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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
FERNANDA CAROLINA CRUZETTA
REMEMORAÇÕES DA CIDADE DE CURITIBA
VISÕES DO PROGRESSO NAS DÉCADAS INICIAIS DO SÉCULO XX
CURITIBA
2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
FERNANDA CAROLINA CRUZETTA
REMEMORAÇÕES DA CIDADE DE CURITIBA
VISÕES DO PROGRESSO NAS DÉCADAS INICIAIS DO SÉCULO XX
Monografia apresentada como requisito parcial
para conclusão do Curso de História –
Licenciatura e Bacharelado, do Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Cesar de
Almeida Santos
CURITIBA
2010
RESUMO
Ao final do século XIX, Curitiba, assim como outras capitais do Brasil, entrava num
processo de modernização de seu espaço urbano, o qual teve seu auge, naquele período, nas
décadas iniciais do século XX. Movidos por uma visão de progresso inerente ao pensamento
republicano, engenheiros e prefeitos municipais pretenderam transformar Curitiba em uma
grande metrópole. Nesse momento, apregoava-se a idéia de que toda a população de Curitiba
percebia sua cidade como uma metrópole moderna. Contudo, se buscarmos fontes alternativas
a esse discurso laudatório sobre modernidade em Curitiba, poderemos encontrar contradições
dessa modernização e mesmo outras visões sobre a cidade. Através de relatos pessoais de
cidadãos de Curitiba, escritos em forma de memórias, apresenta-se nesse trabalho como eram
percebidas as transformações que a cidade passava no início do século XX. A pertinência da
utilização de relatos pessoais como fonte – nesse caso, relatos de memórias sobre a cidade de
Curitiba – está no fato de se poder extrair da rememoração individual aspectos que traduzem o
imaginário coletivo.
Palavras-chave: Curitiba século XX; modernização urbana; memórias.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
1. O MUNDO SE MODERNIZA: AS TRANSFORMAÇÕES SÓCIO-ECONÔMICAS DA SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XIX 3
1.1 REVOLUÇÃO CIENTÍFICO-TECNOLÓGICA E A IMPOSIÇÃO DA MODERNIDADE 3
1.2 A MODERNIZAÇÃO NO BRASIL: “A BELLE ÉPOQUE CAIPIRA” 5
1.3 CURITIBA, “A TERRA DO FUTURO”? 7 1.3.1 O PROGRESSO VEM DE TREM 10
1.3.2 NESTOR VÍTOR E SEU TESTEMUNHO SOBRE A MODERNIZAÇÃO DA CIDADE 11
1.3.3 A MODERNIZAÇÃO NO LAZER E NO COTIDIANO 13
1.3.4 DESORDEM E REGRESSO 14
2. REMEMORANDO CURITIBA 18
2.1 CURITIBA E AS REMEMORAÇÕES DE INFÂNCIA 19
2.2 CURITIBA E AS CRÔNICAS DE UMA CIDADE 29
2.3 CURITIBA NA MEMÓRIA COLETIVA 34
CONSIDERAÇÕES FINAIS 41
FONTES CONSULTADAS 43
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 44
INTRODUÇÃO
Em meados do século XIX, Curitiba, assim como outras capitais brasileiras, entrava num
processo de modernização de seu espaço urbano. Esse processo teve seu auge nas décadas
iniciais do século XX.
As reestruturações operadas na capital paranaense já foram objeto de estudo de
diversos historiadores, que se debruçam sobre a história de Curitiba do final do século XIX e
do início do século XX. No entanto, grande parte dessas produções baseia-se em uma
documentação que traduz um discurso hegemônico e laudatório sobre a cidade. Assim, com o
intuito de buscar outras visões, ou mesmo contradições sobre o reordenamento urbano de
Curitiba, nesse período, foram selecionadas fontes alternativas a esse discurso, dito oficial:
relatos que apresentam reminiscências sobre a cidade. Os autores desses relatos descrevem os
espaços, os acontecimentos marcantes e o cotidiano da cidade de Curitiba, em diferentes fases
de suas vidas. A partir dessas rememorações, propôs-se pensar se essas descrições
contemplavam as modificações no cenário urbano da cidade, sobretudo no início do século
XX, e em que medida corroboravam ou não o ideário de progresso inerente à recém-
instaurada República.
No entanto, antes de buscar essa visão alternativa sobre a cidade de Curitiba, fez-se
necessário, primeiramente, compreender o contexto mais amplo das transformações operadas
na sociedade da época. No primeiro capítulo desse trabalho, intitulado O mundo se
moderniza: as transformações sócio-econômicas da segunda metade do século XIX, é
apresentado um panorama sobre essas transformações e suas implicações no Brasil e na
cidade de Curitiba. Para produzir esse panorama são elencados alguns temas, como a Segunda
Revolução Industrial na Europa e na América do Norte, a expansão do capitalismo, a
imposição da modernidade no Brasil, a modernização da cidade de Curitiba, nas décadas
finais do século XIX e iniciais do século XX, e as contradições acarretadas pela modernidade
na capital paranaense. Para essa discussão foram essenciais as obras de autores como Eric
Hobsbawn, Nicolau Sevcenko, Christian Topalov e Sidney Chalhoub. Em relação a Curitiba –
foco central do trabalho –, são utilizados como base para as reflexões apresentadas os
trabalhos de Irã Dudeque, Marcelo Sutil, Rafael Sêga, entre outros.
No segundo capítulo – Rememorando Curitiba – é feita a apresentação das fontes,
que se constituem em sete textos memorialísticos nos quais os autores, ao falarem de suas
vidas, relembram a cidade de Curitiba, abrangendo um período que vai do final da década de
2
1880 até o final da década de 1910. Os textos trabalhados são de autoria de Jaime Balão
Júnior, América da Costa Sabóia, Vasco José Taborda, Heitor Borges de Macedo, Nestor
Vítor dos Santos, Euclides Bandeira e Mário Marcondes de Albuquerque. Os quatro primeiros
autores trazem lembranças de uma cidade que existia em suas infâncias e de que se recordam
com carinho e saudosismo, produzindo, portando, relatos bastante subjetivos. Já nos três
relatos seguintes, percebemos também as reminiscências dos autores, porém, nota-se também
que eles têm em vista a produção de obras que contemplem, juntamente às suas lembranças, a
história da capital paranaense, desde sua fundação.
A utilização de memórias, relatos pessoais, biografias como fonte só ganhou
notoriedade nos anos de 1980, quando se passou a revalorizar a análise qualitativa e se
recuperou a importância das experiências individuais para a pesquisa histórica. Entendemos
que a pertinência da utilização de relatos pessoais como fonte para esse trabalho está no fato
de se poder extrair da rememoração individual aspectos que traduzem o imaginário coletivo,
ampliando, dessa forma, a discussão sobre o processo de modernização de Curitiba sem se
ater somente na leitura do espaço construído. Obviamente, deve se levar em conta que essas
fontes se configuram em memórias e, como tais, são produzidas a partir da realidade presente
em que os autores as escreveram. Logo, as críticas e julgamentos também fazem parte deste
presente.
1. O MUNDO SE MODERNIZA: AS TRANSFORMAÇÕES SÓCIO-ECONÔMICAS DA SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XIX
Antes de nos atermos propriamente à cidade de Curitiba e às reestruturações urbanas
que nela se operaram no início do século XX, entendemos necessário compreender o contexto
mundial de transformações sócio-econômicas que ocorreram, desde a segunda metade do
século XIX, quando se iniciou um período de grande expansão do capitalismo.
1.1 REVOLUÇÃO CIENTÍFICO-TECNOLÓGICA E A IMPOSIÇÃO DA MODERNIDADE
Em meados do século XIX, segundo o historiador Eric Hobsbawm, houve uma
“atualização” da primeira revolução industrial, com a substituição da máquina à vapor por
turbinas e do ferro pelo aço, seguida do desenvolvimento da indústria baseada em novas
tecnologias (como a eletricidade e o motor a combustão).1 Todo esse processo culminou na
Revolução Científico-Tecnológica.
O avanço técnico produzido durante essa revolução gerou uma superprodução, o que,
conseqüentemente, impulsionou a procura por novos mercados e por investimentos mais
lucrativos. Para isso, as grandes potências industriais da época – Grã-Bretanha, França,
Alemanha, Bélgica, EUA – passaram a empreender uma política expansionista. Segundo
Hobsbawm, “a maior parte do mundo, à exceção da Europa e das Américas, foi formalmente
dividida em territórios sob governo direto ou sob dominação política indireta de um ou outro
Estado de um pequeno grupo [as nações citadas acima]”.2
No entanto, é necessário ressaltar que essa política expansionista não se constituiu
apenas em um fenômeno econômico e político. Houve também “a conquista do globo pelas
imagens, idéias e aspirações de sua minoria „desenvolvida‟”.3 Ao tratar da expansão
capitalista no contexto da Segunda Revolução Industrial em sua dimensão sócio-cultural, o
historiador Nicolau Sevcenko mostrou que “era necessário transformar o modo de vida das
sociedades tradicionais, de modo a instilar-lhes os hábitos e práticas de produção e consumo
1 HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios, 1875-1914. 13ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2009, p. 90.
2 Ibid., pp. 80 e 99.
3 Ibid., p. 127.
4
conformes ao novo padrão da economia de base científico-tecnológica.”4 O mesmo autor
acrescenta que, nesse período, estava sendo gerando um “fluxo intenso de mudanças”, pois,
até então, as pessoas nunca haviam passado por um processo de transformação de seus
cotidianos tão intenso. Novas formas de energia, meios de transporte e de comunicação
começam a ser desenvolvidos; a ciência e os laboratórios assumem o papel principal no
desenvolvimento da indústria, em especial das indústrias elétrica e química, propiciando, por
exemplo, a utilização do níquel, do alumínio e de derivados do petróleo na fabricação de bens
de consumo, bem como o desenvolvimento de novos medicamentos e alimentos.5
Na mesma proporção que o capital se expandia e que novas tecnologias eram criadas,
os centros urbanos europeus e norte-americanos começaram a se tornar super povoados.
Começaram a surgir também problemas estruturais e sociais nas grandes cidades, que eram,
muitas vezes, atribuídos à grande massa da população pobre que habitava os grandes centros.
Para resolver esse problema foi necessário empreender reformas urbanas que tinham como
intuito não só o reordenamento urbano, mas também social. Segundo o sociólogo Christian
Topalov, as reformas urbanas iniciadas na Europa e na América do Norte, por volta de 1880,
estavam associadas a um movimento de reforma social. Acreditava-se que era preciso “Mudar
a cidade para mudar a sociedade e, particularmente, o povo”.6 De acordo com Topalov, desde
a primeira revolução industrial os habitantes dos bairros operários na Europa eram
enquadrados como “classes perigosas”, pois era justamente no meio onde eles viviam que “se
concentravam os flagelos sociais” e era de onde poderiam surgir ameaças de crimes e
epidemias para o resto da sociedade.7
Portanto, reestruturar os centros urbanos de modo a realocar a população mais pobre e
criar novos espaços mais limpos, seguros e modernos era garantir que se construísse uma
imagem civilizada sobre a cidade. De forma semelhante às reformas urbanas européias e
norte-americanas, no Brasil também se pretendeu civilizar os ambientes urbanos,
empreendendo reformas em algumas capitais.
4 SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: ______ (org.).
História da vida privada no Brasil. v. 3. República: da Belle époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, p. 12-13. 5 Ibid., p. 7-9.
6 TOPALOV, Christian. Da questão social aos problemas urbanos: os reformadores e a população das
metrópoles em princípios do século XX. In: PECHMAN, Robert; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz (orgs.).
Cidade, povo e nação. Gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 23. 7 Ibid., p. 33.
5
1.2 A MODERNIZAÇÃO NO BRASIL: “A BELLE ÉPOQUE CAIPIRA”
Assim como em outros países considerados zonas periféricas à época, as condições
locais de desenvolvimento no Brasil não estavam de acordo com o padrão tecnológico e
produtivo do das grandes potências. Por mais que as inovações advindas da Revolução
Científico-Tecnológica tenham causado impacto no cotidiano dos habitantes de países como
Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos, havia nesses lugares uma espécie de
„preparação‟, pois eram nações que vinham se modernizando gradativamente. Ou, como
elucida Hobsbawm, era uma pequena parte do mundo onde nascera o progresso e que
pretendia conquistar outras regiões, ajudada por uma minoria de colaboradores locais.8 O
Brasil não possuía um aparato tecnológico e econômico para produzir uma revolução
industrial aos moldes europeu e norte-americano. Foi, portanto, necessário criar condições e
impor modernizações para que o país fosse inserido no rol de nações que serviriam de
mercado consumidor e zona de influência econômica. Essas modernizações se traduziram em
ações como a adoção de práticas econômicas liberais, a abolição do trabalho escravo, a
imposição de padrões higienistas e educacionais inspirados em modelos europeus e a
reestruturação urbana de algumas capitais brasileiras, em especial a cidade do Rio de Janeiro.
Pode-se ainda incluir nesse conjunto de ações modernizantes a Proclamação da República, já
que esta foi resultado da pressão de um grupo social que sentia a necessidade de estabelecer
um ordenamento da sociedade baseado em preceitos republicanos e liberais „importados‟ da
França e Estados Unidos.9
Ao longo da Primeira República, empreendem-se diversas intervenções urbanas
localizadas, ou seja, intervenções que não se configuravam em planos urbanísticos para a
cidade como um todo. Tais intervenções visavam, sobretudo, “criar uma nova imagem da
cidade, em conformidade com os modelos estéticos europeus, permitindo às elites dar
materialidade aos símbolos de distinção relativos à sua nova condição”.10
É fundamental ressaltar que essa reestruturação não se deu somente nos espaços
urbanos, mas também na mentalidade dos citadinos: da mesma forma que ruas foram
alargadas, que rios foram canalizados e que novas construções foram erguidas para os mais
diversos fins, introduziram-se também novos hábitos e práticas sociais entre a população. Por
8 HOBSBAWM, A Era dos Impérios..., p. 57.
9 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas : o imaginário da República no Brasil. 18 ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008. 10
CARDOSO, Adauto Lúcio; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Da cidade à nação: gênese e evolução do
urbanismo no Brasil. In: PECHMAN, Robert; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz (orgs.). Cidade, povo e nação.
Gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, pp. 58 e 59.
6
parte das autoridades e da elite brasileira havia o intuito de transformar a capital da recém-
instaurada República, o Rio Janeiro, bem como outras capitais – como Belo Horizonte, São
Paulo e Curitiba – em espelhos de grandes metrópoles européias e americanas. No artigo A
Belle Époque caipira, José Evaldo de Mello Doin e outros autores abordam a questão do
“gosto pelo moderno e por toda a materialidade e simbolismo que o envolviam e que eram
experienciados na Europa”.11
É justamente com o intuito de importar tendências da Europa e
dos Estados Unidos que se buscou embelezar as capitais brasileiras. E embelezar aqui pode
também ser compreendido como escamotear elementos que poderiam vir a evidenciar
determinados problemas sociais, como a violência e a insalubridade. Como exemplo dessa
escamoteação, podemos citar a demolição dos cortiços no Rio de Janeiro, na década de
1890.12
Mesmo que muitas dessas modernizações e melhoramentos não tenham atingido todos
os setores da sociedade, criou-se uma “consciência de modernidade”13
, fomentada por
diversos movimentos literários e políticos. Segundo Monica Velloso, acostumou-se associar a
questão do moderno no Brasil à década de 1920 – em decorrência da Semana da Arte
Moderna de 1922, ocorrida em São Paulo –, entretanto, já nos anos finais do Império havia
movimentos literários e políticos que davam “sinais de modernidade” em suas produções:
autores como Graça Aranha, Capistrano de Abreu e Machado de Assis (da “geração de
1870”), bem como uma série de intelectuais envolvidos no movimento republicano, deixavam
transparecer em suas produções “o choque vivenciado pelos atores sociais ante as bruscas
mudanças tecnológicas” e o “anseio de mudança no mundo da política”.14
Como já se pôde perceber, esse imaginário de modernização, presente na produção
intelectual, mas também apregoado nos jornais e revistas da época e manifestado nas atitudes
das pessoas, desenvolveu-se concomitantemente à reestruturação dos ambientes urbanos. Isso
se deveu ao fato das cidades serem entendidas como a expressão da sociedade que as
11
DOIN, José Evaldo de Mello et Alli. A Belle Époque caipira: problematizações e oportunidades interpretativas
da modernidade e urbanização no mundo do café (1825-1930). Revista Brasileira de História. São Paulo, v.27,
n.53, p.91-122, 2007, p. 94. 12
De acordo com Sidney Chalhoub, os cortiços eram considerados pelas autoridades da época ambientes feios e
insalubres, habitados por uma parcela pouco favorecida da população, a qual seria propensa aos vícios e à
violência (Ver CHALHOUB, Sidney. Cortiços. In: ______. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte
imperial. São Paulo: Cia da Letras, 1996, p. 15-59). 13
VELLOSO, Monica Pimenta. O modernismo e a questão nacional. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO,
Lucília de A. N. (orgs.). O Brasil republicano. O tempo do liberalismo excludente : da Proclamação da
República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 353. 14
Ibid., p. 354.
7
constrói.15
Nelas são criados espaços destinados às práticas que pertencem a esse mundo
urbano, como a industrialização, o comércio e o entretenimento. Portanto, ao se estudar esse
processo de modernização que atingiu as cidades brasileiras ao final do século XIX e início do
XX, não se podem relegar as impressões das pessoas que habitavam esses meios urbanos e
que eram „contagiadas‟ por esse imaginário.
Como indicado acima, a cidade de Curitiba e outras capitais estavam inseridas nesse
contexto de modificações do cenário urbano brasileiro nas primeiras décadas da República e,
por ora, pretendemos mostrar a maneira pela qual Curitiba foi tomada como objeto de atenção
por alguns historiadores ao tratarem das modernizações que nela se operaram ao final de
século XIX e, em especial, nas primeiras décadas do século XX.
1.3 CURITIBA, “A TERRA DO FUTURO”?
Antes de ser elevada a capital de província, Curitiba era considerada uma cidade de
poucas e irregulares ruas, ocupada apenas nos dias de festa. Contudo, não se deve inferir que
essa configuração mudou repentinamente após a emancipação política do Paraná (1853). Para
Romário Martins, a imagem da capital paranaense nesse contexto era, inclusive, bem
negativa: “Curityba era, nessa epoca, uma insignificancia, que de cidade só tinha o
predicamento official.”16
Ao relatar sua viagem pela província do Paraná, em 1858, o médico
alemão Robert Avé-Lallemant faz uma descrição da cidade de Curitiba que se assemelha à de
Romário Martins, mas que, ao mesmo tempo, dá indícios de que a capital pode regenerar-se e
ganhar significância:
Naturalmente nela nada se encontra de grande ou grandioso. Em tudo, nas ruas e
casas e mesmo nos homens, se reconhece uma dupla natureza. Uma da velha
Curitiba, quando ainda não era capital de uma Província [...] Aí se vêem ruas não
calçadas, casas de madeira e toda espécie de desmazelo, cantos sujos e pragas
desordenadas, ao lado das quais há muita coisa em ruína e não se pode deixar de
reconhecer evidente decadência e atraso. Na segunda natureza, ao contrário expressa
decisiva regeneração, embora não apareça nenhum grandioso estilo Renascença.17
Foram necessários muitos anos para que a capital paranaense começasse a crescer de
forma mais marcante. Essa questão é bem elucidada pelo jornalista e romancista paranaense
15
SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Memórias e Cidade : depoimentos e transformação urbana de Curitiba
(1930-1960). 2.ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999, p. 7. 16
MARTINS, Romário. Curityba de outr’ora e de hoje. Curitiba: Prefeitura Municipal, 1922, p. 167. 17
AVÉ-LALLEMANT, Robert. 1858, Viagem pelo Paraná. Curitiba: Fundação Cultural, 1995, p. 62.
8
Nestor Vítor dos Santos, na obra A Terra do Futuro18
. Ao tratar da “Velha Curitiba”, o autor
parnanguara mostra que, em meados da década de 1850, a capital paranaense era uma cidade
pequena (se comparada a outras capitais) e contava com, aproximadamente, 3.000 habitantes.
Segundo Nestor Vítor, foi somente após a finalização da Estrada da Graciosa, em 1873, que a
cidade deixou de ter um crescimento moroso.19
Outros dados apresentados pelo arquiteto e historiador Irã Dudeque vêm a corroborar
essa idéia de que mudanças mais significativas começaram a ocorrer em Curitiba somente
após a década de 1870, com criação da linha telegráfica com o Rio de Janeiro e outras cidades
(1871), a iluminação pública à querosene (1874), a construção do mercado municipal (1874),
e a construção da estrada de ferro (1879).20
No entanto, dentre as inovações citadas, a construção da Estrada da Graciosa deve ser
destacada, pois, além da sua contribuição econômica – já que a estrada era utilizada,
essencialmente, para o escoamento da produção de mate em direção ao porto –, ela foi
facilitadora da entrada maciça de imigrantes na província, naquela mesma época.21
A vinda
dos imigrantes europeus para o Paraná e, em especial, para Curitiba contribuiu, segundo
Marcelo Sutil, para a modernização da cidade, pois esses imigrantes, principalmente alemães
e italianos, trouxeram consigo sugestões de inovação para a arquitetura da cidade, em especial
o estilo eclético22
. Para ilustrar essa idéia, Sutil mostra que as inovações, como as da
construção da Farmácia Stellfeld, “converteram os curitibanos em espectadores das obras”.23
Em uma passagem de A Terra do Futuro, Nestor Vítor mostra também ter sido um desses
espectadores: “Quando eu fui para Curitiba, em 1885, nossa capital já tinha proporções
avantajadas e entre os exemplares da sua construção, aí já quase que completamente à feição
germânica, encontravam-se vários prédios importantes”.24
18
SANTOS, Nestor Vítor dos. Terra do Futuro : Impressões do Paraná. 2 ed. Curitiba: Prefeitura Municipal de
Curitiba, 1996. Nestor Vítor escreveu esse livro em 1912, a mando do presidente do Estado na época, Afonso
Camargo; nessa obra são tratados aspectos geográficos, históricos, econômicos e sociais de todo Paraná. Em
alguns capítulos o autor faz comparações entre as cidades que conhecera em algum momento de sua vida e a
configuração dessas mesmas cidades, em 1912. 19
Ibid., p. 70. 20
DUDEQUE, Irã. Cidades sem véus : doenças, poder e desenhos urbanos. Curitiba: Champagnat, 1995, pp.
119 e 122. 21
SANTOS, Nestor Vítor. A Terra do Futuro..., p. 70. 22
O ecleticismo é a mistura de estilos arquitetônicos do passado para a criação de uma nova linguagem
arquitetônica, passando pela arquitetura clássica, medieval, renascentista, barroca e neoclássica. Apesar disso,
“freqüentemente o resultado arquitetônico revela-se harmonioso e surpreendentemente conciso.” (Ver
CAROLLO, Cassiana Lacerda. Palacete Leão Júnior e Ciclo da Erva Mate. Publicação da Secretaria de
Cultura do Paraná 199_, p. 66). 23
SUTIL, Marcelo Saldanha. O espelho e a miragem : Ecletismo, moradia e modernidade na Curitiba do início
do século. Curitiba, 1996. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná, pp. 17 e 18. 24
SANTOS, Nestor Vítor. A Terra do Futuro..., p. 73.
9
Tanto na obra de Nestor Vítor como na de Sutil fica evidente que grande parte dos
imigrantes alemães estabeleceu-se no meio urbano, atuando no comércio e, posteriormente, na
indústria. Analisando por esse ângulo, percebe-se que a presença de imigrantes foi bastante
positiva para o desenvolvimento de Curitiba. Entretanto, Maria Ignês de Boni nos mostra uma
outra dimensão da relação entre a imigração e a modernização da capital paranaense. Para de
Boni, a vinda de imigrantes europeus contribuiu para o espantoso crescimento populacional
que Curitiba teve ao final do século XIX.25
Esse crescimento, por sua vez, gerou problemas
como a falta de moradia, desemprego, disseminação de doenças e o aumento da violência.26
Contudo, mesmo tendo apontado todas essas mudanças, tanto as positivas quanto as
negativas, que podem ser associadas à modernização de uma cidade, Curitiba, por volta de
1880, ainda trazia muitas características da vila que fora no século anterior.27
De acordo com
Antonio Cesar de Almeida Santos, ao final do século XIX, tinha-se uma visão paradoxal de
Curitiba, que poderia ser expressa pela seguinte situação: ao mesmo tempo em que a cidade
oferecia “Casas de banho”, tinha problemas sanitários graves, “devido à falta de boas
águas”.28
Em relação a esse paradoxo, Nestor Vítor apontou aspectos interessantes que vêm a
dar força a essa imagem:
O coaxar penetrante e plangente daquela vasta população batráquia, desde o
escurecer, a péssima iluminação pública, ainda a gás-globo, os perigosos valados,
em tempos de chuva, de muitos trechos da cidade, quase toda ela ainda por calçar, o
mugido das vacas, às vezes em estábulos próximos, quando não andassem soltas de
mistura com numerosa cavalhada, tudo isso dava a Curitiba ainda feição flagrante de
aldeia.29
Essas questões só viriam a começar a se resolver a partir de 1885. De acordo com de
Boni, foi com o governo do presidente da Província Alfredo D‟Escragnole Taunay que se deu
o primeiro impulso modernizador visível, principalmente, em Curitiba. A partir do primeiro
ano de mandato de Taunay, em 1885, já se iniciaram melhoramentos na capital paranaense,
como a transformação do charco do Rio Belém em Passeio Público, a retirada de pastagens da
Praça D. Pedro II (atual Praça Tiradentes) e o alargamento de ruas. Para Irã Dudeque, a idéia
25
Como anteriormente citado, Nestor Vítor mostrou que, por volta de 1850, Curitiba contava com,
aproximadamente, 3.000 habitantes. Porém, de acordo com Romário Martins, esse número era um pouco mais
alto para o mesmo período – 5.819 habitantes (Ver MARTINS, Curityba..., p. 168). Em pouco mais de 10 anos,
em 1867, a população aumentou para 14.125, e no recenseamento de 1890 registrava-se 53.557 (Ver Boletim do
Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Paranaense. Curitiba, v. 48, 1993, p. 27). 26
BONI, Maria Ignês M. de. O espetáculo visto de alto: vigilância e punição em Curitiba (1890-1920). São
Paulo, 1985. Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, p. 20. 27
DUDEQUE, Cidades..., p. 124. 28
SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Ideário do progresso e cidades : uma Curitiba das primeiras décadas do
séc. XX. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v.XXIV, n.1, p.75-94, junho 1998, p. 80. 29
SANTOS, Nestor Vítor. A Terra do Futuro..., p. 74.
10
de criar passeios e arborizar a cidade mostra a importação dos “gostos paisagísticos europeus”
– em especial o francês – e também se relacionava com as teorias médicas de que a cidade
deveria ter um “bom ar”.30
Segundo Aparecida Bahls, a proposta de construir o Passeio
Público tinha um duplo objetivo: embelezar a cidade e, ao mesmo tempo, saneá-la, pois, ao
drenar e pavimentar um terreno onde havia um charco, estimulou-se também as melhorias
urbanas do entorno desse terreno, embelezando e enobrecendo a região.31
1.3.1 O PROGRESSO VEM DE TREM
Não se pode negar que foram modificações significativas. No entanto, deve-se
considerar que, tal como em outras cidades brasileiras do período, foi a ferrovia o fator que
desencadeou maiores modificações no cenário de Curitiba.
