não se estava no nível de apontar

caminhos, soluções e sim no plano da constatação, do entendimento, da denúncia, da

resistência. Antes de tudo era preciso estar vivo.

Além dessas questões, é inegável a inovação estética trazida por Zumbi ao

teatro brasileiro, que a despeito de qualquer vedetismo ou estrelismo, consagra a criação

coletiva, o teatro de equipe que inicia um momento de reformulação da encenação,

provocada pelo contexto político-social. Nesse sentido, agora mais do que em outros

períodos de sua trajetória, essa pesquisa e conseqüente mudança se dão em função da

126 Ibidem, p. 7. 127 Ibidem, p. 9-10.

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eficiência do discurso político. Porém, nesse ponto, o Arena sofre inúmeras críticas

daqueles que opõem “teatro engajado” e “teatro estético”, oposição que parece

ultrapassada.

Entendemos obra de arte engajada como aquela que explicitamente assume

a mensagem política. Assim ela pode ser política e não necessariamente engajada.128

Dessa forma, temos diferentes momentos da discussão política no Arena, que sempre se

propôs discutir a realidade em cena, mas que teve, em algumas fases, o engajamento

como o elemento fundamenta l e em outras colocou no palco questões sociais ou até

mesmo particulares do ponto de vista emocional, mas que conseguem projetar uma

discussão mais ampla.

Nessa perspectiva, é evidente que a visão dos autores sobre a década de 60,

mais especificamente, o golpe militar de 64, está representada em sua obra.

Logicamente, há na peça a discussão política, mas dentro de uma dimensão estética,

pois, em nenhum momento, deixou-se de buscar a qualidade estética dos trabalhos.

E ainda seria pertinente considerarmo s que, se a obra de arte é uma

interpretação de aspectos da realidade concreta, nenhuma produção artística está

despida de caráter ideológico ou de classe.

Assim não pretendemos compreender os espetáculos do Arena e as posições

estéticas e políticas dos autores refletidas neles a partir de valores externos à sua

construção, mas sim percebê- los como documentos de luta de um grupo de artistas que

enfrentavam com “cenários, tanques; com figurinos, fuzis”129.

“ARENA CONTA TIRADENTES”

Novamente partindo da idéia, de que por meio de um acontecimento

histórico do passado (séc. XVIII), pode-se falar do presente e discutir suas questões

políticas e sociais, Arena conta Tiradentes reelabora a estrutura utilizada em Zumbi,

tornando-a mais complexa e definida, pois há maior quantidade de informações

128 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p. 20. 129 BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro – memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 270.

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lançadas nas cenas e relação mais completa entre razão e emoção, a fim de ser mais

eficaz na transmissão da mensagem política.

Arena conta Tiradentes é uma peça em dois atos, ou um coringa em dois

tempos, como preferem os autores Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri.. As

músicas são de Theo Barros, Sidney Miller, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Estreou em

21 de abril de 1967130, com direção de Augusto Boal. É composta de 30 cenas e 19

canções, havendo repetição de algumas e sendo que a música assume toda variedade de

movimentos da peça. Às vezes, vem como comentário, como sátira, provocando

distanciamento, outras buscam o emocional, ou ainda algumas melodias usadas para

criar o clima da cena.

Há um maior número de rubricas131. São 238 ao total, enquanto em Zumbi

somavam 56. Isso é de extrema importância, pois dá, tanto ao encenador quanto ao

pesquisador, mais informações sobre a construção dos personagens e o papel de cada

elemento teatral na elaboração das cenas.

A peça inic ia-se com uma canção que afirma a validade da luta, estando os

atores em cena, cantando em coro, no escuro, com tema de seresta, sendo que o

andamento e o tema vão sofrendo modificações, tornando-se mais agressivos. A música

é Dez vidas eu tivesse (poema de Cecília Meirelles):

“Dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria. Dez vidas prisioneiras Ansioso eu trocaria, Pelo bem da liberdade, Nem que fosse por um dia. Se assim fizessem todos, Aqui não existiria Tão negra sujeição Que dá feição de vida Ao que é mais feia morte; Morrer de quem aceita

130 A estréia aconteceu em Ouro Preto, cidade onde Tiradentes viveu, indo depois para a sede do Arena em São Paulo. Como relembra Boal: “antes da estréia, fizemos algumas cenas de teatro quase-invisível: os atores representavam cenas nas filas de ônibus, nas mesas dos bares, vestidos como personagens, mas sem darem a impressão de ser teatro e sim realidade – os espectadores ficavam assustados ouvindo falar de insurreição, de não pagamento de dízimos à Coroa etc. Ótima maneira de se ensaiar...” (Ibidem, p.157). 131 Rubrica: “qualquer palavra escrita de um texto teatral que não faça parte do DIÁLOGO. Essas palavras podem ser tanto o nome do personagem diante de cada FALA, quanto a descrição do PERSONAGEM, do CENÁRIO, do FIGURINO, ou indicações de entradas e saídas de CENA, sugestões de MARCAÇÃO ou, ainda, comentários explicativos ao estado de espírito dos personagens (...)” (VASCONCELLOS, L. P. Dicionário de Teatro . 3ed. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 171).

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Viver em escravidão. Dez vidas eu tivesse Dez vidas eu daria. Mais vale erguer a espada Desafiando a morte Do que sofrer a sorte De sua terra alugada ...”132

Luzes. Todo o elenco em cena. Os fatos seguem ordem cronológica, exceto

dois que quebram a seqüência linear: a sentença contra o Alferes, que lida no início da

peça, coloca no passado a ação dramática; e o interrogatório de Tiradentes, que se

encontra no decorrer do texto, e é composto de informações de origens variadas, reais e

ficcionais. Após a leitura da condenação de Tiradentes, o Coringa localiza no tempo e

no espaço, a partir de qual perspectiva seria contada a história:

“Nós, somos o Teatro de Arena. Nossa função é contar histórias que conta o homem; às vezes conta uma parte só: o lado de fora, que todo mundo vê mas não entende, a fotografia. Peças em que o ator faz macarrão e faz café, e a platéia só aprende a fazer macarrão e fazer café, coisas que já sabia. Outras vezes, o teatro explica o lado de dentro, peças de idéia: todo mundo entende mas ninguém vê. Entende a idéia mas não sabe a quem se aplica. O teatro naturalista oferece essência sem idéia, idéia sem experiência. Por isso, queremos contar o homem, quando necessário. ‘Arena conta Tiradentes’ – história de um herói da liberdade nacional”133.

E faz uma dedicatória a José Joaquim de Maya, que foi, segundo o Coringa

(os autores), “o primeiro homem a se preocupar com a liberdade no Brasil ”134. Em

seguida, acontece a cena em que Maya, estudante brasileiro em Montpellier, França,

escreve pedindo ajuda à Thomaz Jefferson, herói da independência norte-americana, na

libertação do Brasil. Porém, este coloca que o apoio só viria depois dessa ação realizada

e sob a condição comercial imposta por ele:

“(Tom de velha e carinhosa mãe gorda) – Ideal sagrado a liberdade! O povo brasileiro pode contar com a nossa estima e carinho, mas não com nosso rompimento de relações comerciais com Portugal. O povo brasileiro pode contar com todo nosso apoio moral, mas não com nossos navios. E quando o povo brasileiro por si só, já tiver conseguido a libertação poderá contar com os nossos oficiais para adestrar seu exército. Em troca o Brasil deverá tão somente comprar o nosso bacalhau”135.

132 BOAL, A. & GUARNIERI, G. Arena conta Tiradentes. p. 1. 133 Ibidem, p. 2. 134 Ibidem, p. 2.

135 Ibidem, p. 3.

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No 1º episódio, do ato I, apresentam-se os vícios do governo de Cunha

Menezes, o Coringa comenta:

“Luiz da Cunha Menezes construiu casa, rua, palácio. Extraiu minério, ouro, diamantes! Quis esquecer que o Brasil era colônia, mas não esqueceu de tudo; esqueceu só de mandar ouro para Portugal. Esqueceu no seu bolso. Fez obra monumental! Obra símbolo do Brasil – a Cadeia Pública – símbolo do Brasil Colônia! Era homem honesto. Para sua construção, abriu concorrência pública, e honestamente contratou quem honestamente ofereceu melhores condições. Isto é, a mais honesta porcentagem para ele próprio, Governador”136 .

Há também, a construção da Cadeia Pública que demonstra a corrupção, a

exploração capitalista a que são submetidos os prisioneiros e a submissão sofrida pelo

país naquele período.

Ainda nesse episódio, Tiradentes, na casa de pilatas, numa conversa com

Mônica (prostituta), em que fala sobre a participação do povo nas decisões do país,

escolha de governos, submissão econômica à metrópole, libertação das colônias entre

outros, começa a expor suas id éias revolucionárias de libertação e independência. No

entanto, a moça repudia toda a fala de Tiradentes, pois lhe interessa sua tranqüilidade,

seu comodismo, refletindo toda a submissão que toma conta de sua consciência. E há

uma rubrica para a personagem Mônica, que conversa com o alferes, muito apropriada:

“Para ela a conversa de Tiradentes é muito engraçada; tem tanta graça como se hoje

se falasse de Reforma Agrária ”137. Chega Maciel que planeja o levante com o alferes,

enquanto em Vila Rica, acontece no Palácio do Governo, a posse do Visconde de

Barbacena, que substitui Cunha Menezes e nomeado pela Rainha, para lançar a derrama

(pagamento da dívida), para espanto de todos que esperavam um governante menos

duro. Após seu primeiro discurso, “(...) Só vos peço isso: digam comigo – confiamos no

Brasil! Apostamos no Brasil! Critique menos e trabalhe mais!”138, segue-se uma

marcha, que remete a inúmeras outras criadas no regime militar, para promover a

alienação, eram meio de propaganda e dominação ideológica:

“Se o governo é bom ou mal, vamos todos melhorar: dê seu ouro a Portugal. Existem muitas colônias, Que se tornaram mais florentes,

136 Ibidem, p. 6. 137 Ibidem, p. 13. 138 Ibidem, p. 24.

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Quando pagam suas dívidas E à Coroa são tementes. Trabalhe sem entender, Dê dinheiro e seja ousado. Pagando somos felizes Num país escravizado...”139

Em seguida, acontece o primeiro interrogatório de Tiradentes no texto, que é

feito pelo Coringa.

O 2º episódio tem início com o diálogo entre o governador Barbacena e o

Tenente-Coronel Francisco de Paula, em que aquele ordena: “É perigoso deixar o povo

pensar sozinho. (...) A tropa que passeie pela rua. A força que exibe vale mais do que

realmente se tem”140. Em seguida, entram Tomás Antônio Gonzaga, Domingos de

Abreu Vieira, Claúdio Manuel da Costa e João Silvério dos Reis, que apesar de serem

todos aristocratas, têm interesses divergentes, o que os leva a estarem dispostos a se

aproveitarem um do outro ou a se unirem, caso vejam seus lucros ameaçados.

Barbacena ordena o fechamento das fábricas de Domingos. Silvério resolve ficar com

seus duzentos escravos, agora “sem serventia”, “conforme o preço e o prazo”. Porém, é

exigido pelo governador, que antes ele pague as dívidas com a Coroa. Silvério se vê

impossibilitado de pagar com um empréstimo a juros, que Claúdio lhe faria, devido a

nova lei de Barbacena que “elimina a usura e extingue o crédito”141. Então após

discussão de não lançar a derrama, Barbacena decide escrever à Rainha propondo

adiamento, desde que os outros se comprometam a obedecer as novas leis impostas.

Na seqüência, há uma entrevista feita pelo Coringa, assim como é feita em

campo de futebol, com Barbacena, que é questionado sobre sua atitude, ao que responde

que visou a conciliação e com isso “a certeza da aplicação das leis em troca de um

hipotético adiamento da Derrama. Até lá eu preparo meu exército...”142 . Depois a

entrevista acontece com um garimpeiro, que se mostra como a classe revolucionária,

ligada ao setor econômico mais importante da época:

“CORINGA

Mas se alguém organizasse a resistência, o povo ia junto?

GARIMPEIRO

139 Ibidem, p. 24.

140 Ibidem, p. 26. 141 Ibidem, p. 28. 142 Ibidem, p. 30.

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Ah, isso é mais que mais que certo. Estourou o fuzelê, nós tá. O difícil é estourá ”143 .

No 3º episódio, desenrola-se a preparação da revolta, através de uma

construção dramática, que se dá de forma que duas cenas vão se alternando: uma se

passa na casa do Tenente-Coronel Francisco de Paula, onde estão, além do próprio,

Tiradentes, Maciel, Domingos Abreu Vieira, Carlos de Toledo, João Silvério dos Reis

(e às vezes, Alvarenga); a outra tem como cenário a residência de Tomás Antônio

Gonzaga, onde se encontram, além dele, Claúdio Manuel da Costa, Bárbara Heliodora

(e às vezes, Alvarenga e Cônego Luiz Vieira). Enquanto o primeiro grupo discute a

revolta, como fazê-la, os homens e as armas de que dispõem, a participação do povo

(libertação dos escravos que, de imediato, é rebatida), os outros discutem o dístico da

bandeira, a cor, a criação de uma universidade, onde será a capital, enfim planos

futuros, idealização. Não propõem nada prático para a ação de libertação, limitam-se ao

plano das idéias. Barbara Heliodora, mulher de Alvarenga, diz: “vocês gastaram tanto

tempo fazendo o dístico que agora só ficou faltando fazer a independência. Se tivessem

gasto o mesmo tempo fazendo a independência, agora só faltaria o dístico”144. Ao final

unem-se os dois planos e traçam o plano de tomada do poder, combinando a ação de

cada um, o dia (lançamento da Derrama) e a senha (“É hoje o dia do meu batizado ”).

O ato II é dedicado à narração do malogro e inicia da mesma forma que o

ato I: no escuro, o coro canta. Logo no início há uma entrevista do Coringa com

Silvério, que estava à caminho do palácio para entregar a carta de delação ao Visconde

Geral e que faz uma análise clara do insucesso da composição, da postura dos

inconfidentes e da ausência do povo no movimento. É o momento em que o personagem

revela para a platéia suas intenções secretas:

“CORINGA

Ao que leva o medo, hein Silvério?

SILVÉRIO

Medo coisa nenhuma. Se valesse o risco até que o medo a gente enruste. Mas

vamos falar com franqueza: já pensou direito em quem está metido nessa rebelião? Um bandinho de intelectuais que só sabe falar. Porque a liberdade...a cultura...a

coisa pública...o exemplo do Norte... na hora do arroxo quero ver. O outro lá

143 Ibid em, p. 39.

144 Ibidem, p. 49.

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comandante das tropas, o que quer mesmo é posição seja na República, na Monarquia, no comunismo primitivo, o que ele quer é estar por cima. Olha velho, dessa gente, a maioria está trepada no muro: conforme o balanço, eles pulam pra

um lado. E eu aqui vou nessa? Mas nunca.

CORINGA

Então você não acredita mesmo nesse levante?

SILVÉRIO

Condições havia, mas agora não. Povo, que é o que resolve mesmo nessa hora, não se pode contar com ele. O povo não se reúne na casa do Ouvidor Gonzaga e muito menos na do Tenente-Coronel. (...) Bom, lá vou eu...E de agora em diante

com um novo título: o mais famoso dedo-duro do Brasil. Adeus”145.

O 4º episódio trata da delação, da perseguição e da prisão dos inconfidentes.

Quando tem início a repressão à conjura, alguns homens embuçados (embuçado 1, 2 e

3) vão avisar os inconfidentes do perigo que correm, contando que foram traídos e que

Tiradentes havia sido preso. Chega Marília que pede a Gonzaga que fuja, dizendo que

irá com ele. Porém, ele decide ficar, movido por seu amor à Pátria. A cena é

melodramática. O Coringa interrompe e faz repeti-la, buscando uma “versão

verdadeira”: Maciel conta a Gonzaga, Claúdio e Alvarenga que Visconde suspendera a

Derrama. Há suspeita de traição. Chega Silvério que é recebido com receio por todos.

Em seguida são presos. Enquanto isso, Tiradentes, no Rio de Janeiro, busca proteção de

amigos. Bate à porta da casa da viúva Inácia, que não lhe dá guarda. Vai preso. Todo o

elenco canta Campanhas da Libertação.

O 5º episódio apresenta o julgamento, sentença e execução de Tiradentes, o

único, entre os conspiradores de Vila Rica, que leva até o fim suas convicções, que

mantem seus ideais e os expõe a todos, até mesmo ao governo. Os outros inconfidentes

têm a pena de morte comutada para degredo na África. A afirmação da luta é retomada,

de forma exortativa, no final da peça, através de duas canções: Dez vidas eu tivesse (já

citada) e Campanhas de Libertação. A primeira representa o modelo de herói a ser

seguido e a segunda, uma mensagem de esperança:

“Espanto que espanta a gente, tanta gente a se espantar que o povo tem sete fôlegos e mais sete tem pra dar. Quanto mais cai, mais levanta Mil vezes já foi ao chão.

145 Ibidem, p. 59-60.

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Mas de pé lá está o povo Na hora da decisão”146. Na composição da peça, os autores utilizaram-se de pesquisa que vai desde

obras científicas e artísticas sobre a Inconfidência Mineira, como o Romanceiro da

Inconfidência de Cecília Meireles, ao exame dos Autos da Devassa. Porém, estando

ausente a preocupação de “rigor científico” e veracidade dos fatos, assumidamente pelos

autores. A narrativa tem o mérito de estabelecer a discussão e não seguir interpretações

históricas/e consagradas.

Quanto à encenação, há um aperfeiçoamento de todos os recursos teatrais –

música, figurino, estilos, cenário, construção dramática – que tomam uma única direção

no sentido de reforçar uma idéia, a de que é possível uma ação libertária; e tornar mais

eficiente a transmissão da mensagem, que deve provocar não apenas reflexão no

espectador, mas sobretudo uma atitude de resistência organizada.

Surge a necessidade, depois de Zumbi, de organizar uma estrutura fixa de

dramaturgia e de espetáculo, que venha dar ao teatro mais possibilidades, devido ao

baixo custo, à eliminação de grandes cenários, ao número reduzido e fixo de atores,

num período em que as artes cênicas estava em crise, por razões econômicas e políticas.

