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São Paulo 2012 REVISTA BRASILEIRA DE

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São Paulo2012

REVISTA BRASILEIRA

DE

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Diretoria Abralic 2012-2013

Presidente Antônio de Pádua Dias da Silva (UEPB)

Vice-Presidente Ana Cristina Marinho Lúcio (UFPB)

Secretário José Hélder Pinheiro Alves (UFCG)

Tesoureiro Diógenes André Vieira Maciel (UEPB)

Conselho Fiscal Sandra Margarida Nitrini (USP)

Helena Bonito Couto Pereira (Univ. Mackenzie)

Arnaldo Franco Junior (UNESP - S. J. do Rio Preto)

Carlos Alexandre Baumgarten (FURG)

Rogério Lima (UnB)

Germana Maria Araújo Sales (UFPA)

Marilene Weinhardt (UFPR)

Luiz Carlos Santos Simon (UEL)

Suplentes Adeítalo Manoel Pinho (UEFS)

Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN)

Conselho Editorial Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Sou-

za, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar, Luiz Costa Lima,

Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner,

Yves Chevrel.

A B R A L I CCNPJ 91.343.350/0001-06Universidade Estadual da ParaíbaCentral de Integração Acadêmica de Aulas R. Domitila Cabral de Castro S/N 3º Andar/Sala 326 CEP: 58429-570 - Bairro Universitário (Bodocongó) Campina Grande PB E-mail: [email protected]

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REVISTA BRASILEIRA

DE

ISSN 0103-6963

Rev. Bras. Liter. Comp. São Paulo n.21 p. 1-185 2012

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2008 Associação Brasileira de Literatura Comparada A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN- 0103-6963) é uma publicação semestral da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Compa rada, fundada em Porto Alegre, em 1986.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

Editora Ana Cristina Marinho Lúcio

Comissão editorial Antônio de Pádua Dias da Silva

Diógenes André Vieira Maciel

José Hélder Pinheiro Alves

Revisão Priscilla Ferreira

Editoração Magno Nicolau (Ideia Editora Ltda.)

Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação Brasileira de Literatura Comparada – v.1, n.1 (1991) – Rio de Janeiro: Abralic, 1991- v.1, n.21, 2012

ISSN 0103-6963

1. Literatura comparada – Periódicos. I. Associação Brasileira de Literatura Comparada.

CDD 809.005 CDU 82.091 (05)

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Sumário

Apresentação Ana Cristina Marinho Lúcio 7

Artigos

Identidade e hibridismo na Amazônia Brasileira: um estudo comparativo de Dois irmãos e Cinzas do norte, de Milton Hatoum Gilson Penalva Liane Schneider 11

Pós-colonialismo, feminismo e construção de identidades na ficção brasileira contemporânea escrita por mulheres Lúcia Osana Zolin 51

Um lugar não mais: o romance brasileiro contemporâneo nos limites do Império (o caso Bernardo Carvalho) Paulo César Silva de Oliveira 71

Antonio Callado e a rasura da identidade nacional Rejane C. Rocha 109

Entre gritos, silêncios e visões: pós-colonialismo, ecologia e literatura brasileira Roland Walter 137

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Caliban reescrito: a figura do oprimido em A Tempestade, de Augusto Boal Sirlei Santos Dudalski Mariana De-Lazzari Gomes 169

Postcolonial female fiction: from the solitary stand in Carolina Maria de Jesus to the solidary diction in ConceiçãoEvaristo Valeria Rosito 191

Pareceristas 213

Normas da revista 215

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Apresentação

Nossa experiência pós-colonial, única e diversa, que ora nos aproxima de outros países colonizados por Por-tugal, ora dos nossos vizinhos da América Latina, parece ainda ser um entrave para a interpretação de textos lite-rários que toma como base as teorias pós-coloniais. Inter-pretar um texto “politicamente” não representa nenhuma novidade para a crítica literária brasileira, a diferença está na inclusão no campo literário de questões de gênero, raça e etnia que deslizam na interface cultura/natureza.

Em cada um dos estudos desenvolvidos pelos pesqui-sadores que participam dessa edição da Revista Brasileira de Literatura Comparada, é possível perceber o cuidado em evitar essencialismos e dualismos pouco produtivos. Os textos literários analisados proporcionam a escuta de vozes esquecidas, emudecidas, amordaças: mulheres, ne-gros e índios, estrangeiros e migrantes, tornam-se agentes e são ouvidos através da paródia, do relato, da reescrita. Textos que não apenas se apropriam da teoria pós-colo-nial, mas também a questionam, evidenciando discussões sobre cânone, racismo, movimentos diaspóricos, multi-culturalismo.

O mecanismo da reescrita comparece no artigo sobre A tempestade, do dramaturgo Augusto Boal, escrito por Sirlei Santos Dudalski e Mariana De-Lazzari Gomes. As atuações do dramaturgo denotam uma tomada de posição em favor da descolonização. Como afirmam os autores do artigo: “o Teatro do Oprimido é o teatro das classes oprimidas e de todos os oprimidos, mesmo no interior das classes. Assim, Caliban representa o colonizado pelo co-lonizado: tanto o protagonista quanto o espectador são

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Caliban e nunca se contentam em apenas refletir sobre o passado, mas repensam o presente e se preparam para o futuro.”

Questões sobre diásporas e os fenômenos culturais provocados por ela, são discutidas no artigo “Identidade e hibridismo na Amazônia brasileira: um estudo compa-rativo de Dois Irmãos e Cinzas do Norte, de Milton Ha-toum”. O deslocamento de olhares para a cidade, para os processos de negociação entre as múltiplas etnias que compõem as populações que vivem na Amazônia, nem sempre pacíficos, nem sempre tranquilos, bem como os discursos “homogeneizantes e tradicionais” sobre a iden-tidade cultural da Amazônia, são problematizados por Gilson Penalva e Liane Schneider: “não estamos propon-do substituir a força de um discurso hegemônico por ou-tro marginalizado, mas sim, pensar a partir da fronteira, nos interstícios, observando as formas que assumem os diálogos entre culturas.”

Rejane C. Rocha discute no seu artigo o que chamou de rasura da identidade nacional, a partir da leitura das obras Quarup e A expedição Montaigne, de Antonio Callado. Para a autora, “Entender a identidade nacional como espectro e miragem é, antes de tudo, aproximá-la à ideia de uma imagem forjada, portanto não natural, esta-belecida e construída, nunca inerente.” Callado, através da ironia, presente nas duas obras, em escala diferencia-da, explora os “escombros do que se delineou, em diferen-tes épocas, como o “ser brasileiro””.

No texto de Lúcia Osana Zolin ouvimos as vozes de mulheres “descolonizadas e donas de sua vontade.” A au-tora analisa os romances As meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles, A república dos sonhos (1984), de Né-lida Piñon, e A audácia dessa mulher (1999), de Ana Maria Machado e afirma: “No conjunto, essas “meninas” orquestram imagens da mulher-para-ela-mesma, con-forme a definição de Touraine (2007), num movimento que sinaliza uma heterogeneidade de facetas femininas, cujas angústias e prazeres, em constante movimento, caminham na contramão tanto do essencialismo histori-camente atribuído à mulher e refutado pelo feminismo,

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9Apresentação

como dos tradicionais papéis subalternos atribuídos aos negros, aos índios e às mulheres, refutados pelo pós-co-lonialismo.”

O texto de Valéria Rosito, intitulado “Postcolonial female fiction: from the solitary stand in Carolina Maria de Jesus to the solidary diction in Conceição Evaristo”, discute as relações entre conceitos de nação, diáspora e resistência simbólica. Tomando Joel Rufino dos Santos e Gayatri Spivak como principais apoios teóricos e críti-cos, a autora discute como o que aparentemente era to-mado como ‘falta’, inclusive ‘falta de qualidade literária’ por parte da crítica, indicava, na verdade, uma marca de subalternidades outras; ‘raça’ e ‘gênero’ emergem como conceitos que se reapresentam no território do literário a partir da memória e do ato de documentá-la.

Roland Walter, no artigo “Entre gritos, silêncios e visões: pós-colonialismo, ecologia e literatura brasileira”, chama a atenção para o perigo de mistificação de histó-rias coloniais quando desvinculamos a natureza da histó-ria. A leitura de obras de Cuti, Graça Graúna, Antonio Torres, João Ubaldo Ribeiro, Clarice Lispector, Benedito Monteiro e Manoel de Barros, entre outros, evidencia a importância de insistir no diálogo entre os estudos pós--coloniais e ecológicos. Para o autor: “Além desta memó-ria coletiva e social, como diria Maurice Halbwachs, que imbui a tessitura dos textos literários e trabalha a ligação entre a episteme cultural e a geografia, a literatura brasilei-ra revela uma memória interbiótica que evoca os efeitos coloniais na contemporaneidade pós-colonial, tanto em termos específicos ligados à nação brasileira quanto em termos humanos universais.”

Para finalizar essa breve apresentação, não podemos deixar de mencionar a experimentação linguística na língua dos ex-colonizadores, outro viés explorado pelos teóricos do pós-colonialismo, presente no artigo de Pau-lo César Silva de Oliveira. Especialmente voltado para a análise do romance O filho da mãe, de Bernardo Carva-lho, mas estabelecendo diálogos com a escritura de Gui-marães Rosa, o autor chama a atenção para o estudo da língua, vista não apenas como “herança, mas fenômeno

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de pertinência e recusa, atração e repulsa.”. Paulo Olivei-ra, que prefere chamar a produção de Bernardo Carvalho de “ficção migrante”, conclui que: “O mundo de Carva-lho é o da mobilidade, e o lugar de sua prosa é o que cha-maremos de “um lugar não mais”, adjunto a “um tempo não mais”, que é o tempo configurado pela reflexão e pela rejeição, recusa de um mundo supostamente integrador, mas que categoriza, separa, exclui.”

Paraíba

Ana Cristina Marinho

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Identidade e Hibridismo na Amazônia Brasileira: Um Estudo

Comparativo de Dois Irmãos e Cinzas do Norte, de Milton Hatoum

Gilson Penalva*

Liane Schneider**

* Universidade Federal do Pará (Campus Marabá).

** Universidade Federal da Paraíba

Resumo: O presente artigo propõe discutir os processos de identificação da Amazônia brasileira em suas representações literárias a partir de uma análise comparativa dos romances Dois Irmãos e Cinzas do norte, de Milton Hatoum, enfocando o hibridismo e a diferença cultural a partir das teorias desenvolvidas pelos estudos culturais e pós-coloniais. A proposta é destacar as construções que o autor acima apresenta no que se refere aos discursos produzidos e veiculados sobre aquela região. Na comparação desenvolvida, é possível reconhecer um projeto literário que prioriza as interações que tomam lugar nas várias trocas culturais que ali se estabelecem na Amazônia brasileira, desconstruindo as representações historicamente estabelecidas sobre a região. PalavRas-Chave: Amazônia; identidade; hibridismo; diferença; Milton Hatoum

abstRaCt: The present study discusses processes of identification that take place in Brazilian Amazon and its literary representations from a comparative perspective, analyzing the novels Dois Irmãos and Cinzas do norte, by the Brazilian writer Milton Hatoum, focusing on hybridism and cultural difference, based on cultural and post-colonial theories. The idea is to point out, through a critical reading, the constructions developed by the mentioned author in respect to the discourses disseminated about that specific region. In the compared reading developed, it is possible to recognize a project (literary, social, and discursive), giving priority to the interactions that take place, deconstructing established representations about in the region. KeywoRds: Amazon; identity; hybridism; difference; Milton Hatoum

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Introdução

O presente artigo discute processos de construção de identidades na Amazônia brasileira, tendo como referenciais teóricos a literatura comparada, os estudos culturais e pós-coloniais. A leitura dos textos literários foi realizada a partir de um lugar (teórico) afinado com uma perspectiva culturalista, tendo como autores de sustentação Homi K Bhabha, Alberto Moreiras, Hugo Achugar, Stuart Hall, Ana Pizarro, entre outros.

Durante a reflexão sobre os textos ora abordados, algumas perguntas apareceram e, de certa forma, ajudaram a encaminhar as questões: como pensar a questão da diferença cultural e a luta de classes? Como pensar as diferenças como valor e não como problema? Como elaborar um debate sobre os processos de construção de identidades, ou melhor, processos de identificação na Amazônia, sem cair nos essencialismos reducionistas? Como pensar o hibridismo cultural sem restringi-lo apenas à mistura de culturas, e sim, como forma de conhecimento, como metodologia capaz de romper com ilusões de purismos e etnocentrismos culturais? É evidente que muitas dessas perguntas não têm respostas definitivas, sendo indagações que permeiam o debate de muitos pesquisadores da literatura e da cultura. Com certeza, tais indagações persistirão como impulsos produtivos para futuros estudos, tendo em vista a atualidade da temática.

