reinheimer - identidade nacional como estrategia politica
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Reinheimer - Identidade Nacional Como Estrategia PoliticaTRANSCRIPT
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MANA 13(1): 153-179, 2007
IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA*
Patrcia Reinheimer
Introduo
No comeo de 2005, como crtica a um projeto social do governo federal1,
foi divulgado o resultado de uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatstica (IBGE) que afirmava que o problema do Brasil no era
a fome, mas a obesidade.2 Poucos dias depois, essa disputa poltica interna
foi apresentada imprensa americana3: a reportagem, em primeiro lugar,
fazia meno garota de Ipanema e Gisele Bndchen, para s ento falar
da pesquisa e das questes polticas envolvidas. A notcia gerou manifesta-
es diversas de repdio por parte de vrios grupos sociais brasileiros que
questionavam o resultado da pesquisa, o projeto do governo e a reportagem
americana. Isto at se descobrir que as mulheres fotografadas que ilus-
travam a matria do jornal americano no eram brasileiras. A partir desta
constatao, as atenes voltaram-se para o correspondente americano no
Brasil, o fotgrafo responsvel pela cobertura da matria e o New York Times.
A resposta, quase imediata, da imprensa brasileira veio atravs de alguns de
seus representantes momescos, que criaram um samba cujo ttulo e refro
final questionavam as preferncias sexuais do reprter americano.4
Esse evento poltico transformado em anedota coloca em jogo algumas
dimenses de diferena que so atualizadas nas relaes sociais cotidianas:
classificaes que procuram ordenar uma determinada realidade a partir
de noes como identidade nacional e alguns de seus smbolos privilegiados
no Brasil, como a mulher, o carnaval e o samba. A inteno deste trabalho
investigar a contribuio das artes plsticas ao processo de instituio de
tais smbolos, a comear pelas disputas em torno da definio de artes pls-
ticas. Para isto, apropria-se do que se convencionou chamar de modernismo
brasileiro, em torno das dcadas de 1920 a 1940, e a forma como alguns
pressupostos dessa modernidade artstica foram revistos principalmente
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aps o final da Segunda Guerra, quando o campo artstico encontrava-se
inserido em um novo contexto sociopoltico.
Ao tomar a linguagem plstica como um sistema inserido em um uni-
verso de trocas simblicas, instrumento de ao sobre o mundo e, portanto,
passvel de atualizar relaes de fora entre os locutores e seus respectivos
grupos (cf. Bourdieu 1987), importante perceber o conjunto de relaes no
qual ocorre a disputa em torno da identidade. Dessa perspectiva, e aps uma
breve apresentao do processo de transformao do discurso artstico entre
as dcadas de 1920 e 1950, pretendo usar o relato biogrfico de um artista
relativamente central para a histria do Modernismo brasileiro, Emiliano
Di Cavalcanti, para pensar a politizao da noo de identidade nacional
como uma estratgia especfica acionada por atores sociais localizados em
situaes determinadas (Gillis 1994). Questiono tambm os smbolos que
foram acionados a partir da situao especfica analisada no texto.
A produo artstica de Emiliano Di Cavalcanti tornou-se representativa,
em algumas arenas, da nacionalidade brasileira, do regionalismo carioca
e/ou da modernidade nacional. Sua autobiografia, publicada em 1955,
uma pea fundamental no processo de construo de tais classificaes.
Ela nos permite perceber algumas formas atravs das quais a identidade
do artista foi construda desde mltiplos encontros, atribuies, auto-atri-
buies, delimitao de fronteiras e ambigidades colocadas e deslocadas
no encontro com a diferena. Essa identidade freqentemente perpassa-
da pelas concepes culturais e raciais associadas idia de nao. Neste
ensaio, procuro refletir a respeito dos princpios de nacionalidade contidos
nessa autobiografia, e em sua articulao com as noes de assimilao
e imigrao que fundamentaram as ideologias sobre a formao nacional
na segunda metade do sculo XIX e na primeira metade do sculo XX.
O objetivo do ensaio discutir as construes simblicas atravs das quais
Di Cavalcanti acionou um pertencimento tnico e regional como forma de
reivindicar uma posio privilegiada no campo artstico nacional, tendo
como base o seu relato autobiogrfico.
Raa, imigrao e identidade nacional so temas que estiveram in-
timamente interligados na histria do pensamento social brasileiro, prin-
cipalmente no perodo que vai de meados do sculo XIX at prximo ao
fim do Estado Novo. Diversos autores escreveram, cada um sua maneira,
sobre a formao de um povo brasileiro que, tendo como ponto de partida a
idia de civilizao, deveria ser constitudo com o incremento do elemento
europeu e a conseqente inverso da pirmide de cores, at se chegar ao
ideal do branqueamento. Em outros momentos, diante de novas situaes
sociais, os europeus que haviam sido trazidos para cultivar as terras devo-
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lutas tornaram-se inimigos potenciais do corpo social (cf. Seyferth 1996).
Se no pensamento social essas questes foram prementes, com suas conse-
qncias polticas como a instituio de leis e projetos que tinham como
inteno o incentivo imigrao ou, em um outro momento, a instituio
de uma Campanha de Nacionalizao o campo artstico no ficou isento
das influncias de tais discusses.
Noes como assimilao, aculturao, branqueamento, cultura bra-
sileira, carter nacional e miscigenao todas intimamente relacionadas
com os processos migratrios, de ocupao territorial e de construo na-
cional podem ser percebidas, de uma forma ou de outra, na produo
artstica literria, plstica e arquitetnica5 desse perodo. Nas artes plsticas,
a autobiografia de Di Cavalcanti possibilita observar como o discurso sobre
formao nacional foi fundamental para a construo de imagens de brasi-
lidade no incio do sculo XX. Elas foram posteriormente reorganizadas na
forma de um relato individual que sintetiza grande parte dos pressupostos
desenvolvidos pelos idelogos da nao, especialmente no perodo posterior
Independncia brasileira.
Emiliano Di Cavalcanti: apresentando o personagem
Cavalcanti nasceu no bairro de So Cristvo, no Rio de Janeiro, em 1897.
Apesar de sua famlia ser desprovida de condies materiais confortveis,
as amizades com pessoas ligadas s letras e imprensa foram um capital
social familiar amplamente aproveitado pelo artista ao ingressar no merca-
do de trabalho (Cf. Simioni 2002). Embora com 17 anos Cavalcanti tenha
publicado sua primeira caricatura e com 19 tenha participado do I Salo
dos Humoristas no Liceu de Artes e Ofcios do Rio de Janeiro6, foi em 1917,
quando transferiu seu curso de direito para So Paulo curso este iniciado
um ano antes no Rio de Janeiro que Di Cavalcanti ingressou propriamente
no mercado jornalstico e editorial da poca. O curso de direito era nessa
poca quase um pr-requisito para os filhos da elite que viriam a ocupar
cargos polticos e burocrticos no Estado, mas tambm para aqueles interes-
sados em seguir profisses ligadas palavra: escritores, poetas, jornalistas
e cronistas. Cavalcanti no concluiu o curso, mas teve a a oportunidade de
entrar em contato com alguns dos intelectuais que compuseram mais tarde
o grupo que iniciou o discurso de renovao artstica e organizou a Semana
de Arte Moderna de So Paulo, em 1922.7
O artista realizou em lugares diferentes, entre 1917 e 1922, trs expo-
sies individuais, e trabalhou como jornalista e caricaturista em peridicos
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diversos. Ilustrou livros de autores como lvares de Azevedo, Cassiano
Ricardo, Guilherme de Almeida, Manuel Bandeira, Mrio de Andrade, Me-
notti Del Picchia, Oscar Wilde, Oswald de Andrade, Ribeiro Couto e Srgio
Milliet, entre outros.
Ainda que se leve em considerao o acesso que o artista tinha a revistas
estrangeiras, as quais possibilitavam no Brasil o contato com os movimentos
artsticos no-nacionais, a formao de Di Cavalcanti e sua atualizao em
relao ao mundo das artes foram feitas, nesse perodo inicial de sua traje-
tria, entre Rio de Janeiro e So Paulo, j que a situao econmica de sua
famlia no permitia que ele estudasse nos grandes centros europeus. Este
dado til para refletirmos sobre duas caractersticas enfatizadas pelos cr-
ticos de sua obra: por um lado, a desqualificao de sua produo, acusada
de irregular8 em relao ao conjunto de sua obra; por outro, a leitura feita no
passado sobre a questo da ausncia de contato com a produo europia
hoje relativizada teria sido uma forma de fazer um contraponto com outros
artistas, remetendo-se autenticidade a Cavalcanti pelo fato de seu estilo ter
se desenvolvido longe do convvio estrangeirizante.