Além da necessidade, que aponta Boal, “de analisar o texto e revelar essa análise à

platéia; de enfocar a ação segundo uma determinada e preestabelecida perspectiva e só

dessa; de mostrar o ponto de vista do autor ou o dos recriadores”.147 Cria-se, então, o

“Sistema Coringa”, elaborado e sistematizado por Augusto Boal. Se em Zumbi todos os

atores faziam todos os personagens, sendo distribuídos os papéis diferentemente em

cada cena, em Tiradentes, com o sistema coringa, cada ator tem sua função pré-

determinada; não são estabelecidos personagens aos atores, mas sim funções de acordo

com a estruturação geral dos conflitos do texto.

A primeira função é a protagônica: é o único papel da peça que não admite

revezamento, devendo ser feito por um único ator e de maneira naturalista, para

recuperar a empatia do público. E não necessariamente é a personagem principal da

história, mas é aquela que se quer dar maior atenção e proporcionar uma aproximação

do espectador. No caso, Tiradentes exerce a função protagônica e é desempenhado por

um único ator durante toda a peça, exceto na cena em que o Coringa se “veste” de

146 Ibidem, p. 93.

147 BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 207.

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Tiradentes e que pede uma concepção de teatro infantil, pois ele está cavalgando e como

não há a possibilidade de se colocar no palco um cavalo, este torna-se “mágico”

(imaginário) e, no momento de seu enforcamento, que adquire contorno teatral. Aqui a

intenção é a busca de uma identificação da platéia com o herói, que concentra em si a

consciência e as qualidades necessárias para uma atitude libertária e uma postura de um

“verdadeiro revolucionário”.

A outra é a coringa, que assume a função distanciadora na tarefa de

despertar o público para que se posicione criticamente frente os fatos, podendo

desempenhar qualquer papel e retomar sempre a atribuição que lhe é própria, de

conduzir o espetáculo, já que é dele que parte a narração, é ele que comenta e explica os

acontecimentos, apresenta aos espectadores o ponto de vista dos autores. É um meio de

trazer à cena o que a ação dramática, às vezes, não consegue expressar. “Funciona como

menneur du jeu, raisonneur, mestre-de-cerimônias, dono do circo, conferencista, juiz,

explicador, exegeta, contra-regra, diretor de cena, regisseur, kurogo, etc”148.

Essas duas funções tornam-se via dupla para a exposição da opinião dos

autores, pois, apesar de do ponto de vista formal serem opostas, caminham na mesma

perspectiva de interpretação da realidade. "Ambos, um pela razão, outro pelo

envolvimento emocional, nos oferecem a compreensão do erro, a indicação do caminho

e do modelo a seguir”.149

Dentro dessa estrutura, o espetáculo divide-se em sete partes: Dedicatória,

Explicação – que além de interromper a ação, tem como propósito básico, envolto no

tom de conferência, esclarecer questões que podem ter ficado confusas ou sem

compreensão pela platéia por necessitar de referências históricas ou por ter havido uma

distorção por parte dos autores; ou ainda para reforçar uma expressão, gesto ou idéia;

expor os objetivos da peça; clarear as opções estéticas; sendo sempre assumida pelo

Coringa –, Episódio, Cena, Comentário, Entrevista e Exortação – final em que, seja

através de prosa ou canção coletiva, o Coringa estimula a platéia a integrar-se ao tema

tratado na peça.

O sistema proporciona liberdade de gêneros e proporciona a fixação do

conhecimento dos códigos, indispensável para a total fruição e compreensão do

espetáculo, como num jogo de futebol, em analogia de Boal150, em que as regras

148 Ibidem, p. 216. 149 CAMPOS, C. A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 109. 150BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.198.

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precisam ser pré-conhecidas. Os demais atores ficam divididos em dois coros,

Deuteragonista (papéis de apoio ao protagonista) e Antagonista (papéis dos oponentes),

que comentam a cena anterior e preparam a seguinte, além da tarefa de organizar o

cenário, que agora ganha objetos que definem o espaço. Cada um tem o seu corifeu, que

se pronuncia após a entrada do coro, tem o papel de situar época e lugar da ação e

interromper o envolvimento emocional. Os dois ligam as cenas e são a base do caráter

narrativo da peça.

O fato é que todos os personagens (tanto os companheiros de conspiração

quanto os inimigos) são apresentados com a intenção de provocar críticas às classes

dominantes. Já o personagem principal é mostrado como o herói da luta pela libertação

nacional, para suscitar empatia pelo “homem que dá sua vida pela causa”151.

Em Tiradentes, o figurino abandona o indiferenciado de Zumbi, sem

individualizar. Há um modelo básico para cada um dos papéis sociais (Igreja, Exército,

Aristocracia, Povo), complementado com elementos que caracterizam subsetores dos

grandes grupos sociais. Por exe mplo: o latifundiário Silvério dos Reis e o poeta Tomás

Antônio Gonzaga fazem parte do grupo aristocrata, mas assumem posição e atividade

distintas. Serão identificados, o primeiro pelo uso de um chicote, o segundo por uma

flor.152

Aqui, também é possível constatar uma semelhança, ou melhor, uma

analogia entre os acontecimentos narrados e outros das décadas de 50 e 60 no Brasil: o

incitamento, por parte de setores da esquerda, no pós -golpe a ações revolucionárias,

armadas sem a efetiva participação do povo; na figura de Cunha de Menezes e seu

discurso de progresso com a construção da Cadeia Pública numa alusão ao governo de

Juscelino Kubitscek sustentado no desenvolvimentismo, ou ainda a Adhemar de Barros

no que se refere à corrupção; a preocupação da metrópole portuguesa (onde deve-se ler

Estados Unidos) em conter o desenvolvimento econômico da colônia brasileira,

evidenciando a luta anti- imperialista a que a peça se refere.153

O foco narrativo privilegiado na peça tem como escudo a Inconfidência

Mineira, para falar dos acontecimentos da época, é a aliança do personagem central –

Tiradentes – o herói revolucionário com os intelectuais. Estes são colocados em

julgamento, por sua omissão, incoerência, infidelidade à causa, individualismo

151 SCHWARZ , R. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 84. 152 CAMPOS, C. A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 102. 153 Ibidem, p. 100.

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decorrente de sua posição de classe privilegiada. Visando criticar o comportamento dos

conjurados (poetas/intelectuais) do século XVIII, o que “acaba funcionando como uma

espécie de autocrítica feita pelos (oferecida aos) artistas revolucionários do final dos

anos 60/início dos setenta”154. Nessa perspectiva, a temática central é a situação

arbitrária de ausência de liberdade e de subjugação a uma nação estrangeira. Questões

que serão o centro também de outros movimentos do período, como o da esquerda e o

estudantil.

Apesar da oposição central ao poder externo se manter, a idéia agora é

outra: quer se demonstrar que condições para uma revolução bem-sucedida havia,

porém se isso não ocorre seria pela composição do grupo que se propõe tal tarefa e pela

não participação do “povo” – verdadeira classe revolucionária (garimpeiro, minerador –

classe cuja força de trabalho sustenta o setor fundamental da economia no século

XVIII), no movimento. Na primeira possibilidade a limitação se dá pela razão que move

os inconfidentes ser a defesa de seus interesses e privilégios. E ainda: não conseguem

ser diferentes por causa de sua origem social, sua formação política e intelectual

diretamente ligada ao liberalismo. Através desse grupo, a peça critica posturas

falsamente revolucionárias. Porém, entre eles se destaca Tiradentes que reúne

qualidades morais e intelectuais de alguém que luta por seus ideais de justiça e liberdade

e que teria então pensamento e postura divergentes dos demais, inclusive no que se

refere à participação popular na revolta. Assim, o seu erro teria sido acreditar que os

outros envolvidos no movimento tinham os mesmos ideais e que eram confiáveis.

A ampla carreira de Boal (autor, diretor, professor de teatro) e por certo a

forma como encara a arte teatral, sua concepção política e engajada de ter a arte como

meio de luta, de interferência na realidade social, sem perder a dimensão formal,

conferem-lhe uma extrema liberdade teórica e estética no que se refere a elaboração de

um espetáculo que representa a grande renovação no processo de desenvolvimento da

arte cênica no país.

BRECHT E BOAL: UM DIÁLOGO ABERTO

154 RAMOS, A. F. O Canibalismo dos Fracos: História/Cinema/Ficção – um estudo de “Os Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Andrade). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História) – FFLCH, USP, p. 201.

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Além de autor (dramaturgo, poeta e ensaísta) e diretor, Bertolt Brecht foi

também teórico, desenvolvendo juntamente com sua própria obra um método da

mesma. Mas um método que se pretende um processo no sentido de uma teoria aberta

para a realidade, algo a ser experimentado, pesquisado, reelaborado e não ser tomado

como modelo, como exemplo, uma simples cartilha a ser seguida por qualquer grupo

em qualquer lugar e momento. Isso seria matar a teoria brechtiana que ultrapassa

técnicas teatrais inovadoras, possuindo um sentido político amplo que, se não for

compreendido e comungado pela encenação que se inspira em Brecht, fará desta apenas

um espetáculo superficial e repetidor de uma linguagem morta, sem razão de ser. O

teatro brechtiano se fundamenta numa atitude histórica, política, “numa visão dialética

de nossa história ”155.

Nesse sentido, Brecht propõe uma arte engajada que fale da realidade,

considerando que a peça de teatro é composta de fragmentos do real, que mostre as

contradições entre os homens, entre as classes sociais, a relação entre o homem e a

História, que tire o espectador da alienação que o teatro psicológico provoca, deixando

em estado de alerta sua consciência, sua visão crítica e em evidência que o que o

público vê é teatro, ou seja, uma representação da vida, uma reprodução, para que ele

possa extrair daí a moral, tirar a conclusão para intervir na vida real. Temos assim um

teatro que busca instigar a platéia a uma tomada de posição em relação à realidade da

qual fazem parte o espectador e o artista. Como coloca Bernard Dort: “Antinaturalista,

porque recusa a dissolução do homem no mundo, a obra de Brecht baseia-se nesta

necessidade de transformar a sociedade, e, para transformá-la, de conhecê-la. Seu

ponto de partida é a contestação da natureza (...) burguesa. Recusando a noção de que

houvesse uma natureza ‘naturalizante’, reconhecendo que o que chamamos de natureza

não é nunca mais do que o conjunto das regras que nos são impostas pela classe

dominante, com a finalidade de manter e perpetuar sua dominação dando-a como

natural, Brecht empenhou-se inicialmente em nos revelar a realidade datada, histórica,

de uma tal natureza, falsamente considerada eterna”156.

Porém, ao contrário do que se possa pensar, não se trata de uma encenação

que, porque busca despertar a razão e a reflexão, opõe-se à emoção. Pelo contrário, a

emoção está presente, mas de forma desalienante, provocativa, indagadora. Assim, “a

155 DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 302. 156 Ibidem, p. 293.

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poesia não é transcendência, negação da realidade. A dramaturgia brechtiana faz

convergirem realismo e poesia: uma poesia que nunca nega o realismo, e um realismo

que nunca é naturalismo.”157 Ou seja, fugindo de uma encenação realista, assumindo o

teatral, busca-se a realidade, através da representação, da discussão não apenas do

mundo, um mundo sem fissuras, mas dos homens situados num lugar e um momento

específicos, e a relação entre estes, que se dá tensa e contraditória. “A vida cotidiana e o

painel histórico coexistem, em uma relação dialética. Tal é o primeiro elemento do

realismo brechtiano”158 .

Brecht parte do princípio de que nem o homem nem o mundo são entidades,

mas sim estruturas em transformação, dinâmicas. Assim a influência brechtiana nos

musicais do Arena se faz fundamentalmente pela identificação com a poética marxista

de Bertolt Brecht, que afirma que a personagem não é sujeito absoluto e sim objeto de

forças econômicas ou sociais, às quais responde, determinando suas ações.159 Dessa

forma, o teórico alemão não acredita na existência de uma “natureza humana”, como se

o sujeito se encontrasse pronto e acabado, ou se constituísse de forma livre e autônoma.

Deve-se buscar as causas que fazem com que ele seja como é, os elementos que

processualmente o vão formando. O que não quer dizer, para ele, que as vontades

individuais não intervêm nunca, porém, não são o fator determinante da ação

dramática.160 Então o que importa mostrar é como se dá esse processo, que pode ter dois

caminhos: “uma ação do mundo sobre o homem, mas também de uma ação do homem

sobre o mundo”161 .

Nos musicais, Boal e Guarnieri acentuam o primeiro caminho, retratando

uma certa fatalidade: os heróis (Zumbi, Tiradentes) não se transformam, não se tornam

líderes, já o são. São o que são do início ao final da peça. Sua postura, seu caráter e

ideologia não sofrem mutação, já são conhecidos pelo público logo no começo. Mas é

como coloca o próprio Brecht: sua fatalidade é social, é imposta pelo mundo, por suas

157 Ibidem, p. 281. 158 Ibidem, p. 287-288. 159 Sobre essa questão Augusto Boal desenvolve um capítulo intitulado “Hegel e Brecht: Personagem-Sujeito ou Personagem-Objeto?”, que está em seu livro “Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas”. Em sua discussão, o autor traça a diferença, a oposição entre a poética de Brecht e de Hegel: “a confrontação central entre estas duas Poéticas (hegeliana e brechtiana) se dá no conceito de liberdadde do personagem, (...): para Hegel o personagem é inteiramente livre quer se trate da poesia lírica, épica ou dramática; para Brecht (e para Marx) o personagem é objeto de forças sociais (...) às quais responde, e em virtude das quais atua.” (p. 107, 113) Daí, para Boal, é um erro designar a poética brechtiana como épica, já que se trata de um termo utilizado por Hegel; devendo então, ser denominada poética marxista. 160BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.119-120. 161 DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 291.

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instituições. Há causas que fazem com que cada um seja o que é. E não permite que as

personagens deixem de agir como agem, de cometer os erros que têm e escolher os

caminhos assumidos.162 Como dizia Marx, é o ser social determinando o pensamento

social.

Porém, não se encerram as peças com derrotismo, ficam a esperança e a

conclamação de continuidade da luta, da ação do homem sobre o mundo.

Formulada com inspiração brechtiana e marxista, a série “Arena conta...”

buscava despertar no público a consciência de que era possível alterar um estado de

repressão, tortura e medo, por um baseado em princípios como liberdade, participação,

igualdade e democracia, mostrando a batalha dos oprimidos e os diversos mecanismos

de dominação dos opressores, através dos tempos. Representando tal situação num

momento passado, objetivava-se falar sobre o presente e enfatizar que, se o homem é

determinado pelas condições históricas, não quer dizer que não possa atuar sobre elas

para modificá- las.

Nessa perspectiva de argumentação, acreditamos que “é fundamental

compreender como indivíduos concretos interpretam os símbolos e signos que estão à

sua volta, como internalizam e a que decisões chegam em momentos de opção tanto em

situações explicitamente dramáticas da história de uma sociedade quanto ao nível do

cotidiano (...) Os indivíduos concretos, em suas biografias, interpretam, mudam e criam

símbolos e significados, evidentemente vinculados a uma herança, a um sistema de

crenças. Com isso recupera-se a idéia de que os indivíduos também desempenham o

papel de agentes de transformação e mudança da cultura e da sociedade e não são

mero joguetes de forças impessoais. O fato de que as pessoas nascem dentro de um

sistema sócio-cultural já dado não quer dizer que este sistema não esteja sempre se

fazendo através das biografias individuais”163.

Para se chegar à teoria brechtiana, todo elemento teatral é trabalhado de uma

nova forma, assumindo-se como tal. A construção dramática passa a tratar cada cena

por si mesma, em separado, não dependendo uma da outra, ou de um encadeamento,

mas formando um todo que persegue uma temática e que resulta numa montagem, como

podemos ver na estrutura que compõe os musicais do Arena. Não persegue mais um

162 Ibidem, p. 290-291. 163 VELHO, Gilberto e CASTRO, E.B. Viveiros. O Conceito de Cultura e o Estudo de Sociedades Complexas: uma Perspectiva Antropológica. p. 12.

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enredo de organização harmoniosa, baseado numa gradação que procura atingir um

clímax que possibilite a catarse, nem em personagens delineados a partir do psicológico.

Pretende-se acentuar as contradições. De forma que as situações e a sua

interpretação pelo ator, que deve se posicionar em relação à personagem, ganhem tal

elaboração que instigue o espectador a “situar, e portanto a criticar, o encadeamento

das causas e dos efeitos que lhes deram origem”164. Nesse sentido, uma peça como

Arena conta Zumbi é altamente instigadora, pois concilia situações de grande emoção,

sem deixar de realçar a contradição que provoca questionamentos, por exemplo, a cena

em que os negros de Palmares, cegamente, acreditam na proteção dos brancos

comerciantes e decidem aumentar o preço de suas mercadorias, deixando de comprar as

armas dos brancos, sem tomar consciência de que estão dando iníc io ao esfacelamento

de sua sociedade, de suas famílias.

Nessa perspectiva, numa análise sobre o forma de protesto e o uso da

emoção, a respeito de Arena conta Zumbi, Fernando Peixoto considera que o

espetáculo, “traduzindo confiança e entusiasmo na transformação, apontava uma trilha

talvez (...) útil. Mas a exaltação da dor ou da alegria, o palco iluminado ou escuro,

permanecem estágios primários, ainda que honestos: a apreensão da realidade exige

uma entrega e um compromisso mais decisivos”165. No entanto, se havia erros, muitos

eram em função de estarem no momento da produção mergulhados num universo de

intensa descoberta e pesquisa, tanto em nível artístico, quanto ideológico e,

contraditoriamente, vivendo em difíceis condições de trabalho, limitados pela violência

do golpe de 64. Uma possível resposta vem do próprio Fernando Peixoto, em um artigo

escrito nove anos depois, quando diz: “dentro de todos os terríveis e perigosos limites

do possível (...) criamos uma fecunda e exemplar produção cultural de resistência”166.

Ou seja, participavam dentro do possível, para que pudessem agir e não se omitir,

mantendo viva “muita coisa do teatro (...) a vontade de não calar, de não aceitar a

mentira, de procurar descobrir a verdade, esteja onde esteja”167. Compromissos ou

não? Parece que sim.