Em nossa análise nos voltamos aos dois romances de Milton Hatoum citados em nosso título, apresentando o lugar discursivo desse autor ao representar a Amazônia (assim como os processos de identificação que propõe) associada ao hibridismo e à negociação. Mostramos que a narrativa de Hatoum desloca o olhar já tradicional e exótico da selva, do índio e do rio para a cidade, onde processos de modernização e modernidade da Amazônia assumem posição central.

As duas obras de Milton Hatoum aqui analisadas, publicadas em 2000 e 2005, foram premiadas, recebendo

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também grande aceitação e prestígio de público e crítica. Portanto, a partir de agora iremos nos embrenhar na discussão, na mata, na Amazônia, tanto rural quanto urbana, enfim, nas várias construções desses Brasis do Norte.

Literatura, cultura e identidade

É comum nos textos que se encarregaram de discutir os percursos históricos e teóricos da literatura comparada, tanto no Brasil quanto na Europa, ser mencionada a dificuldade de se delimitar o campo dessa área do conhecimento, tendo em vista que seus objetivos e métodos tem se alterado de acordo com o tempo e espaço. As origens dessa disciplina remontam às literaturas gregas e romanas, ou seja, sua origem pode se confundir com as origens da própria literatura. No entanto, podemos demarcar o século XIX como sendo o momento em que a mesma se institucionaliza como disciplina acadêmica no contexto europeu. A partir desse momento, esse saber intelectual assume roupagem de campo do conhecimento, gozando de prestígio nos meios acadêmicos. Sandra Nitrini em seu livro Literatura Comparada: história, teoria e crítica, (1997), ao pensar o objeto dessa disciplina, afirma:

O objeto é essencialmente o estudo das diversas literaturas nas suas diversas relações entre si, isto é, em que medida umas estão ligadas às outras na inspiração, no conteúdo, na forma, no estilo. Propõe-se a estudar tudo o que passou de uma literatura para outra, exercendo uma ação, e variada natureza. (NITRINI, 1997, p.24).

As principais contribuições para o campo da li-teratura comparada nos tempos mais recentes vão desde a noção de intertextualidade de M. Bakhtin (1979; 1988; 1992) e J. Kristeva (1977) até o conceito

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de transtextualidade ou transcendência textual de Gérard Genette (2005); do conceito de hibridismo e diferença cultural de Homi K. Bhabha (1998) ao conceito de entre-lugar, de Silviano Santiago (1978), no contexto da América Latina. Essas teorias têm produzido pensamentos insubordinados, instáveis, não sequenciais, não lineares, que vêm contribuindo para o rompimento de sistemas de hierarquização, causando a abertura de um texto para outros, em várias direções, o que tem problematizado princípios de hegemonia e supervalorização do centro. No contexto da América, essas mudanças no projeto da literatura comparada têm sido traduzidas por princípios de resistência aos propósitos de hegemonia, alterando modelos, a partir de pressupostos de abertura dialógica, aceitação da impureza como marca definidora da identidade, diluição das fronteiras entre o erudito, o popular e o das massas, muitas vezes através de procedimentos denominados de reciclagem e hibridismo cultural, que carregam nas suas dinâmicas certa imprevisibilidade, que tem possibilitado no debate cultural a recuperação de traços e vozes antes inaudíveis.

Os professores da UFMG, Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda, no texto Perspectivas da Literatura Comparada no Brasil (1997), reafirmam a contribuição da noção de intertextualidade postulada por M. Bakhtin e J. Kristeva para os estudos comparativos. Segundo eles, a intertextualidade contribuiu de forma significativa para que houvesse uma desvinculação do discurso literário de um caráter fechado e autossuficiente:

A quebra da hierarquia dos discursos resulta no descentramento do lugar privilegiado anteriormente reservado ao original, denunciando a falácia ideológica que reveste as noções anteriores de fonte e influência e resgatando o valor da cópia em relação ao modelo. Por outro lado, ao introduzir a memória do leitor como função interativa no processo da leitura e na recepção de teorias

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estrangeiras, o intertexto amplia o horizonte de expectativas do leitor e o universo cultural e disciplinar da relação comparatista. Noções como as de débito e filiação, antes circunscritas no âmbito das trocas simbólicas unilaterais, são deslocadas de seu espaço original pelo trânsito de mão-dupla das ideias e pela apropriação diferenciada do signo “estrangeiro” (SOUZA & MIRANDA, 1997, p.41).

Sem dúvida, ao se tratar de contextos geralmente idealizados em seu isolamento, como o amazônico, não seria possível deixar de discutir ideias relacionadas aos conceitos de ‘periferia’ e ‘centro’, reconhecendo haver uma grande diversidade de formas de abordar tal relação; há os que pensam que esse debate se tornou caduco, como consequência da globalização (Appadurai e García Canclini), onde os múltiplos cruzamentos e interações culturais teriam problematizado pretensões homogeneizantes. Dessa forma, não haveria mais centro e periferia e, ao se romper com essas divisões rígidas, teríamos necessariamente uma convivência de povos e culturas fortemente diferenciados em melhores termos. Há também os que defendem que não é possível refletir sobre o imaginário de nosso tempo sem afirmar o lugar de enunciação, ou seja, “sem deixar de inscrever o lugar a partir de onde se fala naquilo que se fala”, como afirma Hugo Achugar, em Planetas sem boca (2006), já que somos sujeitos ocupando algum espaço, ainda que esse possa ser um local provisório.

De toda a forma, acreditamos que o próprio conceito de periferia tornou-se complexo em tempos de globalização. Hugo Achugar constrói uma reflexão interessante sobre essa temática. Segundo ele, na América Latina não se pode continuar pensando em periferia e centro, pois isso acarreta “uma forma de subjugação e apropriação da voz do outro”. Ao invés de falar pelo outro, generalizando discursos, é preciso dar voz e espaço a esse(a) para externar o seu ponto de vista, a sua forma de ser e estar. Hugo Achugar não concorda que tenha caducado a oposição

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entre centro e periferia, mesmo sabendo que podemos encontrar grupos hegemônicos e subalternos no centro, assim como podemos encontrar, no centro, relações de centro-periferia; ou seja, as culturas estão cada vez mais interligadas, interconectadas e interativas. Segundo esse crítico, “o centro, a nível simbólico e discursivo, está atravessado por desigualdades sócio-econômicas e, também, por problemáticas, que surgem das reivindicações de gênero, raça e orientação sexual” (ACHUGAR, 2006, p.92). Em síntese, esse autor propõe que tanto o centro quanto a periferia estão atravessados por problemáticas diversas e que o “simulacro de homogeneidade, necessário à estratégia ou à política de representação do centro, não consegue apagar a complexa heterogeneidade do mundo real” (Idem, Ibidem, p. 92).

Cultura, hibridismo, identidade/identificação

Gostaríamos de esclarecer de imediato que um pensamento insensível às mobilidades e travessias de uma cultura de fronteira1, aqui compreendida na mesma acepção de Boaventura de Sousa Santos (1994), tenderá a mostrar-se improdutivo para se pensar as literaturas e culturas produzidas na Amazônia. Dentro de uma proposta maior de elaborar uma reflexão sobre cultura e identidade na Amazônia brasileira, a partir da leitura de textos literários produzidos nessa região, problematizando dramas, conflitos, desejos, anseios e formas de ser dos povos da Amazônia, alguns conceitos apareceram e se colocaram como indispensáveis: hibridismo ou hibridização, apropriação e acomodação, crioulização ou crioulidade, tradução e diferença cultural, heterogeneidade e transculturação.

Nesse mesmo sentido, trazemos reflexões de di-ferentes autores sobre o conceito relativo à construção da identidade. Este conceito é demasiadamente complexo, pois segundo Hall (1999), comportando-

1 Na acepção de Boaventura de Sousa Santos trata-se de um espaço intervalar, móvel e complexo, propício para trocas e interações culturais, reorganizador de novas identidades provisórias e instáveis. Nas palavras do próprio autor: “A zona fronteiriça é uma zona híbrida, babélica, onde os contatos se pulverizam e se ordenam segundo micro-hierarquias pouco suscetíveis de globalização. Em tal zona, são imensas as possibilidades de identificação e de criação cultural, todas igualmente superficiais e igualmente subvertíveis (...)”. (SANTOS, 1994; 49).

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se como muitos outros fenômenos sociais, torna-se praticamente impossível oferecer afirmações conclusivas ou julgamentos seguros sobre o mesmo. Cada um de nós é constituído por elementos múltiplos que não se resumem a referentes empiricamente verificáveis, como o sexo ou a cor da pele. Pertencemos a uma tradição, a um grupo, a uma nacionalidade e somos atravessados por várias dessas pertenças ao mesmo tempo. Esse sentimento de pertencimento frequentemente muda ao longo de nossa vida, conforme nossos trajetos e os momentos históricos.

A palavra identidade vem do latim identitas, identitate e inicialmente se caracteriza pela percepção do mesmo, daquilo que é igual, idêntico. A identidade, por sua vez, será aqui utilizada distante da própria etimologia da palavra que está associada ao termo latim Idem que quer dizer a mesma coisa, igualdade, perfeitamente igual; contrariando esse pensamento, a identidade passa a ser compreendida nos tempos atuais na relação com a diferença. Essa concepção de identidade está relacionada com o pensamento de Stuart Hall, que a compreende como uma “celebração móvel” (HALL, 2005, p.13), assim como com o pensamento de Homi K. Bhabha, que afirma que pensar nas identidades é pensar nas fissuras, nas negociações, no movimento, na relação com o outro (SOUZA, 2004, p.114).

Bhabha (1998) elabora uma reflexão ampla e consistente sobre a questão da identidade e da diferença cultural. Para ele, é preciso haver uma revisão da história da teoria crítica, embasada na noção de diferença cultural e não na de diversidade. Segundo o seu raciocínio, a diversidade cultural é um “objeto epistemológico – a cultura como objeto do conhecimento empírico”, e a diferença cultural “é o processo da enunciação da cultura como “concebível”, legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural, ao priorizar afirmações da ou sobre a cultura com a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade” (BHABHA, 1998, p. 63). E continua:

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A diversidade cultural é o reconhecimento de conteúdos e costumes culturais pré-dados; mantida em um enqua-dramento temporal relativista, ela dá origem a noções liberais de multiculturalismo, ou intercâmbio cultural ou da cultura da humanidade. A diversidade cultural é também a representação de uma retórica radical de separação de culturas totalizadas que existem intocadas pela intertextualidade de seus locais históricos, protegidas na utopia de uma memória crítica de uma identidade coletiva única. A diversidade cultural pode inclusive emergir como um sistema de articulação e intercâmbio de signos culturais em certos relatos antropológicos do início do estruturalismo. (BHABHA, 1998, p. 63)

O conceito de diferença cultural é pensado paralelo ao problema da ambivalência da autoridade cultural. Essa autoridade é colocada em xeque quando se compreende que essa supremacia cultural só é produzida no momento da diferenciação. É no momento da enunciação – daí seu caráter instável - que a cultura como conhecimento da verdade referencial é colocada em questão. Todas as afirmações e sistemas culturais são construídos nesse espaço contraditório e ambivalente da enunciação, daí não se sustentar nenhuma reivindicação hierárquica de originalidade ou pureza inerente às culturas, principalmente quando se sabe que todas se constituíram ou se constituem a partir de elementos díspares de culturas diversas, todas sendo híbridas desde sempre.

É partindo desse raciocínio que Bhabha apresenta o conceito de Terceiro Espaço, “movimento flutuante” de instabilidade oculta, espaço indeterminado do(s) sujeito(s) da enunciação. Este espaço, embora irrepresentável, constitui as condições discursivas da enunciação, garantindo que o significado e os símbolos da cultura não tenham unidade e fixidez, fazendo com que os “signos possam ser apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro modo” (1998, p. 68). Na compreensão da diferença cultural, sobretudo nas representações pós-coloniais, o sujeito toma consciência de que é portador

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de uma identidade híbrida, o que lhe dá possibilidades de destruir as continuidades e constâncias de tradição nacionalista, criando condições para negociar e traduzir suas identidades culturais na temporalidade descontínua, intertextual, da diferença cultural (Idem, Ibidem).

