recensão

9
VENARD, Marc, Le forme personali della vita religiosa, in Il Tempo delle Confessioni (1530-1620/30) (Storia del Cristianesimo, dir. Jean- Marie Mayeur – Charles e Luce Pietri – André Vauchez – Marc Venard, VIII), dir. Marc Venard, Roma: Borla – Città Nuova, 2001, 931-965. No texto que nos propomos recensear, intitulado As formas pessoais da vida religiosa, o autor, Marc Venard, a partir de quatro subtítulos, aborda as questões inerentes à vivência cristã no âmbito da diversidade confessional europeia do século XVI. O primeiro subtítulo, A escolha confessional, mostra-nos como a adesão a uma confissão cristã consciente das questões doutrinais e das consequências práticas era apenas possível a um grupo restrito de pessoas, conhecedores do latim e da teologia (universitários, canonistas, médicos e eclesiásticos), bem como àqueles que eram capazes de ler em língua vulgar, «mais numerosos nas cidades que nos campos e mais na Europa norte-ocidental que nos países mediterrânicos» (p. 931). Destacam-se também algumas mulheres que sentem na Reforma Protestante a afirmação de uma certa igualdade em relação aos homens, embora o seu papel não seja de todo equivalente. No final do século XVI, as mudanças de confissão tornam-se menos frequentes, sendo que a maioria delas decorre por motivos económico-sociais, tais como a emigração e o matrimónio.

Upload: anonymous-xokgon

Post on 18-Feb-2016

214 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Recensão de VENARD, Marc, Le forme personali della vita religiosa, in Il Tempo delle Confessioni (1530-1620/30) (Storia del Cristianesimo, dir. Jean-Marie Mayeur – Charles e Luce Pietri – André Vauchez – Marc Venard, VIII), dir. Marc Venard, Roma: Borla – Città Nuova, 2001, 931-965.

TRANSCRIPT

Page 1: recensão

VENARD, Marc, Le forme personali della vita religiosa, in Il Tempo delle Confessioni

(1530-1620/30) (Storia del Cristianesimo, dir. Jean-Marie Mayeur – Charles e Luce

Pietri – André Vauchez – Marc Venard, VIII), dir. Marc Venard, Roma: Borla –

Città Nuova, 2001, 931-965.

No texto que nos propomos recensear, intitulado As formas pessoais da vida

religiosa, o autor, Marc Venard, a partir de quatro subtítulos, aborda as questões inerentes

à vivência cristã no âmbito da diversidade confessional europeia do século XVI.

O primeiro subtítulo, A escolha confessional, mostra-nos como a adesão a uma

confissão cristã consciente das questões doutrinais e das consequências práticas era apenas

possível a um grupo restrito de pessoas, conhecedores do latim e da teologia

(universitários, canonistas, médicos e eclesiásticos), bem como àqueles que eram capazes

de ler em língua vulgar, «mais numerosos nas cidades que nos campos e mais na Europa

norte-ocidental que nos países mediterrânicos» (p. 931). Destacam-se também algumas

mulheres que sentem na Reforma Protestante a afirmação de uma certa igualdade em

relação aos homens, embora o seu papel não seja de todo equivalente. No final do século

XVI, as mudanças de confissão tornam-se menos frequentes, sendo que a maioria delas

decorre por motivos económico-sociais, tais como a emigração e o matrimónio.

A Piedade Individual é abordada no segundo subtítulo, onde se pode constatar

alguma semelhança na prática religiosa dos crentes católicos e protestantes: em primeiro

lugar, todos os cristãos são convidados a confiar a sua jornada a Deus; em segundo,

desenvolvem-se, em ambos os lados, meios necessários para esse fim, transpondo a prática

religiosa das igrejas para o ambiente familiar. Tal facto é apreciado da seguinte forma:

«A prática doméstica é fruto de uma educação desenvolvida pelas autoridades

eclesiais e pela elite social. Para os protestantes, é expressão quotidiana do sacerdócio

universal e faz com que o trabalho profissional seja abençoado por Deus. Para os católicos,

é a conduta meritória da fé em estado de graça» (pp. 936-937).

Page 2: recensão

No que diz respeito às devoções, assiste-se a um surgimento de novas práticas, ao

mesmo tempo que se valorizam formas tradicionais. Graças à imprensa, difunde-se pelo

catolicismo, o Livro das Horas e propagam-se orações, cheias de indulgências e promessas

de salvação. O Rosário, com origem na Idade Média, torna-se um meio de meditação dos

mistérios de Cristo, fazendo assim «a ponte entre a velha e nova prática de oração» (p.

