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REPRESENTAÇÕES DE TECNOLOGIA E SOCIEDADE
NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DA
SÉRIE TRANSMETROPOLITAN
FABIO AUGUSTO VENÂNCIO DOS ANJOS 1
MARILDA LOPES PINHEIRO QUELUZ 2
Resumo: Transmetropolitan é uma série em quadrinhos, publicada pela DC Comics, entre 1997
e 2002. O protagonista é o jornalista “gonzo” Spider Jerusalém, que atua questionando e lutando
contra a corrupção e o abuso de poder em um futuro distópico. Entre os temas abordados estão:
liberdade de expressão, criogenia, nanotecnologia, mutações físicas e vida alienígena. Colocar
um jornalista como personagem principal parece ser uma estratégia de reflexão sobre o papel
das mídias e os processos de recepção e interação das pessoas com os artefatos científicos e
tecnológicos e as diversas interpretações veiculadas na imprensa. O mundo imaginado e as
experiências vividas em Transmetropolitan permitem problematizar a inserção maciça da
tecnologia como único caminho para o desenvolvimento e o bem estar humano. Através de
críticas aos modos de vida provocados pelos usos da ciência e da tecnologia em grandes centros
urbanos, constrói-se, de forma irônica, um futuro desumano, no qual a tecnologia influencia e
altera profundamente as relações sociais. Este trabalho objetiva estudar as disputas de
representações da ciência e da tecnologia presentes na série, considerando que elas não são
apenas um reflexo, mas também constituem realidades. A fundamentação teórica baseia-se nos
estudos de Andrew Feenberg, Thomas P. Hughes e Michel Callon.
Palavras-chave: Transmetropolitan; história em quadrinhos; ficção científica; ciência;
tecnologia; sociedade.
INTRODUÇÃO
A história em quadrinhos (HQ) Transmetropolitan (1997-2002) apresenta um futuro em
que a ciência e a tecnologia são as bases de uma sociedade fria e desumana, para a qual um jornalista
retorna após um auto imposto exílio e decide combater a conjuntura instaurada. O objetivo deste
trabalho é o de investigar as relações entre ciência e tecnologia representadas nesta ficção
científica, considerando os usos dos artefatos, a agência das pessoas e os valores sociais
constituídos entre as imagens e os diálogos.
O que se observa na leitura desta série em quadrinhos é um retrato irônico, cínico e
brutal da sociedade moderna, com muitas referências históricas e culturais do final do século
XX e início do século XXI, abordando questões científicas e tecnológicas que até hoje estão
sendo problematizadas.
1UTFPR, PPGTE, Brasil. E-mail: [email protected]. 2UTFPR, PPGTE, Brasil. E-mail: [email protected].
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A análise desta obra foi feita a partir das teorias CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade),
especialmente os estudos de Andrew Feenberg, Thomas P. Hughes e Michel Callon.
REFERENCIAL TEÓRICO
Os estudos de Andrew Feenberg, conforme apresentados em seu artigo “Racionalização
Subversiva: Tecnologia, Poder e Democracia” (1995), propõem uma quebra de paradigmas a
partir de avanços tecnológicos que se oponham à tecnologia dominante, levando em consideração
os contextos humanos e naturais. Justamente por teorizar uma mudança que perturbaria a ordem
atual, é que ele a chama de subversiva. Embora sua intenção não seja renegar os avanços
tecnológicos já conquistados, sua proposta é de racionalizar a sociedade em busca da democracia,
de modos alternativos de organização sociotécnica e de participação coletiva.
Segundo o autor, a tecnologia é uma das maiores fontes de poder em nossa sociedade, o
que pode ser percebido até pelas tomadas de decisão, em que os “senhores dos sistemas técnicos”
têm mais controle e poder de escolha do que todas as instituições governamentais. A democracia
deveria ser estendida do domínio político para o mundo do trabalho e as pessoas deveriam ter voz
ativa no processo das decisões industriais, para que construíssem uma verdadeira cidadania.
O senso comum considera a tecnologia moderna incompatível com a democracia no
mercado de trabalho; por outro lado, alguns teóricos afirmam que a tecnologia não é a
responsável pela concentração de poder industrial. Ela contribui para uma administração
autoritária, mas poderia ser operacionalizada democraticamente, se houvesse interesse. Na
opinião de Feenberg, uma mudança como essa requer não apenas alterações técnicas radicais,
mas também mudanças políticas. Ele considera esta posição bastante controversa pois, a seu
ver, a democracia vai se perder se não for estendida para dentro dos domínios tecnicamente
mediados e se limitar ao poder do estado.
