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5/22/2018 REISFILHO,DanielAara o;GASPARI,Elio;BENJAMIN,Ce sar.VERSESEFICESOSEQU... http://slidepdf.com/reader/full/reis-filho-daniel-aarao-gaspari-elio-benjamin-cesar-versoes-e-ficc

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  • VERSES E FICES:O SEQESTRO DA HISTRIA

    Ponto de Partida

  • ISBN 85-86469-03-3

    Copyright 1997 by Editora Fundao Perseu Abramo

    Leia tambm da Coleo Ponto de Partida

    Oramento participativo:A experincia de Porto AlegreTarso Genro e Ubiratan de Souza

    Outros lanamentos da Editora Fundao Perseu Abramo

    Um trabalhador da notciaTextos de Perseu AbramoOrganizao de Bia Abramo

    R e m e m r i aEntrevistas sobre o Brasil do sculo XXColetnea (no prelo)

  • DANIEL AARO REIS F ELIO GASPARICSAR BENJAMIN FRANKLIN MARTINS

    VERA SLVIA MAGALHES HELENA SALEMPAULO MOREIRA LEITE JORGE NAHAS

    MARCELO RIDENTI ALIPIO FREIRECELSO HORTA EMIR SADER

    IZAAS ALMADA CONSUELO LINSIDIBAL PIVETA DULCE MUNIZ

    RENATO TAPAJS

    VERSES E FICES:O SEQESTRO DA HISTRIA

  • Fundao Perseu Abramo

    DiretoriaLuiz Dulci (Presidente)

    Zilah Wendel Abramo (Vice-presidente)Hamilton Pereira

    Ricardo de Azevedo

    Editora Fundao Perseu Abramo

    Coordenao editorialFlamarion Maus

    RevisoDenise Dognini

    Sandra BrazilValter Pomar

    Capa e Projeto GrficoEliana Kestenbaum

    Fotos da capaIconografia

    Fotomontagem da capaEnrique Pablo Grande

    Editorao EletrnicaAugusto Gomes

    1 edio: julho de 1997Todos os direitos reservados

    Editora Fundao Perseu AbramoAv. Dr. Arnaldo, 128

    So Paulo - SP01246-000

    Fone: (011) 259-8024 / 214-0594Fax: (011) 214-5026

    e-mail: [email protected]

  • NDICE

    APRESENTAO..................................................9

    QUE HISTRIA ESSA?Marcelo Ridenti....................................................11

    UM PASSADO IMPREVISVEL: A CONSTRUODA MEMRIA DA ESQUERDA NOS ANOS 60Daniel Aaro Reis F ............................................31

    FILME FICA EM DBITOCOM A VERDADE HISTRICA

    Helena Salem.......................................................47

    O QUE FOI AQUILO, COMPANHEIROPaulo Moreira Leite...............................................51

    EX-MILITANTE INSPIRAPERSONAGENS FEMININAS:

    ENTREVISTA COM VERA SLVIA MAGALHES

    Helena Salem.......................................................61

  • FICO JULGADASOB AS LENTES DA HISTRIA:

    ENTREVISTA COM DANIEL AARO REIS F

    Helena Salem.......................................................71

    CINEMA NA ERA DO MARKETINGCsar Benjamin.....................................................93

    VERSES E FICES: A LUTA PELAAPROPRIAO DA MEMRIA

    Daniel Aaro Reis F .........................................101

    LEES E CAADORESEmir Sader.........................................................107

    O QUE ISSO, COMPANHEIRO?:

    O OPERRIO SE DEU MAL

    Elio Gaspari.......................................................111

    AS DUAS MORTES DE JONASFranklin Martins.................................................117

    JONAS, UM BRASILEIROCelso Horta.......................................................125

    BREVE BIOGRAFIA DE VIRGLIO GOMES DA SILVADulce Muniz.......................................................131

  • SOBRE JONAS, O DO FILME, NO O DA BALEIAIdibal Piveta (Csar Vieira)....................................133

    O QUE FOI AQUILO, COMPANHEIROS? (2)Jorge Nahas.......................................................137

    HISTRIA: FICO, REALIDADE E HIPOCRISIAIzaas Almada.....................................................141

    O QUE ISSO, COMPANHEIRO?:

    A FICO RESISTE SEM A HISTRIA?

    Consuelo Lins....................................................151

    PELA PORTA DOS FUNDOSAlipio Freire......................................................155

    QUAL A TUA, COMPANHEIRO?Renato Tapajs...................................................169

    MANEIRA DE UM BALANO:EPLOGO OU PRLOGO?

    Daniel Aaro Reis F..........................................181

    APNDICE - O FILME CONFUNDEINTENCIONALMENTE A REALIDADE:

    ENTREVISTA COM CLUDIO TORRES

    Hamilton Octavio de Souza...................................187

  • QUE HISTRIA ESSA?

    8

    CONTRAPONTO - O DESLOCAMENTODO NARRADOR EM O QUE ISSO, COMPANHEIRO?Eugnio Bucci....................................................209

    ANEXOManifesto da ALN e MR-8.....................................227

  • MARCELO RIDENTI

    9

    APRESENTAO

    As artes e as chamadas cincias humanas se caracte-rizam por explicarem a incrvel variedade e as in-meras possibilidades de interpretao que um mesmofato pode receber. O modo de ver muda conforme aposio (social, ideolgica, geogrfica etc.) em que seencontra aquele que interpreta.

    Este livro surgiu da necessidade que diversas pessoassentiram de expressar o seu ponto de vista e questionaroutros, num saudvel confronto de posies e idias.

    justamente por aceitarem e defenderem amanifestao dos mais variados pontos de vista que elasvm a pblico para demonstrar suas discordncias e oserros, manipulaes e deturpaes que algumas interpre-taes trazem consigo. Estas, por sinal, tambm so car-actersticas da natureza humana.

    Dos textos reunidos em Verses e fices: o seqestro dahistria, apenas os de Marcelo Ridenti, Celso Horta e doque fecha o volume, de Daniel Aaro Reis F, foram

  • QUE HISTRIA ESSA?

    1 0

    escritos especialmente especialmente para este livro. Osdemais surgiram de forma espontnea e sem ligao umcom o outro. No foram encomendados para o livro nempensados como parte de um conjunto maior. Ascircunstncias e a premncia os reuniram. Eles so umamanifestao de idias e ideais que acreditamos devamser defendidos, respeitados e valorizados.

    Dentro desta perspectiva, a coletnea procurou ser omais plural possvel. No se deve esperar apenas con-cordncias e convergncias entre os diversos autores.Estas existem, mas marcam presena inmeras diferenase discordncias, o que apenas enriquece o trabalho. oque esperamos.

    Talvez o que mais tenha motivado todos os que es-creveram os textos aqui reunidos seja a esperana de es-tes que possam servir s pessoas que no viveram a pocaem que os fatos abordados ocorreram o final dos anos60 e o incio dos 70, tempos de medo e coragem, ternu-ra e brutalidade, nsia de vida e morte e de glria, comoregistrou Jorge Nahas. De maneira que elas possam teroutra viso sobre este perodo que no seja somente aquelaproduzida pelos caadores como to bem caracterizouEmir Sader e, certamente, muito alm daquela que sepretende isenta e desideologizada.

    O editor

  • MARCELO RIDENTI

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    Este artigo tem o propsito de introduzir o leitor nahistria social e poltica brasileira do final dos anos60, particularmente no estudo da oposio armada aoregime civil-militar. Destina-se em especial queles que,como eu, no viveram essa poca em idade adulta e es-to interessados em descobrir a complexidade da histriarecente do pas, que vai muito alm do que se v emverses como a do filme de Bruno Barreto, O que isso,companheiro?. claro que se trata apenas de umaintroduo ao tema, por isso fao questo de citar, emnotas ao longo do texto, vrios livros importantes jpublicados, nos quais os leitores podero encontrar maisinformaes e anlises sobre o perodo.

    MARCELO RIDENTI

    QUE HISTRIA ESSA?

  • QUE HISTRIA ESSA?

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    O esprito da poca no ps-1964

    Um erro em que muitas vezes se incorre ao pensaras esquerdas nos anos 60 tom-las separadamente docontexto da poca que as produziu e que tentaram trans-formar. De fato, fora daquelas circunstncias especfi-cas, parece um despropsito a opo de armar-se parainiciar a guerrilha, supostamente o primeiro passo pararealizar a revoluo brasileira.

    Por isso, vale a pena recordar as circunstncias his-tricas daquele tempo. Em termos internacionais, fo-ram vitoriosas ou estavam em curso inmeras revoluesde libertao nacional, por exemplo, a Revoluo Cuba-na (1959), a independncia da Arglia (1962) e a guerraantiimperialista em desenvolvimento no Vietn. O xitomilitar dessas revolues fundamental para secompreender as lutas e o iderio contestador nos anos60: havia povos subdesenvolvidos que se rebelavam con-tra as grandes potncias, para criar um sonhado mundonovo. Em especial, a Revoluo Cubana era uma espe-rana para os revolucionrios latino-americanos, inclu-sive no Brasil.

    Ao mesmo tempo, questionava-se o modelo so-vitico de socialismo, considerado burocrtico e aco-modado ordem internacional estabelecida pelaGuerra Fria, incapaz de levar s transformaes so-ciais, polticas e econmicas necessrias para se che-gar ao comunismo. Esse modelo que s ruiria devez com a desagregao da Unio Sovitica, em 1989 era contestado na poca, por exemplo, no interior

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    do Partido Comunista da Checoslovquia, cuja cha-mada Primavera de Praga foi destruda pela invasodos tanques de guerra soviticos, em 1968. Tambmo processo de revoluo cultural proletria, em cursona China a partir de 1966 que mais tarde viria arevelar seu lado trgico , parecia a setores jovens domundo todo uma resposta ao burocrat ismo deinspirao sovitica.

    Movimentos de protesto e mobilizao poltica sur-giram por toda parte, especialmente no ano de 1968: dasmanifestaes nos Estados Unidos contra a guerra noVietn Primavera de Praga; do maio libertrio dosestudantes e trabalhadores franceses ao massacre deestudantes no Mxico; da alternativa pacifista dos hippies,passando pelo desafio existencial da contracultura, atos grupos de luta armada, espalhados mundo afora. Ossentimentos e as prticas de rebeldia contra a ordem ede revoluo por uma nova ordem fundiam-se criativa-mente.

    Alm dos fatores internacionais, foram principal-mente aspectos da poltica nacional que marcaram aslutas das esquerdas brasileiras nos anos 60. O processode democratizao poltica e social, com a mobilizaopopular pelas chamadas reformas de base agrria,educacional, tributria e outras que permitissem melhordistribuio da riqueza e de direitos , foi interrompidopelo golpe de 1964. Ele deu fim s crescentes reivindi-caes de operrios, camponeses, estudantes e militaresde baixa patente, cuja politizao ameaava a ordem es-tabelecida.

  • QUE HISTRIA ESSA?

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    A falta de resistncia ao golpe gerou surpresa, jus-tamente pela mobilizao em busca das reformas es-truturais no pr-64, com a presena marcante das es-querdas, notadamente do Part ido ComunistaBrasileiro (PCB) entidade ilegal, mas cuja atuaoera consentida pelo governo Goulart. A derrota foiatribuda por muitos aos erros dos dirigentes dos parti-dos de esquerda, que no se prepararam para resistir,caso do hegemnico e pr-sovitico PCB, da AoPopular (AP), do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)e da Poltica Operria (Polop), alm de outros gruposmenores. Sem contar a inao das l ideranastrabalhistas e nacionalistas, como a do presidentedeposto, Joo Goulart1. Ia-se constituindo uma cor-rente de opinio difusa em vrios segmentos da es-querda, que colocava a necessidade de criar uma van-guarda realmente revolucionria, que rompesse como imobilismo e opusesse uma resistncia armada fora bruta do governo, no s para restabelecer a de-mocracia, mas especialmente para avanar em direo superao do capitalismo.