Para elucidar melhor essa idéia, torna-se interessante um paralelo com a cidade de São
Paulo. Ana Luiza Martins, ao discorrer sobre o desenvolvimento econômico de São Paulo,
apontou a chegada da locomotiva à cidade como um símbolo do progresso, argumentando
que, na segunda metade do século XIX, a província de São Paulo teve um grande crescimento
no número de habitantes e de produção, mas que, mesmo assim, as cidades paulistas
continuaram precárias, vivendo um “marasmo provincial”. Essa situação só se modificou
depois da construção da ferrovia que ligava Jundiaí a Santos, em 1867. A partir desse
momento, passou-se a investir em educação, transporte, saneamento, comunicação e lazer.32
Em Curitiba, o processo de modificação do cenário da cidade – de uma vila do século
XVIII para uma cidade moderna – ocorreu de maneira semelhante. Foi somente depois da
inauguração da ferrovia e da construção da estação ferroviária, em 1885, que a capital do
Paraná começou a se desenvolver segundo as idéias de ordem e de progresso.33
Concebendo a estrada de ferro como sendo uma proeza técnica da engenharia, Nestor
Vítor manifesta seu encantamento: “Está-se vendo a realidade diante de tudo aquilo e
continua-se a inquirir como é que se pôde levar a cabo aquela obra gigantesca [...]. É esse, em
verdade, um grande título de glória para a engenharia brasileira.”34
Nessa afirmação de Nestor
Vítor percebe-se, além da admiração pela construção da estrada, o valor dado à engenharia.
Na época, conforme Magnus Pereira, a idéia de progresso estava personificada na figura do
30
DUDEQUE, Cidades..., p. 133. 31
BAHLS, Aparecida Vaz da Silva. O verde na metrópole : A evolução das praças e jardins em Curitiba (1885-
1916). Curitiba, 1998. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná, pp. 112 e 115. 32
MARTINS, Ana Luiza. República : um outro olhar. São Paulo: Contexto, 1997, pp. 27-30. 33
DUDEQUE, Cidades..., p. 126. 34
SANTOS, Nestor Vítor. A Terra do Futuro..., p. 56.
11
engenheiro civil: ele representava a objetividade técnica e científica, a racionalidade e o
progresso; suas ações, portanto, não eram vistas como algo subjetivo.35
Ao focar a estação ferroviária de Curitiba, Marcelo Sutil mostra que sua construção
levou à capital paranaense engenheiros e arquitetos, que trouxeram consigo “propostas
arquitetônicas consoantes ao que se fazia em outros centros urbanos.” Muitos desses
profissionais, marcadamente os italianos, estabeleceram escritórios de arquitetura na cidade e
foram responsáveis por belas construções; como exemplo, Sutil menciona dois trabalhos do
engenheiro italiano Ernesto Guaita na cidade, a casa do ervateiro Manoel Macedo (já
demolida) e o Palácio do Congresso, onde hoje funciona a Câmara Municipal.36
Pensando em um contexto mais amplo, Cassiana Lacerda Carollo, em seu trabalho
intitulado Palacete Leão Júnior e o Ciclo da Erva Mate, aborda a estrada de ferro para além
de sua contribuição para a engenharia e influência de seus construtores e idealizadores em
outras edificações da cidade. Carollo entende a ferrovia que ligava Curitiba a Paranaguá como
um elemento desencadeador da expansão da cultura ervateira no Paraná, da mesma forma que
a ferrovia paulista em relação ao café. Segundo a autora, essa expansão, associada à vinda dos
imigrantes e aos melhoramentos tecnológicos em vários setores, refletiu em modificações na
cidade de Curitiba.37
1.3.2 NESTOR VÍTOR E SEU TESTEMUNHO SOBRE A MODERNIZAÇÃO DA CIDADE
Em seu relato sobre a Nova Curitiba – a cidade que reencontrara em 1912, depois de
ter estado 27 anos fora –, Nestor Vítor apresenta um panorama das modificações que
observou na capital paranaense: Curitiba mostrava-se diferente, com outro “porte”. Porém não
se podia dizer ainda que a cidade tivesse se tornado uma metrópole, tal qual o Rio de Janeiro.
Para ilustrar essa idéia, o romancista compara Curitiba a uma camponesa, “que encontramos
no fim de certo tempo já com os donaires e a louçania de uma cidadã.”38
35
PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Fazendeiros, industriais e não-morigerados : ordenamento jurídico e
econômico da sociedade paranaense (1829-1889). Curitiba, 1990. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal do Paraná, p. 136, apud SANTOS, Ideário do progresso e cidades..., p. 83. 36
SUTIL, Marcelo Saldanha. Beirais e Platibandas : A arquitetura de Curitiba na primeira metade do século
20. Curitiba, 2003. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, pp. 25 e 27. 37
CAROLLO, Cassiana Lacerda. Palacete Leão Júnior..., p. 34. 38
SANTOS, Nestor Vítor. A Terra do Futuro..., p. 82.
12
O primeiro aspecto elencado por Nestor Vítor em suas observações sobre a Curitiba de
1912 diz respeito à configuração das vias públicas: as ruas foram alargadas e asfaltadas e
novos prédios – mais “modernos”, “leves” e “elegantes” – foram construídos.39
As observações que se seguem são „construídas‟, através de diálogos, com o auxílio de
amigos de Nestor Vítor, os quais lhe dão notícias do que mudou em Curitiba. Um desses
amigos é o poeta curitibano Emiliano Perneta, que conta que as construções aumentam a cada
dia e que, naquele momento (1912), Curitiba possuía entre 5000 e 6000 prédios.40
Os dados
atribuídos a Emiliano Perneta tornam-se mais interessantes se comparados àqueles
apresentados por Romário Martins sobre a Curitiba de 1863: a capital paranaense possuía,
então, apenas 282 casas e mais 101 em construção.41
De acordo com Emiliano Perneta, o crescimento vertiginoso do número de construções
era prova do crescimento populacional: chegavam a Curitiba cerca de 60 famílias por mês.42
Contudo, mesmo que houvesse um número alto de construções e prédios destinados à
moradia, o preço do aluguel – em comparação ao período que Nestor Vítor estivera pela
última vez na capital (década de 1880) – triplicara de valor.43
Outro aumento de preço
significativo foi o de gêneros de primeira necessidade: segundo Nestor Vítor, o preço de
certos alimentos, como o ovo, era tão caro quanto no Rio de Janeiro.44
Para a historiadora
Maria Ignês de Boni, viver em Curitiba nas primeiras décadas do século XX tornara-se caro:
terrenos e imóveis (em especial aqueles próximos à estação ferroviária) começavam a
valorizar-se e, conseqüentemente, gerava a alta dos aluguéis. Outro fator que encarecia a vida
na capital paranaense era o aumento de impostos sobre diversos produtos, bem como o
aumento das taxas sobre o fornecimento de eletricidade.45
Essa é uma contradição do processo modernizante em Curitiba (e em qualquer cidade):
a cidade estava crescendo e valorizando-se, mas também estava ficando caro viver nela, para
grande parcela da população, que era afastada do centro urbano. Sobre essa questão, Nestor
Vítor, que não via mais os colonos carroceiros e nem sentia mais o “cheiro campesino”
característico que a cidade antes possuía, apresenta uma blague interessante, feita pelo amigo
Emiliano Perneta: “Os pobres e os sapos vão indo cada vez para mais longe”.46
39
Idem. 40
SANTOS, Nestor Vítor. A Terra do Futuro..., p. 82-84. 41
MARTINS, Curityba..., p. 178. 42
SANTOS, Nestor Vítor. A Terra do Futuro..., p.83. 43
Idem. 44
Ibid., p.84. 45
BONI, O espetáculo visto de alto..., pp. 50 e 51. 46
SANTOS, Nestor Vítor. A Terra do Futuro..., p.91.
13
No entanto, não eram somente questões estruturais e econômicas que haviam mudado
em Curitiba. Um fato que chamou a atenção de Nestor Vítor foi o novo comportamento
adotado por homens e mulheres, que “estavam ganhando outro andar, outra atitude, muito
mais cidadã que a de outrora.” O autor observa que essas mudanças estavam na forma de
vestir, de fazer a barba (no caso dos homens), de cumprimentar e de agir mais livremente (no
caso das mulheres que, nesse momento, podiam ser vistas andando sozinhas nas ruas).47
A relação entre a transformação do espaço urbano e a mudança comportamental de
uma determinada camada da população curitibana fica mais nítida quando lançamos nosso
olhar para os periódicos da época. Jornais, revistas e almanaques disseminavam idéias
republicanas (positivistas) justamente para inteirar (ou mesmo „doutrinar‟) a população, além
de mostrarem que as modificações não se davam somente no espaço, mas também na atitude
das pessoas: adotaram-se hábitos como sair à noite e utilizar roupas que estivessem „na
moda‟.48
1.3.3 A MODERNIZAÇÃO NO LAZER E NO COTIDIANO
No que concerne às mudanças comportamentais dos curitibanos observadas nas
décadas iniciais do século XX, pode-se acrescentar ainda o hábito de freqüentar ambientes
variados destinados ao entretenimento. Em 1885, Nestor Vítor diz ter observado que se
desconhecia na cidade o “grande luxo”. O autor referia-se à vida cultural pouco agitada da
capital paranaense. As únicas diversões existentes eram os saraus, as festas de igreja e as
esporádicas apresentações teatrais.49
Esse quadro veio a mudar nos anos finais do século XIX, com a chegada do
cinematógrafo a Curitiba, no ano de 1899.50
Após a inauguração da primeira sala de cinema –
o Salão Pariz, que se localizava na Rua XV de Novembro – diversas outras começaram a
despontar na cidade. E não somente os cinematógrafos, outras opções de entretenimento e
diversão começaram a surgir. Ângela Brandão traz o exemplo de uma dessas opções, se não a
melhor: o parque de diversão Colyseu Curitibano, inaugurado em 1905. Nesse parque, além
de um cinematógrafo, encontravam-se outras maravilhas tecnológicas, como os cosmoramas
47
Ibid., p.87. 48
SANTOS, Ideário do progresso e cidades..., pp. 84 e 87. 49
SANTOS, Nestor Vítor. A Terra do Futuro..., p. 76. 50
BRANDÃO, Ângela. A fábrica de ilusão : o espetáculo das máquinas num parque de diversões e a
modernização de Curitiba (1905-1913). Curitiba: Prefeitura Municipal de Curitiba – Fundação Cultural de
Curitiba, 1994, p. 15.
14
(série de vistas de vários países observadas por aparelhos ópticos que as ampliavam), os
mareoramas (uma máquina que simulava um navio e submetia seus espectadores às ondas e à
brisa do mar, exibindo imagens de praias), a Fonte Luminosa (um jogo de luz), o zonofone
(um precursor do gramofone), o polifone (uma espécie de caixinha de música) etc.51
Em seu livro, Ângela Brandão trabalha a forma como os jornais (em especial, o Diário
da Tarde) divulgavam esse parque. Segundo Brandão, o Colyseu Curitibano era apresentado
pelos periódicos como uma “ponte” para o universo de idéias que se criaram em torno da
urbanização e da modernização.52
Anunciando o desenvolvimento da indústria e do comércio,
ou mesmo o surgimento de parques de diversão, os meios de comunicação escrita passavam
sempre a valorização das máquinas e da técnica e também o ideário de „ordem e progresso‟,
não o restringindo ao meio intelectual, mas tornando-o parte do senso comum.53
Aparentemente, Curitiba parecia marchar adequadamente no caminho do progresso e
da civilização. Já era uma cidade de avenidas largas e possuía parques, inúmeros prédios e
opções de entretenimento. No entanto, segundo apontava Emiliano Perneta, as mudanças
operadas ainda não era suficientes: faltava calçamento em diversas ruas, policiamento,
transportes mais eficientes (como o bonde elétrico) e, principalmente, soluções para o
problema da insalubridade.54
1.3.4 DESORDEM E REGRESSO
O aparecimento de uma série de problemas estruturais, por volta de 1910, deveu-se ao
crescimento populacional rápido que a cidade teve no período.55
De acordo com de Boni, o
principal motivo agora para o crescimento populacional não era mais a imigração ou a
reimigração, mas o “próprio desenvolvimento do ciclo vital das famílias de Curitiba”, bem
como o das famílias imigrantes.56
Além da já citada falta de moradia, a população menos
favorecida sofria com a carestia, o desemprego e, notadamente, com a insalubridade e com
doenças, tais como a coqueluche, o tifo, a varíola e a difteria.57
Ao contrário do que era
apregoado nos discursos de intelectuais, como Rocha Pombo, que deixavam patente o
enaltecimento do crescimento estrutural da cidade, de Boni aponta que os jornais
51
Ibid., p. 30-33. 52
Ibid., p. 13. 53
SANTOS, Ideário do progresso e cidades..., p. 82. 54
Ibid., p.91-92. 55
O número de habitantes no ano de 1910 chegara a 60.800 (Ver Boletim do Instituo Histórico..., p. 27). 56
BONI, O espetáculo visto do alto..., p. 21-23. 57
Ibid., p. 33.
