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  • DESPORTO E EDUCAO * Ren Maheu **

    Faltando dois dias para a abertura dos Vigsimos Jogos Olmpicos e neste momento em que o mundo se prepara para viver durante duas se-manas em unio com as lutas pacficas de que Munique ir ser o mara-vilhoso teatro, sou profundamente sensvel honra que me coube de tomar a palavra neste ilustre local da Academia das Cincias da Baviera e no mbito do Congresso Cientfico, que o comit organizador dos jo-gos teve a excelente idia de convocar e de preparar to bem.

    Sinto esta honra principalmente como uma homenagem prestada or-ganizao que sirvo, a UNESCO, que teve sempre a conscincia do valor humano do desporto. As generosas palavras que acabamos de ouvir, pro-feridas pelas eminentes personalidades alems que nos receberam, con-firmam este sentimento. Asseguro-vos, Sr. Ministro, Sr. Presidente, que essas palavras constituem um precioso incentivo para a continuao dos nossos esforos a favor de uma integrao cada vez maior do desporto na educao e na cultura do homem moderno, para o desenvolvimento harmonioso da pessoa e para a compreenso mtua dos povos.

    Para essa grande obra, , na minha opinio, especialmente adequada a cooperao duma organizao intergovermental, como a UNESCO, com as organizaes internacionais no governamentais, como o Comit Olmpico Internacional, de que tenho o prazer de cumprimentar o novo Vice-Presidente, e o Conselho Internacional para a Educao Fsica e

    Transcrito da Revista Brasileira de Educao Fsica. Ano 5, n. 16, 1973.

    "* Diretor-Geral da UNESCO.

    Desporto, do qual sado deferentemente o distinto Presidente, o mui ilustre Philip Noel-Baker, medalha de prata olmpica, alto funcionrio internacional da sociedade das naes, homem de Estado e prmio No-bel da Paz. sob o signo dessa cooperao que hoje desejo falar-vos sobre as relaes entre desporto e educao.

    As virtudes educativas do desporto no precisam de ser demonstradas. E, diante dum auditrio to esclarecido, no minha inteno determi-n-las, mas sim, depois de as evocar brevemente, interrogar-me sobre as razes que fazem com que elas no sejam exploradas to sistemtica e completamente como poderiam e deveriam ser e procurar quais as principais modificaes, tanto na educao como no desporto, que conveniente introduzir nas concepes e prticas atuais para dar ao des-porto o lugar que lhe compete na formao completa do homem.

    Acima de tudo, o desporto um fator de equilbrio no desenvolvimento geral da pessoa. Equilbrio entre o esprito e o corpo, entre a efetivi-dade e a energia, entre o indivduo e o grupo. Numa civilizao essen-cialmente intelectualista e tecnolgica que concentra a excelncia no crebro e domina pela mquina, num tempo de xtremismos em que abundam as distores de toda espcie, esse fator de equilbrio, de ple-nitude e de harmonia particularmente salutar.

    Por outro lado, o desporto um jogo, isto , uma atividade gratuita, cuja razo de ser e recompensa reside na prpria realizao e que no comporta outras regras seno aquelas que ele prprio estipula livre-mente. Neste aspecto tambm um precioso corretivo para o utilitaris-mo estiolador da nossa poca. Com efeito, para alm das invenes e

    Em Aberto, Braslia, ano 1. n. 5, Abr i l , 1982

  • O que afirmamos particularmente verdadeiro em relao ao espetculo desportivo. verdade que o desporto, no seu aspecto de competio, aspecto que est intimamente de acordo com o seu carter essencial de prova, de medida e de esforo de superao, constitui uma admirvel matria de espetculos belos e emocionantes. Com todo o direito, faz parte da cultura dramtica moderna. Mas, por outro lado, no se poder negar que o desenvolvimento do espetculo desportivo desviou a ateno da realidade moral ntima do desporto a favor da sua capacidade de di-vertimento. Divertimento o que o desporto se tornou para as multi-des reduzidas ao papel de espectadores, a quem o rdio e a televiso dispensam mesmo de uma ida ao estdio. Ora, o divertimento o que h de mais afastado da verdadeira vida. Tambm vemos uma parte da juventude denunciar o desporto como um fator de alienao: a advertncia merece que se tome cautela.

