resenha do sahlins

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1 “Metáforas históricas e realidades míticas: Estrutura nos primórdios da história do reino das ilhas Sandwich” (SAHLINS, Marshall. ZAHAR, 2008), de Marshall Sahlins, a partir da descrição etnográfica nos capítulos 1 e 2 (respectivamente, “Reprodução: estruturas de longa duração” e “Transformações: estrutura e prática”) traz consigo uma miríade de possibilidades para a discussão sobre as fronteiras das proposições metodológicas do estruturalismo. Traz, sobretudo, a possibilidade de, em última instância, oferecer uma possível resposta ao hiato que, no meu caso, se formou por muitas leituras de Claude Lévi-Strauss. Mas não apenas isso. Muito mais do que oferecer uma alternativa para a tensão permanente que se formou no debate da Antropologia Contemporânea a saber: contrapor estrutura e história , a leitura desta obra de Sahlins permite a condução para o fio condutor, a meu ver, que a Antropologia deve seguir em termos de diálogo com as outras ciências sociais, grosso modo: a mobilização de diferentes aspectos (situados na interdisciplinaridade) que circundam uma proposição teórica. Como disse Fraya Frehse na apresentação da obra: “Explicitadas essas conexões diversas implícitas em Metáforas históricas e realidades míticas, percebe-se que são muitas as possibilidades de interlocução teórico-metodológica, dentro da antropologia e fora dela, que o livro viabiliza.” (Sahlins, 2008, página 15). Neste sentido, este trabalho pretende analisar, acima de tudo, as considerações de Sahlins a partir de sua etnografia, sem deixar, é claro, de pontuar questões importantes, que permitirão ao leitor certa clareza interpretativa da obra resenhada, ou seja, o núcleo central para a confecção de qualquer resenha crítica. Para tanto, cabe ainda, antes de tudo, voltar-se as proposições de Lévi-Strauss, a fim de situar qual foi, de fato, a questão que Sahlins pretendeu resolver. Mas sem deixar, com isso, de perder o objetivo deste trabalho, que é pormenorizar a já mencionada obra de Sahlins. Ora, em Lévi-Strauss, tem-se que a noção de “estruturas” não se refere à dimensão empírica, isto é, a estrutura não se remete estritamente às relações e funções sociais físicas, mas, sim, ao que é necessário ser extraído empiricamente para a composição de um modelo, ou ainda, uma forma, um molde, um feitio. Isto é, Lévi-Strauss propõe a busca de características do que se apresentam sob forma regular nas sociedades, independentemente do espaço e do tempo aos quais elas se situam. Com isso, as estruturas tomam formas e sentidos que condicionam

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Resenha crítica do livro "Metáforas históricas e realidades míticas", de Marshall Sahlins. Em resumo, mais do que uma resenha crítica, este trabalho se insere na tentativa de discutir as implicações da "Estruturalismo", tendo em vista, sobretudo, Lévi-Strauss e Marshall Sahlins.

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Page 1: Resenha Do Sahlins

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“Metáforas históricas e realidades míticas: Estrutura nos primórdios da

história do reino das ilhas Sandwich” (SAHLINS, Marshall. ZAHAR, 2008), de

Marshall Sahlins, a partir da descrição etnográfica nos capítulos 1 e 2

(respectivamente, “Reprodução: estruturas de longa duração” e “Transformações:

estrutura e prática”) traz consigo uma miríade de possibilidades para a discussão

sobre as fronteiras das proposições metodológicas do estruturalismo. Traz,

sobretudo, a possibilidade de, em última instância, oferecer uma possível resposta

ao hiato que, no meu caso, se formou por muitas leituras de Claude Lévi-Strauss.

Mas não apenas isso. Muito mais do que oferecer uma alternativa para a tensão

permanente que se formou no debate da Antropologia Contemporânea – a saber:

contrapor estrutura e história –, a leitura desta obra de Sahlins permite a condução

para o fio condutor, a meu ver, que a Antropologia deve seguir em termos de diálogo

com as outras ciências sociais, grosso modo: a mobilização de diferentes aspectos

(situados na interdisciplinaridade) que circundam uma proposição teórica. Como

disse Fraya Frehse na apresentação da obra: “Explicitadas essas conexões diversas

implícitas em Metáforas históricas e realidades míticas, percebe-se que são muitas

as possibilidades de interlocução teórico-metodológica, dentro da antropologia e fora

dela, que o livro viabiliza.” (Sahlins, 2008, página 15).