164 ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral – 1880-1980. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982, p. 170. 165 PEIXOTO, Fernando. O limite de um protesto. Movimento , n.º 8, 25/8/75. In: PEIXOTO, F. Teatro em Movimento. São Paulo: HUCITEC, 1985, p. 33. 166 PEIXOTO, Fernando. Cultura: do golpe ao apodrecimento do golpe. Publicado no programa do espetáculo Amor em Campo Minado, de Dias Gomes, direção de Aderbal Júnior, Rio de Janeiro. In: PEIXOTO, F. Teatro em Questão. São Paulo: HUCITEC, 1989, p. 59. 167 PEIXOTO, Fernando. Entrevista com Gianfrancesco Guarnieri. Encontros com a Civilização Brasileira , n.º 1, Jul./1978. In: PEIXOTO, F. Teatro em Movimento. São Paulo: HUCITEC, 1985, p. 59.

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“Brecht era marxista: por isso, para ele, uma peça de teatro não deve

terminar em repouso, em equilíbrio. Deve, pelo contrário, mostrar por que caminhos se

desequilibra a sociedade, para onde caminha, e como apressar sua transição”168.

Também nesse ponto, os autores dos musicais comungam da mesma postura, quando,

ao final das peças, seja de forma exaltativa, através da emoção, buscam a adesão do

público no sentimento de revolta, de transformação. Então, não se trata de mero

emocionalismo alienante, mas de emoção provocada pelo conhecimento de situações

injustas, de opressão, que provocam na platéia o desejo de luta, de participação.

Porém, pode-se dizer que Boal, na influência que sofre de Brecht, não cai na

armadilha de repetir suas técnicas ou imitar seus espetáculos. Mas ao ter a mesma

postura ideológica de luta contra o capitalismo opressor e a favor da construção de uma

sociedade socialista, encara as idéias de Brecht, como incentivo para a pesquisa de uma

nova linguagem adaptada à sua realidade.

Dentre os elementos trabalhados, o drama é substituído pela narrativa, que

irá descrever comportamentos e narrar opiniões, afastando-se da “verdade histórica” e

preocupando-se em sublinhar a transformação da sociedade. Como nos musicais, em

que o Arena trata de temas históricos sem se prender às circunstâncias, buscando mais o

sentido, a razão, os elementos que tornam a sociedade engajada na mudança de sua

condição histórica num dado momento. E se os espetáculos tratavam do Brasil e da

América Latina no século XVIII, isso era apenas metáfora de coisas referentes ao

mundo atual. E era nisso que os autores queriam que o público pensasse.

A relação ator-espectador também muda e propõe uma interação, ou ainda,

uma participação que se expande para além dos limites do teatro e busca o mundo do

qual a platéia faz parte. Jamais deve haver uma absorção passiva, alienante, um apelo à

criação de atmosferas, ao contrário, a crítica deve conduzir o olhar do público,

estabelecendo uma comunicação, mas ao mesmo tempo um distanciamento169, que

pretende evidenciar que se trata de uma representação de aspectos do real, deixando

168 BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. 6a. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.122. 169 No conceito de Bernard Dort: “é literalmente, empreender um processo de ‘desalienação’, dando aos ‘acontecimentos nos quais se defrontam os homens o aspecto de fatos insólitos, de fatos que necessitam de explicação, que não falam por si, que não são simplesmente naturais’. E tal ‘distanciamento-desalienção’ deve intervir em todos os níveis da representação: no trabalho dos atores como na dramaturgia, na música como na cenografia... deve ‘conduzir o espectador a assumir uma atitude crítica – a partir de um ponto de vista social, sem destruir a vitalidade, o caráter concreto e o desenho histórico dos acontecimentos e das personagens’” (DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 319.)

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ativa a capacidade de análise do público, não mais isolando-o com a “quarta parede” do

palco, que caracteriza o ilusionismo.

Em favor dessa nova postura, falam todos os recursos teatrais (cenografia,

objetos, iluminação, a música, etc.), mostrando que a idéia e a imagem dialogam,

caminham juntas e não há então uma contraposição entre elas, que colocasse o discurso

em detrimento do espetáculo. A pesquisa e a inovação de Brecht se dão em todos os

níveis da montagem, em função de um eficiência do compromisso político, porém sem

subordinar o estético, pois, para ele, “uma idéia só é legitimada teatralmente a partir do

momento em que ela consegue visualizar-se”170.

Além dessas indicações, Brecht congregava em torno de si as diversas

funções de teórico, autor teatral e encenador, porque assim, tendo um único “mestre de

obras”171, o espetáculo atingiria sua proposta. E foi também nesse caminho que os

autores dos musicais, em especial Augusto Boal, por elaborar mais extensa e

profundamente uma teorização sobre esse trabalho, construíram os mesmos.

Ainda hoje, o método brechtiano é de extrema validade para aqueles que

desejam e propõem um teatro engajado na realidade, além da reflexão que proporciona

sobre o lugar da arte cênica na sociedade.

Em nossos dias, em que muitas vezes a cultura é tomada como produto de

consumo, como mercadoria, em que ganham força os teatros de estrela, de

personalidades, em que apelam para os padrões regidos pelas leis da oferta e da procura

e por esse critério são financiados, a teoria brechtiana em seu sentido mais amplo e

profundo, o político, torna-se fundamental na produção do teatro de grupo, conseqüente

e compromissado, consciente da função social da arte.

No entanto, se o momento atual é de questionamento sobre a eficácia

política do teatro e em que medida consegue intervir na realidade, toda a prática artística

de Brecht e do Arena nos mostra que o teatro é um poderoso instrumento de reflexão

crítica e transformação da sociedade, do sistema de produção injusto e exploratório. Ele,

com seus próprios meios, é capaz de instrumentalizar o homem, agente revolucionário,

para atuar no mundo.

Brecht, ao elaborar uma teoria marxista da arte, rompe com velhos modos

de representação, com uma “certa ordem artística (que é também uma ordem social)”172

170ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral – 1880-1980. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982, p. 62. 171 Ibidem, p. 63. 172DORT, Bernard. O Teatro e sua Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 342.

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e propõe uma transformação no processo de produção, nos conceitos ideológicos e

estéticos, uma utilização da arte como meio de mudança do que está estabelecido.

Porém é de extrema importância não se desviar da questão que Fernando Peixoto chama

à atenção para que não se invalide a teoria brechtiana: “Brecht tem muito a nos ensinar,

desde que tenhamos a capacidade de aceitar seu trabalho teórico e prático como um

estímulo a encontrarmos nossos caminhos latino-americanos de trabalho teatral vivo e

criativo”173.

O TEMPO DOS MUSICAIS: A ARTE ENGAJADA NA RESISTÊNCIA

DEMOCRÁTICA

Apesar do golpe de 64 e o fim do tom democrático com o início da

República Militar, a presença cultural de esquerda não é anulada, nesse momento. Ao

contrário, adquire relativa hegemonia, além da singular qualidade, podendo “ser vista

nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estréias teatrais,

incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas e de invasão policial, na

movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma, nos

santuários da cultura burguesa a esquerda dá o tom. (...) Assinala, além de luta, um

compromisso.”174 Porém, Schwarz lo caliza esta hegemonia entre os próprios intelectuais

de esquerda, ou seja, suas obras eram feitas para o consumo destes mesmos intelectuais,

num sentido de estímulo à continuação da luta. Também na visão de Rosangela Patriota,

a construção de uma “cultura de oposição”, durante o regime militar, “presente no

teatro, no cinema, na música, na literatura, entre outra formas de manifestação,

permitindo que se estabelecesse uma ‘identidade’ entre produtores e consumidores de

bens culturais, propiciada pelo engajamento artístico, se tornou uma das pilastras da

resistência democrática”.175

Por outro lado, a direita usava a repressão para abafar o movimento operário

ou qualquer manifestação indesejada e buscava ativar politicamente os sentimentos

173 PEIXOTO, F. Teatro em Questão. São Paulo: HUCITEC, 1989, p. 256. 174 SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 62. 175 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p. 16.

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retrógrados e conservadores da pequena burguesia, fazendo-a se manifestar

contrariamente à esquerda, que era pichada de inimigo do povo e do país, através de

ações como as “Marchas da família, com Deus e pela Liberdade”, que eram contra o

divórcio, a reforma agrária, a comunização do clero, entre outros.

A partir desse quadro, o sociólogo Octávio Ianni assim analisa os dilemas

vividos pela esquerda: “No confronto entre as concepções básicas dos vários grupos

sociais engajados nas disputas políticas no Brasil, a esquerda precisou lutar muito

para formular e fixar-se numa alternativa própria. Diante dos modelos apresentados

pelos diferentes setores da classe dominante (...) a esquerda brasileira precisou criar a

sua concepção de progresso socialista. Vinha das tradições e práticas do marxismo-

leninismo, como solução revolucionária. Entretanto precisou ajustar-se às condições

locais. (...) Esse é o dilema mais geral com o qual se defronta a esquerda brasileira, na

época em que se dão lutas notáveis pela superação da economia colonial e pela

emanipação, política e cultural”.176

A esquerda brasileira vivia um episódio de lutas e desacertos,

experimentando dificuldades, contradições e oscilações dentro da própria esquerda, dos

partidos políticos, que se viam “desmembrados” em diversos segmentos sociais,

movidos por diferentes valores ético-morais, diferenciadas interpretações quanto ao

caminho a se percorrer, para se chegar ao mesmo fim: derrubar o governo ditatorial.

Nesta linha de argumentação, Schwarz destaca que “em seu conjunto, o

movimento cultural destes anos é uma espécie de floração tardia, o fruto de dois

decênios de democratização, que veio amadurecer agora, em plena ditadura, quando as

suas condições sociais já não existem, contemporâneo dos primeiros ensaios de luta

armada no país. A direita cumpre a tarefa inglória de lhe cortar a cabeça (...) Mas,

também à esquerda a sua situação é complicada, pois se é próprio do movimento

cultural contestar o poder, não tem como tomá-lo. De que serve a hegemonia

ideológica, senão se traduz em força física imediata? (...) Pressionada pela direita e

pela esquerda, a intelectualidade entra em crise aguda. Os temas dos romances e filmes

políticos do período é, justamente, a conversão do intelectual à militância. (...) Nestas

circunstâncias, uma fração da intelectualidade contrária à ditadura, ao imperialismo e

176 IANNI, O. O Colapso do Populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 2.

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ao capital vai dedicar -se à revolução, e a parte restante, sem mudar de opinião, fecha a

boca, trabalha, luta em esfera restrita e espera por tempos melhores”.177

Em certa medida, pode-se dizer que as peças contêm elementos que

permitem uma análise a respeito das ações e pensamentos da esquerda, dos impasses

enfrentados, das propostas não alcançadas. Por isso, segundo Alcides Freire Ramos, “é

possível afirmar que a leitura atenta dos documentos dos partidos de esquerda revela

idéias, valores e propostas que, em linhas gerais, encontram-se referidas nas obras

artísticas. Isto não quer dizer que a arte do período apenas ilustre as teses partidárias.

(...) trata-se de elementos que, independentemente do partido ou do artista em sua

individualidade/particularidade, podem ser vistos atravessando a década de sessenta e

servindo de solo/base de sustentação para todos os que se colocaram contra o estado

de coisas implantado pelos militares”.178 Ainda assim, a esquerda passava por um

momento conflitante de divergências, entre os que optavam pela resistência democrática

e aqueles que buscavam uma opção mais radical – a luta armada. De qualquer maneira,

mesmo entre os que se ocupavam da construção da resistência, como era o caso dos

intelectuais e artistas, havia dúvidas, questionamentos e auto-críticas em relação às suas

posturas. No entanto, se essas críticas não eram expostas explicitamente, apesar de

estarem mediadas em suas obras, e buscava-se justificativas para suas derrotas, era no

sentido de não abalar forças, que eram oposição aos governos militares.

O fato é que estavam formadas as dissidências dentro do PCB. Enquanto

vários grupos trilhavam o caminho da guerrilha, artistas e intelectuais continuaram a

defender a importância de seu trabalho e o papel social da produção artística e

intelectual nesse momento, enfatizando a necessidade de reflexão e resistência

organizada.

Nesse contexto, o Arena via na arte, sobretudo na atividade teatral, uma

possibilidade real de intervenção no processo de conscientização da sociedade

brasileira. Diante dessa proposta de teatro engajado e do golpe militar, que substituía o

Estado de Direito pela imposição de um Estado autoritário, que restringia as liberdades

civis, fazendo da censura uma constante nas artes, ou seja, que implantava um regime

de opressão, o Arena se via na necessidade de construção da resistência democrática e

177 SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 89-91. 178 RAMOS, A. F. O Canibalismo dos Fracos: História/Cinema/Ficção – um estudo de “Os Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Andrade). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História) – FFLCH, USP, p. 181.

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de tornar suas obras meio para resgatar princípios como liberdade, igualdade, justiça,

democracia. Se por um lado o regime instaurou a censura e mecanismos eficientes de

repressão, de outro lado “a sua presença permitiu que bandeiras fossem levantadas,

lutas fossem travadas e símbolos fossem erigidos”.179

Nesta linha de raciocínio, Boal comenta o período dos musicais, em que se

situa a encenação de Arena conta Zumbi, tendo como referência o golpe militar de

1964:

“Mundo cão. Revisamos armários, estantes. Cartas cubanas, agendas, endereços, edições do Granma, livros de Mao, Che, Fidel, Marx, Engels, Sartre...anotados com carinho, foram escondidos ou jogados no lixo. Antecipado São João ideológico: fogueiras. Notícias davam conta: o exército, estacionando tanques no meio-fio; a marinha, ancorando navios a largo; a aeronáutica, aterrisando onde havia pista; tinham abandonado seus deveres militares e se convertido em força policial. Vasculhavam, atrás de nós e do povo. Quem, alguma vez, tivesse dito coisa que pudesse ser aparentada a pensamento assemelhado à esquerda (...) era preso (...) A primeira medida da ditadura foi cultural: proibidos os Centros Populares de Cultura em todo o território nacional. Por extensão, Ligas Camponesas, sindicatos, uniões estudantis, qualquer forma de diálogo. (...) Em Zumbi, outra vez, a metáfora. (...) Queríamos resistir. O texto usava jornais. Um discurso do comandante analfabeto, Don Ayres, destruidor de Palmares, foi copiado ipis litteris do ditador Castelo Branco falando ao Terceiro Exército: nosso exército se converteria em gigantesca polícia, o verdadeiro inimigo (nós!) estando dentro e não fora das nossas fronteiras. (...) Zumbi nos deu alegria, até financeira. Durante anos, quando um espetáculo não atraía público, voltava Zumbi: o teatro, magicamente, transbordava”180. Com o decreto do AI-5, em 1968, a dificuldade aumenta, já que a censura e

a repressão ficam mais intensas. É o momento em que alguns optam pela luta armada e

outros, como é o caso do Arena, tentavam resistir. A criação da Feira Paulista de

Opinião, que encenou os textos O Líder, de Lauro C. Muniz; O Sr. Doutor, de Bráulio

Pedroso; Animalia, de G. Guarnieri; A receita, de J. Andrade; Verde que te quero verde,

de P. Marcos e A lua muito pequena e A caminhada perigosa, de A. Boal, buscava

expressar essa resistência:

“Mil novecentos e sessenta e oito – ano dos estudantes! – , clímax da luta pela liberdade de expressão. Foi o último ano de relativa claridade antes da escuridão que tomou conta do país inteiro a partir do Ato n.º 5, que instituiu oficialmente o fascismo no país, trazendo leis como a famosa Lei Secreta: nas acusações oficiais,

179 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p. 25. 180 BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro – memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 221, 232.

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publicava-se o número e não o conteúdo das leis que teriam sido infringidas pelo réu, o que permitia à ditadura acusar e condenar quem quer que fosse, alegando infração à lei, à qual nem os advogados tinham acesso. Condenados sem saberem pôr que: Joseph K., Franz Kafka. Veio a Lei da Delação: professores universitários que não denunciassem seus alunos subversivos incorreriam na mesma pena que eles. Vieram as aposentadorias compulsórias, as cassações de direitos civis, seqüestros, torturas e assassinatos. Não sabíamos o que fazer. Cada qual tinha a sua opinião. Qual a certa? Por isso, pensamos em uma feira que seria a das opiniões”181. Depois, em 1969, o Arena viaja para Nova York, para uma temporada de

Arena conta Zumbi, inicialmente programada para uma semana, mas que durou um mês,

tendo sido recebido positivamente também pela crítica. Recupera, em seu depoimento, a

criação do Núcleo 2, do Teatro Jornal, a montagem de Arturo Ui de Brecht, a excursão

pelos Estados Unidos e alguns países da América do Sul com os espetáculos Arena

conta Zumbi e Arena conta Bolívar e assim, como Guarnieri, ao invés de pensar

cronologicamente o fim do grupo, circunstanciou acontecimentos, como o acúmulo de

dívidas, a sua prisão seguida de saída do país e a impossibilidade de desenvolver seus

trabalhos, que o levou a dissolução, através do estrangulamento artístico e cultural.

181 Ibidem, p. 253.

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CAPÍTULO III

A HISTORICIDADE DO TEATRO DE ARENA

“O teatro inúmeras vezes parece uma expressão em crise. Em certas épocas quase perde o sentido. Em outras é perseguido. Às vezes refugia -se em pequenas salas escuras, às vezes sai para as ruas e redescobre a luz do sol. Sua função social tem sido constantemente redefinida. Desde muitos séculos antes de nossa era até hoje, nunca deixou de existir: há algum impulso no homem, desde seus primórdios, que necessita deste instrumento de diversão, conhecimento, prazer e denúncia.” (Fernando Peixoto). “Na verdade cada vez que um pano de boca se abre neste país, cada vez que um refletor se ascende, soam as trombetas no céu. Trata-se de uma vitória da cultura, qualquer que seja o espetáculo.” (Oduvaldo Vianna Filho – Vianinha). “Retorno, angústia. Eu não queria viver lá fora; impossível viver aqui. Lá, poderíamos fazer bom teatro e já seria muito. No Brasil, impossível esquecer o povo massacrado, fechar os olhos. Quem, no Brasil, nos anos 70, poderia pensar em Metafísica? Metafísica tem hora! Alguns se meteram na luta armada, desapareceram. No Arena e em outros, tentava-se resistir. Cada qual a seu modo.” (Augusto Boal).

