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GT-11 – Tópicos emergentes no turismo
Relatos de surfistas: experiências turísticas na Indonésia
Autora: Maria Lucia Bastos Alves1
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/ UFRN.
Resumo
A valorização da aventura, o contato com a natureza, as experiências relacionadas a uma sensibilidade social e afetiva nos momentos de lazer e catástrofes ambientais ganham significados e se apresentam como modelo ético para o “estar” no mundo. Ao analisar os relatos de três surfistas amadores e brasileiros, nas ilhas da Indonésia, durante suas férias no ano de 2009, procura-se compreender como esses surfistas percebem suas praticas e de que forma podem contribuir para mudanças de comportamentos e percepções em relação à natureza e ao meio ambiente. Busca-se, também, evidenciar como essa prática e os locais de surf se apresentam como um campo experiencial em que os valores éticos, políticos e existenciais possibilita pensar novas propostas de desenvolvimento para os destinos turísticos na contemporaneidade.
Palavras-chaves: surf, turismo, aventura e simbolismo
Introdução
O surf 2, prática de deslizar de pé sobre as ondas marítimas, teve sua origem nas
ilhas da Polinésia ligada a ritos religiosos e cerimoniais. Essa prática tornou-se
conhecida por intermédio do explorador britânico, James Cook, em 1779. No início do
século XX foi considerada como um esporte difundido entre os jovens da Califórnia,
costa Oeste dos Estados Unidos, simbolizando a cultura dos prazeres individuais
expressos nos hábitos e comportamentos ligados às ideias de liberdade, contestação e
marginalidade. No Brasil, a presença desse esporte data-se a partir dos anos 1950,
quando jovens cariocas iniciam suas práticas sobre tábuas de madeira construídas por
eles próprios. Nas décadas de 1960/70, em clima de repressão e autoritarismo militar, os
surfistas, junto aos músicos, cineastas, jornalistas e intelectuais representados pela
contracultura ganham destaque na cena nacional. (Dias 2008).
Sendo, portanto, uma prática esportiva e um estilo de vida3 intrinsecamente
ligado ao ambiente natural, o surf converge múltiplos aspectos configurados não só na
realização de desejos criados pelos surfistas, como, também, promove a inserção desses
sujeitos num ambiente social e cultural capaz de representar um sinal distintivo em
relação aos novos destinos turísticos.
Por ser um esporte radical4, praticado preferencialmente por jovens aventureiros,
afirma-se que dificilmente essa atividade se enquadraria no chamado turismo de massa5.
Em suas práticas, sejam elas amadoras ou profissionais, os surfistas constroem
identidades, novos estilos de vida e se posicionam como sujeitos capazes de
proporcionar, de forma integrativa, gostos, saberes e novos comportamentos em relação
homem/ natureza.
Coloca-se, aqui, a possibilidade de pensar as novas perspectivas turísticas no
mundo globalizado em seus múltiplos entrelaçamentos, as quais remetem não só para a
superação de uma visão economicista, como também, à percepção de um renovado e
crescente interesse pela natureza, pela cultura, pelo local e pelo diferente. De acordo
com Beck (2000), as mudanças qualitativas presentes nas diversas esferas do social
desafiam a imaginação sociológica, exigindo dos pesquisadores uma ruptura com a
lógica racional nacionalista em prol de uma nova dialética entre o local e o global.
Para tanto, chama-se a atenção para os aspectos simbólicos presentes nos relatos
dos surfistas-turistas6, onde a prática do surf, associada ao prazer da viagem, a
valorização da natureza e da cultura, o contato com o diferente, o bem estar consigo e,
conseqüentemente, com o outro, aponta para um espírito religioso cuja expressão latina
re-ligare faz alusão para uma perfeita sintonia homem/ natureza representados nos
locais de surf e vistos pelos surfistas como “templos sagrados”.
Para compreensão dos relatos, foi utilizada a técnica de entrevistas
semiestruturada realizada de forma presencial e on-line com jovens entre 26 a 33 anos
de idade, graduados e profissionais liberais. A escolha dos informantes se deu por estes
surfistas terem vividos experiências inusitadas na Indonésia, bem como pela
proximidade pessoal e amigável. Não se trata de considerar tais relatos como uma
amostra, no sentido estatístico, uma vez que, para esse artigo, não há pretensão em
cobrir o vasto campo desse universo, inevitavelmente atravessado por vários elementos
possíveis de serem explorados, a exemplo das questões sobre juventude, identidade,
sociabilidade, entre outras, próprias das ciências sociais. Busca-se apenas tematizar os
seus depoimentos como uma experiência socialmente partilhada e individualmente
narrada, nas quais esses sujeitos são também interpretes de suas práticas, tendo em vista
que a experiência está condicionada a uma consciência dos fatos vividos. Como propõe
Gadamer (1998), a uma postura aberta para o experienciar, proporcionada pela relação
de alteridade com o mundo e com o Outro face ao contexto histórico e vivencial em que
os sujeitos estão imersos.
Com o intuito de ordenar os relatos, lança-se mão das contribuições de Victor
Turner (1974), que recuperando o modelo criado por Van Gennep (1978) em seus
estudos sobre “Os ritos de passagens”, utiliza as noções de comunnitas7 e limiraridade8.