    So estas as principais caractersticas do sucesso do desporto, embora o desviem da sua vocao educativa. Mas, com toda a imparcialidade, preciso reconhecer que, por seu lado, os sistemas educativos no pem nenhum empenho em integrar o desporto nas suas estruturas e ativida-des.

    Em primeiro lugar, como no tempo de Coubertin, o desporto continua a chocar-se com o intelectualismo e com o utilitarismo que, mais do que nunca e em todo o mundo, dominam a educao estabelecida. Digo bem mais do que nunca pois se trata de uma conseqncia da im-portncia crescente da cincia e da tecnologia na nossa civilizao. E digo no mundo inteiro porque a procura do desenvolvimento, que se tornou para as naes uma questo de vida ou morte, tende para a uni-versalizao desta civilizao cientfica e tcnica.

    A juventude abafa sob o domnio duma formao demasiado estreita em que a prioridade concedida sistematicamente ao exerccio da inte-ligncia e, nesta, s suas capacidades e aplicaes mais utilitrias deixa sem cultura as potencialidades sensibilidade fsica, da intuio afeti-va, do sentimento esttico, da expresso ldica ou de criao artstica, de que toda a gente mais ou menos dotada, as nicas que permitem apreciar o sabor da vida. Nos programas e nos horrios da maior parte dos sistemas escolares, a educao fsica e o desporto continuam a ser sacrificados s disciplinas da inteligncia, tal como sucede a tantas ou-

    tras atividades educativas essenciais, como a educao esttica, a educa-o sexual, a educao cvica e a preparao para a vida social. assim que desde a escola se forma o homem unidimensional. E a sociedade construda por ele sua imagem no faz mais do que engrandecer e ins-titucionalizar a desumanidade infeliz e cruel.

    No que diz respeito aos educadores, enquanto que o ideal seria, como acontece em algumas grammar schools inglesas, que este e aquele pro-fessor de disciplinas intelectuais tossem tambem professores de jogos ao ar livre e iniciadores dum determinado desporto, praticado pela sua con-tribuio para a formao integral do aluno, pelo contrrio, vemos os professores de educao fsica constiturem no conjunto do corpo do-cente uma categoria parte, dotada de qualificaes limitadas e de um estatuto inferior, desempenhando um papel apenas marginal tanto na educao da maior parte dos jovens como na vida do estabelecimento.

    certo que, pelo contrrio, muitas universidades se especializam na excelncia desportiva e procuram de preferncia assegurar o concurso dos melhores treinadores, pela outorga de vantagens especiais, e a pre-sena, entre os estudantes, dos atletas mais dotados. Mas essa inverso da hierarquia dos valores e das disciplinas, que faz dessas universidades viveiros de desportistas profissionais mais do que centros de estudo, no modifica nada a segregao fundamental do plano intelectual e fsico que propriamente o mal que importa remediar.

    Finalmente, podiam fazer-se as mesmas observaes a propsito das ins-talaes desportivas nos estabelecimentos escolares e universitrios. Em-bora se tenham realizado progressos considerveis em todos os pases, custa, deve dizer-se, de grandes sacrifcios do Estado ou de coletivi-dades privadas, no que se refere s dotaes financeiras de que se bene-ficia esse equipamento, no entanto, este continua a ser raramente inte-viado na estrutura e na vida do conjunto da comunidade educativa, como nos modelos excepcionais de Eton e de Rugby, de Oxford e de Camhridn. Ora, necessrio que o campo de jogos, o ginsio, a sala de basquetebol ou de esgrima, a piscina e a pista estejam em relao de simbiose com a sala de aula e de estudos, o laboratrio e a biblioteca, como o teatro-cinema e a sala de clube, de modo a poder passar-se fa-cilmente de um a outro destes universos, destas diversas facetas de cada indivduo, cuja sntese compe a pessoa humana. E acabemos com o

    Em Aberto, Braslia, ano 1, n. 5, Abr i l , 1982

  • hipcrita libi do ptio de recreio, esse claustro sem orao, priso da inocncia, onde se quebra tanto lan vital ou se despende inutilmente.