    A partir de outubro de 1965, por imposio doregime, passaram a exist ir apenas dois part idosreconhecidos institucionalmente: a situacionistaAliana Renovadora Nacional (Arena), e a oposioconstrutiva e moderada do Movimento Democr-tico Brasileiro (MDB), que viria a ser calada com

    1. No exlio uruguaio, o nacionalista Leonel Brizola tentou articular aresistncia armada, mas o projeto frustrou-se. Ver: REBELLO, Gilson.A guerrilha de Capara. So Paulo, Alfa-Omega, 1980.

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    cassaes de polticos e outros mecanismos, sempreque se excedesse aos olhos dos governantes2.

    Fora do campo institucional, vrios grupos pro-cura-vam combater a ditadura e organizar os movimentospopulares: da Ao Popular (AP), nascida do cristianis-mo catlico, depois convertida ao maosmo, passandopelo moderado e cada vez mais dividido PCB, que apoiavao MDB, e estava cindido pelo guevarismo de diversasdissidncias, as quais valorizavam a necessidade de iniciara revoluo pela guerrilha rural caso tpico da AoLibertadora Nacional (ALN) e do MovimentoRevolucionrio 8 de Outubro (MR-8), que promoveramo seqestro do embaixador norte-americano; at outrasorganizaes que pegaram em armas na resistncia ditadura, como a Vanguarda Popular Revolucionria(VPR), dentre tantas que enfatizavam a necessidade daao revolucionria imediata3.

    2. Consultar sobre o tema: ALVES. M. Helena Moreira. Estado e oposiono Brasil. Petrpolis, Vozes, 1984; KINZO, M. Dalva Gil. Oposio eautoritarismo: gnese e trajetria do MDB, 1966/1979. So Paulo, Sumar,1990. Sobre a dinmica militar das crises polticas da ditadura entre1964 e 1969, ver: MARTINS FILHO, Joo Roberto. O palcio e a caserna.So Carlos, Ed. da UFSCar, 1995.3. Para uma reconstruo histrica detalhada dos fatos e dos gruposde esquerda no perodo, ver: GORENDER, Jacob. Combate nas trevas - Aesquerda brasileira: das iluses perdidas luta armada. So Paulo,tica, 1987. Outra interpretao das organizaes comunistas, vistascomo grupos revolucionrios de elite, est em REIS FILHO, DanielAaro. A revoluo faltou ao encontro. So Paulo, Brasiliense, 1989.Minha viso sobre o tema com destaque para a agitao cultural doperodo, a composio e as razes sociais diferenciadas das organizaes,alm de seu progressivo isolamento e perda de representatividade

  • QUE HISTRIA ESSA?

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    A contestao radical ordem estabelecida no ps-64 no se restringia s organizaes de esquerda; difun-dia-se socialmente na msica popular, no cinema, noteatro, nas artes plsticas e na literatura. O romanceQuarup, de Antonio Callado4 , talvez seja o exemplo maisrepresentativo da utopia revolucionria do perodo, noqual se valorizava acima de tudo a ao organizada daspessoas para mudar a histria.

    Filmes como Terra em transe, de Glauber Rocha, eOs fuzis, de Ruy Guerra, dentre outros do Cinema Novo;peas encenadas pelo Teatro de Arena e pelo Oficina;canes como Terra plana e Para no dizer que no faleidas flores (Caminhando), de Geraldo Vandr, Roda e Pro-cisso, de Gilberto Gil, Viola enluarada, dos irmos Valle,Soy loco por ti, Amrica, de Capinam e Gil, e outras decompositores como Srgio Ricardo, Chico Buarque, EduLobo, Milton Nascimento e seus parceiros; as exposiesde artes plsticas, como a Nova Objetividade Brasileira,no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; enfim,inmeras manifestaes culturais, diferenciadamente,entre 1964 e 1968, cantavam em verso e prosa a espe-rada revoluo brasileira com base principalmentena ao das massas populares, em cujas lutas a

    4. CALLADO, Antonio. Quarup. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira,1967. O prprio Callado chegou a ter vinculao orgnica com oesquema guerrilheiro de Brizola, como ele me declarou em entrevistarealizada em julho de 1996, para a pesquisa que venho realizando, comapoio do CNPq, sobre a participao poltica dos artistas brasileiros, apartir de 1964.

    est desenvolvida em RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revoluobrasileira. So Paulo, Ed. Unesp, 1 reimpresso, 1996.

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    intelectualidade de esquerda estaria organicamente en-gajada5 . Na dcada de 1960, a utopia que ganhavacoraes e mentes era a revoluo (no a democracia oua cidadania, como hoje), tanto que o prprio golpe de-signou-se como revoluo de 1964.

    Uma srie de grupos guerrilheiros surgiria a partir de1964, em meio ao refluxo dos movimentos populares,desmantelados pela represso que tambm golpeavaduramente as organizaes de esquerda, as quais se en-contravam em pleno processo de autocrtica, como sedizia na poca. Sua principal fonte de recrutamento demilitantes estava no meio estudantil, bero do nicomovimento de massas que se rearticulou nacionalmentenos primeiros anos do ps-64, lanando-se em significa-tivos protestos de rua, especialmente em 19686.

    As organizaes guerrilheiras tinham divergnciasentre si: acerca do carter da revoluo brasileira (paraalgumas, a revoluo seria nacional e democrtica, numaprimeira etapa; para outras, ela j teria carter imediata-mente socialista); sobre as formas de luta revolucionriamais adequadas para chegar ao poder (a via guerrilheiramais ou menos nos moldes cubanos; o cerco das cidadespelo campo, de inspirao maosta; a insurreio popu-lar etc.); bem como sobre o tipo de organizao poltica

    5. Roberto Schwarz trata do tema no artigo Cultura e poltica, 1964-1969 (In: O pai de famlia e outros estudos. Rio de Janeiro, Paz e Terra,1978); ver tambm: HOLLANDA, Helosa Buarque. Impresses de viagem:CPC, vanguarda e desbunde. So Paulo, Brasiliense, 1981; dentre outros.6. Ver MARTINS FILHO, Joo Roberto. Movimento estudantil e ditaduramilitar, 1964-1968. Campinas, Papirus, 1987.

  • QUE HISTRIA ESSA?

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    a ser construda discutia-se muito a necessidade ouno de um partido nos moldes leninistas da III Interna-cional.

    Por outro lado, as organizaes armadas tambmapresentavam aspectos em comum, tais como: a prio-ridade revolucionria da ao armada, contra o supostoimobilismo de partidos como o PCB; a interpretao daeconomia brasileira como vivendo um processo ir-reversvel de estagnao o desenvolvimento das forasprodutivas estaria bloqueado sob o capitalismo, que alia-ria indissoluvelmente os interesses dos imperialistas, doslatifundirios e da burguesia brasileira, garantidos pelasforas militares. S um governo popular, ou mesmosocialista, possibilitaria a retomada do desenvolvimen-to. Como decorrncia desse tipo de anlise, estariam dadasas condies objetivas para a revoluo, faltando apenasas subjetivas, que seriam forjadas por uma vanguardarevolucionria decidida a agir de armas na mo, criandocondies para deflagrar a guerrilha a partir do campo local mais adequado para as atividades revolucionrias,por sofrer a fundo a espoliao e a misria e por apresentarmaiores dificuldades para os rgos repressivos.

    A fim de iniciar a guerrilha rural, seria necessrioconseguir armamentos e dinheiro. Da vrios gruposterem empreendido aes urbanas, por exemplo, assal-tos a bancos e roubos de armas. Como a ditadura iaaperfeioando seu aparelho repressivo, efetuando prises,seguidas de infindveis torturas, algumas organizaesresolveram promover seqestros de diplomatas oprimeiro deles foi o do embaixador norte-americano

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    para forar a libertao de presos polticos e divulgar aluta armada. Assim, em 1970, foram realizados com xitooutros trs seqestros: em maro, com a ajuda de doisgrupos menores, a VPR seqestrou o cnsul japons emSo Paulo, logrando libertar cinco presos; em junho foia vez do embaixador da Alemanha Ocidental, que a VPRe a ALN trocaram por 40 detidos; finalmente, emdezembro, a VPR capturou o embaixador suo,conseguindo livrar 70 prisioneiros, aps cerca de 40 diasde tensas negociaes, com o veto da ditadura a vriosnomes da lista inicialmente apresentada. O desgaste dessaao, associado fraqueza orgnica do que restava daesquerda armada, destroada pela represso, colocou umponto final nos seqestros.

    Apesar de uma ou outra operao guerrilheira bem-sucedida, os militares desmantelaram rapidamente as or-ganizaes armadas, especialmente entre 1969 e 1971, nohesitando em assassinar e torturar seus inimigos, que noconseguiram deflagrar a guerrilha rural. Apenas o PCdoB,crtico das aes urbanas, conseguiu lanar a guerrilha, naregio do Araguaia, no sul do Par. De 1972 a 1974, houveencarniada luta, que culminou com a derrota dos guerri-lheiros, quase todos mortos em combate ou assassinadosdepois de capturados, sem que se tenha notcia oficial, athoje, do paradeiro de seus corpos7 .

    A ditadura civil-militar manteria o poder durante

    7. Ver, sobre a guerrilha do Araguaia: POMAR, Wladimir. Araguaia:o Partido e a guerrilha. So Paulo, Brasil Debates, 1980; PORTELA,Fernando. Guerra de guerrilhas no Brasil. So Paulo, Global, 1979.

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    20 anos. As esquerdas enganaram-se ao supor que o golpeimplicaria a estagnao econmica. Ao contrrio, repre-sentando as classes dominantes e setores das classesmdias, os governos autoritrios promoveram a chama-da modernizao conservadora. Houve crescimentorpido das foras produtivas, acompanhado da concen-trao de riquezas, do aumento da distncia entre os maisricos e os mais pobres, bem como do cerceamento sliberdades democrticas. O regime buscava sualegitimao poltica com base nos xitos econmicos,sustentados por macios emprstimos internacionais,geradores da imensa dvida externa na qual estamos ato-lados at os dias de hoje.

    1969: mergulho no pesadelo

    O ano de 1969 quando ocorre o seqestro do em-baixador norte-americano teve incio sob o signo darepresso: em 13 de dezembro de 1968, o regime civil-militar baixara o Ato Institucional nmero 5 (AI-5), co-nhecido como o golpe dentro do golpe. Com ele, ossetores militares mais direitistas que haviam patroci-nado uma srie de atentados com autoria oculta, sobre-tudo em 1968 lograram oficializar o terrorismo deEstado, que passaria a deixar de lado quaisquer pruridosliberais, at meados dos anos 70. Agravava-se o carterditatorial do governo, que colocou em recesso o Con-gresso Nacional e as Assemblias Legislativas estaduais,passando a ter plenos poderes para: cassar mandatoseletivos, suspender direitos polticos dos cidados, demitir

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    ou aposentar juzes e outros funcionrios pblicos,suspender o habeas-corpus em crimes contra a segurananacional, legislar por decreto, julgar crimes polticos emtribunais militares, dentre outras medidas autoritrias.Paralelamente, nos pores do regime, generalizava-se ouso da tortura, do assassinato e de outros desmandos.Tudo em nome da segurana nacional, indispensvelpara o desenvolvimento da economia, doposteriormente denominado milagre brasileiro.

    Com o AI-5 foram presos, cassados, torturados ouforados ao exlio inmeros estudantes, intelectuais,polticos e outros oposicionistas. O regime instituiu rgidacensura a todos os meios de comunicao, colocandoum fim agitao poltica e cultural do perodo. Poralgum tempo, no seria tolerada qualquer oposio aogoverno, sequer a do moderado MDB. Era a poca doslogan oficial Brasil, ame-o ou deixe-o.