Se as crticas a partir de um vis eminentemente plstico pareciam ser
mais complicadas de se efetivarem, no domnio moral essa dificuldade no
parecia existir. Em 1949, o poeta Murilo Mendes declarou que o compor-
tamento social de Di Cavalcanti influenciava a crtica que se fazia de seu
trabalho:
Os amigos de Di Cavalcanti os inmeros amigos que este homem de esprito
possui mostravam, h alguns anos atrs, preocupaes com a carreira e o
destino do pintor. Todo o mundo sabia que Di Cavalcanti fora um dos iniciadores
do movimento de 1922 e mesmo, segundo algumas opinies, seu principal
iniciador. Todo mundo sabia que ele gozava de considervel reputao como
animador de movimentos; mas na verdade havia um certo receio em apont-lo
como um pintor de primeiro plano; e tal se dava devido ao aspecto dispersivo do
seu talento. O feitio bomio do homem bomia de grande estilo, de resto
refletia-se na apreciao crtica que se fazia do artista, entretanto subconscien-
temente como fator desfavorvel. Julgava-se que o pintor, apesar de seus dotes
excepcionais, seria incapaz de se entregar a um trabalho contnuo e aprofun-
dado. Temia-se pela sorte do pintor Di Cavalcanti9 (Murilo Mendes 1949 apud
Amaral 1985:83).
A imagem da bomia, que em um primeiro momento serviu em parte
como estratgia de construo de uma identidade de artista inconformado
com as regras sociais estabelecidas, foi considerada em outras situaes a
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base para o desmerecimento no s do artista, mas tambm de seu trabalho.
Aracy Amaral, em 1985, no catlogo de uma exposio de desenhos doa-
dos pelo artista para o Museu de Arte Contempornea da Universidade de
So Paulo MAC-USP, tambm menciona uma irregularidade qualitativa
em sua produo e atribui a isso a falta de pesquisas sobre o artista e seu
trabalho (Amaral 1985:10). O comportamento parece ser apenas um dos
elementos influenciadores da avaliao, muitas vezes ambgua, da obra e
do artista em questo.
O prprio Cavalcanti oferece indcios para refletirmos sobre outras
dimenses desse processo de categorizao no relato autobiogrfico que
publicou em 1955, Viagem de minha vida: o testamento da alvorada. Segundo
o autor, o livro era parte de um dirio descontnuo e seria o primeiro livro de
um projeto que inclua dois outros volumes, que o autor definiu como um
trptico de sua vida. O segundo livro teria o ttulo O Sol e as Estrelas e
traria o relato de suas viagens por este mundo de Deus. Paisagens e homens
da nossa terra e do estrangeiro. O terceiro, Retrato de meus amigos e... dos
Outros, levaria ao leitor os homens que conheci de importncia artstica
e literria na minha vida, as mulheres que amei e no sei quantos homens
e mulheres que foram meus amigos e ... os outros (:8). O que parece estar
implcito a esses temas que o autor acabou no desenvolvendo, ao menos
dessa forma, a importncia da rede de relaes, na qual estava inserido,
para a construo de sua identidade social e, portanto, do significado de
sua produo no mundo artstico. Talvez viesse da o interesse em explici-
tar essa rede, o que em alguma medida acabava contribuindo para a sua
prpria construo.
Em oposio idia de dirio, o autor adverte sobre o carter constru-
do do personagem Di Cavalcanti10, possivelmente adiantando-se a crticas.
Entretanto, Cavalcanti negou a falsidade dessa construo, alegando que
a memria operaria uma reconstruo em relao ao significado dos fatos,
mas admitindo certa idealizao no processo. O autor adverte: Estas minhas
memrias so fruto de minha imaginao que soube ver e sentir o esplendor
da vida nas banalidades de minha existncia. No quero dizer que invento.
A criao sempre um artifcio decorativo. Criar acima de tudo dar subs-
tncia ideal ao que existe (:10-11).
Para alm do fato de o livro servir para fundamentar discursos produ-
zidos posteriormente a respeito da trajetria do artista e de sua obra11, ele
surge tambm como a possvel organizao sistemtica de questes que j
vinham sendo encenadas por Cavalcanti e apontadas por seus crticos.12
Interessa-nos na publicao os depoimentos, as poesias e as imagens que,
segundo o autor, teriam sido produzidos em diversas pocas e mais tarde
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ordenados para publicao. Ainda que esse tenha sido o caso, o processo
de edio, reviso e organizao dos textos certamente alterou a heteroge-
neidade resultante de escritos realizados em tempos diferentes. A prpria
idia de que os escritos tenham sido produzidos ao longo de sua trajetria
pode, no entanto, constituir parte do processo de construo do personagem
Di Cavalcanti.13 Na ltima frase do prefcio, ele afirma ser seu prprio
personagem (:12). Assim como o personagem Di Cavalcanti apresentado
como inventado medida que sua identidade de artista vai sendo forjada,
possvel acrescentar que os temas a serem tomados como seus por ex-
celncia seriam descobertos, ao mesmo tempo que engendrados, pelos
diversos dispositivos discursivos (Foucault 2004) relacionados sua obra e
sua trajetria de vida. Sua autobiografia deve ser vista, ento, como mais
um elemento do enredo no qual Di Cavalcanti assume mltiplos papis.
Se o autor, ao chamar a ateno para o fato de o personagem ser uma cons-
truo, nos indica o carter ilusrio da linearidade e da intencionalidade
alguns episdios de sua trajetria so, de fato, obliterados ou minimizados
h na publicao uma possibilidade interpretativa que interessante, se
procurarmos apreender o processo de produo de uma identidade social
implcita no relato.
O prprio autor explicita ainda no prefcio que sua inteno no
histrica e que o valor do livro est no que se pode apreender de sua ex-
perincia pessoal. Ainda assim, alm de dizer que o livro produto de um
dirio intermitente, ele define o relato como as anotaes de um viajante
que nada tem do turista (:8). O fato remete idia de que suas vivncias
tm densidade afetiva e as coisas que conta foram experimentadas e no
apenas presenciadas, ou inventadas. Portanto, o jogo com a ambigidade
oferece aos leitores mltiplas possibilidades de leitura de uma narrao
que se apresenta como dirio e fico, autobiografia e elaborao, mas que
coloca questes interessantes em relao s formas de construo de uma
brasilidade que garantia, naquele momento preciso, o reconhecimento da
sua produo plstica no campo artstico nacional.
A continuidade de um dirio descontnuo
Aps o prefcio em que o autor expe as questes acima apresentadas, o
livro estrutura-se da seguinte forma: nos dois primeiros captulos, O bero
dos sonhos e O bairro de So Cristvo, o autor fala de seu nascimento
neste bairro14, enfatizando o ambiente intelectual da casa de seus pais e a
proximidade destes com Jos do Patrocnio15, importante personagem da po-
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159IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA
ltica, da imprensa e da vida bomia carioca da belle poque, que foi casado
com uma irm de sua me. As mulheres aparecem em todos os captulos do
livro: me, tias, primas, amas-de-leite, namoradinhas infantis, prostitutas,
mulatinhas, meninas inexperientes, filhas de famlia. Entretanto, no
aparece seu primeiro casamento, que ocorreu no ano de 1921 com uma pri-
ma, portanto, dentro do escopo cronolgico do livro que trata do que o autor
denomina da infncia at os incios de maturidade (:8), isto , de 1897 at
1926, aproximadamente. Sua formao catlica enfatizada algumas vezes
durante o relato, a primeira delas em relao culpa do desejo sexual: o
autor menciona o arrependimento devido sua tendncia de orgia, de
libertinagens preguiosas, onde o sexo no se cansava nunca (:18).
O bairro docemente idealizado: tudo era romntico no velho bairro
(:29), So Cristvo tinha, nessas colinas airosas como cromos ingnuos,
sua vida mais alegre, respirando ar mais puro, longe dos baixios cheirando
a mangue e maresia (:37), escondia uma pobreza envergonhada de classe
mdia, cujo divertimento era ir aos cinemas do Largo da Cancela (:38).