Nessa trilha, foram analisadas as falas dos surfistas nos três momentos do processo
ritualístico: o da chegada, o está lá e o momento do retorno. O primeiro, denominado de
“separação”, é o momento em que os participantes estabelecem um tipo de cisão com a
vida cotidiana e passam a ocupar um lugar sagrado: o templo do surf. O segundo
momento configura-se pelo despojamento das identidades anteriores – estudantes e
profissionais liberais -, onde os surfistas experimentam outros tipos de interação social e
novos comportamentos. Esta fase é chamada de “liminar” ou “margem”; momento em
que passam a viver sob “novas” regras, jogando com elementos que lhe são familiares
recombinado-os e recriando-os com relativa liberdade. De acordo com Turner, a
atividade ritual se constituiria num espaço de “criatividade cultural” que dá margem à
reelaboração de padrões simbólicos que regem o grupo. O terceiro momento, chamado
de “reagregação”, completa o processo promovendo o retorno desses surfistas ao
convívio comum. No entanto, para Turner, essa “volta” não significa um simples
restabelecimento da ordem, mas possibilita que eles reinterpretem concepções básicas
que ordena sua cultura, dando-lhe novas formas de expressão. No âmbito desse modelo,
considera-se que nas sociedades contemporâneas a produção simbólica fragmenta-se em
diversas áreas. O universo religioso deixa de ser referencia básica, abrindo espaço para
a proliferação de novas formas de reapresentação do real. Assim, o surf se apresenta
como atividade de entretenimento, concorrendo com outras formas de lazer. Perde o
caráter de obrigatoriedade, presente na prática ritual, e passa a ser vivido nas “horas
livres”. É momento da diversão que pode oferecer oportunidades para os sujeitos
adquirirem novos comportamentos, modificando os seus pontos de vista.
Com esse enfoque, torna-se importante considerar a viagem e o surf como um
mecanismo de transformação simbólica extraído da própria vida social. Nesse contexto,
o surf se caracteriza não só como uma atividade esportiva e de entretenimento, mas
também criadora de imagens inquietantes da existência humana, levando os seus
praticantes a refletirem sobre si mesmo e o contexto que o cercam.
Isto posto, seguem os relatos de três surfistas amadores R.B.A.9·, T.L.S.10 e
C.R.G.11 cujos percursos vivenciados de forma intensa e reconhecidos por eles como
portadores de um aprendizado que só se adquire por meio das experiências vividas,
apontam para as questões socioculturais e ambientais as quais considera-se pertinentes
no mundo atual: a primeira diz respeito à inserção e consolidação de uma cultura plural
entre grupos sociais distintos; a segunda, remete-se ao uso e a preservação da natureza
como bem sagrado, muitas vezes, entendido como uma reserva deslocada de interesses
materiais.
Um pouco da Indonésia.
Localizada no sudeste do continente asiático, a Indonésia é um país que se
estende desde o Oceano Índico até o Pacífico. Inúmeras ilhas abrigam riquezas naturais
advindas de uma fauna e flora exuberante. Praias paradisíacas, com águas quentes e
cristalinas e uma rica tradição cultural oriunda dos diversos grupos étnicos e religiosos -
Budismo, Hinduismo, Islamismo, Catolicismo -, fazem do arquipélago um local com
características peculiares.
Não obstante suas belezas naturais e diversidades culturais, o arquipélago é
marcado por grandes problemas ambientais - tsunamis, terremotos, erupções vulcânicas
e alto nível de pobreza. Apresenta-se como o quarto país mais populoso do mundo,
metade da população vive com menos de U$ 2 (dois dólares) por dia, segundo dados do
Banco Mundial. A maioria é analfabeta, não tem acesso à água potável e apresenta
problemas de saúde. Por ser um continente de grandes diversidades econômicas,
políticas, religiosas, étnicas e sociais, torna-se um campo propício à eclosão de
conflitos.
É com o entusiasmo próprio dos viajantes que desejam novas conquistas que
R.B.A., descreve o arquipélago e a sua chegada na ilha de Bali.
Sobre as ondas do surf.
A Indonésia possui mais ou menos 17.000 ilhas e ilhotas com muitos ree, breaks,( ondas que quebram em perfeita simetria em cima dos corais). (...) As ilhas de Bali, Java, Lombock, Bandung e Jakarta entre outras, são locais prediletos de surfistas de todo o mundo e conta uma infra-estrutura adequada aos padrões turísticos mundiais. Resorts, hotéis e pousadas, possuem preços variados para os diversos tipos de visitantes.(...). Atrações turísticas como as apresentações artísticas encenadas por danças de origem islâmicas e budistas; passeio pela floresta, visitação a templos religiosos e centros de artesanatos, tornam-se pontos obrigatórios para os visitantes.(...).Vulcões em erupção atraem os amantes do trekking. Devido as várias influências da sua colonização e extensão do arquipélago, fica difícil falar da cultura indonesiana. Nas ilhas hindu, comportamentos como, andar sem camisas, tentar abraçar ou apertar a mão de mulheres muçulmana, são vistos negativamente e reprimido pelos nativos. A poligamia é permitida e o hamadã seguido religiosamente.Mesquitas com alto falantes entoam cânticos durante várias vezes por dia. Assistimos rituais de oferendas denominados de ‘barong’ e ‘garuda’ entre outros, em que as ofertas são apresentadas em recipientes confeccionados com folhas de coqueiros entrelaçadas dando forma de um quadro contendo incensos e flores.