Com o intuito de respaldar a possibilidade de uma busca por outro modo de racionalizar
a democracia, Feenberg se propõe a desafiar as premissas da teoria determinista, sendo elas:
o progresso técnico parece ser uma evolução natural de avanços;
o determinismo tecnológico afirma que as instituições sociais devem se adaptar às
alterações tecnológicas e suas necessidades.
A teoria construtivista defende que geralmente há diversas soluções possíveis para um
problema, e os atores sociais fazem a escolha final entre um grupo de opções viáveis; além
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disso, ela defende que a definição do problema muda frequentemente durante o curso de sua
solução. O determinismo, com sua teoria de que o fim da história é inevitável desde o seu início,
confunde a compreensão do passado e sufoca a imaginação de um futuro diferente.
Para entender o significado da tecnologia, não se pode excluir o fator social, como prega
o determinismo, visto que a sociedade molda o seu desenvolvimento. O uso é que vai definir o
objeto e garantir seu futuro, aplicações e melhorias. Assim, para se entender o desenvolvimento
tecnológico, é necessário o estudo da situação sócio-política dos grupos envolvidos.
Mudanças geralmente causam conflitos, especialmente se afetarem a tecnologia. Para
evitar que isso aconteça, o avanço técnico tem como objetivo criar desenhos tecnológicos que
sirvam a uma multiplicidade de valores e grupos sociais, sem sacrificar a eficiência. Durante o
processo, os padrões são controversos, mas uma vez definido o código técnico, ninguém olha
para trás ou retoma um código antigo, pois o novo é “melhor”. Este código deve incluir fatores
sociais, ambientais e econômicos, e ele é moldado frente a crises que a tecnologia enfrenta.
(FEENBERG, 1995)
A teoria do autor sugere a possibilidade de alterar a hegemonia atual, na qual o desenho
técnico é de forma não usual, descontextualizado e destrutivo. Esta hegemonia incorporou-se
na tecnologia de tal modo, que hoje os meios técnicos formam uma crescente ameaça ao nosso
meio ambiente. Ele cita Heidegger, dizendo que este estava certo ao afirmar que os meios não
são neutros e que seu conteúdo afeta a sociedade. Mas isto é uma questão de desenho e inserção
social, os conteúdos não são essencialmente destrutivos. (FEENBERG, 1995)
Thomas P. Hughes, com seu texto La evolución de los grandes sistemas tecnológicos
(2008), afirma que os sistemas tecnológicos contêm componentes destinados a resolver
problemas complexos e são construídos pela sociedade, ao mesmo tempo em que a moldam.
Incluem artefatos técnicos, organizações, componentes científicos, leis e até recursos naturais.
Todos estes elementos interagem, contribuindo direta ou indiretamente em busca de uma meta
comum. Se um elemento é alterado, os outros devem se adaptar de acordo à nova realidade.
Os seres humanos também são componentes de um sistema tecnológico, mas não
artefatos dele, pois não foram criados para ele e possuem liberdade.
A partir do século XX, o trabalho foi organizado segundo o Taylorismo, o que se refletiu
nos sistemas tecnológicos. Estes são preferencialmente organizados em hierarquias, contendo
subsistemas que podem ser considerados sistemas em si mesmos, para fins de análises. Um
sistema possui, ainda, insumos e produtos, através dos quais, é possível acompanhar e controlar
o seu rendimento.
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Com sua crescente complexidade, a quantidade de componentes e de problemas
aumentou, e os computadores oferecem uma resposta apenas parcial. As fases da evolução de
um sistema são: invenção – desenvolvimento – inovação – transferência – crescimento –
competência – consolidação. Mas isso não significa que o processo é linear e sequencial, pode
haver retrocesso ou sobreposições pelo caminho. (HUGHES, 2008)
Esta teoria de Hughes acerca dos sistemas tecnológicos se correlaciona com o que
Feenberg propõe, visto que ambos rejeitam o determinismo tecnológico, incluindo fatores
sociais como elementos decisivos na evolução e consolidação de tecnologias. Os dois autores
afirmam que a tecnologia e as inovações são adaptadas aos seus usuários e não o contrário,
como prega o determinismo.