Em vrios momentos, aparece a recriao de uma pretensa predestinao
pintura e s letras. Assim, reconhece sem modstia que havia em seus
desenhos infantis grande poesia (:35). Ao falar da presena dos livros em
sua casa, o autor alega que a despeito de seu pai indicar Alusio de Azeve-
do e Machado de Assis, autores hegemnicos do perodo, sua preferncia
recaa em um autor desconhecido que classificou como simbolista, apesar
de admitir: no me recordo de um s dos versos (:34). Nesse captulo,
Cavalcanti j oferece indcios de sua apreciao por festas populares, como
a Festa de Reis, mas no captulo referente ao carnaval que esse tema ser
amplamente desenvolvido.
No captulo seguinte, ao personagem acrescentada uma origem nor-
destina e uma av paterna cuja descrio remete a uma origem indgena ou
negra: me velha no tinha um s cabelo branco... Era uma mulherzinha
mirrada a minha av (:51). O cabelo negro a me velha teria conservado
at morrer com oitenta anos (:53). Nesse captulo, intitulado Corao
nordestino, apresentou sua av por parte de pai como uma contadora de his-
trias da vida do agreste do engenho (:52), acrescentando: me velha era
a presena permanente do Nordeste ancestral na minha infncia (:53).
O carnaval, alm de ter um captulo prprio, tambm capa do livro.
O autor exaltou a importncia que o carnaval carioca teve para a sua for-
mao artstica: a fora incomensurvel do mundo carnavalesco carioca
tem qualquer coisa de sagrado. a compreenso do divino por uma raa em
flor (:65), assim como as festas de igreja que, alis, tambm influenciaram
meu eterno deslumbramento pelo mundo mstico (:59).
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IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA160
No captulo Um homem um artista finalmente aparece o artista Di
Cavalcanti, quase como um Outro de si: Iniciou-se minha vida de artista
(:74). Tanto um quanto outro so apresentados como papis sociais que
devem ser desenvolvidos a contento, mas que supostamente no poderiam
ser conciliados: o homem queria, bem ou mal, o dever; o artista, afinal de
contas, o que queria era o prazer (:73). Cavalcanti fala de sua transferncia
para So Paulo e apresenta algumas das amizades com ricos e famosos, como
Paulo Prado e Isadora Duncan, ou Roberto Gomes e Joo do Rio16, jornalistas
importantes do perodo o primeiro de So Paulo e o segundo do Rio que
o teriam introduzido respectivamente bomia e [a]o submundo carioca,
longe das luzes da reforma urbana empreendida pelo prefeito Pereira Passos
(Simioni 2002:37). Aparecem neste captulo, as primeiras referncias diretas
a imigrantes, quando cita as francesas do beco do Carmelitas.
No stimo captulo, A Primeira Guerra, a presena dos imigrantes
surge apenas de forma indireta ao falar sobre as greves, mas explicitamente
atravs das prostitutas: belas francesas, belas espanholas, belas italianas
davam seus dotes fsicos aos magnficos coronis, aos polticos, aos indus-
triais nascentes (:86). Ou ainda por meio do alemo Elpons, que foi seu
professor de pintura e que veio para o Brasil por causa da guerra. Entretanto,
o captulo est referido ao sentimento de identidade nacional e ao seu po-
sicionamento poltico. Surgem a revelao do socialismo revolucionrio
e a revelao de uma estrada nova, o Manifesto Comunista (:83), que o
colocava no lado oposto de seus colegas da Academia, como Oswald de
Andrade, com aquele reacionarismo catlico (:84).
Em A minha Lapa carioca dos 20 anos, oitavo captulo, Cavalcanti
volta rapidamente ao Rio de Janeiro e enumera mais alguns nomes17 que
teriam dividido com ele, naquele tempo, a desesperana e a incompreenso
da mocidade: porque no queremos mais para o mundo que nos cerca as
chaves que abrem o lugar onde iremos repousar na glria de um emprego
pblico, ou na hierarquia de um casamento rico (:103).
Finalmente, Semana de Arte Moderna, captulo no qual o autor, agora
tambm artista-personagem, sintetiza a construo que foi sendo engendrada
nos captulos anteriores. Cavalcanti atribui a origem de uma sensibilidade
moderna no Brasil exposio de Anita Malfatti em 1917, mas concebe o mo-
dernismo da artista e o de outros como menos nacional que o seu: Anita vinha
de fora, seu modernismo, como o de Brecheret e Lasar Segall, tinha o selo da
convivncia com Paris, Roma e Berlim. Continua justificando-se como mais
brasileiro: meu modernismo coloria-se do anarquismo cultural brasileiro e, se
ainda claudicava, possua o dom de nascer com os erros, a inexperincia e o liris-
mo brasileiros (:109). O artista apresenta ento a sntese de suas influncias:
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161IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA
Do carnaval carioca eu tirei o amor cor, ao ritmo, sensualidade de um Brasil
virginal, do bairro de S. Cristvo, a permanncia do romanesco, o familiar
gnero Machado de Assis, a preocupao poltica aprendi nas charges do
velho Malho, do Nordeste de meus parentes paraibanos e pernambucanos
vinha meu aventurismo, minha ousadia que aumentava depois do contato com
a zona agrcola do interior de So Paulo, revelao da existncia de um Brasil
de colonizao italiana, industrializando a produo cafeeira, criando cidades
(:109/110).
Segundo Cavalcanti, aps o evento da Semana apareceu pelo Brasil
afora, uma lamentvel florao artstico-literria (:119). Com a falta de
contedo humano que s havia surgido com os romancistas do Nordeste
[e] uma certa conscincia da tragdia do homem brasileiro que o anti-
academismo criou uma estrutura poderosa (:120). A institucionalizao
dessa estrutura e o comeo de um novo academismo, com adeses de
novos modernistas (:124, itlico no original), levaram Cavalcanti a fugir
para Paris, como forma de tirar uma prova real de mim mesmo fora de um
ambiente que parecia cada vez menor (:124).
Em Primeira fuga europia18, ttulo do dcimo captulo do livro,
desdenha a atitude colonial [do brasileiro] diante da metrpole quando
chega Paris (:130) e alega que para ele Paris era, desde que me fiz gente,
uma coisa familiar (:130), reforando o fato da educao afrancesada que
recebera. Este captulo mais descritivo do que os outros19 e ele ali relata
eventos a que assistiu, pessoas com as quais entrou em contato20, artistas
contemporneos que conheceu, assim como nomes famosos da Histria da
Arte com quem travou conhecimento ou viu o trabalho pela primeira vez,
como se descrevesse o marco do ingresso no que o autor denominou de sua
maturidade. Apesar de enumerar essas pessoas, Cavalcanti desprezou os
homens gnero Blaise Cendrars (:133), poeta francs considerado funda-
mental no processo de elaborao de uma modernidade artstica brasileira
passvel de se inserir no mercado internacional de arte.
Ainda neste captulo relevante mencionar a sua vivncia em situaes
polticas diversas: o contato com os imigrantes de diversos lugares, que
haviam se deslocado devido Primeira Guerra e tinham ento a possibili-
dade de conhecer doutrinas polticas e sociais diferentes; o julgamento da
anarquista Germaine Berton; o enterro de Lnin. E, por fim, o autor fala da
transformao que nele se operara: Paris ps uma marca na minha inteli-
gncia. Foi como criar em mim uma nova natureza e o meu amor Europa
transformou meu amor vida em amor a tudo que civilizado. E como
civilizado comecei a conhecer minha terra (:142).
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IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA162
No penltimo captulo, A Rua, Cavalcanti descreve o estado de esprito
de algum atormentado. Em alguma medida, isso tambm est relacionado
ao fato de as glrias prometidas (:141) no terem se materializado, o que
provavelmente se refere sua expectativa de uma recepo calorosa aps
suas experincias no velho continente21. Em diversos trechos, fala de sua
bebedeira, da falta de rumo em que se encontrava, mas tambm de uma
sensibilidade que seria caracterstica brasileira e que no teria se neutra-
lizado devido ao acmulo cultural: a cultura no apaga os meus sentidos,
sou sempre o vagabundo, o homem da madrugada, o amoroso de muitos
amores [...] sinto-me porta de um decadentismo quase aniquilante (:145).
E igualando poetas e loucos, alega encerrar a o ciclo de [sua] mocidade
pervertida (:160).
