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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
RELAÇÕES DE GÊNERO E FLUXOS SOCIOESPACIAIS DESIGUAIS DA ÁGUA NO
MUNICÍPIO DE PARATY, RJ.
Lívia Antunes
Resumo: A temática da água é foco de análise de uma ampla rede de estudiosos, agentes políticos e econômico-sociais
sofrendo, portanto, apropriações diversificadas influenciadas por diferentes construções culturais e cotas de poder. Por
esse e outros motivos a água não pode ser tratada de modo isolado, como a racionalidade instrumental vem fazendo, é
preciso que ela seja pensada enquanto território, isto é, cenário das contradições e desigualdades espaciais inerentes ao
sistema capitalista ocidental. Muitos são os autores que se debruçam sobre essa árdua tarefa, numa tentativa de escapar
de uma análise dicotômica entre sociedade e natureza. Esse esforço tem trazido resultados interessantes com
consequente inserção de atores e cenários até então pouco contemplados, porém ainda são escassos os trabalhos que se
preocupam com as relações de gênero nas análises dos fluxos desiguais da água. O presente trabalho procura trazer as
relações de gênero para uma análise dos fluxos socioespaciais desiguais da água no município de Paraty, no Rio de
Janeiro, entendendo que, assim como as relações de classe e "raça" determinam possibilidades de vivenciar e se
apropropriar do espaço geográfico, as desiguais cotas de poder entre homens e mulheres também o fazem. Território de
diversas comunidades tradicionais, Paraty é espaço concreto de lutas materiais e imateriais de caiçaras, sendo a mulher
importante peça para entender a consolidação dos espaços de exclusão e, assim, dos territórios da água.
Palavras-chave: fluxos desiguais da água, relações de gênero, territórios de exclusão, resistência feminina caiçara.
Introdução
O acesso aos recursos hídricos, assim como a qualquer outro recurso natural capitalizado, não
se faz de maneira homogênea pelo contrário ele é, à priori, desigual, sendo sua distribuição parte de
um sistema onde o "o fluxo de água expressa diretamente fluxos de poder entre os grupos sociais,
assim como fluxos financeiros" (MACIEL COSTA, 2013). Nesse sentido e corroborando Acserald
(2010), podemos dizer que a escassez é uma produção social que se dá, consequentemente, através
de uma esfera simbólica e não somente pela despossessão material. No entanto, não somente a
escassez da água é sentida de forma singular por cada agente ou grupo social. O acesso a uma água
de qualidade também é direcionado pela mesma lógica e a distribuição dos rejeitos e proveitos de
um sistema hídrico denuncia uma geografia desigual da água.
Desse modo é preciso pensar a água enquanto território, isto é, "enquanto inserção da
sociedade na natureza com todas as suas contradições implicadas no processo de apropriação da
natureza pelos homens e mulheres por meio das relações sociais e de poder" (Porto-Gonçalves ,
2005, pXX).
Isso demonstra a importância de um pensamento geográfico que dê conta do território-água.
Muitos são os autores que se debruçam sobre essa tarefa, numa tentativa de escapar de uma análise
dicotômica entre sociedade e natureza. Contudo, mesmo com considerável ampliação de
possibilidades de análise do território-água, ainda é muito tímida a ocorrência de estudos que
considerem as relações de gênero nas análises dos fluxos desiguais da água. Em um grande número
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de estudos as mulheres aparecem enquanto pertencentes a grupos sociais "periféricos", vistos de
maneira homogênea, o que não deixa aparente uma participação desigual destas no acesso a
recursos do território.
O presente estudo procura trazer as relações de gênero para uma análise dos fluxos
socioespaciais desiguais da água, entendendo que assim como as relações de classe e "raça"
determinam possibilidades de vivenciar e se apropriar do espaço geográfico, as desiguais cotas de
poder entre homens e mulheres também o fazem.
As mulheres, ao serem historicamente confinadas em espaços privados, como o dos
domicílios, ficam desfavorecidas na concorrência pelos espaços ditos públicos e/ou de poder.