Michel Callon, com seu artigo Society in the making: the study of technology as a tool
for sociological analysis (1987), propõe o uso do estudo da tecnologia como ferramenta de
análise sociológica, ao invés de usar as ciências sociais para examinar o desenvolvimento da
tecnologia. Ele argumenta que, para criar e desenvolver uma tecnologia, os profissionais
envolvidos constroem hipóteses que os inserem no campo das análises sociais, por isso os
chama de “engenheiros-sociólogos”.
Seu questionamento principal trata sobre a distinção de fases do processo de inovação,
no qual se crê que o procedimento se inicia com a resolução de problemas técnicos apenas,
deixando os econômicos, sociais, políticos e culturais para estágios futuros. Todos estes
aspectos estão interligados, desde o início, como vem sendo provado por vários estudos.
Callon propõe o uso do que chama “rede de atores”, que é formada pela união de vários
componentes, sejam humanos ou não, o que já vai contra as teorias sociológicas usuais. Os
engenheiros, ao desenvolver um novo projeto, por exemplo, levam em consideração não
apenas as questões técnicas, os aspectos não humanos, como fontes de energia, matérias-
primas, entre outros; eles se preocupam também com questões políticas e movimentos sociais,
ou seja, o fator humano.
A rede atua com mudanças, não é estática, pois a qualquer momento um elemento pode
ser alterado e ela deve ser adaptada para se manter em funcionamento. A modificação de um
elemento influi em todos os outros e, definir qual deve ser alterado em determinado momento,
é o resultado de um teste da resistência de cada um. (CALLON, 1987)
Percebe-se que a proposta da rede de atores foi uma das influências de Feenberg para o
desenvolvimento de suas teorias, pois ele também trata da função dos atores sociais e do
dinamismo presente em todo o processo de desenvolvimento de inovações tecnológicas. Os três
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autores aqui inseridos apresentam hipóteses que se interligam e dialogam, contribuindo para
uma visão mais ampla das questões de ciência e tecnologia e de como elas se relacionam com
a sociedade e as disputas de poder. Estas questões são exacerbadas na HQ objeto deste estudo,
visto que a própria noção filosófica de futuro “distópico” sugere um mundo no qual as
condições atuais são elevadas a extremos, principalmente no que diz respeito à opressão,
corrupção e ao totalitarismo.
TRANSMETROPOLITAN
A série em quadrinhos Transmetropolitan foi publicada pela editora norte-americana
DC Comics entre 1997 e 2002, em um total de 60 edições mensais e mais algumas especiais.
Inicialmente, foi lançada sob o selo Helix, voltado à histórias de ficção científica, mas após um
ano o selo foi abandonado e a série passou para o selo Vertigo, melhor estabelecido no mercado
e reconhecido pela publicação de quadrinhos adultos. A série foi criada e produzida pelo
escritor britânico Warren Ellis e o desenhista norte-americano Darick Robertson, sendo que
todas as histórias foram escritas por Ellis e, com exceção de dois especiais – Transmetropolitan:
I hate it here (2000) e Transmetropolitan: Filth of the City (2001), que foram ilustrados por
vários artistas – todas as outras edições foram desenhadas por Robertson.
O protagonista da história é o jornalista Spider Jerusalém e sua trajetória na série se
inicia conforme a sinopse oficial disponível no hotsite Vertigo, da editora Panini, atual
responsável pela publicação da série no Brasil:
Chineses, mexicanos, coreanos, transientes, pansexuais, androides, gatos de 3 olhos,
cachorros falantes, cristãos, vikings, humanos transformados em nuvens holográficas
ou indigentes do século XX ressuscitados pela tecnologia do XXIII. Essa é A Cidade.
Isso é tudo do que o jornalista gonzo Spider Jerusalém tentou fugir, mas é o único lugar
onde sabe escrever. Ele está devendo dois livros, impacientemente cobrados por seu
editor. É hora de voltar e encarar esse mundo futurista.
O conto pós-cyberpunk de Warren Ellis e Darick Robertson, um dos marcos na história
da Vertigo, revela um jornalista em conflito constante entre A Verdade e A Cidade – e
as duas estão sempre tentando matá-lo. Mas Spider Jerusalém, à sua própria maneira
excêntrica, insiste em viver mais um dia para revelar o que nos aguarda no futuro.