No ltimo captulo, intitulado Testamento da Alvorada Cavalcanti,
despede-se com um poema que organizado quase como uma cronologia
temtica, refazendo, de certa forma, a trajetria do livro. Essa despedida no
do leitor, mas de um passado que ao mesmo tempo comeo, alvorada,
despertar para a vida artstica. Uma vez deixada para trs uma faceta de sua
personalidade, insinua-se a entrada do personagem Di Cavalcanti. ento
que o escritor mostra desprezo por aquilo que era seu antes da entrada em
cena do artista/intelectual: No quero essa casa! Aqui tudo horrivelmente
meu! (:165). No poema, surgem mltiplas referncias morte, a cortejos
fnebres, ao esquecimento. Mas a morte tambm, no final do poema,
o reencontro com sua infncia, com a histria familiar e os smbolos que
contribuem para a construo do personagem. A ltima estrofe do poema
refere-se, assim, claridade A claridade a est/ Aqui, sim, o fim/ Eu
morrerei na claridade (:176) talvez por ter encontrado a base sobre a
qual construir a identidade dessa nova persona, os temas e a linguagem
para uma arte que poderia al-lo posteridade.
Construo de uma memria temtica
Ao tomarmos a autobiografia de Di Cavalcanti como fonte de reflexo so-
bre a construo de sua identidade social e de uma brasilidade especfica,
consideramos a noo de memria como um constructo social flexvel, que
no se baseia apenas em acontecimentos, personagens e lugares empirica-
mente fundados em fatos concretos, mas que tem tambm a capacidade de
usar esses elementos como projees de outros eventos (Pollak 1992). Isto
no destitui de valor o relato memorialista, se procurarmos estar atentos s
distores e ao processo de gesto da memria que a engendrado. Tais
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163IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA
distores e gestes no devem ser captadas como dissimulao ou falsifi-
cao do relato, mas como dados a partir dos quais se pode refletir sobre as
estratgias de construo da identidade social do biografado.
A simbolizao da nao nas artes plsticas modernistas no Brasil, assim
como em muitos outros pases, se deu tambm a partir de um processo de
apropriao de elementos e motivos das artes das minorias tnicas presentes
no momento do encontro colonial, ou no caso dos africanos, trazidos como
parte da ao econmica instituda durante a expanso europia. Esse mito
de origem de nao brasileira moderna foi sendo construdo junto com a
prpria nao, para a qual forneceu representaes sobre a cultura de sua
populao (Wallerstein 1991).
No caso de Cavalcanti, a construo de sua identidade estava vincu-
lada ao papel desempenhado no interior de um projeto nacionalista, que
inclua o campo artstico como uma das arenas nas quais a nacionalidade
brasileira era articulada no incio do sculo XX.22 A histria da autobiogra-
fia do artista est inserida em uma construo prvia, que a histria do
modernismo brasileiro e as representaes de uma cultura nacional a partir
da engendradas, ao mesmo tempo sofrendo as influncias do processo de
construo de tal modernismo e influenciando essa mesma histria. Se
questes acerca da autobiografia como a busca pelo estabelecimento de
uma finalidade e pela organizao cronolgica de um conjunto complexo e
heterogneo de experincias de vida podem ser questionadas (Bourdieu
1986), em contrapartida, ela apresenta uma dimenso social diretamente
relacionada s disputas nos campos artsticos carioca e paulista e aos debates
sobre a formao nacional, travados ao longo do sculo XIX e na primeira
metade do sculo XX.
O prprio desenvolvimento temtico da narrativa evidencia a compre-
enso de importantes tpicos relacionados questo da identidade nacional
e que estavam em jogo no comeo do sculo XX, no processo de construo
de uma cultura nacional. Provavelmente esta seja uma das justificativas para
a incluso de autores consagrados como personagens do livro, ou seja, uma
forma de construir um panteo de insignes (e supostos) precursores do qual
o autor se pretendia parte. A organizao cronolgica serviu na biografia
para orientar principalmente a construo dos temas que no captulo A Se-
mana de Arte Moderna foram sistematizados como referncias importantes
para o seu trabalho: o carnaval, So Cristvo, o Nordeste, a imigrao e a
viagem Europa. A mulher no chegou a ser mencionada pelo autor como
tema especfico de sua pintura, apesar de grande parte de sua extensa obra
ter sido dedicada, com diversos matizes, s mulheres tema para o qual
seus comentaristas, ainda hoje, mais chamam a ateno.
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IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA164
Embora s tenha escrito dois livros autobiogrficos23, alguns artigos para
jornais e poesias no publicadas, sua relao com a literatura era intensa.24
Portanto, a escolha dos elementos constituintes de uma brasilidade que se
queria mais autntica do que a de outros artistas, como Anita Malfatti, Bre-
cheret e Lasar Segall, foi deliberada. Esse discurso remete a ambigidades
tambm encontradas em outras dimenses do processo de construo da
representao de uma cultura brasileira que estava sendo desenhada a
partir de um pensamento social. Este, na poca, discutia a imigrao como
soluo para a questo da formao do povo brasileiro e a ocupao terri-
torial. Se, por um lado, em determinado momento, a preocupao quanto
presena de estrangeiros era vista como um perigo para a nao em forma-
o (Romero 1949), por outro, o ideal civilizatrio colocava dificuldades em
relao produo de um imaginrio de nao que no levasse em conta o
elemento colonizador e civilizador.
Na narrativa de Cavalcanti, seu personagem resolveu a questo atravs
da educao e das mltiplas viagens Europa. O artista aponta como um
marco de sua poca a Semana de Arte Moderna, apesar de relativizar o
valor do evento em outras ocasies menos solenes, como no depoimento
publicado em um jornal local de Recife. Entretanto, acima de tudo a sua
viagem Europa, tema do captulo que delimita o que o autor define como
o incio de sua maturidade, que parece marcar essa identidade que teria
sido o resultado de uma brasilidade de origem nordestina enriquecida com
as experincias vividas no velho mundo.
Paradoxalmente, os fundamentos de sua brasilidade seriam os erros,
a inexperincia e o lirismo provenientes de sua origem familiar, em termos
de classe social e regio, a qual o teria mantido distante do contato com os
estrangeiros. Se foram suas viagens Europa que o civilizaram, as refe-
rncias aos imigrantes europeus no Brasil aparecem apenas na colonizao e
na industrializao da produo cafeeira, ou atravs da prostituio. A forma
de apresentar a imigrao nessa construo identitria, alm de ser coerente
com a noo de autenticidade que o autor articula ao longo do livro, remete
tambm a uma hierarquia social a partir da qual se pensam os imigrantes,
europeus ou no, como inferiores e, portanto, incapazes de oferecerem a
mesma contribuio civilizadora que os europeus que viviam na Europa.25
Se Cavalcanti tomava sua brasilidade como mais autntica por no ser
proveniente das elites brasileiras e por ter sua origem familiar no Nordeste26,
ele parecia estar ciente de que esses valores, por um longo tempo, haviam sido
objeto de disputas, em grande medida depreciativas, entre autores como Slvio
Romero, Nina Rodrigues, Manuel Bonfim e muitos outros, cada um procuran-
do, sua maneira alguns com otimismo moderado, outros sem nenhum
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165IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA
explicar o Brasil, os brasileiros ou a sociedade brasileira. Cavalcanti remeteu a
demarcao de fronteiras simblicas, entre outras coisas, a essas regies admi-
nistrativas e simblicas e aos valores a elas atrelados. As oposies entre classes
sociais, subentendidas na referncia a So Cristvo, e entre litoral e serto, na
meno ao Nordeste, tm fundamentado diversas representaes em torno das
concepes de nacionalidade no pensamento social brasileiro.
O autor escolheu para exaltar como formadores de sua identidade temas
que esto intrinsecamente relacionados a teses que incluam questes como o
meio, a raa e a imigrao como eixos em torno dos quais pensar a formao
do povo brasileiro. Cavalcanti inseriu-se assim no bojo das lutas de classi-
ficao que contriburam para a construo de representaes identitrias
que vm sendo articuladas a partir de uma produo discursiva mltipla,
que inclui intelectuais, polticos e, a partir desse relato autobiogrfico, um
artista plstico e ilustrador.