    Perante essa situao, de que, evidentemente, forcei a descrio para simplificar, impe-se uma reao no sentido da abertura recproca e da interpenetrao dos sistemas educativo e desportivo. Creio que, por parte da educao, as circunstncias se apresentam favorveis neste aspecto. Estou menos certo que acontea o mesmo em relao ao desporto. Mas, de qualquer modo, certo que nada se far se homens responsveis, que sejam tambm homens de viso, capazes de inspirao imaginativa e de conquistar a simpatia do pblico, especialmente das geraes no-vas, no tomarem, de um e doutro lado, disposies resolutamente inovadoras. pensando nessa eventualidade, para a qual fao votos e para a qual estou pronto, por minha parte, a comprometer-me com a energia e com a audincia de que possa dispor, que quereria apresentar-vos algumas observaes e reflexes que tenho no corao.

    Disse que, pelo lado da educao, o momento era favorvel. A primeira razo que em quase todos os pases predomina o sentimento, tanto por parte da opinio pblica e dos polticos como dos tcnicos e dos especialistas, para no dizer dos estudantes, que se impem revises e novas orientaes nos sistemas educativos atuais. Eu parti lho esse senti-mento. E a expresso "crise de educao", ainda que se use a torto e a direito, no me mete medo. Creio que est em gestao um novo mode-lo humano e penso que uma mutao necessria para pr a humanida-de em situao de resolver de maneira adequada, pelo menos por algum tempo, os terrveis problemas postos pelos desequilbrios, pelas injus-tias e pela acelerao incontrolada do seu prprio progresso. Isso exi-gir, seguramente, muitos esforos e tempo, visto que os problemas se pem agora escala do planeta e, dada a nova solidariedade que liga os diversos focos de civilizao no mundo, exigem solues simultanea-mente pluralistas e coordenadas. Sem dvida que ser necessrio o esforo de vrias geraes para franquear a barreira, tal como aconteceu no Ocidente, quando se passou do modelo antiqo ao modelo cristo ou ainda do homem gtico ao homem clssico. Mas parece-me que estamos desde j envolvidos nesse processo e, se, pela nossa parte, no estamos destinados a ver o seu termo, podemos, no entanto, fazer muito para fa-cilitar aos nossos sucessores o caminho do xito.

    Neste aspecto, est a delimitar-se certo objetivo e certo contr ibuto. 0

    objetivo a realizao do homem na sua multidimensionalidade. O contr ibuto a educao permanente. No altura de nos alargarmos sobre estas noes. Limitar-me-ei a dizer que inspiram desde agora o conjunto da ao da UNESCO, em matria de educao. Quero somente assinalar em que que elas oferecem novas possibilidades de integrar o desporto na educao. A procura de um modelo educativo mult idi-mensional que se no deve confundir com a multiplicidade, simul-tnea ou sucessiva, de opes seletivas que se excluem mutuamente, nem com a acumulao de mltiplas disciplinas levada at ao cansao a retomada moderna do movimento humanista que levou a educa-o aos seus maiores xitos: os que deram ao homem os meios de auto-domnio e de realizao harmoniosa. Nesta perpsectiva, a educao con-siste menos na aquisio de conhecimentos e de tcnicas, visando a uma particular eficcia intelectual ou fsica, do que no desenvolvimen-to das atitudes e das aptides polivalentes que permitam uma realiza-o autntica da pessoa. Trata-se essencialmente de "aprender a ser", se-gundo a bela expresso que a Comisso Internacional da UNESCO sobre o desenvolvimento da educao, presidida por Edgar Faure, deu como t tu lo ao seu relatrio.