Numa entrevista2 que concedeu a Jonathan Rutherford, em 1994, Bhabha, além de estabelecer distinção entre diversidade e diferença, enfatiza as noções de tradução e hibridação como pertencentes à diferença cultural. Segundo ele, o debate sobre a diferença é promissor e necessário que se faça, tendo em vista que a noção de diversidade já é conhecida há muito tempo pela tradição liberal, particularmente no relativismo filosófico e em algumas formas de antropologia, em que se defende a ideia de que a diversidade de culturas é algo positivo para o debate cultural. É um lugar comum nas sociedades pluralistas e democráticas dizer que elas podem acomodar e incentivar a diversidade cultural. Essa atitude tem feito com que, segundo Bhabha, se aprecie as culturas numa espécie de musée imaginaire, como se alguém as pudesse colecionar e apreciar. Essa forma de compreender as culturas apresenta alguns problemas: as culturas são compreendidas e localizadas dentro de uma “moldura de tempo universal, que conhece seus vários contextos históricos e sociais apenas para afinal transcendê-los e os tornar transparentes” (p. 35).

A diferença cultural só pode ser praticada ou reivindicada por uma noção de política que se baseie em identidades políticas desiguais, não uniformes, múltiplas e potencialmente antagônicas. O que está em questão é um momento histórico no qual essas identidades múltiplas realmente se articulam para desafiar caminhos, saberes estabelecidos, programas instituídos, em geral um modo conflitante e, por vezes, até incomensurável. Vale mencionar que as restrições que surgem em relação ao multicultural devem-se ao fato de “o multiculturalismo representa uma tentativa de responder e ao mesmo tempo controlar o processo dinâmico da articulação da

2 Essa entrevista concedida a Jonathan Rutherford teve como título original Cultural Identity and diaspora (publicada em P. Williams e L. Chrismar , eds.) Colonial discourse and postcolonial theory. Nova York: Columbia University Press, 1994. Tradução Regina Helena Froes e Leonardo Froes.

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diferença cultural, administrando um consenso baseado numa norma que propaga a diversidade cultural” (p. 35).

A noção de diferença cultural tem a sua história teórica no pensamento pós-estruturalista, na psicanálise lacaniana, no marxismo pós-althusseriano e na obra de Frantz Fanon, segundo Bhabha. E continua: “Com a noção de diferença cultural, tento colocar a mim mesmo nessa posição liminar, nesse espaço produtivo da construção de cultura como diferença, no espírito da alteridade ou outridão” (p.36). Bhabha sugere que é difícil e até impossível encaixar numa “moldura universalista” a diferença cultural. Portanto, fica clara aí a inviabilidade da proposta da diversidade, de juntar no mesmo espaço diferentes formas de cultura e pretender que elas se relacionem ou coexistam sem conflitos. As culturas possuem seus próprios sistemas de significação e organização social, o que torna contraproducente tentar compreendê-las a partir uma base racionalista e homogeneizante ou com referência a um conceito universal.

No debate sobre cultura, Bhabha apresenta as noções de tradução cultural e hibridação. A ideia de tradução, ele traz diretamente de Walter Benjamin sobre o trabalho de tradução e a tarefa do tradutor. Ele trabalha esse conceito partindo do princípio de que todas as formas de cultura estão de algum modo relacionadas, formas significantes ou simbólicas que são. O raciocínio é que se os sentidos são construídos de acordo com os vários contextos sócio-históricos, advém daí a compreensão de que nenhuma cultura é completa em si mesma. O ato da tradução cultural, segundo Bhabha, nega o essencialismo de uma dada cultura antecedente, original; portanto, as culturas estão num processo de hibridação. Para ele a hibridação é o terceiro-espaço. Bhabha associa o terceiro-espaço a um processo de identificação (no sentido psicanalítico). Ele se refere a essa identificação como uma forma de se vincular “com e através de outro objeto, um objeto de alteridade”. E é justamente a intervenção dessa alteridade

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que provoca uma ambivalência na identificação. Assim, para Bhabha a importância da hibridação é que ela possibilita um retorno a um momento anterior, não a uma origem, mas aos vestígios de sentimentos e práticas que a informam, tal como uma tradução, e assim garante que outros discursos e sentidos apareçam. Esse processo de hibridação cultural, segundo ele, “gera algo diferente, algo novo e irreconhecível, uma nova área de negociação, de sentido e representação” (p. 37). A hibridação é a cultura sempre como formação, (trans)formada, um processo performativo que sempre gera algo novo e irreconhecível, uma nova área de negociação de sentido e representação.

Tomás Tadeu da Silva também esclarece que a identidade e a diferença “são determinadas pelos sistemas discursivos e simbólicos que lhes dão definição” (SILVA, 2008, p.78). Segundo Silva, a identidade, assim como a linguagem, compreendida como sistema de significação, é instável. Para esse autor, a identidade e a diferença não pertencem ao mundo da natureza, mas da cultura e dos sistemas simbólicos que as produzem. A identidade, assim como a diferença, parte de uma relação social. Tomás Tadeu da Silva, ao pensar nessa relação, afirma:

Isso significa que sua definição – discursiva e linguística está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas. (SILVA, 2008, p. 81)

Sendo assim, pode-se dizer que a identidade e a diferença são produzidas por um processo de significação “incerto e vacilante”. E ao serem concebidas em estreita conexão com as relações de poder, perdem o caráter de serem pertencentes à natureza, e, consequentemente, aos essencialismos culturais.

Pensando nas identidades instáveis e incompletas que marcam as sociedades contemporâneas, estamos comumente denominando-as de processos de identificação,

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justamente para enfatizar o seu caráter provisório e móvel. A partir do desejo de lidar com aquilo que está fora e subverte o modelo, o processo de identificação nunca terá um ajuste completo, uma totalidade. Em vez disso, tem-se como Silva (2008, p.106) aponta, inspirado em Stuart Hall, “uma sobredeterminação, uma falta”. Segundo ele, “a identificação opera por meio da différence”, o que já vem sendo apontado desde os primeiros passos da psicanálise e da desconstrução no mundo ocidental.

Reafirmando esse pensamento e essa forma de conceber as identidades, queremos apontar afinidades ou afiliações dessas concepções com a teoria de Derrida, segundo o qual “uma identidade nunca é dada, recebida ou atingida; só permanece o processo interminável, indefinidamente fantasmático da identificação” (DERRIDA, 2002, p.53). A opção pelo uso do termo identificação ao invés de identidade resulta de um desejo de resistência a possíveis “cristalizações discursivas” que, além de isolar as pessoas, têm produzido intolerâncias, negações, ressentimentos e, consequentemente, exclusões culturais. Essas into-lerâncias com o diferente têm produzido sistemas fechados que, mesmo trabalhando a partir de um anseio legítimo de afirmação identitária, apresentam o perigo da imobilidade e de cristalização consequentes. Observa-se na contemporaneidade, em alguns movimentos de feição étnica, de gênero ou mesmo cultural, a produção de discursos essencialistas, com forte resistência às noções de incompletude, de instabilidade e de interação cultural. Portanto, pretendemos ficar atentos a tais tendências de se essencializar a diferença no discurso.

Outro conceito a que recorremos no processo de discussão das identidades culturais na Amazônia é o hibridismo. Na perspectiva dessa pesquisa, esse conceito não possui nenhuma conotação negativa, mas apresenta-se como uma estratégia de ruptura com parâmetros de pureza no campo cultural. Hibridismo está sendo aqui compreendido como uma forma de conhecimento propício para entender as inúmeras questões que en-

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volvem diálogos e trocas culturais que se processam na Amazônia desde os tempos de sua colonização até a contemporaneidade e que interferem nos processos de construção de suas identidades culturais.

O crítico brasileiro Silviano Santiago tem se destacado ao pensar formas alternativas e possibilidades críticas para a América Latina, com relação à cultura dos países colonizadores europeu; questiona o papel do intelectual e do artista de países que vivem a experiência de estarem em posições econômicas inferiores a de outras nações supostamente superiores, as metrópoles. Segundo ele, esse artista ou crítico pode assumir duas posições distintas, ou a subserviência ao modelo dado como superior, posição que enfatizaria apenas a dívida com a cultura da metrópole, compreendendo originalidade apenas como o estudo das fontes e influências; ou esse artista latino-americano pode enfatizar apenas os elementos da obra que marcam a sua diferença. E conclui o raciocínio afirmando:

A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza: esses dois conceitos perdem o contato exato de seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. A América Latina institui seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o Novo Mundo. (SANTIAGO, 2000, p. 16)

Santiago afirma a necessidade do artista, do crítico e do intelectual latino-americano de se contrapor ao desejo do colonizador, de ver a América Latina como cópia atrasada do modelo europeu. Essa resistência se daria no caso dos escritores, numa tradução, mas não numa tradução literal, e sim numa “tradução global, de pastiche, de paródia, de digressão” (Ibidem).

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Há convergências existentes entre crioulização, hibridação e transculturação no território cultural das Américas. Segundo Bernd (2004), a transculturação ensina-nos “uma grande lição identitária baseada no respeito às alteridades porque pressupõe que do contato entre duas ou mais culturas não haja apenas perdas e esquecimentos ou acréscimos e adesões impostas pela lei do mais forte (processo de assimilação)” (BERND, 2004, p. 109). Segundo ela, a cultura das Américas hoje resulta de “uma encenação antropofágica” em que o contato intenso de culturas deu origem a algo novo, impuro e híbrido. Ou seja, na articulação cultural de vários países da América, há o encontro de vestígios (traces) e fragmentos das culturas de tradição oral indígena e africana, com manifestações de produções culturais subalternas e também com manifestações hegemônicas. Esses contatos e transferências culturais constituem um processo no qual se dá alguma coisa, ao mesmo tempo em que se recebe outra; modificando as duas partes, daí formar algo novo e independente. Segundo Bernd o sujeito da crioulização encontra-se entre pelo menos dois mundos, duas línguas e duas definições da subjetividade, tornando-se um passeur culturel, ou seja, aquele que realiza travessias constantes de uma a outra margem, operando no entre-lugar, para reutilizarmos a fertilizadora expressão de Silviano Santiago.

Diante das questões levantadas sobre dependência cultural no contexto das Américas, e, principalmente, no contexto específico da Amazônia, a nossa reflexão integra um conjunto de pensamentos e teorias que se propõem rediscutir os parâmetros que têm atribuído “aos de cá” ideologias de atraso, dependência cultural e ingenuidade � na perspectiva de construção de estratégias teóricas de sobrevivência e resistência a tais parâmetros de dominação. Queremos marcar um diálogo com pensamentos críticos latino-americanos que têm insistido na necessidade de rediscutir relações culturais que se desenvolvem no continente americano, e que desencadeiam nas formas

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de organização dos modelos, das “coleções”, e nos processos de auto identificação. Além do diálogo com a crítica latino-americana, ressalta-se outro de natureza também intensa e promissora com o que se tem chamado de teoria e crítica pós-colonialista, em que os textos são interpretados e lidos politicamente, numa intensa relação entre o discurso e o poder. Essa crítica se organiza a partir da tomada de consciência de que gerações de europeus se convenciam de sua superioridade cultural e intelectual diante da “nudez” dos ameríndios, do primitivismo de africanos e outras alteridades distantes. Na verdade, todos esses conceitos que estivemos discutindo circulam pela área das teorias produzidas no campo dos estudos culturais e pós-coloniais.

A Amazônia urbana e híbrida de Hatoum

Milton Hatoum3 nasceu em Manaus em 1952, descendente de imigrantes libaneses, tendo passado toda a infância na cidade. Milton Hatoum tem publicado narrativas longas e curtas ao longo de sua carreira. A convivência com contadores de história, narradores da Amazônia, tais como peixeiros, ribeirinhos, contadores populares, com narradores orientais que imigraram para a Amazônia, constituem a força da narração de Milton Hatoum. Além disso, Hatoum prefere correr riscos e andar na fronteira de mundos distintos, justapondo o “culto” e o coloquial, o simbólico à realidade circundante e palpável. Trilhando o “caminho do meio”, em um espaço intervalar, no encalço de problematizar as identidades da região antes ditas homogêneas, o autor mistura elementos de culturas díspares para vislumbrar, na Amazônia, subjetividades em movimento, que resultam de processos descontínuos. Na verdade, a produção literária de Milton Hatoum procura uma sintonia com o que se tem chamado de globalização da economia e mundialização da cultura. As duas narrativas em análise trazem para o debate a

3 Os dados que constam nessa biografia foram obtidos pessoalmente em várias entrevistas com o próprio Hatoum, assim como através do texto de Daniel Piza, “Relato de um certo Hatoum”, O Estado de São Paulo, 26 de março de 2001, caderno 2 – “Literatura”, p. D6 e D7, além do ensaio de Marlene Paula Marcondes e Ferreira de Toledo e Heliane Aparecida Monti Mathias, Entre olhares e Vozes: Foco narrativo e Retórica em Relato de um certo Oriente e Dois Irmãos, de Milton Hatoum (São Paulo, Nankim, 2004).