Neste sentido, este trabalho pretende analisar, acima de tudo, as

considerações de Sahlins a partir de sua etnografia, sem deixar, é claro, de pontuar

questões importantes, que permitirão ao leitor certa clareza interpretativa da obra

resenhada, ou seja, o núcleo central para a confecção de qualquer resenha crítica.

Para tanto, cabe ainda, antes de tudo, voltar-se as proposições de Lévi-Strauss, a

fim de situar qual foi, de fato, a questão que Sahlins pretendeu resolver. Mas sem

deixar, com isso, de perder o objetivo deste trabalho, que é pormenorizar a já

mencionada obra de Sahlins.

Ora, em Lévi-Strauss, tem-se que a noção de “estruturas” não se refere à

dimensão empírica, isto é, a estrutura não se remete estritamente às relações e

funções sociais físicas, mas, sim, ao que é necessário ser extraído empiricamente

para a composição de um modelo, ou ainda, uma forma, um molde, um feitio. Isto é,

Lévi-Strauss propõe a busca de características do que se apresentam sob forma

regular nas sociedades, independentemente do espaço e do tempo aos quais elas

se situam. Com isso, as estruturas tomam formas e sentidos que condicionam

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problemas gerais, sendo que – o principal deles, como já dito anteriormente – seja,

talvez, contrapor estrutura e história.

Em “O pensamento selvagem”, tratando sobre como o mito permite que o

passado e o presente não se diferenciem; e como ele é um mecanismo de resistir ao

tempo, fruto da condição de que as coisas não se modifiquem, possibilitando, assim,

significá-las –, Lévi-Strauss diz:

Mesmo uma história que se diz universal ainda não é mais que uma

justaposição de algumas histórias locais, dentro as quais (e entre as

quais) os vazios são muito mais numerosos que os espaços cheios.

E seria vão acreditar que multiplicando os colaboradores e

intensificando as pesquisas obter-se-ia um resultado melhor: pelo

fato de a história aspirar à significação, ela está condenada a

escolher regiões, épocas, grupos de homens e indivíduos dentro

desses grupos e a fazê-los surgir, como figuras descontínuas, num

contínuo suficientemente bom para servir de pano de fundo. Uma

história verdadeiramente total neutralizar-se-ia a si própria; seu

produto seria igual a zero. (Lévi-Strauss, 1997, pág. 285).

Lévi-Strauss chama atenção para o fato de que, em termos de agência sobre

a história, o “Eu” que constitui o homem seria, na verdade, uma peça de ficção.

Enfim, exposto algumas considerações sobre o pensamento teórico-metodológico de

Lévi-Strauss, cabe, então, a atenção especial para a obra de Marshall Sahlins.

Na descrição etnográfica dos eventos que ocorreram através do contato entre

o povo havaiano e os navegantes britânicos do final do século XVIII e primórdios do

XIX – se atentando, sobretudo, para o desenrolar dos acontecimentos que deram

início à reconfiguração da dinâmica havaiana após o capitão Cook e sua tripulação

chegar ao Havaí, no início de 1779 –, Sahlins oferece algumas considerações

importantes. Eis a primeira delas: “O assassinato do capitão Cook não fora

premeditado pelos havaianos. Mas tampouco foi um acidente, estruturalmente

falando. Foi o Makahiki numa forma histórica. Nem a consequência histórica foi

apenas um simples sequitur empírico do evento.” (Sahlins, 2008, pág. 55). Nesta

passagem, descrevendo a sequência da “metáfora histórica” de uma “realidade

mítica”: a morte do deus Lono (o capitão Cook), Sahlins está chamando atenção

para as transformações estruturais, que se deram quando a programação ritual

sofreu certa recombinação.