    Um tal conceito de educao no poder, evidentemente, acomodar-se com a orientao estritamente intelectualista e uti l i tria que caracteri-za ainda a maior parte dos sistemas educativos, que eu disse constituir um dos principais obstculos penetrao do desporto no meio educati-vo. Deve levar, num prazo mais ou menos breve, a uma profunda trans-formao na economia dos programas escolares assim como ao desen-volvimento progressivo do aluno e do estudante. Exige tambm um novo t ipo de relao, no seio do processo educativo, entre o educador e o educando, os quais devem ser considerados ambos, apesar da diferen-a de funes, como agentes de uma mesma procura de si e de outrem, para um enriquecimento recproco. E, entretanto, exige um novo t ipo de educador, mais prximo do iniciador do que do instrutor.

    impensvel que nesta p r o f u d a refundio da educao, a educao fsica e o desporto no encontrem o seu verdadeiro lugar. Constituem elementos demasiado importantes do equilbrio e da plenitude da pes-soa e oferecem nova pedagogia muitas possibilidades de animao ativa para serem negligenciados. necessrio ainda, certo, que aqueles que tm a seu cargo essa formao tomem conscincia do movimento de renovao educativa que se propaga atravs do mundo e se elevem

  • ao nvel das circunstncias. Chegou o momento de mostrarem, eles tam-bm, que so mestres no sentido exato do termo, isto , portadores de mensagens e demonstradores de exemplos capazes de modelar a vida.

    Falei de educao permanente. E, com efeito, essa educao mult idi-mensional, dedicada a aprender a ser, no tem sentido e no pode mes-mo concretizar-se a no ser no mbito de um esforo co-extensivo simultaneamente totalidade da comunidade e durao da existncia do indivduo. Essa perspectiva cada vez mais aceita e acaba de se ma-nifestar recentemente na terceira Conferncia Internacional da UNES-CO sobre a Educao dos Adultos, em Tquio.

    Sem dvida, estamos ainda longe de assumirmos todas as implicaes e mais ainda de realizar as condies da sua aplicao efetiva. Mas, a partir de agora, compreende-se que se devero dar modificaes radicais na organizao do sistema educativo, no que se refere especialmente s prioridades que regem a planificao dos esforos e a repartio dos re-cursos, s estruturas governamentais e administrativas e, finalmente, s prprias instalaes educativas.

    No que diz respeito repartio dos recursos, penso que se ir para um aumento da percentagem atribuda educao dos adultos em relao dos jovens, que at aqui reteve exclusivamente a ateno. E a oca-sio de lembrar que nada mais falso do que acreditar que o desporto apangio da primeira juventude, como se tem acreditado muitas vezes por influncia do prestgio da alta competio, especialmente em algu-mas disciplinas. Jean Borotra, que tenho o prazer de ver entre ns, cons-t i tu i um prestigioso exemplo.

    Quanto s estruturas governamentais e administrativas, importa que os servios responsveis pela juventude e desportos deixem de formar, como sucede em muitos pases, um sistema fechado, freqentemente muito politizado, para se integrarem abertamente quer no sistema edu-cativo, a que chamarei estabelecido, isto , escolar ou universitrio, quer no sistema de cultura e de comunicao, subentendendo-se que um e outro, embora atualmente distintos, fazem parte de um mesmo conjun-to e que um dia ser necessrio realizar a unidade fundamental.