Spider Jerusalém é um jornalista que não mede esforços em sua busca, como bem
pontua Lielson Zeni: “(...) a verdadeira obsessão desse personagem é encontrar a verdade e
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entregá-la ao público.” (2013). Neste quesito, vale destacar a maneira como Molly Crabapple
define a série em uma entrevista com Warren Ellis, em tradução livre: “Uma década antes da
expansão possibilitada pela Internet ao jornalismo independente, Transmet corrompeu uma
geração de jovens repórteres, dando-lhes a noção de que o jornalismo era a bala que poderia
"explodir uma patela para fora do mundo.’” (CRABAPPLE, 2013)
O modo agressivo com que Crabapple se refere ao jornalismo retratado na HQ, se dá pelo
próprio comportamento de Spider: autodestrutivo, violento e radical. No universo em que habita,
ele se vê à mercê de estranhas tecnologias, seres alienígenas e a corrupção pelo poder, que não é
um elemento de ficção e muito menos científica como os anteriores. Há momentos em que o
jornalista chega a ser impossibilitado de publicar a verdade sobre acontecimentos, pois estes têm
relação com a atuação incompetente do presidente eleito, que manipula tecnologias e a livre
circulação de informação. Em consequência de situações como esta, Spider praticamente declara
guerra ao presidente, apelidado de “O Sorridente” devido a seu sempre exposto sorriso falso, e se
dedica a derrubar seu antagonista utilizando as ferramentas que têm a mão. (ZENI, 2014)
Muitos dos acontecimentos noticiados por Jerusalém são causados pelo uso negligente
da ciência e de tecnologias, que no século XXIII estão à disposição apenas daqueles que podem
pagar por elas. A postura do jornalista cria um contraponto com os discursos hegemônicos e os
acontecimentos. Suas reflexões são ásperas e pungentes, pois ele odeia aquele mundo
tecnologicamente avançado e completamente dominado pelos poderes estabelecidos. Talvez as
únicas coisas que mais o irritem sejam a desatenção e o desinteresse de uma parcela da
população em relação à manipulação de suas vidas por parte das minorias que detêm o poder.
O protagonista busca, em vários momentos durante a série, abrir os olhos destas pessoas para
que elas também se manifestem e lutem por seus direitos e deveres dentro da sociedade, pois
uma pessoa sozinha talvez não tenha condições de mudar o status quo vigente, mas a força que
resulta da união de várias delas é capaz alterar toda uma conjuntura social. Spider não é o herói
fundamental que mudará tudo sozinho, mas com certeza, nestas narrativas, ele está dando o
primeiro passo para que isso aconteça, incitando as pessoas para que se organizem e enfrentem
a dominação e manipulação.
Durante a leitura da HQ foram destacadas situações que revelam conceitos de ciência e
tecnologia presentes para conceber o universo futurista opressivo em que ela é desenvolvida. A
representação visual do ambiente futurista e invadido por tecnologias é bastante detalhado de
uma forma muito negativa, sempre ressaltando os efeitos nocivos e a pobreza da população,
que se faz presente em toda a série, uma vez que o personagem principal, no papel de um
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jornalista, está regularmente perambulando pelas ruas da Cidade. Nas páginas desta HQ, é
comum o leitor se deparar com pessoas com membros mecânicos enxertados em seus corpos;
seres alienígenas e híbridos, principalmente nas regiões mais pobres (constituindo “minorias”
marginalizadas); a extrema sujeira nas ruas; veículos voadores, etc. (Ver figura 1)
Figura 1 – Capas e páginas originais da revista Transmetropolitan, exibindo o caos urbano da Cidade;
seres alienígenas e híbridos; a tecnologia presente, incluindo enxertos em membros e a possibilidade de
adquirir traços animais artificiais por períodos de tempo; a pobreza e sujeira das ruas e uma vista
do horizonte da cidade, com seus veículos voadores. Fonte: coleção particular do autor.
Além disso, há citações ao uso de nanotecnologia e criogenia, que são tecnologias já
exploradas no mundo real e que vêm sendo desenvolvidas desde meados do século XX, mas,
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com a diferença de que na série em quadrinhos, estas tecnologias são facilmente aplicadas ao
seres humanos – um reflexo do assim chamado progresso científico e tecnológico alcançado
em algumas centenas de anos (lembrando que a narrativa se passa no século XXIII).
O determinismo tecnológico se faz onipresente em toda a narrativa, a inexistência de
uma democracia é clara e o domínio de poucos permeia as páginas e as lutas de Spider.