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Concretamente falando, as diferentes recepções do capitão Cook e as

reconfigurações da dinâmica do povo havaiano que se deram a partir das

consequências desse evento, em última instância, permite o entendimento do que

Sahlins tratou ser a reprodução de uma estrutura – o mito havaiano – ao longo de

sua transformação. Sahlins constatou que, assegurados pela reposição constante da

estrutura, os rearranjos se estabelecem constantemente ao longo da história, ou

seja, acima de tudo, não é a tentativa de superar as rígidas estruturas, e sim

constatar que as mudanças causadas pelos eventos promovem recombinações

inscritas em certa permanência estrutural. Isto é, a clara dialética estabelecida entre

certa estrutura e prática (ou, sistema e evento), nas palavras de Sahlins: “Nos

primeiros anos do contato entre os europeus e o reino, a cultura havaiana não

apenas se reproduziu. Enquanto reproduzia esse contato à sua própria imagem,

modificou-se radical e decisivamente.” (Sahlins, 2008, pág. 69).

Ainda para complementar a questão da transformação estrutural, a fim de

situar o uso teórico de Sahlins para com a teoria estrutural geral, em termos de

aproximação e distanciamento, cabe citar mais uma consideração do autor (Sahlins,

2008, pág. 75):

Não importa que a motivação para as respostas diferenciais de

homens e mulheres ou das pessoas do povo e chefes em relação

aos estrangeiros tenha sido, em conjunto, havaiana. O conteúdo

apreendido na experiência significou que as relações entre eles

nunca mais seriam as mesmas. Ao voltarem do navio à praia,

especialmente do comércio ao consumo doméstico – em poucas

palavras, da prática à estrutura –, os efeitos tornam-se sistêmicos.

Uma alteração nas relações entre categorias dadas afeta suas

possíveis relações com categorias. A estrutura, como conjunto de

relações entre relações, é transformada.

Depois disso, Sahlins continua esmiuçando sua descrição etnográfica. E

resumi-la por completo neste trabalho seria uma atitude descabida, uma vez que se

trata de descrição longa e sofisticada, e este trabalho apenas pretende fornecer

estímulos para a mobilização de mais questões à discussão teórico-metodológica

presentes na obra aqui resenhada. Apesar disso, talvez seja de suma importância

pontuar algumas considerações de Sahlins a partir de sua descrição etnográfica.

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Especialmente a partir do segundo capítulo da obra, Sahlins examina em

detalhes as implicações que as relações presentes na dinâmica do povo havaiano

sofreram por meio dos encontros com os europeus. Tal dinâmica, mais do que ter

sido exposta a conflitos severos entre, por exemplo, os “chefes” – aqueles que

estavam para o “povo” assim como os europeus estavam para os havaianos, ou

seja, num sentido de superioridade –, não mais estabeleciam da mesma forma suas

relações com o “povo”. Na verdade, as relações entre “chefes” e “povo” haviam

passado por profundas revisões, pois, como considerou Sahlins, a troca comercial

entre havaianos e europeus “possui sua própria sociologia”, isto é, as revisões em

termos de relação que foram travadas ao longo do tempo reforça a ideia de quão

transformadora – estruturalmente falando – foi a interação comercial que se deu, por

isso não se deve situá-la como um “acidente estrutural”, uma vez que suas

implicações fomentaram novas recombinações na dinâmica havaiana, o que

permitiu, ainda assim, uma permanência do “sistema havaiano”. Diz Sahlins:

Nesse sentido, o mundo da cultura havaiana se reproduzia como

história. A sua tendência era abarcar o advento dos europeus no

interior do sistema tal como constituído; portanto, integrar a

circunstância como estrutura e fazer do evento uma versão de si

mesmo. Mas, no evento, o projeto da reprodução cultural fracassou.

Pois novamente a pragmática teve sua própria dinâmica: relações

que frustraram tanto intenção como convenção. O complexo de

trocas que se desenvolveu entre havaianos e europeus, a estrutura

da conjuntura, submeteu os primeiros a condições não

características de conflito e contradição internos. Assim, as conexões

diferenciais dos havaianos com os europeus dotaram suas próprias

relações entre si de novos conteúdos funcionais. Isso é

transformação estrutural. Os valores adquiridos na prática retornam à

estrutura como novas relações entre categorias dessa estrutura.

(Sahlins, 2008, pág. 97 e 98).

Portanto, considerar as mudanças, alterações, revisões ou recombinações,

cada uma em sua própria particularidade – como já dito, por um sentido “acidental” –

seria reduzir toda a descrição a replicações teórico-metodológica já prontas, sem

avançar no sentido de uma maior contribuição, o que não foi o caso de Sahlins.