    Quanto s instalaes educativas, pe-se sobretudo o problema da fun-

    o e da organizao da universidade e da escola. A este propsito, de-claro que no me incluo no nmero daqueles que afirmam que essas instituies, preciosa herana respectivamente do esprito mediterrni-co e religioso da Idade Mdia muulmana e crist e da idade industrial, fizeram o seu tempo e devem ser postas de lado. Penso firmemente que devem ser conservadas, mas claro que necessrio reform-las profundamente, abrindo-as para todos os aspectos, necessidades e aspi-raes da sociedade moderna e integrando-as num sistema amplo e male-vel de educao total e permanente. Acima de tudo, necessrio que esses estabelecimentos deixem de ser universos fechados margem da vida real ghettos como alguns dizem, no sem exagero. isso que est em vias de se realizar em relao universidade, isso que se deve realizar tambm na escola primria e secundria.

    tambm indubitvel que essa transformao, que dever fazer dos estabelecimentos escolares e universitrios centros de vida comunitria reunindo jovens e adultos, misturando o estudo, a vida e o jogo numa simbiose de investigao e de realizao cultural, abrir ao desporto novas possibilidades no seio da educao. Finalmente, por-se- termo a uma absurda dualidade de sistemas que muitas vezes se ignoram: por um lado, a educao fsica e o desporto escolar e universitrio, por outro, o desporto e as atividades ao ar livre. Poderia fazer-se a economia de ins-talaes desportivas dispendiosas que s funcionam para uma parte da populao durante uma parte do tempo, como esses campos de jogos e essas piscinas que fecham no vero sob o pretexto de serem frias ou esses imensos estdios que s abrem para o espetculo no sbado ou no domingo. Acabar-se- com os clubes em que os jovens encontram treinadores desejosos de performances, mas onde raramente encontram educadores preocupados com o homem integral. Acima de tudo, acabar-se- com a fragmentao da comunidade e da pessoa e com as frustra-es e as rupturas de equilbrio que acompanham sempre aquilo que incompleto. Saber o desporto aproveitar as ocasies que assim se lhe oforecem para a profunda reforma da educao que principia? Saber, enf im, desempenhar plenamente a sua funo na formao individual e social do homem? No estou to certo disso como gostaria de estar, porque, para isso, necessrio que tambm o desporto se reforme e no menos profundamente, por duplo processo de retorno s fontes e de inveno contnua. Permiti-me que indique algumas direes em que, na minha opinio, se devia orientar prioritariamente essa reforma.

    Em Aberto, Braslia, ano 1, n. 5, Abr i l , 1982

  • Acima de tudo, importa que os responsveis pelo desporto, encarrega-dos de organismos governamentais ou no governamentais, concedam um lugar maior nas suas preocupaes e objetivos, no plano nacional e internacional, a tudo aquilo que eu inicialmente evoquei como sendo a capacidade educativa do desporto, que a sua verdadeira realidade humana, e se preocupem menos com o espetculo que, em si prprio, deveria destinar-se a evidenciar um sentido moral, como o pretendia o fundador dos Jogos Olmpicos modernos. O sucesso do espetculo desportivo, a importncia que assumiu nos costumes infelizmente muitas vezes explorada para fins alheios e s vezes opostos ao despor-to e que so outros tantos fatores de corrupo ou de deformao: o mercantilismo, o chauvinismo, a pol i t ica. Chegou o tempo de reagir e de reagir energicamente, se se quer conservar o esprito do desporto. Chegou o tempo de escolher entre o circo romano e a palestra grega. Chegou o tempo de escolher entre a exaltao do orgulho nacional e a da fraternidade humana, entre aquilo que ope os homens e aquilo que os une. tambm necessrio que o desporto retorne natureza. A ex-cessiva procura de proezas que exigem a realizao de condies cada vez mais excepcionais, junto ao desejo de rigor que caracteriza a alta competio, sobretudo em confrontos ou em oposies internacionais, levou progressivamente a que o desporto constitusse em um universo fsico prprio, por assim dizer estanque, em relao s contingncias da verdadeira natureza e por isso anormal, na medida em que se procura realizar a norma abstrata. A reside tambm uma grave deformao, porque o princpio do desporto e a fonte das suas alegrias mais ss a restituio do corpo sua liberdade instrutiva e, portanto, comunho do homem com a imensa natureza de que faz parte. Esse regresso autenticidade e ao -vontade fsico impe-se nos nossos dias mais do que nunca, para compensar o desequilbrio crescente introduzido na nossa maneira de viver pelo desenvolvimento da maquinizao e pelas condies artificiais de existncia que predominam nos aglomerados urbanos. Na sua origem o movimento desportivo foi principalmente uma evaso dos citadinos para o ar livre. O seu significado proftico era advertir a humanidade dos perigos da civilizao industrial. No pode-ramos esquecer esse aspecto altamente salutar do desporto, na medida em que parece que esta civilizao destri e polui cada vez mais o am-biente natural do homem. necessrio que o desporto no participe tambm no processo de desnaturao que nos ameaa. Por f im, uma lt ima observao. O desporto, que se tornou fenmeno universal e dotado de uma prestigiosa organizao mundial, como a organizao