(...) Chegando ao aeroporto de Denpasar (ilha de Bali) já começo a sentir as diferenças culturais, línguas, comidas, modo de se vestir entre outros costumes. Pego um taxi ‘clandestino’, bastante comum no local, com
motoristas alegres e sorridentes tentando comunicar-se em inglês. O preço é negociado, previamente, pois não existem taxímetros. Desloquei-me para sul da ilha do Bukiti (onde estão os principais picos de surf). Hospedei-me em uma pousada simples e aconchegante. (...) Para de deslocar com facilidade e rapidez nos diferentes lugares da ilha os motoboys são os meios de locomoção bastantes procurados pelos surfistas. Por ser uma ilha Hindu, nas pousadas os surfistas deixam suas pranchas nos jardins, portas dos quartos abertos, contendo máquinas fotográficas e laptops. A probabilidade de roubos é quase inexistente e, praticamente, não há relatos.
Aqui a representação da natureza e da cultura surge como cenário perfeito para o
chamado “turismo de aventura”, que, de certa forma, contribui para a diversificação do
produto turístico na atualidade. O meio ambiente12, as diferentes culturas, a natureza
exuberante, “ondas perfeitas” para o surf é um convite para viajar e passar férias. A
ruptura do cotidiano, novas conquistas e exploração de diferentes sensações e imagens,
se fazem presente no lazer, na ideia de liberdade e no enaltecimento de uma postura
ética pautada pelos valores religiosos e culturais. A perspectiva do prazer e realização
de um sonho é ainda reforçada por R.B.A..
Após muito trabalho na Austrália, juntei dinheiro para concretizar um sonho que tinha desde quando comecei surfar aos 13 anos: ir ao 'maracanã' do surf! O templo sagrado (grifos nossos) para todo surfista! ILHAS MENTAWAIS, situado na região da Sumatra na Indonésia, região conhecida por muitos abalos sísmicos e terremotos de grande escala, com grande poder de destruição, como o ultimo ocorrido meses atrás. Para chegar às ilhas Mentawais é necessário fazer a chamada 'boat trip' (viagem de barco), fiquei 12 dias hospedado num barco percorrendo as inúmeras ilhas e ilhotas em busca da onda perfeita, contemplando e interagindo com a natureza.
Ressalta-se que tal sentimento não se refere necessariamente ao sentimento
religioso convencional, mas associado a um ethos comportamental em que as questões
ambientais vividas na pratica do surf, passam a ser referência de um espírito ecológico
que possibilite uma nova aliança com a natureza. Nas palavras de Leonardo Boff (1995,
p 46)
O ser humano funda assim, um ponto de referência cuja função é cognitiva. Revela tão-somente a sua singularidade como espécie pensante e reflexa, singularidade que não leva a romper com os demais seres, mas reforça sua vinculação com eles, porque o princípio da compreensão, reflexão e comunicação está primeiro no universo e somente porque está no universo
pode emergir na Terra progressivamente vários seres complexos e finalmente no ser altamente complexo que são os filhos e filhas da Terra.
Nas palavras de T.L.S.,
(..) Ondas perfeitas, longas paredes lisas e azuis de 5 a 6 pés sem uma gota fora do lugar com uma leve brisa de terral que proporcionava tubos e muitas manobras em frente a uma ilha tropical paradisíaca com uma praia de areias brancas e cheia de coqueiros, céu azul sem uma nuvem, água morna e um amplo canal para voltar ao outside sem precisar molhar a cabeça. Nesse dia vivemos o que sem dúvida é o sonho dourado de qualquer surfista do planeta… ríamos da nossa sorte sem parar e ficamos na água até não ter mais forças para remar…o pôr-do-sol foi simplesmente mágico e acabamos o melhor dia da nossa trip no melhor “Mentawaii Style.
As gigantescas ondas em formatos de tubos representam a casa-habitat-oiko, que
“abriga” os surfistas num momento de muita emoção, propiciado pela energia e
equilíbrio dos corpos em perfeita sintonia com a natureza. Numa visão proporcionada
pela ecologia holística, esse momento pode ser percebido como
(...) um encontro entre todos os seres vivos e o meio ambiente numa perspectiva do infinitamente pequeno das partículas elementares (quarks), do infinitamente grande dos espaços cósmicos, do infinitamente complexo do sistema da vida, do infinitamente profundo do coração humano e do infinitamente misterioso do oceano ilimitado de energia primordial do qual tudo promana (vácuo quântico, imagem de Deus). (BOFF, 1996, p. 19).
O mundo do surf reflete a maneira de como cada surfista se relaciona, posiciona e
coloca no mundo dando-lhe um significado, uma razão de ser. Nesta prática tão solitária e
conjunta à emoção, afetividade é a força que unifica, constrói novas formas de relacionamento e
comunicação, possibilitando-os experimentar novas maneiras de ser e de viver na imensidão do
planeta terra.
Todavia, C.R.G. ressalta-se que há diferentes tipos de surfistas,
(...) Existe 2(dois) tipos de surfistas os profissionais e os amadores, assim como os "free Surf ". E cada um tem um estilo de vida e maneira diferente de ver o surf. Para mim surfista é toda pessoa que é apaixonada pelo mar, as
ondas, a natureza e tudo aquilo que cerca o surf, como viagens, novas culturas, respeito tanto como para a natureza como para o próximo.
Ao reportar-se sobre o que é ser surfista e ao mundo do surf, T.L.S., afirma que,
Na verdade me considero o que chamamos de "Free Surf”, ou seja, aquele cara que não ganha dinheiro com o surf e nem com o mundo ligado ao surf. Sou aquela pessoa que surfa pelo simples fato de amar o esporte.(...). Como disse, o surfista e aquela pessoa que ama o contato com a natureza, o mar.
(...) A minha relação com o meio ambiente e a melhor possível. Sou uma pessoa que preserva e também alerta, se necessário, a natureza e suas belezas em geral, a cultura e tudo no aprendizado social e no caráter da pessoa, pois você aprende a respeitar e enxergar diferença (C.R.G.).