Contraditoriamente, estas são, nestes espaços reduzidos, as maiores administradoras das tarefas e
rotinas caseiras. São elas que, diariamente, cozinham, lavam, abastecem as despensas, educam os
filhos, lidam com os problemas de infraestrutura e vivenciam situações cotidianas de falta de água e
luz entre outros serviços básicos.
A figura do homem chefe de família, quando presente nesse sistema institucional,
geralmente desenvolve ações pontuais na residência e ainda é, percentualmente falando, o principal
responsável pela maior parcela de dinheiro que adentra a economia doméstica. Mesmo hoje, quando
boa parte das mulheres trabalha e/ou executa outras atividades externas, ainda são estas que que
passam mais tempo em função da manutenção e funcionamento da casa e do sistema familiar.
Em relação à gestão da água nos domicílios é comum ficar à cargo da mulher, no seu papel
de mãe e dona de casa o transporte - quando necessário- armazenamento e uso desse recurso. Nesse
sentido a água pode ser vista não somente como elemento essencial à vida, como um todo, mas
também como elemento essencial ao funcionamento do ambiente familiar que acaba sendo, na
prática, gestionado pelas mulheres.
Nas comunidades tradicionais são as mulheres e crianças as que mantém uma maior relação
social e simbólica com a água, evidenciando, assim, a relevância que a divisão sexual do trabalho
desempenha nos fluxos desiguais da água.
Cenários de mulheres e crianças andando por várias horas em busca de água não são raras
no mundo, demonstrando o quão é afetado esse público e o papel que assumem na gestão
da água (HORA et al. 2012).
Por causa dessa relação direta com a água, seja a que sai das torneiras das casas ou recolhida
de rios, poços e reservatórios as mulheres desenvolveram, ao longo do tempo histórico e nos mais
diversos territórios, técnicas e estratégias para buscar, armazenar e usar esse recurso.
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Tais estratégias são, assim como outras atividades naturalizadas como femininas ligadas ao
trabalho do cuidado, (Falquet, 2015) apropriadas por um sistema mercadológico de gestão dos
recursos hídricos que, ao mesmo tempo que utiliza um conhecimento sociocultural historicamente
engendrado nas relações comunitárias matriarcais (ou ditas femininas), não dá possibilidade de
inserção dessas atoras nos espaços públicos, ao não somente desconsiderar essa participação e
demanda na formulação de leis e agendas socioambientais mas também ao privilegiar
explicitamente os homens nos cargos de Gestão da iniciativa privada ou nas esferas do Poder
Público.
Esse círculo vicioso acaba por reforçar uma vulnerabilidade que não pode ser entendida
somente através de variáveis como classe social ou "raça". Analisar as relações socioespaciais
desiguais dos fluxos da água exige não somente a consideração do elemento social gênero, mas a
colocação de tal categoria como uma variável indispensável para o entendimento da construção
social dos territórios e dos conflitos de interesses envolvidos. Assim como a Geografia crítica
procurou interpretar o espaço geográfico e as apropriações deste através de uma visão crítica às
relações socioespaciais capitalistas, a Geografia do Gênero pretende contemplar uma análise dos
territórios através das relações de poder entre homens e mulheres, sem, obviamente,
descontextualizar esses cenários com as históricas lutas classistas (Martinez et al., 1995).
Na perspectiva de apontar as outras relações de poder estabelecidas na produção do espaço é
que acreditamos ser importante o estudo das relações de gênero pela ciência geográfica. Nesse
sentido é objetivo central desse estudo analisar de que forma as relações de gênero contribuem nos
fluxos socioespaciais desiguais da água, traduzidos pela criação ou fortalecimento de territórios de
exclusão marcados pelas contradições entre acesso e distribuição. O recorte espacial epistemológico
escolhido é o do município de Paraty, ao sul do estado do Rio de Janeiro. Vale ressaltar que por se
tratar de um trecho de pesquisa realizada no âmbito do curso de doutorado em Geografia da UFRJ o
que será apresentado abaixo não traz resultados finais mas o princípio de uma discussão frutífera
que pode ser desenvolvida ao longo do projeto em questão.