    Nessas circunstncias, as organizaes que j vin-ham realizando algumas aes armadas ao longo de 1968 como a ALN e a VPR concluram que estavam nocaminho certo, e intensificaram suas atividades em 1969.Outros grupos tambm passaram a no ver outro modode combater a ditadura, a no ser pela via das armas.Com exceo do PCB, do PCdoB, da AP e dos pequenosagrupamentos trotskistas, ocorreu o que Jacob Goren-der chamou de imerso geral na luta armada, promo-vida por mais de uma dezena de organizaes, como aAla Vermelha, o Partido Comunista BrasileiroRevolucionrio (PCBR), o Partido Revolucionrio dosTrabalhadores (PRT), a Vanguarda Armada Revolu-

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    cionria-Palmares (VAR), o Partido Operrio Comunis-ta (POC), dentre tantas outras.

    Paralelamente escalada das aes armadas, a dita-dura ia aperfeioando seu aparelho repressivo: alm dosj existentes Departamentos Estaduais de Ordem Polti-ca e Social (DEOPS), criou em junho de 1969, extra-ofi-cialmente, a Operao Bandeirante (Oban), organismoespecializado no combate subverso por todos osmeios, inclusive a tortura sistemtica. Em setembro de1970, a Oban integrou-se ao organismo oficial, recm-criado pelo Exrcito, conhecido como DOI-CODI (Desta-camento de Operaes de Informaes-Centro deOperaes de Defesa Interna). A Marinha tinha seu rgode inteligncia e represso poltica, o Centro deInformaes da Marinha (Cenimar), correspondente aoCentro de Informaes e Segurana da Aeronutica (CISA),e ao Centro de Informaes do Exrcito (CIE)8.

    Em agosto de 1969, o presidente-general Costa e Silvasofreu uma trombose da qual viria a morrer e precisouser afastado da presidncia. A ditadura estava diante denovo impasse: dar ou no posse ao vice, Pedro Aleixo,moderado e civil. Com o Congresso ainda fechado (s rea-briria, depois de devidamente expurgado, para eleger o

    8. Sobre os aspectos repressivos do perodo, veja-se: ARNS, D. PauloEvaristo. Prefcio. In: Brasil: nunca mais. Petrpolis, Vozes, 1985. Esselivro um resumo dos 12 volumes publicados em tiragem limitada pelaArquidiocese de So Paulo, dando um quadro completo da represso,com base nos processos movidos pelo regime militar contra seusopositores; ver tambm: ARAJO, Maria do Amparo et alii. Dossi dosmortos e desaparecidos polticos a partir de 1964. Recife, Cia. Editora dePernambuco, 1995.

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    presidente Mdici, que governaria a partir de 1970, nospiores tempos da represso), os militares resolveram queCosta e Silva seria substitudo por uma Junta, compostapelos trs ministros militares em exerccio: Lyra Tavares,Augusto Rademaker Grnewald e Mrcio de Souza eMello. Enquanto isso, intensificavam-se as prises e tortu-ras de militantes de esquerda.

    O quadro era esse quando a direo do MR-8 novasigla assumida pela at ento Dissidncia Estudantil doPCB na Guanabara (DI-GB), que liderara os concorridosprotestos e passeatas de 1968 no Rio de Janeiro re-solveu seqestrar o embaixador norte-americano, paradenunciar publicamente a ditadura e libertar presospolticos. Pediu e recebeu ajuda da ALN paulista, grupocom mais experincia militar. Em 4 de setembro, dataescolhida a dedo, em plena Semana da Ptria, o embai-xador foi seqestrado por um comando composto porVirglio Gomes da Silva (o Jonas, comandante daoperao), Manoel Cyrillo de Oliveira, Paulo de TarsoVenceslau todos da ALN , alm dos membros doMR-8: Franklin Martins (idealizador do seqestro e au-tor da carta-manifesto divulgada pelos guerrilheiros),Cludio Torres, Cid Benjamim, Joo Lopes Salgado,Srgio Torres, Sebastio Rios e Vera Slvia Magalhes9.Os integrantes da operao com exceo de Paulode Tarso, Srgio Torres, Sebastio Rios e Vera Slvia ficaram escondidos com o embaixador numa casa da

    9. Vera Slvia descobriu o esquema falho de proteo ao embaixador,mas jamais se sujeitou a dormir com o chefe da segurana, comoaparece no filme O que isso, companheiro? de Bruno Barreto. O diretor

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    rua Baro de Petrpolis, no bairro do Rio Comprido,onde tambm estavam Fernando Gabeira, jornalista liga-do ao segundo escalo do MR-8, que alugara a casa, eJoaquim Cmara Ferreira, o Toledo, principal dirigenteda ALN, depois de Carlos Marighella.

    Pressionada pelo governo norte-americano, a juntamilitar liberou 15 prisioneiros polticos, que receberiama pena de banimento do territrio nacional. Em troca, oembaixador foi solto, em 7 de setembro de 1969, acontragosto de bolses militares de extrema direita, quechegaram a tomar uma rdio, para divulgar seu incon-formismo com a escalada terrorista.

    Imediatamente, o regime colocou em vigor nova Leide Segurana Nacional, ainda mais dura. Tambm impsuma Constituio, em outubro, que emendava a de 1967,legalizando as arbitrariedades da ditadura. A maioria dosintegrantes do seqestro foi presa em seguida, passandopor suplcios inimaginveis nas mos dos torturadores.

    Numa emboscada em So Paulo, em novembro de

    assume essa liberdade potica, para dar mais dramaticidade histria,e mostra depois a menina frgil ligando para o pai, em busca de conforto,sem poder contar-lhe o ocorrido. O cineasta livre para fazer o quequiser, mas sua verso ficcional uma injustia no s com a verdadeiraVera Slvia, mas principalmente com as mulheres guerrilheiras,precursoras do feminismo no Brasil. Ver a respeito: PATARRA, Judith.Yara reportagem biogrfica. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1992;COSTA, Albertina Oliveira et alii. Memrias das mulheres do exlio. Riode Janeiro, Paz e Terra, 1980; RIDENTI, Marcelo. As mulheres napoltica brasileira: os anos de chumbo. Tempo Social, Revista deSociologia, USP, So Paulo, v. 2, n. 2, p. 313-28, 2 sem., 1990. Para umestudo das mulheres que apoiaram o golpe, ver: SIMES, Solange. Deus,ptria e famlia. Petrpolis, Vozes, 1985.

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    1969, foi assassinado Carlos Marighella o principallder da guerrilha, depois de ter rompido com o PartidoComunista, pelo qual havia sido deputado constituinteem 1946. Era o incio do fim da esquerda armada. Fecha-va-se tragicamente para os guerrilheiros o ano em que opas mergulhou nas trevas do obscurantismo poltico,cuja sobrevivncia seria garantida nos anos seguintes pelafora e pelo milagre econmico.

    A histria e o filme

    O filme O que isso, companheiro?, lanado em 1997,baseia-se no controvertido livro autobiogrfico de Fer-nando Gabeira, sobre sua militncia na esquerda arma-da10 . O filme uma fico a partir de fatos reais, envol-vendo o seqestro do embaixador norte-americano noBrasil, Charles Elbrick, em 1969; segundo seus produ-tores, no pretende ser uma reconstituio histrica fiel,sequer ao contedo do livro em que se inspira, embora o

    10. GABEIRA, Fernando. O que isso, companheiro? Rio de Janeiro,Codecri, 1979. H vrios outros livros de memrias de ex-guerrilheiros,todos interessantes pelas experincias relatadas, mas geralmente muitocentrados na vivncia dos autores, devendo por isso ser vistos comcuidado por quem deseje reconstituir a histria poltica do perodocomo um todo. Destacam-se: SIRKIS, Alfredo. Os carbonrios. So Paulo,Global, 1980; CALDAS, lvaro. Tirando o capuz. Rio de Janeiro, Codecri,1981; VARGAS, ndio. Guerra guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro,Codecri, 1981; BETTO, Frei. Batismo de sangue. Rio de Janeiro, CivilizaoBrasileira, 1982; DANIEL, Herbert. Passagem para o prximo sonho. Riode Janeiro, Codecri, 1982; POLARI, Alex. Em busca do tesouro. Rio deJaneiro, Codecri, 1982; GUARANY, Reynaldo. A fuga. So Paulo,Brasiliense, 1984; S, Glnio de. Araguaia, relato de um guerrilheiro. So

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    trailer anuncie o filme como uma histria verdadeira.Bruno Barreto tem todo o direito de produzir uma

    obra sobre o perodo, assim como j o fizeram, dentreoutros: Srgio Rezende, no filme Lamarca11 , e MuriloSalles, em Nunca fomos to felizes ambos interessantes,mas sem o mesmo investimento e apelo comercial dofilme de Barreto (esperemos que outros venham por a,inclusive documentrios talvez algum se disponha afinanciar a transposio para a tela do romance Em c-

    11. Esse filme baseia-se em Lamarca, o capito da guerrilha, livro-reportagem de Oldack Miranda e Emiliano Jos (So Paulo, Global,1984). Outros livros importantes sobre as esquerdas na poca, aindano mencionados, so: QUARTIM, Joo. Dictatorship and armed strugglein Brazil. London, New Left, 1971; REBELO, Aldo e LIMA, Haroldo.Histria da Ao Popular, da JUC ao PCdoB. So Paulo, Alfa-Omega, 1984;VENTURA, Zuenir. 1968 o ano que no terminou. Rio de Janeiro,Nova Fronteira, 1988; WRIGHT, Delora. O coronel tem um segredo -Paulo Wright no est em Cuba. Petrpolis, Vozes, 1994; BERQU,Alberto. O seqestro dia a dia. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997. Eisas coletneas de documentos da esquerda do perodo, organizadaspor: REIS, Daniel A. e S, Jair Ferreira. Imagens da revoluo. Rio deJaneiro, Marco Zero, 1985; FREDERICO, Celso. A esquerda e o movimentooperrio, 1964-1984. Vol. I. So Paulo, Novos Rumos, 1987. Vols. II eIII, Belo Horizonte, Oficina de Livros; CARONE, Edgar. Movimentooperrio no Brasil, 1964-1984. So Paulo, DIFEL, 1984.

    Paulo, Anita Garibaldi, 1990; dentre outros. Vale mencionar tambmas coletneas de depoimentos organizadas por: RAMOS, Jovelino et alii.Memrias do exlio. So Paulo, Livramento, 1978; MORAES, Denis de. Aesquerda e o golpe de 64. Rio de Janeiro, Espao e Tempo, 1989; REIS,Daniel Aaro. 1968, a paixo de uma utopia. Rio de Janeiro, Espao eTempo, 1988. Em contraposio, ver os depoimentos de militares em:DARAJO, M. Celina et alii. Os anos de chumbo a memria militarsobre a represso. Rio de Janeiro, Relume Dumar, 1994.

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    mara lenta, do ex-guerrilheiro e cineasta Renato Tapa-js, publicado em 1977 pela editora Alfa-Omega, e logocensurado pelos militares). Nem mesmo a minissrie daTV Globo sobre a esquerda estudantil nos anos 60, AnosRebeldes, gerou tanta polmica como O que isso, compa-nheiro?.

    O problema que o filme trata de fatos e persona-gens reais, de uma poca sobre a qual h muita curiosi-dade e tambm muito desconhecimento. Como disse aatriz Fernanda Torres ao jornal O Estado de S. Paulo (1/05/97, p. D-7): Precisamos atingir os jovens, eu noaprendi nada disso na escola, o cinema tem de ajudar obrasileiro a descobrir a complexidade da histria recentedo pas.

    Com essas palavras, ela pretendeu defender aproduo, mas paradoxalmente revela a questo de fun-do da polmica: ser que os jovens e outros que noaprenderam nada disso na escola conseguiro, com ofilme, descobrir a complexidade da histria recente dopas? Infelizmente, a resposta no, como bem demons-tram os artigos e entrevistas desta coletnea. Nesse as-pecto, o mrito do filme apenas o de tocar num assun-to que parecia esquecido ou ignorado pelo pblico.