A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DE OPOSIÇÃO

Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes são obras, como já discutimos

no capítulo anterior, que mantêm um intenso diálogo com o seu momento histórico,

possuindo, por isso, elementos que permitem uma investigação a respeito da década de

60, em particular o pós -golpe, permeadas por temáticas como luta pela liberdade, justiça,

democracia, igualdade – questões que foram solapadas pelos governos militares e que

estavam na ordem do dia de grupos que buscavam, de diversas maneiras, resgatá-las.

Além disso, são textos que foram confeccionados por autores e atores, numa criação

coletiva, que entendiam a arte como instrumento de luta, capaz de interferir nos processos

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socio-políticos, trazendo para o palco representações dos problemas da sociedade, para

que a platéia, conscientizando-se, efetivasse o seu papel de agente transformador nos

conflitos vividos na realidade concreta.

Dessa forma, esses artistas não estiveram envolvidos apenas na construção

das produções artísticas, mas também do processo histórico em todos os seus níveis. São

sujeitos que possuem suas opções teóricas, estéticas e ideológicas e com elas estiveram

inseridos nos debates e lutas de sua época. Assim, propomos, neste capítulo, pensar as

manifestações culturais desse momento, em especial o Teatro de Arena, à luz de seu

contexto histórico, respeitando as posturas assumidas pelos indivíduos e/ou grupos

sociais, a fim de não perder de vista a historicidade de seus trabalhos.

Assim, se nos anos 50/60 a sociedade brasileira passava por inúmeras

mudanças, elas se refletiam também na produção cultural do período: no cinema – com o

Cinema Novo; na música – com a criação da Bossa Nova; nas artes plásticas; no teatro –

com o surgimento do Teatro de Arena de São Paulo, fundado em 1952, pelo diretor José

Renato. Temas como “modernização”, “progresso”, “nacionalismo”, “anti- imperialismo”,

estavam mediados nas obras de arte. Isso porque se tratava de um momento em que todos

estavam envolvidos por essas questões, movidos pela crença de que era possível realizar

uma transformação em diversos níveis – social, econômico, político, cultural – e atingir o

ideal de um país democrático.

O ator e diretor Paulo José, que participou ativamente do Arena na década

de 60, relembrou a trajetória do grupo sob a perspectiva da conjuntura brasileira e da vida

política do país que se traduzia na arte, com uma valorização da “fala e do tipo físico

brasileiro”, e nos movimentos estudantis:

“Depois da queda de Vargas, em 45, a União Nacional dos Estudantes ganhou uma força, inclusive teve uma grande atuação no movimento contra a ditadura de Vargas em 45. E mesmo políticos que, depois, se tronaram políticos conservadores, ligados a partidos conservadores, na ocasião, eram líderes da União Nacional dos Estudantes. Na realidade, naquele momento, eram ideais democráticos que apareciam com muita força, então mobilizavam muito as pessoas. Houve, portanto, um fortalecimento muito grande das entidades estudantis que passaram a ter, realmente, uma atuação muito grande, na base da decisão. Era uma força política. Então a UNE – União Nacional dos Estudantes – era muito forte. A UNE e a UNES estaduais e os grêmios de colégios, de universidades. As atividades culturais começaram a se desenvolver muito também: cine-clubes, dentro do quadro de cada colégio, assim como atividade teatral... Mas isso sempre muito identificado com atividade política. Porque, por outro lado, uma série de mudanças, a morte de Vargas em 54, foi uma coisa brutal, uma grande reviravolta.

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Vargas foi deposto em 45. Quando volta em 50, já vem com uma proposta nacionalista, esse petróleo é nosso, a campanha do trigo, a nacionalização do trigo, nacionalização de eletricidade – Eletrobras – etc. Tudo isso trazendo fortalecimento das entidades estudantis como atividade política mesmo (grifo nosso)”182.

Como podemos ver, trata-se de uma geração que acreditava na possibilidade

de alterar a ordem das coisas, que tinha sede de mudança, de participação/intervenção,

de poder de decisão política. Jovens estudantes que circulavam nos movimentos

estudantis, políticos e culturais, construindo um modo de pensar, de viver, de relacionar-

se. Eram influenciados e influenciavam. Tinham a sua ideologia, sua postura formada

pelos mais diversos acontecimentos revolucionários, pelos quais o mundo estava

passando, e traziam suas expectativas para a realidade, que parecia promissora. Assim,

relembra Augusto Boal:

“Anos cinqüenta, o Partido Comunista tornou-se popular entre artistas. Filiavam-se ou simpatizavam; ou de longe desconfiavam. (...) O mundo parecia mudar para melhor, planeta habitável! A Revolução Cubana expulsava o gorila Batista, reconquistava a dignidade do ex-bordel dos Estados Unidos. Sputiniks, avanço impetuoso da ciência soviética. Lumumba, no Congo ex-Belga, começava a Revolução Africana – abaixo colonialismos! Brasília brotando no deserto. Cinqüenta anos em cinco! – JK parecia ter sido verdade! Movimentos estudantis e Ligas Camponesas se multiplicavam, Jango no poder! O mundo tinha conserto ”183.

Sob esse aspecto, o Teatro de Arena começa a compor o perfil que

acompanharia toda a sua trajetória: a arte engajada. Esse caráter tem início,

especialmente, com a fusão do Arena com o Teatro Paulista do Estudante (TPE), que

tinha em seu elenco Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, e a chegada de

Augusto Boal, em 1956. A partir daí, toda a efervescência política do momento

contribui para uma politização da arte, no sentido em que

“o que se fazia era quase um exercício de viver brigando por ideais, mas tudo muito fechado, muito entre nós. Depois de uns três anos de movimento estudantil firme, percebemos que realmente estávamos errando. Depois de uns três anos é que chegamos à conclusão que precisávamos ampliar aquilo, que o movimento estudantil não era só nosso, não era só de uma cúpula e sim de grupos que se formavam em várias capitais, grupos pequenos mas que praticamente se identificavam. E que era necessário então fazer um trabalho sério entre todos os

182 “Interview de Paulo José. In: ROUX, R. APUD: Patriota, Rosangela. História, Memória e Teatro: A Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: MACHADO, Maria C. T. & PATRIOTA, Rosangela (Orgs.). Política, Cultura e Movimentos Sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia, UFU. p. 179. 183 BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 165.

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estudantes. Chegamos à conclusão que o movimento cultural e principalmente o movimento artístico seriam um meio eficaz de organização, onde se poderia discutir, reforçar os grêmios, de estruturar diretórios e procurar criar um debate cultural no meio estudantil.”184.

Toda essa movimentação, acompanhada pelo campo político e artístico,

produziu no Arena realizações que marcariam sua história, como os Seminários de

Dramaturgia (onde aconteciam estudos e discussões sobre teoria do teatro e produziam

textos teatrais) e os Laboratórios de Interpretação (onde se estudou o método

Stanislavski, trazido por Augusto Boal, de um curso com John Gassner e Lee Strasberg,

no Actor´s Studio, nos Estados Unidos). Nesse momento, o Arena buscava construir

uma dramaturgia que discutisse a realidade atual do país, que passa a ser qualificada

como “inauguração da dramaturgia nacional”. Porém, isso queria dizer que era a

primeira vez que a classe operária marcava presença na cena brasileira, isto é, a

construção de obras do ponto de vista das camadas subalternas da população. Começava

a nascer uma proposta de intervenção política a partir do teatro, que era acompanhada

por outros segmentos estéticos:

“Nesse período juscelinista , período de nacionalismo – mesmo que tivesse muita coisa errada – era um nacionalismo que se baseava também muito na penetração do capital americano mas, de qualquer maneira, havia um certo desenvolvimento real. O período de Brasília foi o período em que houve um desenvolvimento da siderurgia, houve um desenvolvimento da indústria em geral. O Brasil, realmente...quer dizer, as metas do Juscelino eram fazer cincoenta anos em cinco. Evidentemente, ele não conseguiu isso mas ele conseguiu um avanço espetacular, um desenvolvimento espetacular da economia brasileira, mesmo se continuasse atrelado ao Fundo Monetário Internacional... Nesse período, aparece o Teatro de Arena mas também apareceu o Cinema Novo. Nelson Pereira dos Santos é mais ou menos dessa época. Um pouco antes do que nós, no Arena. A Bossa Nova é também desse período. E mesmo o desenvolvimento das artes plásticas, também, coincide. Então, você veja que havia todo um desenvolvimento artístico que não era só do Arena. Quer dizer, isso fazia parte de uma...eu não diria revolução porque não era uma revolução mas de uma conturbação social positiva – não é? – que desenvolvia o Brasil. Provocou o aparecimento de tantas formas novas de arte que não existiam antes e o desenvolvimento. Havia uma disponibilidade financeira. O pessoal ia a teatro, ia a cinema, ia a c oncerto. Se criava, eu costumo dizer – até as pessoas pensam que é piada mas não é. O desenvolvimento de todas essas coisas de arte foram coincidentes com o desenvolvimento de uma coisa que chamavam inferninho, que eram as pequenas boates – não é? – boîtes de nuit. Apareceram, proliferaram ao

184 “Gianfrancesco Guarnieri”. In: KHOURY, S. (org.). Atrás da Máscara I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 23.

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mesmo momento. É porque havia um desenvolvimento, havia um nacionalismo (grifo nosso)”185.

Neste exercício de rememorar, Guarnieri também mescla os acontecimentos

históricos à perspectiva do Arena, recordando os contatos com José Renato, a parceria

entre o TPE e o Arena, além das motivações que sustentavam estas atividades e a

expectativa de “progresso”, de transformação do país, que havia, principalmente, por

parte dos jovens e que se refletia nas mudanças ocorridas nas artes:

“Nunca colocamos nossa carreira individual como objetivo. Nossa meta era outra. Nós não tínhamos grandes responsabilidades... quer dizer... ‘Olha, se eu não sou um bom ator é porque não tenho obrigação de ser... Estou aqui também fazendo um negócio coletivo porque achamos que através desse trabalho podemos nos organizar e desse modo servir à cultura nacional, ajudar a formar uma consciência brasileira...’ E tudo que acontecia politicamente na época foi importante! Começava a surgir aquele negócio de identidade que seguia todo o processo político, houve a tentativa do golpe, o Juscelino toma posse ou não toma? O Teixeira Lott garante ‘Paz e democracia’... Começou-se a falar em nacionalismo, coisa que empolgava a juventude. Muita gente ouvia o cantar do galo mas não sabia exatamente de onde vinha o canto: nacionalismo... coisas nossas...(...)...Alguns elementos do TPE e do Arena saíram, uma minoria ficou. Houve muita confusão, e dos que ficaram a gente ouvia: ‘Puxa vida, não sabemos de nada! É verdade, nós não sabemos nada...E o que fazer então? Vamos fazer um curso!’ Falamos com Sábato Magaldi, Júlio Gouveia e Décio de Almeida Prado; pedíamos sugestões; fizemos um curso do qual participaram duzentas e tantas pessoas...era um momento de muita efervescência e tudo era meio fácil porque as pessoas estavam interessadas. As universidades começaram a criar um trabalho mais sólido com preocupações mais orientadas, e de repente começou a se viver no Brasil um clima mais cultural. Era uma coisa geral. Foi justa mente nesse estado de coisas que houve a junção do TPE com o Arena. O Zé Renato propôs dar o material para que realizássemos nossos espetáculos nos colégios, ele daria a infra-estrutura, a orientação artística e técnica e, em contrapartida, nós do TPE, trabalharíamos como suporte de cast para o Teatro de Arena, que já era profissional (grifo nosso)”186.

O diretor e dramaturgo Augusto Boal, em sua autobiografia, lançada em

2000, percorre toda a sua trajetória, estando em seu rememorar também a história do

Teatro de Arena, que vai sendo pontuada pelos acontecimentos históricos e contada de

forma a trazer as indagações, as dúvidas, as divergências presentes no histórico do

grupo. Em alguns momentos aponta falhas, mas se desculpa por levar em consideração

185 “Interview d’Augusto Boal. In: ROUX, R. APUD: Patriota, Rosangela. História, Memória e Teatro: A Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: MACHADO, Maria C. T. & PATRIOTA, Rosangela (Orgs.). Política, Cultura e Movimentos Sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia, UFU. p. 184. 186 “Gianfrancesco Guarnieri”. In: KHOURY, S. (org.). Atrás da Máscara I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 30-31.

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o contexto da época: o tempo o redime. Aqui não é o teórico que exclui a historicidade,

na intenção de buscar um significado, uma unicidade para o trabalho do Arena, que

encontramos, mas o sujeito, o indivíduo, que fala através de sua memória, deixando que

venha a tona tudo o que ela abarca, inclusive a subjetividade.

Na seqüência estão registrados, por Augusto Boal, o contato com José

Renato, que havia recebido a indicação de Boal através de Sábato Magaldi; a paixão

pelo teatro; a capacidade de criação dentro dos pequenos limites do Arena, o que

definirá uma das características do grupo: a valorização do ator, desprendido de

sofisticados recursos técnicos:

“José Renato mostrou a miúda arena, minúsculos metros quadrados, cinco por cinco. Pouco maior que sala de jantar. Devagar entendi que era ali a arena do Arena. Naquele pequenino ali mesmo, ali deveríamos fazer revoluções estéticas... Algumas, com estudo e trabalho, fizemos! Escassez é limitação, não vamos elogiar a falta de recursos como se fosse bênção divina; desejar carência – absurdo! O artista, no entanto, não choraminga. Com desejo e arte, falta de meios pode ser estímulo. Em nossos países escravizados estamos condenados à criatividade! Essa pobreza não desejada acabou se transformando em condição ideal para o trabalho com atores. Espaço cênico finito: dentro de nós, porém, somos infinitos. Fizemos a busca da infinitude: para dentro de nós. No Arena, mergulhamos mo precipício da nossa alma. (...) Naquela época, José Renato era elogiado por ter introduzido no Brasil uma forma barata de se fazer teatro. Verdade, mas não só: introduziu espetáculos em que os atores eram valorizados ao extremo. A arena não permitia truques, não dissimulava: atores tinham que se apoiar uns aos outros. Arena era olho no olho, close-up: atores em primeiro plano, a menos de um metro dos espectadores, centímetros. O arena parecia uma extensão do Actors’ Studio. Cara a cara! Acredito que, mesmo que se disponha de meios materiais, o começo, o âmago (...) a verdade do teatro é a inter-relação entre os seres humanos. É a paixão que entre eles flameja. Aqui está a essência do teatro que pode, depois, vestir-se de ouropéis! Não antes. Disse Lope de Vega: ‘Teatro é um tablado, dois atores e uma paixão!’ Não preciso nem do tablado...”187 Augusto Boal, ao relembrar o Seminário de Dramaturgia, parece concordar

com Guarnieri, no sentido de se acharem intransigentes quanto ao conteúdo das peças,

“na medida em que se tornara uma fórmula, pois a priori estavam definidos os heróis

positivos do espetáculo, bem como a temática, que deveria ser social e ao mesmo tempo

realizar uma denúncia ou uma conclamação à organização dos trabalhadores”188,

quando poderiam, segundo o diretor, ser mais compreensivos, isto é, serem mais

187 BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro – memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 139-140. 188 PATRIOTA, R. “ ‘Revolução na América do Sul’ de Augusto Boal – A Narrativa Épica no ‘Teatro de Arena’ de São Paulo”. ArtCultura, n.º II, vol. I, 2000, Uberlândia, p. 89.

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flexíveis quanto à diversidade de temas. Porém, essa análise do passado, revisando

algumas coisas, se torna ainda mais interessante, quando Boal narra a necessidade que

tinham, nesse momento, de conhecer e retratar o povo:

“Andávamos à cata do povo brasileiro e eu via cada vez mais povos no meu povo: japoneses de Marília, caipiras autóctones, quatrocentões paulistanos, mineiros de Uberaba, cariocas de Copacabana, operários da Penha, alemães de Santa Catarina, italianos de toda parte...até suecos e finlandeses nas montanhas. Tive medo do Nordeste: como seria o povo cabeça-chata? O povo que queríamos não era Geografia nem História: era classe. Fomos atrás do povo nos campos e fábricas, tivesse a cor que tivesse, vestido como se embrulhasse. Povo era classe, fome, desemprego: nosso interlocutor. (...) O primeiro espetáculo, Black-tie , sucesso. Quem vinha nos ver? Quem podia pagar. Tortura ideológica. Nós nos tranqüilizávamos pensando que vinham também intelectuais com quem queríamos trocar idéias: não seria em vão a viagem, mesmo que não achássemos o povo. Classe média, por que excluí-la? Espremida entre esperança e angústia – era dever dialogar. Classe média não é povo, mas é como se fosse! É a outra cara do povo. Mil novecentos e sessenta virando 61, campeões mundiais de futebol e basquete, esportes populares; campeã Maria Esther Bueno em Wimbledon, tênis, esporte de elite; Eder Jofre nocauteava pesos-galo, esporte desconhecido. A Bossa Nova surgia, mania. Brasília: Juscelino inaugurava a 21 de abril – candangos fora. O Cinema Novo mostrava o Brasil na Europa. Enfim, não tínhamos do que ter vergonha!!! Classe média também é povo! Já que não encontrávamos o nosso, transformávamos em povo tudo aquilo que encontrávamos! (...) No Arena, nós nos limitávamos a mostrar a vida pobre, como éramos capazes de entendê-lo. Em cena, nos vestíamos de operários e camponeses: os figurinos eram autênticos, mas não o corpo que os habitava. Triste pieguismo. Mas não quero, hoje, lamentar nossos lamentos de anteontem. Fizemos o que podíamos ter feito!”189 Ainda tendo os acontecimentos históricos como norte, Boal comentou o

surgimento do período de nacionalização dos clássicos, responsável pela montagem de

A Mandrágora de Maquiavel:

“Renato, convidado para dirigir o Teatro Nacional de Comédia no Rio, proposta irrecusável, quis vender o teatro. Formamos uma empresa: Guarnieri, que retornava à casa paterna, Flávio Império, Juca de Oliveira, Paulo José e eu. Compramos o Arena. Decidimos inventar o caminho que batizamos de Nacionalização dos clássicos. Queríamos buscar nossa identidade, descobrir nossas feições, não mais diante do espelho naturalista, que revelava a face rude, mas em retratos de outros tempo, lugares, que nos permitissem ver nosso rosto verdadeiro, refletido em rostos de outras épocas. Nacionalizar era moda; Brizola, no Sul, tinha nacionalizado (estatizado) companhias estrangeiras, Jango ameaçava estatizar (nacionalizar) empresas de interesse estratégico – todas, de certa forma. A imprensa era nacionalista ou entreguista, sem meio termo.