Muitos dos aspectos teorizados por Feenberg, Hughes e Callon são observados na
narrativa de Transmetropolitan. Inicialmente, pode-se afirmar que o retorno de Spider
Jerusalém para a Cidade, por si só, já é uma alteração de elemento na rede de atores no universo
desta história em quadrinhos, influenciando todos os outros com seu jornalismo honesto e
brutal. Sua atuação propõe uma alternativa no modo de organizar e de se apropriar das
tecnologias da comunicação, na maneira de divulgar e utilizar os conhecimentos produzidos
pela ciência. Sugere-se a ideia de que o conhecimento deve ser produzido e compartilhado
coletivamente. Além disso, a presença do protagonista é, também, uma perturbação da ordem
estabelecida, sendo considerado subversivo por aqueles que detêm o poder, como “O
Sorridente”, por exemplo, e sendo combatido por isso.
Spider se vale das tecnologias à disposição para se comunicar, informar, denunciar,
lutar, sobreviver e até mesmo se entorpecer. Não há um desejo de destruir aquela sociedade,
mas uma tentativa de convencer as pessoas de que há outros caminhos possíveis de
desenvolvimento e de entretenimento. Para democratizar a verdade, é preciso abrir os olhos das
pessoas que são manipuladas e alterar o status quo vigente, acabando com o governo
totalitarista e estendendo a cidadania até mesmo para os mais excluídos, que vivem à margem
de uma coletividade que os isola e ignora.
Nesta HQ a maioria dos seres humanos são componentes de um sistema tecnológico e,
também, artefatos dele, pois apesar de não terem sido criados para ele, não possuem liberdade
nem consciência de seu poder de luta e negociação. Cansados e desiludidos, os seres buscam
acesso às distrações que os mantêm absortos da realidade desumana em que vivem.
Em diversos momentos, são os artefatos tecnológicos e/ou os avanços científicos que
desencadeiam situações nas quais os piores aspectos dos seres humanos são expostos, como em
uma sequência em que um menino é assassinado cruelmente por um grupo preconceituoso
extremista. O grupo em questão se vale de um dispositivo semelhante a um escâner portátil,
que lhes permite identificar pessoas com mutações genéticas. O simples fato de possuir uma
diferença é o suficiente para inflamar os ânimos e o conflito acontece, mesmo que a mutação
encontrada não fosse de escolha da vítima, mas uma herança genética herdada de sua família.
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Em um mundo em que vivem seres alienígenas, híbridos e alterados geneticamente, a xenofobia
pode ser apenas uma das consequências nocivas de grupos que disseminam a intolerância. Ao
mesmo tempo em que a ciência e a tecnologia evoluíram a ponto de permitir a já citada
transformação de um ser humano em uma nuvem holográfica, parece que a natureza humana
não conseguiu florescer e acompanhar o tal progresso científico. (Ver figura 2)
Figura 2 – O grupo extremista e seu artefato tecnológico capaz de identificar mutações genéticas em seres
humanos; e o resultado excessivamente brutal das ações deste grupo. Fonte: coleção particular do autor.
Aqui há uma característica muito comum nas distopias, de se utilizar um mundo distante
no tempo como forma de criticar a sociedade contemporânea. Trata-se de uma visão pessimista
e um tanto nostálgica, que imagina o futuro como uma evolução linear das máquinas e das
invenções e a centralização do poder nas mãos dos grandes empresários e industriais como
única ordem possível. No fundo, há uma exacerbação dos princípios neoliberais e um conceito
de democracia pautado no domínio norte americano. Os humanos são colocados como centro
das decisões, em detrimento do meio ambiente e dos demais seres que habitam o mesmo espaço.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Transmetropolitan, apesar de ter sido publicada originalmente há mais de uma década,
se faz muito atual pelos temas abordados, refletindo situações que ainda ocorrem nos dias de
hoje, como muito bem evidencia Lielson Zeni: “Qualquer leitor que acompanhe minimamente
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as notícias de 2014 sobre o que acontece no Brasil, na Ucrânia e na Venezuela vai encontrar
um eco disso tudo nesta HQ escrita 14 anos antes. Isso não é profecia, é trabalhar com situações
de base e argumentos de discussão.” (2014).
