redefenindo a aglutinação: uma perspectiva enunciativa
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0. Introdução
Envoltos pelos meandros movediços das definições no tocante à aglutinação, processo
de formação de palavras, verifica-se que esta vem sendo aludida a partir dos campos
fonológico e morfológico. No entanto, a nosso ver, abordá-la estritamente por esses vieses
resume sua potencialidade e suas nuances, uma vez que são postos à margem os aspectos
discursivos, característicos da língua.
À luz do exposto, a dissertação em evidência, considerando as sugestões de mudança
advindas com o surgimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) no concernente
ao ensino do português, teve como objetivo geral redefinir, segundo a teoria bakhtiniana, a
aglutinação, associando-a ao campo sintático da Língua Portuguesa. Com isso, acredita-se
ter sido materializado um suporte teórico adequado às postulações tecidas nos PCN em
relação ao ensino gramatical.
Como eixo norteador dessa dissertação, foram desenvolvidos os seguintes objetivos
específicos: a) analisar, em funções sintáticas distintivas (núcleo, sujeito, complemento
verbal e adjunto adverbial), a ocorrência da aglutinação sintática discursiva1 em trechos de
textos jornalísticos, publicados nos CDs-ROM Folha-Edição (99 e 2000)2, no sentido de
fundamentar os eixos teóricos desse processo; b) compreender o que possibilita, nos
trechos dos textos citados, a aglutinação e/ou desaglutinação sintática; c) verificar o que
proporciona, na língua, o efeito de sentido produzido a partir da aglutinação sintática; d)
associar o conceito de aglutinação sintática às premissas sugeridas pelos PCN para o
Ensino de Língua Portuguesa, em específico à gramática.
Assim, o fenômeno analisado não foi aludido como estrutura dissociada dos aspectos
semânticos e discursivos, presentes no jogo interativo da língua, já que a enunciação,
segundo os apontamentos bakhtinianos, resulta da interação de dois indivíduos,
organizados socialmente.
1 Chama-se a atenção, neste momento, para a utilização da expressão “aglutinação sintática”, uma vez que ela está sendo usada à luz dos pressupostos discursivos. Neste caso, trata-se de uma sintaxe discursiva ou macro-sintaxe. A este respeito ver Koch (2002).2 Os CDs ROM Folha Edição (99 e 2000) apresentam todos os textos publicados no período de 1994 a 2000.
10Pelo exposto, não é incabível pontuar que a pesquisa aqui apresentada é de caráter
qualitativo, uma vez que discorreu sobre a aglutinação sintática discursiva em trechos de
textos jornalísticos, redefinindo esse processo. Para tanto, lançou-se mão da perspectiva
teórico-analítica, no propósito de aplicar a teoria bakhtiniana a um corpus real: textos
jornalísticos.
Neste sentido, o trabalho dividiu-se, portanto, em três capítulos distintos. No primeiro,
foram apresentadas, a princípio, discussões teóricas concernentes às concepções de
linguagem, que nortearam o desenvolvimento desse trabalho. Posteriormente, foram
tecidas considerações acerca da tradição gramatical brasileira e as inadequações quanto ao
ensino da Língua Portuguesa; em seguida, frisou-se sobre os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) e suas contribuições para o ensino da Língua Portuguesa.
No segundo capítulo, suscitou-se uma discussão sobre como o fenômeno da
aglutinação vem sendo definido na morfologia, no sentido de respaldar o conceito,
defendido nesta pesquisa, no tocante a esse processo. No terceiro (análise de dados), à luz
do construto teórico bakhtiniano, a aglutinação foi associada à sintaxe da Língua
Portuguesa. Nesta ocasião, foram apresentados “grupos de enunciado” e construções
auxiliares, no intuito de mostrar como se configura a aglutinação sintática discursiva em
textos jornalísticos.
Desta forma, os nossos dados foram constituídos por “grupos de enunciado”
produzidos nos meios de comunicação (textos jornalísticos), bem como de construções
auxiliares (enunciados diversos), no sentido de confrontar as definições teóricas acerca da
aglutinação, reforçando o conceito defendido por nós. Nesta dissertação, foram
observados trezentos (300) artigos publicados nos CDs-ROM Folha-Edição. Dentre eles,
formam selecionados cem (1003), no período de 1996 e 2000, que serviram como escopo
para a análise.
Chama-se a atenção, neste momento, para o fato de o texto jornalístico ter sido elegido
como corpus da dissertação em foco. Esta escolha não foi realizada aleatoriamente, uma
vez que parece ser característico desse gênero a concisão da linguagem, assunto que,
provavelmente, será abordado em um próximo trabalho (tese de doutorado).
3 Apesar de todos os artigos terem sido examinados, são apresentados, neste trabalho, somente alguns de seus trechos. Isto ocorreu uma vez que se busca pontuar apenas sobre as considerações acerca da aglutinação sintática discursiva.
11A necessidade de se desenvolver um trabalho dessa estirpe partiu de indagações,
baseadas na leitura do livro “Marxismo e filosofia da linguagem”, de Bakhtin (1981) e da
tese intitulada “Uma abordagem semântico-discursiva de estruturas nominais em –
mente”, de Ribeiro (2003), acerca do campo limítrofe entre o lingüístico e o discurso.
Campo este que fez lançar à aglutinação um olhar reflexivo, visto que se nota a
possibilidade da aglutinação das funções sintáticas supracitadas. Isto gerou um
inquietamento, instigando as seguintes indagações: pode-se definir a aglutinação apenas a
partir das perspectivas morfológica e fonológica? Uma definição pautada nesses dois
campos não condiciona, em sala de aula, a observação da língua exclusivamente através
da estrutura, fazendo com que o ensino do português trilhe este mesmo caminho?
Esta pesquisa contribui, portanto, para os estudos lingüísticos, uma vez que o conceito
de aglutinação sintática discursiva em textos jornalísticos, segundo o interacionismo
bakhtiniano, ainda não foi desenvolvido por outros pesquisadores. Entretanto, a
possibilidade de aglutinação sintática já vinha sendo pesquisada por Nóbrega (2002), num
projeto do PIBIC, sob a orientação do professor Dr. Luiz Francisco Dias4.
Nesse período, erigiu a idéia de redefinir o processo em evidência; contudo, devido ao
pouco tempo, foram feitas apenas considerações preliminares, não sendo observada,
então, a aplicabilidade da teoria bakhtiniana ao conceito de aglutinação sintática
discursiva.
Orientada pelas preocupações acerca da aglutinação, a pesquisa alicerçou-se a partir
das seguintes hipóteses e contra-hipóteses:
A aglutinação sintática discursiva é um processo enunciativo, configurando-se através
de um lugar, que pode ser materializado lingüisticamente (no plano da sintaxe) ou
simplesmente ocultado (efeito de sentido).
A aglutinação sintática discursiva não é um processo enunciativo, configurando-se
através de um lugar, que pode ser materializado lingüisticamente (no plano da sintaxe)
4 Sente-se a necessidade aqui de frisar que a idéia primária de se redefinir a aglutinação, processo de formação de palavras, surgiu a partir de reflexões em torno da língua que Luiz Francisco Dias fez, já que ele está desenvolvendo, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a primeira gramática de base enunciativa do português. Pensando nisso, o professor em foco elaborou, na época em que lecionava na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), o projeto PIBIC intitulado “Gramática do português”, o qual continha três partes específicas a serem pesquisadas, sendo uma delas “Gramática do português: a aglutinação e os limites do campo gramatical”. Este projeto foi desenvolvido, no momento em que era bolsista, por Fabíola Nóbrega. Na dissertação em evidência, por sua vez, a aglutinação sintática discursiva foi vista à luz do construto teórico bakhtiniano, fato que não tinha sido, a priori, pensado.
12ou simplesmente ocultado (efeito de sentido). Tais considerações corroboram,
portanto, seu caráter morfológico e fonológico.
O efeito de sentido produzido pelo fenômeno da aglutinação sintática, em
determinados textos jornalísticos, publicados nos CDs-ROM Folha-Edição (99 e
2000), resulta da enunciação, conforme os moldes bakhtinianos.
O efeito de sentido produzido pelo fenômeno da aglutinação sintática, em
determinados textos jornalísticos, publicados nos CDs-ROM Folha-Edição (99 e
2000), não resulta da enunciação, conforme os moldes bakhtinianos.
A pesquisa aqui apresentada possibilitou, então, um diálogo entre áreas distintas:
fonologia, morfologia, sintaxe e teorias do discurso. Esse diálogo serviu para redefinir,
segundo a teoria bakhtiniana, um aspecto gramatical (a aglutinação), ampliando a
aplicabilidade do construto teórico interacionista.
131. Concepções de linguagem e ensino da Língua Portuguesa
1.1 Concepções de linguagem
A linguagem humana por muito tempo vem sendo discutida entre os lingüistas; no
entanto, nem sempre eles apresentam posicionamentos teóricos que convergem entre si,
havendo, portanto, concepções diferentes sobre sua constituição e caracterização.
Considerando este contexto, Travaglia (2005, p. 21-23) postula que, normalmente, há três
maneiras diferentes de se conceber a linguagem: a) como expressão do pensamento; b)
como instrumento de comunicação e c) como forma ou processo de interação.
Em relação à primeira, verifica-se que a expressão se constituiria no interior da mente
e a exteriorização seria só uma tradução. Neste caso, a enunciação seria, por conseguinte,
“um ato monológico”, visto que nem o outro teria poder para interferir nem os fatores
sociais condicionantes do enunciar. As leis da psicologia individual, por sua vez, seriam
aquelas que perfilariam as leis substanciais da criação lingüística. Assim, a linguagem
teria apenas o papel de “expressar o pensamento”.
Concernente à segunda, constata-se que a língua seria um código ou “conjunto de
signos” que estariam, a partir das regras, em consonância. Com isso, na transmissão de
informações, haveria um emissor e um receptor. Ambos exerceriam papéis delimitados no
ato comunicativo, já que o emissor transmitiria a mensagem enquanto o receptor iria
simplesmente recebê-la. No intuito de se concretizar a comunicação, o código teria que ser
dominado pelos falantes. Diante disso, segundo Travaglia (ibidem, p. 22), “essa
concepção levou ao estudo da língua enquanto código virtual, isolado de sua utilização –
na fala (cf. Saussure) ou no desempenho (cf. Chomsky)”. A nosso ver, de fato as reflexões
tecidas a partir dessa concepção de linguagem fizeram com que a língua fosse vista como
este “código virtual”, o qual estaria desvinculado de sua manifestação real.
A partir da vertente estrutural, com os apontamentos saussurianos, a lingüística
constitui-se como ciência, tendo como objeto de estudo a língua. De acordo com Saussure
(1982, p.31), a língua (langue) seria um “sistema de signos formados pela união do
sentido e da imagem acústica”; ela seria social e não individual. Por isso, o sujeito não a
interferiria diretamente.
14 Embora se perceba a inegável existência do sujeito na teoria saussuriana, ele é
simplesmente silenciado, visto que não exerce poder no tocante ao sistema lingüístico,
cabendo a ele o papel de modificador da fala (parole). Desta forma, a língua seria algo
pronto e acabado, restando ao sujeito lançar mão dela, independente de seu poder de ação.
Partindo desses pressupostos, o autor em foco propõe um estudo sincrônico concernente
ao seu objeto investigativo.
Reconhecem-se aqui as contundentes contribuições de Saussure referentes aos estudos
sobre a língua, já que a lingüística, no momento em que ele delimita seu objeto de estudo,
se configura como ciência. No entanto, chama-se a atenção para o fato de o autor em
evidência, no seu construto teórico, não se preocupar com a possibilidade de
transformação própria da língua. Com base nas considerações discorridas por Lacan (apud
HENRY 1982, p. 15), “o que especifica uma ciência é ter um objeto”. Entretanto, é
necessário lembrar que esse objeto está susceptível a mudanças.
O Formalismo, por outro lado, confere à língua, sob os ditames chomskyanos, uma
roupagem cognitiva. Nessa perspectiva, o sujeito é posto em evidência, uma vez que cabe
a ele julgar se determinado enunciado é gramatical ou agramatical. Todavia, não se
concebe a esse sujeito poder em relação à produtividade, pois a linguagem se
responsabilizaria por esse ato (HENRY, 1982).
No tocante à terceira concepção, percebe-se que a linguagem não é aludida
simplesmente como o escopo tradutor da expressão do pensamento ou como um mero
instrumento comunicativo, visto que a interação é posta em foco como constitutiva.
Assim, Travaglia afirma que
a linguagem é pois um lugar de interação humana, de interação
comunicativa pela produção de efeitos de sentido entre interlocutores, em
uma dada situação de comunicação e em um contexto sócio-histórico e
ideológico (ibidem, p. 23).
Pelo exposto, nota-se que, com as novas teorias lingüísticas, nas considerações sobre a
linguagem, outros fatores entram em cena, dentre eles a interação, trazendo à tona a
necessidade de considerar, em uma teoria sobre a linguagem, o diálogo. Iniciando-se,
15então, os construtos teóricos interacionais, a exemplo dessa perspectiva teórica, no tópico
(1.2), serão explanados os apontamentos bakhtinianos5.
1.2 A língua em Bakhtin
Contrário ao conceito de linguagem aludido pela tradição, Bakhtin (1981) afirma que
o fenômeno lingüístico ultrapassa os limites dos campos físico, fisiológico e psíquico, já
que está associado ao âmbito social. Então, abordá-lo a partir desses prismas indefine a
natureza lingüística, limitando-a. Para delinear seu objeto de estudo, ele discorre sobre
duas correntes teóricas distintivas: o Objetivismo Abstrato e o Subjetivismo
Individualista, particularizando-as e, em seguida, contrapondo pontos de vista, no sentido
de respaldar sua concepção acerca da língua.
O Objetivismo Abstrato, representado por Saussure, lança à língua um olhar
particular, no qual se reveste do social, configurando-se através da necessidade
comunicativa. A língua seria, então, um objeto abstrato ideal e falado socialmente,
materializado a partir de um sistema sincrônico, impositivo por natureza, no qual eram
rejeitadas as manifestações lingüísticas reais (a fala/parole). No âmbito dessa concepção,
o sujeito, apesar de não ser negada sua existência, foi simplesmente silenciado. Cabia a
ele, portanto, aceitar passivamente um sistema lingüístico pronto e acabado.
Para Bakhtin (ibidem), a língua se constitui através dos processos interativos,
delineados socialmente6. Este pensador da linguagem enfatiza justamente aquilo que
Saussure menos enfocou: a fala, manifestação lingüística que se encontra intimamente
entrelaçada com as condições de comunicação, organizadas pelo viés social. Com isso,
não é descabido se afirmar que, segundo a teoria bakhtiniana, o Objetivismo Abstrato
apresentou uma visão insatisfatória no concernente à língua. Isto ocorreu visto que esta
corrente teórica observou, a partir de um sistema lingüístico abstrato, sincrônico e,
sobretudo, imutável, os fatos lingüísticos.
5 Não obstante haja correntes teóricas peculiares em relação ao interacionismo, nesta dissertação haverá uma discussão apenas sobre Bakhtin, já que, à luz de sua teoria, a aglutinação foi redefinida e associada à sintaxe da Língua Portuguesa. 6 Neste momento, sente-se a necessidade de diferenciar o social aludido por Saussure e por Bakhtin. Para aquele, a língua era falada socialmente por um grupo. Já, para Bakhtin, o social é o organizador da consciência. Assim, a língua é constituída mediante a interação de sujeitos, perfilados socialmente.
16O Subjetivismo Individualista observou a língua, de acordo com Bakhtin (ibidem, p.
72) como “uma atividade, um processo criativo ininterrupto de construção (energia), que
se materializa sob a forma de atos individuais de fala”. A língua seria, portanto, oriunda
de tais atos e as leis que governariam a criação lingüística seriam configuradas através da
psicologia individual. Para esse pensador da linguagem, um dos calcanhares-de-aquiles
dessa teoria é o fato de ela se centrar, justamente, na enunciação monológica.
Assim, segundo as premissas bakhtinianas, o Subjetivismo Individualista centra-se
numa teoria de expressão puramente falsa. Essa corrente teórica pontuou que a expressão
seria constituída através do conteúdo interior e da objetivação exterior. A essência da
língua estaria no interior, enquanto o exterior serviria “simplesmente” como escopo
tradutor. Contrário a esse ponto de vista, o viés bakhtiniano defende que o interior não
determina o exterior, visto que a relação é, indubitavelmente, invertida, ou melhor, este
modela aquele, assim como afirmou Ribeiro:
contrário a tal compreensão, Bakhtin defende que o processo se dá de forma
completamente oposta: não é a atividade mental que organiza a expressão,
mas é esta que organiza aquela. O centro organizador da expressão situa-se
no meio social em que se insere o indivíduo (2003, p.33).
Pelo exposto, nota-se que as duas correntes teóricas, discutidas pelo construto
bakhtiniano, observam a língua através de caminhos inadequados, uma vez que não
atentam para a interação verbal, conforme pontuou o próprio Bakhtin:
a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato
de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo
ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da
interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A
interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (1981,
p.123).
A interação, então, é constitutiva da língua, já que esta se configura através da relação
dialógica entre os sujeitos, organizados socialmente. Neste sentido, observa-se que, ao
serem efetuados os processos interativos, o lingüístico está sendo materializado. No
17entanto, nesta relação dialógica, os sujeitos não podem ser concebidos como receptores
passivos, já que isso, indubitavelmente, resumiria o papel exercido, no diálogo, pelo o
outro. Segundo as considerações bakhtinianas, esta situação de fato não se configura
através de atitudes responsivas passivas, nem tão pouco pode haver exclusivamente só um
sujeito, uma vez que o diálogo se pauta na relação entre aqueles que participam
ativamente da construção lingüística. A enunciação, por sua vez, só pode ser entendida
como determinada pelo meio, sendo produto da interação entre indivíduos, delineados
pelo âmbito social.
Diante disso, pode-se constatar que a compreensão entre os sujeitos ultrapassa as
barreiras impostas pela perspectiva da passividade quanto ao ato de compreender.
Ratificando estas considerações, Bakhtin (ibidem, p. 131) afirma que “compreender é
opor à palavra de um locutor uma contrapalavra”. A compreensão se realiza, portanto, a
partir de uma relação dialógica/conflitiva entre palavras mencionadas por locutor e
interlocutor, direcionados pelo âmbito social. Aqui tais palavras se digladiam tanto no
plano da ideologia como no do sentido.
No tocante ao plano do sentido, o autor em evidência, ao apresentar suas postulações,
considera ser a significação um dos problemas mais complexos na lingüística. No entanto,
na tentativa de norteá-la, afirma que a significação precisa ser vista através de duas
esferas: uma voltada para o sentido contextual (o tema) e outra voltada para o sentido
veiculado pelo sistema lingüístico (a significação). Ambas compõem um par indissoluto
que se completa intimamente.
Entretanto, distinguir esses dois conceitos requer que se leve em consideração a
compreensão, visto que o tema (o sentido contextual) só é depreendido a partir da
compreensão responsiva ativa. Dessa forma, Bakhtin frisa:
compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela,
encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra
da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos
corresponder uma série de palavras nossas formando uma réplica. Quanto
mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa
compreensão (1981, p. 131-132).
18Com isso, pode-se registrar que o tema, por se referir ao contexto, talvez não seja
inconveniente observá-lo, hoje, como um correspondente da Pragmática, ao passo que a
significação diria respeito à semântica. Desta forma, nota-se que o a significação é o
escopo técnico para a realização do tema.
Ao lançar à língua um olhar particular, observando-a a partir do interacionismo, como
fez Bakhtin, percebe-se que as definições sobre aglutinação, pautadas nos campos
fonológico e morfológico, são insuficientes para explanar algumas das nuances desse
fenômeno. Segundo Nóbrega (2006), isto ocorre uma vez que o processo em foco vem
sendo estudado à luz do ideário estrutural, o qual observa a língua através de um prisma
sistemático, voltando-se para estudos referentes à estrutura lingüística. Além disso, o
entorno teórico relativo à aglutinação (a G.T.) supõe um sujeito que desenvolve sua
compreensão passivamente. Todavia, no momento em que apresenta este processo de
formação de palavras, deixa escapar a possibilidade de criação lingüística, própria do
sujeito.
Por outro lado, nota-se que o ensino de Língua Portuguesa não pode continuar sendo
abordado através da análise de frases descontextualizadas, negligenciando o discurso, já
que a língua se constitui, na perspectiva focalizada, através dos processos interativos.
Desta forma, pode-se pressupor que negligenciar a exterioridade, constitutiva do
lingüístico, e negar a compreensão ativa do sujeito resumem algumas especificidades do
conceito de aglutinação, bem como tolhem, em sala de aula, o ensino adequado do
português. No intuito de validar tais apontamentos, será mostrada, no tópico (1.3), como a
exterioridade vem sendo aludida na gramática e na sintaxe.
1.3 A exterioridade lingüística: na gramática e na sintaxe
É sabido que os lingüistas são os que se preocupam detidamente em desenvolver
estudos relativos ao discurso, atrelando, muitas vezes, esse fenômeno à teoria gramatical.
Desta forma, o pensamento gramatical representa, nesse âmbito, um infindável campo
investigativo. Henry (1982, p. 37) pontua que “enquanto durante um período a fonologia
ocupou o primeiro plano da cena, a teoria da gramática tornou-se a questão central em
lingüística”, uma vez que se apropria da língua para estudá-la e materializá-la, conferindo-
lhe vestimentas distintivas.
19O aporte teórico gramatical brasileiro, à luz das considerações tecidas por Dias (2002),
alude à língua, conferindo-lhe um caráter estrutural, formal ou funcional. O
Estruturalismo a observa através de um prisma sistemático, voltando-se para estudos
referentes à estrutura lingüística. A Gramática Tradicional (G.T.), por sua vez, também
propõe um estudo pautado nesse ideário. Entretanto, fundamentada nos apontamentos
platônicos, ela aborda a língua como uma representação fiel do real, já que essa língua
atuaria através de uma relação mimética.
O Formalismo, representado por Perini (1995), traveste a língua, atribuindo-lhe uma
roupagem descritiva. Nessa perspectiva teórica, ela também é observada através de um
olhar redutivo, visto que seria uma estrutura que se constitui a partir das possibilidades de
caráter formal, voltada para os âmbitos morfológico e fonológico. Assim, torna-se visível
que esta corrente gramatical se restringe aos ditames formais, pondo à margem a
semântica e sobretudo a exterioridade lingüística.
O Funcionalismo, materializado em Neves (2000), embora não negligencie o
discursivo, considera a relação entre língua e exterioridade um fato pragmático, uma vez
que pretende organizar as experiências humanas através dos meios interativos.
Com isso, depreende-se que as gramáticas em evidência, vislumbrando explicar o
funcionamento do mecanismo lingüístico, tomaram para si a responsabilidade de
prescrever, descrever ou pragmatizar o objeto de estudo citado. Entretanto, reflexões em
torno da língua demonstram que, em certas ocasiões, essas gramáticas7 não abrangem
muitas nuances deste funcionamento, já que elas não se preocupam com a dinamicidade e
interatividade da língua. Para Dias (2006), as referidas gramáticas geralmente fecham os
olhos aos fatos discursivos, que se colocam no plano das forças enunciativas da língua.
Envolto por este universo conceitual, Pêcheux afirma que
a possibilidade de gramática de uma língua se funda na oposição entre o que
pode ser dito e o que não pode, ou seja, uma referência ao possível e ao
impossível da língua, distinta da idéia de proibido, de interdito, que é
própria da concepção prescritiva, predominante na gramática escolar (apud
FERREIRA, 2000, p, 85).
7 Exceto a funcionalista.
20Neste sentido, a citação em foco permite que se pense, na construção de uma
gramática, ser necessário atentar tanto para a estruturação sintagmática quanto para o
discurso (a exterioridade).
Entretanto, a priori, os gramáticos trouxeram à cena a fonologia; todavia, à medida
que tais conhecimentos se cristalizaram, sentiram a necessidade de abordar, antes do
campo semântico, a sintaxe. Como pano de fundo dessa hierarquização, existe todo um
respaldo teórico que peculiariza a concepção de língua vigente, conforme lembrou Henry:
Há toda uma concepção de língua, estrutura complexa cujos elementos de
base, as “unidades mínimas”, seriam os fonemas (ou os traços distintivos de
fonemas como o traço sonoro/surdo que opõe em francês b e p, por
exemplo), dos quais os outros níveis de estruturas derivam por
combinações: as palavras são combinações de fonemas, as frases
combinações de palavras, etc... (ibidem, p. 38).
Com isso, nota-se que a base gramatical se centrou na estrutura lingüística, ora
abordando aspectos fonológicos e sintáticos ora atentando para a semântica. No entanto,
marginaliza o discurso (a exterioridade), próprio da língua.
A partir de Chomsky, a gramática começou a se preocupar com tudo, agregando a
fonologia, a sintaxe e a semântica. Ao invés de se falar nas “estruturas da língua”,
comentaram-se sobre os referidos “componentes da gramática”. Além disso, foi conferido
à sintaxe um lugar privilegiado, visto que ela passa a ser a base gramatical, cabendo ao
campo fonológico e ao semântico fornecer interpretações daquilo que já foi estabelecido
pelo campo sintático. Todavia, o viés sintático ainda é contemplado a partir da estrutura,
prescindindo o discurso.
Tem-se, portanto, um desprendimento que, dentre outras coisas, negligencia a
liberdade do falante em relação à usualidade lingüística, liberdade esta que comportaria
sua subjetividade, veículo transmissor de suas crenças, suas opiniões, suas convicções,
dentre outros. Com isso, essa proposta de gramática, a partir do momento em que
marginaliza parcialmente a subjetividade, retoma e estende o ideário saussuriano, como
forma de se explicar os fatos relacionados ao lingüístico. Desta maneira, segundo os
21preceitos chomskyanos, não seria o sujeito o responsável pela criação, já que isso seria um
papel atribuído à linguagem.
À luz de Henry, pode-se dizer que a pressuposição é introduzida, nos ditames
gramaticais, através de uma crítica lançada ao tipo de gramática esboçada por Chomsky,
visto que este separa a camada lingüística e a semântica. Nesse sentido, as pretensões da
gramática Aspects of theory of syntax, proposta pelo autor em análise, são apresentadas a
seguir:
a) ser capaz de fazer compreender, por meio de um conjunto finito de regras
formais, a qualquer representação fonética de uma frase em um sistema de
categorias fonéticas universais uma ou eventualmente várias descrições
semânticas dessa frase em um sistema de categorias semânticas igualmente
universais.
b) dar conta das propriedades das frases (ambigüidade, relação de sentido,
independentes de qualquer contexto, gramaticalidade ou desvio em relação
à gramaticalidade) tais como se revelam à instituição lingüística imediata de
todo sujeito que fala a língua (ibidem, p. 44).
O projeto de gramática aqui apresentado se preocupa em ditar regras irrefutáveis que
permitiriam dizer quais são os enunciados gramaticalmente incorretos, e sobretudo
detectaria as regras “rompidas”. A nosso ver, o indivíduo é incapaz de estabelecer
precisamente as fronteiras limítrofes entre o campo gramatical e o agramatical. A
prescrição ou descrição daquilo que “supostamente” representaria a materialização
“inegável” da língua, neste caso, requer que se atente para o fato de a própria língua
permitir infindáveis construções sintagmáticas, erigidas na relação entre o possível e o
impossível de língua8.
Tendenciosamente, os lingüistas, ao relacionarem o gramatical ao possível da língua,
na maioria das vezes negligenciam o impossível, pois supõem que este tenha um caráter
pejorativo. A Gramática Gerativa Transformacional (G.G.T.) tenta enfrentar essa
problemática se respaldando no par opositivo: o gramatical e o agramatical. Este par se
8 Aquilo que o próprio Chomsky considera agramatical.
22refere à estruturação da língua, a qual é avaliada pelos falantes através das possibilidades
aceitáveis e não aceitáveis9.
Ferreira (2000), à luz de Gadet e Pêcheux, apresenta o reconhecimento ao mérito
dessa gramática no concernente à oposição entre o gramatical e o agramatical. Entretanto,
assinala que Chomsky, ao se afastar do “real da língua”, fragiliza-se. Em virtude disso, a
G.G.T. anula, ao encobri-la no âmbito da “normalidade biológica”, sua própria descoberta.