937). As peregrinações ganham um carácter de piedade individual e a prática sacramental é

revitalizada pela autoridade eclesiástica, sobretudo, depois de Trento. Desenvolvem-se

novas devoções, tal como a do Anjo da Guarda, e outras são revitalizadas, tal como a

devoção a São José. Entre os protestantes, que não admitiam a intercessão dos santos, não

se desenvolvem ritos de propiciação. Estes são, contudo, substituídos por uma panóplia de

orações adaptadas às diversas circunstâncias, que querem ser para o fiel uma «força na

necessidade», um «conforto na dificuldade» e uma «armadura espiritual» (cf. p. 940).

Além de todas estas devoções, desenvolve-se de modo particular a oração mental,

propagada entre os fiéis graças à imprensa, que possibilitou a multiplicação de manuais,

fazendo com que a meditação tivesse saído dos claustros para a sociedade laica. Na difusão

desta prática contribuíram os Exercícios Espirituais de Inácio de Loiola e os Escritos de

Teresa de Ávila.

Neste contexto de revitalização espiritual, assumem um papel importante Os

mestres espirituais e a literatura de devoção (terceiro subcapítulo). Por um lado, a obra

prima da Devotio Moderna, A Imitação de Cristo, continua a ser abundantemente lida, tal

como o livro A Pérola Evangélica, que constitui uma das referências da espiritualidade

renano-flamenga desta altura, ou os livros do beneditino Louis de Blois, cujas obras são

best-sellers. Por outro lado, este século vê surgirem figuras que revitalizam a

espiritualidade, através do testemunho de vida e da escrita. Uma das figuras incontornáveis

é Inácio de Loiola, cuja vida, espelhada de certa forma nos seus Exercícios Espirituais,

marcou determinantemente a Igreja. Neste sentido diz M. Venard, « (…) os Exercícios

foram a mola fundamental dos membros da Companhia de Jesus e dos fiéis da sua

direcção, impregnando-lhes uma mística orientada para a acção, fértil em iniciativas de

todo o género» (p. 944).

Page 3: recensão

Em Itália destaca-se Filipe de Néri, fundador do Oratório, cujo apostolado de

proximidade e simplicidade repercute-se na vida dos cristãos de Roma, enquanto a obra O

Combate Espiritual, atribuída a Lourenço Scupoli, destaca-se na literatura devota. Em

Espanha, regista-se um grande florescimento espiritual, apesar do ambiente de suspeita

provocado pela Inquisição, a braços com os alumbrados e com os recogidos. Teresa de

Ávila e João da Cruz assumem posições cimeiras, destacando-se também Frei Luís de

Granada, cujas obras revelam uma preocupação pedagógica na orientação da vida

espiritual. No final do século, evidenciam-se também dois jesuítas, Luís de la Puente e

Alfonso Rodriguez. No caso de França, constata-se a influência das obras de São Bernardo

e a Imitação de Cristo. Só no final do século, em virtude do ambiente religioso tenso e por

vezes bélico que ali se vive, surgem aquilo que o autor denomina de “círculos devotos”, o

mais famoso dos quais o círculo de Paris, em torno de Madame Acarie. Deste círculo o

autor destaca algumas figuras como Benedito de Canfield, capuchinho e «grande místico»,

«excelente teólogo» e «director espiritual muito refinado» (cf. p. 949), ou Pierre de

Bérulle, autor do Discurso sobre a abnegação, que, juntamente com Madame Acarie,

introduzirá a reforma carmelita em França. Francisco de Sales destaca-se como pregador,

director espiritual e escritor (Introdução à vida devota e O Tratado do Amor de Deus).

Juntamente com Joana de Chantal haveria de fundar a Ordem da Visitação.

Nos últimos dois pontos deste subcapítulo, o autor debruça-se sobre a Mística

Protestante e os Místicos Anglicanos, respectivamente. A obra O Verdadeiro Cristianismo,

de Johann Arndt, composta por quatro livros (Liber Scripturae, Liber Vitae, Liber

Conscientiae, Liber Naturae) é uma obra de referência para os luternaos. Menos

dependentes de qualquer ortodoxia confessional e mais impelidos pela mística subjectiva,

são os famosos e polémicos escritos do curioso sapateiro de Görlitz, Jakob Böhme. Neles,

expõe a sua experiência pessoal, dando azo a suspeitas por parte das autoridades luteranas,

que haveriam de anatematizá-lo. Em Inglaterra, as obras de relevo espiritual são o Prayer

Book de Granmer e a Bíblia de King James. A figura de maior relevo é a de Lancelot

Andrewes, cuja carreira eclesiástica se apresenta irrepreensível e cujas obras revelam

elevada erudição e cultura.

Page 4: recensão

Por fim, no último subtítulo, A Santidade, Venard expõe aqueles que seriam os

critérios de santidade que se podem distinguir neste contexto, tanto para católicos, como

para protestantes. De facto, à «intransigência do Calvinismo [no que diz respeito ao culto

dos santos] contrapõe-se o tom conciliante da Confissão de Augsburgo» (p. 956), que

considera importante a memória dos santos como exemplo de vida. Assim se explicam os

nomes de baptismo tirados do Antigo e Novo Testamento e a quase canonização dos heróis

da Reforma, como no caso de Lutero, aquando da celebração do primeiro centenário da

Reforma (cf. p. 957). No seio católico, reorganiza-se e revitaliza-se o culto dos santos.