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construção e a reconstrução de paradigmas que envolvem a cultura, a religião, o trabalho, a política, relações sociais e familiares, etc.

Dois Irmãos é um romance que tematiza um drama familiar centrado nos filhos de imigrantes libaneses, os gêmeos Yaqub e Omar, que possuem diferenças ideológicas e comportamentais. O romance apresenta a rivalidade dos gêmeos, mas também discute o incesto, a revolta, o ciúme e várias outras questões familiares. A narrativa inicia-se no começo do século XX, quando Manaus, a capital da borracha, recebeu estrangeiros, como o jovem Halim, um aprendiz de mascate, e Zana, uma menina que chegou sob a proteção do pai, o viúvo Galib, dono do restaurante Biblos, localizado próximo ao porto. Halim e Zana casam-se e geram três filhos: Rânia, que se mantém solteira para o resto da vida, e os gêmeos Yaqub e Omar. No casarão em que moram usufruem dos serviços de uma serva de origem indígena, Domingas, “uma beleza de cunhatã, [que] cresceu nos fundos da casa, onde havia dois quartos, separados por árvores e palmeiras” (Dois Irmãos, p.64). Anos mais tarde, Nael organiza e conta os dramas que testemunhou, calado por sua condição de filho da empregada, que, apesar do entrosamento que tem com a família, nunca conseguiu integrar-se totalmente.

Milton Hatoum explora o sentido da existência nesses tempos de dificuldades e necessidade de dialogar com o outro e essa busca é percebida na própria construção da identidade da Amazônia. Dois Irmãos é uma narrativa construída com fragmentos de memória de Nael, e, portanto, é não linear, descontínua, iniciando com a morte de Zana; as inversões temporais demonstram a intervenção de Nael na narrativa, através de cenas que surgem involuntariamente via o narrador que conduz o foco narrativo.

Já a trama de Cinzas do Norte desenvolve-se em torno da história de Raimundo (Mundo), um jovem “difícil”, com vocação e aspirações artísticas. Mundo apresenta-se como um eterno revoltado pela incompreensão do pai,

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Trajano Mattoso (Jano), que nega as pretensões artísticas do filho, preferindo vê-lo como o continuador da dinastia dos Mattoso. Alícia, mãe de Mundo, é uma índia criada na periferia de Manaus. Olavo (Lavo), narrador-personagem da história, é estudante de Direito, de origem humilde, um dos poucos amigos de Mundo.

No decorrer da narrativa, Mundo encontra Arana, conhecido como o artista da ilha, passando a tê-lo como referencial artístico para a produção de suas obras. No entanto, ao perceber que a arte de Arana aponta para uma visão exótica da Amazônia, buscando lucro fácil, desliga-se afetiva e intelectualmente dele. A partir de então, é Ran, tio de Lavo e amigo de Mundo, que o ajudará a produzir um projeto artístico: Campo de Cruzes, que consiste numa crítica social às agressões ambientais e ao descaso para com a população ribeirinha. Durante a execução da obra, mesmo tendo o auxílio e a participação dos moradores, Mundo tem seu projeto frustrado pela ação da polícia. Tio Ran, mesmo ferido, consegue fugir, mas Mundo é levado para um hospício, onde é amarrado e sedado. Mais tarde, quando Mundo está doente em um hospital no Rio de Janeiro, Alícia confessa que seu verdadeiro pai era Arana, o artista falsário. Com essa revelação, Mundo, no último momento de sua vida, escreve uma carta a Lavo, falando de sua vida, do seu estado de espírito e do que ficou sabendo sobre seu verdadeiro pai. Toda a narrativa parte da carta que Lavo recebe de Mundo.

Diferentemente dos outros romances de Hatoum que discutiam a problemática dos imigrantes sírio-libaneses na Amazônia, Cinzas do Norte apresenta o tema da imigração envolvendo portugueses. Contudo, há muitos pontos em comum entre esse romance e Dois Irmãos, principalmente por trabalharem a construção da memória, da identidade fragmentada e da dificuldade (ou impossibilidade) de retorno à origem. Em Dois irmãos, Domingas morre sem revelar a Nael quem era de fato o seu pai; Alícia, em Cinzas do Norte, vendo o filho Mundo em fase terminal, rompe

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o silêncio e conta o segredo que envolve sua paternidade. Devemos observar que a narração dos dois romances ficou a cargo de dois personagens marginais: Nael e Lavo. Dois descendentes de índios, pobres, criados em casas “alheias”. É essa margem cultural, social e econômica que adquire voz através da escrita de Milton Hatoum.

Raymond L. Williams, ao comentar a importância da narrativa de Milton Hatoum, afirma que essa “é uma obra sedutora que combina o melhor da tradição moderna (desde Proust até Autran Dourado, ou seja, a cultura dominante) e outras tradições árabes subalternas que às vezes oferecem novas imagens dentro da cultura hegemônica” (WILLIAMS, 2007, p. 170). A partir disso, Milton Hatoum tem sido frequentemente lido ou compreendido como escritor de minorias, mesmo porque ele tem retomado o debate sobre a visão histórica e também sobre a voz dos esquecidos: vozes do passado soterradas em um espaço problemático marcado por tentativas de assimilação. É comum observarmos nas suas narrativas a busca por origens e raízes, por meio da busca por objetos e ações concretas. Tal contribuição de Hatoum tem forte sintonia com ideias apresentadas pelas teorias pós-coloniais, no que diz respeito a uma nova consciência dos discursos das minorias, dos subalternos, dos de baixo.

O crítico Chiarelli (2007) destaca que a identidade das personagens nos romances de Milton Hatoum não é algo previamente definido, mas construído e formado por identificações múltiplas que se interpenetram, assim como a identidade não é algo inato, mas um construto. De fato, para Hatoum, a identidade não é fixa nem homogênea, mas alguma coisa que resulta de uma construção da incoerência, do imperfeito, da alteridade, resultando de imbricações e de diálogos culturais que se processam em fissuras ou espaços móveis entre centro e periferia, fixidez e errância, espaço propício para questionamentos de hegemonias petrificadas. Nas duas narrativas abordadas nesse trabalho, Hatoum simula essas identidades móveis,

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fugindo sempre do padrão imposto pelo colonizador, não se submetendo a seus imaginários. Para ele, a identidade é uma escolha: assimilação das diferenças, abertura para outras culturas.

Essas narrativas de Milton Hatoum, ao abordarem a questão da fronteira como espaço imaginado, são promissoras às discussões da amazonidade4. A ama-zonidade, conceito associado a processos de identificação na Amazônia, precisa ser compreendida como passagem, meio, e não como fim, pois de outra forma corre-se o risco de afirmar os valores de uma só etnia – a indígena, por exemplo – criando-se cristalizações em torno de uma identidade de raiz única, portanto, exclusiva e totalitária, o que não condiz com as práticas das relações históricas na região. Para Hatoum, a noção de terra sem fronteira está sempre muito presente. A narrativa desse autor traz para o debate a ideia de que nada é fechado, que as culturas estão sempre em confronto ou contato, em fronteiras móveis. Ele toma aspectos da vida real, inclusive de suas vivências durante a infância na cidade de Manaus como elementos importantes e constituidores de sua escrita. Seus amigos, parentes, vizinhos (ou pelo menos a inspiração que vem desses) aparecem no universo ficcional de suas narrativas. Esse autor manauara também escreve em sintonia com um debate atual sobre cultura e identidade, desenvolvido, entre outros, por Homi K. Bhabha (1998), que, além de reafirmar essa ideia das fronteiras culturais móveis, trabalha com o conceito de negociação. Essa negociação não possui nenhuma conotação econômica, mas se dá especificamente no campo cultural, constituindo um espaço intervalar, uma espécie de fenda discursiva, visualizada apenas no campo epistemológico. O debate sobre os processos de identificação na (da) Amazônia precisa levar em consideração o viés da negociação entre múltiplas etnias que compõem a população. Essa negociação se dá pela troca cultural entre índios, negros e brancos, com um olhar representado não como único, mas miscigenado, capaz de representar as vozes que até certo tempo ficaram esquecidas.

4 Para discussão detalhada do conceito de amazonidade, ver tese de doutoramento de Gilson Penalva, onde a comparação de Hatoum é desenvolvida em relação a Ferreira de Castro, com acesso através do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, 2012.

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Seguindo a linha do Relato de um certo Oriente, do mesmo autor, ainda concebe a Amazônia como espaço mítico, lugar de encontro de culturas diversas. Já em Cinzas do Norte, a palavra cinzas sugere o fim dessa atmosfera mítica, dessa possibilidade de convivência tranquila com a diferença, com a alteridade. Aí a Amazônia como lugar da diferença foi transformada no espaço da arbitrariedade. É a força do poder que determina e traça o destino das pessoas. O enredo desenrola-se numa Amazônia agitada pela ditadura militar, pela criação da Zona Franca de Manaus, contexto propício para a encenação da arbitrariedade do Estado e dos donos do capital. Associado a esse tema do poder arbitrário, que matava e explorava, Cinzas do Norte traz o relato de uma grande revolta individual, que resume outras tantas de sujeitos que, não aceitando a identidade imposta pelo regime militar, vão buscar no exterior novas possibilidades de vida.

Referindo-se ao personagem central do romance, Mundo, Vera Lúcia Soares afirma que,

O desenho é para Mundo o espaço de expressão de sua revolta e também de criação de uma possível identidade que ele tenta buscar longe de Manaus e da casa paterna, no Rio e, mais tarde, durante o exílio voluntário em Berlim e Londres. Aliás, o apelido desse personagem metaforiza esse seu desejo de partir em busca de novos horizontes (...). (SOARES, 2008, p. 76)

De fato, Mundo não quer fronteiras estreitadas; quer sim, o horizonte aberto, o espaço infinito. Além disso, a narrativa de Hatoum alerta-nos para o fato de que a cultura não é uma esfera da consciência separada do seu social, mas um processo constante de luta social e política. É um modo de produção de significados e de valores básicos que organizam o funcionamento da sociedade. Dentre as estratégias de resistência cultural, tem destaque o desejo de ouvir o Outro, seja ele excluído ou reprimido.

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Nael, o narrador-personagem em Dois Irmãos e Mundo, personagem central de Cinzas do Norte, precisam também recompor as identidades paternas. Domingas morre sem contar a Nael quem seria seu verdadeiro pai; a dúvida permanece até o final da narrativa, o que reforça a tese de que a busca por uma identidade conformada dentro de um parâmetro único é impossível. Mundo, por sua vez, teve no final da vida o segredo revelado, de que o seu verdadeiro pai não era Trajano Mattoso, mas Arana. Através da arte, principalmente do desenho, Mundo consegue, a partir do deslocamento, recriar-se.

A destruição da cidade em Cinzas do norte vem acompanhada da exploração das riquezas da Amazônia por aproveitadores vindos do exterior. Essa denúncia engendrada por Hatoum através de seu personagem tem a ver com uma prática comum em toda a história da Amazônia, pois esse espaço de grandes rios e florestas de riquezas infindáveis sempre foi visto pelo colonizador como lugar de onde se poderia tirar tudo o que se precisasse para o enriquecimento fácil. A narrativa elabora uma crítica ao processo de descaracterização de Manaus e o oportunismo de figuras como Arana. Vera Lucia Soares, referindo-se a Cinzas do Norte, ainda aponta:

Ao fazer de sua narrativa seu espaço de travessias entre diferentes culturas e línguas, apontando para novas possibilidades de construção de identidades móveis, abertas e inacabadas, Milton Hatoum insere-se facilmente na categoria dos escritores migrantes, ou ainda daqueles que o escritor indo-britânico Salman Rushdie (1993: 28) chama de “homens traduzidos”, não só por conta de sua origem libanesa, mas principalmente porque seu texto põe em cena personagens que vivenciam a experiência da errância, da desterritorialização, do entre-dois, e necessitam aprender a traduzir e a negociar entre as linguagens culturais que os cercam e habitam. (SOARES, 2008, p. 79)

Nos dois romances há um problema discutido, que

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adquire realce com relação a outros que aparecem – a questão da assimilação cultural. A assimilação cultural aparece como problema e a negociação cultural, como estratégia para lidar com a diferença de forma mais promissora. Em Dois Irmãos essa temática está evidente principalmente na vida da índia Domingas e do seu filho Nael, que foram obrigados a assimilar a cultura dominante dos patrões: cristianismo, a cultura árabe, temperos e hábitos dos que dominavam economicamente, apesar de sabermos dos processos de negociação cultural que aconteceram nas relações dessa índia com os imigrantes. Por todos os lados daquela casa era visível o hibridismo cultural, na escolha e preparação dos alimentos, na medicina popular, nas rezas e práticas religiosas, enfim, em tudo que se via ou experimentava.