Caracterização metodológica e da área de estudo
Como estamos propondo uma leitura da água enquanto território foi indispensável uma
revisão bibliográfica acerca do conceito de forma mais geral o que nos levou a Rogério Haesbaert
(2004), Agripino Souza (2009) e Milton Santos (1979; 1994; 1996). Junta-se a essa revisão
bibliográfica aquela que diz respeito, mais especificamente, ao território-água, sendo de suma
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importância os trabalhos de Porto-Gonçalves (2001; 2004; 2005), Maria Angélica Maciel Costa
(2013), Gisela Aquino Pires do Rio (2004;2005;2009) e Antônio Carlos Diegues (2005; 2007).
Sendo a proposta do presente estudo uma análise das relações socioespaciais desiguais dos
fluxos da água através da variável territorial gênero, se faz indispensável a discussão do conceito de
Geografia do Gênero entendida como " aquella que examina las formas en que los processos
socioeconómicos, políticos y ambientales crean, reproducen y transformam no sólo donde vivimos
sino también las relaciones sociales entre los hombres y mujeres que alli viven y, también, a su vez,
estudia cómo las relaciones de genero tienen un impacto en dichos procesos y en sus
manifestaciones en el espacio y en el entorno" (Little et al, 1988, p. 2).
Dessa maneira são contribuições teóricas autoras que ao longo da história da produção do
conhecimento científico se preocuparam com a colocação das relações desiguais entre homens e
mulheres, como Ana Sabaté Martinez et al (1995), Ruth Paneli (2004), Helena Hirata (2015), Little,
J. (1986; 1988), Ruth Vieira (2010), entre outras.
É com esse olhar que se pretende "ler" as relações desiguais dos fluxos de água do
município do Paraty (imagem 1), em visitações às comunidades e realização de pesquisa in loco
através do método da observação participante. De acordo com Becker (1997), a observação
participante se faz através de: a) recolhimento de informações com a participação do pesquisador
em momentos importantes do grupo e organização que este estuda; b) observação do
comportamento das pessoas diante de um determinado fato; e c) incitação de conversas com alguns
ou com todos os participantes do evento afim de desvendar as interpretações que eles têm sobre os
acontecimentos que o pesquisador observou.
Para essa etapa mais empírica, realizada em conjunção com revisão bibliográfica, estão
previstas ações que objetivam a construção de uma Cartografia Social, com realização de
questionários e entrevistas com as mulheres das comunidades estudadas, além do incentivo a
reuniões inter-comunitárias e confecção de mapas temáticos através da ferramenta ArcGis e Spring
em parceria com a APA Cairuçu e a Secretaria de Meio Ambiente de Paraty, sendo essas
ferramentas utilizadas para auxiliar as atividades ligadas às comunidades contempladas.
Imagem 1: Localização do
município de Paraty
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Fonte: Google, 2016.
A água vista em seus múltiplos territórios e composta de uma multiterritorialidade.
Figura em um imaginário comum, quando falamos de água, imagens contraditórias de lindas
cachoeiras e/ou nascentes limpas, por um lado e de rios poluídos e terras secas e "mortas" por outro.
É claro que realizando aqui esse exercício é preciso um certo grau de generalização. O que
queremos colocar é que as imagens relacionadas à água que guardamos e reproduzimos certamente
refletem, de alguma maneira, nossa vivência e apropriação sociocultural deste recurso.
Desse modo, água não pode ser entendida como um recurso natural somente, ela é isso e
também "capital", ela é força que movimentava os primeiros moinhos da Inglaterra da Revolução
Industrial e, portanto, vista por muitos como parte de um sistema produtivo. A água é também
aquela do ciclo "natural", em forma de nuvens, precipitação e evaporação. Ela está em nossos
corpos numa proporção altíssima e inserida em quase todos os produtos que consumimos, seja ele
industrializado ou agrícola.