15
denunciavam problemas, como a falta de água potável, de redes de esgoto, de calçamento
etc.58
As reformas que viriam a solucionar alguns desses problemas estruturais em Curitiba
começaram, segundo Rafael Sêga, no segundo mandato do prefeito municipal Cândido
Ferreira de Abreu (1913-1916).59
Cândido de Abreu atuou, de forma concomitante ao seu
trabalho como político, como engenheiro e projetista. Segundo Marcelo Sutil, ele foi, à sua
época, um dos projetistas mais requisitados em Curitiba, tendo sido responsável por
construções como o Palacete Leão Júnior, a Casa das Ferraduras, o Belvedere da Praça João
Cândido, o Paço Municipal da Praça Generoso Marques e as residências da família Miró.60
No cenário político, Cândido de Abreu atuou em Curitiba como secretário municipal
de obras (1887-1889) e, por duas vezes, como prefeito (1892-1893 e 1913-1916). Em seu
segundo mandato, ficou encarregado de ordenar os loteamentos, alargar praças, retificar os
rios, construir bueiros, arborizar ruas e praças e diversas outras ações que tinham um objetivo
bem definido para a cidade de Curitiba: saneá-la. Para empreender essas ações, o então
prefeito criou a “Comissão de Melhoramentos da Capital”. Em vista de todas essas
pretensões, o grande inimigo da Comissão de Melhoramentos seria, portanto, tudo que
representasse a sujeira e a feiúra, inclusive a “ralé”.61
Como apontou de Boni, era preciso
afastar a população “pobre, suja e feia” dos olhos das “senhoras e cavalheiros que compravam
echarps, luvas de pelica e gravatas da última moda parisiense”.62
Para realizar as propostas de melhoramentos urbanos, o Governo do Estado concedeu
um vultuoso empréstimo à Comissão e conferiu “poder total ao Prefeito para que pudesse,
sem os entraves de morosas discussões [...] concretizar os projetos da reurbanização da cidade
pretendidos pelo Presidente Carlos Cavalcanti.”63
Isso significava que a aprovação (ou não)
da Câmara Municipal para as obras propostas pela Comissão não era necessária, tendo em
vista a liberdade que desfrutava o prefeito. Sobre essa questão, é interessante ver que Rafael
Sêga nomeou esse período de atuação de Cândido de Abreu como sendo uma “ditadura”.64
A despeito de sua indisposição com a Câmara Municipal, Cândido de Abreu era
“saudado como o homem que estava conduzindo a cidade ao seu mais alto grau de
58
Ibid., p. 39. 59
SÊGA, Rafael Augustus. Melhoramentos da capital : a reestruturação do quadro urbano de Curitiba durante
a gestão do prefeito Cândido de Abreu (1913-1916). Curitiba, 1996. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal do Paraná, p. 67. 60
SUTIL, Beirais e Platibandas..., p. 57. 61
SÊGA, Melhoramentos da capital..., p. 72. 62
BONI, O espetáculo visto do alto..., p. 48. 63
Idem. 64
SÊGA, Melhoramentos da capital..., pp. 54 e 55.
16
desenvolvimento”.65
Dentre as realizações em seu segundo mandato, destacam-se as seguintes
obras: o alinhamento de ruas, a canalização do rio Ivo, a reforma do Passeio Público, o
embelezamento de praças, a inauguração da luz elétrica e do bonde elétrico, a elaboração da
1ª regulamentação de trânsito e a eliminação de casarões de residência coletiva, de bares, de
prostíbulos e de casas de jogos de azar do centro da cidade.66
No entanto, mais uma vez, as reestruturações operadas em Curitiba não obtiveram o
êxito pretendido por seus idealizadores. Através do trabalho de Alexandre Benvenutti, As
reclamações do povo na Belle Époque, pode-se perceber outra dimensão das transformações
urbanas que ocorreram em Curitiba durante a segunda gestão de Cândido de Abreu como
prefeito: elas não atingiram todos os setores, criando descontentamento na população.67
Assim como Rafael Sêga e Maria Ignês de Boni, Alexandre Benvenutti também trata
do crescimento populacional, do aumento do comércio e das atividades industriais que
marcaram Curitiba na década de 1910. Os três autores mostram que esse crescimento da
cidade gerou problemas estruturais, os quais começaram a ser solucionados no segundo
mandato de Cândido de Abreu. Contudo, Benvenutti mostra que quanto mais a cidade crescia,
modernizava-se e transformava-se, mais as contradições cresciam. Analisando a coluna
Reclamações do Povo, publicada no Diário da Tarde, entre 1909 e 1916, Benvenutti expõe
essas contradições, mostrando como eram freqüentes as queixas em relação às edificações
insalubres e feias, à iluminação precária, à falta de segurança, às falhas no transporte, ao
saneamento e, inclusive, aos incômodos e transtornos que as obras modernizadoras
causavam.68
Em seu trabalho, de Boni também trata da insatisfação frente à não abrangência
dos melhoramentos na cidade para todos os setores. Como já mencionado, os periódicos
divulgavam as maravilhas do mundo moderno e também como essas inovações estavam
presentes em Curitiba e no cotidiano de seus habitantes. Porém os jornais também traziam
denúncias de problemas estruturais que atingiam a cidade e Benvenutti explora justamente
essas denúncias, especificamente aquelas feitas por segmentos que estavam descontentes com
sua cidade.
Esse descontentamento, como mencionado, ocorria porque já se havia criado um
imaginário de modernização e de progresso na população. Quem fazia essas reclamações era
um segmento consciente de seu direito legítimo e dos deveres e obrigações do prefeito e do
65
SANTOS, Ideário do progresso e cidades..., p. 88. 66
BONI, O espetáculo visto do alto..., pp. 48 e 49. 67
BENVENUTTI, Alexandre Fabiano. As reclamações do povo na Belle Époque : a cidade em discussão na
imprensa curitibana (1909-1916). Curitiba, 2004. Dissertação (mestrado em História). Universidade Federal do
Paraná. 68
Ibid., pp. 20 e 129.
17
Estado, valores inerentes ao pensamento republicano.69
Percebemos, enfim, que os periódicos,
além de anunciarem o desenvolvimento da indústria e do comércio e as alterações urbanas
processadas em Curitiba, traziam também as contradições dessa modernização, especialmente
através das reclamações dos cidadãos.70
Até aqui, procuramos mostrar que Curitiba, guardada as devidas proporções, também
estava inserida em um contexto de expansão do capitalismo e de modificações estruturais e
comportamentais que atingiram as cidades brasileiras e seus habitantes, desde meados do
século XIX. Para os anos iniciais do século XX, notou-se que as modificações no espaço
urbano geraram, muitas vezes, contradições: o centro da cidade era embelezado, novas
tecnologias nos meios de transporte, comunicação e entretenimento chegavam, diversos
prédios públicos eram construídos e/ou reformados; no entanto, a população mais pobre não
tinha acesso às melhorias urbanas mais básicas, como rede de esgoto e água potável, além de
sofrerem com o desemprego, a falta de moradia e a alta dos preços de alimentos e serviços.
Essas contradições eram expressas através dos periódicos, nas denúncias feitas tanto por
jornalistas como por pessoas comuns, e nos discursos de médicos, sanitaristas e policiais.
Contudo, como será abordado adiante, outro tipo de olhar, mais subjetivo e sem a finalidade
específica de construir um discurso sobre a cidade de Curitiba, também explorara essa
dimensão de transformações e contradições por que a cidade passava.
69
Ibid., p. 32. 70
Para além dos jornais e revistas, Maria Ignês de Boni aponta ainda a existência de diferentes tipos de discursos
que se contrapõem ao “discurso da história oficial”: o discurso sanitário, médico e policial. BONI, O espetáculo
visto do alto..., p. 53. Em relação a esse “discurso da história oficial” a autora refere-se, em especial, às obras de
Rocha Pombo e de Romário Martins, as quais trazem a imagem de “cidade ideal” sobre Curitiba, “onde divisões
e diferenças se acham ocultas”.
2. REMEMORANDO CURITIBA
Tendo mostrado como Curitiba foi tomada como objeto de estudo por diversos
historiadores que pretenderam evidenciar a inserção da cidade em um contexto de
transformações mais amplo, faz-se agora necessário explorar outra dimensão das
modernizações que se operaram na cidade. Nos trabalhos de Irã Dudeque, Rafael Sêga,
Marcelo Sutil e Ângela Brandão, o tema da reestruturação urbana de Curitiba, no início do
século XX, apresenta-se, quase que exclusivamente, ligado a discursos que privilegiam a
atuação de engenheiros e prefeitos e mostram a cidade de Curitiba em sintonia com o ideário
de ordem e progresso da época.
As impressões de determinados intelectuais sobre Curitiba se constituem em fontes
essenciais para a compreensão de aspectos que concernem às modificações estruturais da
cidade: obras, como as de Romário Martins e de Nestor Vítor do Santos, trazem dados
fundamentais sobre a Curitiba que começava a se destacar (ou que se pretendia destacá-la)
como uma cidade moderna. Contudo, como observou Maria Ignês de Boni, A Terra do
Futuro, de Nestor Vítor, e Curityba de outr’ora e de hoje, de Romário Martins, estão muito
atreladas aos discursos oficiais sobre a cidade.71
Apesar de esta abordagem ser possível, ela
não explora de forma satisfatória as contradições acarretadas pela modernização.
Sem dúvida, percebemos que havia uma consciência de modernidade, o que fazia com
que os habitantes de Curitiba visualizassem sua cidade como uma metrópole moderna, ou
como uma cidade que seguia os mesmos passos de Paris, Londres ou Rio de Janeiro rumo ao
progresso. No entanto, a possibilidade de análise de outros tipos de fonte, que não difundiam
o discurso oficial sobre a cidade, suscita outra percepção sobre o espaço urbano, a de que o
progresso e modernização das cidades não acarretam necessaria e exclusivamente
transformações positivas.
No trabalho de Alexandre Benvenutti, citado anteriormente, percebemos nas
reclamações de “cidadãos comuns”, publicadas no Diário da Tarde, que as modificações
operadas no meio urbano de Curitiba, entre 1913 e 1916, não atingiram todos os setores e, se
e quando atingiram, geraram, por vezes, insatisfações. De forma semelhante, Maria Ignês de
Boni também apontou a insatisfação de diferentes setores da sociedade curitibana com
questões como a falta de salubridade e a violência na cidade.
71
Cf. nota supra.
19
Apesar de não se focar na Curitiba dos anos iniciais do século XX, Antonio Cesar de
Almeida Santos também propõe uma abordagem sobre a cidade a partir de fontes não-
oficiais. Em Memórias e Cidade, ele faz uma análise, a partir de fontes orais, de como os
habitantes de Curitiba construíram em seus imaginários diferentes cidades. Segundo Santos,
era comum perceber que os moradores de Curitiba faziam comparações entre sua cidade e
outras; porém, o enfoque de seu estudo está na comparação entre diferentes momentos da
capital paranaense.72
De forma análoga às fontes orais utilizadas por Santos, que reconstruíam uma Curitiba
muito particular, determinados relatos escritos também colocam a cidade como pano de
fundo de histórias de vida. Trabalhar a história de uma cidade, bem como as suas
transformações, partindo apenas da leitura do espaço construído é, por si só, algo muito vago.
Para se ampliar a discussão sobre o processo de modernização de Curitiba do início do século
XX, é necessário, portanto, compreender os sentidos dessa cidade e como seus habitantes a
apreenderam; para isso, as rememorações servem como uma importante fonte.
2.1 CURITIBA E AS REMEMORAÇÕES DE INFÂNCIA
A utilização de relatos pessoais na historiografia é algo muito recente. De acordo com
Marieta de Moraes Ferreira, até meados dos anos 1970, relatos pessoais, memórias, histórias
de vida e biografias eram considerados “visões distorcidas”, pois não poderiam ser
considerados “representativos de uma época ou de um grupo”.73
Contudo, nos anos 1980,
passou-se a revalorizar a análise qualitativa e se recuperou a importância das experiências
individuais para a pesquisa histórica.74
A utilização de memórias como fonte está, portanto,
amparada por essa revalorização do individual no campo da história, visto que ela é o
elemento essencial constitutivo da identidade, seja a identidade individual ou coletiva.75
Buscando, justamente, revalorizar o relato pessoal enquanto fonte histórica, foram
selecionados para esse trabalho sete textos memorialísticos, nos quais os autores relembram a
cidade de Curitiba entre o final da década de 1880 e o final da década de 1910. Alguns relatos
trazem lembranças de uma cidade que existia em suas infâncias e de que se recordam com
72
SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Memórias e Cidade : depoimentos e transformação urbana de Curitiba
(1930-1960). 2.ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999, p. 113-114. 73
FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral : um inventário das diferenças. In: ______. Entre-vistas :
abordagens e usos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994, pp. 3 e 6. 74
Idem. 75
LE GOFF, Jacques. Memória. In: ______. História e Memória. 5 ed. Campinas: Editora da UNICAMP,
2003, p. 469.
20
carinho e saudosismo; outros apresentam comparações mais objetivas entre a Curitiba do
momento em que os autores escrevem e aquela que visitaram em algum momento de suas
vidas, ou mesmo de períodos muito anteriores.
No primeiro grupo de relatos – de lembranças mais subjetivas sobre a infância de seus
autores – temos o livro Mensagem da Infância76
, do novelista e jornalista curitibano Jaime
Balão Júnior (1891-1968). Esse livro foi escrito em 1957, quando Balão Júnior contava com,
aproximadamente, 66 anos. Trata-se de um romance autobiográfico ambientado na cidade de
Curitiba, na década final do século XIX. Nele, Balão Júnior relembra diversos momentos e
eventos de sua infância, porém não faz uma ligação cronológica muito clara entre tais
eventos; também são poucas as referências a datas ou a anos específicos. Em Mensagem da
Infância percebem-se quatro eixos temáticos abordados por Balão Júnior: a percepção do
autor sobre si próprio e sobre eventos muito pessoais que vivenciou; a vida em família; a
Revolução Federalista; e, a cidade de Curitiba. Esses temas não são abordados nessa ordem; o
autor os entrecruza e os retoma em diversos momentos do relato.
Ao tratar de si próprio, Jaime Balão Júnior se descreve como uma criança muito
sensível, frágil, triste e precoce, no que concerne às suas leituras e produção bibliográfica.
Com apenas 9 anos de idade, Balão Júnior acreditava que se tornaria escritor, pois fazia “eco”
de seu pai, já que tinha o mesmo amor pelas letras.77
Mas também acrescenta como influência
na sua trajetória profissional e pessoal a sensibilidade herdada da mãe, uma pianista:
“Ouvindo Schumann, tôdas as noites, tornei-me escritor.”78
Sobre os eventos pessoais, Balão
Júnior descreve os amores – primeiro por Lova, a empregada doméstica que trabalhava em
sua casa, e depois pela menina Olga – e discorre rapidamente sobre o tempo em que saiu de
Curitiba para estudar – primeiro no Rio de Janeiro e, em seguida, nos Estados Unidos e na
França.79
De forma bastante breve, Balão Júnior faz alusão às brincadeiras e aos amigos de
infância, quando relembra o carnaval e as brincadeiras à margem do Rio Ivo.80
Ainda no que
concerne a essa abordagem mais pessoal, o autor de Mensagem da Infância aborda sua
carreira como escritor, seu estilo e suas obras. A obra literária de Jaime Balão Júnior é
composta por romances, contos, novelas e teatro, que o autor caracteriza, citando Romário
Martins, como sendo uma “viva representação e uma fixação da paisagem do Paraná”81
.