(...) O mundo do surf é bastante amistoso e de fácil amizade. Já na primeira sessão de surf é possível conhecer surfistas de outros lugares, onde sempre rola a interação e bate-papo sobre locais surfados. Os surfistas estão sempre de bom humor, é gente fina e respeitam uns aos outros, independente das diferenças raciais e culturais. Conheci muitos brasileiros, australianos e indonesianos que compartilharam suas experiências no mundo do surf (R.B.A).
Observa-se nessas falas que o ser surfista é algo amplamente aceito e
reconhecido no grupo de amigos, de modo que mesmo aqueles que não se vêem
plenamente identificados com essa prática, situam-se em relação a ela, enquanto um
valor existencial que agrega não apenas a uma performance esportiva mas, sobretudo,
ao respeito com a natureza e com a vida. Para melhor compreender os seus relatos é
preciso levar em conta o nível socioeconômico e cultural dos respectivos surfistas. Ou
seja, trata-se de jovens pertencente à classe média, aventureiros e portadores de um
capital cultural e que vêem nesse esporte uma celebração da vida. O que conduz a
pensar o surf enquanto um estilo de vida na qual esses surfistas orientam e interpretam
suas práticas como guias de comportamentos e habitus13 adquiridos por meio da
internalização de um sistema de valores a partir dos quais, os surfistas se posicionam em suas
existências.
O prazer do esporte aliado a uma satisfação de se encontrarem em um local
privilegiado para o surf aflora o clima amigável e de pertença característico do processo
de sociabilidade, onde os interesses e necessidades específicas de cada um fazem com
que esses momentos sejam vividos de forma intensa e prazerosa.
Ao chegar à ilha de Lombok, a falta de sinalização e comunicação atrapalham a chegada ao pico de surf desejado chamado Desert Point. Próximo ao pico, a bateria do carro explodiu. Decidi pedir ajuda numa única casa situada na estrada deserta. 11 pessoas habitavam nesta casa simples e rude, onde apenas um senhor falava bem o inglês.Muitos gentis, os nativos nos receberam e nos acomodaram em suas dependências. Brincamos de futebol com as crianças. Os mais jovens ajudaram a remover a bateria do carro e seguiram par consertá-la em Mataram (capital da ilha) distante a 200 km de onde estávamos. Sempre sorrindo e amigáveis os nativos não desgrudavam da gente, principalmente as crianças. Apesar da maioria não falar inglês, fizemos uma boa amizade e aprendemos muito com eles. Convidaram-nos a hospedar e, durante os 4 dias que permanecemos na ilha fomos bem acolhidos e servidos com refeições a base de peixes e arroz (R.B.A.).
Os deslocamentos para os picos de surf, compreendido aqui como o campo
sagrado do lazer, se dão não apenas pelas diferenças entre eles e os nativos, mas por
existirem analogias entre símbolos que circulam entre os surfistas. O estar nas ilhas e o
convívio com a cultura local possibilita uma recriação de repertórios culturais
compartilhados por ambos.
Entretanto, essa visão romântica e idílica da viagem, às vezes é marcada por
acontecimentos não desejáveis criados por outra lógica de ruptura, não mas aquela da
desobriga dos afazeres cotidiano, mas vivenciada, muitas vezes, de forma traumáticas
ou desagradável. Com é o caso do terremoto ocorrido na cidade de Padang, na ilha de
Sumatra em 2009, no momento em que esses surfistas ali estavam.
Tive uma experiência não muito agradável. Vivenciei um terremoto horas depois de ter acontecido, no seu epicentro que foi a cidade de Padang, na ilha de Sumatra / Indonesia .E muito triste você ver as pessoas desalojadas sem ter onde morar e a cidades quase que inteira no chã , corpos sendo retirados de escombros e crianças chorando , famílias cozinhando na rua e você , uma espécie de turista que foi ate lá somente para se divertir, surfar..., você fica assustado e agradecendo tudo e todos que você tem na vida e tentando ajudar da melhor maneira possível .
A cidade estava às escuras sem eletricidade, haviam muitas pessoas desabrigadas no aeroporto recém chegadas e sem casa para morar devido à
destruição causada pela tragédia, às filas nos postos de gasolina (funcionando com geradores próprios) eram simplesmente absurdas… sinceramente, parecia um cenário de filme de uma cidade num pós-guerra. Soubemos pelo dono do barco que a loja de mantimentos que abasteceria o barco tinha sido completamente destruída e veio abaixo no tremor e por isso teríamos de passar a noite no barco ancorado no porto enquanto ele tentava conseguir o resto de nossa comida e mantimentos em outros locais. (...)
No dia seguinte tivemos a oportunidade de ir ver de perto com nossos próprios olhos a destruição causada por um terremoto dessa magnitude. O que vimos foi simplesmente chocantes… A força da natureza realmente havia mostrado o quão insignificantes somos. Casas, hotéis, prédios e todo tipo de construção destruídos completamente ou parcialmente. Muitas pessoas desaparecidas, desabrigadas e corpos sendo retirados dos escombros a todos instantes. Vivi um paradoxal: a cidade de Padang havia acabado de sofrer uma das piores tragédias da sua estória e ironicamente éramos um grupo de surfistas em busca de diversão (T.L.S).