189 BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro – memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 172-173,177.

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(...) Com A Mandrágora descobrimos a Metáfora – que não se come como o naturalista macarrão à bolonhesa: metáfora se goza! Abandonamos de vez o realismo em busca da realidade. Brecht: ‘O dever do artista não é o de demonstrar como são as coisas verdadeiras, mas como verdadeiramente são as coisas.’ Bravo, Bertolt! (...) Cansados de repetir cenas parecidas, diálogos e figurinos. Tínhamos medo de repetir pensamentos. Horror!”190

Porém ao lado de tantas perspectivas positivas, havia a consciência de que

se estavam acontecendo mudanças, elas eram recebidas de diferentes maneiras pela

população. Em sua análise sobre as ilusões da modernização brasileira191, Roberto

Schwarz ressalta que o desenvolvimento nacional provocou uma migração para as

cidades tratando de arrancar a população de uma situação semicolonial que ainda se

encontrava, trazendo-a ao universo da cidadania, do trabalho assalariado e da atividade

econômica moderna, especialmente industrial, onde ficava relegada à pobreza e às

novas formas de exploração econômica e de manipulação populista. Era o momento de

realização do projeto nacional de transformar o país de agrário para industrial, de rural

para urbano, indo contra o imperialismo.

Coerente com a realidade, Boal em sua visão sobre o desenvolvimento

ponderou:

“O Arena, tinha, além disso, metas próprias, também. Além da meta nacionalista geral, nós tínhamos a nossa que era que esse desenvolvimento devia vir em favor, em função do povo e não em função de elites apenas. Quer dizer, não em função da classe média apenas. Então nós, embora víssemos que havia um desenvolvimento da sociedade brasileira grande, víamos que havia as camadas sociais mais trabalhadoras e as camadas sociais desempregadas – que não tinham trabalho, que não tinham terra, não tinham emprego – essas camadas continuavam miseráveis. Nós víamos o progresso da sociedade mas nas classes de média para alta e o resto, não. Proletários, muito pouco, comparativamente. Então, nós éramos a favor desse progresso, sim, mas que esse progresso fosse mais popular, também. Essa era a nossa meta e essa meta se traduziu de forma diferente, como foi a nacionalização dos clássicos, como foi os musicais que nós fizemos, como foi a parte nacionalista e tudo isto (grifo nosso)”192.

Como aponta Roberto Schwarz, “nascido na conjunção de mercado interno

e industrialização, o ciclo desenvolvimentista adquiriu certo alento de epopéia

patriótica a partir da construção de Brasília; o seu ponto de chegada seria a sociedade

190 Ibidem, p. 199-201. 191 SCHWARZ, Roberto. Fim de Século. Folha de São Paulo. São Paulo, 04/12/94. (Caderno Mais). 192 “Interview d’Augusto Boal. In: ROUX, R. APUD: Patriota, Rosangela. História, Memória e Teatro: A Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: MACHADO, Maria C. T. & PATRIOTA, Rosangela (Orgs.). Política, Cultura e Movimentos Sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia, UFU. p. 184.

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nacional integrada, livre dos estigmas coloniais e equiparada aos países adiantados. É

um fato que nas próprias elites existia a convicção de que essa trajetória incluiria

momentos de fricção com os interesses norte-americanos. Ocorre entretanto que no

início dos anos 60 se foi firmando mais outra convicção, esta explosiv a, segundo a

qual, a firmeza do antiimperialismo dependia de uma modificação na correlação de

força entre as classes sociais dentro do próprio país. O nacionalismo só alcançaria

seus objetivos se fosse impulsionado pelo acirramento da luta de classes. Começava a

radicalização social que seria cortada em 64 pelo golpe militar. Noutras palavras,

surgia a consciência de que a exploração de classe interna e as grandes dificuldades na

ordem internacional se alimentavam reciprocamente e que era necessário enxergar as

duas em conjunto (grifo nosso)”193.

No entanto, ainda segundo o autor citado, se o P.C. teve o mérito de difundir

a ligação entre a dominação imperialista e a reação interna, pecou na maneira de

especificá- la, distinguindo, no interior das classes dominantes, um setor agrário, pró-

americano e um industrial, nacional, acreditando que sua aliança com este contra o

primeiro pudesse pesar mais que o conflito entre esses mesmos setores e a ameaça do

comunismo. A realidade, porém, demonstrou que a expectativa com relação à burguesia

nacional era ilusória, pois mantinha fortes relações de dependência com o capital

internacional. Sendo apenas um inexpressivo setor da burguesia nacional contrário a

este. Quanto às suas supostas contradições com os setores latifund iários, também a

realidade tratou de desmistificar: na prática, a forma atrasada de organização da

produção rural beneficiava as indústrias, pois fornecia matéria-prima a baixo preço e

favorecia constantes migrações de mão-de-obra, que resultavam em oferta de trabalho

por baixos salários. E é essa aliança da esquerda com parte da burguesia que foi

criticada nos musicais, sob a metáfora, em Zumbi, dos negros de Palmares que se

aliaram com os brancos comerciantes, acreditando que esses os protegeriam dos donos

de sesmarias, e em Tiradentes, do herói revolucionário com uma intelectualidade que

não avançaria, tendo em vista a possibilidade de perder seus privilégios, como sendo o

erro que, cometido ingenuamente, leva-os à derrota.

Porém a constatação de graves problemas sociais e da relação de

dependência econômica que o país mantinha com nações imperialistas não arrefeciam

os movimentos, ao contrário, era a razão que os sustentava. Sob essa perspectiva, “a

193 SCHWARZ, Roberto. Fim de Século. Folha de São Paulo. São Paulo, 04/12/94, p.6. (Caderno Mais).

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intelectualidade de esquerda foi estudando, ensinando, editando, filmando, falando,

etc., e sem perceber contribuíra para a criação no interior da pequena burguesia, de

uma geração maciçamente anti-capitalista”194. E mais do que isso, uma geração que

atribuía uma caracterização política às criações artísticas como também aos seus atos

individuais:

“(...) nessa época – 63 –, com os estudantes (organizados na UNE) apoiando o presidente João Goulart, ou pressionando-se para ir mais para a esquerda; com Miguel Arraes fazendo um governo admirável em Pernambuco em estreita união com as camadas populares; com os CPCs da UNE produzindo peças e canções panfletárias mas muito vitais; éramos levados a falar freqüentemente sobre política: o país parecia à beira de realizar reformas que transformariam sua face profundamente injusta – e de alçar-se acima do imperialismo americano. Vimos depois que não estava sequer aproximando-se disso. E hoje nos dão bons motivos para pensar que talvez nada disso fosse propriamente desejável. Mas a ilusão foi vivida com intensidade – e essa intensidade apressou a reação que resultou no golpe”195. Sob esse aspecto, Caetano Veloso comenta o tom hegemônico da esquerda

na cultura e o papel da música, assim como de outras manifestações artísticas, nos

debates da época:

“As pretensões de uma arte política, esboçadas em 63 pelos Centro Populares de Cultura da UNE, difundiram-se por toda a produção artística convencional e, apesar da repressão nas universidades e da censura na imprensa, o mundo dos espetáculos viu-se sob a hegemonia da esquerda. Num ambiente estudantil altamente politizado, a música popular funcionava como arena de decisões importantes para a cultura brasileira e para a própria soberania nacional”196.

Em setembro de 1960, estréia Revolução na América do Sul197, de Augusto

Boal e direção de José Renato, que tem como tema “o operário brasileiro e a sua

194 ____________. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 63. 195VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 64. 196 Ibidem, p. 177. 197 A respeito desse espetáculo e de seu momento José Renato, diretor da peça, comentou: “Acreditávamos que tínhamos coisas significativas a dizer, que nossa contribuição não era apenas relativa à forma, mas principalmente ao conteúdo. Mas foi sem dúvida a presença do Teatro Paulista do Estudante que, por assim dizer, trouxe a semente do engajamento que germinou aqui dentro e deu, acredito, os melhores frutos possíveis. Frutos, também, das dúvidas que ainda persistiam no grupo. Posteriormente ao Black-tie abriu -se o Seminário de Dramaturgia, que o Boal dirigiu. E desse Seminário participaram muitos dramaturgos que depois não fizeram peças para o Arena, mas continuaram distribuindo a sua produção por outros teatros. Considero fundamental essa contribuição de preocupação política que vivíamos então no Brasil. Essa preocupação informou o Black -tie, informou Chapetuba e informou, principalmente, Revolução na América do Sul, a peça mais importante daquela época, a meu ver. Co m ela realizamos, pela primeira vez, um teatro quase guerrilheiro. Isto é, um teatro em que misturávamos revista, comédia, música e a discussão política dos temas da época.” (APUD: PATRIOTA, R. História, Memória e Teatro: A Historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: MACHADO, Maria C. T. &

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realidade econômica social”198, que modifica a estrutura dramatúrgica, trocando o

dramático pelo farsesco e abandonando os processos naturalistas, o que marca o início

da influência de Brecht no Brasil e projeta o caminho para os musicais. Está presente o

ecletismo de estilo: “...comédia, farsa, sátira, revista, circo e mesmo chanchada,

pensarão muitos. Talvez tudo isso mais alguma coisa. Mais, muito mais: documento e

protesto, grito de alarme, brutal e crua denúncia contra os nossos políticos, contra um

estado de coisas que tende a se eternizar em nosso país”199.

Fazendo um balanço cultural da década de 60, Schwarz comenta o

movimento cultural no pré-golpe e seu tom irreverente: “No Rio de Janeiro os C.P.C.

(Centro Popular de Cultura) improvisavam teatro político em portas de fábricas, sindicatos,

grêmios estudantis e na favela, começavam a fazer cinema e lançar discos. O vento pré-

revolucionário descompartimentava a consciência nacional e enchia os jornais de reforma

agrária, agitação camponesa, movimento operário, nacionalização de empresas americanas

etc. O país estava irreconhecivelmente inteligente ”200.

No entanto, a burguesia, preocupada com seus interesses lucrativos, não

deixaria o país continuar trilhando o caminho de busca de transformações que visava

favorecer as classes mais baixas, nem os militares deixariam a ameaça de uma

revolução crescer. Para tanto, em 1964, instalou-se no Brasil o regime militar, a fim de

garantir o capital e proteger o continente contra o socialismo que, depois da Revolução

Cubana, parecia mais perigoso. O golpe foi recebido com surpresa e perplexidade,

vindo dificultar as ações de intelectuais e artistas engajados no ideal democrático, como

relembra Caetano Veloso

“Eu tinha ido a uma reunião para formação de instrutores voluntários quando a notícia de que um golpe de Estado se daria naquela mesma noite nos fez interromper os trabalhos. Alguns participantes quiseram continuar, argumentando que sem dúvida tratava-se de um boato infundado. Mas os mais experientes, baseado no peso das fontes das quais surgira o alerta, desfizeram imediatamente a sessão, recomendando-nos que fôssemos para casa, enquanto eles averiguariam se havia algum esquema de resistência em que se engajar. Saí perplexo do prédio da Escola de Economia. (...) No dia seguinte, na Faculdade de Filosofia, não houve aula. Circulavam notícias de professores presos ou chamados para prestar depoimento e boatos sobre o paradeiro de colegas desaparecidos. E – o que era

PATRIOTA, Rosangela (orgs.). Política, Cultura e Movimentos Sociais: contemporaneidades historiográficas. Uberlândia, UFU, 2001). 198 ___________. “ ‘Revolução na América do Sul’ de Augusto Boal – A Narrativa Épica no ‘Teatro de Arena’ de São Paulo”. ArtCultura, n.º II, vol. I, 2000, Uberlândia, p. 94. 199 D.G., O Estado de São Paulo. APUD: LIMA, M.A. de. “História das Idéias”. Dionysos. Rio de Janeiro: MEC/DAC-FUNARTE/SNT. Outubro, 1982, p.16. 200 SCHWARZ, R. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 69.

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mais assustador – tanques nas ruas. (...) Vendo os tanques, eu me perguntava se teria coragem de me meter numa revolução, se estaria disposto a dar a vida pelas causas sociais que supunha apoiar. Naturalmente, senti que não daria minha vida por nada. Mas não estava certo do que significava naquele momento (...) ‘minha vida’. As ruas silenciosas, os tanques, tudo me dava a impressão de um pesadelo. Eu sentia medo e ódio daquela presença do exército nas ruas, com suas cores encardidas e seu ar anônimo. Infantilmente, apenas desejei que aquilo passasse depressa ”201. No entanto, diante de uma nova conjuntura política, o Arena reformula sua

estética. Há a procura de novas formas para a representação teatral, para que fosse

possível continuar fazendo arte engajada, mesmo sob um regime de censura e

perseguição política. Sempre com a preocupação de não perder de vista o caráter

político do teatro, estando continuamente comprometido com a discussão de

problemáticas atuais. Nesse momento, “a situação não é mais interpretada como

revolucionária, e sim como momento de construção da resistência democrática”202. Os

ideais democráticos, a crença numa sociedade justa e igualitária, mantinham-se:

“Em 64, executando um gesto exigido pela necessidade de perpetuar essa s desigualdades que têm se mostrado o único modo de a economia brasileira funcionar (mal, naturalmente) – e, no plano internacional, pela defesa da liberdade de mercado contra a ameaça do bloco comunista (guerra fria) –, os militares tomaram o poder. Os estudantes ou eram de esquerda ou se calavam. No ambiente familiar e nas relações de amizade nada parecia indicar a possibilidade de alguém em sã consciência, discordar do ideário socializante. A direita só existia por causa de interesses escusos e inconfessáveis. Assim, as passeatas ‘com Deus pela liberdade’, organizadas por ‘senhoras católicas’ em apoio ao golpe militar, nos surgiam como cínicos gestos hipócritas de gente má”203 .

Guarnieri ao comentar sobre a interdição do espetáculo O filho do cão, de

sua autoria, e a montagem de Tartufo de Molière, norteando-se pelo fechamento do

Arena, pelo golpe militar de 64, fica evidente como os acontecimentos históricos

definiam a trajetória do grupo, que naquele momento agia em

“resposta à hipocrisia que achávamos ser o movimento que tinha sido instaurado, porra! É aquela coisa que estávamos falando um pouco antes: o Tartufo foi feito criticando a sociedade francesa da época, e caía como uma luva muitos anos depois para denunciar defeitos de hoje e num outro país. Essa revolução de 1964 estava cinicamente falando em corrupção e as cadeias estavam cheias de gente de bem e os verdadeiros ladrões estavam numa boa. ‘Que negócio é esse?’, gritamos na época! ‘Não pode ser encenado o Guarnieri? Então vamos de Molière em cima deles!’ (Pausa.) Agora, nós não queríamos abrir mão da nossa dramaturgia e

201 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 310. 202 PATRIOTA, R. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p. 116. 203 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 15.

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estava difícil. Estava difícil porque a Censura imediatamente radicalizou mesmo e não queria saber de nada”204. No período de 62/64 o grupo se aproxima de movimentos musicais

apresentados no Teatro de Arena e em outras casas. Mas não eram apenas apresentações

de música, eram um misto de música e texto, o que foi um dos fatores que contribuiu

para os espetáculos da fase Arena conta... de 65/70. Nessa aproximação se dá o contato

com os integrantes do CPC, através do show Opinião 205, montado no Rio de Janeiro sob

direção de Augusto Boal, com roteiro deste, juntamente com Armando Costa, Oduvaldo

Vianna Filho e Paulo Pontes, que percebem não poderem mais, diante das restrições

impostas pelo golpe (censura, repressão), acentuar o tom político como faziam no CPC.

A mensagem política precisa estar disfarçada por uma metáfora, uma analogia e para

isso a música será a grande aliada que, em tom de conclamação e encorajamento, canta

a “opinião” de todo e qualquer cidadão, servindo de resistência ao regime militar.