Em Cinzas do Norte essa questão da assimilação cultural foi mais intensa e traumática, tendo em vista a centralização do poder. A narrativa aborda essa problemática com o intuito de transformar o tema em denúncia. Isso não está dito no tom escancarado de uma narrativa de caráter sociológico, como um panfleto denunciativo, mas o assunto é tratado no nível do discurso e das relações pessoais, utilizando uma linguagem aberta, sugestiva, bem aos moldes da narrativa contemporânea, que se recusa a fechar o discurso a um único ponto de vista. Aqui se percebe um fluxo de influência cultural mais forte em um sentido, em “uma mão”, marcado pela tensão.

Ao problematizarmos as formas tradicionais e homo-geneizantes que produziam discursos sobre a identidade cultural na Amazônia, não estamos propondo substituir a força de um discurso hegemônico por outro marginalizado, mas sim, pensar a partir da fronteira, nos interstícios, observando as formas que assumem os diálogos entre culturas. A Amazônia tem sido aqui compreendida como um lócus de enunciação marcado por trocas culturais que se processam desde os primeiros contatos dos colonizadores, mas intensificadas pelas grandes levas

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de migrantes e imigrantes que se movimentam em várias direções no mundo atual. Além da voz do indígena, do ribeirinho, do homem da floresta, dos moradores da periferia de Manaus, vemos na narrativa de Hatoum uma Amazônia plural, heterogênea, constituída por formas diversas de representação do migrante, do desterritorializado, daquele que está em movimento, do imigrante, formando um “burburinho de vozes”, que sugerem processos complexos de identificação híbrida. O lugar do imigrante caracteriza-se por um olhar enviesado, capaz de perceber aquilo que o habitual não mostra: reflexos, sombras e novos horizontes.

A literatura de Hatoum tem, portanto, na elaboração ficcional a problematização da constituição identitária da Amazônia. De forma instigante, o autor observa essa região não apenas por seus traços associados à floresta, ao rio, ao índio ou qualquer outro elemento básico na produção do exotismo. Efetivamente, essa literatura procura observar a margem sem fixidez, com ímpetos de mobilidade e instabilidade, propondo um deslocamento do olhar para a cidade e, nela, focaliza conflitos, contrastes, desigualdades, solidão e tristeza, transformações em pleno processo de desenvolvimento e modernização, o que constitui uma novidade nas formas convencionais de construir o imaginário amazônico. O autor afirma que tentou trabalhar a busca da identidade em seus romances, mas percebeu que há alguma coisa que é misteriosa e nunca pode ser dita. “Penso que a identidade é o que há de mais misterioso e enigmático. Você revela algum ângulo, mas imediatamente esse ângulo é revelado e surgem outros. É um jogo de esconde-esconde” (HATOUM, 2000). Segundo Maria Zilda F. Cury,

O imigrante – o outro, o “de fora” – coloca-nos diante da “estrangeiridade” que é dele, inerente à sua identidade, mas que é também a nossa, já que a busca de uma identidade para ele não pode se dar senão em confronto com a busca da nossa própria, daquilo que nos constitui

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enquanto comunidade. O estrangeiro estranhamente nos habita sendo a face oculta de nós mesmos, o espaço que nos arruína enquanto permanência, pois sua “diferença” flagrante – manifesta até à flor da pele, na língua enrolada, nos hábitos tão outros – fala da diferença constitutiva de cada um de nós (CURY, 2002, p. 165).

O estrangeiro, ao contrapor as vozes do seu lugar de origem e as do novo espaço onde se encontra (no caso, a Amazônia), contribui para uma possível desorganização de imagens identitárias homogêneas e estáveis da comunidade e, ao mesmo tempo, colabora com o processo de constituição de identidades heterogêneas e híbridas. As relações que se estabelecem entre o aqui e o lá, o eu e o outro instigam mudanças de paradigmas conceituais, oscilando do estático ao movediço, do aparentemente linear e homogêneo ao complexo e fugaz. Alberto Moreiras, falando do imaginário imigrante no contexto latino-americano, diz que ele serve para “problematizar as relações espaciais entre centro e periferia, entre estar em casa e no estrangeiro, entre o caráter local da produção de conhecimento e seu lugar de intervenção”. E continua: “O imaginário imigrante precisa conhecer o outro, ou uma parte importante de nós mesmos” (MOREIRAS, 2001, p. 72). Esse imaginário imigrante tem possibilitado repensar fronteiras geográficas, fazendo referência ao que o próprio Alberto Moreiras chamou de “articulação entre a região em estudo com a região de enunciação em um contexto definido pela globalização”. Tal estratégia teórica pode servir para pensarmos no estrangeiro que nos habita, contribuindo para alterarmos os conceitos de cultura e identidade, pois as ideias de pureza e fixidez que rondavam o campo de nossas concepções serão solapadas pela mobilidade própria da condição estrangeira.

Em Dois Irmãos, destacam-se as transformações pelas quais passa a cidade de Manaus, com alterações significativas na infraestrutura, urbanização de ruas, reforma do bairro portuário, incluindo o porto e as casas

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que eram derrubadas para dar lugar a prédios modernos (arranha-céus); a floresta ia sendo derrubada e dando lugar a cimento e urbanização. Antes de morrer, Zana havia se mudado para outro bairro da cidade, deixando a antiga casa com as marcas da história da família, já que para ali mudara com o marido logo após o casamento. Tiveram de sair mesmo contra a vontade de Zana, pois Rânia havia concordado em entregar a casa pela dívida dos dois irmãos. A transformação fica clara:

Os azulejos portugueses com a imagem da santa padroeira foram arrancados. E o desenho sóbrio da fachada, harmonia de retas e curvas, foi tapado por um ecletismo delirante. A fachada, que era razoável, tornou-se uma máscara de horror, e a ideia que se faz de uma casa, desfez-se em pouco tempo. (DI, 2000, p.256)

Essa transformação arquitetônica da casa de Zana pode ser compreendida como ilustradora das transformações por que passou Manaus no período do milagre econômico. Aquilo que antes, no projeto anterior, tinha um conceito estético associado ao bem estar, à satisfação pessoal, com as reformas passou a funcionar por uma lógica de mercado, estando vinculado à busca de enriquecimento e acúmulo de riqueza. Dois Irmãos mostra essa modernização como problema, pois trata-se de algo planejado e efetivado por sujeitos, na maioria das vezes, de fora da Amazônia, e que, por não conhecerem a região, constroem algo distanciado dos anseios ou necessidades do povo. É o caso do bairro Novo Eldorado, projeto do capitão Aquiles Zanda, em Cinzas do Norte, que era considerado por Mundo como algo absurdo, pois as casas eram pequenas, quentes e desconfortáveis, distantes do rio e, portanto, impróprias para pescadores e ribeirinhos.

Em Cinzas do Norte a questão da arte é bem destacada, pois o debate se dá como um eixo para a discussão dos processos de identificação na Amazônia. No romance, a problematização das concepções de arte envolve vários

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personagens, com visões distintas sobre o tema. Jano, por exemplo, representante de um pensamento eurocêntrico, encomenda de Domenico de Angelis a pintura do teto da sala do seu palacete, semelhante à pintura que este pintor italiano havia feito no teto do salão nobre do Teatro Amazonas, no século XIX. Na Vila Amazônia, propriedade que herdara do pai, tem destaque o casarão construído “no alto de um barranco, um casarão cinzento, erguido sobre arcos sólidos, dava para o rio Amazonas e a ilha do Espírito Santo” (p. 67). E o narrador continua a descrição:

Azulejos verdes e vermelhos desenhavam um mapa de Portugal no fundo da piscina, em cujas paredes estavam gravados nomes de cidades, de reis e rainhas desse mesmo país. ‘Meu pai dizia que essa decoração era para que se mergulhasse na sua pátria’.Na parede da sala, um mosaico de azulejos azuis e brancos ilustrava a Santa Ceia. Os azulejos e vários objetos de porcelana e prata eram portugueses. (CN, 2005, p. 68-69)

Portanto, para Jano arte é só aquela vinculada a um pensamento ou a uma tradição europeia; o restante, produzida na Amazônia por pessoas vinculadas a essa região, carece de elevação espiritual, não podendo ser considerada como trabalho artístico. Nesse processo de discriminação, Jano inclui a arte produzida por Mundo – suas pinturas, desenhos, gravuras, onde se reconhecia a rebeldia e o protesto desse jovem idealista que insistia em não copiar o velho continente.

Omar e Mundo possuem algo em comum. Omar era rebelde a sua maneira, farrista e gostava de bebedeiras e mulheres. Rebelava-se contra a farda, não gostava das milícias. Mundo detestava atividades físicas, militares e qualquer coisa que pudesse lhe direcionar para um possível enquadramento; odiava regras. Protestava contra as imposições do pai, almejando por uma arte libertadora, mesmo não crendo na civilização e no progresso.

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Em discussões sobre o papel da arte, Mundo procurava escapar da ideia de arte circunscrita a uma região específica, que tivesse uma vinculação estreita com a Amazônia. Para ele, essa forma de conceber o objeto artístico pertenceria ao modelo do discurso colonialista. A sua proposta incluía uma sensibilidade e uma identidade com a Amazônia, com as pessoas e as culturas locais, mas o debate não está circunscrito a uma região específica – prevê deslocamentos e abertura para a alteridade. Procurando ser coerente com o seu pensamento, Mundo teve de sair do Amazonas, ir para o Rio de Janeiro e depois para Londres e Berlim. Esses deslocamentos produziram um olhar “entre-dois”, ou seja, um olhar produzido na interação do local com o universal, nas margens incertas das culturas. É justamente a arte que nega a reflexão da angústia e do sofrimento humanos para se apropriar de uma visão que prioriza a descrição das belezas nativas, paisagens geográficas e humanas tão agradável ao que vem de fora que Milton Hatoum critica nos dois romances em análise.

Mundo e Arana estão em lugares opostos, um por possuir uma pesquisa própria sobre a arte e o outro, como adepto de uma perspectiva já comum na Amazônia, em que se associa essa região sempre a uma natureza exorbitante. Milton Hatoum comenta as diferenças desses personagens:

Mundo e Arana são pesos nas extremidades de uma gangorra. A pressão social e a ambição se refletem na vida de cada um desses personagens. Acho que esse dualismo ou polarização é nocivo para ambos. No caso de Arana, por motivos éticos e estéticos. Ele é o caso típico de intelectual ou artista que promete revolucionar a arte de vanguarda e no fim se revela (...).No caso de Mundo, sua autocrítica é tão feroz, tão radical, que o imobiliza.5

De fato, lemos no romance que Mundo, diferentemente de Arana, é um artista voltado para sentimentos fortes,

5 www.digestivocultural.com/entrevistas, p.02

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angústias humanas e desejos incontidos. No seu projeto não há separação entre arte, ética e comprometimento social.

Em Dois Irmãos, a família sucumbe aos vários conflitos e impasses, marcados por relações incestuosas. Halim sofre com o nascimento dos filhos e não gosta de Omar; Zana, apesar da dedicação ao marido, quer ter filhos, aumentar a família, mas tem preferência por Omar, enlouquecendo quando o filho some; Rânia fica solteira e mantém relações afetivas incomuns com os irmãos e com o sobrinho Nael; Yaqub e Omar se detestam. O romance narra o ódio entre irmãos e a não possibilidade de reconciliação. Domingas tem um filho com um dos gêmeos, mas não pode declarar quem é o pai de seu filho; mantém afinidade com Yaqub, mas já teve relação sexual com Omar; pelo menos há sugestão disso na narrativa.

Em Cinzas do Norte, a família que Jano tenta construir com base em imposições autoritárias não vinga. Todos os membros da família morrem (pai, filho e mãe), ficando Lavo, amigo de Mundo, responsável por contar essa tragédia familiar. Sobre as relações com a família, Hatoum comenta:

Os poucos personagens que se salvam são os narradores. Se não sobrevivessem, não haveria narrativa (...). É o que acontece com o narrador do conto de Poe: “A queda da casa de Usher”. Ele tem que cair fora antes do desmoronamento da casa. Trato a família como um ritual autofágico, em que todos se devoram para no fim sobrar apenas a palavra escrita, a memória inventada da tribo.6

Em Dois Irmãos e Cinzas do Norte Hatoum cria personagens ligados ao contexto urbano da cidade de Manaus. Percebe-se a mistura de libaneses com a população local. Na sociedade brasileira sempre se atribuiu aos árabes a atividade comercial; em Hatoum não é diferente, a vida das famílias gira em torno das lojas e comércios de miudezas, restaurantes, etc. Boa parte da

7 www.digestivocultural.com/entrevistas, p. 03.