Diante daquela situação ficou claro que realmente o melhor que poderíamos fazer era prestar ajuda voluntária. Não cancelar nossa viagem, pois agora mais que nunca todos necessitavam de qualquer tipo de ajuda para refazer suas vidas. E assim, passamos o dia ajudando os resgates, fotografando escombros e aguardando notícias sobre novas previsões ambientais (R.B.A).
E ai que você sente de verdade a força da natureza e se impressiona o quanto somos um nada no meio de um planeta gigantesco. Tive que dormir em lugares com alerta de Tsunami e não e fácil controlar seu medo. As noites passam a ser longas e depois que você passa por tudo isto, com certeza, o seu aprendizado e maior. (T.L.S.)
Conversamos com muitos indonesinos e eles diziam: temos que ser forte e começar tudo de novo. Queremos que todos venham para cá e contribuam com a nossa renda. Surfista como vocês podem nos ajudar. Queremos ver Pandang,, Band Aech entre outros picos de surf ser o que era antes do tsumnami (C.R.G.).
O que me impressionou é o quanto parece que eles estão acostumados com estas catástrofes, pois sofrem é claro!. No dia seguinte, é como se nada tivesse acontecido. Acordam e vai reconstruir tudo o que foi devastado. Esta é mais uma lição da vida (T.L.S.).
A hospitalidade e a alegria é uma determinação dos locais. E isso é algo surpreendente e significativo para nós. Vê aquela gente, naquele cenário reagindo de maneira positiva, sempre sorrindo e buscando recomeçar o do zero, Isto é mais que um aprendizado (R.B.A.).
Sabemos que as três mil vitimas dos tsunamis 3/4 ocorrem na Indonésia como foi o caso de Band Aceh, em 2004, deixando grandes estragos para a fauna e flora e milhares vitimas. Neste terremoto, diversos locais foram totalmente destruídos, outros tiveram sua população reduzida pela metade. Temos que pensar nisso e tentar fazer alguma coisa em prol da natureza e das populações mais afetadas por estas tragédias. Não resta dúvida que encontramos muitos nativos, estrangeiros e voluntários que se mobilizam e prestam ajuda através de ações não governamentais. E isso é muito bom para todos. Porém, acho que temos de encontrar um jeito de não sofrer tanto com a força da natureza que, de certa forma, é uma resposta as agressões dos homens’. (T.L.S.).
Ao vivenciar tal situação, os próprios surfistas admitem que é preciso fazer algo.
Não se pode ficar alheio diante de um cenário como este em que, as questões
relacionadas a riscos ambientais e condução de uma ética se fazem prementes. Não resta
dúvida de que os problemas ambientais globais pertencem ao grupo de maior grau de
periculosidade, pois põe em risco a própria sobrevivência do planeta. Para Giddens
(1991, p.111-112), os riscos vivenciados em sociedades tradicionais, físicos e humanos
foram substituídos em uma macroescala, por riscos criados pelo ambiente social
moderno onde “ameaças ecológicas são o resultado de conhecimento socialmente
organizado, mediado pelo impacto do industrialismo sobre o meio ambiente material”.
Risco e perigo, portanto secularizados, não mais regidos pelas ordens da religião e da
tradição.
O caos vivenciado por nossos surfistas evocam a necessidade de mudanças a fim de que
possa restabelecer a unidade do Homem consigo mesmo, com a Natureza e com o Cosmos. A
liberdade, o prazer e o bem estar, são vistos como metas ser alcançadas e construídas por todos
que, onde as turbulências devem ser vistas como energia vital, pois como falou Zaratustra,
personagem de Nietzsche (2007, p. 15), “é preciso ter um caos dentro de si, para dar à luz uma
estrela cintilante.”
O surf como campo de possibilidade14 para novas perspectivas turísticas.
A ideia de pensar os locais de surf enquanto um possível campo15 a ser explorado
pelo turismo possibilita-se eleger alguns aspectos desse esporte relacionado diretamente
com valorização da natureza. Não sendo o propósito de o artigo adentrar sobre a noção
desenvolvimento sustentável, cabe apenas considerar que o chamado “turismo
sustentável” vinculado às propostas do desenvolvimento sustentável se apresenta como
àquele que é capaz de satisfazer nossas necessidades, sem comprometer a capacidade
das gerações futuras em satisfazer as suas próprias.16 Contudo, vale salientar os
paradoxos contidos nessa noção, na medida em que as catástrofes ambientais e a
proliferação das desigualdades sociais, fruto de uma economia de mercado capitalista
associadas às políticas neoliberias, muitas vezes, inviabilizam o ideal de
sustentabilidade.
Ainda que não estejam inseridos ativamente nos debates sobre sustentabilidade,
estes surfistas apresentam-se como sujeitos protetores e defensores da natureza na
medida em que às preocupações com o meio ambiente vividos nos momentos de lazer e pós
catástrofes, a exemplo dos terremotos ocorrido na ilha de Pandag, evidenciam o quanto a
pratica do surf e as condições encontradas no local possibilitaram esses sujeitos a agirem de
forma ética e solidária.
Acredita-se que os novos destinos turísticos, a exemplo das ilhas indonesianas,
propícias para o surf, coloca a relação homem/ natureza num patamar de modernidade
diferente daquela inserida nos modelos da sociedade industrial, que de acordo com Beck
(1992, p. 10), se estabelece como uma modernização de seus princípios, desmistificando
verdades estabelecidas sobre ciência e tecnologia, bem como sobre modos de vivenciar
o trabalho, lazer, família e sexualidade. Neste contexto, os surfistas despontam como a
ponta do icebergue que, inserido contexto global de pretensas atividades hegemônicas,
desafiam as estruturas econômicas e socioambientais colocadas no modelo vigente.