Acima das possíveis interpretações etapistas e puramente sincrônicas, Sahlins

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considerou ser todas elas disjuntivas inscritas num campo maior que suas partes,

sem deixar, com isso, de situá-las mais uma vez no curso de uma história dotada de

agência humana. Ainda cabe, por fim, citar um trecho da Conclusão de Metáforas

históricas, em que Sahlins diz:

De qualquer forma, a ação começa e termina na estrutura: começa

nos projetos das pessoas como seres sociais para terminar na

absorção dos efeitos num prático-inerte cultural. Entretanto, neste

ínterim as categorias podem ser funcionalmente deslocadas, os seus

respectivos valores posicionais, alterados; daí, por definição, vige

uma nova ordem estrutural. (Sahlins, 2008, pág. 133).

Com isso, tomando a direção para a finalização deste pequeno trabalho, e

porque, obviamente, a particularidade de sua natureza assim o exige, há que se

colocar algumas inquietações – que, é claro, podem ser supridas por uma leitura

mais precisa da obra-autor – surgidas após a leitura de Metáforas históricas, e,

também, por meio de conexões com algumas considerações políticas Lévi-Strauss,

a saber: quais foram os ativos históricos, por parte dos europeus, que condicionaram

o enredo em que foram travadas todas as transformações na dinâmica havaiana?

Isto é, qual é, de fato, o grau de responsabilidade em termos de transformação

estrutural que os navegantes britânicos tiveram no processo histórico? Se o enredo

foi reelaborado como foi, em termos estruturais, quais são as posições dos atores

históricos a que Sahlins descreveu?

Por fim, cabe ressaltar o que se pode tomar como contribuição a que Sahlins

proporcionou ao discutir sistematicamente o estruturalismo. Antes disso, para

estimular a percepção de sua contribuição, cabe uma contraposição sob forma de

analogia: os processos mais importantes que ocorrem no nosso metabolismo interno

estão fechados para a nossa vontade e escolha consciente. Isto é, nenhum dos

processos que ocorrem passa por deliberações, vontades ou escolhas de nós

mesmos. Eis um exemplo: conseguimos, até certo ponto, retardar ou acelerar nossa

respiração, porém, enquanto estamos dormindo, ela permanece no piloto

automático, ou seja, não está sujeita a um “Eu” – uma vontade própria – que decreta

seu funcionamento. Seria isso, então, a história? Como considerou Lévi-Strauss:

De fato, a história não está ligada ao homem nem a nenhum objeto

particular. Ela consiste, inteiramente, em seu método, cuja

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experiência prova que ela é indispensável para inventariar a

integralidade dos elementos de uma estrutura qualquer, humana ou

não-humana. Portanto, longe de a busca da inteligibilidade levar à

história como seu ponto de chegada, é a história que serve de ponto

de partida para toda busca da inteligibilidade. (Lévi-Strauss, 1997,

pág. 290 e 291).

Por que, então, a fronteira cai onde cai? Em Lévi-Strauss, as indagações levantadas

podem ser, por exemplo: O “Eu” constituído do homem seria, na verdade, apenas

uma peça de ficção? Em que sentido se dá o enredo da existência humana em um

mundo que ela mesma contribui para ruir? Questões que são, direta ou

indiretamente, pertinentes nas obras de Lévi-Strauss, podem ser, por outra ótica,

serem reformuladas a partir da leitura de Metáforas históricas. Estruturalmente

falando, ficariam, talvez, assim: O “Eu” constituído do homem seria, na verdade, um

dos elementos de sua própria transformação? Em um mundo que ela mesma

contribui para transformar, em que sentido se dá o enredo da existência humana? A

mobilização de autores que se aproximam ou se distanciam sobre a mesma

temática permite, em última instância, por meio de comparação, transitar por

diferentes análises. Enfim, este trabalho pretendeu ser, acima de tudo, estimulante

em termos de aperfeiçoamento intelectual. Seja dentro ou fora da Antropologia, a

motivação deve seguir o que, talvez, com a leitura de Metáforas históricas serviu

para mais acrescentar na trajetória intelectual de quem quer seja dentro das ciências

sociais, a saber: por meio da interdisciplinaridade, acrescentar novas figuras e

elementos à construção do debate. Abrindo-se, assim, para uma percepção real de

diminuição de fronteira, ou ainda, o indício de certo acúmulo interpretativo

interminável dentro de uma perspectiva de aperfeiçoamento teórico-metodológico.