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trama se desenrola nesses ambientes. O desmantelamento das famílias acontece junto com a desagregação dos negócios, que além de proporcionar a subsistência da família é um elemento de sua identidade. Por não desejarem trabalhar na agricultura, como os italianos, alemães, poloneses e outras etnias, os sírio-libaneses assumiram o comércio como meio de sobrevivência, espalhando-se por todo o território nacional, embora tenham se concentrado mais efetivamente em algumas regiões, como a Amazônia (norte) e o sudeste, mais especificamente São Paulo. Segundo Oswaldo Truzzi, “a identidade de comerciante acabou sendo negociada a favor de uma imagem positiva, associando-a à figura do mascate, invocado como autêntico bandeirante, integrador e difusor das novidades da capital pelos sertões do Brasil” (TRUZZI apud CHIARELLI, 2007, p. 63).

Em narrativas sobre (da) a Amazônia se observa uma tendência à valorização da exuberância da paisagem, que ora é apresentada com o tom “mítico/maravilhoso” ou o exótico/pitoresco, o que culmina na produção de discursos que identificam a região de forma paradoxal: Éden, Paraíso, ou Inferno, lugar da brutalidade e da selvageria. As narrativas Dois Irmãos e Cinzas do Norte foram construídas numa perspectiva distinta do exotismo que se sustenta dentro do descritivismo da exuberância da Amazônia. Ao mostrar a cultura do norte do Brasil como algo formado a partir do diálogo com outras culturas, Hatoum elabora um contraponto, ou uma resposta, a esse exotismo ingênuo, apontando para a complexidade dos processos de construção das identidades contemporâneas, que se formam no campo da imaginação, da imprevisibilidade e da incompletude. Esses romances de Hatoum extrapolam qualquer tentativa de conformar as identidades a um espaço e tempo determinados, que atribuiria o caráter regionalista a uma produção literária específica. Fidelis (apud Chiarelli, 2007, p.65) alerta “que é possível ser amazônico, ‘sem necessariamente se ‘entregar’ a uma linguagem regionalista, documental”.

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Mesmo não sendo objetivo de nossa reflexão discutir a fundo a questão do regionalismo, não podemos deixar de destacar que a leitura que estamos fazendo da narrativa de Hatoum distancia-se consideravelmente da perspectiva que o atrela ao regional. Ao contrário desse pensamento, que procura vincular o projeto literário de Hatoum a esse viés regionalista, estamos lendo as narrativas hatounianas como uma espécie de problematização de qualquer vinculação ao regional; em outras palavras, a nosso ver, Hatoum propõe um regionalismo às avessas, ao retirar a Amazônia de um imaginário isolacionista, propondo compreendê-la numa lógica cultural contemporânea que prevê sempre a relação e a interação cultural.

E vale observar que nos dois romances que analisamos, há um convite claro ao rompimento com qualquer tentativa de regionalização do debate. A Amazônia aparece nessas narrativas como espaço plural, heterogêneo, propício ao diálogo e avesso ao essencialismo. Apesar dos vários odores, sabores, descrição de rios e florestas, de hábitos e costumes da região norte do Brasil, não percebemos o interesse do autor em reforçar esse olhar mais localizado. Há no projeto literário de Hatoum o desejo de romper com essa visão exótica (e essencializada) da Amazônia, tendo em vista que é esse exotismo que tem impedido a auto-identificação dessa região. Em vez desse vínculo ou preocupação com um certo regionalismo oriundo da “cor local”, acrítico e estável, Hatoum compreende a Amazônia como espaço de diálogos culturais constantes, interações e mobilidades. O local e o universal na narrativa de Hatoum não aparecem separados, como se num momento houvesse um, e no outro, o outro. Tudo nas narrativas é local e universal ao mesmo tempo. O local está o tempo todo atravessado pelo universal.

Na escrita de Hatoum percebe-se a concepção de que é possível ser amazônida sem apresentar apenas a profusão do local; por isso nos seus romances não há a preocupação em repisar figuras já batidas quanto ao imaginário amazônico, como a exuberância da floresta, os

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rios grandiosos e igarapés, índios, cobras grandes, mitos e lendas. É como se, para ele, ficasse subentendido que isso é o óbvio. Segundo Chiarelli (2007, p.66),

Ao contrário: questões mais sutis se assomam, como o conflito da tradição (representada pela casa materna) com a modernidade (simbolizada pela cidade e seu caos – é Manaus, em detrimento da selva amazônica, que se sobressai no texto) e os tópicos da memória e da alteridade.

No nosso entendimento, Milton Hatoum resolve o problema do exotismo com os deslocamentos de imi-grantes (sírio-libaneses e portugueses) para a Amazônia, para que, nesse novo espaço, na convivência com a diferença representada por outros imigrantes de outras nacionalidades, além de nativos (índios e caboclos), negros, migrantes de outras regiões do Brasil, se possam experienciar processos de hibridização cultural. Essas considerações levantadas aqui não inviabilizam qualquer proposta que pretenda considerar a literatura de Milton Hatoum como pertencente à Amazônia. É claro que se trata de uma literatura da Amazônia, apenas com seu jeito próprio. Pode-se dizer que a região, com suas comidas, odores, características peculiares está sempre presente nos textos hatounianos, mas o interesse central do autor está em averiguar a alma humana, representada através de suas personagens, com feições várias. O foco nos romances em tela foi direcionado para um quadro intimista, focalizando relações pessoais e subjetividades, elementos também importantes para se compreender uma cultura local, o que havia sido pouco explorado por autores da região até então.

Segundo Chiarelli (2007) é o próprio Hatoum que se encarrega de refutar a análise de sua obra por um prisma determinado,

Mas o meu trabalho não tem a ver com a literatura de imigrantes. O ponto de partida do meu mundo ficcional

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é o porto de Manaus, quer dizer, a infância. Aliás, um porto com cais flutuante, que pode ser a metáfora de personagens em trânsito e da alternância entre passado e presente. As referências ao Oriente exprimem mais um sentimento do que uma opção. O meu pai era libanês, meus avós maternos também. A comida e a língua árabe, a cultura, tudo isso era muito presente e ao mesmo tempo mesclada com a cultura amazônica. Nasci e cresci nesse ambiente carregado de hibridismo cultural, ouvindo a língua portuguesa com sotaque amazonense, que ainda mantém um vocabulário indígena muito rico (HATOUM, apud CHIARELLI, 2007, p. 36).

Chiarelli (2007) acrescenta que, mesmo apresentando personagens imigrantes em suas obras, Hatoum não pode ser considerado “um escritor de imigração por excelência”. Segundo essa pesquisadora, seus romances vão além dessa temática, abordando outros temas variados, que vão desde problemas sociais até “questões político-culturais” do norte do Brasil. Buscando reafirmar o seu argumento, de que Milton Hatoum não fixa identidade para seus personagens, propiciando “leituras que ultrapassam a cristalização do imigrante”, cita Francisco F. Hardman,

A obra de ficção de Milton Hatoum não se encaixa na rubrica de literatura de imigrantes no Brasil, nem tampouco na linhagem do regionalismo amazônico (...) sua escrita foge tanto de uma expressão regional bem localizada, quanto de uma representação étnico-social específica de um grupo (HARDMAN apud CHIARELLI, 2007, p. 36).

Provavelmente a fuga empreendida por Milton Hatoum do rótulo de ‘escritor da imigração’ deve-se ao fato de esse não pretender ser visto como portador de um valor absoluto, nem mesmo o que englobe a categoria do imigrante. Como autor que pretende abordar as misturas culturais que se processam na contemporaneidade, o hibridismo cultural, jamais iria trabalhar visando uma

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espécie de cristalização da caracterização do imigrante, geralmente condenada ao estereótipo e à generalização. Ele trata de problemáticas próprias da imigração, do deslocamento, daqueles que naturalmente estão transitando tanto por seu lugar de origem como por outros lugares de chegada, muitas vezes, vivendo num “entre-lugar”. Esse viver na fronteira do imigrante tem contribuído para se repensar processos de construção de identidades para além da lógica monolítica de produção de sentidos. No contexto da Amazônia brasileira, por exemplo, esse imigrante, ao empreender um olhar de fora, tem ajudado a desconstruir significações e discursos “construídos” ou melhor, impostos, ao longo da história.

Em Dois Irmãos, a índia Domingas aparece deslocada do seu lugar de origem, submissa às freiras irmãzinhas de Jesus, que lhe ensinaram a rezar, a ler e escrever, e, em seguida, à Zana e sua família. Domingas, que tinha o nome do dia de descanso dos cristãos, principalmente católicos, era a única que trabalhava sem folga, gastando a mocidade servindo, lavando, passando e cozinhando, sem direito a escolher sequer o pai de seu filho, de professar a sua fé autóctone e a sua cultura. Hatoum desorganiza os modelos e os estereótipos, trazendo o debate para a questão cultural. Domingas fora subjugada pela sua própria condição social de menina, órfã, índia, pobre; fora preparada pelas freiras para servir e teve de aprender a religião e a cultura do colonizador, mas também contribuiu com a formação cultural daquela família; na culinária - os cheiros, as pimentas, o tucupi, os temperos da Amazônia; da pajelança indígena, transformada em medicina popular, para onde trouxe as folhas do crajuru para curar a gonorréia de Omar; o peixe a ser comido quem escolhia era ela. Na religião, se irmanava com Zana - eram católicas praticantes.

Assim, Milton Hatoum, fugindo dos modelos fixos, desloca a denúncia social pura e simples para o campo da cultura. Domingas não era mais uma índia padrão. Inclusive numa única vez que tentou voltar a seu grupo

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de origem, com o filho, passou mal, teve vômito, e a paisagem da infância lhe incomodou; sentiu-se triste, magoada e ansiosa pelo retorno para Manaus.

Já em Cinzas do Norte a problemática indígena recebeu um trato político. O foco foi direcionado para a relação do colonizador (Jano) e o povo colonizado. Dentro do painel da cultura indígena, encontramos tipos diversos: primeiro Alícia e Tio Ran, amantes, ela índia, casada, por interesse, com Jano. Ele, de origem indígena, vive bebendo, farreando, amando, sem desejos de acumulação de bens. Na Vila Amazônia os índios eram alvo da política assistencialista de Jano. Segundo ele, esses seres não civilizados não conseguiam entender suas “boas intenções” e até rejeitavam algumas de suas propostas. Achava que os índios não valorizavam o médico que trouxe para atendê-los, figura que desconsiderou a cultura e as formas de vida dos índios. Jano e o médico, segundo o raciocínio do primeiro, estavam ali para ensinar aos índios tudo, já que esses nada sabiam. Jano detestava a amizade e o respeito que Mundo devotava aos sujeitos da floresta. O seu filho, herdeiro de um império econômico, deveria, a seu ver, construir laços com militares, empresários e outras pessoas influentes na Amazônia. Exatamente por isso a relação de Jano com os indígenas limitava-se ao trabalho. Os índios empobrecidos constituíam a força de trabalho para lidar com a juta. Eles sabiam os segredos daquela planta, preparando-a para a exportação e, consequentemente, gerando lucros para Jano. Para Jano, a cultura indígena não possuía nenhuma referência significativa. Os seus rituais fúnebres, as músicas, comidas, temperos, nada disso tinha valor. Nem tinha conhecimento de que o prato de tartaruga que Naiá preparava, e que ele se deliciava, tinha origem indígena. Tais dados reforçam a ideia de que, optar por um lado, por um ângulo apenas é optar pela ignorância, pelo empobrecimento cultural e espiritual, ideia que fica bem marcada nos dois romances de Hatoum a que temos nos referido.

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Considerações finais

Como já apontamos na introdução e no decorrer desse trabalho, nossa reflexão teve como meta a análise de duas narrativas da literatura brasileira, mais precisamente, dois romances de Hatoum, através do debate sobre a identidade cultural da Amazônia. Os textos analisados e confrontados estão aqui sendo compreendidos como discursos que de alguma forma dialogam com outros discursos elaborados historicamente e que ajudam a formatar processos de identificação na Amazônia.

Além disso, com a reflexão que desenvolvemos ao longo de nosso trabalho esperamos ter contribuído para que o debate sobre processos de identificação na Amazônia brasileira tenha se ampliado, assumindo novos olhares e perspectivas, se não totalmente novos, pelo menos cada vez mais acessíveis e visíveis. Esperamos ter também contribuído para mexer com pensamentos que se estabilizaram no decorrer da história, o que resultou numa aparência de unicidade, de conformidade e de consenso no que se refere à região.