Assim, o surf abre perspectiva para novas experiências turísticas no contexto da
sustentabilidade relacionada aos riscos ambientais, orientando para a condução da nova
ética e estabelecimento de novos estilos de vida «alternativo» que apresenta-se como
exemplo de liberdade e respeito com a natureza e com o próximo.
Ao falarem sobre as demandas turísticas em países como Ásia, África, China e
America Latina, bem como para os locais considerados paradisíacos a exemplo das ilhas
indonesianas, os nossos entrevistados se mostraram otimistas.
O turismo para mim é muito importante se bem praticado e com planejamentos corretos, pois faz com que você aprenda com novas culturas e lugares ao mesmo tempo em que viaja e isto e muito interessante, sem falar no desenvolvimento do povo local, econômico, social, etc. Se bem aproveitado e uma grande negócio, sem duvida nenhuma. (T.L.S.).
Um surfista que vai para a Indonésia espera encontrar muitas ondas boas, um povo amigável e novas culturas alem de um novo lugar com maravilhosas paisagens, receptividade e facilidade para poder viajar dentro da indonésia também, mas nem sempre você encontra isto. Procuro me relacionar com todos os tipos de pessoas e mais um aprendizado e mais informações que você pode ter com turistas, que estão na indonésia por outros motivos que não sejam as ondas (T.L.S.).
(...) Eles têm uma cultura muito diferente da nossa. É um país que vive do turismo e isto faz com que desenvolva aspectos positivo, como econômico e a preocupação para que o turista se sinta bem e com isso uma preocupação com a natureza e com a cultura local. Mas, a indonésia é um pais muito pobre e você sente a invasão de grandes países capitalistas, tendo assim um predomínio de redes hoteleiras e uma certa exploração para com a mão de obra local, tornando o país cada vez mais pobre e dependente de outros.(C.R.G.)
A Indonésia dispõe de um comercio de artesanatos locais, como canga, objetos de palha, chifre de búfalo, madeira, encontrado na principal parte da ilha de Bali, chamada Kuta. Em Kuta encontramos o monumento erguido após a bomba ataque ao Side Bar em 2002, como um símbolo da revolta dos mulçumanos que vieram de Java para atacar os australianos e principalmente americanos que procuravam o local para passar suas férias. Fato que afetou o turismo em Bali. Há quem diga que Kuta não é a mesma (R.B.A.).
Observa-se que enquanto os turistas na sociedade contemporânea são vistos como pessoas importantes da cultura de mercado, os surfistas demarcam suas diferenças configurando-se como segmento restrito do mercado, assemelhando a um nicho ao que Bauman (1908) denominou de vagabundos, pelo que não se propõe a consumir. Ao serem questionados sobre o termo surfistas-turistas, os nossos entrevistados assim posicionaram-se:
(...) se viajar é fazer turismo, neste caso sou um turista, pois sempre viajo para surfar. ( T.L.S.).
Não me considero um turista. Mesmo viajando para os locais de surf, não compro pacotes das agencias de viagens, faço o meu roteiro e procuro conhecer locais poucos explorados pelo mercado turístico. ( R.B.A.).
Acho que todo surfista, de certa forma, é um turista, pois viaja para em diferentes locais de picos de surf, conhece outras culturas, faz novas amizades e aproveita o que o local tem a oferecer ( C.R.G.) .
Nas sociedades atuais, os termos viagem e turismo, muitas vezes, são interpretados
como sinônimos, tornando-os ambíguos e difícil distinção. Contudo, na acepção
palavra, viagem e turismo são termos distintos e associados a diferentes períodos
históricos. Lucrécia Ferrara (1996) evidencia a distinção entre turismo e villeggiatura
advertindo a percepção dessa última como uma pratica do século XIX que pode ser
compreendida com o emprego do tempo livre que pressupunha a fuga do cotidiano.
Uma organização privada e, preferencialmente, anônima. Por sua vez, o turismo apesar
de também ser interpretado como emprego do tempo livre, organizado de forma a
privilegiar o lazer, este se apresenta como uma atividade cuja principal distinção da
villeggiatura encontra-se na sua essência comercial. Dessa forma, a viagem denota a
existência de um espaço não ordenado pelo mercado, marcado por um tempo que se
atualiza-se, sem no entanto, repetir-se. É uma ação que se pratica na necessidade de
acrescentar ao próprio “eu” uma experiência única. O viajante reconhece a diferença do
outro numa autodescoberta que se dá no confronto entre a própria subjetividade e o que
considera exótico e estranho à subjetividade do outro. Ao passo que o turista confirma a
diferença do outro diluindo-se nas referências universais que esgota a relação histórica e
geográfica do lugar.
Partindo da ideia da viagem como deslocamentos espaciais e existenciais, em
que busca a intensificação do prazer envolvendo os vários sentidos, Urry (1999, p. 18)
lembra que, “os lugares são escolhidos para serem contemplados porque existe uma
expectativa, sobretudo através dos devaneios e da fantasia, em relação a prazeres
intensos, seja em escala diferente, seja envolvendo sentidos diferentes daqueles com que
habitualmente nos deparamos.”
Todavia, não resta dúvida de que a profusão de símbolos e significados
apresentados durante a viagem serve como um aprendizado adquirido por meio da
interação com o outro. Ortiz (2000, p. 33) mostra a experiência da viagem como uma
possibilidade de refletir sobre a prática turística e sua legitimação. Viagem como
sinônimo de aventura e de encontro com a diversidade; viagem em sua acepção
romântica. Tomada nesse sentido, concebe sua gênese em proximidade com a
etnografia. Uma aproximação no tempo, porque ambas são gestadas no seio da
modernidade ocidental, mas principalmente uma aproximação através do objeto que
suscita seu movimento: ambas as práticas requerem a presença de uma alteridade.