Sem citar os autores, Cavalcanti atribui aos romancistas do Nordeste
o surgimento de uma certa conscincia da tragdia do homem brasileiro
(:120), o que provavelmente uma referncia a Gilberto Freyre, j que foi
este autor que considerou o Nordeste como o lugar mais apropriado onde
encontrar os elementos constitutivos da nacionalidade brasileira (Seyferth
2001). Assim como o regionalismo defendido por Gilberto Freyre, o regiona-
lismo de Cavalcanti no interferia na identidade nacional que ele procurava
instituir como autntica (Cf. Seyferth 2001). significativo o fato de Caval-
canti mencionar os cabelos negros de sua av, que teriam se mantido at os
seus 80 anos. Independente da veracidade do relato, o prprio exagero pode
denunciar implicitamente uma relao do autor com a mistura tnica na
famlia, forma de legitimar sua origem brasileira. A noo de miscigenao
no ganha, entretanto, espao explcito, a no ser na referncia formao
tnica e histrica do carnaval como possibilidade explicativa para essa festa
anual. O autor, no entanto, no entra nessa discusso, alegando que esta
seria uma pretenso erudita que ele no teria. Se sua aproximao com a
literatura era to intensa como alegam vrios depoimentos de pessoas que
tiveram contato com o pintor, muito provavelmente eram de seu conheci-
mento as ambigidades implcitas nas diferentes teorias sobre miscigenao
que procuravam explicar a formao social dos brasileiros.
O testamento da alvorada: a identidade brasileira comolegado de Di Cavalcanti
O ttulo de sua autobiografia particularmente revelador: o testamento seria
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IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA166
a declarao de sua ltima vontade acerca da disposio de seus bens depois
de morto. Esses bens poderiam ser aqueles provenientes de sua produo
artstica, que avaliada diferencialmente em relao ao lugar que Cavalcanti
ocupou em cada momento de uma determinada histria da arte brasileira.
A alvorada seria seu despertar para o mundo do qual faz parte essa histria
em que o autor pretende se inscrever, marcando sua entrada com a primeira
viagem Europa. Como derivao de alvor, brancura, pureza, o alvorecer
poderia tambm ser tomado como o branqueamento que constituiria o
processo de construo de sua identidade de artista e intelectual moderno,
o processo de aquisio de cultura que o teria civilizado.
Como a identidade uma moeda no mercado de bens simblicos,
importante mencionar alguns dados a respeito da constituio do campo
artstico no perodo que vai de seu ingresso nesse mercado at a publicao
do relato biogrfico, a fim de que se possa compreender o momento em que
esta estratgia identitria se inscreve. O chamado Modernismo brasileiro
perodo histrico referente aproximadamente primeira metade do sculo
XX compreende ampla gama de manifestaes no campo intelectual.
Elas vo desde autores como Gilberto Freyre e Srgio Buarque de Holanda,
a quem geralmente se atribui a inaugurao de uma nova forma de pensar
o Brasil27, a artistas plsticos e msicos que, em linhas gerais, pretendiam,
imbudos da tradio romntica, unir o popular ao erudito como forma de
construir uma linguagem artstica que representasse a essncia da bra-
silidade. Entretanto, a noo de identidade nacional precisa ser observada
a partir das situaes especficas nas quais ela foi acionada como forma de
escapar naturalizao e reificao que o conceito pode acarretar.
A idia de organizar um evento de arte moderna tinha como um de seus
objetivos o questionamento do monoplio das instncias de legitimao
Escola Imperial de Belas Artes, Sales oficiais, prmios de viagem, Academia
Brasileira de Letras que desconsideravam todas as formas de manifestao
artstica que no obedecessem aos requisitos neoclssicos de composio e
temtica. Esse evento contribuiu para a constituio de um campo artstico
relativamente autnomo28 no Brasil, assim como para o ingresso do Brasil
no que Mrio de Andrade, um dos personagens centrais do movimento
modernista, denominou concerto das Naes29. Outro dado importante
a ser considerado foi a escolha do ano de comemorao do centenrio da
Independncia da nao brasileira como data que marcaria o comovente
nascimento da arte no Brasil30, forma de determinar uma diferenciao da
cultura nacional de outras pretensas totalidades culturais.
No incio do sculo XX, porm, a noo de modernidade na arte precisou
abandonar temporariamente os princpios da liberdade formal a ideologia
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167IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA
da arte pela arte como estratgia de construo de um campo artstico
relativamente autnomo, pois antes de tudo foi necessrio estabelecer o
Brasil e os brasileiros como uma regio simblica de produo artstica
legtima. Em grande medida, o que os manifestos artsticos, como Pau-Brasil e
Antropofgico, fizeram foi instituir uma realidade, ao revelarem os princpios
de construo de uma produo artstica nacional moderna e elaborarem,
atravs da objetivao do discurso, a prpria arte nacional.
No que se convencionou chamar de primeiro momento do Modernis-
mo, at 1924, a renovao da produo artstica havia passado pela adoo
de temticas urbanas o automvel, o cinema, o aeroplano etc. (Moraes
1988:224), isto , noes como progresso, cincia, racionalidade e tcnica
como condies para o ingresso do Brasil no concerto das naes modernas.
Mas depois de dois anos em Paris, Oswald e Tarsila31 teriam percebido que
a universalidade da modernidade como temtica urbana no tinha apelo
suficiente para inserir o Brasil em um mercado internacional. Nele, moder-
nidade era atributo das naes europias, urbanas e industrializadas.
Passava-se assim a procurar outras mediaes atravs das quais a
modernidade brasileira pudesse ser constituda. Predicados tomados como
particulares nao foram ento acionados como forma de assinalar uma
pretenso em participar desse mesmo mercado e marcar uma posio para a
produo brasileira. A relao com o passado e a formao tnica seriam for-
mas de particularizar a modernidade que estava sendo forjada para o Brasil.32
Percebe-se tambm uma mudana na pintura de Di Cavalcanti, antes e depois
de sua viagem Europa, no tanto em relao aos temas que j apresentavam
o carnaval e as mulheres como parte de seu interesse, mas principalmente
quanto ao estilo. Ele adotou depois da viagem cores mais vibrantes e uma
forma de representao na qual o desenho sobressaa mais do que em pinturas
anteriores: fronteiras mais precisas separavam, ento, as figuras e as cores.
Na dcada de 30, houve uma proliferao de grupos de diversas expe-
rimentaes plsticas visando s possibilidades modernas (Grupo Santa
Helena; Sociedade Pr-Arte Moderna SPAM; Clube dos Artistas Modernos
CAM), assim como vrios sales e exposies de arte moderna. Estes foram
os precursores da Bienal e dos museus de arte moderna a serem fundados
na dcada de 40 (Museu de Arte de So Paulo MASP, 1947; Museu de
Arte Moderna de So Paulo MAM-SP, 1948; e o Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro MAM-RJ, 1949).
No entanto, a instituio da Guerra Fria tornara mais explcita a relao
entre arte e poltica, expressa atravs do projeto pan-americanista que
tinha na cultura (e nas artes em particular) um dos seus braos (Alambert
e Canhte 2004:28). Nesse projeto, Nelson Rockefeller, proprietrio, entre
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IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA168
outras coisas, da Standard Oil, a maior empresa petrolfera do mundo, foi
nomeado para dirigir o Inter-American Affairs Office, agncia diretamente
ligada ao Departamento de Estado norte-americano, cuja funo era di-
vulgar a cultura e os laos de amizade dos americanos do norte com os
do sul (Alambert e Canhte 2004:28). Criada pelo presidente Roosevelt e
coordenada por Rockefeller, essa agncia tinha como objetivo gerar uma re-
lao de irmandade entre os EUA e a Amrica Latina, especialmente o Brasil,
devido sua dimenso continental e sua posio estratgica. A fundao
da Bienal e do Museu de Arte Moderna de So Paulo foram profundamente
influenciados por esse programa que se extinguiu depois de terminada a
Segunda Guerra, persistindo, porm, as relaes entre Rockefeller e o MoMA
e Francisco Matarazzo Sobrinho, ento um dos diretores do MAM-SP e da
Bienal. Segundo Alambert e Canhte (2004), a fundao dessas instituies
e as exposies de arte engajadas contra o nazifascismo estavam inseridas
no contexto da mudana da hegemonia francesa e no incio da americana,
o que ficava subentendido no debate sobre o abstracionismo.33
Em 1949, o MAM-SP inaugurou uma exposio denominada Do Fi-
gurativismo ao Abstracionismo, iniciando o maior debate na arte brasileira
desde a Semana de 22 (Alambert e Canhte 2004:32). Di Cavalcanti parti-
cipou intensamente dessa polmica que, em 1961, ainda se mostrava ativa:
em um artigo publicado pela revista Manchete34, Di Cavalcanti acusa[va]
abstratos de aristocratizao da arte... e Mrio Pedrosa35 respondia que a
questo no pintar mulatas ou loiras.