Para nós, Chomsky não conseguiu se desprender totalmente dos fatos relacionados à
pressuposição, já que essa exterioridade é constitutiva. Ora, se ela existe, como é que pode
estar “fora” do escopo lingüístico, como ele propôs?
No tocante à sintaxe especificamente, pode-se dizer que ela seria a espinha dorsal de
qualquer língua natural, em virtude de que se trata de todo o arcabouço estrutural que
configuraria a língua e sobre o qual incide o sentido. O movimento da G.G.T., cujo maior
expoente é Noam Chomsky, debruçou-se incansavelmente sobre a dicotomia
sentido/estrutura, sendo bastante válidas as suas considerações neste momento da
explanação.
A G.G.T., com o intuito de delimitar a gramaticalidade de uma sentença, considerava
que uma sentença poderia ser indefectível do ponto de vista sintático ou estrutural, mas
não ser investida de sentido, como ocorre na famosa frase de Chomsky, “Incolores idéias
verdes dormem furiosamente”. Por outro lado, se uma sentença não apresentasse
equilíbrio sintático, ela não poderia ser considerada como legítima do ponto de vista
lingüístico. Deste modo, a construção “Agora menino o chegou” seria agramatical, pois
denotaria um desarranjo em seu aparelho sintático incompatível com as sentenças
formuladas nesta mesma língua de forma gramatical.
Pelo que se pode perceber através deste breve incurso sobre os pressupostos teóricos
da G.G.T., fica evidente que a língua não prescinde de seu aparelho estrutural. Assim,
fazer análise sintática seria uma forma de estudar o aparelho lingüístico em profundidade
quando o pesquisador não está preocupado com as questões semânticas. Seria também
uma forma de conhecer como se dá o funcionamento lingüístico do ponto de vista
estrutural ou sistêmico. Será empreendida neste momento uma análise de como a G.T.
conceitua a sintaxe em seus trabalhos, com o intuito de investigar que tipo de tratamento a
abordagem tradicionalista dos estudos lingüísticos confere a este assunto. 9 As construções lingüísticas, segundo a teoria chomskyana, passam pelo crivo dos falantes da língua, sendo estes responsáveis pela aceitação ou refutação de uma determinada construção.
23Cegalla assim define análise sintática:
A análise sintática examina a estrutura do período, divide e classifica as
orações que o constituem e reconhece a função sintática dos termos de cada
oração. As palavras, tanto na expressão escrita como na oral, são reunidas e
ordenadas em frases. Através da frase é que se alcança o objetivo do
discurso, ou seja, da atividade lingüística: a comunicação com o ouvinte ou
o leitor. (1988, p. 269)
A conceituação que o autor confere à sintaxe se centraliza em torno da frase, tida
como o carro-chefe do funcionamento lingüístico. Uma vez que a frase é considerada
como o meio pelo qual pode ser alcançado o objetivo de todo e qualquer discurso – que
seria, na ótica do autor, promover a comunicação -, ela é eleita como o objeto de estudo
por excelência da análise sintática. Dessa forma, a única forma de se analisar o
funcionamento lingüístico seria através da investigação de seu aparelho sintático,
mediante a análise dos componentes estruturais da frase. Subjaz a esta conceituação a
noção de que língua é sinônimo de sistema, devendo ser analisada como tal. A noção de
língua como sistema, também defendida por Saussure em seu “Curso de Lingüística
Geral”, norteou os estudos lingüísticos de cunho tradicionalista durante muito tempo, não
sendo descabido afirmar que tais estudos ainda se encontram fortemente influenciados por
esta noção nos dias atuais.
Cegalla (ibidem) não considera o texto como um produto do componente estrutural da
língua, mesmo que só seja possível produzir um texto mediante o respeito às normas
sintáticas que regem a língua em questão. Ele se concentra no estudo da frase para fazer
todas as suas considerações acerca da análise sintática, tradição que ainda se verifica firme
nas gramáticas normativas atuais, mesmo naquelas que clamam se fundamentar no estudo
do texto. Aliás, o uso da frase como amostragem do funcionamento estrutural da língua
não se verifica apenas no estudo do item “Análise Sintática”, mas ao longo de todos os
assuntos abordados por este instrumento.
O conceito de discurso sugerido pelo autor o define como um conjunto de sentenças,
tendo por objetivo primordial possibilitar o estabelecimento da comunicação.
Desconsideram-se, assim, noções fundamentais para a compreensão do funcionamento
lingüístico, como a interação, a enunciação, a memória discursiva, as formações
24discursivas, as intenções que o falante acalenta e que norteiam todo o ato discursivo, a
feição ideológica do discurso, dentre tantas outras. Para nós, considerar o discurso apenas
como um amontoado de frases é algo simplista e empobrecedor, reduzindo o componente
sintático à mera noção de estrutura. Este conceito de discurso, no entanto, é uma constante
entre as gramáticas normativas, conforme será atestado nesta amostragem, mesmo que ele
não esteja claramente verbalizado, como em Cegalla (ibidem).
Igualmente influenciados pela Teoria da Comunicação, Paschoalin & Spadoto
oferecem a seguinte definição de sintaxe:
Ao emitir uma mensagem verbal, o emissor procura transmitir através das
palavras um significado completo e compreensível. Para isso, as palavras
são relacionadas e combinadas entre si. A parte da gramática que estuda as
relações e combinações entre as palavras de um enunciado e entre as frases
de um texto chama-se Sintaxe. (1996, p. 166)
A noção de combinação de elementos como condição básica do sistema lingüístico
também se faz presente, conforme se verificou em Cegalla (ibidem). O diferencial é que
esta combinação, para Paschoalin & Spadoto (ibidem), apresenta um momento anterior ao
agrupamento de frases para formar o discurso: os autores chamam a atenção para a
palavra como unidade estrutural e semântica da língua. A palavra é vista pelos autores
como uma espécie de porta-voz do sentido, sem perder de vista o seu engajamento com o
componente sintático.
Aponta-se nesta definição um certo avanço teórico com relação ao posicionamento de
Cegalla, pois aqui já se sinaliza para a inseparável conjunção entre sentido e estrutura. O
comprometimento com uma postura estruturalista do estudo da língua ainda persiste, fato
que se verificará em todos os demais gramáticos em análise, por ser uma marca indelével
dos estudos lingüísticos de cunho tradicionalista. Contudo, ainda que timidamente, acena-
se para o sentido como a contrapartida da estrutura formal.
Esta relativa abertura prenuncia a posterior preocupação que as gramáticas normativas
apresentariam com relação à introdução do texto como unidade estrutural para o estudo
das questões de língua apresentadas, ainda que este estudo não considere o texto como
unidade de sentido, conforme postula a Lingüística Textual, mas sim como um
receptáculo que se presta a ilustrar as prescrições gramaticais. Na prática, portanto, as
25gramáticas que se auto-intitulam como interessadas no texto como unidade estrutural e
semântica legítima para ser erigida como objeto de estudo acabam por eleger a frase como
alvo de suas considerações.
Bechara (1999) localiza a sintaxe dentre os aspectos lingüísticos que devem constar
em uma gramática normativa. Entretanto, ele opta pela definição “morfossintaxe”, por
considerá-la mais fiel à realidade lingüística. Afirma o autor:
A parte central da gramática pura é a morfossintaxe, também com menos
rigor estudada como dois domínios relativamente autônomos: a morfologia
(estudo da palavra e suas “formas”) e a sintaxe (estudo das combinações
materiais ou funções sintáticas). Ocorre que, a rigor, tudo na língua se refere
sempre a combinações de “formas”, ainda que seja combinação com zero ou
ausência de “forma”; assim, toda essa pura gramática é na realidade sintaxe,
já que a própria oração não deixa de ser uma “forma” (na lição tradicional,
ela não pertence ao domínio da morfologia). ( p. 54)
A sintaxe, de acordo com Bechara (ibidem), faria menção ao componente material da
língua, ou seja, à sua estrutura. O autor opta por falar em morfossintaxe, ao invés de
sintaxe simplesmente, por considerar uma redundância estabelecer uma linha divisória
entre esta e a morfologia, já que as línguas naturais se fundamentariam no conceito de
forma, de modo que toda estrutura lingüística, que do ponto de vista tradicional seria do
domínio da sintaxe, é também uma forma.
Neste sentido, a pretensa autonomia entre os conceitos de morfologia e sintaxe
esconderia, de fato, uma relação de interdependência. Ao falar em “lição tradicional”, o
autor busca afastar-se da visão tradicionalista dos estudos lingüísticos, projeto que
fracassa mediante uma análise mais acurada de seus trabalhos, profundamente vinculados
à tradição, ainda que apresentem certos ares de influência da lingüística contemporânea.
Por considerar a morfossintaxe como a parte central do estudo do aspecto gramatical
de uma língua, pode-se afirmar que o autor localiza neste aspecto toda a relevância da
linguagem. Novamente, observa-se a prevalência da forma sobre o conteúdo, por assim
dizer. Em outras palavras, o foco central de uma língua natural é, para Bechara (ibidem), o
sistema lingüístico, ficando as questões pertinentes ao significado relegadas a segundo
plano. Esta é, sem dúvida, uma forte tendência dos estudos lingüísticos de cunho
26tradicionalista, que encontram nas gramáticas normativas seu mais privilegiado expoente.
Faraco & Moura (1999, p. 428) definem a sintaxe como sendo “A parte da gramática
que estuda a estrutura formal da frase, isto é, as combinações e relações entre as palavras
(...)”. De acordo com os autores, é do interesse da sintaxe a função que as palavras
exercem no âmbito da frase, ou seja, as chamadas funções sintáticas. Em conformidade
com os demais gramáticos analisados, Faraco & Moura (ibidem) também consideram a
frase como o centro da análise sintática, embora localizem na palavra, conforme o fizeram
Paschoalin & Spadoto (ibidem), a função de representar a unidade estrutural da língua,
sobre a qual incidem as funções sintáticas.
A noção de discurso como conjunto de frases também se faz presente no
posicionamento de Faraco & Moura (ibidem, p. 429), já que os autores afirmam que
“Cada membro da frase contribui com uma função específica na totalidade da mensagem”.
Para Bakhtin (1981), o pensamento lingüístico contemporâneo centrou-se nos aspectos
fonéticos e morfológicos. Os problemas da sintaxe foram, então, concebidos como
morfológicos. No entanto, segundo ele, um estudo adequado no tocante à sintaxe não pode
se pautar exclusivamente nos métodos tradicionais da lingüística. Aludi-la significa
dialogar com a estrutura lingüística e o discurso, levando em consideração a enunciação.
Desta forma, “um estudo fecundo das formas sintáticas só é possível no quadro da
elaboração de uma teoria da enunciação” (p. 140).
Não é inconveniente registrar que o filósofo russo reconheceu a importância da
sintaxe, uma vez que, para ele, os problemas sintáticos são imprescindíveis para se
entender a língua e seu processo evolutivo. Assim, Bakhtin frisa que
os problemas da sintaxe são da maior importância para a compreensão da
língua e de sua evolução, considerando-se que, de todas as formas da
língua, as formas sintáticas são as que mais se aproximam das formas
concretas da enunciação, dos atos de fala. Todas as análises sintáticas do
discurso constituem análises do corpo vivo da enunciação; portanto, é ainda
mais difícil trazê-las a um sistema abstrato da língua. As formas sintáticas
são mais concretas que as formas morfológicas e fonéticas e são mais
estreitamente ligadas às condições reais da fala (ibidem, p. 139).
27Diante do exposto, observa-se que as formas sintáticas são mais contíguas das formas
enunciativas concretas. No entanto, os gramáticos tradicionais tendem a analisar “a frase”
isolada, buscando dissociá-la do discurso. O ensino de Língua Portuguesa, por sua vez, no
decorrer da história, também teve como suporte a análise lingüística, marginalizando a
exterioridade da língua, consoante será explanado no tópico (1.4).
1.4 A tradição gramatical brasileira e as inadequações quanto ao ensino da Língua
Portuguesa
O ensino gramatical, segundo Britto (1997), no âmbito escolar brasileiro, passa por um
descrédito considerável, uma vez que a G. T.10, dentre outros aspectos significativos, não
atende às necessidades imediatas dos alunos. Perini (1997), tendo como pano de fundo
considerações desse tipo, afirma que a disciplina em pauta precisa ser revista, visto que há
algo incoerente com o seu ensino. Aliás, segundo ele, deve-se atentar no tocante a essa
disciplina para três aspectos: a) os objetivos mal colocados, b) a metodologia inadequada
e c) a falta de organização lógica.
Quanto aos objetivos mal colocados, o teórico mencionado constata que a atitude do
professor, em sala de aula, é resumitiva por natureza, já que limita as especificidades do
campo gramatical, relacionando-o ao ato de ler e escrever esmerado. Na sua concepção,
ler e escrever são resultantes de um processo no qual o aluno exercita constantemente
essas habilidades. Assim, é deixada à margem a noção de que tais habilidades seriam o
produto de práticas exaustivas da análise lingüística descontextualizada, centrando-se
exclusivamente na frase.
No tocante à metodologia inadequada, pode-se aferir que, sob os vieses perinianos, a
atitude do professor diante da disciplina em análise é normativa e, essencialmente,
impositiva. Ao observar a prática de professores que lecionam disciplinas diversas
(matemática, história, geografia e outras), nota-se que, quando os alunos indagam esses
profissionais, geralmente obtêm respostas coerentes, fundamentadas na realidade.
10 Cita-se a G.T., visto que o ensino do português se pauta nela. No entanto, neste caso, faz-se menção à pedagógica, utilizada nas escolas. Em virtude disso, sente-se a necessidade de registrar que há, ainda, na Língua Portuguesa, as gramáticas históricas e teóricas.
28Entretanto, se esse mesmo aluno interferir a aula de gramática e questionar o professor
sobre, por exemplo, o porquê de o Futuro do Indicativo (presente e pretérito) exigir a
mesóclise, terá como resposta: “assim é o certo”, “convencionou-se assim”, dentre outras.
O aluno, então, é obrigado a receber passivamente um sistema lingüístico
“aparentemente” pronto e acabado, defendido por Saussure (1982). Não é de todo
descabido, pressupondo essas afirmações, afirmar que, para nós, num contexto situacional
como este, apaga-se a potencialidade constitutiva quanto ao ato reflexivo, próprio do
indivíduo, acerca do funcionamento discursivo, como constatou Geraldi (2003).
Em relação à falta de organização lógica, verificou-se que a matéria em evidência
“aparentemente” não comporta tal particularidade. Isto ocorre já que o professor, ao
ensinar a Língua Portuguesa, utiliza, geralmente, como instrumento didático, em sala, a
gramática pedagógica, respaldada na teoria estruturalista. Instrumento este que, em linhas
gerais, carece de organização lógica.
À guisa de ilustração, pode-se mencionar Faraco e Moura11. No decorrer da gramática,
eles afirmam que
de acordo com a NGB, há três tipos de termo que podem ocorrer numa
oração: essenciais, integrantes e acessórios. Termos essenciais são aqueles
que sustentam a mensagem transmitida por meio de uma oração. São eles:
sujeito e predicado (1999, p. 434).
Entretanto, posteriormente, comentam que há, na Língua Portuguesa, casos de oração
sem sujeito12, que seriam formadas somente por predicados. O verbo seria, então,
denominado impessoal, sendo geralmente apresentado na terceira pessoa do singular.
Desta maneira, as orações sem sujeito ocorreriam nos seguintes casos: a) com verbos ou
expressões que indicam fenômenos meteorológicos (Está quente hoje), b) com o verbo
“fazer” e o verbo “haver” indicando tempo decorrido (Fazia tempo que ninguém tocava
nesse assunto) e c) com o verbo ser indicando tempo e distância (Eram quatro horas da
manhã e De uma cidade a outra seriam setenta quilômetros).
11 Esses autores têm suas gramáticas pedagógicas difundidas no âmbito escolar, uma vez que elas se voltam para o ensino.12 No capítulo três (análise de dados), será mostrado que, nesses verbos, ocorre o fenômeno da aglutinação sintática discursiva. Assim, não se trata, a nosso ver, de uma oração sem sujeito.
29Envoltos por esses meandros movediços e incongruentes, Britto (1997) mostrou que
alguns estudiosos, pensando nas limitações e inadequações da G.T., lançaram novas
propostas relativas ao ensino desse instrumento pedagógico, defendendo, portanto, a
utilização, em sala de aula, da gramática: Câmara Jr. (1988), Macambira (1982), Lemle
(1984), Kato (1988) e Perini (1985, 1989 e 1995).
Câmara Jr. (ibidem), em seu livro “Estrutura da Língua Portuguesa”, projeto
inconcluso, defendeu a necessidade de um estudo sistemático e descritivo do português
brasileiro. Embora pretendesse fazer um construto teórico sem fins normativos e
dogmáticos, optou por descrever a modalidade padrão. À luz do exposto, constata-se que a
opção pelo padrão traz à cena o normativo, visto que essa escolha busca regularizar a
usualidade lingüística, não podendo ser vista como desinteressada. Além disso, o autor em
foco desconsidera a exterioridade lingüística própria da língua.
Macambira (ibidem), por sua vez, não apresenta especificamente uma nova proposta
de ensino gramatical, visto que revisita a G.T. Apesar de afirmar que é imprescindível o
ensino sistemático da língua, é incisivo, na medida em que pontua a necessidade de
revisão do construto teórico em evidência. Aliás, na sua concepção, a gramática carece de
uma atualização teórica emergencial.
Embora esse pesquisador tenha suscitado a necessidade de atualização da G.T.,
continuou arraigado à estrutura lingüística, à norma culta e permeado pela visão
prescritiva (certo ou errado). Isso não poderia ser diferente, uma vez que ele pretendeu dar
à G.T. uma nova roupagem, não se distanciando totalmente das “supostas verdades”
disseminadas por essa corrente teórica.
Acreditando nessa necessidade de atualização da G.T., Lemle (ibidem) afirma que o
ensino gramatical se limita ao “manual”13 utilizado em sala de aula, não se beneficiando
com os avanços teóricos trazidos pela lingüística. Para ela, é preciso convergir essas duas
instâncias, aplicando à descrição lingüística a teoria chomskyana e, com isso, atender ao
campo pedagógico.
Apesar de conceber ao professor o papel de estimulador da compreensão do aluno, já
que o conhecimento gramatical não seria fundamental para o desenvolvimento da
comunicação e da expressão, acredita que esse conhecimento poderia polir o desempenho
lingüístico de tal aluno. Assim, conhecer regras conscientemente poderia auxiliar na
13 Esse manual diz respeito à G. T..
30identificação de “falhas” de desempenho. Pelo exposto, observa-se que, apesar de essa
autora tentar associar a teoria chomskyana ao ensino gramatical, continua arraigada à
concepção do belo, bem como não aborda as questões discursivas, assim como a G.T.
Adentrando no campo da psicolingüística, Kato (ibidem) propõe uma perspectiva de
ensino pautada nesses fundamentos teóricos. Na sua concepção, o ensino gramatical seria
uma atividade metacognitiva. Desta forma, desenvolveria, no aluno, o pensamento e o
raciocínio, conduzindo-o aos conceitos novos significativos e psicologicamente
motivados. Ensinar gramática seria, portanto, conscientizar o aluno, a partir de uma visão
metacognitiva, no tocante ao seu saber lingüístico. Esse ensino seria um componente
auxiliar para desenvolver as habilidades de comunicação e de expressão.
Entretanto, a nosso ver, o primordial não é o aluno ter só consciência quanto ao saber
lingüístico e sim refletir sobre seu funcionamento, como afirmou Geraldi (2003). Assim, a
ênfase dada ao ensino gramatical deixa de se centrar no simples reconhecimento do saber
lingüístico, transportando-se para o seu entendimento, mediante uma atividade
epilingüística.
Perini (1995), contrapondo as considerações supracitadas, propõe uma gramática de
cunho estritamente descritivo, suscitando a marginalização dos aspectos semânticos e
discursivos, assim como foi explanado no tópico anterior. Tal Gramática não comporta
um caráter definitivo, visto que o próprio autor tem consciência das limitações presentes
nesse aporte teórico. Para ele, o ensino gramatical seria viável no âmbito escolar, uma vez
que é parte integrante de nossa cultura, espelhando a esfera da formação de habilidades.
Por fim, chama-se a atenção, neste momento, para as considerações resumitivas do
próprio Britto no estudo aqui sumariado, uma vez que ele apresenta a proposta dos autores
mencionados, critica-as e não discorre sobre um viés adequado no concernente ao ensino
gramatical.
Para Dias (2002), na constituição de uma gramática, faz-se necessário atentar para o
saber de entremeio, o diálogo entre o lingüístico e o discurso. Esse tipo de saber se
particulariza por levar em consideração tanto o plano da organicidade (a estrutura
lingüística) como o plano do enunciável (a exterioridade)14. Na sua concepção, na
construção de uma gramática, é imprescindível observar, a partir da inter-relação desses
14 Neste sentido, o conceito de aglutinação sintática discursiva foi proposto na presente dissertação.
31planos, o funcionamento lingüístico. Além disso, faz-se primordial atentar para três
dimensões: orgânica, histórica e pedagógica.
No tocante à dimensão orgânica, o autor em evidência frisou que toda gramática
necessita de uma perspectiva teórica bem definida, representando um todo orgânico e
harmonioso. Não se pode, no entanto, elaborar um construto teórico dessa natureza,
desvinculando-se da história. História esta que particulariza e distingue o conhecimento
gramatical. Isso não impede, portanto, de se atribuir uma nova roupagem à gramática, a
qual precisa ter um cunho pedagógico, destinado a um público específico: Ensino
Fundamental II, Ensino Médio, Ensino Superior, dentre outros.
Com base nesta perspectiva, pode-se afirmar, no que se refere à dimensão pedagógica,
que cabe ao professor fazer o aluno, mediante as reflexões acerca do funcionamento da
língua, aprender o fato lingüístico.
Nesse sentido, embora os PCN15 apresentem algumas inadequações perceptíveis, é
propício apresentar, no tópico (1.5), as considerações presentes nele sobre o tema em
discussão, no sentido de ampliar o horizonte conceitual, e, em seguida, associar ao
conceito de aglutinação sintática discursiva, proposto por nós.
1.5 Os PCN: uma proposta discursiva no tocante ao ensino da análise lingüística da
gramática
A língua, segundo Geraldi (1996), ao longo da história, foi aludida atentando-se, pelo
menos, para três funcionalidades diferenciadas: a) a persuasão, b) a chave para abrir
caminhos para novas aprendizagens (Comenius) e c) a transmissão de conhecimentos.
Supostamente, configurou-se a escola, buscando suprir algumas exigências da sociedade,
dentre elas uma preocupação com a linguagem.
Com a cristalização da escrita, os conhecimentos foram sendo armazenados e
divulgados entre aqueles que dominam as técnicas para lê-los. Tais conhecimentos não
podem ser acessados por todos, excluindo um universo subjugado à classe dominante.
15 Nesta dissertação, não se pretende discorrer sobre algumas falhas dos PCN, já que a intenção aqui é redefinir o conceito de aglutinação e, em seguida, associá-lo às premissas sugeridas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais no tocante ao ensino de Língua Portuguesa.
32Desta maneira, pode-se afirmar que a supremacia da escrita legitimou o poder nas mãos
do grupo detentor do código escrito.
A escola tomou para si a responsabilidade de divulgar esse valioso conhecimento, no
sentido de instruir aqueles que vislumbram a tão prestigiosa ascensão social. Através da
modalidade escrita padrão, por muito tempo, há a tentativa de se tolher o conhecimento
prévio do aluno, desprestigiando, em sala, a modalidade oral, inerente ao indivíduo. Com
isso, nota-se que a sala de aula se tornou um palco onde a cultura popular e a erudita se
digladiam, resultando na supremacia desta em detrimento daquela.
Pelo exposto, segundo Geraldi (ibidem), observam-se dois tipos distintivos
concernentes à aprendizagem: a) a instância privada e b) a instância pública. Aquela diz
respeito ao que se interage em casa, entre familiares, amigos, namorado(a) e outros. Esse
espaço atende aos objetivos imediatos dos indivíduos, os quais serão nomeados aqui
vivências básicas. Todavia, a própria sociedade exige uma outra forma de conhecimento,
no caso, aquele adquirido na escola, instância pública.
A instância pública é regida por regularidades peculiares, dentre elas o uso da
modalidade escrita, a interação à distância e outros. O aluno, geralmente, ao entrar em
contato com esse campo desconhecido, sente-se tolhido, uma vez que é obrigado a falar e
sobretudo escrever de acordo com os ditames formais, taxados pela G.T. Além disso,
precisa se comportar mediante as regras desse âmbito.
Para tanto, a gramática, em sala de aula, passa a ter um papel imprescindível. Através
desse instrumento pedagógico, o professor tenta moldar seu aluno, no sentido de adequá-
lo ao padrão normativo tão idealizado. No entanto, nem sempre o desempenho desse aluno
é satisfatório para a maioria dos professores, visto que, antes de participar da instância
pública, o indivíduo está inserido em um contexto situacional que, a partir do meio social
e experiências vivenciadas, o particulariza.
Sabe-se, mediante a supremacia da escrita, que, em sala de aula, a gramática ocupou,
por muito tempo, o ápice do ensino de Língua Portuguesa. Ensinar essa disciplina
resumiu-se ao ato de fazer o aluno decodificar mecanicamente, a partir da análise de frases
soltas, as regras convencionadas pela G.T. Porém, em meados da década de 1980, com as
pontuações feitas por Geraldi, Perini, Britto e outros, lançam-se ferozmente críticas ao
ensino gramatical. Considerando essas indagações, preconizaram-se, nas academias,
novas políticas públicas de ensino, na tentativa de melhorar tanto a teoria quanto a prática
33em torno do ensino da Língua Portuguesa. No entanto, apenas na década de 1990 os PCN
foram concebidos, arrolando modificação em relação ao ensino de língua materna. No
século XXI, esse construto teórico invade as salas de aula, gerando sugestões e polêmicas.
Os fundamentos teóricos inseridos neles fizeram com que a gramática deixasse de ser
vista apenas como uma descrição, trazendo à cena a possibilidade de uma análise
lingüística discursiva, integrando-a ao texto, eixo norteador do ensino de Língua
Portuguesa. No próprio PCN, da 5ª a 8ª séries, esses apontamentos se validam, mediante a
afirmação de que
quando se toma o texto como unidade de ensino, os aspectos a serem
tematizados não se referem somente à dimensão gramatical. Há conteúdos
relacionados às dimensões pragmática e semântica da linguagem, que, por
serem inerentes à própria atividade discursiva, precisam, na escola, ser
tratados de maneira articulada e simultânea no desenvolvimento das práticas
de produção e recepção de textos (2001, p. 78).
À luz das considerações emaranhadas, constata-se que a G.T., enquanto instrumento
de ensino, vem sendo usada detidamente nas escolas. A princípio, ela experienciou
momentos de magnitude; no entanto, com o surgimento de novas teorias lingüísticas, bem
como de novas necessidades educacionais, perdeu sua supremacia, sendo alvo constante
de críticas veementes. Com o desenvolvimento dessas teorias lingüísticas, surgem, então,
novas políticas públicas de ensino: os PCN, buscando aclarar e modificar o ensino de
Língua Portuguesa. Com isso, o ensino sistemático e descontextualizado da análise
lingüística deixou de ser concebido como imprescindível, sendo o foco transportado para
o texto, possibilitando o desenvolvimento das atividades epilingüística, conforme se
observa nos PCN:
Durante muitos anos, à crítica ao ensino de Língua Portuguesa centrado em
tópicos de gramática escolar e as alternativas teóricas apresentadas pelos
estudos lingüísticos, principalmente no que se refere à consciência dos
fenômenos enunciativos e à análise tipológica dos textos, permitiram uma
visão muito mais funcional da língua, o que provocou alterações nas práticas
escolares, representando, em alguns casos, o abandono do tratamento dos
34aspectos gramaticais e da reflexão sistemática sobre os aspectos discursivos
do funcionamento da linguagem (2001, p. 78).
De acordo com o exposto, nota-se que a G.T. comporta características próprias,
podendo ser utilizada como um suporte (e não o único) do ensino da Língua Portuguesa.