Vianinha tinha claro o papel de veículo de oposição que o teatro tomava para si: “o

teatro brasileiro em 1965 ou se empenha na sua libertação, participando do processo

de redemocratização da vida nacional, na consagração dos sentimentos de soberania e

vigor do povo brasileiro – ou, então – alheio a um dos momentos capitais de nossa

história – poderá ficar incluído entre os que tiveram a responsabilidade de descer

sobre o Brasil a mais trist e e estúpida de suas noites. (...). Não há que desanimar. A

democracia foi destruída enquanto organização, mas não enquanto absoluta aspiração

do povo e do artista brasileiro. A destruição dos valores democráticos custou também a

destruição de vários mitos que enredavam a consciência social. No teatro, 1965 começa

204 “Gianfrancesco Guarnieri”. In: KHOURY, S. (org.). Atrás da Máscara I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 16. 205 A vinda dos irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia para São Paulo, se dá nesse momento, em razão do convite que esta recebe para substituir Nara Leão no espetáculo Opinião, por sugestão da mesma, que os conhecera na Bahia. A respeito desse momento, Caetano, que ainda era um jovem desconhecido, comenta: “Alguns meses depois da ‘revolução’ – como era chamado oficialmente o golpe de Estado que tinha instaurado o governo militar –, o musical Opinião reunia um compositor de morro (Zé Kéti), um compositor rural do Nordeste (João do Vale ) e uma cantora de bossa nova da Zona Sul carioca (Nara Leão) num pequeno teatro de arena de Copacabana, combinando o charme dos shows de bolso de bossa nova em casa noturna com a excitação do teatro de participação política. O espetáculo ao mesmo tempo coroava a tendência de alguns bossanovistas (Nara Leão entre eles) de promover a aproximação entre a música moderna brasileira de boa qualidade e arte engajada (...) e inaugurava o show de música teatralizado, entremeado de textos escolhidos na literatura brasileira e mundial ou escritos especialmente para a ocasião, que veio a desenvolver-se como uma das formas de expressão mais influentes na subsequente história da música popular brasileira. A canção ‘Carcará’, de João do Vale, era já o clímax do show na in terpretação de Nara, mas Bethânia, com um talento dramático que Nara estava longe de possuir, parecia dar corpo à canção, que descrevia a violência natural com que um gavião do tipo que habita o Nordeste – o carcará – ataca os borregos recém-nascidos. O refrão ‘pega, mata e come’ era repetido a intervalos com crescente intensidade. Uma sugestão de comparação – ‘carcará, mais coragem

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para frente. Vá ver Opinião”206. Outro grande sucesso do período foi Liberdade,

Liberdade de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, em que é apresentado uma “antologia

ocidental de textos libertários”207, de VI a.C. a XX d.C., também tendo como apoio, na

luta da democracia contra a ditadura, a música popular, que abria o espetáculo

conclamando:

“E no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade... A tristeza que a gente tem, qualquer dia vai se acabar, todos vão sorrir, voltou a esperança é o povo que dança contente da vida feliz a cantar...”208. Segundo Décio de Almeida Prado, logo após 1964, o meio teatral viveu

momentos de euforia, acreditando que poderia funcionar como centro de oposição ao

regime militar. E assim, o teatro tomava para si a responsabilidade de veicular o

protesto:

“Calada a imprensa liberal e de esquerda, atemorizados os partidos, abolidos os comícios e a propaganda política, as salas de espetáculo eram dos poucos lugares onde ainda era lícito a uma centena de pessoas se encontrarem e manifestarem sua opinião, guardadas certas precauções. A própria necessidade de falar indiretamente, em linguagem semicifrada, criava uma exaltante sensação de cumplicidade, de perigoso desafio aos poderes constituídos. Bastava uma referência dos atores à liberdade (...) para despertar no público uma onda de entusiasmo patriótico. Tiradentes passou a ser um símbolo malvisto pelo governo e uma simples canção como ‘Carcará’, cantada por Maria Bethania (...) – ‘pega, mata e come!’ – , assumia ares de inflamado hino revolucionário”209. A história do Teatro de Arena é a representação da mediação entre arte e

realidade histórica. A situação política da época intensificou o caráter contestador,

engajado, revolucionário dos musicais, que se opunha ao regime vigente de opressão,

censura, ditadura. Assim, a história dos musicais do Arena está diretamente ligada às

do que homem’ – era suficiente, no contexto, para transformar a canção num vago mas poderoso argumento revolucionário”. (VELOSO, C. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 72-73). 206 Vianna Filho, O. Perspectivas do teatro em 1965. In: PEIXOTO, F. (org.). Vianinha: Teatro – Televisão – Política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 104. 207 SCHWARZ, R. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros estudos. Rio de Janeiro: MEC/SEC/INACEM. 1983, p. 80. 208 RANGEL, Flávio & FERNANDES, Millôr. Liberdade, Liberdade. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p.2-3. 209 PRADO, Décio de Almeida. Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 1988, p.120.

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vicissitudes do teatro brasileiro que, por sua vez, sofre alteração com o regime político

de 1964, que atinge diretamente as artes, ao ponto de determinar novas formas de

encenação, no caso do teatro. A atuação do novo governo, obriga tanto a arte cênica,

como todas as manifestações artísticas, repensarem sua linguagem, já que agora era

preciso ter cuidado com o que se dizia. Dessa forma, há nesse momento uma

reformulação dos caminhos seguidos, em todas as manifestações artísticas – o teatro, a

música, que ganhava espaço a canção de protesto, o cinema 210 – o que representa um

enriquecimento estético, até que essa repressão, que gradualmente vai se tornando mais

intensa e culmina, em dezembro de 1968, no decreto do Ato Institucional n.º 5,

ampliando o conflito entre as manifestações artísticas de conteúdo crítico, político e o

Estado esteriliza e desagrega o movimento artístico.

Assim esses artistas e intelectuais de esquerda, que sempre foram sujeitos

atuantes, presentes na luta política, viram-se ameaçados por fortes e bem estruturados

mecanismos de repressão, mas também instigados a continuar lutando, agora de novas

formas, utilizando a arte que oferecia ainda meios de resistir, de combater a repressão,

através de símbolos, metáforas, analogias, que não os colocassem no obscurantismo,

como muitas vezes aconteciam com elementos que se decidiam pelo enfrentamento

direto – a luta armada. Dessa forma, era preciso construir a resistência democrática.

Como demonstra Schwarz, o teatro, logo após o golpe, pretendia ensinar

que as “pessoas continuavam lá e não haviam mudado de opinião”, de que “com jeito se

poderia dizer muita coisa”. Nos espetáculos daquele momento, “a inteligência

identificava-se com os oprimidos e reafirmava-se em dívida com eles, em quem via a

sua esperança. Davam-se combates imaginários e vibrantes à desigualdade, à ditadura

e aos E.U.A. Firmava-se a convicção de que vivo e poético (...) é o combate ao capital e

210 Com o golpe de 64, também o cinema sofre reformulações, em especial o Cinema Novo. Segundo Ismail Xavier, “a partir de abril de 64, a nova conjuntura política incide diretamente no trajeto do CN; exige resposta, redefinição de caminhos. Surge, de um lado, a preocupação de alguns autores em fazer um diagnóstico, expressar sua perplexidade, em face do desafio dos acontecimentos; temos os filmes cujo tema, de forma velada ou não, é a atualidade política, o golpe militar, a derrota das esquerdas – ‘O desafio’/Saraceni/65, ‘A derrota’/Mário Fiorani/67, ‘Terra em Transe’/Glauber/67, ‘Fome de amor’/Nelson Pereira/68, ‘O bravo guerreiro’/Gustavo Dahl/68. E, de outro lado, a investigação da realidade e consciência do oprimido continua, agora em filmes preocupados com a passividade política do povo – como é o caso do gênero documentário no estilo cinema-direto, cujo exemplo mais importante é ‘Viramundo’/Geraldo Sarno/65 –, ou empenhados em abordar em tom menos agressivo os mesmos temas da militância pré-64, dentro da geografia de sertão e favela, da problemática da pobreza, da migração, do marginalismo, como acontece em ‘A grande cidade’/Diegues/65. Há uma autocrítica no CN que procura encaminhar uma política profissional de viabilização de um cinema crítico na conjuntura adversa, cinema mais atento à comunicação, cujo nacionalismo se define uma postura de análise do social não mais tão ansiosa pelos efeitos imediatos de conscientização para a luta revolucionária” (Xavier, I. APUD:

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ao imperialismo”211 . E após Opinião, Boal dirige Arena canta Bahia e Tempo de

Guerra212 . Era um momento de grande efervescência também para a música popular

brasileira, que vivia o período áureo dos festivais, como por exemplo, O Fino da Bossa,

com Elis Regina, na TV Record.

O contato com esses espetáculos influenciam na construção dos musicais

Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, que sendo todo o espetáculo permeado

por música, resgata a empatia do público, criando uma perspectiva de liberdade. E o

tom satírico, gozador, crítico, buscava despertar a platéia, mostrando- lhe que era

possível acordar e organizar um movimento de resistência e oposição a um mundo em

que todos estavam envolvidos. A peça continha o “riso que expressava uma opinião

sobre um mundo em plena evolução no qual estão incluídos os que riem”213. Um mundo

em que “o medo é a expressão extrema e é vencido pelo riso (...) que libera a

consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o

desenvolvimento de novas possibilidades”214. A discussão objetivava não é a solução

para os problemas, mas a contribuição ao debate.

Nos depoimentos de Guarnieri há um evidente entusiasmo quando fala de

Arena conta Zumbi, pela experiência de um trabalho de pesquisa e criação coletiva:

“Após 64 estávamos sem saber como agir, como trabalhar. Ele (Boal) foi para o Rio e organizou o ‘show’ Opinião... Aqui no Arena, depois de 64, a gente montou o

PATRIOTA, R. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p. 112). 211 SCHWARZ, R. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros ensaios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.80. 212 Arena canta Bahia tinha direção e texto de Augusto Boal, o elenco era formado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal, Maria Bethânia, Tom Zé e Piti; foi encenado em 1965, no TCB (Teatro Brasileiro de Comédia). Tempo de Guerra tinha direção de Boal e texto era seu em parceria com Guarnieri, incluindo poemas de Brecht; o elenco era o mesmo do outro musical; tendo sido encenado no Teatro Oficina. A respeito desses espetáculos, Boal comenta: “Bethânia me pediu que dirigisse um espetáculo só com ela. Juntamos músicas de que ela gostava, outras que eu preferia, e demos o título de Tempo de Guerra , inspirado numa canção do Zumbi, inspirada em Brecht. (...) Bethânia queria ajudar seus amigos baianos, lançá-los no Sul onde eram desconhecidos. Além de Caetano, ela me apresentou Maria da Graça (que virou Gal Costa), Gilberto Gil, TomZé e Piti e com eles fiz um segundo ato, músicas de Caetano e Gil, e um texto lírico de Caetano (...) Decidimos fazer um musical contando histórias de nordestinos que vinham para o sul em busca de trabalho, fugin do da fome. As canções de Arena canta Bahia foram escolhidas pelas letras, para contar uma história de retirantes. Não era seleção das mais belas músicas baianas: eu queria mostrar famílias que sofriam seca e buscavam miragens de esperanças. Gente com medo de sonhar colorido: sonhava preto e branco. Sonhavam gotas de orvalho, sem coragem de sonhar oceanos. Caetano não se conformava: inconcebível espetáculo cujo título continha a palavra mágica, Bahia , Caymmi estando ausente. Sempre gostei de Caymmi (...) Não se tratava, porém, de gostar ou não, mas de escolher músicas que condenassem a ditadura, cada vez mais desumana.” (BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro . Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 232-233). 213 BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Françõis Rabelais. São Paulo/Brasília: HUCITEC/Ed. Da UNB, 1993, p.11. 214 Ibidem, p.41,43.

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Tartufo, de Molière. Boal estava no Rio. Eu discutia muito especialmente com o Paulo José, as propostas de Joan Littlewood, de Londres. A gente sentia que precisava mudar a forma narrativa. Não era uma discussão nova, mas se aguçou nesse período, sobretudo depois que chegou o Edu Lobo, que veio chamado antes do tempo, por precipitação do Luís Vergueiro. Edu veio achando que existia um texto pronto para ele musicar, mas a gente não tinha nada. A não ser a inquietação. A gente sentia a necessidade de romper com o que fazia antes. Eu tinha a ‘idéia de sala de visitas’. Você pega três atores numa sala de visitas e, se eles quiserem, eles contam uma história, passando do passado para o futuro, do campo de futebol para o Himalaia. Surgiu a magia do conta. E Edu começo a cantar músicas novas para a gente. Cantou uma sobre o Zumbi. A gente passou uma noite de loucura pela cidade e às 8 da manhã estava na Praça da República comprando o livro de João Felício dos Santos, Ganga Zumba. Resolvemos contar a história da rebelião negra. Arena conta. Começamos a pesquisa. Boal chegou. Todos juntos, o elenco junto. Foi uma fase em que tudo se transformava e a gente também. Dentro da maior alegria, da maior euforia. Todo mundo rompendo com coisas, até no nível pessoal e todo mundo buscando coisas novas. Época de euforia e alegria mesmo. E Boal organizando o trabalho criativo. Na hora de escrever, ficamos eu e ele (grifo nosso)”215 .

Boal, quando rememora o momento de confecção dos musicais, também

fala com muito entusiasmo, registrando que a peça é uma resposta à ditadura militar, ou

seja, um documento de luta:

“Como arte coletiva, a formação de equipe é imprescindível, rigor contratual ou laços afetivos, mas tem que existir. Existiu em minha vida, em ocasiões e motivações diversas. Quando eu e Guarnieri escrevemos e Edu Lobo musicou Arena conta Zumbi, sempre juntos, ensaiando partes do texto e músicas que iam ficando prontas. À noite, Tartufo de Molière e, depois do jantar, até de madrugada, íamos autores e atores para minha casa. Guarnieri e eu revezávamos na Olivetti, os outros em volta, dando sugestões, Edu trancado em outra sala, compondo. Juntos criamos essa unidade, esse coração, não só porque éramos família, mas, ideologicamente, estávamos juntos, lutando contra a recente instalação da ditadura cívico-militar, que tanto matou e tantos danos irreparáveis causou (grifo nosso)”216.

A peça pretendia mostrar que as lições extraídas do evento narrado devem-

se adequar à época de construção do texto: o episódio de Palmares torna-se a metáfora

dos acontecimentos de 1964. Procurava-se analisar movimentos libertários “frustrados”,

mas que podem suscitar uma atitude de resistência na platéia em relação ao golpe

militar. Sob esse aspecto, descreve Roberto Schwarz:

215 Entrevista com Gianfrancesco Guarnieri concedida a Fernando Peixoto. Publicada em Encontros com a Civilização Brasileira , n.º 1 (julho de 1978). In: PEIXOTO, F. Teatro em Movimento: 1959-1984. São Paulo: HUCITEC, 1985, p.57-58. 216 BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 157.

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“ ‘Opinião’ produzira a unanimidade da platéia através da aliança simbólica entre música e povo, contra o regime. ‘Zumbi’ tinha esquema análogo, embora mais complexo. À oposição entre escravos e senhores portugueses, exposta em cena, correspondia outra (...) entre o povo brasileiro e a ditadura pró-imperialista. Este truque expositivo, que tem sua graça própria, pois permite falar em público do que é proibido, combinava um antagonismo que hoje é apenas moral – a questão escrava – a um antagonismo político, e capitalizava para o segundo o entusiasmo descontraído que resulta do primeiro. (...) Uma vez a revolta escrava era referida à ditadura; de outra, a ditadura era reencontrada na repressão àquela. (...) a luta entre escravos e senhores portugueses seria, já, a luta do povo contra o imperialismo (...) e valoriza-se a inevitável banalidade do lugar-comum: o direito dos oprimidos, a crueldade dos opressores; depois de 64, como ao tempo de Zumbi (séc. XVII), busca-se no Brasil a liberdade”217.

Outro aspecto novo na realização desses espetáculos, era ao fato de o

público ser mais estudantil que o costumeiro, coincidindo com o momento áureo do

movimento estudantil, de vanguarda política do país, portanto mais politizado e

consciente, o que favorecia uma troca/cumplic idade maior entre artistas e espectadores,

já que esses respondiam mais agilmente às alusões políticas. O teatro fomentava as

discussões políticas entre os estudantes e acentuava a postura de oposição ao regime

militar, “oferecia-lhes uma coleção de argumentos e comportamentos bem pensados,

para imitação, crítica ou rejeição”218 . Em reação, os ativistas da direita responderam

arrebentando cenários e equipamentos, espancando elenco e muitas vezes o público, em

defesa de sua dominação sobre o povo, que deveria ser afastado de qualquer meio de

formação de opinião que não expressasse a ideologia dos militares.

Numa análise da estrutura dramática do texto, feita para uma crítica sobre o

espetáculo, naquele momento, Décio de Almeida Prado assim recebe Zumbi:

“Arena conta Zumbi é uma história narrada sem nuances, apenas em preto e branco – mas com as cores trocadas. Os negros têm o alvor dos anjos: constróem um paraíso de pujança econômica, de justiça social, e ainda por cima com deliciosos toques de erotismo. A fórmula perfeita: o trabalho livre e o amor livre. Em compensação, a lama dos brancos é do negror das trevas de Satanás: arrasam, pilham, esfolam, roubam, matam. Os pretos são valentes, fortes, líricos, sensuais. Os brancos são decrépitos, adamados, pernósticos, ridículos. Surpreendentemente, os brancos vencem. Deve haver alguma coisa que não foi bem contada. É que a peça não se importa muito com a realidade concreta. A idéia que faz dos homens, no que concerne ao bem e ao mal, é essencialmente religiosa: a vida concebida como a luta entre dois princípios opostos, entre os imaculadamente puros e os irremediavelmente perversos. Nesse universo maniqueísta não há lugar para contingências históricas, circunstâncias sociais, toda essa delicada e complexa textura que determina o modo de ser de uma comunidade. Os negros são

217 SCHWARZ, R. “Cultura e política, 1964-1969”, In: O Pai de Família e outros ensaios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.83. 218 Ibidem, p.81.

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idealizados como os índios o foram durante o romantismo. No fundo é a visão tradicional da sociedade mas com os papéis permutados: os que eram considerados bons – os brancos – passam a ser maus e vice-versa”219. O autor condena o maniqueísmo e cobra as sutilezas, as nuances e os

conflitos internos que compõem o homem. Porém parece não levar em conta que se

trata de uma opção assumida em função das condições que o regime militar

possibilitava para a arte política, que sempre pautou seu trabalho no combate às

injustiças, na denúncia das mazelas sociais. E vai além em sua crítica:

“Acreditam que a luta social se faz através de gigantescas simplificações, cuja finalidade é fortalecer o ardor dos combatentes. E é exatamente isso que não nos agrada em Arena conta Zumbi. A esquerda brasileira tem vivido neste últimos anos num infeliz conúbio com a demagogia, sempre na esperança de surrupiar-lhe as massas eleitorais, mas tendo de se contentar de fato com o papel subalterno e pouco sugestivo de sustentáculo intelectual de um populismo de péssima qualidade. Em vez de servir-se da demagogia em seu próprio proveito, como pretende, ela é que tem servido de retaguarda ideológica à demagogia. Talvez fosse agora a oportunidade de recomeçar em outras bases, de interessar-se um pouco mais pelos fatos e um pouco menos pelas abstrações, um pouco mais pela verdade e um pouco menos pelas distorções deliberadas ou inconscientes da propaganda. (...) Há uma certa distância entre o ‘cabaré literário’, à maneira alemã, que vive de alusões aos fatos do dia, e a peça de teatro que, mesmo sendo engajada, deve pairar a uma altura um pouco mais elevada, tirando daí a sua força de convicção. Arena conta Zumbi lembra freqüentemente um comício político cantado e dançado: um frenesi de movimentos, de rumor, com muito poucas perspectivas realmente novas. Sound and fury – será esse por acaso o novo ideal do nosso teatro de esquerda?”220 . O crítico parte de pressupostos estéticos já estabelecidos para o que seria a

melhor estrutura de uma peça, de uma teoria de teatro diversa da assumida pelos autores

do musical para analisá-lo e com isso cobra posturas estéticas e políticas externas aos

conceitos e ideais que nortearam a obra. Ao divergir po liticamente, o autor opta por

classificar o espetáculo como “panfletário”, “demagógico” do que discutir a validade de

um teatro engajado “que vive de alusões aos fatos do dia ”, em pleno regime militar.