Portanto, a autobiografia de Di Cavalcanti insere-se nesses debates sobre
o monoplio da forma legtima de representao artstica, em um momento
em que o discurso da arte pela arte parecia definir o abstracionismo como
a vanguarda da arte moderna e posicionamento poltico legtimo. Em um
primeiro momento de insero no mercado artstico, Cavalcanti desafiou as
convenes acadmicas para instaurar uma nova linguagem artstica na qual
sua forma de representao pudesse se inserir. Rompidas essas barreiras do
academismo e legitimada sua posio de artista moderno, ele adotou a temtica
nacional como centro de sua obra. Passadas um pouco alm de duas dcadas
da Semana de Arte Moderna, a forma de representao do artista parecia no
condizer mais com os discursos que fundamentavam os interesses sociais dos
grandes financiadores de arte moderna do perodo. Nesse novo contexto, era
Di Cavalcanti que precisava se defender da nova ideologia artstica que vi-
nha agora desafiar a definio at ento legtima do que era concebido como
arte moderna no Brasil. Sua estratgia nessa disputa foi recorrer noo de
identidade nacional, no apenas atravs de temticas tidas como nacionais,
mas da constituio de um discurso no qual sistematizou uma origem familiar
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169IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA
que justificava seus interesses temticos e construa um vnculo ancestral com
aquela brasilidade que ele alegava representar plasticamente.
A inaugurao dos primeiros museus de arte moderna no Rio de Janeiro,
So Paulo e Bahia e a instituio das bases do que veio depois a ser a Bie-
nal de Arte de So Paulo possibilitaram a apresentao nessas capitais das
ltimas tendncias do mundo artstico internacional. Alm disso, essas insti-
tuies contriburam para inserir a produo de artistas, crticos e curadores
brasileiros em um mercado internacional no qual a linguagem privilegiada
era a da universalidade da expresso plstica. O modernismo havia se
transformado em uma linguagem internacional em que o nacionalismo
no tinha mais lugar e a diferena seria considerada a partir de noes como
formao (background), inspirao e interpretao (Bertheux 2004:5).
Di Cavalcanti, no entanto, continuava definindo sua arte vinculada a uma
identidade nacional. Se em um primeiro momento explicitar o Brasil como
uma regio de produo artstica legtima era enunciar um novo nicho no
mercado internacional de arte, nesse novo contexto, no qual a arte moderna
era tomada como uma linguagem universal, definir-se como um produtor
regional era excluir-se da possibilidade de insero em um mercado mais
amplo. Nele, a origem de um artista seria uma informao importante para
a construo do discurso sobre sua obra, mas no o eixo central em torno do
qual estruturaria sua linguagem plstica. Assim, o mesmo regionalismo que
teria garantido maior rendimento ao seu capital cultural e simblico no incio
do sculo XX passava a ser restritivo na nova configurao do campo artstico.
Ao mesmo tempo, seu discurso biogrfico funcionava como um certificado
de autenticidade para a sua participao no perodo inaugural, no mercado
artstico internacional, de um nicho que respondia pelo nome de Brasil, ainda
que este nome no mais precisasse ser anunciado dessa forma.
Consideraes finais
A inteno deste ensaio foi refletir sobre um processo especfico no qual a
identidade (no caso nacional) foi instrumentalizada como estratgia de um ator
social para inserir-se em um grupo de pertencimento fragmentado (o mundo
artstico [Becker 1984] brasileiro), considerando as relaes de poder que
se estabelecem entre essas diferenas internas. Procurei escapar da idia de
uma escolha estritamente racional que tem por base interesses claramente
vislumbrados, cujos resultados so aes cumulativas que, a partir dessas
escolhas, podem ser comprovadas retrospectivamente. Para tanto, considerei
que, apesar de os atores terem noo do contexto histrico e de sua posio no
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IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA170
sistema de relaes sociais, no h clareza sobre o que suceder no desenrolar
das relaes pessoais e no tempo histrico. Assim, os fenmenos no foram
tomados na forma como so apreendidos hoje, mas como resultado de dife-
rentes constrangimentos postos pelos contextos nos quais as diversas atitudes
foram assumidas, tendo cada uma delas, a seu tempo, objetivos relativamente
claros. A inteno foi escapar de um equvoco objetificador dos sujeitos que
pudesse tom-los como agentes de um sistema colonial sem destituir-lhes
completamente a autonomia de suas decises (Banks 1996).
Ao considerar a linguagem plstica como mais do que um simples sis-
tema de comunicao, percebe-se a importncia do conjunto no qual essa
autobiografia se insere. O porta-voz do discurso biogrfico, o contexto e os
leitores aos quais ele se dirige so dimenses fundamentais para compreen-
dermos as condies sociais de produo de tal discurso. A manipulao da
identidade social, atravs do recurso a smbolos que j no eram mais con-
siderados prestigiosos, foi uma forma de se colocar em oposio ao conceito
de arte pela arte, subentendido na disputa entre figurao e abstrao. Se
com essa autobiografia Cavalcanti estava contribuindo, consciente ou incons-
cientemente, para a naturalizao de uma identidade nacional que vinha
sendo construda desde o sculo XIX, tendo como base as noes de raa,
imigrao e civilizao, em contrapartida, a sua inteno era, em primeiro
lugar, a valorizao de sua prpria produo artstica atravs do recurso
noo de brasilidade. Cavalcanti pretendia positivar, em 1955, o que naquele
momento estava sendo percebido como categoria de acusao: a utilizao
da representao figurativa na pintura. Para tanto, sem explicitar, o artista fez
uso de uma multiplicidade de esquemas tericos voltados para a formao da
identidade nacional, instrumentos a partir dos quais construiria sua prpria
identidade, potencializando com isso o valor de sua produo.
Talvez seja possvel pensar como o nacionalismo serviu para forjar, em
determinado momento, o pertencimento a uma categoria social de artista
moderno no Brasil e, em outro, dificultar a ampliao desse pertencimento
a uma regio simblica ou a um mercado mais amplo, o mercado artstico
internacional. A fronteira simblica de pertencimento (Barth 2000) a essa
categoria moveu-se e, com ela, a definio legtima do que era ser artista
moderno. Com sua autobiografia, Di Cavalcanti explicitou alguns aspectos
subjetivos na constituio da identidade e a possibilidade do uso estratgico
dessa noo. Por um lado, seu investimento no mudou naquela poca o
rumo da linguagem plstica em direo ao abstracionismo. Por outro lado,
a produo de um discurso sobre si estratgia cada vez mais valorizada
desde o surgimento da ideologia da arte pela arte e a criao de um
discurso contra-hegemnico a respeito da representao plstica legtima
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171IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA
resultaram na elaborao de uma srie de respostas, favorveis ou no, que
serviu para modificar a posio de Cavalcanti no campo artstico.
Sua construo foi usada, alm disso, por vrios atores sociais jor-
nalistas, crticos, historiadores para fundamentar novos discursos sobre
o prprio artista em catlogos de exposies que citavam trechos de sua
autobiografia, por exemplo, ou em pesquisas sobre o Modernismo (cf. Mattar
1997; Amaral 1985; Durand 1989). E tambm na elaborao de dispositivos
discursivos sobre o movimento modernista, sobre identidade nacional e
mesmo sobre os temas especficos a partir dos quais o artista construiu seu
discurso identitrio.36 Di Cavalcanti teria incitado com sua autobiografia,
assim como com as entrevistas que concedeu a respeito de sua produo e
do mundo artstico brasileiro em geral, uma construo de discursos sobre
si, sobre arte moderna e sobre politizao da arte que contriburam para o
processo de legitimao de seu trabalho.