No entanto, a utilização pedagógica, em sala de aula, desse suporte didático vem sofrendo
modificações, devido à nova compreensão do objeto de estudo. Considerando essa
mudança em relação ao ensino do português, nesta dissertação foi redefinido um dos
conceitos presentes na G.T. (a aglutinação), no intuito de materializar um suporte teórico
que esteja adequado a essas contribuições dos PCN. Nesse sentido, no capítulo II, será
mostrado como o conceito de aglutinação, no decorrer da história, está sendo visto na
gramática e nos demais aportes teóricos.
352. A aglutinação na morfologia
No decorrer da história, sabe-se que o conhecimento foi disseminado de maneiras
distintas, as quais se revestiram pelo fator ideológico e sócio-cultural. Na Idade Média,
havia a religião e o senso comum. Neste contexto, o livro máximo era a Bíblia. Cabia,
então, a este norteador religioso autorizá-lo ou refutá-lo. Entretanto, a sociedade moderna
deslocou essa autoridade no tocante ao conhecimento para a ciência, sendo validado o
saber transparente. Com isso, constata-se que tanto Deus, através do ideário medieval,
quanto à ciência detiveram o saber absoluto em épocas peculiares.
No limiar científico, por muito tempo, pensou-se que as áreas humanas se destinavam
ao saber comum, por isso, não eram tidas como ciência. No entanto, a matemática, a
física, dentre outras, eram ciência, já que contemplavam dados exatos. Em meados do
século XX, houve um movimento das áreas humanas, com o propósito de questionar o
monopólio das ciências exatas. Desta forma, paulatinamente, conferiu-se estatuto de
ciência às áreas humanas. A lingüística, por sua vez, passa a ser concebida como ciência a
partir das contribuições saussurianas, assim como afirmaram Mussalim e Bentes (2005),
Fiorin (2005) e Weedwood (2002).
De acordo com o ideário defendido por Mussalim e Bentes (ibidem), nota-se que a
ciência em evidência comporta áreas específicas: a Sociolingüística, a Lingüística
Histórica, a Fonética, a Morfologia, a Sintaxe, a Lingüística Textual, a Semântica, a
Pragmática, a Análise de Discurso, a Neurolingüística, a Aquisição da Linguagem, o
Interacionismo, dentre outros. Todavia, neste momento, apenas um tópico da Morfologia
(a aglutinação) será explanado, uma vez que isto atende aos interesses iniciais desta
pesquisa. Antes de se discorrer sobre a aglutinação, faz-se necessário apresentar
considerações gerais em relação à Morfologia, no intuito de se contextualizar o objeto de
pesquisa desta dissertação.
Segundo Aurélio, a palavra morfologia é formada mediante a junção de duas partes:
morf (o) + -logia, apresentando uma significação própria:
1. Tratado das formas que a matéria pode tomar. 2. E. Ling. O estudo da
estrutura e formação de palavras. Morfologia derivacional. E. Ling. 1.
Conjunto de princípios que regem a formação de novas palavras em uma
língua. 2. O estudo desses princípios. Morfologia flexional. E. Ling. 1.
36Conjunto das mudanças na forma das palavras, na dependência de suas
funções gramaticais. 2. O estudo dessas variações. (Sin. (desus.): acidência,
campenomia e ptoseonomia.) Morfologia social. Sociol. Estudo das
estruturas ou das formas da vida social. Morfologia vegetal. O estudo das
formas e estruturas dos organismos vegetais (1999, p. 1367)
Com base no verbete acima, percebe-se que foram conferidas à morfologia várias
significações, sendo cada uma delas associada a um campo de conhecimento específico.
No entanto, em todas, a palavra em análise refere-se ou à forma, ou à estrutura ou à
composição. Esferas tão fortes que caracterizam este campo de saber, propondo até
mesmo ao âmbito social e ao vegetal um estudo voltado para seus perfis. Não obstante
todas essas significações, para nós, a morfologia será discutida como “O estudo da estrutura
e formação de palavras”.
A morfologia, à luz da tradição gramatical, é abordada como a parte que se destina a
estudar a palavra16. Estudo este que se configura através da estrutura interna. Assim, nota-
se que a área do saber em foco se preocupa com a formação e a composição. A respeito
disso, Sandalo (2005, p. 181) pontua que “a morfologia é freqüentemente definida como o
componente da Gramática que trata da estrutura interna das palavras”.
Neste contexto, não é inviável registrar que a aglutinação, por ser um processo de
formação de palavras, vem sendo definida a partir da explanação dos campos
morfológicos e fonológicos, como será mostrado a seguir.
A aglutinação é um fenômeno que está, nas gramáticas (tradicionais e pedagógicas) e
nos dicionários17, sendo conceituado a partir das esferas morfológica e fonológica. No
sentido de se ratificar esses apontamentos, historiou-se a seguir, à luz da tradição, as
definições no tocante à aglutinação na morfologia.
Na Gramática Expositiva, Pereira afirma que o processo de aglutinação tem
peculiaridades próprias, dentre elas:
Os compostos por aglutinação são aqueles vocábulos em que a juxtaposição
(sic) é mais íntima, e o primeiro elemento perde a sua autonomia prosódica,
e, modificando a sua desinência, funde-se com o elemento seguinte. Exs.:
16Entre os lingüistas, há uma infinda discussão concernente ao que seja uma palavra. No entanto, nesta dissertação, não serão tecidas considerações a este respeito, visto não ser este o nosso objetivo. 17 Nos dicionários de lingüística, de filologia e da Língua Portuguesa.
37aguardente = água + ardente, vinagre = vinho + agre, fidalgo = filho de algo
e outros. Os compostos por aglutinação são compostos PRÓPRIOS ou
PERFEITOS, como os compostos por prefixação, pois os elementos
componentes se fundem não só na forma, como também na idéia, para
expressarem um conceito único, uma única imagem. Os compostos por
juxtaposição (sic) são, em geral, IMPERFEITOS, ESPÚRIOS ou
IMPRÓPRIOS, pois os elementos componentes, embora se reúnam para
formarem uma noção única, conservam, todavia, sua integridade vocabular,
p. ex. : carta-bilhete, mestre-sala, madre-silva (1942, p. 195).
Com base no gramático em foco, há uma diferença primordial entre as palavras
formadas por justaposição e por aglutinação. Naquelas haveria, em âmbitos gerais,
imperfeição, já que os elementos constitutivos do composto mantêm sua “integridade
vocabular”. Assim, embora formem uma única palavra, possuem componentes distintivos.
Ao passo que a aglutinação configuraria compostos “próprios” ou “perfeitos”, no intuito
de haver uma fusão tanto da forma como do sentido.
Adentrando neste campo conceitual, Carvalho (1956) assinala que, na Língua
Portuguesa, existem dois tipos significativos em relação às palavras formadas por
composição: a justaposição e a aglutinação. Aquela seria a junção de dois vocábulos
independentes que formariam uma outra palavra com sentido distinto das que o criou. A
aglutinação seria a união de duas ou mais palavras em um único vocábulo, sendo que
haveria uma relação extremamente íntima, formando uma única palavra como, por
exemplo, aguardente e pontapé.
Said Ali, por sua vez, pontua, na “Gramática secundária da língua portuguesa”, que
há, na língua, palavras compostas, as quais seriam “a combinação de dous (sic) ou mais
vocábulos com a qual se designa algum conceito nôvo (sic), diferenciado do sentido
primitivo dos têrmos (sic) componentes.” Embora, nessa gramática, ele não especifique e
comente o termo “aglutinação”, pressupõe-se que esteja subjacente ao conceito de
composição, já que o fenômeno focalizado seria, grosso modo, segundo a tradição, a
combinação mencionada. Um outro ponto que denuncia a alusão à aglutinação está
registrado em uma de suas observações:
38Segundo a teoria de Darmesteter, dá-se a composição quando os têrmos
(sic) se juntam, tendo havido elipse ou supressão de fonemas; a
justaposição, pelo contrário, consistiria na soldadura mais ou menos íntima
de elementos reunidos sem elipse (SAID ALI, 1966, p. 118).
Mediante esses apontamentos, observa-se que a aglutinação seria, então, a
composição, já que, na união dos termos, haveria a elisão e supressão de fonemas,
enquanto a justaposição diria respeito à junção de vocábulos sem elipse.
Cunha registra, por sua vez, na “Gramática do português contemporâneo”, que a
composição seria um tipo específico de se formar palavras. Assim, ela consistiria em
formar uma nova palavra pela união de dois ou mais radicais. A palavra
composta representa sempre uma idéia única e autônoma, muitas vêzes (sic)
dissociada das noções expressas pelos componentes. Assim, criado-mudo é
o nome de um móvel; mil – fôlhas (sic), o de um doce; vitória – régia, o de
uma planta; pé-de-galinha, o de uma ruga no canto externo dos olhos
(1970, p. 76).
Segundo o gramático em discussão, haveria três tipos distintivos no tocante à
composição: a) quanto à forma, b) quanto ao sentido e c) quanto à classe de palavra.
No concernente à forma, os elementos de uma palavra composta poderiam estar
justapostos ou intimamente unidos. Naqueles, cada um manteria sua independência, no
caso, em beija-flor, segunda–feira, bem-me-quer, chapéu-de-sol, e outros, haveria a
autonomia de cada palavra constitutiva do composto.
Entretanto, na medida em que os elementos de um composto se encontram
intimamente ligados, Cunha assinala que eles se aglutinam
por se ter perdido a idéia da composição, caso em que se subordinam a um
único acento tônico e sofrem perda de sua integridade silábica: aguardente
(água + ardente), embora (em + boa + hora), pernalta (perna + alta),
viandante (via + andante) (ibidem, p. 77).
39Com base nessas considerações, constata-se que a aglutinação está sendo aludida a
partir da junção de termos. Entretanto, para o gramático em análise, em uma palavra como
pernalta (perna + alta), haveria o fenômeno focalizado justamente pelo fato de a idéia de
composição ter sido diluída, dentre outros aspectos. Contrário a essa concepção, em Said
Ali (ibidem), encontra-se o ponto de vista de Darmesteter, o qual afirma que a composição
se configuraria pela união dos termos, havendo a elisão ou supressão de fonemas.
Seguindo esse ideário, subtende-se, segundo a tradição, que aqui se refere ao processo
de aglutinação, provavelmente distintivo da justaposição.
Em relação ao sentido, afere-se que seria diferenciado, na palavra composta, o
elemento “determinado”, o qual comportaria a idéia geral do termo “determinante”,
possível portador da noção particular. Desta forma, na palavra “escola-modelo”, haveria
dois elementos específicos: a) escola (o determinado) e b) modelo (o determinante).
Quanto à classe gramatical, verifica-se que uma palavra formada pelo processo de
composição poderia ser constituída por classes gramaticais distintivas: a) substantivo +
substantivo (manga-rosa e porco-espinho), substantivo + preposição + substantivo
(chapéu-de-sol e pai de família), substantivo + adjetivo (aguardente e amor-perfeito), e
outras.
Com isso, nota-se que a composição ocorreria em três níveis específicos: a) quanto à
forma, b) quanto ao sentido e c) quanto à classe de palavra. A aglutinação representaria,
então, a junção de termos diferentes, sendo que, nesta relação, haveria a perda da noção de
composição, bem como a subordinação a um único acento gráfico, submergindo a
integridade silábica.
Santos, na “Gramática brasileira da língua portuguesa”, também pontua que, no
português, um dos processos formadores de palavras é a composição. A seu ver,
ao contrário de outras línguas, a composição tem baixo rendimento em
língua portuguesa, seja porque é bem extenso o processo derivacional, seja
porque o composto dificulta o sistema flexivo da língua. Contendo mais de
um radical a palavra é composta. Com um radical apenas, a palavra é
simples (1980, p. 83).
De acordo com o gramático focalizado, uma palavra é composta quando possui mais
de um radical; no entanto, a composição teria, na Língua Portuguesa, “um baixo
40rendimento”. Para nós, é incabível um posicionamento desta estirpe, uma vez que é
incongruente observar o português a partir de um prisma tão redutivo.
O idioma brasileiro é perpassado pela vivacidade da língua, já que está em constante
mudança, mediante transformações sócio-históricas, territoriais, faixa etária, dentre outros
aspectos. Neste contexto, portanto, o processo de composição não pode ser visto como
algo “simplesmente” reduzido, já que, no decorrer do âmbito histórico, a língua vai se
modificando, necessitando de novas palavras. Palavras essas que, inúmeras vezes, se
constituem a partir da composição.
Santos (ibidem, p. 83) constata que, na Língua Portuguesa, a composição pode
ocorrer, a partir de duas esferas: a justaposição e a aglutinação. Aquela se refere só à
aproximação de radicais diferentes, sendo que cada um preserva sua autonomia fonética.
A esse respeito, ele cita os vocábulos “guarda-roupa” e “porco-espinho”.
Quanto à aglutinação, o gramático focalizado registra que seria um composto formado
pela união de palavras diferentes, havendo, no primeiro radical, a perda da autonomia
fonética, assim como aconteceria com os vocábulos “aguardente”, “pernalta” e “planalto”.
Santos (ibidem, p. 83) diz ainda que “o composto aglutinado é puramente histórico e
carece de qualquer rendimento lingüístico, salvo se apresenta apenas um efeito gráfico”.
Para nós, ao afirmar que o vocábulo aglutinado teria apenas um caráter histórico e
careceria de rendimento lingüístico, Santos comete um outro equívoco. Ao fazer isso, ele
nega a capacidade de inovação da língua, marginalizando as complexas diretrizes
composicionais próprias do processo de aglutinação.
Um outro ponto negligenciado por ele diz respeito à semântica, ao frisar poder ser a
aglutinação um simples “efeito gráfico”, Santos dissocia o lingüístico do sentido. Na
nossa concepção, à luz da tradição, uma das particularidades do fenômeno em evidência é
justamente a palavra composta apresentar um sentido distinto das que a constituiu. Desta
maneira, prescindir o sentido da aglutinação, enquanto processo de formação de palavras,
limitando-a ao aspecto gráfico resume ainda mais sua potencialidade aplicativa.
Envolto pelo ideário conceitual tradicional, Luft, na “Moderna Gramática Brasileira”,
afirma que, na Língua Portuguesa, as palavras são formadas através de processos
específicos: a derivação e a composição. Para ele,
41a diferença entre os dois processos está em que na derivação se joga
com uma só palavra (ameno: amenizar; leal: desleal), ao passo que na
composição se combinam duas ou mais palavras (guarda-chuva,
boquiaberto, buco-maxilo-facial) (1981, p. 95).
Na concepção do autor em análise, a diferença primordial entre a derivação e a
composição reside no fato de as palavras se formarem a partir da junção de afixos (derivação).
Neste caso, só há um único vocábulo. A nova palavra surge, então, através do acréscimo de
um prefixo, um sufixo ou de ambos. A exemplo disto, tem-se a palavra “leal”, citada acima.
No propósito de se formar uma nova, adiciona-se o prefixo “des-”, emergindo o vocábulo
desleal. Naquela, a significação se centra em um ato positivo, enquanto, na palavra desleal,
circunda em um ato negativo.
Já na composição, as palavras seriam formadas a partir da união de dois ou mais
vocábulos, havendo formas distintivas de compostos: a justaposição e a aglutinação. Segundo
Luft,
nessa combinação, os elementos primitivos perdem a significação própria
em benefício de uma significação nova, global. A palavra composta
exprime um conceito novo, mais ou menos independente: nalguns casos, os
sentidos primitivos persistem com alguma nitidez, o que não acontece em
outros. Assim, guarda-chuva – não há dúvida que é aparelho que “guarda da
chuva”; mas mandachuva não é cidadão que “mande chuva” (ibidem, p. 97).
Na composição, nota-se que, mediante a junção de duas ou mais palavras, formam-se
vocábulos novos, sendo que estes se diferenciam, em alguns casos, semanticamente dos
primitivos. A título de ilustração, pode-se citar a palavra “mandachuva”. Ao observá-la,
constata-se que ela é formada por dois vocábulos específicos: “manda” e “chuva”. Cada
um, por sua vez, apresenta, na Língua Portuguesa, uma significação singular. No entanto,
quando se unem, não continuam com os mesmos sentidos, visto que têm sua significação
pautada no conjunto composicional. Diante disso, nota-se que, em “mandachuva" não se
trata de um indivíduo que “mande chuva”. Neste entorno situacional, refere-se a uma
pessoa possuidora de um poder específico, o qual lhe conferiu tal título.
42No tocante à aglutinação, o gramático em evidência afirma que este fenômeno seria a
junção de duas palavras que se fundem a partir de uma união bastante íntima, com um
único acento tônico. Luft frisa que
os dois vocábulos associados se fundem num todo fonético, com um único
acento, perdendo o primeiro alguns elementos fonéticos (acento tônico,
vogais ou consoantes). Isto, no aspecto fonético e morfológico (ibidem, p.
98).
Neste sentido, pode-se compreender que as palavras boquiaberto (pasmado,
admirado), cabisbaixo (envergonhado, abatido), aguardente, pontiagudo, maniatar,
mancheia, pernalta, planalto, agridoce18, dentre outras, seriam formadas pelo processo de
aglutinação, já que comportariam as características mencionadas aqui por Luft.
Almeida, na “Gramática metódica da língua portuguesa”, aponta que a composição
também seria um processo de formação de palavras. Neste processo, haveria
particularidades próprias, dentre elas:
o sentido da palavra fundamental é modificado mediante palavras,
preposições ou partículas que a ela se antepõem; processa-se ou por
justaposição (quando duas ou mais palavras se juntam sem se alterarem:
porta - aviões) ou por aglutinação (quando elas se fundem mediante alguma
alteração: pernalta, de perna + alta) ou por prefixação (1986, p. 404).
O processo de aglutinação continua sendo, por conseguinte, conceituado através das
diretrizes morfológicas e fonológicas, assim como os demais gramáticos vêm fazendo.
Seguindo esse ideário conceitual, Infante assinala que um dos processos de formação
de palavra é a composição. Para ele,
a composição produz palavras compostas a partir da aproximação de
palavras simples. As palavras simples são aquelas em que há um único
radical, como, por exemplo, “amor” e “perfeito”. Para que ocorra o
18 Estes exemplos foram retirados de Luft (1981, p 98).
43processo de composição, é necessário estabelecer entre essas palavras um
vínculo permanente, que faz com que surja um novo significado: é o que
ocorre quando formamos o composto “amor-perfeito”, que dá o nome a
uma flor (1995, p. 117).
Diante disso, nota-se que, na concepção do gramático em foco, no português, as
palavras podem ser simples ou compostas. Aquelas são caracterizadas por conter um só
radical, como ocorreu em “amor” e “perfeito”. Cada palavra dessas possui uma
significação própria. As compostas, por sua vez, configuram-se pela junção, em um único
vocábulo, de dois ou mais radicais, conforme “amor-perfeito”. Nestes casos, a
significação se ancora no composto e não no vocábulo individual.
De acordo com as considerações tecidas pelo gramático em análise, constata-se que
há, no português, dois tipos de processo de formação de palavra: a justaposição e a
aglutinação. Naquela, as palavras formadoras do composto são simplesmente colocadas
uma ao lado da outra. Assim, para Infante, a justaposição
ocorre quando os elementos que formam o composto são simplesmente
colocados lado a lado (justapostos), sem que se verifique qualquer alteração
fonética em algum deles: segunda-feira, pára-raios, corre-corre, guarda-
roupa, amor-perfeito, pé-de-moleque, girassol, passatempo (ibidem, p. 117).
Na nossa concepção, pelo exposto, percebe-se que de fato os compostos citados foram
formados por justaposição, já que, em cada um, há duas palavras com significação
peculiar, no propósito de se formar um outro vocábulo com sentido próprio. Em “segunda-
feira”, observa-se, portanto, que se fazem presentes as palavras “segunda” e “feira”, as
quais comportam sentidos diferenciados, no entanto, ao se unirem, passam a ter uma outra
significação, sinalizando um dia da semana.
No tocante à aglutinação, o gramático em pauta afirma que seria uma composição
baseada na junção de dois ou mais vocábulos. Nessa junção haveria a inter-relação entre
as palavras formadoras do composto, as quais sofreriam algumas perdas, dentre elas, um
dos componentes perderia sua integridade sonora. A respeito disto, Infante (ibidem, p.
118) afirma que ocorre o fenômeno em discussão “quando os elementos que formam o
44composto se aglutinam, o que significa que pelo menos um deles perde sua integridade
sonora, sofrendo modificações”.
A título de exemplificação, o gramático em questão cita as palavras vinagre (vinho +
acre), aguardente (água + ardente), pernalta (perna + alta) e planalto (plano + alto). Estes
compostos, na concepção dele, estariam de fato aglutinados, já que cada um seria formado
por dois componentes que se associariam, havendo as alterações características desse
processo.
Além disso, Infante pontua que as possibilidades de composição de palavras seriam
inúmeras, chegando a ser imprevisível. Assim,
podem-se formar compostos pelo relacionamento das palavras pertencentes
a praticamente todas as classes gramaticais. Há por exemplo, compostos
formados por substantivo + substantivo (porco-espinho), substantivo +
adjetivo (amor-perfeito), advérbio + adjetivo (sempre-viva) + substantivos
(pára-choques), etc. (ibidem, 118).
Nos exemplos mencionados acima, encontra-se uma característica em comum
particularizando-os. A palavra composta é, por sua vez, resultante da relação que os
vocábulos formadores do composto estabelecem entre si.
Paschoalin e Spadoto, seguindo essa tradição, afirmam, em sua gramática, que a
composição seria
o processo pelo qual a formação de palavras se dá pela união de dois ou
mais radicais. Pode ocorrer: a) por justaposição, quando não há alteração
fonética nos radicais (ponta-pé = pontapé) e b) por aglutinação, quando há
alteração fonética nos radicais (plano + alto = planalto) (1996, p. 152).
A aglutinação, na ótica desses gramáticos, seria, então, a relação entre palavras
diferentes, alterando-se foneticamente os radicais.
Por outro lado, para Bechara (1999), os principais processos de formação de palavras
no português seriam a derivação e a composição. A derivação seria a possibilidade de
formar palavras através de outras consideradas primitivas. Já a composição diria respeito à
45criação de uma nova palavra, a partir de dois radicais inter-relacionados, com significado
único, configurando-se através da justaposição ou da aglutinação.
No concernente à justaposição, pode-se pontuar que esse fenômeno apresenta
peculiaridades próprias, dentre elas, a possibilidade de formar palavras compostas com
radicais livres, consoante se observa em “guarda-chuva” e “pé-de-moleque”.
Individualidade esta que se fundamenta a partir de dois planos: o escrito e o fonológico. A
independência constitutiva das palavras, perceptível a partir da escrita do sintagma
nominal, é estabelecida através da justaposição dos dois radicais, geralmente, inter-
relacionados por um hífen. Já, na pronúncia, configura-se a partir da independência
fonética.
No tocante à aglutinação, o autor mencionado afirma que seria um processo formador
de palavras compostas através da fusão de dois radicais, a título de ilustração: “planalto” e
“aguardente”. Esse agregamento se constituiria pela restrição vocabular, decorrente do
aparecimento de um único acento tônico, bem como da substituição ou eliminação de
fonemas, construindo-se uma nova palavra. A autonomia fonética do primeiro
componente, portanto, seria suplantada, sofrendo alterações em sua pronúncia. Assim, em
planalto (plano + alto), há, na palavra “plano”, o apagamento da vogal “o” e da tonicidade,
visto que esta é transportada para a sílaba “nal”, da palavra composta analisada. Já em
aguardente (água + ardente), a palavra “água” perde a vogal “a” e sua tonicidade (água),
visto que esta é apresentada na sílaba “den” da palavra composta.
Faraco e Moura (1999, p. 186) consideram, na sua gramática, a aglutinação como “um
processo de palavras em que dois elementos – geralmente o primeiro – perde sua
autonomia fonética”. Diante desse conceito, constata-se que os autores focalizados
continuam, a partir dos campos fonológico e morfológico, definindo o processo em foco,
de acordo com o viés tradicional. No entanto, eles chamam a atenção para o fato de haver
a tendência, na lingüística atual, de se “considerar como simples as palavras em que se
perdeu a noção de composição”. Neste sentido, pode-se pressupor que, em alguns casos,
apenas a análise etimológica seria capaz de determinar quais são os elementos
constitutivos do composto. À guisa de ilustração, citam palavras do tipo: fidalgo (filho +
de + algo), embora (em + boa + hora), Portugal (porto + Cale) e outros.
Para os gramáticos em discussão, os falantes atuais não distinguem, imediatamente, as
palavras que formam os compostos citados (fidalgo, embora e Portugal), já que a junção
46se realizou de forma bastante acentuada. Assim, no português atual, estas palavras
deveriam ser consideradas como primitivas.
A nosso ver, há aqui a tentativa de se negar a constituição primária de algumas
formações cristalizadas na língua, uma vez que estas fazem parte do senso comum,
podendo dificultar o reconhecimento no tocante a sua etimologia. No entanto, isso não
anula o fato de haver, em tais compostos, a existência de radicais diferentes. Desta
maneira, se se recorrer aos fundamentos etimológicos, é inconveniente abordá-los como
formas primitivas. Assim, a possibilidade de não haver uma consciência imediata do
reconhecimento dos elementos que compõem algumas palavras não sufoca suas
existências.
Aludindo ao campo conceitual tradicional, Sacconi (2000, p. 73) afirma, na “Nossa
gramática contemporânea”, que, na Língua Portuguesa, as palavras também são formadas
principalmente a partir da derivação e da composição, como o construto proposto por
Bechara. A composição, por sua vez, seria “a formação de palavras pela união de dois ou
mais semantemas19, por exemplo, porco-espinho, aguardente, dentre outros”. Esse
processo se configuraria, então, através de dois tipos peculiares: a) a justaposição e b) a
aglutinação.
Na justaposição, os semantemas continuariam intactos; assim, ter-se-ia a formação de
palavras do tipo: testa–de-ferro e passatempo. Todavia, na aglutinação, os semantemas se
uniriam, havendo a modificação de um deles. Com isso, poderiam ser erigidas as
seguintes palavras: aguardente (água + ardente), pontiagudo (ponte + agudo), petróleo
(petra + óleo), dentre outras.
Corroborando essas concepções, Sarmento (2000, p. 80) afirma, na “Gramática em
textos”, que, na língua, a composição seria uma das maneiras de se formar palavra,
podendo ocorrer por justaposição e por aglutinação. Aquela remeteria às palavras que se
juntam “sem nenhuma alteração fonética e gráfica”. No caso, “cavalo-marinho” e
“paramédico”, representariam exemplos cabais deste tipo de composição. Ao passo que,
na aglutinação, as palavras se fundiriam, “com alteração ou perda de alguns de seus
elementos fonéticos: vinagre (vinho + acre) e pontiagudo (ponte + agudo)”.
Seguindo essa perspectiva, os dicionários de lingüística, da Língua Portuguesa, e de
filologia definem o processo em questão. Para Dubois et al (1973, p. 32), a aglutinação 19 Segundo Aurélio (1999, p. 1832), os semantemas são os radicais. Neste caso, infere-se que aqui remetem aos radicais das palavras constitutivos dos compostos.
47seria “a união, numa única unidade de dois ou vários termos originariamente distintos,
mas que se encontram freqüentemente juntos em um sintagma”. Enquanto, no Houaiss,
dicionário da Língua Portuguesa, representaria:
União e integração de elementos distintivos, formando um todo em que
dificilmente se reconhecem as partes originais. 2 GRAM reunião de dois ou
mais vocábulos distintivos em um só vocábulo, com significado novo, perda
de fonemas e esp. de acento de um dos vocábulos aglutinados. (p. ex.
aguardente por água + ardente, pernalta por perna + alta) (2004, p. 22).
Pelo exposto, percebe-se que os dois dicionários em questão abordam o fenômeno em
discussão a partir da morfologia e da fonologia, especificando a união de vocábulos
distintivos em uma só unidade (palavra).
Seguindo esta perspectiva, Albuquerque (1979, p. 30) afirma que a aglutinação seria
“a formação de palavras pela união de duas ou mais que sofrem alteração nos seus
elementos materiais”. A este exemplo, registra as palavras aguardente (água + ardente),
fidalgo (filho + algo), petróleo (petra + óleo), Santana (santa + Ana).