Neste sentido, pergunta o nosso autor: «Que santos se podem considerar típicos do nosso

período? Aqueles que a Igreja romana proclamou como tal, (…) ou aqueles que são já

considerados santos pelos contemporâneos, antes que a Igreja se pronuncie?» (p. 957) Ora,

tanto uma categoria como outra serão importantes para responder à primeira questão. No

entanto, apercebe-se pelo texto que os séculos XVII e XVIII acabam por ser mais prolixos

em causas de santos, não porque o movimento de reforma católica não os produza, mas

porque os critérios de santidade só serão legalmente definidos por Urbano VIII, em 1634.

Não obstante, é possível descortinar quatro modelos que pautam este século: os mártires,

os convertidos, os heróis da caridade e os pastores.

Os primeiros referem-se às vítimas das guerras fratricidas entre cristãos, sendo que

os mártires protestantes são logo honrados, enquanto os católicos mártires desta época só o

serão mais tarde. Os segundos não se referem aos que mudaram de confissão, mas àqueles

que «(…) abandonaram uma vida relaxada e medíocre, se não pecaminosa, para se

colocarem no seguimento de Cristo» (pp. 959-960). Exemplo maior desta conversão é

Inácio de Loiola, mas também César de Bus ou Vicente de Paulo, bem como Teresa de

Ávila e Ludovica Torelli. Os heróis da caridade, como João de Deus, Camilo de Lellis e

Vicente de Paulo, são modelo típico dos católicos deste período, não porque os

protestantes desprezassem a caridade evangélica, mas porque concebiam-na como acção

específica da sociedade e do Estado. Os pastores, enfim, emergem como modelos de

santidade, pois as reformas, tanto católica como protestante, exigiram naturalmente dos

seus ministros uma vida digna da sua condição. A diferença, mais uma vez, está na

memória que deles é feita, sendo que na Igreja Católica, em virtude do culto dos santos, o

Page 5: recensão

exemplo dos seus pastores ganha uma relevância mais efectiva. Seguindo este filão, o

artigo acaba com a referência às canonizações de Inácio de Loiola, Francesco Saverio,

Filipe de Néri, Teresa de Ávila e Isidoro, a 12 de Março de 1622, pelo Papa Gregório XV.

Os primeiros quatro poderão representar claramente o movimento de reforma da Igreja

Católica. No entanto, Isidoro destoa deste quadro, pela sua distância temporal e pelo teor

lendário da sua biografia. Ora, para o nosso autor, trata-se de uma acção motivada mais por

factores políticos que pastorais, tendo a Igreja perdido «uma boa oportunidade para

oferecer aos fiéis leigos um santo próximo e imitável» (p. 965).

Da leitura deste texto podemos extrair algumas conclusões que, a nosso ver, se

destacam, não tanto porque sejam explicitamente expostas pelo autor, mas antes porque

sobressaem da leitura dos factos aqui expostos.

Uma refere-se à constatação de uma certa semelhança, para não dizer diluição, da

vivência religiosa no ambiente laical em contexto multiconfessional, vivência essa que

diverge na forma, mas não tanto nos objectivos e no fervor. Por um lado, assiste-se ao

desenvolvimento da piedade, enquanto meio de vivência religiosa no estrato popular, nas

variadas confissões. Por outro, as motivações económico-sociais, como emigração e

matrimónio, sempre criticadas pela Igreja católica, mostram como a este nível acabava por

não haver grande diferenciação.

Além disso, fica claro o papel da imprensa no desenvolvimento espiritual, tanto

para protestantes, como para católicos. Neste sentido, este texto ajuda a desmistificar a

ideia de que a reforma protestante é filha da imprensa. Ora, se é verdade que a reforma a

soube utilizar como meio de difusão dos ideais dos reformadores, também é verdade que

poucos são aqueles que os assumem conscientes das questões doutrinais subjacentes, como

também é verdade que poucos são os que eram capazes de ler. Para além disso, a

quantidade de obras, que marcam esta etapa histórica, apresentadas sobretudo no terceiro

subcapítulo, mostram como a descoberta da imprensa não é deveras alheia ao catolicismo.

Por fim, destacamos a importância de Inácio de Loiola e dos jesuítas, que se

distinguem como directores, mestres e escritores espirituais; promovem devoções e,

sobretudo, a meditação mental, por via dos Exercícios inacianos; concorrem firmemente

para a evangelização e para a educação e influenciam outras grandes figuras desta época,

Page 6: recensão

como Teresa de Ávila ou Francisco de Sales. Assim, embora seja claro que a reforma

católica não se baseie na sua acção, o seu papel na concretização da reforma e na

revitalização espiritual no mínimo se nos depara preponderante.