O posicionamento poltico explcito dos artistas do incio do sculo XX
fazia parte de um comportamento que pretendia impor valores morais atravs
da idia de funo social da arte. Associados s teorias positivistas do progres-
so, os discursos modernistas no Brasil buscavam tambm a significao da
originalidade, a autonomia de uma obra de arte, uma distino precisa entre
cultura de classe alta e cultura popular [e] o claro esforo visando distinguir
estilos que representavam os critrios definitivos para o julgamento da arte
moderna (Bertheux 2004). Se, por um lado, a reformulao dos parmetros
artsticos, a qual se pautava na idia da desvinculao da expresso artstica
dos posicionamentos polticos, tinha como inteno a libertao da linguagem
plstica de vnculos com o mundo social, por outro, acabou reforando entre
os atores partcipes desses mundos artsticos a necessidade do consenso sobre
as regras de participao como forma de manuteno de suas fronteiras.
Durand argumenta que nas anlises sociolgicas os artistas aparecem
menos desinteressados, os marchands menos viles, os crticos menos sbios
e os mecenas menos generosos (Durand 1989:xviii), pois a nfase est no
lado prosaico da vida desses atores, lado este que no costuma aparecer nas
anlises propriamente artsticas, j que sua tendncia est em construir este-
retipos atravs da nfase em caractersticas especficas. Segundo o autor, o
estudo sociolgico desse meio cultural s eficaz se viola as salvaguardas
com que o meio se protege (Durand 1989:xviii). O autor acrescenta ainda
que, sendo sensvel s injunes de interesses em meio s quais acontecem
a produo, a circulao e o desfrute da obra cultural, a sociologia da arte
capaz de perceber os interesses dos diversos atores sociais como pontos
que, juntos, compem a rede de disputas atravs da qual se constroem (e
destroem) as reputaes, se legitimam os estilos e se definem os critrios
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IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA172
de avaliao. Esse processo, entretanto, s possvel se diferir da histria e
da crtica de arte, pois a ateno no est na obra, mas no autor e no meio
social no qual este se insere (Durand 1989:xvii).
Entretanto, no se deve exigir dos atores sociais partcipes desse campo
que eles tenham clareza das regras que o regem. At porque a impresso de
gratuidade implica um sistema de coeres que garante a continuidade de
uma troca (Mauss 1974) que se d em linguagens diferentes, e nela h muito
mais do que apenas valores objetivos em jogo. Faz parte desse processo a
no-explicitao das prprias regras do jogo para que ele tenha continuidade.
como se os vnculos entre arte, poder e riqueza fossem deliberadamente
obliterados nessas transaes.
Recebido em 17 de abril de 2006
Aprovado em 26 de janeiro de 2007
Patrcia Reinheimer doutoranda no Programa de Ps-Graduao em Antro-pologia Social, Museu Nacional, UFRJ. E-mail: .
Notas
* Artigo apresentado na LASA2006, Decentering Latin American Studies, em Porto Rico, ampliao do ensaio apresentado na VI Reunio de Antropologia do Mercosul, em novembro de 2005, no Grupo de Trabalho Fronteiras e interfaces mi-gratrias em perspectiva comparada, coordenado pelas professoras Giralda Seyferthe Maria Catarina C. Zanini.
1 O programa em questo o Fome Zero, uma das principais plataformas po-lticas do governo Lula.
2 A primeira reportagem relatando o resultado da pesquisa do IBGE sobre obesidade foi divulgada em 2 de janeiro de 2005 pela TV Globo e pelo jornal O Globo, mas teve reper-cusso em vrios outros veculos, principalmente do sistema Globo de Comunicaes.
3 Escrito por Larry Rohter, publicado em 13 de janeiro de 2005 no New York Times. Rio de Janeiro Journal; Beaches for the Svelte, Where the Calories Are Showing.
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173IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA
4 No dia 18 de janeiro, a letra do samba j circulava pela Internet e em 22 de janeiro desfilou como samba vencedor pelas ruas do bairro de Laranjeiras, com o bloco de carnaval criado em 1995 por um grupo de jornalistas, chamado Imprensa Que Eu Gamo. O samba em questo se chama O Larry Rohter, ser que ele ? Foi escrito por Marceu, Janjo e Fabio, mas a ttulo de anedota traz os nomes de Larry Rohter e do personagem infantil Harry Potter.
5 A influncia de imigrantes na produo arquitetnica paulista entre o final do sculo XIX e o comeo do sculo XX, por exemplo, gerou uma classificao es-tilstica que parece transpor para a arquitetura o ideal de assimilao preconizado para a relao entre os imigrantes e os nacionais. O estilo ecltico foi concebido como um hbrido de diversos padres arquitetnicos atribudos a estrangeiros e a nacionais. O ecletismo considerado um estilo que utiliza diversos elementos de outros estilos para formar uma nova composio. A noo de ecletismo na arquitetura tambm tem como pressuposto a inferioridade desse estilo em relao queles dos quais pediu emprestado os seus elementos compositivos. Da mesma forma, nas teorias sobre mestiagem havia o pressuposto da degenerao do mestio.
6 Di Cavalcanti, 1955. A no ser quando indicado, todas as citaes de Di Caval-canti referem-se mesma publicao de sua autobiografia, sendo somente indicadas as pginas para no comprometer a fluncia da leitura.
7 O Modernismo no Brasil tem como marco histrico a Semana de Arte Moderna de So Paulo. Um episdio discreto de trs dias intercalados, 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, que no obteve naquele momento maior repercusso na mdia e na vida das pessoas envolvidas, tornou-se posteriormente, atravs de uma profuso de pesquisas, discusses e polmicas em torno dele, um marco na historiografia brasileira. A Semana citada em quase todos os estudos histricos, artsticos ou no, que tratam de noes como modernidade, transformao ou temas como o Estado Novo e a construo de uma simbologia nacional.
8 H hoje quase um consenso nos discursos produzidos no interior do mundo artstico a respeito de no existir artista cuja produo seja homognea. H inclusive uma valorizao do conhecimento dos trabalhos considerados menores como parte do enunciado que exalta a importncia do processo artstico. Entretanto, esse discurso parece no se aplicar ao caso de Di Cavalcanti.
9 importante mencionar que o artista teve uma extensa produo ao longo de 59 anos, se contarmos a partir de 1917, data de sua primeira exposio individual, at 1976, quando morreu deixando alguns quadros ainda inacabados. Foram em torno de 3.000 pinturas e 2.000 desenhos, de acordo com sua filha que hoje cuida da organizao do acervo e da memria do autor.
10 Seu nome de batismo era Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo e existem duas explicaes para seu pseudnimo, mas nenhuma delas foi citada no seu relato biogrfico: uma que o atribui corruptela de seu apelido de infncia, Didi, e outra, que parece a mais provvel, que o relaciona a amigos italianos da faculdade que
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IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA174
teriam inventado o apelido Di Cavalcanti. Goffman (1988) menciona a ruptura que est subentendida em profisses que requerem uma mudana de nome, relacionando-a pos-sibilidade de estarem em jogo noes de estigma e prestgio. Nesse caso, a italianizao do nome poderia ser tomada como uma maneira de deslocar a diferena de origem social em relao maioria dos intelectuais com os quais se relacionava no campo artstico para uma diferena de nacionalidade, contabilizando assim maior capital social.
11 Em vrios livros e catlogos de exposies nos quais os trabalhos do artista estavam presentes foram usados trechos de sua autobiografia como forma de apre-sentar o artista.
12 Alguns dos temas tratados na autobiografia podem ser encontrados em textos crticos sobre seu trabalho e anteriores data de publicao do relato.
13 Em 1966, Di Cavalcanti candidatou-se Academia Brasileira de Letras, mas no se elegeu. Segundo os recentes depoimentos de sua filha e de sua secretria pesquisadora, Di Cavalcanti no organizava seu material, sendo pouco provvel que tenha guardado escritos de pocas to remotas.
14 Bairro popular onde se concentravam, principalmente no incio do sculo XX, os migrantes provenientes do que hoje se denomina Nordeste do Brasil, mas que na poca era chamada de regio Norte. Incluem-se a Pernambuco e Paraba, estados de onde o autor diz ser proveniente a famlia de seu pai. Este foi tambm o bairro onde se concentraram os imigrantes portugueses que chegaram ao Brasil no final do sculo XIX e comeo do XX. Isso tambm aproxima Di Cavalcanti de um dos elementos considerados fundadores da brasilidade.
15 Patrocnio considerado um dos personagens centrais da luta pela abolio da escravido no Brasil.
16 Alguns dos outros nomes citados so: Rui Ribeiro Couto, Guilherme de Al-meida, Jlio Csar da Silva, irmo da poetisa Francisca Jlia, Oswald e Mrio de Andrade, Menotti Del Picchia, Wast Rodrigues, Monteiro Lobato, Martins Fontes, o livreiro Jacinto Silva, cujo filho foi depois livreiro na Jos Olympio, Amadeu Amaral, Nestor Pestana, Alfredo Pujol, e ainda outros.