Aurélio, em seu dicionário, registra que a aglutinação também estaria sendo associada
aos campos morfológico e fonológico. Ele a conceitua, portanto, como:
1. Ação ou efeito de aglutinar; aglutinamento. 2. E. Ling. Composição. 3.
Med. Agrupamento, em suspensão, de células portadoras de antígenos
(microorganismo, ou partículas na presença de aglutininas específicas). 4.
Med. Na cicatrização, no processo de união de tecidos separados de uma
ferida (1999, p. 70).
Diante dessa definição, não é de todo descabido pontuar que parece ser inerente à
palavra “aglutinação” à noção de agregar algo, seja morfológico, fonológico ou até
mesmo no âmbito da medicina, “os tecidos separados de uma ferida”.
Envolto por esse universo conceitual, Cegalla, no seu dicionário da Língua
Portuguesa, pontua que o fenômeno em evidência seria:
48Reunião; fusão: O plano tem papel didático na aglutinação das diversas
forças da política. (Gram) processo de formação de palavra pela fusão de
dois ou mais radicais em que se perde a delimitação fonética entre os
elementos componentes, o primeiro dos quais, pelo menos, se altera
(quando é palavra independente) (2005, p. 39).
Ao passo que, para Camara Jr., no “Dicionário de filologia e gramática”, a aglutinação
representaria:
a perda da delimitação vocabular entre duas formas que se reúnem por
composição (v.) ou por derivação (v.) e assim passam a constituir um único
vocábulo fonético (v.). A perda da delimitação vocabular decorre – (1) da
subordinação das duas formas a um único acento vocabular (v.), 2) de troca
ou perda de fonema, por sândi interno, 3) de modificações de ordem
mórfica, que fazem da forma um elemento de composição ou derivação. O
fenômeno oposto à aglutinação é a justaposição (v.), em que persiste a
delimitação vocabular entre as formas (1968, p. 59).
Tendo como pano de fundo esses pressupostos, observa-se, então, que a aglutinação,
para Camara Jr., associa-se tanto à composição quanto à derivação, sendo opositiva à
justaposição. Assim, não é incabível se assinalar que, ao associar o fenômeno em foco à
derivação, esse autor já observa um outro aspecto marginalizado por Dubois, Aurélio e
Cegalla. Com isso, amplia o campo conceitual da aglutinação; entretanto, todos
negligenciam o aspecto discursivo.
Considerando os apontamentos discorridos, verifica-se que o fenômeno da aglutinação
vem sendo definido, à luz da tradição, através dos aspectos fonológicos e morfológicos,
nos gramáticos e nos dicionários sumariados. Para nós, aludi-lo estritamente por esses
âmbitos resume sua potencialidade constitutiva, não contemplando todas as suas
particularidades, já que são negligenciados os fatos discursivos (próprios da língua). Por
isso, o processo mencionado será, no capítulo III, redefinido, com base no ideário
bakhtiniano, e associado à sintaxe da Língua Portuguesa.
49
3. Proposta de análise
3.1 A aglutinação na sintaxe discursiva: uma perspectiva bakhtiniana
Na Língua Portuguesa, a aglutinação sintática discursiva, à luz do construto teórico
bakhtiniano, é um processo de origem enunciativa, configurando-se a partir do diálogo
entre interlocutores delineados socialmente. Esse fenômeno se realiza através de um lugar,
que pode ser preenchido no plano da organicidade (sintaxe) ou simplesmente ocultado
(efeito de sentido), entretanto, perceptível no plano do enunciável.
Pensando nisso, sente-se a necessidade de comentar que, no decorrer da história,
segundo as considerações tecidas no tópico (1.2), confere-se, por conseguinte, à sintaxe o
papel de perfiladora das funções que os termos lingüísticos podem exercer no enunciado.
Desta maneira, a análise sintática seria responsável por definir o sujeito, o predicado, o
adjunto adnominal, o complemento nominal, o complemento verbal (objeto direto,
indireto e bitransitivo), o adjunto adverbial, o agente da passiva, as orações (coordenadas
e subordinadas), dentre outros aspectos.
Ratificando esses pressupostos, Berlinck et al (2006, p. 207), afirma que a sintaxe é
um nome de origem grega (syntaxis: ordem, disposição) e tradicionalmente “remete à
parte da gramática dedicada à descrição do modo como as palavras são combinadas para
compor sentenças, sendo essa descrição organizada sob a forma de regras”.
Não obstante todas estas funções, aqui será apresentada, a seguir, uma proposta
enunciativa em relação à sintaxe, assim como sugeriu Bakhtin (1981). Para tanto, foram
tomados como escopo o sujeito gramatical, o complemento verbal e o adjunto adverbial
de instrumento. Com isso, busca-se apresentar o conceito de aglutinação sintática
discursiva, defendido por nós.
3.1.1 O sujeito
De acordo com a G.T., o sujeito, juntamente com o predicado, seria um termo
essencial da oração, ainda que possa ser omitido ou inexistente em determinados casos,
50por mais contraditório que isto possa ser. De maneira geral, a abordagem tradicional
contemporânea considera o sujeito em três prismas distintos:
1 Definição (1): O ser que pratica a ação;
2 Definição (2): O ser de quem se faz uma declaração;
3 Definição (3): O termo que concorda em número e em pessoa com o verbo.
De acordo com a definição (1), pode-se citar como exemplo “A mãe extremosa cuida
bem de seus filhos.” Aqui, o sujeito (a mãe extremosa) exerceria a ação concernente ao
verbo performativo “cuidar”, fato verificado na voz ativa. Com relação à definição (2), a
título de exemplificação, tem-se o seguinte enunciado: “O jogo apresentou um placar
duvidoso”. Neste exemplo, o predicado da oração (apresentou um placar duvidoso) traria
uma informação acerca do sujeito.
Concernente à definição (3), nota-se que, como seria regra constitutiva da língua, o
sujeito concordaria com o verbo em número e em pessoa. Assim, no enunciado “A casa e
a fazenda são de minha propriedade”, o sujeito seria “a casa e fazenda”, já que estes
termos estão mantendo uma relação de concordância (número e pessoa) com o verbo.
Neste ponto de nossas considerações, será lançado um olhar panorâmico sobre o que a
G.T. afirma a respeito do sujeito de meados do século XX até este início do século XXI,
através da visão de gramáticos tradicionais.
De antemão, pode-se afirmar que, dentre os gramáticos analisados, houve um
compromisso significativo com a segunda definição acima descrita. Algumas definições,
como serão vistas, também apontam para a terceira, ainda que como uma espécie de
apêndice da segunda. Não houve menção, entretanto, à primeira definição. A noção de
sujeito como o ser que pratica a ação expressa pelo verbo se faz presente na conceituação
de sujeito agente, o qual praticaria a ação delimitada por um verbo performativo quando
da voz ativa.
Observem-se as definições de sujeito propostas pelos gramáticos em análise:
1 Pereira (1942, p. 210): “Sujeito é o membro da proposição do qual se declara alguma
cousa (sic)”;
2 Cunha (1970, p. 87): “O sujeito é o ser sobre o qual se faz uma declaração; (...)”
513 Cegalla (1988, p. 273): “Sujeito é o ser de quem se diz alguma coisa”;
4 Paschoalin & Spadoto (1996, p. 173): “Sujeito é o termo sobre o qual o restante da
oração diz algo”;
5 Bechara (1999, p. 409): “Chama-se sujeito à unidade ou sintagma nominal que
estabelece uma relação predicativa com o núcleo verbal para constituir uma oração. É,
na verdade, uma explicitação léxica do sujeito gramatical que o núcleo verbal da
oração normalmente inclui como morfema número-pessoal”;
6 Faraco & Moura (1999, p. 434): “Sujeito é o termo sobre o qual se declara algo. O
verbo da oração sempre concorda com o sujeito em pessoa e número”;
7 Campedelli & Souza (1999, p. 529): “É o ser de quem se diz alguma coisa ou o termo
a que se refere o predicado, caracterizando-se como o termo que rege ou comanda o
verbo”;
8 Sarmento (2000, p. 332): “Sujeito é o termo da oração do qual se declara alguma
coisa”;
9 Tufano (2001, p. 234): “O sujeito é o termo a respeito do qual se declara alguma
coisa”.
10 Bechara (2002, p. 16): “Sem verbo não temos oração (...). Cabe agora insistir em que a
natureza semântica (de significado) e sintática (de relação gramatical) determinará se a
predicação da oração é referida a um sujeito, ou não. Esta referência se chama
predicado e o termo referente dessa predicação se chama sujeito”;
11 Ferreira (2003, p. 331): “Sujeito é o termo (palavra ou conjunto de palavras) da oração
que designa o ser a respeito do qual se declara alguma coisa; é também o elemento
com o qual o verbo estabelece concordância”;
12 Cereja & Magalhães (2004, p. 223): “Sujeito é o termo da oração: * que informa de
quem ou do que se fala; * com o qual o verbo geralmente concorda”;
13 Ernani & Nicola (2005, p. 209): “O elemento ou assunto a respeito do qual damos
alguma informação recebe o nome de sujeito”;
14 Sacconi (2000, p. 244): “Sujeito é o ser ou aquilo a que se atribui à idéia contida no
predicado”.
Diante de tais definições, é necessário chamar a atenção para o posicionamento de
Bechara (1999) e (2002). Aparentemente, ele se diferencia do que afirmaram os demais
52gramáticos analisados, entretanto, esta distinção é apenas aparente, legitimando-se em
uma escolha lexical distinta na construção do conceito. Vale salientar, antes de mais
nada, que Bechara20 (1999) elaborou uma gramática destinada ao público universitário,
mais especificamente ao aluno de Letras, apresentando, portanto, um nível mais alto e de
maior abstração. Por outro lado, Bechara (2002) constitui uma gramática pedagógica,
voltada para o ensino médio e apresentando nível condizente aos aprendizes mais jovens.
Em Bechara (1999), trocando em miúdos, o sujeito é definido como um termo que
estabelece concordância com o verbo, estando, por conseguinte, de acordo com a
definição (3). Além disso, como o sujeito se atrela ao predicado, tido como uma
informação que se dá a respeito do próprio sujeito, ocorre uma identificação deste
posicionamento com a definição (2). Em Bechara (2002), um olhar mais detido revela
que, se o predicado é definido como a declaração feita sobre o sujeito, então, o sujeito
seria o ser de quem se faz uma declaração, havendo novamente uma identificação com a
definição (2).
Como foi visto, Pereira, por sua vez, define o sujeito como sendo “o membro da
proposição do qual se declara alguma cousa, p. ex.: EU vivo – TU vives – ÊLES (sic)
vivem”. Observe os exemplos elencados por este gramático:
(1) A preguiça é a chave da pobreza.
(2) Tu és Marabá!
(3) Seja o vosso SIM sim, e o vosso NÃO não.
(4) INDEPENDÊNCIA OU MORTE foi o brado glorioso do Ipiranga.
(1942, p. 210)
Em (1), o sujeito é expresso por um substantivo (preguiça), atuando como núcleo. Em
(2), o pronome pessoal reto “tu” o configura. Em (3), esta função sintática se notifica por
uma palavra substantivada ou determinada (sim/não), enquanto em (4), é uma frase de
sentido incompleto que atua como sujeito da oração (Independência ou morte).
Pereira (ibidem, p. 211) propõe uma extensa classificação para o sujeito, que será
sumarizada a seguir. Para ele, o sujeito pode ter várias acepções: expresso, oculto,
20 Neste trabalho, Bechara afirma que se trata de uma gramática de base funcionalista. Para nós, apesar desse posicionamento, o autor, em alguns momentos, reveste-se com o viés tradicional, conforme aconteceu com a definição de sujeito.
53determinado, indeterminado, simples, composto, completo, incomplexo, gramatical,
lógico ou total, agente e paciente.
O expresso ocorreria quando este se fizesse materialmente presente na oração, assim
como aconteceu em “EU vivo21”, aqui o sujeito (EU) aparece inequívoco na oração. O
oculto seria, por conseguinte, quando a função sintática mencionada não fosse enunciada,
mas ela seria subentendida pelo falante. Neste caso, ao se enunciar “Penso, logo existo”,
a orientação do verbo “pensar” denotaria que o sujeito seria o pronome pessoal reto
“EU”, elíptico na oração. Já o determinado ocorreria quando o sujeito estivesse expresso
lingüisticamente.
Ao passo que o indeterminado aconteceria quando não se soubesse qual é o sujeito da
oração, sendo acompanhado por um verbo impessoal. Desta forma, em “Chove a
cântaros”, não se determinaria o sujeito, visto que o verbo “chover” seria impessoal. O
simples, então, seria aquele que representaria um único ser ou seres de uma mesma
espécie. A respeito disto, pode-se aferir que, em “O homem é o rei da criação”, o
substantivo “homem” atuaria com sujeito, já que apresentaria um único ser (o homem).
O composto representaria seres de diferentes espécies. Desta maneira, em “O homem e
o anjo são seres racionais”, haveria dois tipos de seres: “o homem” e “o anjo”. Na nossa
concepção, ao se associar o conceito de sujeito à concepção de ser limita sua
potencialidade. A exemplo disto, pode-se citar o próprio enunciado mencionado pelo
gramático em análise. Assim, em “O homem e o anjo são seres racionais”, há uma
suposta incoerência no concernente à definição desse tipo de sujeito. Diante disso,
indaga-se: um anjo seria um ser? E qual o conceito de ser está sendo aludido pelo autor?
O complexo, logo, seria aquele modificado por um complemento ou atributo. Por
exemplo, em “A memória dos justos é eterna”, haveria a expressão “dos justos”. Já o
incomplexo seria aquele que não recebe atributo ou complementos. Neste caso, em “Tudo
caminha”, não há nenhum termo que confira ao sujeito (tudo) um atributo; por isso, este
enunciado está sendo taxonomizado, pelo gramático em discussão, como incomplexo. A
nosso ver, na prática, o sujeito incomplexo equivale ao simples.
O gramatical seria “o sujeito despojado de qualquer modificativo complementar, que,
por ventura, tenha (...)” (p. 213). Mais uma vez, na nossa concepção, pode-se inferir que
não há diferença entre este conceito e o de sujeito simples. O lógico ou total exibiria,
21 Todos os exemplos referentes a Pereira foram retirados de sua gramática.
54portanto, modificativos complementares. Neste caso, em “O rugido do leão apavora o
viajante do deserto”, “do leão” atuaria como o modificador do sujeito. Não se percebe
aqui diferença entre este conceito e o de sujeito complexo, proposto pelo autor.
O agente seria o que exerce a ação verbal na voz ativa. Nesta situação, em “O astro
saudoso rompe a custo o plúmbeo céu”, haveria tal agente, já que “o astro” estaria
praticando uma ação. O paciente, por sua vez, seria aquele que recebe a ação verbal
quando o verbo está na voz passiva, por exemplo, em “O plúmbeo céu é rompido a custo
pelo astro saudoso”, isso se validaria, uma vez que “o plúmbeo céu” estaria sofrendo a
ação.
Um breve olhar investigativo sobre esta classificação permite constatar um certo
excesso na taxonomização do conceito de sujeito. Prova disto é a ausência de diferença
formal entre categorias. Nas gramáticas posteriores, ocorre um enxugamento da
classificação do sujeito, permanecendo apenas as categorias mais significativas, conforme
será constatado a seguir.
Cunha (1970, p.87) compactua com Pereira (ibidem) e também com os demais autores
estudados, afirmando que o sujeito se define como “o ser sobre o qual se faz uma
declaração (...)”. Observe o exemplo (5), proposto pelo autor:
(5) Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária.
(Manuel Bandeira)
Neste exemplo, a expressão “aquele cacto” configuraria o ser sobre o qual se formula a
declaração expressa pelo predicado. Neste momento, é necessário fazer um adendo em
relação ao conceito de sujeito defendido pelo autor em discussão. A nosso ver, esta
definição carece de um grau maior de clareza, uma vez que não especifica que tipo de ser
está sendo focado. Fato constatado no enunciado (5), proposto por Cunha (ibidem). Ora
se o sujeito é “o ser sobre o qual se faz uma declaração”, “aquele cacto” seria um ser
animado ou inanimado? Indubitavelmente, aqui é preciso que este gramático explicite a
concepção de ser com a qual está trabalhando, caso contrário, será, no mínimo,
insuficiente classificar “aquele cacto” como um sujeito.
O gramático em evidência pondera que, embora o sujeito seja um termo essencial,
não é obrigatório que ele se faça materialmente presente na oração. Estas orações são
denominadas como elípticas. Cunha (ibidem) propõe uma classificação bem mais concisa
55para o sujeito. Na sua concepção, o termo em discussão poderia ser definido como:
simples, composto, oculto (determinado) e indeterminado.
O sujeito seria simples quando apresentasse apenas um núcleo. Por exemplo, no
enunciado “A notícia corria de boca em boca”, o substantivo “notícia” atuaria como
sujeito. Ao apresentar mais de um núcleo, ele seria composto. Assim, em “O rapaz e a
moça foram encostados ao muro”, os núcleos seriam “rapaz e moça”, respectivamente.
Já o sujeito oculto (determinado) apareceria elíptico na oração, embora seja facilmente
recuperável pelo contexto. A exemplo disso, tem-se: “Adormeci num grande desânimo”.
Neste caso, o sujeito “eu” é recuperável pela desinência do verbo “adormecer –
adormeci”. De acordo com o autor, outra forma de recuperar o sujeito oculto é “pela
presença do sujeito em outra oração do mesmo período ou de período contíguo” (p. 90).
Desta forma, em “Soropita ali viera, na véspera, lá dormira; e agora retornava a casa”, o
sujeito estaria expresso no período anterior, por isso, ficaria elíptico no subseqüente.
Assim, para nós, neste momento, o ocultamento do sujeito pode ser utilizado como uma
ferramenta para promover a coesão textual.
Ao passo que o indeterminado ocorreria, quando o verbo não dissesse respeito a uma
pessoa determinada ou quando não se soubesse ou não se desejasse saber quem pratica a
ação expressa por este verbo. Desta maneira, pode-se aferir que, ao se proferir
“Anunciaram que você morreu”, haveria a indeterminação do sujeito, já que o verbo se
encontra na terceira pessoa do plural. Já em “Não se falava dele na praça”, a
indeterminação se daria com o verbo na terceira (3ª) pessoa do singular seguido do
pronome “se”.
Os demais gramáticos que foram explanados apresentaram, via de regra, a mesma
classificação para os tipos de sujeito. O que se encontra são diferenças pontuais na
abordagem dessa classe gramatical, que, a nosso ver, não merecem um maior destaque e,
por esse motivo, não serão esmiuçadas no corpo de nossas considerações. Assim, não
será mostrada a classificação integral do sujeito proposta por todos os gramáticos
focalizados, no sentido de se evitar a redundância lingüística. Nosso intento se restringirá,
não obstante, a enfatizar como eles definem e caracterizam a oração sem sujeito, já que,
nesta dissertação, o conceito em foco será desconstruído.
Pereira (ibidem) e Bechara (1999) não falam em oração sem sujeito. Já Cegalla (1988,
p. 275) constata que a oração sem sujeito constitui “(...) a enunciação pura e absoluta de
56um fato, através do predicado (...)”. A ação que o verbo denota, portanto, não seria
delegada a nenhum ser e se construiria com o verbo impessoal na terceira (3ª) pessoa do
singular ou com a presença da partícula “se” ao verbo impessoal na terceira (3ª) pessoa
do singular. Para ilustrar o conceito de verbo impessoal, Cegalla aponta os seguintes
exemplos:
1 verbo haver no sentido de existir, acontecer, realizar-se, decorrer:
2 Há plantas venenosas. – Haver equivale a existir.
3 Houve algo de anormal? – Haver equivale a acontecer.
4 Havia três noites que não dormia. – Haver equivale a fazer, no sentido
de tempo decorrido.
5 Onde houvesse festas e danças, ali se achava ele. – Haver equivale a
realizar-se.
6 os verbos fazer, passar, ser e estar no sentido de tempo decorrido e/ou
fazendo referência a condições climáticas:
7 Faz dois anos que me formei.
8 “Fazia dias que o Balão não aparecia na porteira do curral” – José J.
Veiga.
9 Hoje fez muito calor.
10 Eram trinta de maio de 1980.
11 Abria a janela, se estava calor.
12 Olhei o relógio: passava das cinco horas da tarde.
13 verbos que denotam fenômenos metereológicos:
14 Chovia torrencialmente.
(5) Ventou muito durante a noite.
1 Anoiteceu rapidamente.
2 Nevou no Sul do país (ibidem, p. 275-276).
57No tocante à oração sem sujeito, Cunha aponta os seguintes casos para a sua
existência:
a) com verbos ou expressões que denotam fenômenos da natureza:
Troveja fortemente.
Ontem fez calor no Rio.
b) com o verbo haver na acepção de “existir”:
Assim há jasmins, ainda há rosas.
Ainda há violões e modinhas.
Em certas ruas saudosas.
(RIBEIRO COUTO)
c) com os verbos haver, fazer e ir, quando indicam tempo decorrido:
Chegou há menos de três meses.
(OTTO LARA RESENDE)
d) com o verbo ser, na indicação de tempo em geral:
Era inverno na certa no alto sertão.
(JOSÉ LINS DO RÊGO)
Eram sete horas da noite quando entrei no carro ali no Jardim Botânico
(FERNANDO SABINO) (1970, p. 91).
Faraco & Moura (1999, p. 434), por sua vez, afirmam que, “de acordo com a NGB, há
três tipos de termo que podem ocorrer numa oração: essenciais, integrantes e acessórios”.
Para eles, os termos essenciais são aqueles que sustentariam a mensagem transmitida por
meio de uma oração; no caso, seriam o sujeito e o predicado. Entretanto, posteriormente,
comentam que “existem casos de oração em português que são formadas apenas por
predicado”, visto que não têm sujeito. Nesta situação, “o verbo é considerado impessoal e,
em geral, aparece na terceira pessoa do singular”. A oração sem sujeito ocorreria,
portanto, nos seguintes casos:
Com verbos ou expressões que indicam FENÔMENOS
METEOROLÓGICOS:
a) Está quente hoje.
58b) Deve chover hoje em todo o estado. (Folha de São Paulo).
Com o verbo FAZER e o verbo HAVER indicando tempo decorrido:
a) Fazia tempo que ninguém tocava nesse assunto. (O Dia)
Com o verbo SER indicando tempo e distância:
a) Eram quatro horas da manhã.
b) De uma cidade a outra seriam setenta quilômetros.
Deve-se frisar que os demais gramáticos estudados abordam a oração sem sujeito
basicamente nos mesmos termos. Paschoalin & Spadoto (1996, p. 176), a respeito dos
verbos impessoais que caracterizam as orações sem sujeito, afirmam que, quando os
verbos que exprimem fenômenos da natureza são empregados em sentido figurado, eles
deixam de ser impessoais, passando a apresentar sujeito, como ocorre nos exemplos a
seguir:
a) Choveram lágrimas de sangue. (Sujeito: lágrimas de sangue)
b) Choveram denúncias sobre gente importante. (Sujeito: denúncias)
O sujeito gramatical, para nós, não pode se restringir apenas às definições contidas na
G.T., uma vez que este construto teórico não considera o discurso, centrando-se no
lingüístico. Na nossa concepção, à luz da teoria defendida por Dias (2001, p. 8), “o fato
lingüístico sujeito se constitui tendo em vista a demanda de saturação”. Esta saturação diz
respeito, então, à relação constitutiva entre o plano da organicidade e o plano do
enunciável.
Em seu artigo “Fundamentos do sujeito gramatical: uma perspectiva da
enunciação”, Dias (ibidem, p. 3) registra que o plano da organicidade se refere ao
gramatical, enquanto o plano do enunciável remete àquilo que se pode proferir em outras
situações discursivas. Isso permite frisar que aquele representa o lingüístico, mais
especificamente à construção sintática que se configura através de elementos inter-
relacionados, formando um todo, conforme se nota no enunciado “Roberta gosta de
chocolate”. Aqui, os componentes sintáticos: sujeito, verbo e objeto agregam-se de tal
maneira que constituem, de forma quase indissoluta, um único bloco.
O plano do enunciável, por sua vez, se fundamenta na exterioridade lingüística,
referindo-se aos elementos que não se integram na linearidade sintática, mas que é possível
perceber através do discurso. A propósito desses preceitos, tem-se a construção: a) “Nevou
59ontem”. Segundo a G.T., gramática que se refere exclusivamente ao plano da organicidade,
neste exemplo, haveria uma oração sem sujeito.
Todavia, a nosso ver, em “Nevou ontem”, há sujeito (uma neve), já que este se
encontra aglutinado no núcleo verbal “nevou”. Nada na língua impederia a construção de
enunciados do tipo “Nevou uma neve ontem”, desaglutinando, no plano da organicidade
(lingüístico), o sujeito (uma neve). Isso comumente não acontece, visto que os falantes da
língua tendem a evitar a redundância lingüística. Além disso, inserir no diálogo, em
situações discursivas como estas, a informação (uma neve) não auxilia a compreenssão
entre os partipantes, já que, segundo Bakhtin (1981), compreender é um ato responsivo
ativo.
Introduzir no diálogo, portanto, a informação (uma neve), no enunciado em análise,
torna-se desnecessário, pois ela pertence à memória discursiva dos indivíduos envolvidos.
Assim, ao proferi-la, não se dá a possibilidade do interlocutor contrapô-la, mencionando,
por exemplo, que não nevou “neve” e sim “impressora”, configurando a compreensão
responsiva ativa, proposta pelo ideário bakhtiniano.
Ao apresentar sua proposta enunciativa no tocante ao sujeito, o lingüista em
evidência postula ser necessário situar o lugar de sujeito concernente à demanda de
saturação22. Dias (ibidem, p.8) afirma que “vamos partir da premissa de que lugar é o
ponto de convergência de uma demanda de saturação. E ao se constituir em ponto de
convergência, o sujeito aciona o verbo”. Assim, em “nevou ontem”, o sujeito é “uma neve”
por estar materializando um lugar constituído a partir da relação entre o plano da
organicidade e o plano do enunciável.
No sentido de apresentar o conceito de aglutinação sintática discursiva, o sujeito
gramatical foi tomado como um dos exemplos, visto que se percebeu a possibilidade de
ocorrência do fenômeno citado nas orações que não possuiriam sujeito, segundo a G.T.
Para tanto, é relevante pontuar que, para nós, o sujeito de fato é o acionador do verbo,
configurando-se através de um lugar que ora pode se fazer presente no lingüístico
(sintaxe), ora pode ser ocultado (efeito de sentido), como pensou Dias. Buscando aclarar
22 A demanda de saturação é a relação entre o plano da organicidade e o plano do enunciável, como já foi explanado anteriormente.
60ainda mais essas considerações, observe-se, nos exemplos (22) e (23), como os gramáticos
tradicionais analisariam:
Ex. (22)
Choveu pouco no último final de semana em diversas regiões do
Estado. (Folha, 22 de dezembro de 1998, p. 2-5)
Ex. (23)
Retrato do poder: assim que circulou que Lafer seria o titular do
desenvolvimento choveram telefonemas para José Gregoli (direitos
humanos), amigo do escolhido, todos para elogiar. (Folha, 23 de dezembro
de 1998, p. 1-4)
Envoltos pelos posicionamentos veiculados pela G.T., constata-se que o sujeito seria
um dos termos essenciais da oração. Todavia, essa corrente gramatical assume que, em
algumas orações, não há sujeito, dentre elas, aquelas que contêm verbos indicando
fenômeno da natureza, conforme ocorreu em (22). Assim, ao pronunciar enunciados
como: a) “Choveu pouco no último final de semana em diversas regiões do Estado”,
presente no exemplo citado, seria constatado que o verbo chover indica literalmente seu
sentido real, por isso, não teria sujeito.
Para nós, de fato o verbo chover, nesta situação, indica fenômeno da natureza. No
dicionário Aurélio, a palavra focalizada é registrada como originária do Latim vulgar
(plovere) e significa:
Cair água em gotas da atmosfera: “Choveu; as ruas ainda estão molhadas.”
(José de Alencar, A Pata da Gazela). 2. Fig. Cair da atmosfera: Choveu
maná no deserto. 3. Fig. Cair do alto em abundância. Choveram pétalas
sobre suas cabeças. 4. Fig. Cair ou sobreviver em abundância. Choviam
esmolas em seu chapéu. 5. Fazer cair em abundância; deitar, derramar. A
mangueira chovia frutos maduros no chão (1999, p.463).