Durante todo esse estudo apresentamos uma ideia já constatada em outras reflexões de autores diversos de que a Amazônia fora compreendida por uma literatura e uma crítica forjadas dentro de parâmetros da cultura hegemônica, que tem ditado preceitos pelos quais a “periferia” deveria orientar-se. Segundo Pizarro (2005), essa construção discursiva sobre a Amazônia vem carregada de um ponto de vista, de uma intenção e de um valor. Não há nesses discursos construídos sobre a Amazônia nada de ingênuo, de não intencional e inocente.

Diante dessas observações, vemos a necessidade de ampliação do conhecimento sobre a Amazônia em seus traços identitários, para que se crie possibilidades de uma auto-identificação diversificada, construída por diferentes grupos indígenas, por grupos de migrantes de outros países do mundo e, se tratando da Amazônia brasileira,

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por migrantes de outras regiões do Brasil: “conhecer a Amazônia é uma forma de apropriá-la para o continente que a olhou sem vê-la” (PIZARRO, 2004, p. 34).

As narrativas analisadas constituíram um importante material imaginativo, pertencente ao sistema de representação, portanto de significação da Amazônia, e possibilitaram uma reflexão sobre discursos e hegemonias. Essas obras foram lidas e analisadas numa abordagem culturalista e pós-colonial, que tem atribuído importância à compreensão das formas de relação do homem com a vida, com o meio ambiente e a cultura, com as formas de simbolizar e projetar das sociedades, e não apenas para refletir sobre sua dimensão estética.

Em vez da homogeneidade e fixidez do discurso do colonizador que se estabeleceu na Amazônia, im-pingindo uma forma única de apreensão, a Amazônia foi compreendida aqui como um lócus de enunciação marcado por diálogos e trocas culturais, espaço de convivência (na maioria das vezes, tenso) da diferença. Pensando nos processos de identificação da (na) Amazônia, não se pode esperar pureza de algo que já nasceu impuro, misturado, marcado pela convivência das mais distintas possíveis: negros, índios, brancos, miscigenados, migrantes, imi-grantes e nômades diversos.

O olhar do imigrante, do sujeito que está em movimento, presente nas narrativas em análise, serviu como estratégia para se escapar do exotismo do discurso convencional sobre a Amazônia. De qualquer forma, esse sujeito deslocado, desafia o olhar já sedimentado, propondo uma forma enviesada de olhar. Esse exercício é importante para que se repense o caminho, as verdades e a vida, inclusive para além da literatura.

Nos romances de Milton Hatoum há a compreensão de que a cultura não é uma esfera da consciência separada do ser social, mas um espaço de luta política, de resistência a processos de imposição cultural. Esse autor manauara não se preocupa em compor ou delimitar a identidade árabe ou amazônica, mas em desconstruí-la. É

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a partir dessa desconstrução que pensamos a identidade amazônica – se é que se pode falar de identidade, de fato – procurando escapar do exotismo que contribui para manter esquemas de submissão. Em suas narrativas, a identidade foi discutida como se construindo em uma região de fronteira, portanto, híbrida, montada a partir de resíduos, daquilo que está fora, à margem, e que problematiza o modelo. Nos dois romances de Hatoum a identidade foi pensada como um enigma, um mistério, deixando sempre um lado obscuro.

Ao invés de uma Amazônia conformada dentro de sistemas rígidos de identificação, em Milton Hatoum as culturas migrantes e nativas se entrecruzam, for-mando conglomerados de mesclas culturais que ca-racterizam as sociedades contemporâneas. Os textos sugerem distanciamento de qualquer sistema rígido de identificação, ressaltando aspectos de hibridez, de misturas e contextualizações.

Hatoum apresenta uma Amazônia em pleno processo de modernização. Como exemplo dessas transformações, temos o comércio de Halim totalmente alterado quando Rânia assume a direção, com Yaqub mandando mercadorias de São Paulo; a casa de família, reformada após a morte de Zana e transformada na “Casa Rochiram”, um carnaval de quinquilharias importadas de Miami e do Panamá; o palacete de Jano, totalmente reformado após a sua morte, as obras de arte, azulejos, tudo sendo transformado em lixo, não servindo mais para nada.

Ao colocar suas narrativas ficcionais em contextos históricos decisivos da história do país, Hatoum permite-nos reler a história brasileira a “contrapelo”, e mais, de um ângulo inusitado, isto é, ver da margem, ver a partir da Amazônia o que acontecia no país. Em Cinzas do Norte o período da ditadura militar nos chega por sintomas calcados na subjetividade, no relato pessoal, na experiência individual das personagens; fontes não autorizadas pelo discurso historicista, mas não menos eficientes, pois, a partir do momento que se toma o objeto ficcional como

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forma considerada de representação cultural, cria-se uma ferramenta desconstrutiva, dando-nos alternativas de recontar a nossa história, por vezes acolhedoras, dispostos a escavar num campo problemático que é o dos discursos, à procura de vozes e abordagens soterradas pela história oficial.

Nos romances de Hatoum analisados, observa-se que há não só uma desconstrução de um discurso historicista, mas também de imaginários exóticos e essencialistas sobre a Amazônia, problematizando identidades univalentes, ao mesmo tempo em que se colocam as identidades para deslizarem ruma à diferença e à alteridade. Em vez de um delírio hegemônico, de uma falsa harmonia, que passa a ilusão do acolhimento do outro, as narrativas de Hatoum problematizam o lugar central do discurso hegemônico, abrindo rachas na pretensa homogeneidade.

Para essa análise, partimos do princípio de que a identidade deve ser vista como um método em constante movimento e deslocamento, uma travessia que resulta de processos descontínuos, instáveis e problemáticos. Algumas perguntas nos inquietaram no decorrer desse trabalho: Como definir a identidade cultural da Amazônia a partir da literatura do imigrante? Como essa literatura que estamos chamando de literatura do imigrante pode problematizar a identidade da Amazônia? Quais os recursos e ou estratégias discursivas que foram utilizadas por Milton Hatoum no processo de construção da identidade cultural da Amazônia? Sem a pretensão de termos respondido todas essas questões de forma definitiva, buscamos, pelo menos provisoriamente, apre-sentar nossa colaboração interpretativa, que se agrega a outros de temática semelhante.

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Pós-Colonialismo, Feminismo e Construção de Identidades na

Ficção Brasileira Contemporânea Escrita por Mulheres

Lúcia Osana Zolin*

* Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Resumo: Nosso propósito, neste ensaio, é empreender algumas reflexões acerca do modo como a literatura brasileira de autoria feminina contemporânea, em diálogo com o pensamento feminista e pós-colonialista, tem construído identidades femininas, acentuadamente contrárias ao modelo fornecido pelo imaginário da ideologia patriarcal, e representado na literatura canônica. O ponto de partida para essas reflexões são os romances As meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles, A república dos sonhos (1984), de Nélida Piñon, e A audácia dessa mulher (1999), de Ana Maria Machado. Narrativas essas construídas de modo a fazer emergir vozes femininas imbuídas da missão de perscrutar trajetórias familiares e contextos sociais em cujo bojo assentam-se suas existências problematizadas, as quais põem em destaque, entre tantas outros aspectos, os papéis tradicionais femininos sedimentados na interação entre o pensamento colonial e o patriarcal.

PalavRas-Chave: autoria feminina, representação, identidades, feminismo, pós-colonialismo

abstRaCt: Current analysis deals with how contemporary Brazilian literature written by women has constructed, in the wake of its dialogues with feminist and post-colonial thought, feminine identities in contrast to the model provided by the imaginary in patriarchal ideology and represented in canonical literature. The research´s starting point are the novels As meninas (1973) by Lygia Fagundes Telles, A república dos sonhos (1984) by Nélida Piñon, and A audácia dessa mulher (1999) by Ana Maria Machado. The above narratives have been built so that the emergence of feminine voices could be achieved. They are permeated with the task of investigating

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family histories and social contexts where problematized existences are rooted. Among other aspects, they enhance the feminine traditional roles inserted in the interaction between colonial and patriarchal thought.

KeywoRds: female authorship; representation; identities; feminism; post-colonialism.

Sob a égide do pensamento pós-estruturalista, as construções teóricas referentes aos Estudos Culturais − os quais abrangem o Pós-colonialismo e o Feminismo − apontam para o acontecimento no qual a linguagem e a literatura representam a realidade no próprio ato de recriá-la, seja autorizando-a, seja subvertendo-a. Neste enfoque, literatura e instituição literária não pairam acima da realidade; mas, ao mesmo tempo, constituem-na e se constituem dela. Representam o real por dentro, fazendo parte dele mesmo, afetando-o e sendo por ele afetadas.

Conforme esclarece a crítica pós-colonialista Ania Loomba (1998), a abrangência do campo de representações simbólicas da literatura lhe confere a capacidade frequente de absorver e marcar aspectos de outras culturas e, ao longo desse processo, criar novos gêneros, ideias e identidades. Por outro lado, a literatura é também um meio importante de apropriação, inversão ou desafio a meios de representação dominantes. Daí a importância fundamental do binômio linguagem/literatura na construção das práticas sociais e culturais.

As reflexões acerca da construção de identidades femininas, na ficção brasileira contemporânea escrita por mulheres, aqui empreendidas, são alicerçadas na perspectiva do pensamento crítico feminista, desenvolvido a partir de meados da década de 1970, na esteira do pós-estruturalismo e do desconstrutivismo dos “filósofos da diferença”1, cujas ideias remetem à desconfiança em relação aos discursos totalizantes, dando origem aos debates que balizam a pós-modernidade2. De modo mais

1 Derrida, Foucault, Deleuze, Lyotard (no campo da filosofia), Lacan (no, da psicanálise), Althusser (no, da sociologia e política) e Barthes (no, literário).

2 Terry Eagleton (2010) define o pós-moderno como “o movimento de pensamento contemporâneo que rejeita totalidades, valores universais, grandes narrativas históricas, sólidos fundamentos para a existência humana e a possibilidade de conhecimento objetivo. O pós-modernismo é cético a respeito da verdade, unidade e progresso, opõe-se ao que vê como elitismo na cultura, tende ao relativismo cultural o pluralismo, a descontinuidade e a heterogeneidade” (p. 27).

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particular, a teoria feminista pode ser conceituada como um modo acadêmico de ler a literatura, confessadamente, empenhado e de caráter político, voltado: 1) para o desnudamento e para a desconstrução de discursos que circunscrevem a opressão e a discriminação da mulher, tomada como objeto de representação literária; 2) para o desnudamento dos mecanismos estético-temáticos de práticas literárias, prioritariamente, de autoria feminina, engajadas em representações femininas que não se reduzem a reduplicações ideológicas de papéis de gênero, sancionados pelo senso comum, mas que espelham a multiplicidade e a heterogeneidade que marcam o modo de estar da mulher na sociedade contemporânea. É por esse segundo viés que, de um lado, caminham nossas reflexões aqui. De outro lado, essas reflexões dialogam com a perspectiva da teoria pós-colonial, cuja principal tônica recai no questionamento, a partir da perspectiva dos marginalizados, sobre as relações entre a cultura (e, portanto, a literatura) e o imperialismo, visando à compreensão da cultura e da política na era da descolonização (BONNICI, 2000); noutras palavras, trata-se de perscrutar os rastros que a interação cultural entre colonizadores e sociedades colonizadas deixou na literatura. A literatura pós-colonial, nesse sentido, mais do que aquela que veio depois do império, conforme pondera Eloína Prati dos Santos (2010), é aquela que veio com o império, para dissecar a relação colonial e, de certa forma, resistir às perspectivas colonialistas, tais como as ideias da superioridade europeia e da missão civilizatória do império. A mulher, assim como os negros e os índios, foi subjugada no processo de expansão territorial das potências europeias, daí, muitas vezes, os conceitos operatórios do pós-colonialismo, tais como linguagem, voz, silêncio, discurso, poder, entre outros, serem partilhados pelo feminismo. Trata-se, no fim, de dois modos de ler e pensar a literatura, empenhados em desnudar-lhe posturas ideológicas – colonialistas e/ou patriarcalistas – e, sobretudo, promover a visibilidade

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de discursos e práticas contraideológicas oriundas dos colonizados/oprimidos em relação aos poderes colonizadores.

A literatura de autoria feminina brasileira, cuja trajetória inicia-se timidamente no século XIX, não raro, é circunscrita por posturas femininas contraideológicas, seja protagonizando histórias de mulheres silenciadas e outremizadas em ambientes patriarcais, como forma de aí pôr luz, em uma espécie de denúncia velada, seja protagonizando estórias típicas das mulheres sujeito, capazes de tomar a voz e decidir o rumo que desejam imprimir à própria vida.