É ainda mais interessante pensar na fluidez da água. Ao passo que podemos pensar nos
tantos cursos d' água existentes, é importante também tentar visualizar os caminhos que a água faz
para chegar aos seus consumidores.
Isso levanta uma questão essencial nas discussões acerca da temática dos recursos hídricos.
Se cada grupo ou indivíduo social, imbricado em suas construções socioculturais e cotas de poder,
se apropria de forma desigual dos recursos naturais, dentre deles a água, é indispensável pensá-la
considerando sua geograficidade, isto é "na inserção concreta da sociedade na sua geografia, com
suas diferentes escalas" (Porto-Gonçalves, 2005) e desigualdades territoriais.
A água, vista como território, tem um caminho geográfico bem estabelecido e não é,
necessariamente, à jusante, mas na direção daqueles grupos sociais que podem pagar por ela
(Maciel Costa, 2013). Ela é marcada pelas contradições do sistema capitalista e sua mercantilização
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envolve discursos de escassez que acabam por tornar seu(s) território(s) ainda mais complexos e
acirrados, seja quando pensamos em seu arranjo "interno", se é que isso é possível, seja quando
pensamos nos múltiplos territórios (relações de poder) que se sobrepõem e/ou perpassam seus
"limites".
É nesse sentido que busca-se nesse trabalho analisar as contradições territoriais da água
através de uma relação de poder um tanto desvalorizada nos estudos geográficos, a relação de
gênero, numa tentativa de reinterpretação dos fluxos geográficos desiguais da água inseridos nas
relações hierárquicas patriarcais.
A discussão sobre o território não é, de maneira nenhuma, nova na Geografia. Pelo
contrário, diversos são os autores que se debruçaram sobre a temática afim de entender as relações
de poder que se dão no espaço-vivido. No entanto, uma grande parte dessas discussões trazem uma
noção de território que exclui os recursos naturais numa confirmação de uma dicotomia entre
sociedade e natureza. Temos uma clara noção de que os múltiplos territórios "incluem" os recursos
naturais mas ainda é "falha" a tarefa de entender determinados recursos, como a água, por exemplo,
como um território que está em sobreposição com tantos outros, material e simbolicamente. Esse
exercício é essencial para que nos afastemos de uma noção naturalizadora da água, ao mesmo
tempo que podemos discutir os discursos de escassez que justificam delimitações físicas e criação
de novos territórios.
De acordo com Raffestin (1993), não podemos entender um recurso, seja ele qual for, como
uma coisa abstrata, uma materialidade isolada, ele é "uma relação cuja conquista faz emergir
propriedades necessárias à satisfação de necessidades" socialmente construídas e dotadas de
relações de poder, "como um meio para atingir um fim". Tais relações são mutáveis no espaço-
tempo vivido, entendido como um território complexo e cheio de multiplicidade e diversidade
funcional e/ou simbólica (Haesbaert,2004).
Segundo essa lógica, o próprio espaço-vivido, ou seja, o território em si pode ser lido como
um recurso, uma forma de abrigo que fornece além de "proteção", alimentos e condições de
reprodução sociocultural. É sobre (e nele) o espaço-vivido que se dão as práticas religiosas,
econômicas e políticas, pra não falar daquelas que são, comumente, naturalizadas. Vale dizer,
inclusive, que o reconhecimento desse espaço-vivido se dá exatamente pelas complexas relações
que o formam ou dão sentido para os atores sociais que o compõem, traduzidas pelos objetos-
conteúdo (Santos, 1986).
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Isso traz à tona uma importante questão sobre a temática. Aqueles que não se vêem nesse
"desenho" ou não têm suas necessidades satisfeitas ou mesmo não são aceitos na circunscrição
"delimitada" são, portanto, desterritorializados?