61Diante deste verbete, não se pode negar que uma das acepções do verbo “chover” diz
respeito à água que cai do céu naturalmente. Todavia, afirmar que, em (22), seria uma
oração sem sujeito, já que o verbo mencionado está sendo usado no sentido denotativo,
resume o escopo gramatical tradicional.
Seguindo os apontamentos tradicionais, verifica-se que se esse mesmo verbo estiver
sendo usado no seu sentido conotativo, ilustrado no verbete acima, haveria a
materialização do sujeito no sintagma, como aconteceu em (23), no enunciado
“...choveram telefonemas para José Gregoli...”. Desta forma, o sujeito não seria
silenciado, sendo possível percebê-lo lingüisticamente, conforme mencionaram
anteriormente Paschoalin & Spadoto (1996). Ou melhor, neste enunciado, o verbo chover
não indica fenômeno da natureza, pois, em vez de água, choveram telefonemas,
materializando-se, no lingüístico, um sujeito simples (telefonemas).
À luz dos apontamentos formalistas, Perini (1995) afirma que a função sintática em
foco também seria um fenômeno estritamente lingüístico, o que anula a possibilidade de
esta função ter um caráter semântico/discursivo. Para ele, o sujeito seria um termo
lingüístico que deveria concordar com o núcleo do predicado (NdP), como será mostrado
nos exemplos (22) e (23), citados anteriormente.
Para a análise que será feita nesses exemplos, é necessário aplicar o teste, que leva em
consideração a relação singular-plural, proposto pelo referido autor, no intuito de se
validar ou refutar seu conceito referente ao sujeito. A princípio, enfatiza-se que esse teste
só será aplicado em (23), visto que, no enunciado (22), seria descartada a possibilidade de
haver sujeito, de acordo com essa teoria, pois não se encontra nenhum termo que concorde
com o (NdP) e seja determinado como sujeito.
1º Teste
Ex. (23) ...Choveram telefonemas para José Gregoli...
1º Frase (singular) Choveu telefonema para José Gregoli.
2º Frase (plural) Choveram telefonemas para José Gregoli.
62Partindo dos preceitos supramencionados, nota-se que, segundo Perini (ibidem), o
sujeito do enunciado (23) seria “telefonemas” porque é o termo que está mantendo uma
relação de concordância com o verbo.
A nosso ver, tanto a G.T. quanto à Gramática Formalista, representada aqui por Perini,
apresentam um conceito de sujeito insuficiente, uma vez que se prendem essencialmente
ao lingüístico, negando os aspectos discursivos.
Considerando os apontamentos teóricos de ambas, verifica-se, ainda, que haveria a
possibilidade de não haver sujeito (explícito lingüisticamente) em determinados
enunciados, justamente por essas correntes gramaticais não abrirem os olhos para os fatos
discursivos da língua.
Na nossa concepção, tanto em (22) como em (23) há sujeito. Naquela, o sujeito (a
chuva) aglutina-se no núcleo verbal (choveu), por isso, não está materializado
lingüisticamente. Aliás, apesar de poder causar certo estranhamento, nada impediria a
realização de enunciados do tipo “Choveu uma chuva”. Isto comumente não acontece,
visto que a usualidade lingüística tenta evitar, em cenas enunciativas distintas, situações
redundantes.
Segundo Bakhtin (1981), a compreensão é um ato responsivo ativo, no qual o locutor
profere uma palavra e o interlocutor contrapõe com outra, mediante considerações
anteriores. Nesta situação, a contraposição de palavras auxilia a evolução do diálogo, pois
os participantes podem ratificar ou refutar algo que foi dito pelo outro. Desta forma, se o
interlocutor sabe que o verbo chover indica indubitavelmente fenômeno da natureza, é
desnecessário produzir enunciados do tipo “Choveu uma chuva ontem”, desaglutinando o
sujeito (uma chuva) do núcleo verbal. Neste caso, é preferível construir enunciados como
“Choveu pouco no último final de semana em diversas regiões do Estado.”, como ocorreu
em (22). Isto porque o próprio verbo já carrega tal sentido, evitando, assim, essa
desaglutinação sintática. Em nada evoluiria, com isto, a compreensão dos indivíduos.
Desta maneira, observa-se que, no exemplo (22), há a tentativa de se evitar a
redundância lingüística, já que entender significa contrapor palavras que se digladiam,
impedindo, portanto, a desaglutinação sintática.
Entretanto, se se recorrer à enunciação, vista pela ótica bakhtiniana, será notado que,
no enunciado “Choveu pouco no último final de semana em diversas regiões do Estado.”,
apesar de o sujeito não ser perceptível no sintagma (uma chuva), aglutinando-se no núcleo
63verbal, ele existe, já que é o acionador do verbo. Assim, não se pode silenciá-lo,
sufocando sua existência, como fazem as duas correntes gramaticais citadas
anteriormente, uma vez que, adentrando no discurso, consegue-se percebê-lo.
Pode-se, então, praticar essa desaglutinação sintática, sem nenhum constrangimento,
resultando em enunciados como “Choveu uma chuva fina aí nesses tempos” ou “Não
choveu uma chuva fina aí” para caracterizar o tipo de chuva, visto que o funcionamento
lingüístico permite isso. Observe-se que, nestes casos, o locutor, ao caracterizar o tipo de
chuva, dá a possibilidade ao interlocutor de ratificar ou refutar, a partir de uma
contrapalavra, essa informação, possibilitando a evolução da compreensão.
Talvez seja este o motivo, nos enunciados analisados, que possibilitem a
desaglutinação sintática. Assim, o sujeito da oração analisada continuará sendo “a
chuva”, por ser o elemento acionador do verbo, tirando-o de sua forma dicionarizada. Para
Dias (2001), esse sujeito não se configura no plano da organicidade, que diz respeito ao
lugar material da sintaxe. Todavia, pode ser depreendido no plano do enunciável, o qual se
refere às forças discursivas que configuram esse lugar como acionador do verbo. Há,
então, no verbo em pauta, a junção, no plano da organicidade, do sujeito e do núcleo
verbal e a disjunção, no plano do enunciável, dessas funções sintáticas.
Enquanto, no exemplo (23), “...choveram telefonemas para José Gregoli...”,
“telefonemas” representa o sujeito, já que é o responsável pelo acionamento verbal. Veja-
se que, nesse caso, o sujeito se materializa no sintagma, visto que não pertence ao mesmo
campo semântico do verbo em análise. Desta forma, há aqui, ao mencionar que choveram
“telefonemas” e não “canivetes”, por exemplo, a possibilidade de o interlocutor contrapor
a informação veiculada através do sujeito gramatical (telefonemas), dando possibilidade
ao diálogo de prosseguir.
A aglutinação sintática discursiva, por sua vez, afeta outros enunciados taxados pela
G.T. como oração sem sujeito. A exemplo disso, podem-se citar aqueles que comportam
os verbos “nevar” e “ventar”.
Segundo Aurélio, o verbo nevar é originário do Latim vulgar (nevare) e significa:
1. Cair neve: “Não choveu, nem ventou muito, não chegou a nevar.
(Machado de Assis, A Semana, II, p. 254). 2. Tornar-se branco, branquejar.
3. Cobrir de neve. 4. Tornar alvo como a neve: “A grande lua subia no céu,
64alva e serena, nevando a mata e os campos.” (Coelho Neto, Sertões, p. 191).
5. Esfriar por meio de neve ou de gelo (ibidem, p. 1405).
À luz do verbete acima, nota-se que é conferido ao verbo “nevar” apenas o sentido
denotativo, diferentemente do que ocorre com o verbo “chover”. Pensando nessas
particularidades, observe os exemplos (24), (25), (26) e (27):
Ex. (24)
Santa Catarina viveu ontem uma situação rara para as vésperas da
primavera: desde que se tem informações sobre precipitações de neve em
São Joaquim (a cidade mais fria do estado), pela nona vez nevou no mês de
setembro. (Folha, 16 de setembro de 1999, p. 3-6)
Ex. (25)
As temperaturas estão muito baixas na região e nevou nos últimos dias na
Tchetchênia e na Inguchétia. (Folha, 12 de novembro de 1999, p. 1-15)
Ex. (26)
O diretor do Parque de Itatiaia, Carlos Eduardo Zacan, disse que nevou de
madrugada. As árvores ficaram cobertas de gelo e um dos postes da região
caiu, deixando um dos centros de fiscalização do parque sem energia
elétrica. (Folha, 17 de agosto de 1999, p. 3-4)
E.x. (27)
Em Rio Branco (Acre) e Porto Velho (Rondônia), a temperatura chegou a
11º C na madrugada de domingo. A última vez que o termômetro marcou
índice tão baixo no Norte foi há dez anos. No Rio Grande do Sul, onde
nevou nas cidades de Gramado e Cambará do Sul, a temperatura mínima
chegou a -5º C nas primeiras horas.
Com base na G.T., constata-se que, em (24), (25), (26) e (27), há enunciados que
contêm o verbo “nevar”, portanto, todos possuiriam orações sem sujeito. Em (24), a
construção lingüística com o verbo em análise não teria sujeito, visto que se trata de
fenômeno da natureza. Neste caso, ao se proferir “...pela nona vez nevou no mês de
65setembro”, seria “impossível” a materialização, na estrutura lingüística, da função
sintática em foco. O mesmo ocorre em (25), quando se enuncia “As temperaturas estão
muito baixas na região e nevou nos últimos dias na Tchetchênia e na Inguchétia”. Aqui, já
que o verbo em discussão continua sendo usado em seu sentido real, seria incabível se
falar em sujeito.
Em (26), quando se escreve “O diretor do Parque de Itatiaia, Carlos Eduardo Zacan,
disse que nevou de madrugada”, nota-se que a palavra “nevar” também está sendo usada
em seu sentido literal, por isso, a G.T., insiste em afirmar que não haveria sujeito.
Seguindo essas diretrizes, verifica-se que o exemplo (27) também seria aludido com uma
oração sem sujeito, uma vez que, no enunciado “No Rio Grande do Sul, onde nevou nas
cidades de Gramado e Cambará do Sul, a temperatura mínima chegou a -5º C nas
primeiras horas”, o verbo “nevar” corresponde a um ato natural.
Na nossa concepção, em (24), (25), (26) e (27) têm sujeito, já que está função sintática
se encontra aglutinada no núcleo verbal (nevou). A título de exemplificação, pode-se
frisar que, em (24), ao se afirmar que “...pela nona vez nevou no mês de setembro”, apesar
de não estar presente no sintagma, o sujeito não pode ser simplesmente negado, pois ele
existe no plano do enunciável. Diante dessa situação, não é inconveniente aferir que nada
na língua impediria os indivíduos envolvidos no diálogo de proferir enunciados como
“pela nona vez nevou uma neve no mês de setembro”. No entanto, isso não acontece
porque a usualidade lingüística busca não ser, em situações discursivas diversas,
redundante.
Se forem retomadas as considerações defendidas por Bakhtin (1981), no tópico (1.1),
será percebido que a língua se constitui a partir dos processos interativos entre indivíduos
organizados socialmente. Neste sentido, pode-se dizer que talvez seja inerente ao âmbito
social a pretensão de se evitar a redundância lingüística. Além disso, as considerações
bakhtinianas constatam que a compreensão entre os sujeitos é ativa-responsiva. Isto é, em
uma situação dialógica, compreender o outro significa contrapor palavras que se
digladiam.
Com isso, percebe-se que, ao se construir um enunciado do tipo “pela nona vez nevou
uma neve no mês de setembro”, o diálogo não evoluiria, já que faz parte da memória
discursiva dos indivíduos envolvidos o fato de “nevar uma neve”. Uma expressão como
esta não daria a possibilidade do outro refutar afirmando que não nevou “neve” e sim
66“sangue”. Neste sentido, observa-se que, o fato da usualidade lingüística, em momentos
específicos, evitar o redundante, não autoriza a G.T. afirmar que, em enunciados como
(24), (25), (26) e (27), não haveria sujeito.
A exemplo disto, tem-se ainda o verbo “ventar”. De acordo com Aurélio, tal palavra
possui algumas significações, dentre elas:
Haver vento: “Chove, venta e neva, / Congela-se o rio.” (Fr. Agostinho da
Cruz, Obras, p. 166); Fazia frio, ventava. 2. Soprar o vento com força;
ventanejar: “Venta e relampeja.”. “A tempestade ruge.” (Martins Fontes,
Verão, p. 35). 3. Manifestar-se ou aparecer de súbito, de repente: Um
entusiasmo ventou – e agora um homem sem esperança é o mais
esperançoso dos homens. 4. Fam. Soltar ventosidades. Ventanejar. 5. Ser
propício, favorável; bafejar: ventou-lhe a sorte: hoje é homem rico. 6.
Ventar: com as palavras animadoras do amigo, a coragem ventou em sua
alma desalentada. 7. Trazer inesperadamente: A nova carreira ventou-lhe
inúmeras oportunidades. (Impess, no sentido próprio) (ibidem, p. 2057).
Diante do verbete acima, nota-se que se atribui à palavra “ventar” tanto um sentido
denotativo como um conotativo. No entanto, segundo a G.T., quando o verbo em destaque
está sendo usado indicando fenômeno da natureza, trata-se de uma oração sem sujeito,
conforme será mostrado nos exemplos a seguir:
Ex. (28)
Na beira da piscina, um homem que ocupava a raia vizinha observou: a
água está mais fria. Eu disse: “É essa noite ventou”. Ele disse é outono. Foi
aí que me dei conta, olhando para a luz filtrada da manhã na Gávea que
alguma coisa estava mudando. (Folha, 22 de março de 1999, p. 6-7)
Ex. (29)
Apesar de o rodízio ter retirado ontem 254 toneladas de CO do ar, o vento
não foi suficiente para dispensar o poluente. Medições feitas pela Cetesb
entre as 16h de domingo registram que ventou apenas 42, 39% do tempo em
que realizada a medição. (Folha, 12 de maio de 1988, p. 3)
67Ex. (30)
A meteorologia também prevê a possibilidade de vendavais e chuvas de
granizo, principalmente, no oeste catarinense. Ontem, ventou forte em São
José (Grande Florianópolis), sem causar grande prejuízo. (Folha, 30 de
outubro de 1997, p. 4)
Ex. (31)
Das 22 estações mediadoras da Cetesb na Grande São Paulo, 11 registram
qualidade inadequada do ar-anteontem foram 16 estações. O ar esteve
regular ontem em dez estações e bom em apenas uma (Mooca). “Ventou um
pouco mais hoje (ontem) e a situação melhorou ligeiramente”, disse Cláudio
Alonso, gerente de qualidade ambiental da Cetesb.
Seguindo o ideário defendido pela G. T., verifica-se que, em (28), (29), (30) e (31), o
verbo “ventar” está sendo usado em seu sentido denotativo. Isto constituiria orações sem
sujeito. Para nós, ao se mencionar, em (28), “É essa noite ventou”, o verbo em evidência
representa um fenômeno da natureza, consoante também aconteceu em (29), (30) e (31).
No entanto, isso não autoriza a G.T. afirmar que não haveria sujeito nesses enunciados.
Apesar de esta função sintática não estar expressa lingüisticamente, faz-se presente no
plano do enunciável.
Assim, postula-se que nada na constituição lingüística impede a elaboração de
enunciados como “É essa noite ventou um vento”. Aqui o sujeito (um vento) se encontra
desaglutinado do núcleo verbal “ventou”, já que, na nossa concepção, à luz dos
apontamentos discorridos por Dias (2001), o sujeito é o acionador do verbo.
Em situações como (28), (29), (30) e (31), o sujeito do verbo “ventar” comumente não
se desaglutina do núcleo verbal, uma vez que faz parte do mesmo campo semântico, sendo
desnecessário para a compreensão do outro. Retornando novamente ao que Bakhtin
(1981) pontua sobre a compreensão, nota-se que em nada auxiliaria a evolução do diálogo
entre os sujeitos proferir “É essa noite ventou um vento”. Isto ocorre visto que “um vento”
é uma informação supostamente compartilhada entre os envolvidos do diálogo. O
acréscimo desta informação não dá, portanto, a possibilidade de o interlocutor contrapô-la
mencionado que não ventou “um vento” e sim “um travesseiro”, por exemplo.
68Por fim, constata-se que, na Língua Portuguesa, a aglutinação sintática discursiva é um
processo de origem enunciativa, o qual se constitui a partir do diálogo entre sujeitos,
organizados socialmente. Este fenômeno se materializa através de um lugar, que pode ser
preenchido lingüisticamente (sintaxe) ou ocultado (efeito de sentido). Todavia,
recorrendo-se ao discurso, ele é notável. A função sintática sujeito, em algumas situações,
pode estar aglutinada no núcleo verbal, assim como foi mostrado anteriormente,
evidenciando, na perspectiva enunciativa bakhtiniana, um processo aglutinante.
Pelo exposto, percebe-se que um dos pontos da G.T. (a aglutinação) foi, à luz da teoria
bakhtiniana, redefinido e exemplificado, neste momento, a partir de dois aspectos
sintáticos distintos: o sujeito e o núcleo verbal. Para tanto, também foram seguidas
algumas das diretrizes dos PCN quanto ao ensino da Língua Portuguesa.
Segundo os PCN, consoante foi registrado no tópico (1.4), o ensino do português por
muito tempo centrou-se na análise sistemática do enunciado abordada de forma
descontextualizada. Isto aconteceu já que, em sala de aula, não se lançava mão do texto
para tê-lo como um suporte pedagógico. Suporte este que possibilitaria, numa perspectiva
discursiva, um estudo lingüístico adequado. Ensinar o português passaria a ser, portanto,
uma atividade epilingüística, refletindo-se sobre o funcionar da língua, assim como
afirmou Geraldi (2002).
Além disso, percebeu-se ainda a limitação teórica da G.T., uma vez que esta gramática
se pauta exclusivamente na estrutura lingüística para apresentar seus conceitos chave,
negligenciando os fatos discursivos da língua. Uma atitude como esta resume
indubitavelmente a possibilidade de aplicação de alguns pontos proporcionados pela
própria língua, em específico a morfologia, a fonologia e a sintaxe.
Pensando nisto, não é de todo descabido afirmar-se que, através do conceito de
aglutinação sintática discursiva, pode-se, em sala de aula, ensinar a Língua Portuguesa
levando em consideração tanto a estrutura lingüística como o discurso, refletindo este
ensino, a partir do texto, sobre o funcionamento da língua. Desta forma, o ensino do
português estará adequado a algumas diretrizes propostas pelos PCN. No intuito de
ratificar essas considerações, faz-se necessário ainda apresentar, no tópico (3.1.2), como a
aglutinação, na nossa perspectiva, estende-se ao complemento verbal e, no tópico (3.1.3),
como se aplica ao adjunto adverbial de instrumento.
693.1.2 O complemento verbal
Segundo a G.T., a Língua Portuguesa, concernente à transitividade verbal, apresenta
inúmeros verbos que podem ser elencados em duas categorias: intransitivo e transitivo
(direto, indireto e bitransitivo). Aquele diz respeito aos verbos que não precisariam de
complementação em seu sentido, já que comportariam as informações necessárias para
seu entendimento.
Assim, em “Meu avô morreu do coração”, o verbo “morrer” por si só daria a
informação necessária para se entender a noção contida no enunciado, não necessitando
de nenhum complemento para pontuar sua significação. O segmento “do coração” seria
um adjunto adverbial de causa, acrescentando a informação da causa mortis do sujeito,
sem atuar como complemento verbal. A ação de morrer, desta maneira, teria seu sentido
completo, significando em si mesma.
Os verbos transitivos, ao contrário, seriam aqueles que não apresentariam sentido
completo, necessitando de complementos. Esses verbos se subdividiriam em três versões:
transitivos diretos, transitivos indiretos e bitransitivos. Aqueles exigiriam a presença de
complemento verbal sem o auxílio da preposição, enquanto com relação aos verbos
transitivos indiretos, a regência exigiria a presença de complemento verbal precedido por
preposição. A título de ilustração, veja os exemplos:
(32) A diarista fez uma faxina completa.
(33) O aluno precisou de ajuda para concluir a tarefa.
No exemplo (32), tem-se o verbo “fazer”, cuja regência neste contexto exige a
presença de complemento verbal sem o auxílio de preposição (uma faxina completa).
Este complemento verbal que não aceita a presença de preposição e que ocorre quando o
verbo é transitivo direto é denominado de “objeto direto”. Já no exemplo (33), o verbo
“precisar” demanda o complemento verbal regido de preposição (de ajuda), denominado
“objeto indireto”.
No tocante ao bitransitivo, pode-se dizer que ele se configura pela existência de um
objeto direto e um indireto, concomitantemente. Neste sentido, em “Rafael deu rosas à
Fabíola”, observa-se que o verbo “dar” foi complementado por duas informações: a)
70“rosas” e b) “a Fabíola”, as quais representariam os objetos direto e indireto
respectivamente. Neste momento, no sentido de atender às preocupações emergenciais da
nossa dissertação, o objeto direto será tomado como suporte investigativo, analisando-se
que tipo de abordagem os gramáticos em estudo conferem a esta entidade lingüística.
Cunha apresenta a seguinte definição:
OBJETO DIRETO é o complemento de um verbo transitivo direto, ou seja,
o complemento que normalmente vem ligado ao verbo sem preposição e
indica o ser para o qual se dirige a ação verbal (1970, p. 99).
A partir desta definição, constata-se que a predicação verbal estaria diretamente
relacionada aos verbos performativos. Como exemplos de objeto direto, o autor apresenta
as seguintes ocorrências:
(34)Vou descobrir mundos, quero glória e fama!... (Guerra Junqueiro) – o
objeto direto é representado por substantivo.
(35) Os jornais nada publicaram. (Carlos Drummond de Andrade) - o objeto
direto é representado por pronome substantivo.
(36) Daria cinco ou seis, se pudesse, respondeu Rubião. (Machado de Assis)
- o objeto direto é representado por numeral.
(37) Como quem compõe roupas / O outrora compúnhamos... (Ricardo
Reis) - o objeto direto é representado por palavra substantivada.
(38) – Já lhe disse que não sei. (Miguel Torga) - o objeto direto é
representado por oração subordinada substantiva objetiva direta.
Chama-se a atenção para o fato de que Cunha (ibidem) aborda, no exemplo (38), o
objeto direto oracional, no caso em que se tem uma oração inteira exercendo a função
sintática de objeto direto. As demais gramáticas analisadas não aludem à oração
subordinada substantiva objetiva direta no capítulo sobre transitividade verbal, mas no
capítulo que trata da subordinação.
A respeito do objeto direto preposicionado, o autor assevera que, em determinados
casos, ocorre a presença principalmente da preposição “a” regendo o objeto direto.
Bechara (1999) aponta para o fato de que este processo é, na verdade, bastante comum,
71ocorrendo com uma certa freqüência. Cunha (ibidem, p. 100) afirma que o objeto direto
preposicionado ocorre mediante regras específicas, a saber: a) “com verbos que
exprimem sentimentos do falante” e b) “com o intuito de evitar ambigüidades” e c)
“quando o objeto direto vem antecipado na oração, deve ser precedido por preposição”.
Em relação ao primeiro caso, verifica-se que, em “Não amo a ninguém, Pedro23” (Ciro
dos Anjos), o verbo “amar” seria transitivo direto, exigindo, então, um complemento
verbal destituído de preposição, no caso, um objeto direto. Entretanto, o verbo “amar”,
que expressa um sentimento do falante, levaria o objeto direto a se preposicionar. Esta
explicação da G.T., a nosso ver, carece de rigor analítico, demonstrando um alto grau de
subjetivismo.
No que diz respeito ao segundo caso, constata-se, em “Como sempre, ao mal venceu o
bem”, que o verbo “vencer”, transitivo direto, exigiria como complemento um objeto
direto. Se não houvesse o objeto direto preposicionado neste caso, o complemento verbal
seria confundido com o sujeito, e a oração teria o seu sentido completamente alterado:
“Como sempre, o mal venceu o bem”.
Quanto ao terceiro caso, nota-se que, quando o objeto direto vem antecipado na
oração, deveria ser precedido por preposição como ocorreu nos seguintes exemplos: (39)
A homem pobre ninguém roube e (40) A médico, confessor e letrado nunca enganes. O
que ocorre nestas situações é que as orações não estão dispostas na ordem direta,
exigindo, de acordo com a G.T., o auxílio do objeto direto preposicionado.
Cegalla define o objeto direto como sendo “o complemento dos verbos de predicação
incompleta, não regido, normalmente, de preposição”. O autor apresenta os seguintes
exemplos:
(41) As plantas purificam o ar.
(42) “Nunca mais ele arpoara um peixe-boi.” (Ferreira de Castro)
(43) Procurei o livro, mas não o encontrei.
(44) Ninguém me visitou.
(45) Esta é a casa que eu vendi.
(46) Houve grandes festejos (1988, p. 294).
23 Todos os exemplos do gramático em discussão no tocante ao objeto direto preposicionado foram retirados de sua gramática na página citada.
72Uma breve análise dos exemplos permite afirmar que em (41), (42) e (46) o objeto
direto é representado por um grupo nominal cujo núcleo é um substantivo. Em (43), o
objeto direto é representado pelo grupo nominal “o livro” e retomado na oração seguinte
pelo pronome oblíquo “o”, numa referência anafórica. Em (44), o objeto direto é
representado pelo pronome pessoal oblíquo “me”. O exemplo (45) chamou a atenção de
forma particular, pois não é tão usual a utilização do pronome relativo “que” exercendo a
função de objeto direto.
Para Cegalla, o objeto direto, por sua vez, pode apresentar as seguintes características:
(a) capacidade de completar a predicação dos verbos transitivos diretos;
(b) não é normalmente regido por preposição;
(c) traduz o ser sobre o qual recai a ação expressa por um verbo ativo”,
como em “Caim matou Abel”;
(d) quando a oração é convertida da voz ativa para a passiva, o objeto
direto torna-se o sujeito da oração: Abel foi morto por Caim (ibidem, p.
294).
Em relação ao objeto direto preposicionado, Cegalla (ibidem, p. 295-8) discorre sobre
o assunto com um maior nível de detimento do que o conferido por Cunha (ibidem). O
primeiro autor, porém, não se preocupa em elencar as possíveis causas para que o objeto
direto venha, em um contexto especial, a aceitar a preposição em sua regência. Preocupa-
se, isto sim, com a delimitação das situações lingüísticas que favorecerão, de acordo com
a G.T., a ocorrência de objeto direto preposicionado. Seriam as seguintes: a) “quando o
objeto direto for um pronome pessoal tônico”, b) “quando o objeto direto for o pronome
relativo quem”, c) “para garantir a clareza da frase”, d) “com nomes comuns ou próprios
na expressão dos sentimentos e como ferramenta para promover a eufonia da oração”, e)
“quando o objeto direto é deslocado para o início da oração, para conferir-lhe ênfase”, f)
“quando o objeto direto for o numeral ambos (as)” e g) “com alguns pronomes
indefinidos, especialmente quando eles se referem a pessoas”.
Quanto à primeira manifestação, verifica-se que, em “Amava-a tanto como a nós24” (J.
Geraldo Vieira), o verbo amar, mesmo sendo transitivo direto, exigiria o objeto direto 24 Os exemplos citados a respeito do objeto direto preposicionado, na perspectiva do autor em discussão, foram retirados de sua gramática, na página citada.
73preposicionado em virtude do caráter tônico do pronome pessoal reto “nós”. Referente à
segunda manifestação, pode-se supor que, em “Pedro Severiano tinha um filho a quem
idolatrava” (C. de Leat), o verbo “ter” seria transitivo direto. Embora o autor não forneça
uma explicação para a ocorrência do objeto direto preposicionado, ela provavelmente se
deveria em razão da eufonia do enunciado.
No concernente à terceira manifestação, constata-se que, em “Convence, enfim, ao pai
o filho amado”, o objeto direto preposicionado evita que o objeto seja tomado por sujeito.
Com a ausência da preposição regendo o objeto, a oração teria o seu sentido alterado:
“Convence, enfim, o pai o filho”. Em relação à quarta manifestação, têm-se os exemplos:
(47) “Judas traiu a Cristo” e (48) “Amemos a Deus sobre todas as coisas”.