76
BALÃO JÚNIOR, Jaime. Mensagem da infância. Curitiba: Papelaria Requião Limitada, 1957. 77
Ibid., p. 69. 78
Ibid., p. 24. 79
Ibid., pp. 80, 81, 82, 98, 99 e 128. 80
Ibid., pp. 46 e 100. 81
Ibid., p. 80.
21
Além da obra literária, outro assunto bastante explorado por Balão Júnior em seu
romance é a sua família, em especial seus pais. O escritor curitibano revela ter vivido em um
ambiente bastante ilustrado e intelectualizado: “Nasci, pois, sem exagêro pode afirmar-se,
entre poetas e tertúlias literárias, entre livros e músicas, e, meu „documento humano‟ se assim
se pode dizer, foi minha própria gente.”82
. A despeito de toda erudição e tradicionalidade do
nome de sua família, Balão Júnior afirma que eram pobres. Provavelmente, Balão Júnior
exagera nessa afirmação, pois ao longo de seu relato percebemos que sua família tinha
recursos, já que o autor revela que vivia em uma casa com várias empregadas e teve
condições de estudar fora, primeiro no Rio de Janeiro e depois no exterior.83
Outra
característica de sua família, retomada diversas vezes, é a religiosidade de todos os seus
membros, principalmente a de sua mãe, chamada carinhosamente de Dona Biluca, descrita
como uma mulher muito bondosa e caridosa com aqueles que vinham lhe pedir ajuda e
também com os empregados da casa.84
Sobre seu pai, Balão Júnior mostra-o como um
intelectual que partilhava dos ideais abolicionistas e republicanos.85
Essa caracterização do
pai, como sendo um intelectual politicamente engajado, é importante para compreender o seu
envolvimento na Revolução Federalista, o terceiro eixo temático explorado por Jaime Balão
Júnior, em Mensagem da Infância.
As referências à Revolução Federalista (1893-1895) estão presentes ao longo de todo o
relato memorialístico de Jaime Balão Júnior, ainda que ele não tenha a pretensão de fazer uma
descrição histórica desse evento. Mas afirma lembrar-se dele com certo pesar, mesmo sendo
muito pequeno à época: “Ah! A revolução federalista! Quantas recordações e complexos
afetivos, compensados, certamente, mas que me fizeram sofrer! Nunca me há de esquecer que
meu pai foi mártir da revolução, mártir moral.” O fato de seu pai ter participado e,
posteriormente, ter sido preso, é relembrado por Balão Júnior com orgulho, pois seu pai lutou
por um ideal e, de certa forma, lutou ao lado do Barão do Cerro Azul, um herói para Jaime
Balão Júnior.86
A percepção da Revolução Federalista na cidade de Curitiba também se constitui em
um aspecto interessante de Mensagem da Infância: “À rua das Flôres havia sempre grupos
exaltados que se ufanavam de Juca Tigre [maragato], e outros patriotas louvavam a ação
82
Ibid., p. 21. 83
Ibid., pp. 11, 21 e 22. 84
Ibid., p. 67. 85
Ibid., p. 27-28. 86
Ibid., p. 15.
22
heróica do grande Floriano”87
. Da mesma forma que Curitiba é mostrada nesse excerto, como
„pano de fundo‟ para um acontecimento marcante nas memórias de Jaime Balão Júnior, ela
aparece diversas vezes ao longo do romance. Balão Júnior não se atém à cidade de forma tão
específica como quando fala de suas obras e de sua família. A princípio, ele discorre sobre o
lugar onde nasceu e passou os primeiros anos de sua infância, a colônia do Água Verde88
. Ao
tratar dessa localidade, indica aspectos sobre os limites urbanos da Curitiba do final do século
XIX: “Meu vale da Água Verde, era uma terra que não tinha subsistência própria. Era o país
úmido, frio, o bairro colonial onde o menino tossia, a lama, os grulhas grunhindo nos velhos
quintais. Mas não tinha urbanas fronteiras, a pequena cidade, a fronteira era o pinhal.”89
Mais
do que um bairro de uma cidade, o Água Verde que emerge das lembranças de Balão Júnior é
um ambiente de aspecto ainda rural, uma colônia nos arredores da cidade, como tantas outras
existentes, no período.
Para abordar Curitiba de forma mais geral, Balão Júnior traz breves panoramas sobre a
cidade ao final e/ou no início de alguns capítulos do livro. Através desses panoramas, toma-se
conhecimento que, ao final da Revolução Federalista, por volta de 1895, a capital paranaense
começava a se inserir no rol de cidades brasileiras respeitadas por seu meio literário.90
E, com
a inauguração da estrada de ferro que liga Curitiba a Paranaguá, em 1885, houve um
crescimento do meio cultural como um todo, devido à chegada de imigrantes, além do
fomento à economia:
Curitiba crescia. Inauguravam-se colônias [...]. Os próprios fundamentos da minha
raça foram alemães e portugueses que, entre outros alienígenas úteis, se radicaram
no Paraná, trazendo-nos a aristocracia das virtudes e do bom caráter [...]; criaram e
colaboraram no desenvolvimento da nossa terra, como valores humanos e sociais de
alta benemerência. Na vida comercial urbana exerceram uma influência seletiva.91
Apesar desse relativo progresso, da chegada de imigrantes e do estímulo ao meio
literário, Jaime Balão Júnior revela algumas contradições: ao mesmo tempo em que
despontavam grandes literatos, intelectuais e/ou políticos eminentes paranaenses, como
Vicente Machado, Generoso Marques, Marcelino Nogueira, João Antônio Xavier e Afonso
Camargo, a cidade, aos seus olhos, era ainda muito “simples”. Em aparente contradição
menciona a existência de uma “vida cultural precária”92
, com poucos recursos culturais:
87
Idem. 88
Em sua narrativa, Jaime Balão Júnior trata a Colônia do Água Verde com a designação de bairro. 89
Ibid., p. 13. 90
Ibid., p. 21. 91
Ibid., p. 48. 92
Ibid., pp. 88, 111 e 122.
23
segundo ele, em Curitiba, por volta de 1890, “não havia desenvolvimento econômico nem de
transportes, não se conhecia o progresso na técnica, na agricultura, na indústria mas era
avançada e luminosa a cultura e o jornalismo”93
Jaime Balão Júnior finaliza seu romance memorialístico demonstrando que sua
intenção era a de mostrar que, em sua infância, deu-se a passagem do século XIX para o XX
e, mais que isso, “o fim de um mundo e o começo de outro mundo”94
.
Nessa mesma linha de rememorações subjetivas, outros três autores também
apresentam relatos de suas infâncias na cidade de Curitiba: Curitiba da minha saudade95
, de
América da Costa Sabóia (1899-?), Croniquinhas do menino96
, de Vasco José Taborda
(1909-1997), e Rememorando Curitiba97
, de Heitor Borges de Macedo (1892-?). Esses três
livros foram escritos entre 1978 e 1983, e possuem uma estrutura textual semelhante:
abordam a Curitiba dos anos iniciais do século XX, mas, ao contrário de Jaime Balão Júnior,
seus autores procuram focar suas lembranças mais na cidade e não tanto em si próprios.
Na apresentação do relato de América da Costa Sabóia, David Carneiro afirma:
“Memórias são sempre saborosas, forçosamente evocativas, e representa documento fixativo
da vida real. Se elas não existissem fixando certas épocas estas desapareceriam do que
constitui a sensação evolutiva do próprio mundo.”98
Percebe-se nessa definição de Carneiro, e
mesmo ao longo de todos os relatos, a preocupação com o esquecimento de momentos
saudosos vivenciados na cidade de Curitiba.
América da Costa Sabóia foi uma “professora bem consciente do seu valor e da sua
capacidade”, e, aos 78 anos de idade, pretendeu, através de um livro de memórias, mostrar
Curitiba “tal como ela era” no início do século XX.99
O recorte cronológico feito pela autora é
de 1904 a 1914, período em que viveu na casa dos avós para realizar seus estudos, dos 4 aos
15 anos de idade.
No relato de Sabóia são descritos alguns logradouros do centro de Curitiba, como as
ruas Cândido Lopes, Carlos de Carvalho, XV de Novembro e as praças Osório e Zacarias, e as
atividades comerciais e culturais que neles ocorriam, como festas, desfiles e apresentações de
corais. Segundo a autora, a ligação entre a Praça Osório e a Rua XV era uma região bem
93
Ibid., p. 153. 94
Ibid., p. 318. 95
SABÓIA, América da Costa. Curitiba da minha saudade : 1904-1914. Curitiba: Lítero-Técnica, 1978. 96
TABORDA, Vasco José. Croniquinhas do menino – minha Curitiba. Curitiba: Editora Lítero-Técnica, 1982. 97
MACEDO, Heitor Borges de. Rememorando Curitiba : no tempo dos bondinhos de burros. Curitiba: Lítero-
Técnica, 1983. 98
SABÓIA, Curitiba da minha saudade..., p. 7. (grifo nosso). 99
Ibid., p. 5.
24
movimentada à época, pois contava com as mais diversas lojas. Outro elemento destacado por
América Sabóia em relação a essa região do centro de Curitiba, e que também é apontado por
Nestor Vítor, n‟A Terra do Futuro, é a presença de imigrantes no comércio, sobretudo
alemães e italianos.100
Além do comércio, é importante ressaltar que a autora dá uma grande
atenção às lembranças que se referem às escolas onde estudou e às mestras com quem teve
aulas.
Para América Sabóia, a vinda do progresso para a capital paranaense está relacionada
à inauguração dos bondes elétricos, à chegada dos primeiros automóveis, à substituição dos
paralelepípedos pelo asfalto e ao aprimoramento e ampliação da iluminação pública. Contudo,
ela salienta que essa modernização fez com que Curitiba ficasse “mais civilizada, porém
menos fraternal”.101
Ainda em relação a essa conotação negativa dada ao progresso, e que está
presente ao longo de todo o relato, é curiosa a comparação feita por Sabóia entre Curitiba e as
pessoas que enriqueceram e perderam seu encanto e felicidade, pois mesmo quando a cidade
tinha iluminação precária, inundações e banhados, ainda havia “a alegria pura dos bons e o
encanto das coisas naturais”.102
De forma semelhante à América da Costa Sabóia, o poeta e jornalista Vasco José
Taborda, no livro Croniquinhas do menino, relembra sua infância na capital paranaense, nos
primeiros anos do século XX. Com, aproximadamente, 73 anos, Taborda se propôs a
reproduzir algumas “imagens” que embelezaram sua vida entre os anos de 1912 e 1919.103
Mas, ao contrário de América Sabóia, Vasco Taborda não se baseia exclusivamente em suas
memórias para escrever o seu relato: ao final do livro, encontra-se uma bibliografia com obras
dos escritores Romário Martin e Sebastião Paraná, além dos jornais Diário da Tarde, A
República e Correio do Paraná e as revistas A Rolha e Olho da Rua. Contudo, ao longo do
livro, Taborda não faz qualquer citação específica a essa bibliografia.
Em Croniquinhas do menino, apesar de tratar de suas próprias memórias, Taborda
não se refere a si próprio na primeira pessoa; prefere colocar-se como um personagem de seu
livro, o “menino”. Os lugares da cidade lembrados por esse menino são os centrais: em grande
parte do relato, há referências à Praça Tiradentes, pois é nela que ocorriam as manifestações
populares e também onde havia maior circulação de pessoas e variedade no comércio.
Taborda também destaca a região do Largo São Francisco, onde morava e onde seu pai tinha
100
Ibid., p. 15. 101
Ibid., p. 14. 102
Ibid., p. 11. 103
TABORDA, Croniquinhas do menino..., p. 45.
25
uma loja, a Praça Zacarias, onde ia buscar água no chafariz, e a Rua XV de Novembro, repleta
de lojas, padarias, confeitarias e opções de entretenimento.104
A narração de Vasco José Taborda não segue uma ordem cronológica muito rígida. O
autor inicia seu relato dando uma visão sobre a configuração do centro de Curitiba, em
especial de como era o comércio: cita o nome de diversas lojas da Praça Tiradentes e da Rua
XV de Novembro e lembra-se do Mercado Municipal como sendo uma “feira de Bagdá”105
.
Por vezes, Taborda relembra alguns eventos isolados, como um acidente automobilístico
envolvendo um motorista de “chofres” (carros de aluguel), a morte de um propagandista que
caiu de um terraço onde pendurava um anúncio e o dia em que quase foi atropelado pelo
bondinho.106
Sobre o bonde elétrico, inaugurado em 1913, é interessante destacar que, assim
como América Sabóia, ele o compreende como um símbolo da chegada do progresso à
cidade.107
Outro aspecto levantado por Vasco Taborda sobre a área central de Curitiba diz
respeito às pessoas que circulavam na cidade: havia muitos imigrantes, em especial no
comércio; era marcante a presença de homens e mulheres bem vestidos, caminhando pela
cidade nos fins de tarde; também eram vistos poetas e pessoas ilustres, como Romário
Martins, Emiliano Perneta e Euclides Bandeira.108
Em relação aos eventos que marcaram sua infância, Vasco José Taborda afirmar
recordar-se dos carnavais, do enterro do Cel. João Gualberto, em 1912, e, sobretudo, da
Primeira Guerra.109
Segundo Taborda, “todos” na cidade liam jornais e, por isso, tinham
condições de discutir assuntos como a guerra e a política. Obviamente, ao fazer essa
afirmação, Taborda recorda-se do meio onde via os adultos discutirem tais assuntos: a
barbearia. Portanto, ao dizer “todos”, o autor refere-se a um universo mais restrito com o qual
tinha contato, composto por homens de classe média alta que, assim como seu pai, gostavam
de discutir política.110
Nesse período, o autor diz lembrar-se que seu pai reclamava da alta dos
preços e da diminuição do movimento em sua loja (aparentemente, uma loja de „armarinho‟).