    Antes de ver o filme, li algumas entrevistas de seudiretor, que expressava algumas intenes pertinentes,sobretudo as de fugir de esteretipos e de evitar o ma-niquesmo de apresentar uma histria de mocinhos (guer-rilheiros) contra bandidos (a ditadura). Tambm pareciacoerente, cinematograficamente, a postura de noreproduzir na tela, ao p da letra, as memrias de Gabei-

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    ra. E ainda anunciava que seriam explorados aspectosdos conflitos internos das organizaes de esquerda, entreos militantes intelectualizados de classe mdia e os deextrao mais pobre.

    Ora, a questo que o filme mesmo enquantofico, independentemente de sua correspondncia comos fatos histricos contm vrios clichs usuais nocinema norte-americano: um velho sbio que conheceas mazelas do mundo, mas no deixa de sofrer suas con-seqncias (o embaixador seqestrado); um supermoci-nho idealista e ingnuo, o jornalista revolucionrio ins-pirado em Gabeira; um supervilo baseado no militanteJonas, que tem todos os defeitos dos bandidos russos dosfilmes da poca da Guerra Fria: calculista, insensvel,traioeiro, ressentido com o mocinho, para quem armasrdidas arapucas; cenas complementares de sexo e cor-ridas de automvel. Mas faltam algumas das virtudesdos bons filmes de aventura, especialmente a verossimil-hana na conduo da trama como aponta o artigo deCsar Benjamin nesta coletnea.

    A inteno anunciada de romper com maniques-mos foi por terra, e mais ainda a de trabalhar com osconflitos internos das organizaes clandestinas, ao es-tereotipar como bandido o operrio Jonas, tomandoabertamente partido do mocinho intelectual de classemdia, Gabeira. Quanto ao personagem do oficial tor-turador, nada a objetar que ele tenha drama deconscincia, embora isso crie um contraste com o san-guinrio Jonas que na vida real era um digno e valentemilitante, morto sob tortura logo aps o seqestro, e

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    que nada tem a ver com o personagem do filme, comoexpe os artigos aqui reproduzidos.

    Consta que um torturador, certa feita, procurou D.Paulo Evaristo Arns arcebispo de So Paulo, defensordos direitos humanos para pedir perdo. Por outrolado, tambm conhecida a histria contada peloargentino Perez Esquivel, ganhador do prmio Nobelda Paz. Ele supunha que seus torturadores, passada aditadura, deveriam estar arrependidos. Qual no foi suasurpresa, quando encontrou na rua com um oficial tor-turador, que lhe disse mais ou menos o seguinte: Judeuf.d.p., eu devia ter acabado com voc naquela poca.

    Tenho dvidas de que a maioria dos torturadoresapresente dramas de conscincia. Muitos deles talvezcontinuem a torturar at hoje, agora tendo bandidoscomuns como vtimas. Isso no os impede de terfamlia, amigos e outras relaes, como qualquer pes-soa. Tam-bm havia homens honrados a apoiar a di-tadura, caso do brigadeiro Eduardo Gomes. Em 1978,ele escreveu uma carta ao presidente Ernesto Geisel,em favor do capito-aviador Srgio Miranda de Car-valho. Este, em 1968, recusara-se a obedecer ordemsuperior para executar operaes terroristas, que seri-am atribudas esquerda, dando pretexto a setores dogoverno para eliminar fisicamente seus adversrios.O capito perdeu o posto, mas evitou que fosse oPARA-SAR convertido, por um paranico, em esquadroda morte nas palavras do fundador da Fora AreaBrasileira12. Por sua vez, as organizaes de esquerdatinham aspectos autoritr ios e alguns de seus

  • QUE HISTRIA ESSA?

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    militantes chegaram a envolver-se em obscuros casosde execuo de supostos traidores13. Fatos como essesdevem ser tratados por cientistas sociais e artistas,evitando simplificaes esperemos que com melhorresultado esttico e fidelidade histrica do que o filmede Barreto.

    Para no me alongar demais, deixo para os outrosautores comentrios mais especficos sobre o filme. Es-pero que os livros indicados, nesta breve introduo histria e historiografia do perodo, ajudem a evitarque caia sobre o passado um inofensivo e superficialmanto de compreenso e boa vontade como bemaponta um artigo de Daniel Aaro Reis , enquanto sereproduzem e se agravam, nos dias de hoje, as injustiassociais que deram base aos projetos revolucionrios dosanos 60. Eles merecem ser estudados a fundo, em seusparmetros humanos e historicamente finitos, para quepossamos construir novas alternativas polticaslibertrias.

    MARCELO RIDENTE professor-assistente doutor desociologia na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

    Autor de O fantasma da revoluo brasileira ;Poltica pra qu? Atuao partidria no Brasilcontemporneo ; Professores e ativistas da esfera

    pblica; dentre outros livros e artigos.

    12. GORENDER, op. cit., p. 151-2.13. Idem, Ibdem, p.235-238; PAZ, Carlos Eugnio. Viagem luta armada.Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1996.

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    UM PASSADO IMPREVISVEL:A CONSTRUO DA MEMRIA

    DA ESQUERDA NOS ANOS 60

    Assim se lhe parece.PIRANDELLO

    I

    Houve um tempo, no distante, em que homens sisu-dos e compenetrados entendiam que a histria seelaborava por descobertas, promovidas pela investigaoe pela observao crtica. De documentos escritos, fun-damentalmente. Era preciso desenterrar o passado dosescombros do esquecimento. Os fatos estavam l, es-pera, ocultos pelos vus da ignorncia, como diamantes

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    Publicado emTeoria & Debate, n 32,

    jul/ago/set 1996.

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    nas trevas da terra, aguardando a luz do olhar arguto dogarimpeiro.

    O discurso desses homens foi to persuasivo que osenso comum, ainda hoje, acredita que a histria issomesmo: a procura incessante da verdade objetiva, nicae definitiva. Segundo esta maneira de ver, em contrastecom o futuro, vivo e irrequieto, sempre aberto ima-ginao e ao humanas, o passado, exatamente por jter passado, estaria morto e quieto, prestando-se anlisecalma dos cientistas, como um cadver petrificado namorgue. Debruados em torno dele, os profissionais damemria tratariam de determinar o qu, o como, oporqu dos acontecimentos terem acontecido. Commuita iseno e objetividade, caberia a eles pesquisar,encontrar, selecionar, explicar e narrar. E promover al-guns acontecimentos condio de histria.

    Mas o que fazer se o morto se levanta, e parece vivo,e foge ao controle, oferecendo cintilaes imprevistas?E no mais possvel reconhec-lo, como se no tivessemais um rosto, mas uma sucesso de mscaras, alterna-das, alternativas. Como um quebra-cabeas, cada peanova acrescentada modifica a percepo do conjunto.Onde o conforto e a segurana das ponderaes objeti-vas?

    Nos tempos da Unio Sovitica, os russos diziamviver num pas especial, onde era possvel saber mais oumenos o que iria acontecer no futuro (agora, nem istosabem mais), mas impossvel conhecer o que acontecerano passado, totalmente imprevisvel, porque sujeito aosventos e s tempestades das mudanas abruptas do

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    poder. Assim, acontecimentos e personagens apareciam,desapareciam e reapareciam nos textos e at mesmo nasfotografias e nos filmes, em variaes inesperadas, aosabor de verses cujos fundamentos nem sempre eramperceptveis pelo comum dos mortais.

    Os russos, como de hbito, talvez tenham extrema-do uma tendncia. Mas ela existe desde os faras, queno titubeavam em raspar inscries para substitu-laspor outras, mais afeitas ao gosto, s inclinaes ou aosinteresses do momento. E, assim, para o bem e para omal, a permanente e diversa reconstruo do passado,sobretudo de seus perodos mais relevantes, acompanhaa trajetria das sociedades humanas desde que o mundo mundo.

    Com as esquerdas dos anos 60 de nosso sculo, nopoderia ser diferente. Em nosso pas, em todo o planeta,foram anos de movimentos subversivos, de promessas detransformao, de desafios, em que os sistemas estabeleci-dos foram postos a rude prova. Apropriar-se deste passa-do, monopolizar, se possvel, a sua memria, passa a serum objetivo crucial para os que vivem e esto em luta nopresente. Inclusive porque, em larga medida, o controledo futuro passa, como se sabe, pelo poder sobre o passa-do, dado, por sua vez, aos que imprimem na memriacoletiva a sua especfica verso dos acontecimentos.

    II

    A produo de histrias sobre os movimentos deesquerda brasileiros nos anos 60 j relativamente

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    considervel. No seria possvel, em curto artigo1, pas-sar em revista todos os autores relevantes. O que desejo,sem exaurir o assunto, selecionar algumas versesemblemticas, tentar encontrar o seu significado no con-texto da luta pela apropriao da memria. O que menosimporta, esclareamos logo de incio, so as intenesconscientes dos autores no momento em que elaboraramas verses. Os textos, desde que escritos e divulgados,distanciam-se dos autores, adquirem vida autnoma. Soeles que me interessam. E, sobretudo, o papel social ehistrico que desempenharam e seguem desempenhando.

    A verso mais difundida apresenta os movimentosrevolucionrios dos anos 60 como uma grande aventu-ra, no limite da irresponsabilidade: aes tresloucadas.Boas intenes, claro, mas equivocadas. Uma fulgurao,cheia de luz e de alegria, com contrapontos trgicos,muita ingenuidade, vontade pura, puros desejos, iluses.Diante do profissionalismo da ditadura, o que restavaqueles jovens? Ferraram-se. Mas demos todos boas risa-das. Afinal, o importante manter o bom humor.

    Estamos falando, como fcil supor, dos livros deFernando Gabeira e de Zuenir Ventura2. No texto deVentura, o ano comea com uma festa de arromba,da sua tchurma, por coincidncia. E o simptico bair-ro de Ipanema transforma-se no umbigo do pas, ali se

    1. Veja indicaes bibliogrficas no artigo Que histria essa?, deMarcelo Ridenti, na pgina 11 desta edio.2. GABEIRA, Fernando. O que isso, companheiro? Rio de Janeiro,Codecri, 1979. VENTURA, Zuenir. 1968 o ano que no terminou. Riode Janeiro, Nova Fronteira, 1988.

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    desenrola a sntese dos acontecimentos. Gabeira faz gi-rar a trama de seu relato em torno da Dissidncia Co-munista, uma organizao revolucionria tambm basea-da no Rio de Janeiro, da qual fazia parte, como uma(auto) biografia coletiva.

    Dois relatos cariocas, talvez expresso do ltimocanto de cisne de um perodo em que a cidade do Riode Janeiro pretendia centralizar os acontecimentospolticos nacionais. Tiveram excepcional acolhida. Eviraram rapidamente best sellers.

    Seria fora de propsito imaginar que o resultado foiobtido apenas porque os autores, como jornalistas co-nhecidos, tinham relaes especiais com os grandesrgos de divulgao. Na verdade, as verses correspon-diam a anseios difusos no pas, e as vendagens alcana-das so indicador seguro do fenmeno.

    Com o recuo da ditadura militar, e a abertura len-ta, segura e gradual, vastos segmentos da sociedade que-riam recuperar a histria agitada dos anos 60, reconci-liar-se com ela, mas na paz, na concrdia, sem revan-chismos estreis, como aconselhavam os militares e oshomens de bom senso. No contexto da anistia recproca,no seria possvel avivar a memria sem despertar osdemnios do ressentimento e das cobranas? Seria comorecordar esquecendo, esquecendo a dor. No para istoque temos o recurso do humor?