Em (48), ocorre a presença do nome próprio “Deus”, favorecendo o objeto direto
preposicionado. Em (47), ocorre simultaneamente a presença do nome próprio e a
expressão dos sentimentos do falante, por mais subjetivo e arbitrário que este critério
possa ser.
Relativo à quinta manifestação, nota-se que, em “A você é que não enganam”, o
objeto direto é regido por preposição neste caso por estar deslocado de sua posição
canônica, que seria à direita do verbo. Ao passo que, na sexta manifestação, em “O
aguaceiro caiu, molhou a ambos” (Aníbal Machado), neste caso, “a ambos” atuaria como
o objeto direto preposicionado. Já, na sétima manifestação, em “Se todos são teus irmãos,
por que amas a uns e odeias a outros?”, os verbos “amar” e “odiar”, transitivos diretos,
receberiam objeto direto preposicionado em virtude da presença dos pronomes
indefinidos “uns” e “outros”, referindo-se a pessoas.
No tocante ao objeto direto pleonástico, definido como um complemento verbal
enfático ou redundante, Cegalla aponta que ele ocorre para conferir destaque à idéia
contida no objeto direto. O autor apresenta como exemplos:
(49) O dinheiro, Jaime o trazia escondido nas mangas da camisa.
(50) Os lucros, ninguém os viu.
(51) O bem, muitos o louvam, mas poucos o seguem.
(52) “Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade”. (M. de Assis)
(53) “De mais a mais, frutas os passarinhos conseguem-nas pelo seu
próprio esforço”. (Vivaldo Coaraci)
74(54) “Aquelas veemências, quem não as ouviu de voz não as viu de letra?”
(Povina Cavalcanti) (ibidem, 98).
Com exceção do exemplo (53), os demais apresentam o objeto direto deslocado para o
início da oração e retomado anaforicamente por um pronome oblíquo. Em (52), como o
núcleo do objeto direto está elíptico, ele é representado primeiramente pelo artigo
definido “os” e, em seguida, retomado anaforicamente pelo pronome oblíquo “os”.
Paschoalin & Spadoto (1996) apresentam uma abordagem bem mais sucinta do objeto
direto. Eles o definem como sendo “o termo que completa o sentido do verbo transitivo
direto, ligando-se a ele sem o auxílio necessário da preposição” (p.200). Os autores não
fazem menção ao objeto direto preposicionado nem ao pleonástico. Entretanto, frisa-se a
seguinte observação de rodapé (p. 200):
Há verbos intransitivos que, acidentalmente, podem aparecer como verbos
transitivos diretos.
Exemplos:
O garotinho chorou lágrimas doídas pela perda do cachorro. (Objeto direto)
Nós sonhamos o sonho dos justos. (Objeto direto)
O que os autores consideram um acidente sintático, para nós, é um fator constitutivo
da língua, o qual é explicado a partir do processo de aglutinação sintática discursiva,
conforme será visto, nos exemplos jornalísticos, adiante. Em “O garotinho chorou lágrimas
doídas pela perda do cachorro”, o verbo não é, a nosso ver, intransitivo, já que o objeto
direto (lágrimas) se encontra aglutinado ao núcleo verbal (chorou), podendo desaglutinar-
se de acordo com a intenção enunciativa do falante. Neste caso, essa desaglutinação foi
possível, já que se caracterizou o tipo de lágrima, dando a possibilidade de o sujeito,
inserido no diálogo, contrapor esta informação, afirmando “O garotinho chorou lágrimas
alegres” e não “doídas”, por exemplo. Com isso, a compreensão entre os sujeitos ocorre
ativamente, com pensava o Bakhtin (1981).
Com este recurso de caracterização, não ficou, portanto, marcada veementemente a
redundância lingüística, que causaria certo estranhamento em construções como “O
garoto chorou lágrimas pela perda do cachorro”.
75O mesmo ocorre com o enunciado “Nós sonhamos o sonho dos justos”, visto que o
objeto “o sonho dos justos” desaglutinou-se do verbo “sonhar”. Aqui, nota-se mais uma
vez a necessidade de o falante de especificar o tipo de sonho. Talvez, se este mesmo
sujeito proferisse “Nós sonhamos o sonho”, a usualidade lingüística achasse
desnecessária a desaglutinação do objeto direto (o sonho), uma vez que faz parte do
campo semântico do verbo. Assim, a complementação verbal em foco se torna, em
algumas situações enunciativas, desnecessária, pois é compartilhada pelos sujeitos
envolvidos no diálogo. Inseri-la no discurso não auxiliaria na compreensão desses
sujeitos, visto que compreender é, segundo os apontamentos bakhtinianos, um ato ativo e
responsivo.
Em ambos os casos, não ocorre, para nós, a intransitividade verbal nem tão pouco um
acidente sintático, uma vez que, ao se recorrer ao plano do enunciável, é possível
depreender os objetos diretos materializados lingüisticamente nos enunciados analisados.
Para Bechara (1999), o objeto direto, também denominado de complemento direto, é
enquadrado entre os tipos de argumentos determinantes do predicado complexo. O autor
recorre aqui ao vocabulário mais específico da Semântica, que define os complementos
como argumentos e os verbos como predicados. Predicados complexos seriam os verbos
que exigem complementos, ou, no vocabulário tradicional, os verbos transitivos. A
respeito do objeto direto, afirma o autor:
O predicado complexo acompanha-se de tipos diferentes de argumentos,
conhecidos por complementos verbais.
O primeiro deles é o complemento direto, também chamado objeto direto,
representado por um signo léxico de natureza substantiva (substantivo ou
pronome) não introduzido por preposição necessária (ibidem, p. 416).
Os predicados complexos, ou verbos transitivos, seriam acompanhados por diferentes
complementos, que são, de acordo com a tradição gramatical, os objetos direto e indireto.
Aquele é definido pelo autor como sendo o argumento de valor substantivo que
acompanha os verbos transitivos diretos e que não demanda preposição em sua regência
em condições normais. Para ilustrar o objeto direto, o autor apresenta, na página citada,
os seguintes exemplos:
76(55) Os vizinhos não viram o incêndio.
(56) Não encontramos os responsáveis.
(57) O pai comprou nova casa.
O autor pondera que o objeto direto se distinguiria do sujeito por vir à direita do verbo
(enquanto a posição canônica do sujeito é à esquerda do verbo) e por não influir em sua
flexão. Segundo Bechara (ibidem), a troca de posição do objeto direto na oração deve ser
feita de maneira a não gerar ambigüidades ou cacofonias, em especial nos textos escritos.
No texto oral, seriam as próprias pausas e a entonação os fatores que garantiriam que a
intenção comunicativa primordial do falante seja respeitada. Torna-se patente, mediante o
posicionamento do autor, a sua preocupação com a pretensa pureza lingüística,
desconsiderando-se a sua condição constitutiva de opacidade.
Bechara (ibidem, p. 416) sugere algumas “estratégias” para a identificação do objeto
direto, que até certo ponto dialogam com o que fora afirmado anteriormente pelos autores
citados. Os elementos de identificação seriam: a) a não-presença de preposição
necessária; b) a possibilidade de substituição do objeto direto pelos pronomes pessoais
oblíquos “o”, “a”, “os”, “as”; c) a possibilidade de conversão da oração na voz ativa para
a voz passiva; d) o objeto direto pode ser substituído pelo pronome relativo “quem” e e) o
objeto direto pode ser transposto para a esquerda do verbo, configurando o fenômeno de
topicalização.
Em relação à segunda possibilidade, pode-se supor que, em “Os vizinhos não viram o
incêndio. Os vizinhos não o viram25”, o objeto direto “o vizinho” foi substituído no
enunciado seguinte pelo pronome oblíquo “o”. Quanto à terceira possibilidade, nota-se
que, em “Os vizinhos não viram o incêndio e O incêndio não foi visto pelos vizinhos”, “o
incêndio”, na voz ativa, primeiro exemplo, atuaria como objeto direto. Ao passo que, na
voz passiva, no segundo exemplo, funcionaria como “sujeito paciente” e “pelos vizinhos”
seria o agente da passiva.
Concernente à quarta possibilidade, verifica-se que, em “O caçador viu o
companheiro. Quem é que o caçador viu?”, o objeto direto “o companheiro”, no segundo
enunciado, seria substituído pelo pronome relativo “quem”. Em outras palavras, seria a
famosa atitude de “fazer a pergunta ao verbo” para identificar o objeto direto na oração. 25 Todos os exemplos citados sobre o objeto direto em relação ao gramático em discussão foram retirados de sua gramática (BECHARA, 1999, p. 416-417).
77Referente à quinta possibilidade, pontua-se que o objeto direto pode ser transposto para a
esquerda do verbo, configurando o fenômeno de topicalização.
Nesta operação, ocorre a presença de um pronome pessoal vizinho ao verbo, ocupando
a posição canônica do objeto direto. É o que se conhece mais tradicionalmente como
objeto direto pleonástico. Desta forma, em “O caçador viu o lobo. O lobo, o caçador o
viu”, o objeto direto “o lobo” está posicionado, no segundo enunciado, antes do verbo,
enquanto, em sua posição canônica, encontra-se o pronome oblíquo “o”.
Com relação ao objeto direto preposicionado, as diferenças entre o posicionamento de
Bechara (ibidem) e Cegalla (1988) são apenas pontuais. Por esse motivo, não será
abordado o que afirma Bechara com relação ao assunto. O que se pode perceber através
de um olhar investigativo sobre o posicionamento de Bechara (ibidem) é que, embora o
autor queira demonstrar um comprometimento com as contribuições da lingüística para
os estudos da linguagem, ele ainda se mostra arraigado ao viés da tradição, que perpassa
de forma marcante todo o seu trabalho. A lingüística seria utilizada como uma forma de
legitimação da postura do autor, mas não como um embasamento teórico em si.
Acha-se pertinente que se trace um paralelo entre os posicionamentos de Bechara
(1999) e (2002), lembrando que este último trabalho é uma gramática pedagógica,
enquanto o primeiro é uma gramática acadêmica, voltada para os alunos de Letras. Em
Bechara (2002, p. 33), encontra-se a seguinte definição de objeto direto: “O complemento
verbal não introduzido por preposição (...) chama-se objeto direto”. O autor apresenta as
mesmas estratégias para a identificação do objeto direto presentes em Bechara (1999) e
não modifica suas considerações quanto ao objeto direto preposicionado com relação ao
mesmo trabalho.
Segundo Faraco & Moura (1999, p. 448), o objeto direto seria “o termo que completa
o sentido de um verbo transitivo direto. Normalmente não vem regido por preposição”.
Considerando este posicionamento, nota-se que eles compactuam com a tradição
discorrida. Seguindo este ideário, Campedelli & Souza (1999, p. 537) registram que a
função sintática em análise seria “o complemento verbal que integra o sentido de um
verbo transitivo direto. Chama-se direto porque, normalmente, se liga ao verbo sem
preposição, indicando o ser para o qual se dirige a ação verbal”. Neste caso, põe-se em
cheque novamente a noção de ser apontada, uma vez que, a nosso ver, definir o objeto a
partir destes aspectos resume sua potencialidade aplicativa.
78Tufano (2001, p. 249), por sua vez, afirma que o objeto direto seria “o complemento
de um verbo transitivo direto (isto é, aquele que não exige preposição) é o objeto direto”.
Neste caso, observa-se que mais uma vez a força da tradição se faz presente no ponto de
vista do gramático em questão.
Ratificando estas considerações, Ferreira (2003, p. 367) postula que o “objeto direto é
o termo da oração que se relaciona a um verbo transitivo direto, completando-lhe o
sentido e representando o alvo, o paciente, o destinatário ou o resultado do fato verbal”.
Aqui o gramático em análise não pontua sobre a necessidade de o objeto direto não ser
regido por preposição; no entanto, enfatiza o fato de este complemento estar atrelado a
um verbo transitivo direto, podendo ser “o alvo”, dentre outros aspectos. Para nós, ao se
falar sobre a possível representação “do alvo, do paciente, do destinatário ou do resultado
do fato verbal”, exercida pelo objeto, não se deixa claro o que, na verdade, seriam esses
termos. Carece, então, de clareza a definição proposta pelo autor mencionado, já que as
expressões representativas podem se relacionar a um infindo número de acepções,
necessitando de um grau de subjetivismo acentuado para poder ser compreendida.
Sarmento (2003, p. 346), entretanto, não apresenta uma definição formal para o objeto
direto, mas “subentende” o conceito através do seguinte exemplo: “As casas espiam os
homens” (Carlos Drummond de Andrade). O termo “os homens”, em destaque neste
enunciado, no seu entender, seria um objeto direto porque completaria a ação de “espiar”,
um verbo transitivo direto, que não pede preposição. Adentrando neste universo
conceitual, Cereja & Magalhães (2004, p. 229) registram ser o objeto direto “o termo que
se liga a um verbo transitivo diretamente, isto é, sem preposição”.
Para Ernani & Nicola (2005, p. 227), o objeto direto continua sendo “o complemento
verbal que completa o sentido de um verbo transitivo direto”, em consonância com a
tradição. A exemplo disto, tem-se ainda Sacconi (2000, p. 263), que afirma ser o objeto
em análise “o complemento que se liga diretamente ao verbo, ou seja, sem o auxílio de
preposição”.
Pelo exposto, nota-se que se destaca no tocante ao objeto direto a força da tradição
como fator de influência dos estudos lingüísticos, refletido no fato de que houve pouca ou
nenhuma diferença de conceituação entre os diversos autores estudados. De acordo com a
perspectiva tradicional, eventos que fujam em maior ou menor grau à regularidade e
transparência lingüística pretendida pela G.T. são vistos como empregos acidentais. A
79exemplo disso, pode-se citar o caso dos verbos chamados, por Paschoalin & Spadoto
(1996), intransitivos, os quais atuariam como verbos transitivos diretos. Neste caso, uma
abordagem enunciativa é capaz de explicar de forma mais eficiente e satisfatória fatores
vistos não como acidentes de percurso, mas sim como elementos constitutivos da língua.
Na nossa concepção, em situações como estas, evidencia-se, na verdade, a existência do
fenômeno da aglutinação sintática discursiva, assim como será mostrado a seguir.
No sentido de elucidar ainda mais os apontamentos acerca do objeto direto discorridos
aqui, será feita a seguir uma análise, à luz da G.T., da transitividade dos verbos “sonhar”,
“descer”, “morrer” e “falecer”. Em seguida, será mostrado como a aglutinação sintática
discursiva pode afetar a complementação verbal em evidência. Seguindo as apresentações
significativas presentes no Aurélio (1999), nota-se que cada um desses verbos comporta
sentido próprio.
A palavra “sonhar”, segundo Aurélio, origina-se do Latim (somniare), apresentando
algumas significações:
1. Ter sonho (s): “Eu sonhava. O meu sonho era semidivino” (Hermes-
Fontes, Microcosmo, p. 35). 2. Entregar-se a fantasias e devaneios: “Sonhou
muito (Graciliano Ramos), mas sempre protestou que não tinha vocação
para o sonho”. (Valdemar de Sousa Lima, Graciliano Ramos em Palmeira
dos Índios, p.31): Vive a sonhar, sem ver a realidade. 3. Pensar em
insistência; ter a idéia fixa: “que jovem não sonhou algum dia em escrever
poemas, romances, aventuras?”. (Maria Julieta Drummond de Andrade, Um
buquê de Alcachofras, p. 52); vive sonhando em viajar, sonha com a glória.
4. Ver em sonhos: “Sonhara de noite com ele, pode ser que estivesse
sonhando com ela.”. T. d. 5. Ver em sonhos. 6. Imaginar em sonhos: sonhei
que era médico. 6. Supor, imaginar, prever: Mal poderia sonhar tal
calamidade. 7. Ter (sonho): “E reencontro o passado. / No vago misticismo
de quem sonha / um sonho abandonado” (Martins Fontes, Verão, p. 205). 8.
Imaginar-se, julgar-se, considerar-se, em sonho: “Sonho-me às vezes rei,
nalguma ilha, / Muito longe nos mares do Oriente” (Antero de Quental,
Sonetos, 81) (1999, p. 1883).
Com base no verbete acima, constata-se que, na maioria dos exemplos, o verbo
“sonhar” seria intransitivo. Entretanto, em alguns casos, seria transitivo. Assim, como
80aconteceu nestes enunciados: (a) “Sonhou muito (Graciliano Ramos), mas sempre
protestou que não tinha vocação para o sonho” e b) “No vago misticismo de quem sonha /
um sonho abandonado”. No primeiro, “sonhou” seria, seguindo os apontamentos
defendidos pela G.T., intransitivo, não possuindo complemento. Ao passo que, no
segundo, “um sonho abandonado”, atuaria como o objeto direto, já que estaria se
relacionado com o verbo em análise sem o auxílio da preposição.
Para nós, o verbo sonhar, por hipótese alguma, pode ser visto como intransitivo, uma
vez que possui seu objeto aglutinado no núcleo verbal e ambos compartilham o mesmo
campo semântico. No propósito de se aclarar estas considerações, observe as construções
lingüísticas (58), (59) e (60):
Ex. (58)
Finalmente seriam todos, os policiais, os advogados. A porta da cela
fechou-se e ele ficou ali, sozinho. Olhou ao redor. Era um recinto esquálido,
para dizer o mínimo: seis metros quadrados, uma única cama, nada de
móveis. Lembrou-se de uma festa que tinha dado em seu apartamento em
Miami; na ocasião, aborrecera-se com as taças que lhe fora servido o
champanhe, taças que considera “coisa de pobre”. “Miséria, miséria” fora
seu irritado, e debochado, comentário. Suprema ironia: em verdade antecipa
seu próprio destino. Miséria, Miséria. Deitou-se no catre, adormeceu e
sonhou. (Folha, 20 de dezembro de 1999, p. 4-2)
Ex.: (59)
É louvável a franqueza com que o diretor confessou o comportamento
simiesco do BC. Não lhe ocorreu, entretanto, que a libra esterlina é uma
velha senhora, bastante respeitável, apegada às tradições e relativamente
previsível. Todo dia, às cinco da tarde, toma chá com a diretoria do banco
da Inglaterra, um evento eminentemente civilizado, de difícil reprodução
nos trópicos. A moeda brasileira tem as suas gingas e requebros. Ao longo
da sua história, cometeu diversos exageros e extravagâncias. E apresentou
desvio de comportamento com os quais a libra esterlina nunca sonhou, nem
nos seus piores tempos de trabalhismo, nos anos 60 e 70. (Folha, 08 de
julho de 1999, p. 2)
81
Ex.: (60)
O desportivo Cali tem um bom ataque, começa a partida ganhando de 1 a 0
e luta também por seu primeiro título de campeão da América. Existe um
receio de que a perda da copa do Brasil e a provável derrota no Paulista faça
com que o time perca a tranqüilidade e a confiança para essa decisão. Não
acredito. Hoje, é outra história. O time estará completo e na verdade
sonhou, para valer (...) (Folha, 16 de junho de 1999, p. 3)
Em (58), (59) e (60), o verbo “sonhar” seria, segundo a G.T., indubitavelmente
intransitivo, visto que significaria por si só, não necessitando de objeto direto. Na nossa
concepção, em todas essas construções lingüísticas, no momento em que foram
configurados os enunciados com o verbo em análise, o objeto direto encontra-se
aglutinado no núcleo verbal. No sentido de se ilustrar isto, pode-se tomar como escopo o
exemplo (58). Assim, ao se proferir “Suprema ironia: em verdade antecipa seu próprio
destino. Miséria, Miséria. Deitou-se no catre, adormeceu e sonhou”, nota-se que “sonhou”
é o núcleo enquanto o objeto (um sonho) está contido nele, a partir de uma relação
aglutinante.
Neste caso, percebe-se que nada, na constituição lingüística, impede a construção de
enunciados como “Suprema ironia: em verdade antecipa seu próprio destino. Miséria,
Miséria. Deitou-se no catre, adormeceu e sonhou um sonho”, materializando o objeto
direto “o sonho”. Isso comumente não ocorre, uma vez que a usualidade lingüística busca
evitar, em situações enunciativas distintas, a redundância, consoante foi constatado
também com a função sujeito, discutida anteriormente.
Além disso, percebe-se ainda que explicitar lingüisticamente, no exemplo analisado, o
objeto direto “um sonho” não implica a evolução do diálogo entre os sujeitos, organizados
socialmente. Desta maneira, postula-se que ocultá-lo é um recurso utilizado entre os
indivíduos que compreendem ativamente através de um ato responsivo, como pensava
Bakhtin (1981). O falante, nestas circunstâncias, não desaglutina o objeto direto “o
sonho”, por pressupor que o outro sabe perfeitamente desta informação e não iria
contrapô-la. Contrário a isto, há alguns momentos em que o objeto direto do verbo
82“sonhar” se faz lingüisticamente presente no enunciado, assim como ocorreu nos trechos
(61), (62) e (63).
Ex.: (61)
Sabia exatamente o que acelerar. Não mexia nas cenas de sexo explícito,
claro, mas quando o personagem ficava em silêncio, na janela, meditando,
era certo que ele suprimia pelo menos uns 20 segundos da cena. Pensar
demais faz mal, era a explicitação que dava. Os colegas reconheciam o seu
valor. Ele faz com a tecla de “fast-forward” o que Mozart fazia com as
teclas do piano, disse um deles, e essa opinião era por todos admitida. O que
se refletia em seu salário, altamente compensador. Vivia, portanto, no
melhor dos mundos, até que teve o sonho. O sonho que mudou a sua
existência. Sonhou que estava numa velha casa, olhando um televisor,
igualmente antigo. (Folha, 13 de dezembro de 1999, p. 4-2)
Ex.: (62)
O documentário de José Sette tem a virtude de nos aproximar da obra e da
figura do grande compositor. Poderia ser apresentado na TV, caso a TV não
estivesse dedicada quase exclusivamente ao cultivo da subhumanidade. Mas
está longe de ser comparado a um grande filme. Sette filmou momentos
preciosos: Camargo Guarnieri aparece ensaiando a orquestra (preparava em
Minas o conserto de comemoração de seus 80 anos), improvisando ao
piano, dando depoimento. O conjunto, porém, atira para vários lados e
padece de falta de uma unidade que consiga mostrar plenamente, a um só
tempo, a força do compositor, suas convicções nacionalistas, sua identidade
com a geração que, nos anos 30 e 40, sonhou redescobrir o Brasil. Está tudo
lá, a rigor, mas um tanto disperso. (Folha, 25 de novembro de 1999, p. 4-7)
Ex. (63)
Nossas relações com os Estados Unidos sempre foram marcadas por idas e
vindas, equívocos e vacilações. Joaquim Nabuco, embaixador em
Washinton, sonhou uma irmandade eterna, um matrimônio sem
desencontros e o Brasil transformado nos Estados Unidos da América do
Sul.
83Em (61), (62) e (63), observa-se, à luz da G.T. que, nos enunciados possuidores do
verbo “sonhar”, este atua como transitivo direto; seus objetos estão, por conseguinte,
lingüisticamente presentes. Para nós, isto ocorre uma vez que tais complementações
caracterizam o tipo de sonho, as informações veiculadas, por sua vez, centram-se no
próprio objeto e não na ação verbal. Com o intuito de ilustrar essas considerações,
observa-se, em (61), que, ao se registrar “Sonhou que estava numa velha casa, olhando um
televisor, igualmente antigo”, o verbo “sonhar” seria transitivo direto, já que seu objeto
(que estava numa velha casa) está lingüisticamente presente. Aqui tal objeto estaria
funcionado como uma oração subordinada substantiva objetiva direta.
Além disso, a nosso ver, de fato, nos exemplos em análise, o verbo “sonhar” apresenta
complementos e estes são, portanto, expostos lingüisticamente no sintagma, visto que
podem ser refutados pelo interlocutor, oferecendo a possibilidade da contraposição de
informação, própria dos fatores de compreensão. Neste caso, ao ser afirmado, por
exemplo, que se “sonhou que estava numa velha casa”, verifica-se que é dada ao
interlocutor a possibilidade de contrapor esta informação, atribuindo à casa uma outra
caracterização. Desta forma, nada o impediria de afirmar que a casa focalizada, na
verdade, não era tão “velha” assim, por isso, ele a considera “nova”. Com isso, o diálogo
entre os sujeitos progride adequadamente, por ser a compreensão um ato ativo responsivo,
segundo os apontamentos bakhtinianos.
No tocante ao verbo “descer”, Aurélio pontua que este se origina do Latim
(descendere) e tem uma significação própria, assim como será mostrado no verbete
abaixo:
V.t.d. 1. Remover de cima para baixo; por debaixo: descer um painel. 2.
“Percorrer do alto para baixo: agora ele desce a escada com rapidez não
teve paciência para esperar o elevador”. (Hilda Hilst, Ficções, p. 292).
“Desci montanhas e galguei encostas” (Francisca Júlia, Esfinges, p. 110). 3.
Baixar, pender, baixar: descer o chapéu. 4. Trazer para a posição ou nível
inferior; baixar, diminuir: descer o ordenado. 5. Obrigar a descer; humilhar-
se: descer a arrogância. 6. Desfechar, desferir, baixar: descer pauladas. 7.
Inform. V. baixar (4). 8. Mús. V. baixar (3). T. d. e i. 9. Transferir, cometer
entregar, passar: Desceu o cargo ao auxílio. 10. Proceder, provir: descer de
família nobre. 11. Apear-se, saltar. 12. Rebaixar-se, aviltar-se: O policial
84desceu à maior humilhação. 13. Passar a outro assunto ou aspecto de pouca
ou nenhuma significação: descer a pormenores sem importância. 14. Baixar,
cair: descer de sua dignidade. 15. Brás. Rel. Manifestar-se (um orixá, um
espírito, uma entidade, etc.) na mente ou no corpo de uma filha de santo,
um médium, etc.; incorporar-se, baixar: Oxum desceu no seu cavalo. 16.
Cair, recair, incidir. T. d. e c. 17. Tirar, retirar (de lugar elevado) pôr baixo:
desceu do muro. T. c. 18. Desmontar; descavalgar, apear: descer do morro.
19. Sair ou vir de lunar. 20. Inclinar-se, declinar: o sol descia no ocaso. 21.
Baixar, pousar, descender: A nave desceu sobre o descampado. Bit. c. 22.
Mover-se de cima para baixo. Int. 23. Vir a nível inferior; diminuir, baixar:
os lucros descem sensivelmente; As águas desceram. 24. Formar ladeira;
inclinar-se: neste ponto a escada desce. 25. Desvalorizar-se, depreciar-se: A
nossa moeda desceu. 26. Perder ou diminuir o valor ou a honra;
desacreditar-se; decair. 27. Bras. N. E. Correr (um rio) após estiada. 28. Ser
vibrado ou desferido: O golpe desceu violento. 29. Fluir; manar; derramar-
se: As lágrimas desceram-lhe copiosas. 30. Bras. Rel. Manifestar-se (uma
entidade 6) na mente ou no corpo de alguém: Há orixás que não descem. 31.
Baixar (de um ponto a que se tinha subido); apear-se. 32. Desistir com
opinião, posição ou pretensão: Desceu-se de uma severidade (ibidem, p.
639).
Levando em consideração os inúmeros significados acerca do verbo “descer”, nota-se
que ele está sendo apresentado ora como transitivo ora como intransitivo. Na tentativa de
se ilustrar isto, cita-se, através dos exemplos, a acepção (8), “Desceu o cargo ao auxílio” e a
(23), “os lucros descem sensivelmente”. Em (8), vê-se que o verbo em discussão é aludido,
segundo a G.T., como semanticamente incompleto, necessitando do objeto direto (o cargo) e
indireto (ao auxílio), respectivamente. Na nossa concepção, isto ocorre porque, nesta situação, tais
objetos não compactuam com o mesmo campo semântico do verbo em análise.
Em (23), seguindo os apontamentos tradicionais, verifica-se que o verbo “descer” seria
intransitivo. Assim, ao se mencionar “os lucros descem sensivelmente”, tal verbo não necessitaria
de complementação semântica, pois significaria em si. Para nós, tanto em (8) como em (23), há
objetos, sendo que neste a complementação (uma descida) está aglutinada no núcleo verbal. O
objeto direto “uma descida” não está lingüisticamente presente, visto que compactua com o
mesmo campo semântico do verbo “descer”, assim como ocorreu nos trechos (64), (65) e (66).