Se as territorialidades clássicas – inclusive a do Estado-nação, tal como foi
concebido dentro do que Foucault denomina ‘poder soberano’ – indicavam uma
distinção mais clara entre o dentro e o fora, o mesmo e o diferente, o ‘nativo’ e o
estrangeiro, cabe destacar, finalmente, que se trata agora de uma des-ordem
territorial marcada muito mais pela ambigüidade, onde o próprio processo que
construímos para ‘conter’ o outro, na verdade ‘nos contém’ e onde o ‘outro’ –
como no caso dos grandes fluxos migratórios Sul-Norte – está cada vez mais no
‘nosso’ território, do nosso lado (Haesbaert, 2004, p. 118)
Esse termo já foi discutido amplamente por diversos geógrafos, mas foi Rogério Haesbaert o
maior contribuinte nas discussões que questionam o uso deste. Para o autor, ao mesmo passo que
ocorrem movimentos sociais de desterritorialização se dão outros novos processo de
reterritorialização, dando início a um processo que ele chama como "des-re-torialização", "uma vez
que não é possível, nem individual, nem socialmente ter-se a ausência de alguma forma de
territorialidade" (Haesbaert, 2004).
O que nos traz à linha de raciocício que queremos aqui seguir. A água entendida como um
território que sofre, portanto, diversas apropriações influenciadas por também múltiplas construções
socioculturas que fazem dela, inclusive, ter diversos usos simbólicos e materiais e "formas"
geográficas diferenciadas já foi, historicamente, objeto e palco de disputas e conflitos e,
consequentemente, de processos que poderiam ser entendidos como de desterritorialização.
Não precisamos ir muito longe, só pensar nos inúmeros povos que são retirados do lugar de
onde vivem muitas vezes, por gerações, pra dar espaço a imensas barragens de usinas hidrelétricas,
ou daqueles que, vivenciando grandes intervalos de "tempo" seco em regiões do semi-árido
brasileiro, precisam se deslocar frequentemente à procura de água para satisfazer as demandas mais
básicas de dessedentação. Nesses dois exemplos há a figura da mulher como ator social central.
Desse modo o termo desterritorialização pode ser entendido como uma "fase" de um
processo maior, de um contexto materialista histórico que funcionaliza e refuncionaliza a lógica
espacial geográfica de acordo com os interesses do mercado ou da "falta" de políticas públicas
sociais, promovendo, em diferentes escalas de tempo e espaço, des-re-torializações.
Análise dos fluxos desiguais da água no Município de Paraty através das relações de gênero.
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O município de Paraty se encontra na divisa do estado do Rio de Janeiro e São Paulo e é
internacionalmente conhecido pelo seu centro histórico e suas paisagens de beleza singular. Os
turistas que procuram a cidade geralmente estão atrás de um "turismo ecológico" com vivência em
ambientes tradicionalmente caiçaras, quilombolas e/ou indígenas. Famosos são também seus
centenários engenhos de cachaça e os inúmeros festivais culturais que movimentam a economia
local ao longo do ano.
Mas nem só de cachaça e festivais vive o município. Atualmente Paraty se encontra entre as
cinco cidades mais violentas do estado e o tráfico comanda cada vez mais territórios, ampliando
seus domínios para além das "periferias". Os índices de saúde são considerados abaixo do
adequado, segundo o Ministério da Saúde (2015), e há locais, como Trindade, onde não há nenhum
tipo de tratamento do esgoto, o que tem ocasionado mortes infantis por diarréia crônica (Prefeitura
de Paraty, 2015) e agravado conflitos na região já marcada por históricas disputas fundiárias. Suas
muitas comunidades rurais e costeiras vivem na ausência de diversos serviços básicos, entre eles o
fornecimento regular de água.
No ano de 2014 foi firmada uma parceria público-privada com a Águas de Paraty,
ramificação da empresa Águas do Brasil, responsável, atualmente, pelos serviços de água e
saneamento básico em diversas cidades brasileiras, como Manaus, Petrópolis, Niterói e Votorantim
(Águas do Brasil, 2016).