No entanto, apesar da Guerra ter sido algo bastante discutido e ter, inclusive, causado medo
nas pessoas, Taborda destaca que, de forma geral, ela não alterou o cotidiano da cidade: as
104
Ibid., pp. 5 e 7. 105
Ibid., p. 8. 106
Ibid., pp. 6, 7 e 8. 107
Ibid., p. 8. 108
Ibid., pp. 8 e 12. 109
Ibid., p. 13-17. Em relação ao enterro de João Gualberto e mesmo ao início da Primeira Guerra, pode-se
inferir que o autor reproduz um discurso que permaneceu no imaginário coletivo nos anos subseqüentes, pois,
tendo nascido em 1909, Vasco Taborda era muito jovem para realmente lembrar-se desses eventos. 110
TABORDA, Croniquinhas..., p. 17.
26
pessoas continuaram a ir à Igreja, os imigrantes continuaram a trazer seus produtos nas
carroças para vender no centro e as crianças, como ele, continuaram a brincar.111
Logo em seguida à Primeira Guerra, outro acontecimento de proporções mundiais
marca as memórias de Vasco José Taborda: a gripe espanhola. Segundo Taborda, começaram
a chegar notícias do Rio de Janeiro sobre a doença no ano de 1918 e, logo em seguida, a
doença já chegara também a Curitiba, matando pessoas de todas as classes sociais.112
Além da
gripe espanhola, a questão das doenças como um todo e da insalubridade em Curitiba também
é explorada ao longo de todo o livro. O autor revela que as regiões centrais da cidade eram
bastante sujas: o entorno da catedral, por exemplo, era uma região habitada por pessoas
humildes e cheirava mal, segundo Vasco Taborda.113
Mesmo que houvesse mictórios na
região central, era comum ver homens e mulheres urinando nas ruas. A presença de animais
nas ruas também era muito comum.114
Além da insalubridade no centro de Curitiba, havia o
problema com as águas estagnadas nos arredores da cidade – em especial na colônia do Água
Verde – que, segundo Vasco Taborda, contribuíram para a epidemia de tifo.115
Um último aspecto levantado sobre Vasco Taborda em Croniquinhas do menino é o
entretenimento e a vida social em Curitiba, quando revela que gostava de freqüentar os
cinemas da cidade e que era fã dos filmes americanos.116
Além do cinema, os habitantes de
Curitiba costumavam freqüentar bailes, em especial os imigrantes. Vasco Taborda lembra-se
que ouvia falar dos bailes dos alemães nas sociedades Saengerbund e Handwerk. Taborda
revela que ele mesmo chegou a freqüentar algumas festas nessas sociedades.117
Outro relato que pretende rememorar a cidade de Curitiba nos anos iniciais do século
XX é o de Heitor Borges de Macedo, intitulado Rememorando Curitiba: no tempo dos
bondinhos de burros. Na apresentação do livro, Macedo mostra que leu e se utilizou de outras
memórias para escrever as suas – dentre elas, os livros de América da Costa Sabóia e de
Vasco José Taborda. Seu objetivo é o de contribuir, assim como os outros autores, na
construção da história de Curitiba. Para elucidar essa idéia, utiliza a metáfora de que a história
da cidade pode ser entendida como uma colcha de retalhos, e que as suas rememorações,
transcritas em seu livro, seriam mais um retalho.118
111
Ibid., pp. 18 e 19 112
Ibid., pp. 27 e 28. 113
Ibid., p. 19. 114
Idem. 115
Ibid., pp. 41 e 42. 116
Ibid., p. 38. 117
Ibid., p. 34. 118
MACEDO, Rememorando Curitiba..., p. 3.
27
O livro também traz uma apresentação escrita por Graciette Salmon, que revela existir
uma preocupação com o esquecimento daquela Curitiba que Macedo pretende rememorar.
Salmon também revela que Macedo, além de se utilizar de outros livros de memórias,
recorreu a fontes jornalísticas para redigir suas recordações de Curitiba.119
Quase todos os
capítulos do livro trazem uma recordação e, como se para corroborar o que o autor relata,
também trechos de matérias de jornais da época. Outro aspecto importante sobre a obra de
Heitor Borges de Macedo é que ela conta com fotografias e ilustrações feitas pelo próprio
autor.
Em relação ao relato de Macedo, não se tem certeza de que anos o autor está tratando.
Sabe-se que é a primeira década do século XX. Macedo só faz referências a datas quando,
claramente, está tratando de temas que não são suas memórias, mas fatos que considera
relevantes para a história da cidade, e que podem ser encontrados em documentos oficiais e
fontes jornalísticas, ou ainda quando trata dos tempos de escola e de magistério.
Da mesma forma que América Sabóia, Heitor Macedo também descreve a casa onde
morava, na Praça Carlos Gomes, junto à rua 1º de Março (atual Rua Monsenhor Celso), e
relembra o comércio do centro da cidade, em especial o da Rua XV de Novembro, onde seu
pai tinha uma alfaiataria.120
Ele também cita construções nas ruas próximas e dá destaque para
o Mercado Municipal e o comércio da redondeza. Segundo Macedo, além do Mercado
Municipal, o fornecimento de gêneros alimentícios ainda era feito por colonos, reiterando as
informações dos outros memorialistas aqui trabalhados. O autor relembra que as colonas, com
seus lenços coloridos, oferecendo produtos nas portas das casas, “ainda davam aspecto
característico às nossas ruas”.121
O escritor Nestor Vítor também destaca a presença dos
“colonos carroceiros” em Curitiba. Contudo revela que eles eram poucos no ano de 1912 se
compararmos à década de 1880.122
Em 1912, dá-se a demolição do velho Mercado Municipal e, em seu lugar, é
construído o Paço da Liberdade, prédio que serviu de prefeitura à época. Para Heitor Macedo
esse fato teve grande relevância para a cidade, pois foi a partir desse momento que Curitiba
começou a “se enfeitar”; esse embelezamento começou pela reestruturação do entorno do
antigo Mercado, a atual Praça Generoso Marques, que se tornou um ambiente mais agradável
e livre dos animais e dos maus odores.123
119
Ver MACEDO, Rememorando Curitiba..., pp. 11 e 12. 120
Ibid., p. 17. 121
Ibid., p. 73. 122
SANTOS, Nestor Vítor dos. Terra do Futuro..., p.85. 123
MACEDO, Rememorando Curitiba..., p. 74.
28
Questões que concernem à salubridade e ao saneamento da Curitiba do início do
século XX estão presentes nos três relatos, o de Macedo, o de Sabóia e o de Taborda. Heitor
Macedo relembra que o saneamento era algo precário em Curitiba, mas que sua casa estava
“de acordo com o progresso dos conhecimentos de higiene”. Nesse momento o autor revela,
pela primeira vez, que a precariedade sanitária era um dos aspectos que não deixaram
saudade.124
Percebe-se que a imagem que Heitor Macedo e América Sabóia têm de certos
aspectos do passado que deixam ou não saudades é distinta. Como mencionado anteriormente,
Sabóia, a despeito das inundações e da precariedade de serviços públicos, ainda se recorda
com saudosismo da cidade de sua infância e dos elementos negativos que a compunham. Em
relação ao abastecimento de água, os três autores – América Sabóia, Vasco Taborda e Heitor
Macedo – destacam o chafariz da Praça Zacarias (hoje, resta uma torneira, a título de
monumento, para registro dessa memória). Segundo Sabóia, os moradores iam suprir-se de
água nesse chafariz, mas também podiam contar com os “pipeiros”, que transportavam água
em carros tanques puxados por cavalos e a vendiam para a população.125
Sobre o
abastecimento de água e a importância do chafariz da Praça Zacarias, Heitor Macedo, além de
destacar a função dos “pipeiros”, relembra as brincadeiras com água no Carnaval.126
Outro
aspecto presente nos relatos de Heitor Macedo e América Sabóia e que concerne, de certa
forma, à salubridade é a presença do Rio Ivo e suas constantes inundações. Sobre essa
questão, América Sabóia levanta o fato de, já àquela época, haver poluição, pois as pessoas
jogavam lixo nesse rio, o que contribuía para as constantes inundações.127
No relato de Heitor Macedo, muito mais do que nos relatos de Sabóia e de Taborda, e
mesmo no de Nestor Vítor, a cidade de Curitiba é encarada como pano de fundo para a
atuação de personagens ilustres, como o Dr. Victor Ferreira do Amaral, o artista Paulo
d‟Assumpção e o músico Bento Mossurunga. Outro personagem ilustre abordado por Macedo
é seu bisavô, José Borges de Macedo, primeiro prefeito de Curitiba. No entanto, o trecho do
livro em que Macedo trata de seu ilustre antepassado pode ser completamente desconsiderado
como uma recordação, já que o autor não conviveu com ele, ao contrário do que se passou
com os outros personagens citados acima.
124
Ibid., p. 21. 125
SABÓIA, Curitiba da minha saudade..., p. 37. 126
MACEDO, Rememorando Curitiba..., p. 23-24. 127
SABÓIA, Curitiba da minha saudade..., p. 24.
29
Outro ponto em que Heitor Macedo e América Sabóia se assemelham é o tratamento
que dão às lembranças das escolas. Da mesma forma que Sabóia, Macedo relembra os nomes
dos mestres, disciplinas, dificuldades de aprendizado, os colegas.128
Ao final do relato de Macedo toma-se conhecimento que o recorte cronológico de sua
rememoração encerra-se no ano da chegada dos bondes elétricos a Curitiba, em 1913.129
Anteriormente em seu texto, Macedo trata da inauguração dos bondinhos movidos à tração
animal, em 1887, mostrando que esta foi uma inovação do final do século XIX. Sobre a
inauguração dos bondes elétricos, Macedo também a encara como uma inovação, porém
destaca a pouca popularidade desse meio de transporte devido ao alto custo do serviço.130
2.2 CURITIBA E AS CRÔNICAS DE UMA CIDADE
Ao lado de rememorações, como as de Balão Júnior e América Sabóia, outros textos
memorialísticos também tiveram Curitiba como personagem. Mais objetivos que os
anteriormente citados, os livros de Nestor Vítor dos Santos (1868-1932) – Terra do
Futuro131
–, de Euclides Bandeira (1876-1947) – Cronicas Locaes132
– e de Mário
Marcondes de Albuquerque (1915-1998) – Curitiba que meu tempo guardou133
–
comparam reminiscências pessoais a dados encontrados em crônicas e outras fontes históricas
sobre a Curitiba do final do século XIX e início do século XX.
Nestor Vítor dos Santos, a mando do presidente do estado do Paraná, Afonso
Camargo, escreve, em 1912, o livro Terra do Futuro: impressões do Paraná. Nesta obra, o
escritor parnanguara se propõe a contar a história do Paraná de uma forma inusitada. Ao invés
de fazer uma narrativa seguindo uma ordem cronológica – como era recorrente para os
autores de crônicas e obras históricas da mesma época –, Nestor Vítor opta por uma „ordem
geográfica‟: como se estivesse fazendo uma viagem de leste a oeste pela província, o autor
inicia o livro abordando Paranaguá e o litoral, para, em seguida, „subir a serra‟ e passar pelos
três planaltos paranaenses. Nessa „viagem‟, são tratados aspectos geográficos, históricos,
econômicos e sociais de todo o Paraná. Ao final, Nestor Vítor traz um capítulo em que aborda
questões atuais (de 1912) sobre o estado.
128
MACEDO, Rememorando Curitiba..., p. 91-108. 129
Ibid., p.134. 130
Ibid., p. 36. 131
SANTOS, Nestor Vítor dos. A Terra do Futuro... 132
BANDEIRA, Euclides. Cronicas Locaes. Curitiba: Tipografia da Escola de Artífices, 1941. 133
ALBUQUERQUE, Mário Marcondes de. Curitiba que o meu tempo guardou. Curitiba: Editora Lítero-
Técnica, 1986.
30
Em relação à cidade de Curitiba, Nestor Vítor apresenta, inicialmente, um capítulo
sobre a “velha” Curitiba, em que apresenta informações sobre a fundação da cidade, as
correntes migratórias, a aceleração do desenvolvimento econômico com o término da
construção da estrada da Graciosa (1873) e a vida intelectual – escritores e publicações – da
cidade nas duas décadas finais do século XIX.134
Seguem-se a esse capítulo outros cinco, nos
quais Nestor Vítor discorre sobre a “nova” Curitiba – a cidade que revisita, em 1912, depois
de ter permanecido 27 anos fora. Sobre essa Curitiba de 1912, Nestor Vítor discorre sobre os
seguintes aspectos: o crescimento populacional, a reestruturação urbana – observada
sobretudo no aumento do número de construções destinadas à moradia, ao entretenimento e à
prestação de serviços na área da saúde e do policiamento, na arborização e no embelezamento
de praças –, a mudança na atitude de homens e mulheres, o fomento da indústria, em especial
a do mate, e o melhoramento da instrução pública.135
Para elaborar Terra do Futuro, Nestor Vítor baseou-se em livros sobre a história do
Paraná, de autores como Romário Martins, Rocha Pombo e Sebastião Paraná, em relatos de
viajantes, como o de Avé-Lallemant, em relatórios da Secretaria de Obras Públicas da
província e em periódicos. Além dessa documentação „oficial‟, Nestor Vítor apresenta
também informações baseadas em correspondência que mantinha com amigos enquanto viveu
fora da cidade, e em suas lembranças. Nos seis capítulos em que aborda a história da capital
paranaense e suas transformações econômicas, sociais, culturais e urbanas, Nestor Vítor faz,
constantemente, comparações entre a Curitiba que conhecera em 1885 e aquela que revisitava
em 1912.
Na obra Cronicas Locaes, o jornalista e poeta Euclides Bandeira também se propõe a
produzir relatos sobre a cidade de Curitiba. Contudo, ao contrário de todas as obras analisadas
neste trabalho, o livro de Bandeira não apresenta uma narrativa linear. Na apresentação de
Cronicas Locaes, Euclides Bandeira revela que não tem a pretensão de escrever a história de
Curitiba, e que apenas reuniu pequenos artigos relativos à cidade para produzir seu livro.136
Grande parte das crônicas apresentadas por Bandeira diz respeito a eventos ocorridos
muitos anos (séculos, até) antes de ele ter nascido, como a fundação de Curitiba (1693) e o
primeiro aniversário da emancipação política do Paraná (1854).137
Essas crônicas foram,
provavelmente, produzidas com base em manuais de história. O autor também faz referência a
periódicos, como os jornais Diário da Tarde e 19 de Dezembro. Assim, dentre os 41 textos
134
SANTOS, Nestor Vítor dos. A Terra do Futuro..., p. 69-80. 135
Ibid., p. 81-176. 136
BANDEIRA, Cronicas..., p. 8. 137
Ibid., pp. 22-29.