85Ex. (64)
Vinte pessoas morreram na manhã de ontem na queda de uma cabine em
Saint-Étienne-em-Dévoluy, nos Alpes franceses. É o mais grave acidente do
gênero ocorrido na França. Não houve sobreviventes. As razões ainda são
desconhecidas. Aparentemente, houve uma ruptura da pinça que liga a
cabine ao cabo de tração. A cabine solta desceu então em marcha à ré,
atingindo o solo. (Folha, 02 de julho de 1999, p. 1)
Ex.: (65)
As exportações não reagiram como se esperava, mas todos concordam que
agora, já no início do ano 2000, os resultados positivos aparecerão. Vejo
nos jornais que os estatísticos de plantão já mostram suas garras ao afirmar
que a chamada “década perdida”, dos anos 80 (quando o PIB desceu),
estava superada pela “nova década perdida”, nesses anos 90, quando a triste
média baixou ainda mais, para 1,7% ou 1,8%. (Folha, 28 de dezembro de
1999, p. 2)
Ex.: (66)
Segundo ele. O congestionamento no sentido litoral-capital também era
acima do normal e aumentou depois da meia noite. “Muita gente desceu só
para fazer oferendas no mar e assim que fizeram pegaram a estrada de volta,
complicando a vida de todo mundo”, disse. (Folha, 02 de janeiro de 1999, p.
3-4)
Em (64), (65) e (66), para nós, nos enunciados que contêm o verbo “descer”, este não
pode ser aludido como intransitivo, uma vez que seu objeto (uma descida) se aglutina ao
núcleo verbal (desceu). Nada na língua, por sua vez, impediria de se dizer, em (64), “A
cabine solta desceu uma descida então em marcha à ré, atingindo o solo”. Neste caso, o
objeto (uma descida) encontra-se aglutinado no núcleo (desceu), visto que faz parte da
acepção do verbo “descer”, sendo desnecessário, aqui, desaglutiná-lo, assim como ocorreu
nos exemplos (65) e (66). Materializar a informação “uma descida” não auxiliaria a
evolução do diálogo entre os sujeitos porque esta é compartilhada irrefutavelmente entre
86eles. Neste sentido, ao se mencionar “A cabine solta desceu uma descida então em marcha
à ré, atingindo o solo”, não confere ao outro a possibilidade de contrapor a informação
inserida pelo objeto, afirmando que não “desceu uma descida” e sim “uma subida”, por
exemplo. Isso seria, no mínimo, semanticamente incoerente.
Um outro verbo que também poderia, de acordo com G.T., atuar como intransitivo e
transitivo seria “morrer”. A propósito de se elucidar tais informações, veja-se o exemplo
(67):
Ex. (67)
a) Carla morreu.
b) Carla morreu uma morte linda.
Em (67a), de acordo com os ditames tradicionais, há um sujeito simples e um
predicado verbal sem objeto, enquanto em (67b), verifica-se a presença de um
complemento verbal (uma morte linda). Para nós, tanto o primeiro quanto o segundo
enunciados projetam um objeto. Naquele, o complemento (uma morte) aglutina-se no
núcleo verbal (morte), por isso não está lingüisticamente explícito. Em outros termos, há
um caso de aglutinação sintática discursiva, já que se agregam, em um elemento orgânico
(o verbo “morrer”), duas funções sintáticas peculiares: o núcleo verbal e o objeto.
Aliás, apesar de causar certo estranhamento, um enunciado do tipo “Carla morreu uma
morte”, nada na língua, impediria que ele fosse proferido em uma dada situação. Isto
comumente não acontece, visto que a usualidade lingüística tenta evitar, em contextos
enunciativos diversos, redundâncias.
Mediante citação presente no tópico (1.1), segundo Bakhtin (1981), a compreensão é
um ato ativo, no qual o locutor profere uma palavra e o interlocutor contrapõe com outra.
Desta maneira, a contraposição de palavras auxilia a evolução do diálogo, pois os
participantes podem corroborar ou refutar algo que foi dito pelo outro. Assim, se o
interlocutor sabe que o verbo “morrer” indica indubitavelmente falta enquanto ser físico,
em determinadas situações discursivas, é desnecessário produzir enunciados do tipo
“Carla morreu uma morte”, desaglutinando o objeto (uma morte) do núcleo verbal. Isto
porque o próprio verbo já comporta o sentido aspirado, evitando, assim, essa
desaglutinação sintática. Em nada evoluiria, com isso, a compreensão dos indivíduos,
envolvidos no diálogo.
87Desta maneira, ao se proferir o exemplo (67a), há a tentativa de evitar a redundância
lingüística, já que compreender significa a contraposição de palavras que se digladiam,
evitando, portanto, a desaglutinação sintática. Todavia, se se remeter à enunciação,
segundo o construto bakhtiniano, verifica-se que, no enunciado “Carla morreu”, apesar de
o complemento não ser perceptível no sintagma (uma morte), aglutinando-se no núcleo
verbal, ele existe. Assim, não se pode silenciá-lo, negando sua existência, como fez o
âmbito tradicional, já que, adentrando no discurso, é possível percebê-lo.
Pode-se, então, praticar essa desaglutinação sintática, sem nenhum constrangimento,
resultando em enunciados como (67b), “Carla morreu uma morte linda”, para caracterizar
o tipo de morte, visto que o funcionamento lingüístico permite isso. Observe-se que, neste
caso, o locutor, ao caracterizar o tipo de morte, dá a possibilidade ao interlocutor de
corroborar ou expurgar, a partir da contraposição de palavras, essa informação,
possibilitando a evolução da compreensão. Talvez seja este o motivo, no enunciado em
análise, que possibilite a desaglutinação sintática.
No propósito de legitimar as postulações citadas, recorre-se ao construto teórico
defendido por Dias (2001). Para ele, o complemento verbal em análise (uma morte)
também não se configura no plano da organicidade, que diz respeito ao lugar material da
sintaxe. Todavia, pode ser depreendido no plano do enunciável, o qual se refere às forças
discursivas que projetam o lugar do objeto. Há, portanto, no verbo em pauta, a junção, na
dimensão orgânica, do complemento e do núcleo verbal e, na dimensão enunciativa, a
disjunção dessas funções sintáticas. No entanto, alguns núcleos verbais não admitem,
aparentemente, esse processo de desaglutinação sintática, fato que será aludido a partir do
verbo “falecer”.
Aurélio, em seu dicionário, afirma que o verbo “falecer” deriva de uma palavra latina
(“falescere”), podendo significar:
Falecer: [do Latim falescere, f. incoativa do Latim fallere, “enganar”,
“faltar”.] V. intr. 1. Morrer (1). 2. Haver falta ou carência; faltar; escassear:
A viagem foi longa, e os alimentos faleceram. 3. Não existir, ou deixar de
existir: Com a seca, a vegetação faleceu; Ali a vegetação falece. 4. Falecer
(2): “Nada falece ali do que ao pobre convém; / que digo? O próprio rico ali
mil vezes vem / buscar com que acrescente os donos da lauta mesa”
(Antônio Feliciano de Castilho, Outono, p. 148-149); Não lhe faleceram
88oportunidades. Não ter; carecer: falece de meios para estabelecer-se. 6. Ser
insuficiente; não chegar: Falecem-lhes os meios de subsistência (1999, pp.
344).
Seguindo essa concepção, observa-se que o verbo “falecer” comporta, em seu léxico,
variações de sentido, visto que este pode remeter a morrer ou a faltar. Tendo como pano
de fundo esses apontamentos, pretende-se mostrar que o referido verbo é configurado
através de um lugar onde se convergem duas idéias contíguas: morrer e faltar. A idéia da
falta faz, portanto, uma alusão eufêmica ao sentido da própria morte, pois morrer significa
faltar enquanto ser físico. Tais considerações instigam postulações no tocante aos limites
semânticos existentes entre os verbos “morrer” e “faltar”. Para tanto, observe os trechos
(68) e (69):
Ex.: (68)
Xi, contei o fim do filme sem querer. Ela não morre não. Tô brincando. Ela
só falece. E depois reencarna na Angélica. Rarará!. (Folha, 24 de março de
1996, p. 6-7)
Ex.: (69)
Essa atitude, por exemplo, de escrever em jornais. Quando menino, vi
jornais em crise nascer numa mudança radical, que para meus olhos era uma
revolução. Mãe é mãe, não é apenas genitora; quem morre, morre, não
falece. (Folha, 21 de agosto de 1995, p. 5-6)
Em (68), observa-se, ao dizer “Ela não morre não. Tô brincando. Ela só falece”, que
há alguns traços distintivos concernentes ao sentido dos verbos “morrer” e “falecer”.
Parece que aquele se reveste por aspectos mais fortes de finitude, ao passo que este
comporta um tom de eufemismo. Nessa perspectiva, é perceptível que “ela só falece/ e
depois reencarna na Angélica”. Tal atitude possibilita a inferência de que “falecer” diz
respeito a faltar, por um determinado momento, em seguida, voltar, incorporando-se em
um outro escopo (na Angélica), enquanto “morrer” remete para a impossibilidade desse
retorno.
89Continua, em (69), a disparidade semântica citada entre os verbos em análise, uma vez
que “quem morre, morre, não falece”. Ao se pronunciar este enunciado, é conferido ao
verbo “morrer” novamente um caráter irreversível de finitude. Entretanto, são atribuídas
peculiaridades sutis ao verbo “falecer”, que podem lhe inserir em um meio permeado por
uma suposta reversão situacional. No sentido de ratificar essa visão, cita-se o enunciado
(69): “mãe é mãe, não é genitora”. A figura da mãe, por sua vez, é apresentada, na nossa
sociedade, como algo sublimado e, sobretudo, mais representativo do que o simples ato de
gerar. Ela é vista, então, por um prisma que lhe confere laços fortes de afetividade e
amplitude. Já o olhar que se lança à genitora é revestido por entornos restritivos, os quais
se relacionam a um único ato: o de gerar. Esse jogo semântico é transportado, por
conseguinte, para o sentido dos verbos em análise, distinguindo-os semanticamente.
Pressupondo o exposto, pode-se aferir que, quando o verbo “falecer” é usado no
sentido de “morrer”, atribuí-se a ele, segundo os preceitos tradicionais, traços de
intransitividade. No propósito de elucidar essas considerações, apresentam-se a seguir os
exemplos (70) e (71):
Ex.: (70)
No acidente, todos os passageiros e os tripulantes faleceram, além de quatro
outras fatalidades de terceiros. (Folha, 12 de dezembro de 1997, p. 3-4)
Ex. (71)
A imprensa vem notificando, nas últimas semanas, a tragédia do Instituto de
Doenças Renais (IDR) de Caruaru, onde desde 21 de fevereiro de 1996, já
faleceram 30 pacientes. (Folha, 04 de abril de 1996, p. 3-2)
Com base nesses exemplos, notam-se duas construções com o verbo em foco: a) “...os
seis tripulantes faleceram...” e a) “...faleceram 30 pacientes...”. Em ambos, tal verbo está
sendo usado no sentido de “morrer”, isso lhe atribuiria uma roupagem intransitiva, já que,
no plano da organicidade, não se aponta o objeto.
Nas duas orações, para nós, o referido verbo apresenta um tom de transitividade, uma
vez que a língua permite a elaboração de anunciados como “João faleceu um falecimento
triste”. Há, portanto, nessa construção sintagmática a disjunção do núcleo e do
complemento. Entretanto, isso não acontece comumente, pois a usualidade lingüística
90suplanta essa possibilidade. Aliás, a junção, no plano da organicidade, dessas duas
funções sintáticas é tão forte que os usuários da língua não as desaglutinam.
Tendo em vista as considerações supramencionadas, pressupõe-se que talvez a
impossibilidade de materialização do complemento do verbo “falecer” se concretize, visto
que a expressão “falecer” refere-se ao âmbito erudito, que lhe atribui algumas restrições
de recurso, no caso, a desaglutinação sintática. Ao passo que a expressão “morrer” remete
ao coloquialismo, incorporando características de amplitude, neste sentido, permitindo a
desaglutinação do objeto.
Por outro lado, nota-se que, quando o verbo “falecer” diz respeito a “faltar”, ele é
taxonomizado pela tradição como transitivo. Por isso, o uso lingüístico permite a
construção de enunciados do tipo:
Ex.: (72)
Falece-me saco (perdoem a expressão quinhentista) para ler e ouvir as
arengas presidenciais (Folha, 18 de outubro de 1998, p. 1 - 2).
Ex. (73)
Entendo contudo a comissão, por maioria dos votos, que lhe falece
competência para fazê-los, uma vez que a CPI pressupõe requerimento
firmado pelo domínio de um terço dos membros da câmara dos deputados
(Folha, 23 de maio de 1997, p. 1-8).
Nos trechos (72) e (73), verifica-se que os objetos do verbo em análise (me, saco;
competência, lhe) são citados lingüisticamente, marcando o caráter transitivo, pois não
fazem parte do mesmo campo semântico do verbo “falecer”. Isto é, o verbo citado está
sendo usado no sentido de “faltar”, sentido este que não projeta a idéia de “falecimento”.
Por isso, não causam estranhamento, nem tampouco são vistos como esdrúxulos, os
enunciados: “Falece-me saco...” (Falta-me saco) e “Entendo, contudo a comissão, por
maioria dos votos, que lhe falece competência...” (... que lhe falta competência). Nestas
situações, o interlocutor pode mencionar, por exemplo, que, em vez de “saco”, faleceu
“despreocupação” e, em vez de “paciência”, faleceu “aptidão”, conferindo ao diálogo
probabilidade de fluência.
91No entanto, quando se refere a “morrer”, o verbo “falecer” aponta para a idéia de
“falecimento”, fato observável nos exemplos (70) e (71). Talvez seja por isso que não
aceite a desaglutinação sintática.
Pressupondo essas reflexões, faz-se necessário recorrer à etimologia da palavra
“falecimento”, no intuito de validar as postulações aqui emaranhadas. Aurélio (ibidem)
afirma que o substantivo “falecimento” funciona na língua como extensão do verbo
“falecer”, mas essa extensão está marcada na própria língua pelo processo de derivação.
Ele é formado, então, a partir da derivação sufixal (falecer + -mento). Esta formação
talvez tenha condicionado o verbo em análise a não aceitar, nos trechos (71) e (72), a
desaglutinação sintática de seu complemento. No propósito de se ratificar o conceito de
aglutinação sintática discursiva, defendido nesta dissertação, faz-se necessário, ainda,
apresentar, no tópico (3.1.3), como o fenômeno citado afeta o adjunto adverbial de
instrumento.
3.1.3 O adjunto adverbial de instrumento
Dentre os termos acessórios da oração, segundo a G.T., o adjunto adverbial26 é
definido como aquele que se relaciona com o verbo, com o adjetivo ou com o próprio
advérbio, cuja função primordial seria acrescentar informações a estas classes de palavra.
De acordo com a tradição gramatical, o adjunto adverbial vincularia a idéia de
circunstância. A exemplo disto, poder-se-iam citar tempo, lugar, quantidade, intensidade,
causa, instrumento, dentre outras, bastante semelhantes ao que, na morfologia,
corresponde à classe dos advérbios. A título de ilustração, observem-se os exemplos (74)
e (75):
(74) Carlos saiu de casa apressado.
(75) Ontem aconteceram coisas incríveis.
26 No livro intitulado “Nas trilhas do sentido: estruturas nominais em –mente numa perspectiva semântico-discursiva”, Ribeiro apresenta uma proposta discursiva no tocante ao advérbio. Embora este seja um trabalho adequado e eficaz, na nossa dissertação, não se pretendeu pesquisar sobre este termo, apresentando abordagens teóricas distintas. Isso ocorreu, visto que se almejou especificamente apresentar como a tradição observa o adjunto adverbial de instrumento e, em seguida, pontuar algumas limitações presentes na G.T. em relação a esse tipo de adjunto. Em um outro trabalho, tese de doutorado, será feita uma discussão acerca das diferentes maneiras de se aludir o advérbio, no sentido da dar continuidade aos apontamentos aqui registrados.
92No exemplo (74), tem-se o primeiro grupo nominal, “de casa”, que exprime a
circunstância de lugar. O segundo nome, “apressado”, expressa a circunstância de modo,
fazendo menção à forma como Carlos saíra de casa. No exemplo (75), “ontem” expressa a
circunstância de tempo, que não necessariamente corresponde com o tempo da
enunciação.
Da mesma forma como se verificou com relação ao sujeito e ao objeto direto, os
gramáticos analisados não apresentam maiores divergências no tocante ao tratamento
conferido ao adjunto adverbial, conforme será constatado no decorrer destas
considerações. A propósito, vale dizer que, consoante se constatará, as diferenças
apontadas entre os diversos gramáticos aqui considerados versam sobre a classificação do
adjunto adverbial, e não sobre o conceito proposto.
Não obstante todas as possíveis circunstâncias expressas pelos adjuntos adverbiais,
será abordada, nesta dissertação, especificamente a de instrumento27, com o intuito de
investigar o tratamento conferido pelos gramáticos a ele. O adjunto adverbial de
instrumento, a nosso ver, põe em cena um objeto que participa da ação estabelecida pelo
evento enunciativo.
Cunha assim define o adjunto adverbial:
é, como o nome indica, o têrmo (sic) de valor adverbial que denota alguma
circunstância do fato expresso pelo verbo, ou intensifica o sentido dêste
(sic), de um adjetivo, ou de um advérbio (1970, p. 106).
O autor apresenta, na página mencionada, os seguintes exemplos para ilustrar o
conceito:
(76)Eu jamais tinha ouvido coisa igual. (Cecília Meireles)
(77)Escureceu o mundo de repente. (Luís Jardim)
(78)Quando o bonde ia pôr-se em movimento, o senhor idoso subiu, com a
criança. (Carlos Drummond de Andrade)
No exemplo (76), o adjunto adverbial vem representado por um advérbio (jamais),
expressando ao mesmo tempo as circunstâncias de tempo e de negação, o que seria
passível de acontecer com esta função sintática. Em (77), o adjunto é representado por
27 No entanto, outros adjuntos serão, em linhas gerais, comentados aqui, no sentido ilustrativo.
93uma locução adverbial (de repente), expressando a circunstância de tempo. Em (78), ele é
configurado por uma oração subordinada adverbial temporal (Quando o bonde ia pôr-se
em movimento).
Cunha (ibidem, p. 106) aponta para a dificuldade de delimitação do adjunto adverbial,
visto que não se sabe ao certo o número de circunstâncias existentes e passíveis de serem
delimitadas para fins de classificação. O texto seria, portanto, um elemento eficaz para o
estabelecimento da classificação do adjunto. Apesar desta relativa dificuldade, o autor
propõe a seguinte classificação do adjunto adverbial: de causa, de companhia, de dúvida,
de fim, de instrumento, de intensidade, de lugar, de matéria, de meio, de negação e de
tempo. Para ilustrar o adjunto adverbial de instrumento, o autor apresenta o seguinte
exemplo:
(79) A pobre morria com o palmo e meio de aço enterrado no coração.
(Mário Palmério)
Não é apresentada nenhuma definição para o adjunto adverbial de instrumento.
Apenas ele é destacado no corpo da frase. A partir da análise do exemplo proposto pelo
autor, pode-se delimitar a questão do instrumento como um elemento físico, geralmente
um objeto, utilizado pelo sujeito agente ou paciente no decorrer da ação posta em
funcionamento na enunciação. Neste caso, tem-se o grupo nominal “com o palmo e meio
de aço” atuando como um adjunto adverbial de instrumento.
Já Cegalla (1988, p. 310) define o adjunto adverbial como “o termo que exprime uma
circunstância (de tempo, lugar, modo, etc.) ou, em outras palavras, que modifica o sentido
de um verbo, adjetivo ou advérbio”. O autor propõe como exemplo:
(80)Meninas numa tarde brincavam de roda na praça. (Geraldo França de
Lima)
O exemplo (80) traz três grupos nominais atuando como adjuntos adverbiais. O
primeiro grupo nominal, “numa tarde”, expressa a circunstância de tempo. A pretensa
circunstância expressa pelo segundo grupo nominal, “de roda”, permanece obscura,
enquanto o terceiro grupo nominal, “na praça”, expressa a circunstância de lugar.
Contudo, Cegalla opta por não propor uma classificação formal para o adjunto adverbial,
94pois, segundo o autor, uma proposta de classificação para esta entidade lingüística iria de
encontro ao procedimento adotado pela NGB. Eis a justificativa que Cegalla apresenta
para a não-classificação do adjunto:
Os adjuntos adverbiais classificam-se de acordo com as circunstâncias que
exprimem: adjunto adverbial de lugar, modo, tempo, intensidade, causa,
companhia, meio, assunto, negação, etc. A NGB, porém, não dá nenhuma
classificação aos adjuntos adverbiais (ibidem, p. 310).
Paschoalin & Spadoto (1996, p. 212) definem o adjunto adverbial como sendo “(...) o
termo que se refere ao verbo, ao adjetivo ou a outro advérbio, indicando-lhes uma
circunstância”. A partir desta definição, percebe-se que os autores assinalam nas
entrelinhas a classe de palavras ou o papel morfológico exercido pelo adjunto, que seria o
de advérbio. Em outras palavras, do ponto de vista da morfologia, o adjunto adverbial tem
o valor de advérbio. São apresentados como exemplos:
(81) O tempo passou rapidamente.
(82) Flávio é muito bom goleiro.
(83) O pessoal saiu bem depressa.
(84) Dormimos tarde e levantamos cedo.
(85) Aqui é meu lugar.
(86) Ele chegou de repente.
(87) Viajo nos fins de semana.
Em (81), o adjunto adverbial é representado por um advérbio e expressaria a
circunstância de modo (rapidamente). Em (82), ele é representado por um advérbio e
traduziria a circunstância de intensidade (muito), podendo, também, expressar a
circunstância de quantidade, no sentido de expressar quão bom é o goleiro. Em (83), tem-
se dois adjuntos adverbiais: “bem”, representado por um advérbio e circunscrevendo a
circunstância de intensidade e “depressa”, configurado igualmente por um advérbio e
vinculando a circunstância de modo. Em (84), tem-se dois adjuntos, ambos representados
por advérbios e expressando a circunstância de tempo (tarde e cedo). Em (85), o adjunto é
representado por um advérbio, expressando a circunstância de lugar (aqui). Em (86) e em
95(87), os adjuntos são representados por locuções adverbiais (de repente, nos fins de
semana), apresentando as circunstâncias de modo e de tempo, respectivamente. Os autores
não fazem menção ao adjunto sendo representado por uma oração, como o fez Cegalla
(1988).
Paschoalin & Spadoto (ibidem, p, 212), baseando-se nas circunstâncias expressas pelo
adjunto adverbial, propõem esta classificação: adjunto adverbial de tempo, lugar, modo,
afirmação, negação, dúvida, intensidade, meio, instrumento, companhia, causa, finalidade,
matéria, preço, concessão e assunto. Os autores apresentam o seguinte exemplo para
ilustrar o adjunto adverbial de instrumento:
(88) Retirou a terra com a pá.
Novamente, a noção de instrumento se refere a um objeto físico (com a pá) que serve
de auxiliar para a execução da ação verbal, fator que se verifica em praticamente todos os
exemplos que serão trazidos à baila ao longo deste estudo.
Bechara não faz uma definição formal do adjunto adverbial, apoiada na apresentação
de exemplos ilustrativos, conforme foi o procedimento dos demais gramáticos em estudo.
Ele acena para a dificuldade de delimitação do conceito, visto que se trataria de uma
classe bastante heterogênea, não só do ponto de vista das inúmeras circunstâncias a serem
expressas, mas as funções desempenhadas pelo adjunto no âmbito do discurso. Nesse
sentido, o autor comenta:
O adjunto adverbial constitui uma classe muito heterogênea – à semelhança
do advérbio que normalmente desempenha o papel de seu núcleo – não só
do ponto de vista formal como ainda do ponto de vista de valor semântico.
Tal fato leva a que constantemente esteja a não delimitar com nitidez as
fronteiras com outras funções sintáticas (...) e com conteúdos de
pensamento designado vizinhos (1999, p. 439).
O autor (ibidem, p. 440-9), tendo por objetivo a delimitação apenas dos principais
tipos de adjuntos adverbiais, de acordo com a sua perspectiva particular de abordar o
assunto, propõe a seguinte classificação: adjuntos adverbiais de lugar; temporais; modais;
adjuntos adverbiais de fim, de causa, de instrumento e de companhia; de quantidade;
96dentre outros. Com relação ao adjunto adverbial de instrumento, o autor (ibidem, p. 443) o
apresenta conjuntamente com os adjuntos adverbiais de fim, causa e companhia, em
virtude de eles não poderem ser representados por um advérbio, mas por um sintagma
preposicionado ou, com exceção do adjunto adverbial de companhia, por uma oração
subordinada. Para ilustrar o adjunto adverbial de instrumento, o autor apresenta o seguinte
exemplo:
(89) Fechou a porta com a chave.
Percebe-se que o autor chama a atenção para o aspecto formal do adjunto adverbial de
instrumento, atentando para o fato de que ele traz como característica específica uma
restrição na sua forma de representação. Entretanto, o conceito de instrumento como
objeto físico que auxilia o ato performativo do verbo permanece.
Faraco & Moura não se restringem apenas à questão do valor semântico, mas
assinalam igualmente o caráter performativo do adjunto adverbial, mediante a seguinte
definição do conceito:
Adjunto adverbial28 é o termo da oração que indica uma circunstância do
fato expresso pelo verbo ou intensifica o sentido do verbo, do adjetivo ou
do advérbio. O adjunto adverbial exerce, portanto, a função de modificador
e de intensificador (1999, p. 459).
Em conformidade com o critério do papel semântico do adjunto adverbial, Faraco &
Moura (ibidem, p. 459-60) apresentam os seguintes exemplos para ilustrar o conceito de
adjunto adverbial; o primeiro atuaria como modificador e os segundo, terceiro e quarto
como possíveis intensificadores de seus referentes:
Ex.:
(90) Vão viajar amanhã.
Ex.:
28 Grifo no original.
97(91) Viajam muito.
Ex.:
(92) Estão muito ansiosos.
Ex.:
(93) Redigem muito bem.
Seguindo estes pressupostos, postula-se que o adjunto adverbial seria, então, um termo
que poderia se acoplar ao verbo, ao adjetivo e ao advérbio, ora modificando-os, ora
intensificando-os. Termo este que se encontra materializado no sintagma, já que se faz
notório no enunciado. Assim, para Faraco & Moura (ibidem), construções do tipo: a) Vão
viajar amanhã e b) Viajam muito apresentariam casos específicos de adjuntos adverbiais.
Naquela, encontra-se o termo “amanhã” que estaria “modificando” o sentido do verbo
“viajar”, já que a viagem não será em um dia aleatório, sendo realizada “amanhã”, um
determinativo.
Utiliza-se, aqui, o termo “determinativo”, uma vez que, para nós, expressões como
essas (amanhã) não modificam o sentido do verbo e sim o determina. Verifique que, ao se
proferir enunciados como: a) “Vou viajar” e b) “Vou viajar amanhã”, o campo semântico
do verbo “viajar” continua intacto. Com isso, afere-se que o diferencial dessas construções
reside no fato de, no enunciado (a), não haver uma informação no tocante ao momento
previsto da viagem. Entretanto, em (b), este dado se faz presente na estrutura sintagmática,
determinando a realização da viagem.
Por outro lado, no enunciado “Viajam muito”, observa-se um outro termo (muito), o
qual serviria como um “intensificador”. Nesse sentido, “muito” está intensificando o
campo semântico do verbo “viajar”.
À luz do construto teórico em evidência, percebe-se ainda que o adjunto adverbial é
arrolado a partir de distintivos tipos: a) causa, b) companhia, c) condição, d) dúvida, e)
finalidade, f) instrumento, dentre outros. O adjunto adverbial de instrumento, por sua vez,
seria configurado mediante a especificação do(s) instrumento(s) com que se realizou(ram)
algo. Desta forma, em enunciados como “Batia com a caneta sobre o livro”, a expressão
98“com a caneta” seria denominada adjunto adverbial de instrumento, visto que apontaria o
instrumento com que se bateu no livro. Outra vez, o caráter enfatizado para a noção de
instrumento é o de objeto físico que presta serviço ao ato performativo configurado pelo
verbo.