17 Raul de Leone, Caio e Virglio de Melo Franco, Olegrio Mariano, lvaro Moreyra, Ronald de Carvalho, Jaime Ovalle, e tantos outros! (p. 97/98), que teriam sido seus amigos.
18 A viagem durou em torno de um ano, entre 1923 e 1924, mas foi apenas a primeira de uma srie de viagens Europa que foram explicitamente citadas na contracapa do livro.
19 Os outros captulos so muito recortados por poesias e as descries, menos detalhadas e mais impressionistas.
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175IDENTIDADE NACIONAL COMO ESTRATGIA POLTICA
20 Cavalcanti cita ter estado, em um ou outro momento de sua estada na capital francesa, com vrias pessoas, como os poetas Jean Cocteau e Leon-Paul Fargue, Tristan Bernard, Sidonie Gabrielle Collete e Renaud de Jouvenel, escritora e diretor do jornal Le Matin, respectivamente, os artistas Lger, Picasso, Braque, Matisse, o msico Erik Satie e muitos outros.
21 Durante essa estada, Di Cavalcanti trabalhou como correspondente do jornal Correio da Manh, enviando crnicas sobre assuntos variados para o jornal. poss-vel que este fato tenha mantido acesa no artista a expectativa de acmulo de capital social, a partir dos relatos-testemunhos sobre eventos e pessoas em Paris.
22 Diversos atores sociais do sculo XIX e comeo do sculo XX atrelavam idia de formao de uma cultura nacional a inexistncia de artistas nacionais con-sagrados. Autenticidade era ento um tema freqente, mesmo que seu significado no fosse consensual entre os intelectuais. Estava em questo nesse debate no so-mente a concepo de uma temtica propriamente nacional, mas o desenvolvimento de linguagens autenticamente nacionais. Fizeram parte dessa discusso diversas formas de expresso, como a literatura, as artes plsticas e a msica. Ao falar sobre o nacionalismo e a idia de nao como possuidores de uma base tnica sobre a qual se constroem tanto princpios de incluso como de excluso, Marcel Mauss (1972 [1920]) menciona a delimitao de uma arte nacional como uma das formas atravs das quais esse sentimento nacional se manifesta.
23 Seu segundo livro intitulado Reminiscncias lricas de um perfeito carioca.Foi lanado no aniversrio de 400 anos da cidade do Rio de Janeiro, em 1964. Neste livro, o autor se detm nas personalidades cariocas importantes com as quais teria tido algum contato.
24 Fernando Sabino declara: No tenho lembrana de quando o conheci. Ali por volta de 1943, 44. Desde ento nos tornamos amigos distncia ao longo de encontros no Rio, em So Paulo, em Paris ou em Londres. [...] Era o nico artista plstico que freqen-tava nossa roda de escritores. [...] Este talvez seja, na histria da arte brasileira, o nico exemplo de grande pintor com formao cultural de um verdadeiro homem de letras. [...] incrvel como a literatura est presente na vida deste homem (Sabino 1996).
25 O tema do preconceito dos brasileiros em relao aos imigrantes foi trabalhado, por exemplo, por Willems (1980), Albersheim (1962) e outros.
26 Do ponto de vista geogrfico, o Nordeste s foi delimitado como regio administra-tiva em 1942. Um dos atores sociais mais importantes na luta pela classificao simblica foi Gilberto Freyre, especialmente naquilo que denominou Movimento Regionalista do Nordeste. Em seus escritos, defendia o privilgio de autenticidade brasileira dessa regio (excluindo da a Bahia devido ao excesso do elemento negro), por ter, na medida certa, a miscigenao entre negros, ndios e portugueses, principalmente. Os traos diacrticos acionados na exemplificao do que seria essa cultura brasileira autntica foram, de forma particular, a culinria e a arquitetura de Pernambuco e da Paraba, estados aos quais DiCavalcanti atribui sua origem familiar. Outra caracterstica acionada por Freyre como
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definidora da autenticidade cultural brasileira, mencionada por diversos outros autores, a religio catlica, tambm enfatizada por Cavalcanti em seu relato biogrfico.
27 Esses autores fazem parte de uma ampla gama de intelectuais que escreveram, desde meados do sculo XIX, principalmente a partir da Independncia do Brasil, a respeito da formao nacional, discutindo, cada um sua maneira, noes como imigrao, assimilao e raa (Cf. Romero 1949; Nina Rodrigues 1938; Cunha 1979, entre outros). A maioria desses intelectuais era filiada a teorias raciais europias que pregavam a desigualdade racial e que mais tarde iriam resultar em um movimento eugnico com especificidades latino-americanas (Cf. Stepan 1991).
28 A referncia constituio de um campo artstico relativamente autnomo no Brasil diz respeito principalmente ao processo de instituio de uma linguagem artstica auto-referente e no tanto, especialmente no incio do sculo XX, desvin-culao da arte do campo econmico.
29 Eduardo Jardim de Moraes (1999) ressalta a importncia que Mrio de An-drade atribua entrada do Brasil no concerto das Naes.
30 Graa Aranha, 14 de fevereiro de 1922, texto proferido na abertura da Semana e publicado no Estado de S. Paulo (apud Amaral 1998).
31 Personagens importantes desse drama social.
32 A associao entre essas noes foi acionada tambm na produo artstica de atores sociais pertencentes a outros Estados nacionais no momento de reivindicao de uma autonomia administrativa em relao s naes colonizadoras e do statusde nao moderna (Cf. Thomas 1999; Widdifield 1996; Wasserman 1994; Mayhall 2005, entre outros).
33 James Petras (2001) mostra em um ensaio, baseado principalmente no trabalho de Saunders (2000), que houve uma cooperao entre a Fundao Ford e a Agncia de Inteligncia Central norte-americana (CIA) durante a Guerra Fria para a promoo do abs-tracionismo na pintura como uma tentativa de despolitizar as expresses artsticas.
34 Uma das principais publicaes semanais brasileiras das dcadas de 60 e 70 que apresentavam a idia de cobertura dos principais assuntos em destaque durante aquela semana no Brasil e no mundo.
35 Pedrosa foi crtico de arte e curador da VI Bienal do Museu de Arte Moderna de So Paulo, em 1961.
36 A Casa da Paz, organizao no-governamental criada depois da chacina de Vigrio Geral em 1993, aproveitou a obra de Di Cavalcanti para mostrar que a vida dos deserdados no se caracteriza somente pela violncia e pela misria, mas tambm por algo de cor e alegria. Os prprios alunos escolheram os quadros do artista como tema das aulas (O Globo, 28 de outubro de 1997).
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Resumo
O ensaio toma a autobiografia de Emilia-no Di Cavalcanti como fonte e, a partir dela, reflete sobre a construo de sua identidade social e de uma brasilidade especfica. Procura-se pensar o processo especfico no qual a identidade nacional instrumentalizada como estratgia de um ator social para inserir-se em um grupo de pertencimento, considerando as relaes de poder diferenciadas que se estabelecem no interior do grupo. O porta-voz do discurso biogrfico, o contexto e os leitores a quem ele se dirige so levados em conta para se compreen-derem as condies sociais de produo do discurso. Cavalcanti manipula uma identidade social atravs do recurso a smbolos que, apesar de no mais pres-tigiosos no perodo, contriburam para situ-lo em oposio ao conceito de arte pela arte, subentendido na disputa inter-na ao campo na poca em questo. Palavras-chave: Arte Moderna, Iden-tidade, Memria, Raa, Miscigenao, Imigrao
Abstract
Taking the autobiography of Emiliano Di Cavalcanti as its source, the article examines the construction of his social identity and a particular kind of Brazil-ian-ness. It reflects on the specific pro-cess in which national identity is used by a social actor as a strategy for joining a group, taking into account the distinct power relations established within the latter. The voice of biographical discourse, the context and the readers being addressed provide the means for us to comprehend the social conditions in which the discourse is produced. Cavalcanti manipulates a social identity through the recourse to symbols that, despite no longer being prestigious, helped situate him in opposition to the concept of art for arts sake implicit to disputes within the field at the time.Key words: Modern Art, Identity, Me-mory, Race, Miscegenation, Immigra-tion