    Gabeira e Ventura seriam mestres nesse exerccio,amadurecidos e irnicos, condescendentes, oniscientes,por fora ou por cima do fluxo dos acontecimentos, le-vam pela mo seus personagens, simpticos incompe-

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    tentes, em busca da utopia inalcanvel. Em Gabeira, oprocedimento mais marcado: a viso crtica do perodo,amadurecida coletivamente no longo exlio, retrospec-tivamente localizada no fogo mesmo dos acontecimen-tos, concentrando-se no personagem principal. E, assim,Gabeira/guerrilheiro ressurge descolado da ingenuidadeambiente, reescrito pelo autor com uma superconscin-cia das tragdias que haveriam de vir. Essa atitude dis-tanciada, crtica, irnica, a maioria dos leitores a deseja-va, e assim foi possvel reconstruir o passado sem se ator-mentar com ele.

    Estes autores foram a expresso mais acabada de seutempo. Da, insisto, o sucesso alcanado. Que importatenham cometido deslizes na narrao das histrias?Confundido acontecimentos, trocado dilogos, atribu-do-se papis? Detalhes... Os militares haviam se retira-do e seria talvez incmodo refletir sobre por que a dita-dura fora aturada tanto tempo num pas todemocrtico. Enfim, os exilados voltavam, todos esta-vam satisfeitos e curiosos em reencontr-los. Um passa-do difcil, no seria possvel lembr-lo sem remorso?Gabeira e Ventura responderam afirmativamente, erapossvel elaborar esta sntese. At hoje, a maioriaagradece penhorada por esta verso ter permitido re-cordar uma histria triste sem dor, e ainda com um sor-riso nos lbios.

    Avivar a memria para conciliar, todo um progra-ma. Retomado recentemente, e de forma espetacular,pela Fundao Roberto Marinho e pelo jornal O Globo.O dono dos negcios, depois de se ter associado por

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    longos anos ao mais virulento anticomunismo, assumiua guarda do acervo/memria dos comunistas brasilei-ros e incentiva debates e pesquisas a respeito do assunto.O jornal se lana procura dos mortos assassinados pe-las foras armadas. E, assim, fazendo lembrar os temposde uma Unio Sovitica que j no mais, os terroristasconvertem-se em guerrilheiros, os justiceiros, em assas-sinos, e o jornal, de caador, transmuda-se em defensordos caados e cassados, e faz coro a favor das indeniza-es aos mortos e desaparecidos, vtimas de um regimeque ele sempre sustentou. As cartas se embaralham devez, numa vertigem. De que se aproveita o responsvelpelo filme do seqestro do embaixador norte-america-no para afirmar, sem sorrir, que no tem nenhum com-promisso com a realidade, a no ser, claro, com a rea-lidade dos pecunirios benefcios que pretende colher,afinal, nestes tempos neoliberais, converteram-se emvirtudes os vcios de outrora.

    Tempos de conciliao. Enquanto durarem, estarassegurada a hegemonia das verses de Gabeira &Ventura. Reforadas pela metamorfose dos herdeirosdo doutor Roberto Marinho. E pelos filmes quehavero de vir.

    Nesta sinfonia, os anos 60 tero sido anos vibrantes,mas loucos, e mesmo psicticos, como chegou a afirmarum roteirista. Sobre eles deve cair um manto de com-preenso e de boa vontade. No isso o que de melhorpodemos dar aos meninos rebeldes dos anos 60? Quan-to aos mortos, um cheque de R$ 150 mil, e temos a con-versa resolvida: arquive-se. Anistia para esta dor.

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    Jacob Gorender e Marcelo Ridenti3, falando do mes-mo assunto, oferecem uma outra verso. Um combatenas trevas, imposto pela ditadura, em busca de uma ima-gem fugidia, um fantasma, o da revoluo.

    A luta comea sob presso do Estado, que aperta ogarrote, estreitando as margens de ao e de oposiopolticas. E silencia e massacra os oponentes com sanha.Trata-se de recuperar o projeto dos vencidos, com-preend-lo. Resgatar uma memria perdida.

    Gorender j era um militante amadurecido nos anos60. Ridenti, ainda um menino, ouvia os silncios do paidiante de certas notcias e intua que o mundo no iaassim to bem. Em meados dos anos 80, de formaautnoma, lanam-se pesquisa: entrevistas com ex-mi-litantes, consultas aos jornais, aos textos das organizaesrevolucionrias e aos processos judiciais.

    O resultado um levantamento minucioso da tra-jetria dos movimentos revolucionrios nos anos 60,incluindo-se tambm outras formas de contestao ecrtica. Os autores no pretendem uma condio deneutralidade. Tomam partido e evidenciam de ondeesto partindo e com que hipteses esto lidando. Aironia comedida e, quando emerge, toma como alvoos poderosos da poca. Reconstroem estrias e astransformam em histria.

    Reportagem e pesquisa acadmica na recuperaode gritos amordaados. Os vencidos guardam o que de

    3. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas A esquerda brasiliera: dasiluses luta armada. So Paulo, tica, 1987. RIDENTI, Marcelo. Ofantasma da revoluo. So Paulo, Unesp, 1993 (1 reimpresso, 1996).

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    melhor o pas tinha para oferecer. Vtimas do poder,resistiram.

    E assim os anos 60 aparecem como anos de resistnciademocrtica. este o ponto forte dos livros. Acuadospelo regime existente, sem opes, apenas a resistnciaera possvel. Para alm dos sonhos revolucionrios, eapesar das exaustivas discusses (que, numa ironia j dapoca, exauriam mais os militantes do que as questesem debate) sobre ttica e estratgia, as organizaes emovimentos dos anos 60 no fizeram mais do que resis-tir. A um poder que elimina as liberdades, desrespeita aordem jurdica, define polticas de desenvolvimento semconsulta a instituies representativas. Terrorista aqui a ditadura que invade casas sem mandado judicial, prendee mata sem contemplaes, e define a tortura comopoltica de Estado.

    Um desmascaramento bem fundamentado das in-terpretaes oficiais, uma proposta alternativa aos re-latos acorrentados pela censura, uma denncia abran-gente dos crimes da ditadura militar. Nos livros deGorender & Ridenti no h meninos rebeldes, h pro-jetos revolucionrios, e, antes e acima de tudo, hresistncia de mulheres e homens que no se entre-gam. E assim, a luta dos poucos que lutaram com ar-mas na mo exprime a insatisfao de uma sociedadeesmagada. E o descontentamento dos que, emborano recorrendo s armas, tambm no se sentiamconfortveis na ordem vigente. O isolamento dos queforam liquidados pelo aparelho repressivo teria sidomais o resultado dos mtodos que utilizaram (com

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    os quais a sociedade no se solidarizou), do que davontade de resistir ditadura.

    No passa por estes livros a sombra morna daconciliao. Nem mesmo com os erros das foras de es-querda. Tiveram um sucesso bastante considervel, porincrvel que parea aos cticos de carteirinha, sinal deque ainda h vida crtica neste pas, gente procura decaminhos. Inconformistas e inconformados. Enquantoexistirem tais sentimentos, os textos de Gorender &Ridenti tero um lugar na memria.

    Mas as esquerdas no foram apenas vtimas de umaditadura feroz. E problemtica a idia de conceber asua luta desesperada como resistncia democrtica.Numa terceira verso, presente em muitos relatos, masdefendida principalmente em meu trabalho4, asorganizaes comunistas aparecem como uma contra-elite, alternativa, que parte ao assalto do poder poltico.

    Rejeitando as tradies defensivistas e frentistas dosvelhos partidos comunistas latino-americanos, sobretu-do instauradas em meados dos anos 50, depois do pro-cesso de desestalinizao, e inspirada pela vitria da Re-voluo Cubana e pela guerra revolucionria no Viet-n, toda uma gerao de dissidentes, desde o incio dosanos 60, vai colocar a questo do poder poltico no cen-tro de suas reflexes, como um desafio imediato.

    Era preciso romper com o ceticismo em relao hiptese de uma vitria revolucionria ao sul do Rio

    4. REIS FILHO, Daniel Aaro. A revoluo faltou ao encontro. So Paulo,Brasiliense, 1991.

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    Grande. Cuba, nas barbas do grande imprio, j nomostrara o caminho? A legenda do Che Guevara, trans-formando os Andes numa ardente Sierra Maestra, es-timulava todos os delrios. Alm disso, a revoluo cul-tural na China e os movimentos sociais na Europa enos Estados Unidos inebriavam. Os sistemas estabele-cidos pareciam vacilar. O tempo do calmo e sereno de-bate, dos clculos cuidadosos da correlao de foras,cedia lugar ao tempo da ao transformadora, dela que surgiria o novo mundo e o homem novo, a revo-luo. No se tratava mais de morrer, mas de matar,pela revoluo5.

    Assim, antes da radicalizao da ditadura, em 1968,e antes mesmo da sua prpria instaurao, em 1964, es-tava no ar um projeto revolucionrio ofensivo. Os dis-sidentes se estilhaariam em torno de encaminhamen-tos concretos, formando uma mirade de organizaese grupos, mas havia acordo quanto ao n da questo:chegara a hora do assalto.

    Neste quadro os revolucionrios no resistem, ata-cam. Alegaram, em seu favor, que os autnticosrevolucionrios no pedem licena para fazer a revo-luo. Seria o caso, talvez, de pedir licena ao seu prpriopovo. Ora, a histria evidenciou que no havia condiespara qualquer ataque ao sistema capitalista e que o graude desconforto da sociedade com sua ditadura era maisdo que relativo...

    5. A frmula de Regis Debray em La critique des armes (Paris, Seuil,1974).

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    Aprisionados por seus mitos, que no autoriza-vam recuos, insensveis aos humores e pendores deum povo que autoritariamente julgavam representar,empolgados por um apocalipse que no existia senoem suas mentes, jogaram-se numa revoluo que novinha, e que, afinal, no veio. Pouco antes do fim,lutando como bravos, que eram, ainda imaginavamfustigar, mas apenas se defendiam. Cercados nas ci-dades e, nas cidades, cercados6, emboscados nas alame-das paulistanas, como Marighella, caados no serto,como Lamarca e Zequinha, foram trucidados semapelao.

    Esta verso, apoiada tambm em minucioso levan-tamento de documentos e entrevistas, chama a atenopara a necessidade da reviso de certas tradies fortesna esquerda: o apocalipse, o autoritarismo revolu-cionrio, o messianismo de classes e partidos. expressode uma certa crtica aos projetos socialistas contempor-neos. E se confunde com a utopia, ainda irrealizada, tal-vez irrealizvel, de uma esquerda revolucionria edemocrtica.

    At o momento, as diferentes e divergentes versesem debate sondaram os conhecidos territrios da socie-dade e da poltica. E se, para se captar e restituir a tra-jetria e as contradies dos movimentos revolucion-rios, fosse necessrio explorar outras dimenses, lanan-do mo de outras referncias?

    6. A frmula de Carlos Vainer, e data dos debates no interior daDissidncia Comunista da cidade do Rio de Janeiro.

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    Nos trabalhos de Herbert Daniel7, ainda de uma for-ma muitas vezes apenas sugerida, desponta aproblemtica dos valores que animavam os esquerdistasdos anos 60. Como formular uma histria destas lutassem se deter no processo de construo de uma iden-tidade que seria, afinal, a marca distintiva desses proje-tos abortados de transformao do mundo?