Ambas dependem, ainda, de um deslocamento: a um outro território, outra lógica, outro
olhar.
Não obstante, as diferenças e imbricações entre o “esportista” e o “turista”
(Betrán, 2003; Costa, 2000 e Uvinha, 2005) encontramos em ambas as atividades a
presença de um mercado que se prolifera não só por meio da mídia e/ou agencias de
turismo, direcionadas ao ecoturismo, turismo de aventura etc., como também pelo
consumo de artigos (roupas, equipamentos, revistas, livros, filmes e acessórios)
utilizados tanto pelos esportistas quanto por aqueles que se identificam com esse estilo
de vida. Hoje, grifes do mundo do surf se tornaram símbolo de juventude, descontração
e aquece um mercado voltado para essa parcela.17
Depois de uma semana em Bali, viajamos para Ilha de Sumbawa. Começou a trip num aeroporto doméstico bastante tumultuado. Ao chegar ao aeroporto, de ‘Porters’, os carregadores de bagagem literalmente avançam em seu ‘quiver’ (conjunto de pranchas empacotadas). Neste trajeto dividi o taxi com um casal de Sul-africano que estava indo para o mesmo hotel. Viajamos durante 2 horas em pista de chão batido, pontes feitas com tapumes de madeira improvisadas, e vendo muita pobreza. Chegamos a um resort, em frente ao mar. Luxo total!! O cenário de pobreza antes visto parecia não mais existir!!! Imagine uma linha divisória separando dois mundos!! (R.B.A.).
(...) Nas ilhas Gugi, deparamos com um cenário inesquecível: mar cristalino, pousadas com espreguiçadeiras de bambu, gastronomia com muitos frutos do mar. O por do sol entre vulcões ativos, o silencio do fim do dia, barcos a vela navegando naquele marzão, dá o toque místico de um cenário realmente indescritível, e que certamente todos desejam conhecer (R.B.A.).
(...) Na primeira noite fui convidado por surfistas que já conheciam o local e pelo pessoal da ilha, para ir assistir a ‘dança da chuva’ onde os figurantes se vestem com roupas de palhas, pintam o corpo aparentando uma mistura de gente e animal. Utilizam fogos e batem o pé no chão, ao som cânticos sussurrados nos dialetos locais. No templo de Uluwatu, muitos macacos conhecidos como “macacos ladrões” roubam óculos, maquinas fotográficas dos turistas, que para terem os seus pertences de volta, oferecem comidas aos macacos, uma espécie de diversão turística (R.B.A.).
A evocação dos costumes e tradições religiosas se torna mais um produto para o
segmento do turismo cultural. Por ser um país marcado pela pobreza, o “histórico”, o
“cultural”, o “étnico” se transformam em artigos de consumo. As diversidades das
culturas religiosas expressas nos sistemas de crenças budistas, islâmicos, mulçumanos,
cristãs, entre outras que caracterizam o arquipélago, aos poucos são convertidas em
recursos econômicos. Paradoxalmente, o mercado global revaloriza tais particularidades
e as transformam em produtos turísticos, muitas vezes, banalizando os seus mais
profundos significados. Nesta lógica, o mercado turístico cria mercados nacionais e
internacionais de lugares específicos recorrendo a mecanismos que espetacularizam as
culturas em suas diferentes manifestações e as convertem em souvernis a serem
consumidos por uma população ávida em apropriar-se do “autêntico”. Nesta dinâmica
de globalização mercantilista do local, a cultura e a natureza adquirem paulatinamente
uma dimensão planetária, cujas conseqüências são diversas e contraditórias, tanto por
parte das populações locais quanto pelos empresários do turismo.
Finalmente após dois dias conseguimos zarpar rumo as ilhas Mentawaii...a aventura havia começado. Chegamos a Maccas no dia seguinte com vento lateral e tempo ruim e aproveitamos para visitar o resort e pegar a previsão do swell mais atualizada na net. Com base no que vimos resolvemos seguir para Thunders e no dia seguinte fomos presenteados com ondas perfeitas e tubulares de 4 a 5 pés com uma leve brisa de terral durante o dia inteiro e um cenário surreal durante o pôr-do-sol que mais parecia uma pintura. (T.L.S.).
(...) Ao finalizar a trip todos sem exceção estampavam aquele sorriso de missão cumprida por tantas ondas perfeitas surfadas e por haver vivido 11 dias de sonho num dos lugares mais alucinantes do planeta. Novas amizades foram consolidadas e ficou a certeza de que essa foi a primeira de muitas outras trips. (R.B.A.)
A relação surf / lazer/ turismo, pela perspectiva desses entrevistados, é relevante
para diagnosticar a construção das teias sociais proporcionadas pela pratica do esporte.
Observa-se, nos relatos, que a experiência romântica da viagem, por seu caráter de
intervalo entre dois referenciais - o da partida e o da chegada – é vivida como um rito de
passagem. Suspenso entre esses dois momentos, o viajante é um forasteiro, uma figura
liminar. Distante de seu próprio meio social - de seu território - ele não faz parte da
paisagem na qual se encontra. Desobrigado de cumprir os rituais e as rotinas diárias que
seu cotidiano impõe, aguça o sentido para as diferenças perceptíveis na paisagem
natural e cultural. Neste cenário, visualiza-se um contraste entre a realidade do local e as
imagens contempladas. Paradoxalmente, são estes contrastes que nutrem a viagem e
possibilita o aprendizado sobre o outro e sobre si mesmo.