Vale mencionar, por fim, uma característica muito enraizada na cultura dos quadrinhos
norte-americanos (os chamados comics) – especialmente nos de super-heróis – que é a postura
individualista que os protagonistas assumem, do salvador, o escolhido, aquele que vai liderar o
povo em busca de um “bem maior”. Na prática, esta peculiaridade pode ser encontrada em outras
manifestações artísticas populares, como o cinema e a literatura, sendo o filme Matrix (produzido,
escrito e dirigido pelas irmãs Wachowski, 1999) ou o romance O Código Da Vinci (escrito por
Dan Brown, 2003), alguns exemplos. Percebe-se que este é um valor inserido nos costumes norte-
americanos, mais especificamente nos Estados Unidos, e que manifesta uma propaganda do
pensamento corrente naquele país, que desta forma se coloca também como um herói mundial
com seu “modo de vida americano” exportado para onde for possível, trazendo consigo o
progresso e a prosperidade baseados em ciência e tecnologias desenvolvidas no país. Esse
comportamento acaba por apresentar os protagonistas destas histórias, em sua maioria, como se
eles estivessem acima dos interesses e das relações de poder que ocorrem na sociedade.
No caso de Transmetropolitan, além de Spider personificar este protagonista herói
autocentrado, a série ainda se apropria de questões referentes à informação, os jogos de interesses
das mídias, as manipulações das mensagens, a censura e o papel do jornalismo, que aqui assume
uma posição de arauto da verdade (com Spider Jerusalém), ao mesmo tempo em que critica os
meios de comunicação concorrentes pelas manipulações em que estão envolvidos.
Esta série exibe com bastante ironia um futuro desumano, no qual as pessoas interagem
com uma vasta inserção tecnológica ao mesmo tempo integradora e excludente, pois integra
parte da população em ambientes tecnologicamente mediados, facilitando a comunicação e
compartilhamentos; mas descarta todos aqueles que não têm condições de pagar pelos avanços
científicos, acentuando as desigualdades e agravando a situação dos menos favorecidos.
O fato de apresentar a história pelos olhos de um jornalista resulta em uma estratégia
bastante interessante de reflexão, debatendo o papel das mídias e os processos de recepção e
interação das pessoas com os artefatos científicos e tecnológicos e as diversas interpretações
veiculadas pela imprensa. O futuro distópico representado na HQ Transmetropolitan e as
experiências vividas tanto pelo protagonista quanto pelas pessoas à sua volta, permitem
questionar abertamente a inserção da tecnologia como um caminho incontestável em busca do
desenvolvimento e do bem estar humano, conforme prega o determinismo tecnológico. A série
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oferece um retrato possível de como a tecnologia influencia e altera profundamente as relações
sociais, mas não de forma a criar um ambiente equilibrado e justo, muito pelo contrário. O que
se vê é uma sociedade ainda mais inclemente e desigual, que necessita de uma mobilização das
pessoas para que se transforme.
REFERÊNCIAS
CALLON, Michel. Society in the making: the study of technology as a tool for sociological
analysis. In: Wiebe E. Bijker; Thomas P. Hugues; Trevor J. Pinch. (eds.). The social
construction of technological systems: new directions in the sociology and history of
technology. Cambridge: The MIT Press, 1987, pp.83-103.
CRABAPPLE, Molly. “One Murder Is Statistically Utterly Unimportant”: A Conversation
with Warren Ellis. The Paris Review. 2013. Disponível em: <http://www.theparisreview.org/
blog/2013/08/15/one-murder-is-statistically-utterly-unimportant-a-conversation-with-warren-
ellis/ >. Acesso em: 15 mai. 2016.
FEENBERG, Andrew (1995). Racionalização Subversiva: Tecnologia, Poder e Democracia.
In: NEDER, Ricardo T. (org.) A teoria crítica de Andrew Feenberg: racionalização
democrática, poder e tecnologia/ Ricardo T. Neder (org.). –- Brasília: Observatório do
Movimento pela Tecnologia Social na América Latina / CDS / UnB / Capes, 2010, pp. 67-95.
HUGHES, Thomas. La evolución de los grandes sistemas tecnológicos In: Actos, actores y
artefactos: sociologia de la tecnologia. Bernal: Universidade Nacional de Quimes, 2008, pp.
101-146.
Vertigo. Hotsite Panini. Transmetropolitan. Disponível em: <http://hotsitepanini.com.br/
vertigo/series/transmetropolitan/>. Acesso em: 12 mai. 2016.
ZENI, Lielson. Transmetropolitan – Volume 3 – O ano do bastardo. UniversoHQ. 2013.
Disponível em: <http://www.universohq.com/reviews/transmetropolitan-o-ano-do-bastardo/>.
Acesso em: 12 mai. 2016.