    olmpica, deve assumir as implicaes desta universalidade. Quero dizer com isto que deve reconhecer e refletir na sua estrutura e manter e at desenvolver na sua ao a pluralidade das culturas que constitui a rique-za do patrimnio moral da humanidade e pela qual se exprime a sua inesgotvel liberdade criadora. Para ascender ao plano universal, ne-cessrio repudiar resolutamente todo etnocentrismo cultural : uma das finalidades essenciais da UNESCO. Assim, no pr em causa o valor permanente dos desportos de origem helnica ou anglo-saxnica obser-var que no so os nicos no mundo cujas capacidades corporais e mo-rais merecem ser valorizadas para fins educativos e estticos. No seja-mos nisso prisioneiros de tradies rgidas e abramo-nos resolutamente diversidade das possibilidades humanas. paradoxal que os povos do-tados de um sentido inato da dana, conscientes ao mais alto grau das virtudes catrticas e formadoras do jogo e em quem a cultura corporal se associa intimamente vida da comunidade, se l imitem a imitar os desportos doutras naes e precisamente num momento em que nestas se esboa um movimento a favor da libertao das formas e dos ritmos de expresso fsica. Seria lamentvel que a introduo nesses povos de prticas desportivas estritamente codificadas se fizesse em detrimento do seu prprio valor ldico. J no ser necessrio que um desejo de prestgio internacional os incite a um esforo excessivo corn o objetivo de produzir elites de alguns campees a expensas da progresso das massas. Assim, talvez no seja quimrico formular o voto que, no m-bito ou ao lado de manifestaes mundiais, como os Jogos Olmpicos, se possam um dia organizar competies com uma regulamentao me-nos estrita do que aquelas que conhecemos, onde se apresentam exer-ccios fsicos e jogos orginrios no gnio de sociedades muito diversas. 0 mundo uma imensa polifonia. A festa universal da juventude, com que sonhava Pierre de Coubertin, deve ser feita imagem desta. A humanidade est numa fase de mutao profunda e rpida, temos cons-cincia disso. Procura s apalpadelas o seu caminho atravs de destinos confusos, grandiosos e simultaneamente temveis. A educao e o des-porto no poderiam constituir exceo a essa necessidade de transfor-mao. Muito longe de tentarem espacar-lhe, pelo contrrio devem con-tribuir para a evoluo geral com toda a lucidez e com toda a genero-sidade quo andam liqadas sua vocao, procedendo, em primeiro lugar, s reformas que se impem nos seus domnios. Essa tarefa capital de renovao dos sistemas propriamente ditos e da prpria sociedade no seu ser global poder ser feita tanto melhor, penso eu, se desporto e educao trabalharem em conjunto, enriquecendo-se e reforando-se

    GeanderRealce

    GeanderRealce

  • mutuamente com as suas experincias e os seus recursos. Tal pelo menos o esprito com que a UNESCO encara esses problemas e pede

    a colaborao de todas as organizaes e de todas as pessoas de boa von-tade que partilham da sua f no Homem e se dedicam, como ela, ao seu servio.