Levados pelos sentimentos dos surfistas, pode-se admitir que o surf como um
esporte de aventura em busca do prazer, da emoção, da exploração de novos lugares
assemelha-se ao imaginário romântico acerca das viagens e do encontro com a
alteridade construído por meio das diferenças. Viajar para os maiores picos de surfs
encontrados nas longínquas ilhas indonesianas, ganha eco na voz dos surfistas na
medida em que a questão a ética, implícita no respeito para com as culturas e com a
natureza, evidencia os limites do conhecimento científico e coloca em pauta um sistema
que referencia novas formas de desenvolvimento turístico atrelada aos novos estilos de
vida delineados pelas novas gerações.
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1Professora Adjunta do Dept. de Ciências Sociais; do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais PPGCS e do Programa de Pós Graduação em Turismo / PPGTUR da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/ UFRN.
2Do Inglês, surf: esporte que, em posição vertical sobre uma prancha, desliza-se sobre ondas marinhas (http://pt.wiktionary.org/wiki/surfe)
3Expressão utilizada por G. Simmel (1983) para caracterizar os diversos tipos de comportamentos próprios do período moderno. P. Bourdieu (1983:82) recupera tal noção e a coloca no plural localizando-a no interior dos diferentes grupos sociais, “vinculado ao habitus, pois os gostos e propensão e aptidão à (material e/ou simbólica) de uma determinada categoria de objetos ou práticas classificadas ou classificadoras, é a forma generativa que está no princípio do estilo de vida”.
44 A prática do esporte e turismo em seus diferentes perfis e modalidades, realizada em ambientes rurais e naturais como opção de lazer, tem sido objeto de estudo de autores como, BETRÁN, 2003; BRUHNS, 2006;VILLAVERDE, 2003, entre outros.
5O chamado Turismo de ‘massa’ refere-se ao um tipo de serviço que atende ao maior número possível de turistas. A oferta se especializa “(...)a partir de poucos recursos naturais (praia ou montanha), numa oferta caracterizada pela homogeneização. O destinatário é visto como uma massa informe.” (Campelo, 1999)
6A denominação surfista turista é uma noção definida provisoriamente, com base em parâmetros que variam de acordo com cada informante.
7De acordo com Turner (1974, p. 154) a communitas surge espontaneamente motivada por valores, crenças ou ideais coletivos. Os vínculos da communitas são indiferenciados, igualitários, diretos, não racionais e existenciais, tende a caracterizar-se pela efemeridade. Isto é “a communitas surge onde não existe estrutura social […] [e] só se torna evidente ou acessível, por assim dizer, por sua justaposição a aspectos da estrutura social ou pela hibridização com estes [e acrescenta]. A communitas unicamente pode ser apreendida por alguma de suas relações com a estrutura […].”
8 A noção de liminaridade, ou fase liminar refere-se a fase intermediária entre o distanciamento e a reaproximação. Segundo Turner (1974, p.116-117) “Os atributos de liminaridade,[…] são necessariamente ambíguos… esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede e classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. […] exprimem-se por uma rica variedade de símbolos […] que ritualizam as transições sociais e culturais […] As entidades liminares […] podem ser representadas como se nada possuíssem […] não possuem "status".”
12Segundo Ruschmann (1997, p.19), como meio ambiente entende-se a biosfera, isto é, água e o ar que envolve a Terra, juntamente com os ecossistemas que eles mantêm. Esses ecossistemas são constituídos de comunidades de indivíduos de diferentes populações (bióticos), que vivem numa área juntamente com seu meio não-vivente (abiótico) e se caracterizam por suas inter-relações, sejam elas simples ou mais complexas. Essa definição inclui também os recursos construídos pelo homem, tais como as casas, cidades, monumentos históricos, sítios arqueológicos, e os padrões comportamentais das populações folclore, vestuário, comidas e modo de vida em geral -, que as diferenciam de outras comunidades.
13Definido por Bourdieu ,(1992, p. 22), como “disposições adquiridas e incorporadas pelos indivíduos, traduzidas em formas de perceber, classificar, pensar e orientar as ações no mundo”
14Segundo Velho (2003), as sociedades complexas, vivenciam um período em que o indivíduo possui um potencial de metamorfose, por experimentar um campo de possibilidades diante da coexistência de diferentes estilos de vida e visões de mundo, alterando diversas esferas como a vida privada, as relações de trabalho e as relações e processos de produção de conhecimento e de ensino-aprendizagem.
15Conforme Bourdieu (1989), a noção de campo social evoca um espaço relativamente autônomo de relações sociais historicamente situadas, que produz um certo conjunto de valores, uma ética, traços identitários de um sujeito ideal, naturaliza certos modos de ver e se comportar que põem em ação as regras do jogo do campo.
16Cf. UNITED NATIONS (1987). Our Common Future: Report of the World Commission on Environment and Development. Disponível em: <http://www.un-documents.net/wced-ocf.htm>. Acesso em: 15/abr. 2010.
17Lembramos que no Brasil diversos locais de surf foram transformados em destinos turísticos, a exemplo, da praia de Pipa/ RN, de Itacaré /BA, da Garopaba/ SC, da Cacimba do Padre - Fernando de Noronha (PE), de Ubatuba/ SP entre outras que a partir dos anos 1970/80 e passaram a integrar outros elementos próprios do mercado turístico.