    Vera Slvia Magalhes8, em projeto que ascircunstncias at hoje impediram de levar adiante,prope a necessidade do estudo da constituio de umethos especfico, formado no ambiente estudantil dapoca, saturado pela politizao das interpretaes, dosdebates, das atitudes. Crise generalizada das ideologiasat ento dominantes: o liberalismo, comprometido porsuas alianas com uma estrutura agrria reacionria epor perspectivas golpistas e antidemocrticas. O desen-volvimentismo, j mergulhado desde os anos 50 na de-pendncia e na concentrao de renda. O reformismo,incapaz de promover mudanas e, diante do golpe, im-potente para resistir. Desmoralizao das alternativasinstitucionais: partidos de oposio que no a faziam,Congresso castrado, eleies viciadas, universidade eli-tista, imprensa legal censurada. Descrena nos valorespropagados pela ditadura e nos contravalores dos proje-tos e partidos alternativos que vinham de ser derrota-dos. O que significavam ainda o PTB, o PCB, o PSB e outros

    7. DANIEL, Herbert. Passagem para o prximo sonho. Rio de Janeiro,Codecri, 1982.8. MAGALHES, Vera Slvia. O ethos da Dissidncia Universitria doPCB. Plano de trabalho, 1994, mimeo.

  • UM PASSADO IMPREVISVEL

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    partidos menores diante do golpe vitorioso? E quantos lideranas consagradas? Quem podia ainda esperar oque de Brizola, de Jango, de Prestes? Sensao de terraarrasada. Marco zero.

    Para compreender a conjuntura poltico-cultural,seria preciso articul-la com as trajetrias pessoais. Mi-cro e macroestruturas condicionando um processo deelaborao tica coletiva e individual, combinada a umaprtica poltica. Um programa revolucionrio queemerge como manifestao de uma identidade constru-da para alm da dimenso poltica.

    Esboo de verso. Embora em germe, contm firmesindicaes revisionistas e enriquecedoras em relaos propostas j publicadas. Nestes tempos sombrios decapitalismo triunfante, em que se debate desorientadoo nimo inconformista, ser apenas uma coincidncia ofato de que esta verso ganhou apenas contornos impre-cisos? E que ainda procura apurar categorias de anlise,insegura do prprio terreno que pretende explorar?

    III

    tempo de terminar estas consideraes. Afinal, oque temos para oferecer? Como compreender os movi-mentos subversivos dos anos 60? Recapitulemos as pro-postas. Primeira: meninos alucinados ou a conciliaode uma sociedade cordial, cansada das lutas que no tra-vou. Segunda: resistentes hericos ou a denncia de umaditadura com a qual a sociedade no se comprometeu.Terceira: revolucionrios que se apresentam como

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    contra-elite ou a desconfiana de uma vanguarda ilumi-nada no contexto de uma sociedade que no se revoltoucontra a sua ditadura. E, finalmente, uma verso apenastateante, que refere o processo construo de uma de-terminada tica, um conjunto de valores, sem a com-preenso dos quais nunca ser possvel entender essesestranhos anos, quando ainda era possvel amar arevoluo.

    As verses no se equivalem. Talvez seja possvelcombinar aspectos de uma ou outra. Mas no serpossvel, mesmo em dosagens sabiamente administradas,incorporar todas num caldeiro s. A sopa resultariaem indigesto de incongruncias. As interpretaes, nofundo, representam aspiraes distintas, interesses dife-rentes. Pense o leitor na que melhor lhe convm, masao marcar a preferncia, tenha em mente que faz umaescolha de sociedade, porque, ao decidir por uma versodo passado, estar se posicionando no presente e pro-pondo uma opo de futuro.

    DANIEL AARO REIS F professor-titular dehistria contempornea da Universidade Federal

    Fluminense (UFF); foi membro da DissidnciaComunista da Guanabara em 1969.

  • HELENA SALEM

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    FILME FICA EM DBITOCOM A

    VERDADE HISTRICA

    HELENA SALEM

    Publicado emO Estado de S. Paulo,

    18/04/97.

    O que isso, companheiro? mantm o que j viroumarca das realizaes da famlia Barreto:produo esmerada, a bonita fotografia do argentinoFelix Monti (o mesmo de O quatrilho), o roteiro bemarticulado de Leopoldo Serran e a direo competentede Bruno Barreto.

    Para quem no viveu de perto aqueles acontecimen-tos do fim dos anos 60 o filme conta a histria doseqestro do embaixador norte-americano no Rio,Charles Elbrick, em 1969, inspirado no livro homni-mo do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira (hoje deputa-do federal) talvez no haja maiores restries a fazer. um filme que emociona, especialmente no final,quando os guerrilheiros que participaram do seqestro

  • FILME FICA EM DBITO COM A VERDADE HISTRICA

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    e foram depois presos so libertados (por meio de outroseqestro, do embaixador alemo) e se reencontram comMaria (Fernanda Torres, em parte inspirada na figurareal da ex-militante Vera Slvia Magalhes) deixando opas em cadeira de rodas.

    No entanto, para quem viveu de perto a luta polticadaqueles tempos, O que isso, companheiro? h de pro-vocar, no mnimo, polmica. Ao transformar o perso-nagem de Fernando (Pedro Cardoso) no heri do filme,lhe atribudo um esprito crtico em relao aos de-mais que ele, como os outros militantes que atuavamnos vrios grupos da esquerda e da luta armada, estavalonge de ter nos anos 60. No filme, ele o intelectual dogrupo, o nico que faz uma reflexo mais livre, que tevea idia do seqestro (o que no verdade, ele s soubeda ao poucos dias antes), que escreveu o clebre mani-festo pedindo a libertao de 15 prisioneiros polticos (eum libelo contra a ditadura militar), lido em rede nacio-nal no horrio nobre da televiso (na realidade, quem oescreveu foi o hoje jornalista Franklin Martins), e que,por todas essas razes, tratado com um certo desdmsobretudo pelo comandante da ao, o sectrio Jonas(Matheus Nachtergaele). Nada disso est no livro. Pode-se argumentar que o filme obra de fico, apenas umaadaptao livre da obra e, como tal, tem toda a liber-dade de inventar. Mas, por outro lado, quando se utilizaos nomes verdadeiros de alguns personagens de Jo-nas, do velho militante Toledo (Nlson Dantas) e doprprio Fernando Gabeira (procurando-se inclusive asemelhana fsica com ele) , quando se localiza e data

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    o fato histrico ocorrido, o argumento da fico se es-vazia. Essas pessoas e acontecimentos assim nomeadosexistiram, logo algum compromisso com a verdadehistrica deve haver.

    Por outro lado, se o filme apresenta o guerrilheiroJonas como um homem frio, disposto a matar qualquercompanheiro que o desobedecer, sem vacilao, confereao torturador Henrique (Marco Ricca) um tratamentobem diferente. Ele sofre angstias, no consegue dormirdireito, tem problemas com a mulher quando ela desco-bre sua real atividade. um carrasco em conflito (masnem por isso deixa de continuar torturando e matan-do). J o Jonas, que luta contra a ditadura, que no tor-tura ningum e que, pelo contrrio, acaba morrendo natortura (ao ser preso aps o seqestro), tratado comoum fascistide. Nas suas angstias, Henrique certa-mente bem mais humano.

    A questo : como obra de fico, o filme precisaser fiel realidade? Bruno Barreto argumentou, em umaentrevista, que o filme no um documentrio, masuma interpretao ficcional da realidade. Tudo bem.S que essa interpretao que datada, localizada eutiliza nomes reais deve ter, pelo menos, um com-promisso com o esprito do que de fato ocorreu. Podeser que muitos torturadores tenham tido crises existen-ciais como Henrique (o que de duvidar, assim comotodos os Eichmans da vida), mas os guerrilheiros dosanos 60 no eram to ingnuos, tolos, caricatos, comoso apresentados ( exceo de Fernando) no filme. Eramjovens que podem ter escolhido caminhos equivocados

  • FILME FICA EM DBITO COM A VERDADE HISTRICA

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    (como a realidade, mais tarde, iria revelar), mas eramgenerosos, indignados, sufocados pela ditatura nos seusanseios de liberdade, e alguns deles foram as cabeas maisbrilhantes de sua gerao. essa generosidade, essa ou-tra verdade que O que isso, companheiro? no conseguerevelar.

    Bem narrado, bem filmado, com timos atores, mas, importante que se diga, O que isso, companheiro? no uma histria verdadeira, como vm anunciando ostrailers .

    HELENA SALEM sociloga, jornalista e mestra emhistria da cultura. autora de diversos livros,entre eles Palestinos, os novos judeus; 90 anos de

    cinema: uma aventura brasileira e As tribos do mal:o neonazismo no Brasil e no mundo.

  • PAULO MOREIRA LEITE

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    O QUE FOI AQUILO,COMPANHEIRO

    PAULO MOREIRA LEITE

    Publicado emVeja,

    30/04/97.

    Com o oramento de R$ 45 milhes, elenco da Glo-bo e Alan Arkin num papel destacado, O que isso,companheiro?, com estria nacional marcada para 1 demaio, no um filme inesquecvel, mas uma obra eficaz.Dirigido por Bruno Barreto, faz voc sentir medo nahora do medo, ansiedade na hora do suspense, rir depoisde uma piada. O enredo se inspira no livro de mesmonome, escrito por Fernando Gabeira logo aps a anistia,best seller que vendeu 500 mil exemplares e descreve umfato histrico. Em setembro de 1969, quando a economiacrescia e a oposio gemia nos pores do regime militar,duas organizaes armadas, a ALN e o MR-8, seqestraramo embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick, para

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    troc-lo por 15 presos polticos. Elbrick foi levado parao cativeiro numa quinta-feira, libertado no domingo,quando os pri-sioneiros j se encontravam no Mxico,mas o Brasil nunca mais seria o mesmo depois disso.

    Primeiro de um pacote de quatro diplomatas se-qestrados entre setembro de 1969 e dezembro de 1970,o cativeiro de Elbrick foi um rarssimo sucesso espeta-cular e instantneo da esquerda armada, que entrou paraa histria com um passivo de derrotas colossais e defini-tivas. Nos quatro dias em que aguardou pelo desfechodo episdio, o pas falava do embaixador norte-americanono botequim, nas conversas de escola, nos jantares emfamlia, na fila do cinema. At o seqestro, o regimemilitar era s demonstraes de fora: baixou o AI-5 sus-pendendo as garantias constitucionais, censurou a im-prensa, cassou parlamentares, fechou o Congresso e, nadoena do presidente Costa e Silva, impediu a posse dovice legal, o civil Pedro Aleixo, substitudo por umaJunta militar, a dos trs Patetas. Com o seqestro, ogoverno foi obrigado a ceder ameaa de uma dzia demilitantes. Em sua maioria, eles eram estudantes commenos de 25 anos, que admiravam Che Guevara, defi-niam-se como guerrilheiros, achavam que o destino daMe Gentil estava ao alcance de um fuzil e, mais do quetudo, prometiam matar a sangue-frio o embaixador dapotncia nmero um do planeta, caso no fossem aten-didos.

    Apenas 24 horas aps a libertao de Elbrick, a pol-cia fez seu primeiro prisioneiro e um segundo seqestra-dor acabou apanhado logo depois. O operrio Virglio

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    Gomes da Silva (Jonas, na ALN e no filme), que feztreinamento militar em Cuba e comandou a operao,foi morto aos 36 anos, menos de um ms depois. Maisexperimentado lder comunista presente ao, JoaquimCmara Ferreira (Toledo), 56 anos, sucedeu CarlosMarighella no comando da ALN, mas no ano seguinte jestava morto. Um a um, pela violncia selvagem noporo militar, seis militantes foram presos e condena-dos, os demais deixaram o pas para longas temporadasno exlio.

    Como natural quando se leva para o cinema umaobra cuja matriz saiu da vida real, muitas situaes fo-ram simplificadas, dois ou trs personagens foram fun-didos num s, e assim por diante. No seqestro de El-brick, apenas uma mulher tomou parte. Vera SlviaArajo de Magalhes. Em funo das torturas recebidasdepois da priso, ela ficou temporariamente paraltica,e sentava-se numa cadeira de rodas quando deixou o pasbeneficiada por uma nova lista de prisioneiros trocadospor outro embaixador. No filme, as mulheres so duas.Cludia Abreu seduz a platia inteira quando jogacharme sobre o chefe de segurana da embaixada, paraobter informaes a respeito da rotina de Elbrick.Fernanda Torres faz uma instrutora de tiro que d liesna praia. Pedro Cardoso encarna um Gabeira que con-vence, mas no elenco Alan Arkin quem d um showno papel de Charles Elbrick, o diplomata que no incioda operao era tomado como exemplo do conserva-dorismo norte-americano, at encantar os seqestradorescom sua crtica ao apoio do governo dos Estados Unidos

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    a regimes de fora. Depois que tudo terminou, Elbrickfoi mandado de volta aos Estados Unidos e no retor-nou mais. Mas ele tambm se encantara com os seqestra-dores. Chegou a se oferecer para testemunhar a seu fa-vor perante a Justia brasileira.