Campedelli & Spadoto (1999, p. 545), conjugando os critérios de valor semântico e
caráter performativo, definem o adjunto adverbial como sendo "(...) o termo da oração que
funciona como advérbio, denotando a circunstância da ação do adjetivo ou do outro
advérbio". Apresentam os seguintes grupos de exemplos:
Ex.: (94)
a. Aqui é o fim do mundo. (Gilberto Gil / Torquato Neto)
b. Parece que foi ontem / O tempo parecia pouco / e a gente parecia
muito. (Paulo Leminsk)
Ex.:
(95) a. De repente, não mais que de repente, / Do riso fez-se o pranto...
(Vinícius de Moraes)
b. lua à vista / brilhavas assim / sobre Auschwitz? (Paulo Leminsk)
Ex.:
(96) a. Quando o inverno chegar, / Eu quero estar junto a ti. (Tim Maia)
Em (94), os adjuntos adverbiais são expressos por advérbios propriamente ditos
(ontem, pouco e muito). Enquanto em (95) trata-se de uma expressão ou locução adverbial
(de repente), já em (96) o adjunto é expresso por uma oração subordinada adverbial
temporal (quando o inverno chegar). A classificação proposta, ainda que mais extensa,
segue a mesma linha de raciocínio das demais. Haveria adjuntos adverbiais de afirmação,
assunto, causa, companhia, concessão, condição, conformidade, dúvida, finalidade,
freqüência, instrumento, intensidade, lugar, modo, negação e tempo. Campedelli &
Spadoto (ibidem, p. 546) apresentam o seguinte exemplo de adjunto adverbial de
instrumento:
Ex.:
(97) Ladrão se mata a bala na cidade, / A faca, no sertão. (José J. Veiga)
99
Em (97), a noção de instrumento não se altera com relação ao percurso teórico traçado
pelos demais gramáticos. Trata-se de um objeto que auxiliaria o ato performativo indicado
pelo verbo. Fere-se, portanto, com o auxílio da bala ou da faca. Os autores, contudo,
advertem para o fato de que devem ser aceitas todas as classificações que se mostrem
coerentes com a circunstância expressa pelo adjunto adverbial.
Tufano (2001, p. 259) apresenta uma definição bastante concisa para o adjunto
adverbial. Ele é definido como "(...) o termo da oração que se refere a um verbo, a um
adjetivo ou a outro advérbio". Não se faz menção ao fato de ele expressar uma
circunstância e de possuir um valor semântico e um caráter performativo. Além disso, o
autor não oferece uma classificação formal para o adjunto adverbial, não apresentando,
ainda, uma justificativa para tal omissão. Os exemplos que o autor apresenta para ilustrar
o conceito trazem a classificação, não se fazendo menção à existência de outros tipos de
adjunto adverbial, mediante a circunstância por ele expressa. Não se fala, por conseguinte,
em adjunto adverbial de instrumento. A esses propósitos, observem-se os enunciados
veiculados por Tufano:
(98) O trem partiu velozmente. (adjunto adverbial de modo)
(99) Chegamos tarde ontem. (adjuntos adverbiais de tempo)
(100) Ele não está muito feliz. (adjuntos adverbiais de negação e
intensidade, respectivamente)
(101) Ele fez o exame com tranqüilidade. (adjunto adverbial de modo)
(ibidem, p. 259)
Os autores não se mostram intimamente comprometidos ao rigor da tradição, pois não
apresentam uma definição mais completa ou mesmo uma classificação minimamente
criteriosa, a exemplo dos demais autores. Trata-se de uma abordagem demasiadamente
simplificada, voltada para alunos do ensino fundamental. A nosso ver, o autor poderia ter
abordado o assunto com um maior grau de detalhamento, visto que os aprendizes teriam
acesso a um conceito mais bem formulado, aumentando suas chances de aprendizado do
conteúdo.
Bechara (2002, p. 57), em uma retomada de seu trabalho anterior (Bechara, 1999), na
abordagem dos grupos nominais, delimita o adjunto adverbial em seu critério formal e
100semântico, ainda que novamente não formule uma definição propriamente dita. Afirma o
autor:
A expansão do núcleo pode dar-se mediante um adjunto adverbial,
representado formalmente por um advérbio ou expressão equivalente.
Semanticamente exprime uma circunstância e sintaticamente representa
uma expansão do verbo, do adjetivo ou do advérbio.
O autor demarca, então, a função do adjunto adverbial, que consistiria em incrementar
o valor semântico da oração, expandindo o sentido de seus referentes. As circunstâncias
referir-se-iam à significação do verbo. Segundo o gramático em ênfase, o adjunto
adverbial poderia ser expresso por advérbios ou por expressões adverbiais, conforme
demonstra o seguinte exemplo:
(102) Marcelinho pôs o livro na pasta.
O termo destacado (na pasta) atua como adjunto adverbial, exprimindo a circunstância
de lugar e sendo representado por uma expressão adverbial. Neste trabalho, contudo, não
se propõe uma classificação formal para o adjunto.
Ferreira (2003, p. 373) define o adjunto adverbial como "(...) um termo que se junta ao
verbo para indicar a circunstância em que ocorre o fato verbal". O autor alerta para o fato
de que todo adjunto adverbial seria morfologicamente um advérbio, bem como para a
necessidade de não se confundir esta entidade lingüística com o que a G.T. classifica
como predicativo. O gramático focalizado apresenta uma classificação mais concisa para
o adjunto adverbial, tomando como referência a circunstância que o ato performativo
verbal expressa. Assim, ter-se-iam adjuntos adverbiais de causa, dúvida, intensidade,
lugar, modo, negação, afirmação, tempo e instrumento. Como exemplo deste último, o
autor apresenta:
(103) Ele cortou a árvore com um machado.
Em (103), como nos demais, a noção de instrumento corresponde a um objeto de
natureza física (com um machado) utilizado para auxiliar ou subsidiar a ação verbal
(corta-se a árvore com o auxílio do machado).
101Sarmento (2003, p. 352), por sua vez, não propõe uma definição formal para o adjunto
adverbial. A autora tem por objetivo conduzir o aluno a subentender o conceito, a partir da
análise de uma tirinha de Garfield. Mediante o estudo da tirinha, é possível afirmar que,
de acordo com a autora, o adjunto adverbial seriam expressões que modificariam o sentido
do verbo, por mais vaga que tal definição possa parecer. Recorre-se à NGB para delimitar
quais seriam os principais tipos de adjunto adverbial: os de tempo, lugar, modo, negação,
afirmação, intensidade, dúvida, causa, finalidade, companhia, meio ou instrumento e
assunto. Como assunto dos adjuntos adverbiais de meio ou instrumento, a autora
apresenta:
(104) O rapaz feriu-se com a lâmina.
Como se pode perceber, a noção de instrumento subjacente ao exemplo acima é a
mesma que já vem sendo abordada pelos demais gramáticos em análise. A autora,
contudo, aconselha para que o aprendiz "faça a pergunta ao verbo", a exemplo do
procedimento amplamente proposto pelos gramáticos para identificar o objeto direto da
oração, consoante se falou anteriormente, para se proceder à identificação do adjunto
adverbial de instrumento. Assim, a pergunta "com o quê?" serviria como procedimento
para a identificação precisa desta entidade lingüística.
Cereja & Magalhães (2004, p. 276), a exemplo de Tufano (2001), definem o adjunto
adverbial com um grau excessivo de concisão. Para eles, trata-se do "(...) termo que indica
as circunstâncias em que se dá a ação verbal". De acordo com os autores, haveria adjuntos
adverbiais de intensidade, instrumento, afirmação, fim ou finalidade, companhia, assunto
e dúvida. Apresenta-se como exemplo de adjunto adverbial de instrumento o seguinte
enunciado:
(105) O menino trabalhava com a imaginação.
A partir da análise do exemplo (105), é possível constatar que houve um certo grau de
abstração no conceito de instrumento. Aqui, não se trata de um objeto físico a subsidiar a
ação indicada pelo verbo performativo, mas de uma entidade abstrata.
102Já Ernani & Nicola (2005, p. 237) apresentam uma definição um tanto problemática
do adjunto adverbial, que será transcrita a seguir, a partir dos exemplos (106), (107) e
(108):
Ex.:
(106) O verão chegou cedo.
Ex.:
(107) Os turistas viajaram bem.
Ex.:
(108) Os alunos resolveram o exercício na sala.
Observa-se, através dos enunciados citados, que as expressões “cedo”, “bem” e “na
sala” referem-se ao verbo e dariam uma informação acessória. Serviriam, nos exemplos
acima, para indicar o tempo e o lugar em que ocorreu a ação expressa pelo verbo e o modo
como ela ocorreu. Esses termos recebem, pela G.T., o nome de “adjuntos adverbiais”.
A partir da análise desta definição, atrelada aos exemplos fornecidos pelos autores,
percebe-se que o aprendiz pode ser conduzido a concluir que todo adjunto adverbial
estaria se referindo apenas ao tempo, ao lugar e ao modo que condicionariam a ação
verbal, quando estas são apenas algumas das circunstâncias postas, pelos outros
gramáticos aqui discutidos, em evidência quanto à classificação do adjunto adverbial.
Além disso, o atributo de informação acessória é discutível, pois não é a mesma coisa
enunciar "O verão chegou cedo" e "O verão chegou", já que a escolha de um ou de outro
indica aquilo que é enfatizado no diálogo, através da interação verbal. Por outro lado, a
tradição gramatical considera que o adjunto adverbial modifica o sentido de verbos,
adjetivos ou advérbios, e não apenas do verbo, como pretendem os autores.
Ernani & Nicola (ibidem, p. 238), seguindo os ditames tradicionais, apresentam a
seguinte classificação para os adjuntos adverbiais: de lugar, tempo, modo, intensidade,
causa, instrumento, negação, finalidade e assunto. Como exemplo de adjunto adverbial de
instrumento, apresenta o clássico "Cortou-se com a faca", tão caro à tradição gramatical e
que também figura na abordagem da voz verbal reflexiva.
Por fim, tem-se a definição de Sacconi (2000, p. 273), que pode ser considerada como
a mais concisa e pouco abrangente de todas. Para o autor, o adjunto adverbial "(...) é o
termo de valor adverbial que gravita quase sempre um verbo". Entretanto, a classificação
proposta pelo autor é extremamente extensa, sendo formada por vinte e oito tipos
103distintos, a saber: adjunto adverbial de assunto, de causa, de companhia, de concessão, de
condição, de conformidade, de dúvida, de finalidade, de intensidade, dentre outros.
O adjunto adverbial de meio, correspondendo à noção de instrumento, não escapa à
ênfase à materialidade do objeto, tendência generalizada presente neste estudo. No intuito
de se ilustrar tais apontamentos, observe-se o exemplo “Chegar de avião; mandar o recado
por um boi”.
A partir de uma observação atenta dos gramáticos analisados, é patente que, conforme
já fora apontado anteriormente, eles divergem apenas na questão da classificação dos
adjuntos adverbiais, e não propriamente no conceito. Verifica-se, em alguns, a
necessidade de delimitar o máximo possível as circunstâncias sugeridas pela ação verbal,
por mais diversificadas que elas possam ser.
Em outros, todavia, o esforço se direciona justamente no sentido contrário, resumindo
o conceito e sua classificação praticamente ao ponto da mutilação, provavelmente com o
intuito de "simplificar" a aprendizagem do aluno. O ponto de contato entre todos os
gramáticos pesquisados é a falta de articulação entre os fatos discursivos e a descrição dos
eventos lingüísticos. Neste aspecto é que se mostra toda a força da tradição, que leva o
estudioso de cunho tradicionalista a fechar-se no prescritivismo, desconsiderando o
âmbito discursivo e o efetivo funcionamento da língua em suas mais diversas formas de
manifestação.
Pensando nisso, a seguir será mostrado como a aglutinação sintática discursiva pode
afetar o adjunto adverbial de instrumento. Assim, será levado em consideração tanto o
discurso como o funcionamento da língua em suas infindas maneiras de manifestação.
Para tanto, observe os enunciados (109) , (110), (111), (112), (113), (114) e (115):
Ex.(109)
Acho que a chatice do artista batendo com o martelo na cabeça terminou.
Essa contemplação do nada tem que virar produção. Eu estou tentando sair
desse beco. (Folha, 11 de fevereiro de 1994, p. 1-5)
Ex. (110)
Nos últimos dias, este espaço martelou a importância dos números na
análise de esportes. Há dez dias, mostrou que, se dependesse das
104estatísticas, a França já podia numerar o título. (Folha, 13 de julho de 1998,
p. 4-19)
Ex. (111)
Durante dois anos o marketing governamental martelou a necessidade da
reformas para a sobrevivência do Real. O ministro Kandir condicionou o
desenvolvimento do país à aprovação da reeleição. (Folha, 13 de abril de
1997, p. 2)
Ex. (112)
Maluf analisa romper publicamente com Pitta. O discurso de Maluf seria o
de que, em 93, loteou as regionais entre os vereadores só para garantir
maioria na câmara. Mas Pitta, que engoliu a reedição do acordo em 97, traiu
sua confiança e não teria evitado corrupção. O difícil da manobra é
conseguir que o eleitor acredite nela. Pesquisas do PPB mostram que a
população faz uma ligação direta entre Maluf e Pitta exatamente como a
propaganda malufista martelou em 96. (Folha, 21 de março de 1999, p. 3)
Ex. (113)
Já se passaram seis anos desde que Terry Norrio obrigou-se a provar seu
próprio sangue, desde então, Leonard tornou-se avô e casou-se de novo. E a
única coisa com a qual se defrontou, desde então, foi com uma bola de
golfe, muito menos perigosa que seu rival naquela noite de 9 de fevereiro de
1991. Norrio arrancou um dente de Leonard, martelou até abrir uma antiga
operação no seu olho, inchou seus lábios e deformou sua testa. (Folha, 01
de março de 1997, p. 3)
Ex. (114)
Segundo Suzana, o que realmente irritou Ronaldinho foi a cobrança em
relação ao futebol. “O que estressou o Ronaldo foram aquelas pessoas todas
dizendo: ‘Esse jogo é para você ganhar, você tem que ser o artilheiro’. Isso
martelou a cabeça dele. Mas agora está legal”, afirmou. (Folha, 22 de julho
de 1998, p. 3)
Ex. (115)
105Com uma postura ambígua em relação a FHC, Maia não alavancou sua
candidatura. No programa de TV, martelou a idéia de que garotinho e o ex-
governador Leonel Brizola eram a mesma coisa, que significavam caos,
desordem e violência. Maia reconhece, porém, que não convenceu o
eleitorado. (Folha, 04 de outubro de 1998, p. 18)
Se forem analisados sintaticamente, a partir do âmbito tradicional, os exemplos (109),
(110), (111), (112), (113), (114) e (115) nota-se que apenas em (109) haveria, ao se
proferir “Acho que a chatice do artista batendo com o martelo na cabeça terminou”, um
adjunto adverbial de instrumento (com o martelo). No entanto, a nosso ver, em todos se
verifica a função sintática em análise, sendo que, em (110), (111), (112), (113), (114) e
(115), há um caso de aglutinação sintática discursiva.
A exemplo disto, cita-se, em (110), a construção “Nos últimos dias, este espaço
martelou a importância dos números na análise de esportes”. Nesta, constata-se que, no
núcleo verbal “martelou”, o adjunto adverbial de instrumento (com o martelo) encontra-se
aglutinado, como também aconteceu em (111), (112), (113), (114) e (115). Isso ocorre
uma vez que este adjunto pertence ao mesmo campo semântico do verbo em análise.
Nada na língua impediria a formação de construções do tipo: “martelou com o
martelo”. No entanto, a usualidade lingüística evita pronunciar enunciados como este, pois
a expressão “com o martelo” faz parte da memória discursiva dos locutores e dos
interlocutores, evitando, assim, a desaglutinação no plano da organicidade. Com isso,
nota-se, segundo os apontamentos bakhtinianos, que o ato de enunciar envolve sujeitos
organizados socialmente. Assim, parece que o próprio social impede a não desaglutinação,
em verbos dessa estirpe, do adjunto em análise.
Bakhtin (1981, p.131) afirma que compreender “é opor a palavra do locutor uma
contra palavra”, assim como se pontuou no tópico (1.1). Nesse sentido, realiza-se uma
compreensão responsiva ativa, uma vez que o diálogo entre locutores e interlocutores,
organizados pelo viés social, configura-se através de palavras que se digladiam tanto na
semântica como na ideologia.
Pressupondo as postulações discorridas, observa-se que, em um diálogo, no qual se
pronuncia o exemplo (110), “Nos últimos dias, este espaço martelou a importância dos
números na análise de esportes”, é desnecessário materializar, no lingüístico, o adjunto
106adverbial (com o martelo). Isso acontece já que, se o locutor dissesse “...este espaço
martelou com o martelo ...”, não daria possibilidade de seu interlocutor se opor à
informação dada no tocante ao instrumento utilizado para martelar. Nesse caso, a
informação veiculada por esse adjunto adverbial em nada auxiliaria, com base na teoria
bakhtiniana, a evolução do diálogo. Verbos como esses delimitam seus instrumentos
adverbiais, aceitando apenas aquele que se associa semanticamente ao seu núcleo.
Com isso, constata-se que, se se recorrer ao plano do enunciável, é possível, em
determinados verbos, no caso “martelar”, verificar a aglutinação de duas funções
sintáticas: o núcleo (martelou) e o adjunto adverbial de instrumento (com o martelo),
depreendido através da enunciação. Resta saber, agora, o porquê de o processo de
aglutinação sintática ocorrer com verbos do tipo “martelar” e não atingir verbos como
“bater”.
Em (109), nota-se que o adjunto adverbial é registrado no plano da organicidade (com
o martelo), visto que não faz parte do mesmo campo semântico do verbo “bater”. Desta
maneira, ao se proferir “Acho que a chatice do artista batendo com o martelo na cabeça
terminou”, nota-se que o verbo em análise não traz, em seu código lingüístico, o sentido
específico do adjunto adverbial de instrumento.
Neste caso, a usualidade lingüística permite comumente erigir enunciados do tipo:
“Rafael bateu com o pé na mesa”, “Roberta bateu com o cotovelo na mesa”, “Mônica
bateu com a mão na mesa”, dentre outros. Essas distintas maneiras significativas que o
adjunto adverbial de instrumento pode apresentar em relação ao verbo “bater” dão a
possibilidade, em um diálogo, de o interlocutor contrapor a informação transmitida pelo
adjunto. Neste sentido, haverá, mediante as considerações bakhtinianas, entre os
envolvidos no diálogo, uma compreensão responsiva ativa.
Diante dessa diversidade de possibilidades relativa à função sintática em análise,
sente-se a necessidade de projetá-la lingüisticamente, no intuito de determinar o
instrumento utilizado para se “bater” em algum lugar. Assim, é insuficiente, em algumas
situações, mencionar: “Rafael bateu na mesa”, pois é preciso uma outra informação. No
caso, aquela inferida pelo adjunto adverbial, para que esse enunciado apresente um grau
maior de completude semântica. Não é de todo descabido afirmar, portanto, que o verbo
“bater” provoca, em situações enunciativas distintas, a materialização de seu adjunto.
107À luz das considerações sumariadas, verifica-se que o fato de o verbo “bater” não
apontar, através de seu núcleo, um único sentido para o adjunto adverbial, possibilita
diversas opções. Neste caso, a usualidade lingüística não marginaliza a projeção desse
adjunto, considerando as construções esdrúxulas.
Além disso, um enunciado como “Rafael bateu com o pé na mesa” possibilita, numa
situação dialógica, o interlocutor refutar a informação veiculada pelo adjunto adverbial de
instrumento (com o pé). Nesse caso, ao ser mencionado, o outro pode afirmar que Rafael
não bateu na mesa “com o pé” e sim “com a mão”, permitindo o diálogo discorrer, visto
que a compreensão está se realizando ativamente entre locutor e interlocutor, como afirma
a teoria bakhtiniana.
Pelo exposto, constata-se que o adjunto adverbial de instrumento, a nosso ver, ora
pode vir expresso lingüisticamente, ora pode ser ocultado, provocando a aglutinação
sintática discursiva. A escolha de uma ou de outra possibilidade está relacionada com a
enunciação, vista pela ótica bakhtiniana. Observá-lo a partir da inter-relação entre o plano
da organicidade e o plano do enunciável faz com que se lance à língua um olhar
perpassado pelos fatores condicionantes do funcionamento lingüístico, explanando suas
infindas possibilidades de manifestação.
108
4. Considerações (quase) finais
De acordo com a discussão aqui realizada, constatou-se que a aglutinação, processo de
formação de palavra, é um objeto de estudo que vem sendo abordado, a partir dos campos
fonológico e morfológico, pela tradição. Para nós, o fazer científico não apresenta um
todo acabado, já que é, segundo os apontamentos saussurianos, o ponto de vista quem cria
o objeto. Nesse sentido, os resíduos deixados por tais pontos de vista podem ser
recuperados por outros postos de observação.
Seguindo esse viés, apresentou-se aqui uma proposta, de acordo com o construto
teórico bakhtiniano, de redefinição da aglutinação, no sentido de se recuperar alguns
resíduos deixados pela tradição e sobretudo tomá-los como ponto de observação, dando-
lhes uma nova roupagem enunciativa. Com isso, pode-se conferir amplitude ao conceito
do fenômeno analisado, bem com a aplicabilidade da teoria interacionista bakhtiniana. As
funções sintáticas sujeito, objeto e adjunto adverbial foram analisadas, no propósito de se
fundamentar os eixos teóricos defendidos nesse trabalho.
A partir da análise da função sujeito, constatou-se, então, que tanto a G.T. quanto
Perini, representante do formalismo, apresentam definições insuficientes no tocante ao
sujeito gramatical, assim como foi mostrado nos exemplos (22), (23), (24), (25), (26),
(27), (28), (29), (30) e (31). A G.T. ora afirma ser o sujeito um termo essencial, ora o
nega, sufocando, a partir das chamadas orações sem sujeito, sua existência. Perini (1995),
por sua vez, acredita ser o sujeito um termo que se reveste por uma roupagem estritamente
formal. Neste caso, também haveria alguns enunciados que não comportariam esse
componente sintático.
Para nós, por ser, segundo Dias (2001), o sujeito o acionador do verbo, nos exemplos
(22), (24), (25), (26), (27), (28), (29), (30) e (31), que não teriam, de acordo com a G.T. e
com Perini (ibidem), o sujeito gramatical, há a aglutinação sintática discursiva. Isto é,
possuem, nas construções com os verbos “chover”, “nevar” e “ventar”, seus sujeitos
aglutinados nos respectivos núcleos verbais, uma vez que estes fazem parte do mesmo
campo semântico.
109Além disso, tais sujeitos fazem parte da memória discursiva dos indivíduos envolvidos
na enunciação e materializá-los, no plano da organicidade, não auxilia a evolução do
diálogo. Nem tampouco permite a compreensão responsiva ativa, defendida por Bakhtin
(1981), uma vez que não dá a possibilidade de o interlocutor contrapor a informação
veiculada pelos sujeitos gramaticais dos verbos analisados.
No tocante ao complemento verbal, pode-se aferir que tanto os verbos “sonhar”,
“descer” e “morrer” quanto o verbo “falecer” projetam o lugar do objeto. Lugar este que
pode ser preenchido (no plano da organicidade) ou simplesmente ocultado (efeito de
sentido), entretanto, perceptível no discurso. Embora haja a interferência de fatores
morfológicos e semânticos, a ocupação do objeto dos verbos analisados depende,
indubitavelmente, da enunciação, vista pela ótica bakhtiniana. Nessa perspectiva, cabe ao
locutor e ao interlocutor selecionarem o sentido do(s) verbo(s) enunciado(s) através da
contraposição de palavras e aceitarem (ou não) a materialização do objeto, consoante foi
explanado nos exemplos (58), (59), (60), (61), (62), (63), (64), (65), (66), (67), (68), (69),
(70), (71), (72) e (73).
Em relação ao adjunto adverbial de instrumento, observou-se que, de acordo com a
G.T. alguns verbos não apresentariam esta função sintática. Considerando os exemplos
analisados, verifica-se que só haveria, então, adjunto adverbial de instrumento (com o
martelo) em (109), já que esta função está materializada lingüisticamente no sintagma:
“Acho que a chatice do artista batendo com o martelo na cabeça terminou...”. Em (110),
(111), (112), (113), (114) e (115), nas construções com o verbo “martelar”, o construto
teórico em evidência não admite a existência do adjunto adverbial, visto que nenhum
termo, presente no plano da organicidade, exerceria essa função sintática.
Entretanto, para nós, tanto em (109) como em (110), (111), (112), (113), (114) e (115)
há o adjunto adverbial de instrumento. Em (109), esta função sintática é perceptível no
próprio sintagma: “com o martelo”. Isto acontece uma vez que o verbo “bater” não
comporta, em seu campo semântico, o sentido restrito de seu adjunto, podendo, portanto,
configurá-lo, em situações enunciativas peculiares, de maneiras diferentes. Assim, a
usualidade lingüística não taxa como esdrúxulos os enunciados: a) Rafael bateu na mesa
com o martelo e b) Rafael bateu na mesa com o pé.
110Pelo exposto, afere-se que o verbo “bater” projeta o lugar do adjunto adverbial de
instrumento, no sentido de aclarar o seu horizonte semântico, podendo, com isso, ser
preenchido por denominações instrumentais diferentes. Além disso, esse tipo de
materialização distintiva é possível, pois possibilita que a compreensão entre locutores e
interlocutores, organizados socialmente, realize-se ativamente, conforme afirmou Nóbrega
(2006).
Ao passo que em (110), (111), (112), (113), (114) e (115), o adjunto adverbial também
se faz presente, estando aglutinado no núcleo verbal “martelou”. A título de ilustração,
não é incabível se afirmar que, em (110), ao se proferir o enunciado “Nos últimos dias,
este espaço martelou a importância...”, convergem para o mesmo ponto (“martelar”) duas
funções sintáticas: o núcleo e o adjunto adverbial de instrumento, fato também constatado
em (111), (112), (113), (114) e (115). Não há, por conseguinte, a materialização, no plano
da organicidade, do adjunto adverbial, já que a informação “com o martelo”, nessa
situação, pertence ao mesmo campo semântico do verbo “martelar”. A usualidade
lingüística, por sua vez, tende a evitar a redundância, visto que este recurso não possibilita
a compreensão responsiva ativa, discutida pelo ideário bakhtiniano.
Diante do exposto, constata-se que a aglutinação sintática discursiva de fato é um
processo enunciativo, configurando-se através de um lugar, que pode ser materializado
lingüisticamente (no plano da sintaxe) ou simplesmente ocultado (efeito de sentido),
entretanto, perceptível no plano do enunciável. O fenômeno citado possibilita, então,
através da inter-relação desses planos, a construção de um saber de entremeio. Isto é, o
saber pautado na relação entre o lingüístico e o discurso, assim como pontuou Dias
(2006). O efeito de sentido produzido pelo fenômeno da aglutinação sintática, em
determinados textos jornalísticos, publicados nos CDs-ROM Folha-Edição (99 e 2000),
resulta da enunciação, conforme os moldes bakhtinianos. Tais fatos confirmam, portanto,
as hipóteses norteadoras da pesquisa aqui desenvolvida.
Explanar, em sala de aula, através de textos, a aglutinação sintática discursiva fará
com que o aluno reflita sobre o funcionar da língua, desenvolvendo uma atividade
epilingüística. Nesta perspectiva, algumas das possibilidades de manifestação lingüística
são postas em evidência. Ao fazer isso, certamente a Língua Portuguesa estará sendo
ensinada, levando-se em consideração a estrutura e o discurso, pontos sugeridos pelos
PCN e esquecidos pela G.T.
111Com isso, apresentou-se uma outra forma de aludir à aglutinação, no sentido de
mostrar uma alternativa teórica consistente no tocante às definições, contidas nas
gramáticas, desse processo, para que se possam atenuar algumas limitações perceptíveis
em tais conceitos.
Resta saber, agora, se é característico do gênero artigo jornalístico a concisão da
linguagem, o que explicaria o fato de ser tão comum a recorrência da aglutinação sintática
discursiva. E se é próprio da Língua Portuguesa este fenômeno ou se ele é extensivo ao
francês, por exemplo. Tais assuntos serão provavelmente abordados em um próximo
trabalho (tese de doutorado).
112
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