Tal parceria foi uma tentativa de ampliar os serviços de abastecimento e tratamento da água
no município com sérios problemas na rede e abarca uma espacialidade de 34 bairros do Distrito-
sede (Prefeitura de Paraty, 2016). Apesar de ser uma cidade pequena, com cerca de 4O mil
habitantes (IBGE, 2016), a ocupação de Paraty é espacialmente ampla e muitas comunidades estão
há quilômetros de distância umas das outras. Há também áreas "isoladas" na região costeira onde só
se chega de barco e com poucas habitações, o que dificulta a implantação de sistemas tradicionais
de drenagem e saneamento básico pelo fator físico da distância do centro do município e, em outra
escala de análise, pela ausência de vantagem política e/ou econômica.
Sabe-se que o que faz com que empresas privadas adentrem no setor dos serviços de água e
saneamento básico, em detrimento da "falta" de capacidade das prefeituras em realizar tais serviços
de responsabilidade da esfera municipal, é a possibilidade de reaver seus investimentos através da
cobrança pela água encanada e limpa. Locais onde residem poucas pessoas ou a distância
geográfica demanda maiores investimentos não são, na lógica do mercado, áreas interessantes.
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Esse sistema vai desenhando ou mesmo intensificando uma geografia desigual dos fluxos da
água que corre na direção daqueles grupos sociais que podem pagar pelo acesso a um recurso que
até pouco tempo atrás era tratado, em muitas comunidades, como um território de uso comum.
Populações inteiras que centenariamente fizeram a gestão de seus territórios, inclusive do
território-água, e que desenvolveram técnicas comunitárias para isso, tem se visto obrigadas a
desapropriar espaços simbólicos e funcionais para a introdução de um sistema produtivo que os
coloca na posição de consumidor. É a responsabilização do ator social uma das características mais
marcantes do processo de privatização dos serviços de água.
Em uma região de populações majoritariamente costeiras e rurais onde as disputas
territoriais se traduziam, geralmente, por conflitos fundiários causados pela desapropriação de terras
para a implantação de Unidades de Conservação ou de condomínios de luxo e empreendimentos
turísticos, com consequente deslocamento das populações originárias (a maioria de origem indígena
e caiçara) para bairros do Distrito-sede, o fator cobrança de água pode ser interpretado enquanto
agravante e mesmo vetor de modificação do padrão espacial já conturbado.
Nesse sentido é importante o questionamento de como se dava o consumo da água
anteriormente a esse processo de cobrança pelos serviços de água nas comunidades afetadas e como
este tem acontecido, considerando, com base nas discussões teóricas apresentadas no seio da
Geografia do Gênero, os rebatimentos sobre a classe feminina e as implicações territoriais
correlatas.
A cobrança de água nos 34 bairros do Distrito-sede atinge de maneira desigual as mulheres?
De que maneira? Essas são apenas algumas questões a serem trabalhadas ao longo do projeto.
Uso das relações de gênero para analisar os fluxos socioespaiais desiguais da água em Paraty.
As perguntas lançadas no tópico acima apenas nos levam a um outro grupo de
questionamentos e essa inquietação é material de produção para buscar entender como as mulheres
são afetadas pelas contradições de um sistema de acesso e distribuição de água intrisecamente
desigual. Ou, por outro lado, como este grupo social pode trazer contribuições para a construção de
um discurso contra-hegemônico e, nesse sentido, de territórios e territorialidades não
homogeinizadoras.
Como colocado acima em diversos momentos, a busca de uma análise da água enquanto
território torna necessária a exposição e consideração de uma gama de elementos e atores sociais
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em seus conflitos de interesses e disputas territoriais funcionais e/ou simbólicas e,
consequentemente as oportunidades que cada grupo ou indivíduo tem para se lançar nas disputas.