31
apresentados, em apenas três Euclides Bandeira relata recordações pessoais: “Saparia”,
“Característica pitoresca” e “Ano Funesto”. Na crônica “Saparia”, o autor recorda, sem
especificar o ano, que havia um tempo em que, bastando apenas a ameaça de chuva, a cidade
era infestada por sapos. Ainda assim o autor revelar sentir saudades daquela época:
É verdade que naqueles tempos – apesar de tudo, que saudades! – não havia bondes
elétricos, onibus e automoveis furiosos, nem motocicletas ensandecidas.
Precisamente quando esses vehiculos chegaram, transportando os trofeus do
Progresso, eles se foram, os tristes batraquios para os charcos dos suburbios.138
Novamente encontramos a leitura de que o progresso também traz mudanças que,
muitas vezes, alteram um modo de vida arraigado e pitoresco. Sobre a presença constante dos
sapos, podemos inferir que Bandeira relacionava esses animais a um momento em que
Curitiba era mais simples e melhor de se viver. Já Nestor Vítor traz uma visão mais negativa
dos batráquios – relaciona-os a um momento em que Curitiba mais se assemelhava a uma
aldeia, repleta de problemas de saneamento que só prejudicavam sua população.139
Na crônica “Característica pitoresca”, Euclides Bandeira refere-se a um fato recorrente
em todas as rememorações: a presença dos colonos e suas carroças no centro da cidade, onde
vinham vender seus produtos. O autor revela que, na década de 1930, momento em que
produz esse seu relato, a presença dessas carroças ainda se fazia constante no cotidiano de
Curitiba. É interessante notar que, para Bandeira, a presença desses imigrantes é algo negativo
para a cidade, porque pertence a um passado antiquado e de pouco desenvolvimento: “Isto
constitue um dos aspectos peculiares de nossa terra e, por isso mesmo, deve desaparecer...
Precisamos progredir!”140
.
Na crônica “Ano funesto”, Euclides Bandeira discorre sobre diversas epidemias que
ocorrem em Curitiba, desde 1853: tifo, varíola, escarlatina etc., destacando, porém, a
epidemia de enterite que, em 1912, matou muito mais do que outras doenças: “Foi realmente
um ano funesto. Ao recordal-o recresce a saudade daquela Curitiba antiga”.141
Ao final de
Cronicas Locaes, Bandeira apresenta uma subseção do livro, intitulada “Silhuetas”142
, onde
apresenta artigos contendo o perfil e as realizações de algumas pessoas ilustres para a cidade
de Curitiba, como Francisco Xavier da Silva, Ermelino de Leão e Emiliano Perneta.
138
Ibid., p. 30. 139
SANTOS, Nestor Vítor dos. Terra do Futuro..., p. 74. 140
BANDEIRA, Cronicas..., p. 73. 141
Ibid., p. 81. 142
Ibid., p. 109-171.
32
Em Curitiba que meu tempo guardou, de Mário Marcondes de Albuquerque (1915-
1998), encontramos um relato muito próximo daqueles de caráter subjetivo. Contudo,
Marcondes, além de apresentar suas reminiscências de infância na cidade de Curitiba, trata de
eventos que remetem aos séculos XVII, XVIII e XIX – período muito anterior ao seu
nascimento – com o intuito de escrever a história de sua cidade. Já na introdução do livro, o
autor revela que suas reminiscências podem ajudar a expor acontecimentos que tiveram
relevância histórica para a capital paranaense.143
Mário Marcondes não especifica de que época de sua vida está falando; simplesmente
inicia seu relato demonstrando que se recorda de um momento em que a cidade de Curitiba
não possuía ainda grandes avenidas. Marcondes lembra-se também da rua onde morava (Rua
Lamenha Lins) e da divisão da cidade em “zonas” de ocupação de diferentes etnias, assunto
que retoma mais posteriormente, ao tratar de aspectos da imigração em Curitiba.144
É interessante observar que, ao longo de quase todo o relato, Mário Marcondes faz
alusão a questões esportivas, em especial ao futebol: recorda-se dos gramados onde jogava
futebol com os amigos, os diversos times da cidade e seus jogadores.145
Além dos jogos dos
times locais, Mário Marcondes gostava de acompanhar os jogos das equipes de São Paulo e
do Rio de Janeiro, informando que, na década de 1920, para acompanhar esses jogos era
preciso reunir-se na Rua XV de Novembro, onde um funcionário da Gazeta do Povo,
recebendo as informações pelo telégrafo, anunciava os lances e gols das partidas.146
Nesse
momento, o autor passa a destacar a importância da Rua XV de Novembro para o convívio
social dos curitibanos. Segundo Marcondes, essa era a rua “de todos os acontecimentos”, pois
nela ficavam os cinemas e os cafés; era onde se reuniam os estudantes da Universidade, onde
se concentrava o comércio, onde podiam ser vistas pessoas ilustres.147
Mário Marcondes dedica um capítulo de seu livro aos bondinhos e ao itinerário que
eles faziam na cidade de Curitiba. Ao relembrar as várias ruas por onde passavam as linhas do
bondinho, ele revela onde moravam algumas pessoas ilustres da cidade, como Caetano
Munhoz da Rocha e Francisco Negrão, e onde ficavam algumas construções, como o
Castelinho do Batel (Castelo Luiz Guimarães) e o Lyceu Rio Branco.148
Marcondes conta a
história do surgimento dos primeiros bondes à burro em Curitiba, em 1887, e sua substituição
pelos elétricos, em 1913. Apesar de estes serem considerados muito modernos à época, o
143
ALBUQUERQUE, Curitiba..., p. 6. 144
Ibid., pp. 7 e 8. 145
Ibid., pp. 13-15. 146
Ibid., p. 17. 147
Ibid., p. 20. 148
Ibid., p. 24-26.
33
autor revela que eram superlotados. Para confirmar sua crítica, Marcondes traz um excerto de
uma matéria da Gazeta do Povo sobre o assunto:
quem observa os bondes da South, aos domingos, durante a tarde, fica abismado
com a sorte do povo curitibano. Há passageiros sentados, em pé, pelos estribos,
pendurados pelas balaustradas e pelos próprios pára-choques. As cores dos bondes
desaparecem.149
Assim como todos os memorialistas apresentados, Mário Marcondes também se
debruça sobre o tema da imigração. Primeiramente, o autor retoma a questão da concentração
de nacionalidades de imigrantes em regiões distintas da cidade. Segundo Marcondes, os
alemães estabeleceram-se na Praça Tiradentes e do centro histórico; os italianos, em Santa
Felicidade; os poloneses, nos na região do Pilarzinho e Abranches; e os ucranianos, os quais o
autor chamava de “russos” concentravam-se na região do Rebouças, próximo à Igreja do
Imaculado Coração de Maria.150
Marcondes levanta alguns aspectos históricos sobre a vinda desses imigrantes (quando
vieram e motivações) e como procuravam manter e também difundir sua cultura através da
fundação de sociedades. Ao final desse capítulo, o autor discorre sobre o destino que muito
imigrantes e seus filhos tiveram na cidade: “Muitas fortunas se fizeram como dos Hauer,
Müeller, Weiss, Carnascialli, Parolim, Demeterco e outros. A maioria, entretanto, enfileirou-
se entre os integrantes da classe média e muitos apenas ficaram como assalariados.”151
Em seguida, Mário Marcondes dedica um capítulo ao entretenimento dos curitibanos.
Segundo o autor, muitas pessoas, em especial as crianças, gostavam de fazer passeios nas
proximidades de Curitiba, onde iam tomar banho em alguns riachos: no Barigui, na
Cascatinha de Santa Felicidade e no tanque do Bacacheri. As famílias com melhores
condições financeiras viajavam para o litoral nos finais de semana.152
No centro de Curitiba,
era a Rua XV de Novembro que concentrava mais opções de entretenimento. Marcondes
relembra que as pessoas gostavam de se reunir nos diversos bares, cafés e restaurantes da Rua
XV de Novembro, em especial no Bar e Restaurante Paraná, “um dos exemplares mais
freqüentados em épocas passadas.”153
Outra opção de lazer que a Rua XV oferecia era o
149
Ibid., p. 26. 150
Ibid., pp. 29, 34, 38 e 40 151
Ibid., p. 42. 152
Ibid., p. 47. 153
Ibid., p. 51.
34
cinema. Ao recordar-se dos cinemas, Marcondes faz um breve histórico da chegada do
cinematógrafo a Curitiba e do surgimento do Parque Coliseu e do Teatro Guaíra.154
Ao final de seu livro, Mário Marcondes traça um breve histórico sobre a fundação de
Curitiba e sua elevação à capital da província, destacando elementos sobre a evolução urbana
da cidade. Primeiramente, Marcondes salienta a atuação do engenheiro Pedro Taulois,
considerado pelo autor o primeiro urbanista e planejador da cidade. Citando a obra Curityba
de outr’ora e de hoje, de Romário Martins, Marcondes revela que Taulois, já em 1857, havia
proposto a correção e alinhamento de ruas centrais, sugestão que não foi acatada pelas
autoridades da época.155
Citando também outras figuras ilustres, como Victor Ferreira do
Amaral e Pamphilo d‟Assumpção, Marcondes levanta aspectos sobre a rusticidade de alguns
logradouros da cidade, o péssimo estado das estradas e outras questões que também foram
levantadas pelos outros memorialistas, como a presença dos sapos, a prosperidade com a erva-
mate, as novas construções, etc.156
Segundo Marcondes, as mudanças operadas no meio
urbano de Curitiba, nas décadas iniciais do século XX, serviram, na verdade, como “ensaios”
para a verdadeira modernização da cidade, que viria a acontecer na década de 40, com o plano
Agache, durante o governo de Manoel Ribas.157
2.3 CURITIBA NA MEMÓRIA COLETIVA
Mário Marcondes, ao finalizar seu relato sobre a cidade que seu “tempo guardou”,
reforça a idéia de que as reminiscências são importantes para a construção da história de
Curitiba:
O que se pode dizer mais sobre Curitiba? Que nós a amamos, que as reminiscências
fazem parte da história, que recordar é viver? De fato, tudo isso faz parte da história
da cidade, da sua sociedade, dos amigos.158
Assim, após a apresentação de nossas fontes, interessa-nos mostrar, enfim, a cidade
que emerge dessas rememorações e crônicas, as quais, de fato, são produções individuais.
Contudo, ficou demonstrado acima que, em vários momentos, estávamos frente a lembranças
que expunham seu caráter coletivo, necessário para compor os relatos produzidos.
154
Ibid., pp. 52 e 53. 155
Ibid., p. 63-64. 156
Ibid., p. 64-72. 157
Ibid., p. 77. 158
Ibid., p. 90.
35
Para diversos autores que estudam questões relacionadas à memória e ao caráter
coletivo de sua constituição, é inegável a contribuição do sociólogo francês Maurice
Halbwachs (1877-1945), que foi, segundo Ecléa Bosi, um dos principais estudiosos sobre
memória e história pública. Considerado um continuador das idéias do também sociólogo
francês Émile Durkheim, no que concerne os estudos sobre a precedência do fato social sobre
os fenômenos individuais, Maurice Halbwachs, nas obras Les cadres sociaux de la mémoire e
A memória coletiva, alterou o enfoque que se dava até então aos fenômenos como a
percepção, a consciência e a memória.159
No livro A memória coletiva, Halbwachs propõe que todas as lembranças do
indivíduo são construídas de forma coletiva, visto que não há possibilidade de estar/viver
sozinho em sociedade. Mesmo que essas lembranças tratem de eventos particulares ou de
objetos que só tenham sido vistos pelo indivíduo, elas ainda são influenciadas pelos diferentes
grupos de convívio – família, igreja etc. Para ilustrar essa idéia, Halbwachs demonstra que se
fizesse um passeio pelas ruas de uma cidade – no caso, Londres – ora com um amigo
arquiteto, ora com um amigo historiador, veria a cidade de formas diferentes: no primeiro
caso, atentaria para as construções e suas disposições no espaço urbano; no segundo caso,
aprenderia a que época pertence o traçado das ruas e quais “incidentes notáveis” nelas
decorreram.160
A partir desse exemplo, pode-se refletir sobre o fato da memória, além de ser
construída coletivamente, ser, justamente, uma reconstrução. Por mais que os indivíduos se
esforcem para lembrarem-se do passado e pretendam evocar as mesmas sensações e emoções
vividas outrora, isso não é possível.161
Ainda no que diz respeito à questão da reconstrução do passado nas memórias, Ecléa
Bosi, fazendo referência à obra Les cadres sociaux de la mémoire, traz o exemplo da releitura
de um livro: quando vamos reler um livro de infância, esperamos sentir as mesmas sensações
de quando lemos o livro pela primeira vez. Contudo, deparamo-nos com a sensação de estar
lendo um livro novo, pois percebemos detalhes e passagens que não havíamos notado
anteriormente. Isso se dá pelo fato do indivíduo do presente ter adquirido uma visão crítica
sobre si e sobre o mundo que o rodeava no passado.162
Isso significa que as lembranças, as
memórias, são produzidas a partir do indivíduo que se recorda.
159
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade : Lembranças de velhos. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994,
p. 53. 160
HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Paris: Presses Universitaires de France, 1950, p. 2 161
BOSI, Memória e Sociedade..., p. 57. 162
Idem.
36
No caso específico desse trabalho, a pertinência da utilização de relatos pessoais como
fonte está no fato de se poder extrair da rememoração individual de pessoas que viveram em
Curitiba no início do século XX, aspectos que traduzem o imaginário coletivo sobre uma
cidade que passava por reestruturações nesse período.