    Existe um defeito comum aos atores do filme, masno se sabe se a falha deles mesmos ou dos persona-gens originais, ou at mesmo fruto de uma cisma do ci-nema nacional com a esquerda brasileira. Como j acon-tecia em Lamarca, de Srgio Rezende, todos os persona-gens de esquerda parecem sempre um pouco mais ner-vosos do que o necessrio, gritam muito como se aqui-lo que fazem tivesse obrigatoriamente um qu de artifi-cial, de postio, quem sabe neurtico. Fica-se com a sen-sao de que at para pedir um copo dgua o pessoaltem de fazer discurso e agradecer com palavra de or-dem.

    O filme possui um bom roteiro, de Leopoldo Ser-ran, com poder para atrair o espectador, envolv-lo emsua trama e prender a ateno. A verso cinematogrfi-ca de O que isso, companheiro? radicalizou um trao daverso em livro, lembranas autobiogrficas no qualGabeira j vitaminava seus prprios feitos, dava um ver-niz charmoso a seu papel e ironizava a atuao de outrosintegrantes da operao. Com personagens que usamnomes e codinomes reais, textos explicando grandesacontecimentos, cenas em preto-e-branco como se fos-sem sadas do arquivo, o filme tenta, o tempo inteiro,dar a impresso de que um relato de fatos reais, comuma ou outra alterao apenas para facilitar as opes

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    dramticas. Mas menos cuidadoso do que parece. Nascenas finais, informa que em 1979 o regime militar apro-vou uma anistia destinada a todos os presos polticos na verdade, um punhado deles ficou de fora na poca,inclusive um dos participantes do seqestro de Elbrick,Manoel Cyrillo de Oliveira Netto.

    Gabeira apresentado como o sujeito que teve aidia do seqestro, escreveu o manifesto divulgado pelaTV e, por fim, foi o primeiro a fazer o balano de que aluta armada era um sonho derrotado e sem remdio.Isso est longe de ser verdadeiro. Gabeira entrou e saiuda operao como um militante raso do MR-8, ou poucomais do que isso. J residia na casa onde o embaixadorfoi abrigado ali deveria cuidar da imprensa daorganizao e por essa razo ficou no local. Na horados trabalhos finais de limpeza, Gabeira ficou encarre-gado de recolher um palet que pertencia a um gradua-do participante do seqestro. Descuidou da tarefa, osmilitares descobriram a pea de roupa, localizaram oalfaiate e acabaram fazendo uma priso importante.

    Apontado como um militante de esprito crtico elcido, com um p na ao armada, outro na auto-iro-nia, interessante porque no deve ser levado a srio, oGabeira do cinema o nico seqestrador com feiohumana, que tem no apenas boas maneiras, mas atvida prpria. J seus colegas vivem outra situao. Empermanente crise de identidade, em determinado mo-mento, Maria (Fernanda Torres) precisa ser lembradade seu nome verdadeiro. Numa cena melodramtica,Rene (Cludia Abreu) deixa claro que s resolveu

  • O QUE FOI AQUILO, COMPANHEIRO

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    seqestrar o embaixador dos EUA porque papai no lhedava ateno em casa. Outra novidade a presena deHenrique (Marco Ricca), oficial do Cenimar que coman-da as investigaes e tortura prisioneiros.

    Aps uma discusso com a mulher que na ocasioveste baby-doll e se mostra indignada com os maus-tra-tos , ele passa a sofrer crises de conscincia. umaidia interessantssima expor o conflito interior de umtorturador, apurar como era possvel trucidar suas vtimase depois voltar para casa, como bom marido e pai defamlia. Esse comportamento duplo no uma exclu-sividade profissional mdicos e monstros se encon-tram em toda parte. Mas seria uma boa idia desde queo filme fosse em frente, com coragem e vontade de sa-ber, sem a preocupao de julgar nem de agradar porantecipao. Mas, no. O torturador tem suas crises deangstia apenas depois do expediente, e o filme lhe despao para se justificar, no fundo at d um certo crditoa suas razes o que torna seu discurso e seu mal-estarmoral pura retrica, como palavras deslocadas que aliforam colocadas para agradar platia de hoje, em tem-pos que so outros.

    Em vez de examinar o conflito entre a violncia e aconscincia, o filme tenta diminuir a responsabilidadedo oficial-torturador, apenas para mostrar que, alm deter uma noo clara do certo e do errado, quando erraele se sente culpado. J o comandante Jonas (MatheusNachergaele) descrito como um assassino frio, que dis-tribui ameaas de morte aos prprios colegas sem darsinal de arrependimento. Comparando os viles de cada

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    lado, no h dvida de que o filme fez sua opo. Otorturador tem direito a um conflito interior, a honrade uma angstia. O comandante do seqestro um robfantico sob a pele de esquerdista. Como observou acrtica Helena Salem, em suas angstias o torturador mais humano.

    Elbrick morreu em 1983 e, em janeiro deste ano,sua filha, Valery Elbrick, assistiu ao filme numa sessoprivada em Nova York. Bruno Barreto fez um traba-lho excepcional, disse ela. Veja ouviu dois militantesque participaram do seqestro e assistiram ao filme empr-estrias. Um deles, Manoel Cyrillo, 50 anos, foi quemacertou uma coronhada na cabea do embaixador norte-americano, no momento da captura. Preso um msdepois, Cyrillo cumpriu dez anos de priso. O que eleacha do filme:

    Ningum precisa me explicar a diferena en-tre realidade e fico. claro que sei o que isso. Tambm sei que possvel fazer uma ficohistrica, misturando fatos reais e inveno. No disso que reclamo. Mas este um filme quetende demais para o outro lado, contra ns. Tudo a favor do governo, do Exrcito. At otorturador inteligente, pode se explicar. Ns,no. Se o filme assim to ruim, de quem a culpa? nossa culpa, minha culpa. Ns nunca con-tamos nossa verso. Nunca escrevi o que vi, oque passei. Ento, os outros contam.

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    Voc se emocionou com alguma cena? Gostei quando os presos chegaram ao Mxi-co. E uma cena boa de lembrar, foi nossa vitria.Tambm gostei da hora que mostra o seqestrosendo noticiado na TV. Eu estava na casa, com oembaixador e os outros. Foi um grande momen-to, para todo mundo. Devo ter chorado muito.

    O outro militante Paulo de Tarso Venceslau, 52anos. Ele participou da captura do embaixador e tambmda equipe que soltou Elbrick. Ficou cinco anos na priso:

    O filme uma boa aventura. Mas, comohistria, leviano. Qual a pior cena? Existem coisas ridculas. No meio do seqes-tro, Gabeira resolve seguir os policiais queprocuravam a casa onde o embaixador era guarda-do. um absurdo. Em outra cena duas pessoas,que levam uma mala cheia de metralhadoras egranadas, chegam de txi casa do seqestro. Srindo.

    Co-financiado pela Columbia, produzido com am-bio de fazer bonito no mercado externo e por issocom Alan Arkin como estrela de primeira grandeza ,O que isso, companheiro? tem no embaixador seu maiorpersonagem. Elbrick tem um discurso que tenta colo-car ordem no filme, seu olhar examina e julga o que sepassa. Brilhante estudioso do cinema brasileiro, o pro-fessor Ismail Xavier, da Universidade de So Paulo, ob-

  • PAULO MOREIRA LEITE

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    serva que, no final s o personagem do embaixador pa-rece ter histria, no se esfumaa, merece referncia.O professor ficou incomodado com esse tratamentodiferenciado. E as outras figuras desse episdio? Comolhes dar cidadania para alm do ocorrido?

    Sem humanizar os personagens, o filme perde achance de fazer um ajuste de contas honesto com algu-mas mitologias da esquerda o mximo que mostraso traos de personalidade, como arrogncia, autori-tarismo. Mas havia muito a procurar. H quem cultivea lenda de que a luta armada s foi iniciada depois que oregime bloqueou os espaos para a atuao poltica e amobilizao popular. uma tese falsa, pois no haviacarncia de democracia apenas no governo. Havia gru-pos de esquerda treinando guerrilha antes da queda deJoo Goulart, e os assaltos a Banco destinados a finan-ciar estruturas clandestinas so anteriores ao AI-5. Essafatia da esquerda produzia seu beco sem sada, um im-passe resolvido pela fora bruta, com seu esmagamento.Desprezavam-se os valores democrticos. No se apos-tava na ao poltica. O modelo visto como ideal para opas era uma ditadura, o regime de Fidel Castro.

    Como acontece com qualquer filme, do mais popu-lar ao mais erudito, O que isso, companheiro? umamontagem e uma remontagem. Uma histria que seconta conforme o ponto de vista de quem filma. Nohavia por que discutir quem venceu e quem perdeu numaescalada de violncia que, iniciada em 1969, j estavaencerrada em 1972, quando os ltimos integrantes dasorganizaes armadas sobreviviam numa delinqncia

  • O QUE FOI AQUILO, COMPANHEIRO

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    sem perspectiva. Esse mundo clandestino desabou commilitantes presos, foragidos, mortos, desaparecidos. Masos derrotados no so necessariamente menos genero-sos, mais perversos nem mais mesquinhos do que os vi-toriosos, e uma pena que esse seja o retrato deixadopelo filme. So mscaras chapadas, sem histria, figu-ras feitas disponveis para a circulao do preconceito,explica Ismail Xavier.

    PAULO MOREIRA LEITE jornalistae redator chefe de Veja.

  • ENTREVISTA COM VERA SILVIA MAGALHES

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    EX-MILITANTE INSPIRAPERSONAGENS FEMININAS

    HELENA SALEM

    Publicado emO Estado de S. Paulo,

    1/05/97.

    Vera Slvia Magalhes era da direo da Frente deTrabalho Armado da Dissidncia Comunista (quese transformou em MR-8, a partir do seqestro do em-baixador Charles Elbrick). Foi ela que, ento com 21anos, fez o levantamento para a ao, tendo tambmparticipado diretamente do sequstro, na cobertura logs-tica. Vera, porm, no permaneceu dentro da casa emSanta Teresa nenhuma mulher ficou , mas acom-panhou os acontecimentos passo a passo, por interm-dio de alguns companheiros que entravam e saam. Nofilme, ela seria a fonte de inspirao das personagens deCludia Abreu (que faz o levantamento da ao) e deFernanda Torres, que, como Vera, deixa o pas com as

  • EX-MILITANTE INSPIRA PERSONAGENS FEMININAS

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    pernas paralisadas quando de sua libertao em trocado embaixador alemo Ehrenfried von Holleben(seqestrado em 1970), junto com mais 39 prisioneirospolticos , em conseqncia das violentas torturas quesofreu na cadeia.

    Aps tanto sofrimento, Vera, que economista,mantm-se uma pessoa de bem com a vida, profunda-mente vital, inteligncia brilhante, bom humor, gene-rosa, intelectualmente aberta e um esprito profunda-mente crtico. Aos 49 anos, me de Felipe (de 19 anos,filho do ex-marido e at hoje grande amigo Carlos Hen-rique Maranho), Vera conta nesta entrevista ao jornalO Estado de S. Paulo como era a gerao que aderiu luta armada em 1968/1969 e participou do seqestro doembaixador norte-americano; fala tambm das ligaesdessa gerao com o movimento cultural do pas napoca; de torturados e torturadores e das seqelas quelhe restaram das violncias sofridas na priso.