Quanto à pergunta que o crítico nos deixa, Caetano Veloso ao comentar

Zumbi, anos mais tarde, traz uma resposta pertinente:

“Recentemente a atriz Fernanda Montenegro, freqüentemente considerada a maior atriz brasileira, (...) disse numa entrevista que fala-se muito na importância do teatro tropicalista de José Celso Martinez Corrêa e que a memória sempre celebra sua montagem O rei da vela mas que o espetáculo mais importante da

219 PRADO, D. de A. “Arena conta Zumbi”. O Estado de S. Paulo , 09.05.1965. In: PRADO, D. de A. Exercício Findo. São Paulo: Perspectiva, 1989, p. 66. 220 Ibidem, p. 67.

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modernização do teatro brasileiro tinha sido Arena conta Zumbi. A mera demonstração do desejo de compensar essa injustiça histórica de que o Zumbi era vítima apresentou-se-me como algo louvável: senti uma grande e imediata alegria diante das palavras de Fernanda. De fato, não é pouca coisa que se tenha realizado um musical coerente e bem amarrado no Brasil (...) A glamourização da hero icidade do personagem central (...) realçada pela graça da música, abria como que uma clareira agradável em nossas mentes. À época, teria soado como uma verdadeira blasfêmia – ou um esnobismo – alguém dizer bem do Zumbi nesses termos: eu próprio me dava mo tivos politicamente mais corretos do que esse para meu entusiasmo (...) Um espectador culto de esquerda teria preferido uma desaprovação da peça motivada pela irresponsabilidade historiográfica dos autores ou pela simplificação maniqueísta (a palavra aparecia muito no período) dos enfrentamentos do povo heróico com seus algozes do que esse tipo de louvor”221.

Assim como as manifestações culturais passavam por variadas

transformações, em reação ao golpe de 64, os movimentos políticos – os partidos –

também sofriam mudanças. E como vimos, a arte do período do regime militar oferece

importantes indicações a respeito das prováveis ações da esquerda e dos valores ético-

morais que as embasaram.

A esquerda, no pós-golpe, sofre inúmeras divisões, conflitos entre os grupos

que se posicionavam em relação à luta armada, por considerá- la mais eficaz e que

rechaçavam as orientações do PC, e aqueles que optavam pela construção da resistência

democrática, como foi discutido no capítulo anterior. A esse respeito, Boal pondera:

“Em 1966 grupos armados começaram a se estruturar. Religiosos sinceros aderiram à tese da luta armada: forma imediata de servir ao Cristo (...) O Partidão perdeu militantes importantes, descrentes na tese de duas burguesias, uma nacional, outra estrangeira: Marighela e o Velho Joaquim Toledo, meus amigos, fundaram a ALN; João Amazonas e o velho Arruada o PC do B. Tantos mais foram-se embora, desgostosos. Estudantes e operários, perdidas suas estruturas estudantis e sindicalistas, perdiam tudo, menos a esperança. Expulsos dos seus território habituais, em algum lugar tinham que se encontrar. Havia demasiados partidos e dissidências, dissidências das dissidências e dissidências das dissidências dissididas, frações e microfrações, microfrações das dissidências fracionadas. Meus companheiros que me perdoem: era difícil saber quem estava em que organização, quem era aliado de quem, qual a organização mais marxista, mais maoísta, mais trotskista, qual a mais guevarista. E qual seria a mais brasilianista?”222.

Após o golpe, que recebe com perplexidade e despreparo, a esquerda passa

por um momento de auto-crítica:

221 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p. 82-84. 222 BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 242-243.

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“na raiz de nossos erros está uma falsa concepção, de fundo pequeno-burguês e golpista, da revolução brasileira, a qual se tem manifestado de maneira predominante nos momentos decisivos de nossa atividade revolucionária, independentemente da linha política, acertada ou não, que tenhamos adotado. É uma concepção que admite a revolução não como um fenômeno de massas, mas como resultado da ação das cúpulas ou, no melhor dos casos, do Partido. (...). è indispensável que todo o Partido adquira a convicção de que cabe aos comunistas um papel de vanguarda na luta para derrotar a ditadura, o que exige espírito revolucionário, desprendimento e capacidade de sacrifício. (...). Nas condições atuais, só cumpriremos nosso dever se formos capazes de fazer de nosso Partido a força organizadora e dirigente do movimento pela reconquista das liberdades democráticas. Isto requer de cada militante grande sentido de responsabilidade e não menor combatividade”223. Em meio a tantas dissidências, o PCB, em seu VI Congresso (1967), expõe

sua posição e conclama à resistência e à prática de ações que, grandes ou pequenas,

vitoriosas ou derrotadas, levem a acumulação de forças pela população para a

transformação democrática:

“(...) o essencial no momento é estreitar suas ligações com as grandes massas da cidade e do campo, é ganhá-las para a ação unida contra a ditadura. Evidentemente, não é chamando-as a empunhar armas que, nas condições atuais, delas nos aproximaremos. A luta armada só poderá ser, como forma predominante, e decisiva, a combinação de um processo sumamente complexo, onde se alternam e se conjugam os mais diversos métodos de luta. E é necessário que as massas já estejam dispostas a todos os sacrifícios, de preferência a continuar no regime que os oprime, para que um partido de vanguarda possa conclamá-las à ação armada. (...). Na situação atual, nossa principal tarefa consiste em mobilizar, unir e organizar a classe operária e demais forças patrióticas e democráticas para a luta contra o regime ditatorial, pela sua derrota e a conquista das liberdades democráticas. (...). Cada vitória, pequena ou grande, ou mesmo derrota na luta pelas liberdades, incorpora-se à experiência das massas. É a própria experiência de luta que levará as massas a avançar em seus objetivos, formar e prestigiar suas organizações e seus líderes, intervir decisivamente nas ações políticas, que conduzirão à derrota do regime ditatorial”224 . Os que abandonavam o partido recebiam críticas:

“(...). Outra tese a ser combatida é a que vê a revolução não como a obra das massas de milhões, como afirmava Lenine, mas como o resultado da ação heróica de alguns indivíduos (expressa no lema: o deve dos revolucionários é fazer a revolução), ou de pequenos grupos audaciosos. Esta posição voluntarista (...) é a propugnada por todos os que hoje insistem em ver na criação de ‘focos’ guerrilheiros no interior do país o passo inicial da revolução. Afirmam que tais ‘focos’ de luta armada podem desencadear o

223 CARONE, E. APUD: PATRIOTA, R. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p. 116. 224 Ibidem, p. 121.

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processo revolucionário no país e arrastar as massas populares à revolução, independentemente das condições objetivas225e subjetivas indispensáveis (...)”226 .

Assim pela ótica dos que compunham a frente democrática, como aponta

Rosangela Patriota, em análise sobre a ação dos intelectuais e a resistência democrática

na ditadura militar, “o tema dos intelectuais e da cultura tornou-se prioridade nas

discussões do PCB, sobretudo a partir do golpe de 1964. Sem dúvida, este

acontecimento exigiu que o Partido repensasse suas estratégias de atuação política e

suas relações com segmentos culturais, já que, a partir de então, as análises puramente

‘economicistas’ não respondiam mais aos impasses vivenciados, nem à necessidade de

organização da resistência articulada em setores não vinculados à produção. De

acordo com esta perspectiva, o espaço da ‘resistência’ e da ‘luta pela democracia’ teve

na cultura a sua arena (...) Deste modo, foram realizadas considerações com o objetivo

de ‘condenar’ atitudes e práticas que não contribuíssem para a construção de uma

‘hegemonia tendencial de esquerda na cultura brasileira’ no período dos governos

autoritários. Para tanto, estas reflexões, produzidas no PCB, procuraram articular o

trabalho intelectual como núcleo fundamental da resistência. Por isso, tornava-se

importante resgatar a atuação dos intelectuais, em diferentes momentos da história do

Partido (...) bem como reconheceu-se a necessidade de um trabalho teórico que

fundamentasse e orientasse a militância”227.

Em Arena conta Tiradentes há críticas aos intelectuais, mas àqueles que

resolvem entrar numa ação revolucionária de tomada do poder, quando na verdade não

possuem formação para tal, encontram-se despreparados. Existe também uma exaltação

225 A esse respeito Augusto Boal comenta: “Guerrilha literária: Regis Debray, sem ter culpa, foi causa de equívocos graves. Seu livro sobre a teoria dos focos, baseada em diálogos bolivianos com o Che, fez imenso mal à luta armada no Brasil. Foi tomado ao pé da letra. A Batalha de Santa Clara, para alguns combatentes brasileiros, poderia ser aqui reproduzida: bastaria dividir nosso país em dois, criando-se focos e focos, até que ficasse metade do país de cada lado e então... em sonhos... seria fácil. Acordados, percebíamos que Cuba era longa lingüiça e o Brasil, arredondado; ela pequenina, nós gigantescos. Sonhar era cômodo... pra que abrir os olhos? Eu me lembro que um importante líder guerrilheiro que, querendo me convencer da justeza de suas estratégias, abriu em cima da mesa um colorido mapa do Brasil cheio de montanhas e rios, mostrou a progressão inexorável das conquistas populares: focos e focos, faltando só atravessar o rio São Francisco para que todas as forças revolucionárias se reunissem num glorioso Exército de Libertação Nacional, marchando sobre Pequim, digo, Brasília. Lembro de que fiz pergunta sincera: nesse rio não tinha jacaré, crocodilo, perigo? Tão fácil atravessá-lo? Nos mapas, jacaré não existe, nem malária, tifo, mosquito, febre amarela: apenas cores azuis, amarelas e verdes. Nos mapas, as guerras são rosas...”. (BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 243.). 226 CARONE, E. APUD: RAMOS, A. F. O Canibalismo dos Fracos: História/Cinema/Ficção – um estudo de “Os Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Andrade). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História) – FFLCH, USP, p. 184. 227 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p. 149-151.

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da figura de Tiradentes – “verdadeiro herói revolucionário” – que fracassa por se aliar a

companheiros errados, enquanto deveria estar junto da massa, do povo – agente

revolucionário/transformador. Pois, então, o que os autores queriam dizer? Talvez

compactuasse da perspectiva do partido: revolução só quando as massas estivessem

preparadas, porque, antes disso, qualquer ação seria mais um golpe. Porém os artistas,

intelectuais, grupos organizados deveriam incitar o povo a ter atitudes, fossem

pequenas, cotidianas, mas contínuas, que lhes oferecessem forças, que um dia reunidas,

serviriam para se atingir o objetivo maior: a derrubada dos militares do poder.

Anos mais tarde, Boal faz uma análise clara do momento, do conflito de

posicionamento que viviam, evidenciando como, no desejo de resistir, contribuíam para

a construção do processo histórico ao lado dos que compunham a frente democrática:

“Dois tipos de polêmica se instalaram. A primeira, sobre o papel dos intelectuais em tempos de turbulência ou de paz. As cenas dos inconfidentes foram inspiradas pela noite de 31 de março de 1964, na casa do Professor. Aquela noite inútil tinha ficado em nossa memória como simbólica: intelectuais davam-se o direito de indicar caminhos e... cruzar os braços. Como se ser intelectual significasse o direito adquirido de não fazer nada além de pensar. Em Cuba, intelectuais cortavam cana. Que direito tínhamos nós de exigirmos que os outros fizessem tudo? Não seríamos nós parte desses outros? Fôssemos à luta! Dúvida: deve um pianista cortar cana? Um cirurgião? Sou mais útil fazendo aquilo que qualquer um pode fazer ou aquilo que só eu sei? Fomos dramaturgos cruéis, sem maldade. Críticos impiedosos, sem ironia. Convidamos participantes da noite de 31 para leituras de Tiradentes, sem armadilhas – vieram sem se dar conta. Alguns se reconheceram sem se incomodar. Outros nem se deram por achados. Hoje, com o tempo distante e a memória esfumaçada, ainda menos se hão de achar. Éramos contraditórios: acusávamos intelectuais de promoverem revolucionários bate -papos mas não fazíamos mais do que isso. Éramos intelectuais. Como nossos criticados: escrevíamos, mas... ninguém pegava em armas. Onde as armas? A curiosidade se acendeu em nós. A partir de Tiradentes, alguns de nós começaram a pensar em ação efetiva: amaldiçoar ditaduras mentecaptas e carrascas era pouco! Alguns queriam cumprir o que julgavam dever (grifos nossos)”228.

Com relação a Arena conta Tiradentes, Guarnieri se mostra menos

entusiasmado e aponta o fim do grupo 229 , devido ao estrangulamento cultural e artístico,

sofrido no embate com a ditadura militar:

228 BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 240-241. 229 O Teatro de Arena encerra suas atividades, em 1970, após contrair inúmeras dívidas que não consegue sanar e ter seu principal administrador e diretor, Augusto Boal exilado. Porém o teatro (a sede) existe até hoje, tendo sido comprado pelo SNT (Serviço Nacional de Teatro) e nomeado “Teatro Eugênio Kusnet”, e abriga diversificados espetáculos teatrais.

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“Já durante Tiradentes as coisas não estavam bem paradas. Começamos a divergir! Já estávamos sofrendo um pouco com todo o processo político e começou-se a pensar em fazer um teatro que atuasse mais. Então é criado o Núcleo Dois do Arena, e o Boal propõe o Teatro Jornal. Com isso, no próprio elenco começa a surgir uma divisão de conceitos. Havia, de um lado, a acusação de desvio formalista... agora, essas diferenças, essas divergências numa situação de liberdade, acho que são muito úteis e levam todos para frente; numa situação de sufoco, como aquela que a gente estava vivendo em 1967, 1968, em que a realidade estava explodindo, tínhamos que permanecer unidos; mas não foi o que aconteceu! O Teatro Jornal não deu certo... foi proposta a Feira Paulista de Opinião, realmente a última grande proposta do Arena, bolada pelo Boal, que eram peças curtas baseadas numa só pergunta: ‘O que acha do Brasil de hoje?’. Esse era o tema. Quem responderia essa pergunta era o próprio povo, gente do povo, compositores, artistas plásticos, dramaturgos, poetas, etc. (...) Ficou um espetáculo muito polêmico e foi praticamente a última coisa que conseguimos realizar. (...) Antes do Arena acabar, fizeram uma viagem, eu não fui... Eles foram até os Estado Unidos, vieram para a América do Sul fazendo Zumbi e Simon Bolivar230. Essa última foi proibida aqui no Brasil. Isso já estávamos em 1968,

230 A peça, que segue a mesma estrutura dramática e de encenação que Tiradentes e é assinada por Augusto Boal, tanto o texto quanto a encenação, começa com o elenco entrando em cena, em que o Coringa se destaca e apresenta o trabalho e o grupo, além de falar da dedicatória a José Marti: “Nós somos o Teatro de Arena de São Paulo. Contamos histórias, quando, como e onde podemos contar histórias. Vamos contar a vida de Simon Bolívar, o Libertador. Este espetáculo és dedicado al poeta latino americano JOSÉ MARTI, que sobre Bolívar há dicho: ‘En calma no se puede hablar de aquel que no vivió jamás en ella; de Bolívar se puede hablar con una montana por tribuna, o entre relámpagos y rayos, o com um manojo de pueblos libres en el puno y la tirania descabezda a los piés.’ – José Marti – Quando Bolívar morreu, avisou: tudo que já foi feito ficou de novo por fazer, tem que ser feito outra vez. Preste bastante atenção: a vida de Simon Bolívar é muito instrutiva. A vida, a morte e a ressurreição!” A obra está escrita em cinco episódios. No 1º Bolívar está na corte de Carlos IV, depois em Paris, na casa da condessa Tereza Alaiza Toporrucha Ustariz y Torquemal; em Milão, assiste à coroação de Bonaparte; e na Inglaterra encontra Miranda e Lord Wellesley. No 2º episódio, em Caracas se proclama a Independência da Venezuela, em que o povo fala não compreender a independência que nã o liberta. Bolívar ao ser entrevistado pelo Coringa, diz ter aceitado a imposição de considerar ‘povo’ tão pouca gente, porque achava que era questão de tempo, de processualmente ir conquistando outras coisas. O general Monteverde inicia a luta pela recuperação de Caracas. Na seqüência há a cena em que pai e filho, ao matar o cavalo de Monteverde, são castigados. O pai escapa inicialmente, mas o filho é pego, torturado e morto. O outro procura os amigos para que o abriguem em sua fuga e todos lhe negam ajuda. É então encontrado e torturado. Monteverde recupera Caracas. No 3º episódio, os ingleses prometem nova ajuda, outra vez Bolívar invade Caracas. Porém a Inglaterra recua ao ser pressionada pela França que ameaça cortar sua ajuda. Acontece um terremoto na cidade, que é quase completamente destruída. Bolívar prende Miranda e o entrega a Monteverde. Reúne tropas para retornar a Caracas, onde recebe o título de Libertador. No entanto, os Llaneros, chefiados por Boves, armam uma batalha e retomam a cidade. No segundo ato, no 4º episódio, Bolívar estando no Haiti, conversa com o presidente Petion sobre o que é ‘revolução’, ‘independência’, ‘verdadeira participação do povo no movimento’. Elenca as sete maneiras de se entrar na briga certa contra as espanhóis: 1) ser soldado, combater; 2) sabotagem; 3) espionagem; 4) dar abrigo a quem vai lutar; 5) infiltrar-se no campo inimigo para liquidá- lo; 6) desmoralizar o inimigo; 7) honestidade com o povo. Dá-se um novo embate com os llaneros, mas Bolívar vai conquistando várias cidades com seus soldados. Cruzam os Andes, vencendo muitas batalhas. No último episódio, volta a Venezuela, depois da expulsão dos espanhóis. A peça trabalha com a mesma temática que os outros musicais: a luta pela liberdade, pela democracia, pela justiça, contra o imperialismo. Porém, aponta mais enfaticamente para a validade da luta armada. Este texto e sua encenação não foi analisada pelos pesquisadores, não tendo dentro da historiografia por nós estudada, nenhuma análise. Vale destacar que foi encenada, pelo Teatro de Arena, com direção de Augusto Boal, em 1970, nos Estados Unidos e alguns países da América Latina.