O município de Paraty como um todo, no que diz respeito ao acesso à água, nunca enfrentou
grandes problemas, no entanto quando pensamos o acesso a uma água de qualidade, tratada e,
consequentemente, adequada para consumo, isso se torna uma questão, principalmente na zona
costeira e rural. Segundo o IBGE (2016) nessas áreas moram cerca de 9.000 pessoas, com uma
distribuição demográfica bastante irregular. Existem comunidades caiçaras da região costeira, como
a Ponta Grossa, que são constituídas por menos de 100 núcleos familiares. Nessas localidades mais
afastadas e menos povoadas, o território não é coberto pela PPP Águas de Paraty e o serviço de
água é feito por uma empresa tercerizada em contrato com a Secretaria de Obras do município. No
entanto, em visita a algumas localidades dessa região, como a Ponta Grossa, Praia do Sono,
Quilombo do Campinho, Trindade, Saco do Mamanguá, etc., pode-se perceber que, muitas vezes,
os sistemas de reservamento e/ou distribuição da água são criados, mantidos e geridos pelos
próprios moradores, principalmente pelas mulheres, que ficam à cargo dos serviços domésticos
enquanto os homens saem para trabalhar na pesca, como caseiros das casas de veraneio, ou em
atividades turísticas, como o transporte de barco.
Essa relação existente entre as mulheres e as territorialidades e múltiplos territórios que
entrecruzam o território-água do município de Paraty, mas, principalmente nessa zona rural e
costeira onde há, notoriamente, uma maior proximidade tanto com as fontes d'água quanto de
formas menos convencionais de gestão desse recurso, demonstram um espaço de leitura
epistemológica e reforçam a necessidade de insersão da variável gênero nos estudos acerca da
temática da água.
A relação gênero e água revela o papel desempenhado pelas mulheres como
principal responsável na busca e acesso da água (...) No entanto nota-se que as
mulheres têm, historicamente, exercido menor influência que os homens, na análise
dos problemas, na tomada de decisões e na definição das políticas públicas,
incluindo aquelas relacionadas aos recursos hídricos (VIERA, 2010, p. 68).
Há, nisso, uma notória relação contraditória que está não somente contida nas também
contraditórias relações socioespaciais do sistema capitalista ocidental, mas também na histórica
construção social patriarcal que naturaliza certas funcões enquanto femininas, como as do cuidado e
dos serviços domésticos e/ou comunitários, quando pensamos em comunidades rurais ou
tradicionais.
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O território-água, visto sob a òtica da Geografia do Gênero pode ser inspirador para
processos de reterritorialização e utilizado, inclusive, para recriar "sentimentos" de apropriação
distintas e de resistência à mercantilização e homogeinização da água.
Essa é uma visão que procura pensar os fuxos socioespais desiguais através do território-
água em conjunção com as territorialidades de gênero. Dessa maneira acredita-se que podemos,
inclusive, dar enfoque a processos de reterritorialização que são formas de resistência contra os
tantos processos espaciais de homogeinização e mercantilização da água.
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Gender relations and unique water socioespacial flows in the municipality of Paraty
Astract The theme of water is the focus of analysis of a wide network of scholars, political and
socio-economic agents, and therefore suffer diversified appropriations influenced by different
cultural constructions and dimensions of power. For this and other reasons water can not be treated
in isolation, as instrumental rationality has been doing, it must be thought of as territory, that is,
scenery of the contradictions and spatial inequalities inherent in the Western capitalist system.
There are many authors who address this arduous task in an attempt to escape from a dichotomous
analysis of society and nature. This effort has brought interesting results with consequent insertion
of actors and scenarios hitherto little contemplated, but there are still few studies that are concerned
with gender relations in the analysis of unequal flows of water. The present work seeks to bring
gender relations to an analysis of the unequal socio-spatial flows of water in the city of Paraty, Rio
de Janeiro, understanding that, just as the relations of class and "race" determine possibilities of
experiencing and appropriating space Inequalities of power between men and women also do so.
Territory of several traditional communities, Paraty is a concrete space of material and immaterial
struggles of caiçaras, being the important woman to understand the consolidation of the spaces of
exclusion and, thus, of the water territories.
Keywords: unequal flows of water, gender relations, territories of exclusion, female resistance
caiçara.