    ESTADO Como eram os jovens militantes da Dissidncia?VERA SLVIA MAGALHES ramos uns 40 militantes euns 30 simpatizantes da Dissidncia. Considervamosque no tnhamos estrutura suficiente para fazer a aosozinhos, ento chamamos a Aliana Libertadora Na-cional (ALN), uma organizao mais militarizada que anossa. Era uma questo mais logstica. Eu, por exem-plo, que era do Comit Central da organizao, assimcomo o Daniel Aaro Reis, ainda tinha condies decircular pela zona sul do Rio antes do seqestro. Nsestvamos num processo de acumulao de foras, nun-

  • ENTREVISTA COM VERA SILVIA MAGALHES

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    ca fazamos aes de conflito, mas aes bem prepara-das, em que no ocorressem tiroteios. Pensvamos numprocesso insurrecional, de ao vanguardista, e entodecidimos que iramos pegar o homem, isto , o embai-xador norte-americano. E espervamos que dessa aoresultasse um rebulio social. Mas ns no ramos unsbobos. Ao contrrio, a gente estudava desde os tericosmais evidentes, como Marx e Engels, at Kant, Hegel,lamos Caio Prado Jr., Wanderley Guilherme issono que a gente chamava Organizao Parapartidria, asOPPs, antes de entrarmos para a organizao mesmo.Ainda nas OPPs, em termos prticos, fazamos algumasaes para testar o futuro quadro, como tirar a placa deum carro etc. difcil medir o tempo, nessa poca, nosentido cronolgico, para definir essa gerao. umagerao que vai lanar depois a guerrilha rural e faz an-tes as aes urbanas de propaganda da luta. Mas nspensvamos tambm em romper com os preconceitosda famlia, com os casamentos formais a gente se casa-va, mas no era uma coisa formal , queramos rom-per com a virgindade. Era um momento de muita ebu-lio, era uma gerao libertria. E isso aconteceutambm no teatro, com o Z Celso Martinez Corra,do Teatro Oficina, na msica com o Tropicalismo, cadaum com as suas ferramentas. Tinha tambm o CinemaNovo, ns freqentvamos o Paissandu, discutamoscinema. Dias antes da ao do seqestro, vi com o meumarido na poca, o Jos Roberto Spiegner, A chinesa,do Godard, e aquele filme polons lindo, Cinzas e dia-mantes. O Carlos Zlio era artista plstico, parou de pin-

  • EX-MILITANTE INSPIRA PERSONAGENS FEMININAS

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    tar durante a militncia, mas voltou na cadeia. Assimcomo a contracultura que veio depois, as drogas e orock-nroll, que a esquerda na poca no via, mas tudofazia parte de um mesmo conjunto. A gente queria cons-truir sim, era o nosso sonho. E uma possibilidade.Muitos pases tinham se tornado socialistas. Podamoster um projeto autoritrio, de uma guerrilha isolada,no ligada s massas. Mas, na verdade, fizemos mais aesarmadas do que guerrilha. Eu me digo ex-militante deuma causa, no guerrilheira. Peguei em armas, no queeu gostasse, mas era preciso fazer. Essa gerao de 68 indescritvel. Como disse, no um tempo cronolgi-co. Em 1969, houve o seqestro, num contexto queabrange desde a luta armada at a luta cultural. Nsno ramos uns babacas. Claro que a ao do embaixa-dor norte-americano foi jacobina, no tnhamos foraspara o que viria depois.

    ESTADO Eram todos do movimento estudantil?VERA No, no ramos todos estudantes: o Joo LopesSalgado era um ex-militar que estudava medicina, e o Jo-nas, o comandante da ao, um operrio de origem cam-ponesa. O Salgado atendia as pessoas feridas nas aes. Nstnhamos mais uma estrutura de partido, enquanto a ALNatuava em grupos. Na ao do seqestro, participaram oitoda Dissidncia e quatro militantes da ALN, entre eles o Jo-nas e o Toledo (Joaquim Cmara Ferreira). O Marighellafoi contra o seqestro, quem foi a favor foi o Toledo. Foium marco na vida da gente. O primeiro a cair foi o Clu-dio Torres, que no disse nada.

  • ENTREVISTA COM VERA SILVIA MAGALHES

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    ESTADO No filme, o Jonas aparece como uma pessoa ex-tremamente dura, disposta a matar qualquer companheiroque o desobedecesse. Era isso mesmo?VERA No, o Jonas era um quadro de origem cam-ponesa, ele estava ali porque era um comandante mili-tar mesmo. Os quadros polticos da ALN eram o ManoelCyrillo e o Paulo de Tarso, que eram muito mais pr-ximos de ns. O Jonas sabia manter a ordem, a discipli-na, coisas fundamentais para uma ao. Eu no ia con-versar com ele sobre cinema, mas sobre revoluo. Eledizia que quem corresse, durante uma ao, ele atiravaprimeiro no militante e depois no policial. Evidente-mente, isso era mais uma figura de efeito, de comandan-te de ao. Mas ele no falava que, quem desobedecesse,ele ia matar. Era muito fechado, sim. Parece que na casaele relaxava mais, segundo me disse o Cludio Torres,que estava l, e entrava e saa. Mas o Jonas foi um caraherico, que morreu estraalhado na tortura, esquarte-jado, tinha tudo na mo, at mesmo onde ia ser a guerri-lha rural, e no abriu nada. Tambm no houve isso doGabeira ser designado para matar o embaixador. Atendncia era no matar ningum, era uma ao tpicapara ningum morrer. O Jonas era uma pessoa dura,muito eficiente como comandante, mas nunca o ouvifalar em torturar o embaixador (como aparece no fil-me), nunca houve isso. Quando fomos soltar o embai-xador, j sabamos que a Marinha estava l, mas fomoscalmamente. O Cludio que se precipitou e o carro decobertura, onde eu tambm estava, afastou-se. E houve,sim, uma ordem do Exrcito para no abrir fogo, porque

  • EX-MILITANTE INSPIRA PERSONAGENS FEMININAS

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    a morreramos todos, at mesmo o embaixador. Eu nofiquei dentro da casa, fiz o levantamento da ao, fiqueino fusca de cobertura com o Salgado durante o seqestroe, na sada, com o Cludio Torres.

    ESTADO O filme sugere que a personagem de CludiaAbreu, que faz o levantamento da ao, dorme com o chefeda segurana do embaixador. Isso aconteceu mesmo?VERA No houve nada disso. Todo mundo sabe, uma coisa cultural, que a mulher oferece mais seguranapara uma atividade dessas. Voc pode jogar com aseduo, mas sem ir s vias de fato. Nunca tive relaocom nenhum segurana. Era muito fcil se aproximar,fazer perguntas, ele mesmo gostava de contar para semostrar. Eu me apresentei como uma moa de classemdia baixa, que queria ver os jardins da embaixada,voltei l umas trs vezes, fiz as perguntas evidentes, se oembaixador fazia sempre o mesmo roteiro etc., ele fa-lou sozinho, queria valorizar-se. Mas nunca ocorreu deuma mulher de esquerda ter relao com um homemcom o qual ela no tinha nada a ver para fazer um le-vantamento. A gente no era agente secreto. Eu ia l,acho que ele me achou bonitinha, foi falando, era tro-ca de olhares e conversa. No cabia na nossa cabeatransar com um segurana da embaixada norte-amer-icana ou de Banco. Para que ir para a cama? Conse-guamos sempre o que queramos s com uma pe-quena aproximao. Eles tinham uma viso da mulherbastante limitada. Depois, quando marcavam o encon-tro, a gente no ia.

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    ESTADO Quando e em que circunstncias voc foi presa?O que lhe aconteceu na priso, que fez com que voc sassede cadeira de rodas?VERA Fui presa em maro de 1970, numa ao depanfletagem junto com o Zlio, o Daniel Aaro Reise a Regina Toscano. O Jos Roberto Spiegner, queera meu marido, j tinha morrido num cerco nossacasa na Penha. A organizao props um recuo de-pois do seqestro, s fazamos panfletagem de pro-paganda, tnhamos ainda o dinheiro de um assaltoque havamos feito casa de, acho, um candidato avereador do MDB. Fomos todos muito torturados. Eulevei um tiro na cabea, tive uma convulso cerebral,muita tortura psicolgica tambm estou pagandoat hoje por isso. A tortura foi enlouquecedora. Nosabia que dia, que hora era; quando eles me mos-traram diante de um espelho, no me reconheci. Tam-bm no disse o que eles queriam e acho que foi me-lhor para a minha cabea. No acho que exista issode herosmo, depende de cada um, de como voc sesente. Nossa organizao era muito tica, acho que agerao 1969 lutava por uma tica, uma esttica, quecontinua at agora. Acho que deixamos legados ti-cos, estticos, que voc tem de lutar contra o lance-lote de espada na mo. A tortura uma punio quete culpabiliza para o resto da vida e, para quem ce-deu, mais dura ainda. Foi muito barra-pesada. Fiqueisem andar por causa do pau-de-arara, muitas horascom os ps e as mos amarrados, pendurada, levandochoque. Mas quando cheguei em Argel me recuperei

  • EX-MILITANTE INSPIRA PERSONAGENS FEMININAS

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    logo. Houve muitos homens que saram sem andartambm, como o Fayal, o Mrio Japa.

    ESTADO Voc se deparou com torturadores que, aparente-mente, tinham angstias, como no filme?VERA Na minha tortura, no havia nada de angs-tia dos torturadores. Diziam-me que eu seria tortura-da como Jesus Cristo, era uma Sexta-Feira Santa. Eutive uma atitude como homem, de me fazer mais fortedo que eu era. E fui torturada como um homem. Amulher do Lobo (Amlcar Lobo, o psiquiatra quemais tarde seria denunciado como torturador) eracostureira da minha me e, quando ela soube dahistria pela minha me, expulsou-o de casa. Ele atinha levado at a nossa casa. Isso conflito ou esqui-zofrenia? Claro, o torturador um ser humano, coma funo especfica de destruir-nos, e eles conseguiramdestruir muita gente. Era uma pseudoguerra. Ns deum lado, armados, e eles de outro, superarmados. Elesnos colocaram numa situao de humilhao total.O Lobo torturou o Daniel, a mim no. Eu fazia psi-canlise havia muito tempo e para mim isso esqui-zofrenia, no angstia. Ele era metido a sedutor,mas muito bruto, parecia um psicopata. Eles noeram dbeis mentais, montaram um esquema. Oschefes da tortura no foram pegos. Tinha o Zambins-ky, que conversava comigo, o Fontenele, esses con-versavam. Era um teatro. Todas as hipteses soviveis, mas acho que a mais vivel que eles esta-vam numa misso, a de nos destruir. No me interes-

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    sa uma classificao para essas pessoas. Eu estavanuma posio oposta a elas na sociedade.

    HELENA SALEM sociloga, jornalista e mestra emhistria da cultura. autora de diversos livros,entre eles Palestinos, os novos judeus; 90 anos de

    cinema: uma aventura brasileira e As tribos do mal:o neonazismo no Brasil e no mundo.

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    FICO JULGADASOB AS LENTESDA HISTRIA

    HELENA SALEM

    Publicado emO Estado de S. Paulo,

    1/05/97.

    Professor-titular de histria contempornea na Uni-versidade Federal Fluminense, 51 anos, autor denove livros (e de uma tese de doutorado na USP sobre aesquerda nos anos 60, intitulada A revoluo faltou aoencontro), Daniel Aaro Reis F era membro da direoda Dissidncia Comunista (que se rebatizaria de Movi-mento Revolucionrio 8 de Outubro, o MR-8),responsvel junto com a ALN (Ao Libertadora Nacio-nal), liderada por Carlos Marighella, p