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veio o AI-5, logo depois Augusto Boal foi preso e teve que deixar o país... e o Arena terminou!”231 .

A crítica, por sua vez, agora recebe a peça com maior aceitação do que

Zumbi. Mas ainda pela sua qualidade dramática e não pelo que representa enquanto

instrumento de luta, de intervenção política:

“O que se pede a uma peça de teatro são imagens convincentes, a passagem feita com habilidade do geral ao particular, do abstrato ao concreto. E é neste ponto que Arena conta Tiradentes mais se afirma: concordemos ou não com as suas análises políticas, ou com o quadro histórico que traça, não se pode deixar de admirar a maestria, diríamos artesanal, com que as personagens e as cenas são rapidamente esboçadas, de tal modo que, abolido o conteúdo ideológico ainda assim ficaria de pé o retrato de situações humanas, de confrontos entre diferentes tipos de personalidade, de comportamentos sociais padrões (...), que nos surpreendem, fazendo-nos sorrir, pela acuidade da observação, em geral satírica. Bons olhos para ver como agem os homens, bons ouvidos para escutar o que eles dizem habitualmente, justificando-se perante si mesmos ou perante os outros, são as qualidades próprias da peça. O que é outra maneira de dizer que ela vale por si mesma, como obra de arte autônoma, e não apenas como veículo de idéias políticas. O que Boal e Guarnieri parecem não desculpar nos árcades mineiros (...) é fazerem versos no momento de fazer revolução. Não haverá por acaso nestas recriminações, por parte dos autores, um sentido inconsciente de autopunição, o resultado daquele sentimento de culpa típico do intelectual de nossa época, que não perdoa a própria atividade literária e artística em face da fome e da miséria de milhões de homens? (grifo nosso)”232.

A razão da escolha de Zumbi e Tiradentes como heróis revolucionários, dois

marcos da História, levanta a discussão do fato de serem importantes para a construção

da identidade nacional e latino-americana, e nos faz repensar a questão da

hierarquização, da periodização, que talvez seja importante, desde que se perceba “a

diferença entre viver passivamente um conteúdo mítico e procurar dar-lhe uma

interpretação crítica o mais ampla e abrangente possível”233 . É verdade, no entanto,

que a figura de Tiradentes e sua simbologia de “libertador nacional”, serviram aos dois

lados na década de 60: tanto aos próprios militares, como seus opositores, no caso a

esquerda, que o utilizava como representante do militante ideal das décadas 60/70.

“Neste sentido, se Tiradentes aparece como o único dos Conjurados que tinha um

231 “Gianfrancesco Guarnieri”. In: KHOURY, S. (org.). Atrás da Máscara I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 49-50. 232 PRADO, D. de A. “Tiradentes Contado pelo Arena”. O Estado de S.Paulo , 07.05.1967. In: PRADO, D. de A. Exercício Findo. São Paulo: Perspectiva, 1989, p. 169. 233 GINZBURG, C. Freud, o lobo dos lobos e os lobisomens. In: Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p.217.

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sentido prático e estava totalmente voltado para a tarefa de fazer a revolução, ele é, sem

dúvida, a representação de todos aqueles que, na conjuntura dos anos 60/70, também

se propuseram a fazer a revolução. (...) Não se trata mais do símbolo da resignação

diante do poder vitorioso, tampouco a encarnação da idéia de independência/república

com contornos cívico-patrióticos, tão cultuado pelas classes dominantes pós-

Proclamação da República.”234.

A esse respeito, Augusto Boal justificou:

“Em Tiradentes, os críticos condenavam o culto ao herói. Brecht: Feliz o povo que não necessita de heróis. Eu concordava, gênero e número, mas não em grau. Acrescento: o Brasil não é feliz, por isso, caro Bertoldo, necessitamos de heróis! Em toda parte, a toda hora! Que proliferem, prolíficos! Heróis a mancheias! Urgente! Para mim, o mito não é, em si, mistificador. Mito é a simplificação do indivíduo histórico, guardando-se os traços essenciais do seu caráter, sua vida que, assim, aparece magnificada no que se lhe atribui como essência. Torna-se mistificação quando se magnificam circunstâncias não essenciais e joga-se no lixo da História o que é importante. Guarda-se o pitoresco, perde-se oprincipal. Cristo. Se mostrarem apenas seus padecimentos na cruz, esoticismo, se esconderem seu poder mobilizador popular, estarão mistificando o mito. Che, mostrando o cadáver, olhos entreabertos, rodeado de assassinos, isto é mistificação: o homem derrotado. Mostrando-se o Che herói de Santa Clara, o homem que venceu Batista, será então o mito sem mistificações. Num e noutro caso, não é necessário contar a vida inteira do herói, falar na marcenaria paterna de Jesus ou da medicina do Che – no entanto, é imprescindível selecionar o que se quer mostrar – nessa escolha, estará o mito ou... a mistificação”235

No que diz respeito, a relação passado-presente, utilizando análise de

Alcides Freires Ramos, podemos dizer que “a vontade de falar a respeito do presente

levou-o, considerando a estratégia que adotara, a propor uma relação entre passado-

presente em que, sem dúvida, não é, apenas, o passado que estaria ajudando a entender

o presente, mas os problemas enfrentados no presente é que orientam a

retomada/releitura do passado”236. O passado tornava possível uma leitura do presente,

utilizando-se um tema histórico, que era apresentado à luz de uma análise política atual,

através da função analógica.

234 RAMOS, A.F. O Canibalismo dos Fracos: História/Cinema/Ficção – um estudo de “Os Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Andrade). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História) – FFLCH, USP, p.202. 235 BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 200, p. 241. 236 RAMOS, A.F. O Canibalismo dos Fracos: História/Cinema/Ficção – um estudo de “Os Inconfidentes” (1972, Joaquim Pedro de Andrade). São Paulo, 1996. Tese (Doutorado em História) – FFLCH, USP, p.200.

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A partir de tudo o que discutimos aqui, pode-se concluir que o ano de 1964,

com seus terríveis acontecimentos, é um marco na história do Teatro de Arena, que

trazia em suas representações um projeto político de uma nova sociedade e de luta pela

democracia ampla a todas as classes sociais e que se perde com a tomada do poder pelos

militares. Diante de tal derrota política, as lutas e propostas estéticas tiveram que ser

redefinidas, o que evidencia que sua trajetória não foi linear, isto é, não havia uma

perspectiva traçada a priori. Em conjunturas diferentes, as obras estiveram em sintonia

com o seu momento histórico, com as questões socio-políticas de sua época. Por isso

devem ser pensados como documentos de luta.

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CONCLUSÃO

Este estudo, que se estruturou a partir do processo de recuperar a

historicidade do Teatro de Arena e sua produção, em particular os musicais, possibilitou

uma revisão das interpretações já consagradas, qualificadas como a voz da verdade,

acerca dessa história e permitiu resgatar os pressupostos teóricos e estéticos que

nortearam essa produção artística, além dos debates e lutas, nas quais seus agentes

(autores, diretores, atores) estavam envolvidos.

A importância em se fazer uma releitura desses trabalhos acadêmicos reside

no fato de que, também esses estudiosos, possuem seus referenciais teóricos e estéticos

e, muitas vezes, partem deles para uma análise sobre o Arena em busca de um sentido,

uma unicidade que delegue a esse grupo e suas atividades um lugar definido e definitivo

(o que nos parece mais grave, pois é como se encerrasse novas discussões e suprimisse a

capacidade de sua trajetória dialogar com o presente, desenvolvendo novos papéis), na

História do Teatro Brasileiro. É claro que para a realização de nossa pesquisa, partimos

do estudo crítico dessas interpretações, mas cientes de que essas narrativas compõem

parte da história construída; há outros caminhos, outras perspectivas, outros olhares.

Sob esse aspecto, decidimos caminhar por outra trilha: a da investigação

histórica sobre manifestações artísticas que, sob o ponto de vista que seguimos,

representam a luta de determinado grupo social que está inserido no processo histórico

como sujeito atuante e que tem a arte como mediação para suas angústias, dúvidas,

questionamentos, reivindicações, traçando assim um intenso diálogo com a conjuntura

socio-política, econômica e cultural do período – os anos 60.

Dessa forma, acreditamos que, estudos que se atêm a hierarquizações

estabelecidas, perdem a oportunidade de perceber as reais questões que motivaram a

construção da obra. Assim, classificações como “esquemáticas”, “paternalistas”,

“didáticas”, “pragmáticas”, “maniqueístas” e tantas outras, referendadas nas abordagens

aos musicais do Arena, tendo sido este o quadro interpretativo encontrado no início de

nossa pesquisa, apresentam-se para nós como uma pequena fração da análise a ser feita,

pois é fundamental não perder de vista que essas peças são documentos de luta, ou,

como já dissemos, representações elaboradas em um dado momento e em lugar

específico, que não carregam evidências de verdade, mas posições assumidas frente a

recentes acontecimentos da História do Brasil.

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O Teatro de Arena filia-se, desde o princípio de sua trajetória, a uma

concepção de engajamento, que significa trazer para o palco problemáticas inerentes à

sociedade brasileira, com a possibilidade de intervir nos embates políticos e

conscientizar o público para também desenvolver uma efetiva participação nas questões

políticas imediatas. Sendo assim, o grupo não titubeia em expor opiniões, pensamentos,

assumir posições, defender pontos de vista e sobretudo marcar seu trabalho com esse

perfil, que lhe confere, a nosso ver, a realização da mais nobre função da arte: suscitar

na platéia atitudes de transformação da ordem vigente.

Todavia, o Arena se torna também alvo de críticas e rejeições, por parte

daqueles que condenam espetáculos em que a forma, a estética serve como veículo para

o discurso político, como se fosse inconciliável o compromisso político com o

compromisso artístico. Passa a ser qualificado como “datado” por, explicitamente, se

comprometer com as lutas de seu tempo, como se a não explicitação de um conteúdo

ideológico significasse a ausência dele. “Ao contrário, o que ocorre é a não-revelação

dos princípios que nortearam a elaboração da obra”237.

Há, a partir desse ponto de vista, uma cobrança de que a obra artística retrate

mais fielmente a realidade, como se a filiação ao projeto de um teatro político, engajado

terminasse por distorcer/obscurecer o panorama social que procura desvendar.

Pressuposto que elide as referências teóricas, políticas e estéticas que formam o artista,

sua visão de mundo, sua subjetividade. Diante de tal questão, um texto, já citado por

nós, vem à tona. Sobre o procedimento dos Historiadores da Cultura em relação aos

diálogos interdisciplinares, Hunt escreveu: “ não devem substituir uma teoria redutiva

da cultura enquanto reflexo da realidade social por um pressuposto igualmente

redutivo de que os rituais e outras formas de ação simbólica simplesmente expressem

um significado central, coerente e comunal. Tampouco devem esquecer -se de que os

textos com os quais trabalham afetam o leitor de formas variadas e individuais. Os

documentos que descrevem ações simbólicas do passado não são textos inocentes e

transparentes; foram escritos por autores com diferentes intenções e estratégias, e os

historiadores da cultura devem criar suas próprias estratégias para lê-los. Os

historiadores sempre foram críticos com relação a seus documentos – e nisso residem

os fundamentos do método histórico”238 .

237 PATRIOTA, R. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p. 19. 238 HUNT, L. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 18.

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Torna-se pertinente dizer que a prática do historiador carrega, em certa

medida, uma subjetividade, não sendo possível uma imparcialidade, já que suas

escolhas não são inocentes, neutras, mas motivadas pela sua visão peculiar de mundo,

seu grau de compromisso com a realidade social, seus referenciais. No entanto, isso não

torna seu trabalho menos válido, apenas confere- lhe historicidade, como possuem as

obras do Arena, os trabalhos acadêmicos a seu respeito, esta dissertação.

E ainda: tais críticas referentes ao Arena refletem a idéia de que a arte

deveria ser vista como um fim em si e não como um meio. Sob essa perspectiva a

postura do grupo era tida como pragmátic a, considerando que seu projeto artístico

estava submetido a estruturas fechadas, calcadas em mensagens definidas e acabadas,

não sendo por isso “revolucionário”, pois não era vanguarda no aspecto estético.

Ao contrário, acreditamos que o teatro “é um instrumento poderoso para a

reflexão crítica: uma manifestação do homem em sua historicidade concreta, espaço de

discussão de comportamentos e atitudes vinculados às relações de produção”239. E

além disso: pode provocar a atividade política do público, despertando a consciência em

grupos sociais, formando opiniões, estimulando ações efetivas. É claro que um

espetáculo não consegue, por si mesmo, promover a transformação da sociedade. Mas é

evidente também que não são essas as propostas do teatro engajado e sim intervir na

luta, não substitui- la, instrumentalizando os sujeitos que compõem seu público.

Então, comungando dessa teoria e motivadas pela legitimidade do

engajamento no campo estético, percebemos o Arena como revolucionário, pois

arregimentou forças e condições para, sob um regime militar que censurava, torturava,

matava, continuar denunciando as mazelas e injustiças de seu tempo e propor

perspectivas otimistas de uma sociedade verdadeiramente livre, democrática, igualitária.

Construiu, dessa forma, uma cultura de oposição, que continha na obra, evidentemente,

a discussão política, porém, dentro de uma dimensão estética. Em nenhum momento

abriu mão da qualidade estética dos trabalhos.

O Teatro de Arena, que estava inserido num período de extrema

efervescência política e cultural, em que todos os setores da atividade artística – cinema,

música, literatura – buscavam novas formas, novas linguagens, em função do golpe de

64 que interrompe um projeto nacional de desenvolvimento, democracia e

independência econô mica, reformula a concepção de teatro vigente até o momento,

239 PEIXOTO, F. Teatro em Questão. São Paulo: HUCITEC, 1989, p. 255.

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criando o Sistema Coringa, promovendo uma articulação intensa da arte teatral com a

música de protesto, incentivando, a partir do estudo de diversos teóricos, em especial

Stanislavski e Brecht, o ecletismo de gênero, que confere liberdade na formulação da

montagem cênica. Sobretudo o Arena não se tornou escravo de nenhum método nem

retórica. Conheceu sim fronteiras ideológicas, mas não limitações estéticas.

Conforme é demonstrado, não é possível se falar em linearidade quando o

assunto é a trajetória do Arena, pois este abarcou diferentes pessoas, projetos, intenções,

propostas de atuação, sendo suas criações multiplicidades estéticas e políticas, que

representam diversos momentos da história brasileira.

Assim, chegado ao final, porém, cientes de que esta análise não esgota o

assunto, evidenciamos o que a pesquisa nos mostrou: o referencial teórico e estético dos

autores, diretores e atores, bem como suas intenções nas produções artísticas.

Todavia, nosso maior interesse é que essas análises sejam debatidas e

estendidas para as manifestações artísticas atuais.

Estamos vivendo um momento de perplexidade: apesar de termos nos

libertado da cruel ditadura, ainda não conseguimos construir um país democrático no

que tange às questões sociais, vivendo em um quadro de profundas desigualdades e

injustiças, resultado de uma economia dependente, de relações submissas com nações

(especificamente os Estados Unidos) imperialistas. O teatro, que já foi mais

conseqüente e atuante, apresenta-se despolitizado, no sentido de ter se afastado de

temáticas ideológicas e sociais, e o próprio artista ter perdido aquele diálogo intenso,

questionador, reflexivo. Estamos vivendo um momento de descompromisso na arte.

Não podemos ignorar que o teatro político está fora das salas de espetáculo. Como bem

aponta Rosangela Patriota, temas como “justiça social”, “igualdade”, “participação”,

“consciência política”, parecem idéias utópicas distantes da necessidade do mercado,

palavras va zias que, juntamente com a queda do que representava o muro de Berlim –

todo o projeto socialista –, perderam de vez seu significado240. Acreditamos que,

atualmente, a arte viva a ditadura da lei de mercado, sendo, cada vez mais, solapada

pelo neoliberalismo, que faz mecenato com as estrelas “globais”; pela falta de formação

de público, que se vê afetado pela crise econômica, educacional, cultura; pelas leis de

incentivo que atendem aos mesmos grupos já favorecidos, sendo, com efeito, “uma

ilusão pensar que o Estado sustenta (quando o faz) um empreendimento teatral na mais

240 PATRIOTA, R. Vianinha um Dramaturgo no Coração de seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999.

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total abnegação. Mesmo sem confessá-lo, ele espera receber por esse amparo uma

retribuição simbólica: não propriamente uma adesão ou celebração mas, mais

sutilmente, um reforço de sua imagem, do seu prestígio. (...) o poder opta por

privilegiar, no plano cultural, a burguesia que constitui a sua base eleitoral. Ou seja,

opta por atender à sua demanda, aos seus gostos. (...) Pois não há como deixar de

constatar que o teatro sem estrelas, os j ovens grupos e os centros dramáticos, todo esse

setor está sendo cada vez mais tratado a pão e água (grifos nossos)”241. Tudo isso,

muitas vezes, sem um enfrentamento, sem oposição, caindo numa arte alienada e

alienante. O teatro precisa retomar sua função social, entendida aqui como o papel que a

obra desempenha no estabelecimento de relações sociais, na preservação ou

transformação da ordem vigente. Deve ser um espaço – seja qual for – onde se fale do

presente, onde se conteste, denuncie, acuse. O artista não pode perder o seu espírito de

contestação e mudança, que o impulsiona a participar das lutas de seu povo, reconhecer

seus problemas e compartilhar suas reivindicações, com o ideal de conquistar a

libertação e felicidade de grupos sociais, estando assim, em oposição a todos os

mecanismos de controle que possuem o governo e a classe burguesa e que acaba por

domesticar o indivíduo, sua consciência, seus sentimentos.

Diante de tais questões, a razão de nosso trabalho: a história do Teatro de

Arena provoca, ainda hoje e sempre que se apresentarem tais problemas, reflexões e

estímulo na construção de um teatro participante e articulado com o presente.

241 ROUBINE, JJ. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982, p. 196-198.

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