No entanto, antes de se ater ao imaginário coletivo sobre a cidade, é preciso levar em
conta a preocupação, por vezes evidente, de alguns desses memorialistas em preservar a
memória. Davi Carneiro, ao apresentar o livro de América Sabóia, justifica o relato da autora
como sendo um fixador de certas épocas163
, ou seja, o fato de Sabóia, bem como os outros
autores apresentados, prestar-se ao trabalho de escrever suas rememorações evitaria o
esquecimento e desaparecimento de tais épocas. Essa questão também é analisada por Walter
Benjamin, em O Narrador. Nesse texto, Benjamin se propõe a refletir sobre as características
de um narrador ideal e da utilidade da “arte de narrar” para seus ouvintes, a qual começou a
entrar em decadência em decorrência do advento e da valorização do romance e da
informação rápida difundida pela imprensa. Segundo Benjamin, a relação entre o narrador e
seu ouvinte “é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado.”164
Havendo essa
conservação da narração das memórias, o desaparecimento de certas épocas, experiências e
ensinamentos poderia ser evitado.
Segundo Ecléa Bosi, a preocupação com o esquecimento é uma constante entre as
pessoas idosas. Isso porque, em nossa sociedade industrial, quando o indivíduo deixa de deter
um papel ativo e percebe que, muitas vezes, sua “obra” não terá continuidade nas mãos de
seus filhos, resta-lhe recordar.165
Heitor Borges de Macedo, que publica Rememorando
Curitiba aos 92 anos, exprime essa idéia de forma bastante explícita na apresentação de seu
livro, quando diz temer o esquecimento, entre as futuras gerações, da Curitiba do início do
século XX, a cidade de sua infância.166
Além da preocupação com o esquecimento, outra característica recorrente entre
narradores de memórias é a percepção de que sua reminiscência se interliga a outras,
contribuindo para a construção de uma história geral, mais ampla. Sobre essa questão, Walter
Benjamin demonstra que os narradores, ao transmitirem conhecimento através das gerações
por meio de suas reminiscências, formam uma espécie de “rede” em que “todas as histórias
163
SABÓIA, Curitiba da minha saudade..., p. 7. 164
BENJAMIN, Walter. O Narrador : considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. IN: ______. Obras
escolhidas : Magia e técnica, arte e política. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 210. 165
BOSI, Memória e Sociedade..., pp. 63 e 77. 166
MACEDO, Rememorando Curitiba..., p. 11.
37
constituem entre si. Uma se articula na outra”167
. Mário Marcondes e Heitor Borges de
Macedo justificam a importância de seus livros pela contribuição das reminiscências neles
contidas – suas histórias pessoais – para a construção da história da cidade de Curitiba, que
nesse caso pode ser encarada uma história mais ampla. Para Marcondes, suas recordações
contribuem para a história da cidade, pois expõem acontecimentos que tiveram relevância
histórica.168
Já Heitor Macedo aproxima-se da idéia de “rede” de reminiscências expressa por
Benjamin ao comparar a história da cidade de Curitiba a uma colcha de retalhos, composta
por inúmeras rememorações.169
No que concerne especificamente à questão das memórias sobre a cidade, nos relatos
antes apresentados, foram notados diversos aspectos que traduzem o imaginário coletivo
sobre o momento de reestruturação urbana por que Curitiba passou, ao final do século XIX e
início do século XX. Seja tratando questões bastante pessoais, seja abordando aspectos mais
objetivos, a cidade de Curitiba aparece como pano de fundo dessas rememorações. Observa-
se que seus autores percebiam as modificações operadas em Curitiba. No entanto, não
demonstram essas percepções como parte de um projeto para modernizar a capital paranaense
e igualá-la à capital da República. Para América da Costa Sabóia, Heitor Borges de Macedo,
Vasco José Taborda e outros, a chegada do progresso parece despontar gradativamente
através de alguns elementos, como a instalação do bonde elétrico e o embelezamento de
regiões centrais da cidade.
A palavra „progresso‟ aparece com freqüência nos relatos, como se observa em uma
passagem de Croniquinhas do menino, de Vasco Taborda, sobre o bonde: “o menino viu
ainda, em 1913, os novos bondes elétricos, amarelos, de janelas largas e campainhas
tilintantes. Que progresso!”.170
Contudo, faz-se necessário ressaltar que, de forma geral, os
autores percebem contradições e mesmo conseqüências negativas acarretadas por esse
progresso. Para América Sabóia, elementos da modernidade, como os bondes elétricos, os
automóveis, a iluminação elétrica civilizaram a cidade, mas, ao mesmo tempo, tornaram-na
menos fraternal.171
Nas rememorações que mais se assemelham a crônicas (relatos de Nestor
Vítor, de Euclides Bandeira e de Mário de Albuquerque), é recorrente a imagem contraditória
entre uma cidade que começava a exibir características modernas – com novas construções,
iluminação elétrica e meios de transporte modernos – e elementos que denunciavam seu
167
BENJAMIN, O Narrador..., p. 211. 168
ALBUQUERQUE, Curitiba..., p. 6. 169
MACEDO, Rememorando Curitiba..., p. 3. 170
TABORDA, Croniquinhas..., p. 8. 171
SABÓIA, Curitiba..., p. 14.
38
provincianismo, como a presença de imigrantes que vinham ao centro da cidade em carroças
para venderem seus produtos coloniais e o cheiro campesino que Curitiba ainda possuía.
Euclides Bandeira, por exemplo, condena a chegada do progresso, „transportado‟ pelos novos
meios de transporte, que destruiu um modo de vida simples.
Nestor Vítor levantou outro aspecto contraditório do progresso em Curitiba: viver na
capital paranaense tornara-se mais caro, ao final dos anos 1910. Segundo Vítor, a cidade
estava crescendo, terrenos e imóveis começavam a valorizarem-se e, conseqüentemente,
gerava-se a alta dos aluguéis.172
Outro fator que encarecia a vida em Curitiba era o aumento
de impostos sobre diversos produtos, bem como o aumento das taxas sobre o fornecimento de
eletricidade.173
Além dessas rememorações comuns, que giram em torno dos mesmos temas – a
chegada do bonde elétrico, o embelezamento de praças, as contradições acarretadas pelo
progresso etc. –, destaca-se ainda a forma semelhante como dois autores reconstruíram suas
memórias. A partir das reminiscências de Heitor Borges de Macedo e de Vasco José Taborda,
percebe-se que esses autores possuem histórias de vida parecidas: ambos eram filhos de
comerciantes de classe média alta, viveram no centro de Curitiba e freqüentaram os mesmos
ambientes da cidade. Além disso, ambos reconstruíram suas memórias de forma análoga,
recorrendo a outras fontes que pudessem corroborar suas lembranças. Heitor Borges de
Macedo, além de se utilizar de outros livros de rememorações sobre Curitiba e, obviamente,
de suas próprias recordações, traz, em quase todos os capítulos de seu livro, trechos de
matérias de jornais da época, fotografias e ilustrações. Já Vasco José Taborda não faz menção
direta a outras fontes; contudo, ao final de seu livro, apresenta suas referências bibliográficas.
A utilização de fontes que venham a confirmar o discurso memorialístico dos autores
citados acima evidencia a preocupação deles com a coerência da reconstrução do passado.
Essa valorização da informação – essencialmente a informação jornalística – é, segundo
Benjamin, um dos motivos para a extinção da narrativa. A narrativa, para esse autor, não deve
ser acompanhada de explicações. Porém, o que vem se observando – segundo Benjamin,
desde a consolidação da burguesia – é que a valorização da experiência individual só se dá
quando há o respaldo da informação produzida pela imprensa.174
Analisando por esse ângulo,
Heitor Borges de Macedo e Vasco José Taborda não poderiam ser considerados narradores
ideais e estariam, inclusive, contribuindo para a derrocada da arte de narrar.
172
SANTOS, Terra do Futuro..., p. 91. 173
BONI, Maria Ignês M. de. O espetáculo visto de alto : vigilância e punição em Curitiba (1890-1920). São
Paulo, 1985. Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, pp. 50 e 51. 174
BENJAMIN, O Narrador..., pp. 202 e 203.
39
Euclides Bandeira e Mário Marcondes também se utilizam de outras fontes para
elaborar seus textos. Contudo deve se destacar que, diferentemente de Macedo e Taborda, as
motivações Bandeira e de Marcondes não são de construir relatos tão pessoais sobre suas
infâncias em Curitiba. Euclides Bandeira revela apenas ter reunido artigos que tem em
comum temas relacionados à cidade de Curitiba, enquanto que Mário Marcondes acredita que
o que escreve – tanto as suas memórias de infância quanto os dados históricos sobre a
fundação e evolução de Curitiba – tem relevância para a construção da história da capital
paranaense. É curioso destacar que Marcondes, além de citar fontes jornalísticas, obras
consagradas e discursos de autoridades políticas da cidade, faz menção aos livros de dois
memorialistas: Nestor Vítor, quando trata dos moinhos construídos pelos imigrantes alemães,
e Vasco José Taborda, ao relembrar o sorveteiro italiano Mondrone – personagem muito
conhecido à época por aqueles que circulavam pelo centro de Curitiba.175
O livro de Jaime Balão Júnior, Mensagem da Infância, diferencia-se bastante dos
outros, não somente por sua estrutura textual, já que se trata de um romance, mas pelo fato
das lembranças narradas por seu autor não poderem ser consideradas memórias de fato. Ao
longo do texto, Balão Júnior, que nasceu no ano de 1891, afirma lembrar-se de eventos e
características da cidade de Curitiba do ano em que nasceu ou de quando era muito jovem
para se recordar: por exemplo, quando se refere à Revolução Federalista (1893-1894) e de
como “Curitiba, em 1891, era uma solidão.”176
No relato de Vasco José Taborda,
Croniquinhas do menino, também pôde se observar uma situação parecida: o autor diz
lembrar-se do enterro do Cel. João Gualberto quando tinha apenas três anos.177
Pode-se inferir
que tanto Vasco Taborda quanto Jaime Balão Júnior acreditavam lembrar-se desses fatos, pois
eram acontecimentos presentes no imaginário da época e repercutiram nos anos subseqüentes.
Contudo, no caso de Jaime Balão percebe-se uma maior ênfase quando o autor afirma
recordar-se dos eventos, pois ele constantemente reforça as datas. Neste caso, pode-se
também questionar se o autor não estaria querendo inserir, propositalmente, eventos
importantes para a história do estado do Paraná e de sua capital para enriquecer o romance
que criou em torno de sua vida.
Finalmente, mesmo que na obra de Jaime Balão Júnior não estejam relatados os
reordenamentos operados na cidade de Curitiba, no início do século XX, tem-se acesso ao
imaginário que se foi construindo sobre a cidade e sobre eventos históricos ou mesmo eventos
175
ALBUQUERQUE, Curitiba..., pp. 44 e 50. 176
BALÃO JÚNIOR, Mensagem..., pp. 14 e 111. 177
TABORDA, Croniquinhas..., p. 17.
40
cotidianos que marcaram o imaginário dos habitantes da cidade. Como afirmou Maurice
Halbwachs, é possível existir a memória individual, mas ela sempre será formada no interior
de uma sociedade, apoiando-se sobre a memória coletiva, colocando-se em seu lugar e, por
vezes, confundindo-se com ela.178
178
HALBWACHS, La mémoire..., p. 35-36.
41
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise das fontes foi possível perceber que, por meio de rememorações
individuais de pessoas que viveram em Curitiba no início do século XX, podemos extrair
aspectos que traduzem o imaginário coletivo sobre uma cidade que passava por
reestruturações nesse período, tanto no ambiente urbano como na mentalidade e nas atitudes
das pessoas. Mesmo que, por vezes, esses memorialistas tragam questões bastante pessoais
em seus relatos, a cidade de Curitiba aparece sempre como pano de fundo das recordações.
No que concerne à forma como os autores se lembram da cidade, notou-se, de maneira
geral, duas preocupações principais que motivaram e, ao mesmo tempo, justificaram a
produção de suas reminiscências: a preocupação com o desaparecimento de certas épocas,
fazendo-se, portanto, necessário escrever e conservar as rememorações, e o compromisso de,
através da divulgação de histórias pessoais, contribuir para a história da cidade de Curitiba,
compreendida como uma história mais ampla, mas da qual fazem parte os eventos que
presenciaram ou souberam por outras fontes.
Em relação às recordações sobre as reestruturações urbanas de Curitiba, notou-se que
os autores das rememorações e crônicas com que trabalhamos não compreendiam isso sem
inseri-las em uma conjuntura maior. Não se pode afirmar que esses memorialistas viam
Curitiba como uma cidade a qual se pretendia modernizar e transformá-la em uma metrópole,
assim como o Rio de Janeiro. Observamos que a chegada do progresso era notada por esses
memorialistas de forma gradual e configurava-se em elementos pontuais na cidade, como o
embelezamento de determinadas praças, a criação de uma única linha de bonde elétrico, o
surgimento de novas lojas e formas de entretenimento que não eram acessíveis para a maior
parte da população. Sobre a chegada do progresso à cidade, pode-se também notar nessas
rememorações algumas críticas às contradições acarretadas pela modernidade: o aumento do
custo de vida, o crescimento da violência, enfim, a imagem contraditória entre uma cidade
com características modernas pontuais e elementos que denunciavam seu provincianismo.
Obviamente, deve-se levar em conta que essas fontes configuram-se em memórias
pessoais e, como tais, são produzidas a partir da realidade presente em que os autores as
escreveram. Logo, as críticas e julgamentos também fazem parte deste presente. Retomando o
exemplo citado por Ecléa Bosi, reconstruir o passado nas memórias seria como reler um livro
depois de muitos anos: esperamos compreender e sentir as mesmas emoções narradas no livro
de quando o lemos pela primeira vez. No entanto, ao fazer uma segunda leitura, percebemos
42
outros detalhes, fazemos outras interpretações e sentidos novas emoções, pois, com o passar
dos anos, adquirimos novas experiências e uma visão crítica sobre nós mesmos e sobre o
mundo que nos rodeava no passado.179
179
BOSI, Memória e Sociedade..., p. 57.
43
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