Nessas reflexões, partimos do pressuposto de que os romances que constituem nosso corpus de análise – As meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles, A república dos sonhos (1984), de Nélida Piñon e A audácia dessa mulher (1999), de Ana Maria Machado – publicados no decorrer das últimas três décadas do século XX, constituem uma espécie de painel em que se descortinam representações de identidades femininas deslocadas em relação àquelas construídas no imaginário da ideologia patriarcal – e da ideia de nação brasileira, nos termos de Benedict Anderson (2008) – representadas na literatura canônica (de inspiração colonial), ao longo da história da Literatura Brasileira.

Além de o fato de essas narrativas terem sido publicadas nas últimas décadas do século XX, conservando, em média, um interstício de dez anos entre si, de modo a constituírem-se no registro de possíveis marcas que a literatura de autoria feminina foi inscrevendo nessa trajetória, interessa-nos o fato de serem narradas, ainda que em parte, a partir da perspectiva autodiegética de suas protagonistas. Edificando-se, num certo sentido, como narrativas feministas e pós-colonialistas, a um só tempo. Em meio à teia de significações daí depreendida, queremos destacar o modo como essas vozes femininas representam suas identidades deslocadas em relação aos paradigmas tradicionais construídos para a mulher

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e, consequentemente, para a nação brasileira que ela integra.

Em O mundo das mulheres (2007), com o objetivo de conhecer o pensamento e a experiência vivida pelas mulheres, Alain Touraine, valendo-se de uma pesquisa de campo3, conclui que as mulheres contemporâneas vivem em um universo de representações e de práticas orientado pela criação de si e pela recomposição da sociedade. Haja vista os homens terem conquistado o mundo, concentrando as forças nas mãos de alguns e reduzindo os trabalhadores, os colonizados, as mulheres e as crianças a seres inferiorizados. Tal recomposição se dá em termos culturais em um movimento que implica a passagem de certa conjuntura feminina definida como mulher-para-o-outro para outra definida como mulher-para-ela-mesma. Noutras palavras, talvez se pudesse dizer: de mulheres colonizadas para mulheres descolonizadas e donas de sua vontade.

Recorrendo ao pensamento do sociólogo francês, nossa hipótese é a de que, ao dar voz às protagonistas desses romances, as escritoras brasileiras em questão transpõem para o universo ficcional as práticas sociais femininas que remetem à passagem acima referida. Imbuídas do direito de falar, essas personagens-narradoras, ao narrarem a si próprias e aos que as rodeiam, bem como as relações sociais que estabelecem, engendram as representações que as mulheres contemporâneas têm delas mesmas e de seu lugar na vida social, representando o que elas pensam e fazem. Claro nos parece que as representações que emergem dessa mudança de perspectiva muito se afastam daquelas que o pensamento hegemônico masculino escreveu e inscreveu, respectivamente, nos livros e no imaginário coletivo, acerca dessas práticas, durante os processos de colonização do país, incluindo aí as minorias e os/as marginalizados/as. Trata-se de uma estratégia interpretativa que se afasta das teses da dominação masculina, patriarcais e imperialistas por excelência, para se centrar nas marcas da consciência feminina inscrita nesses textos literários.

3 Nessa pesquisa, foram ouvidas sessenta mulheres, em entrevistas de duas horas cada, bem como foram realizadas três longas reuniões com três grupos diferentes de mulheres, constituídos para esse fim.

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Nos termos do historiador Benedict Anderson (2008), a nação moderna se define como uma comunidade política imaginada, intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana. Imaginada porque os indivíduos que a constituem não conhecem todos os demais, mas projetam uma imagem deles, portanto, da comunidade da qual participam; limitada porque, ao fazer fronteira com outros territórios, jamais abrangeria toda a humanidade; e, por fim, soberana porque o surgimento/construção do nacionalismo está relacionado ao declínio dos sistemas tradicionais de governabilidade e às diferenças (étnica, racial e/ou cultural) de um povo em relação a outro. O conceito de nação, no fim, deriva de uma espécie de “consenso” ou “camaradagem horizontal” cujas raízes remetem a construções culturais que se empenham em silenciar toda e qualquer dissonância. Nesse sentido, a história literária, na medida em que seleciona o que deve constituir o cânone oficial de determinada cultura e, por outro lado, excluir o que aí não se enquadra, participa ativamente do processo de construção da nação.

À tradicional forma de retratar a mulher na literatura canônica, cumprindo, de algum modo, ao script básico feminino traçado pela ideologia patriarcal e por outras ideologias que conservam o ranço das ideias imperialistas, queremos contrapor o modo como as referidas escritoras brasileiras contemporâneas negociam construções de personagens e, por conseguinte, do nacionalismo brasileiro, que extrapolam a clássica configuração da mulher confinada no ambiente doméstico, desempenhando os papéis sociais para ela desenhados, como cuidar da casa, marido e filhos; ou desejando desempenhá-lo, no caso das solteiras; ou ainda sendo infelizes por não o desejarem desempenhá-lo naquelas circunstâncias específicas, com aquele marido, naquela casa... ou, no máximo, enlouquecendo ou se suicidando, inconformadas com tudo isso. Eis o perfil das Marílias de Cláudio Manuel da Costa, das Iracemas, Lucíolas e Aurélias de Alencar, das Carolinas de Macedo, das Capitus e Virgílias de Machado, das Madalenas de Graciliano, entre tantas

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outras. Trata-se, na verdade, de construir personagens femininas tomando como parâmetro a “construção da nação” que se pretendia, cujos princípios fundamentais são assim definidos por Antonio Candido:

1) O Brasil precisa ter uma literatura independente; 2) esta literatura recebe suas características do meio, das raças e dos costumes próprios do país; 3) os índios são os brasileiros mais lídimos, devendo-se investigar as suas características poéticas e tomá-las como tema; 4) além do índio são critérios de identificação do nacional a descrição da natureza e dos costumes; 5) a religião não é característica nacional, mas é elemento indispensável da nossa literatura; 6) é preciso reconhecer a existência de uma literatura brasileira no passado e determinar quais os escritores que anunciaram as correntes atuais (1981, vol. 2, p. 329-30, ênfase acrescentada).

Imbuída desse “sentimento de missão” voltado para a construção nacional, à literatura cabe conferir à nação uma feição própria, cujos “costumes” implicam aliar a ideia de nação livre com uma série de pressupostos herdados de sua experiência colonial de mais de três séculos. A questão da identidade nacional, que inclui obviamente o modo de pensar a mulher e seus papéis, é, portanto, retratada na literatura do tempo em consonância com ideologias vigentes como a eurocêntrica, a escravocrata e a patriarcal.

Em As meninas (1973), Lygia Fagundes Telles faz emergir três vozes femininas que, mais que denunciarem a opressão da mulher, representam-lhe a agência, apontando para a noção de subjetificação em um contexto em que a palavra de ordem era a famigerada “condição” feminina, condição de oprimida, de subjugada, de dominada, enfim. As imagens, portanto, que as narradoras constroem de si mesmas e daqueles/as que as cercam apontam para o modo como balizam as influências e/ou imposições sociais face a seus anseios mais íntimos, sinalizando para uma pluralidade de perspectivas sociais.

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Ambientado no contexto das demandas feministas dos anos 1960, no Brasil, o romance faz emergir tais perspectivas em meio à tematização das crises do patriarcado e do autoritarismo militar, aí acirradas, oferecendo um contraponto ficcional para a história oficial. As vozes de Lorena, Lia e Ana Clara – respectivamente, uma estudante de direito, de família aristocrática, uma militante de esquerda e escritora e uma aspirante de modelo, filha de prostituta e pai desconhecido, viciada em drogas – constituem, juntas, uma espécie de retrato do universo feminino de então, cujos limites transcendem aqueles clássicos das figuras femininas desenhadas pela pena de ideologias hegemônicas que fazem falar ou que falam em nome dela. A eficácia estético-ideológica do romance reside na subversão dessas recorrentes práticas literárias e, sobretudo, sociais. Subverter, nesse caso, implica fazer ouvir as vozes femininas, representar-lhes o universo inquieto, sedento por transformar realidades, construir outros parâmetros.

No dizer de Tourraine (2007), trata-se da repre-sentação da mulher-para-si, uma espécie de relação que essas personagens estabelecem consigo mesmas, desnudada por meio de estratégias narrativas como o monólogo interior e o fluxo de consciência, cuja eficiência está em fazer emergir a vontade já transformada em ação de se converterem em atrizes4 na construção de si mesmas.

A trajetória de cada uma das protagonistas que compõem essa importante tríade feminina, reunida no Pensionato Nossa Senhora de Fátima, ao sabor de necessidades particulares, aponta não necessariamente para a representação de mulheres que, ao construírem-se a si, constroem-se como mulheres independentes e vencedoras, capazes de exorcizarem as forças ideológicas hegemônicas que incidem sobre si em favor de outras, mais amenas e/ou libertárias. Esse processo de construção de si por que passam essas narradoras-personagens implica consciência, reconhecimento e/ou desnudamento das próprias dores, muitas vezes, de caráter sociopolítico, e da

4 Alain Tourraine (2007) toma o termo ator/atriz no sentido de membro da sociedade caracterizado pela capacidade e vontade de mudar, ao invés de manter a ordem estabelecida. Tal noção se liga à ideia de sujeito, direitos e democracia.

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capacidade de superação de cada uma. O romance, nesse sentido, contempla uma polifonia de vozes femininas que, ao se contradizerem e/ou se questionarem mutuamente, além de se dissimularem, registram o mal estar social e político da época.

Lorena, a estudante de direito ligada a uma universidade pública em greve dispõe de muito tempo para pensar em si, na dissonância entre suas raízes aristocráticas e as existências tão díspares de suas amigas, além do amor platônico que nutre por M. N., homem casado e, provavelmente, imaginário. Ganha relevo nesse percurso, prenhe de intersecções de ordem identitária, o movimento pendular que se estabelece entre a aceitação e a negação da realidade, numa sinalização de que o/a leitor/a está diante de uma identidade, no mínimo, deslocada em relação ao status quo feminino sancionado pelo senso comum. Em face da qual, não seria exagero pensar na possibilidade de a origem dos principais conflitos que a balizam residir no choque entre as práticas de poder, de ordem imperialista, que lhe marcam as origens e seus contrapontos, possivelmente, da ordem da subalternidade colonial.

Já para Lia, o tempo que lhe sobra em função da greve universitária é revertido para sua militância política junto a outros estudantes empenhados na resistência ao autoritarismo da ditadura militar. Há que se salientar nessa trajetória feminina deslocada em relação ao eixo referencial – herdado dos tempos do império – de que dispunha a mulher de então, o duplo movimento na construção de si e dos valores sociais que a movem: a escritura do livro que, num momento de tensão, rasga por julgá-lo incapaz de denunciar os descalabros dos “anos de chumbo”, resvalando para o tom sublime de sua subjetividade; e a militância política de esquerda, a partir da qual se acredita capaz de interferir na ordem vigente e de edificar-se como partícipe da história do país e, certamente, das mulheres brasileiras. Ao rasgar o livro e, ao final de sua trajetória, seguir para a Argélia ao

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encontro do namorado exilado, encerra-se num silêncio que, no dizer de Gomes (2010) “é um grande grito de horror contra a opressão e contra a censura” (p. 60).

Ana Clara (Ana Turva), por outro lado, não só não se envolve com questões políticas como se empenha em enriquecer a qualquer custo, a fim de superar as perdas acumuladas desde a infância pobre, que vão das necessidades mais básicas ao abuso sexual. No entanto, nem o casamento com o namorado rico e “escamoso” se realiza, já que a família dele lhe exigia a virgindade desde há muito perdida, nem sua carreira de modelo deslancha. O fracasso, a miséria e, sobretudo, as drogas e o álcool a conduzem à morte. Nessa trajetória, indubitavelmente deslocada em relação ao que se esperava da mulher da época, avultam as interseções referidas por Judith Butler (2003) que constituem a categoria mulher/es: nesse caso, os problemas de gênero vêm acrescidos dos de classe social, incluindo não só a miséria, mas a violência sexual e a dependência química. A construção de si, nesse sentido, esbarra nas forças antagônicas da sociedade de consumo, em que a alienação vence, não sem muitos embates, o sonho de superação das misérias sociais e da colonização do pensamento.

É por meio desse sofisticado jogo polifônico, constituído dessas três vozes às quais a quarta voz, a do narrador onisciente, dá suporte, que Lygia Fagundes Telles faz emergir a representação do universo feminino nesse contexto marcado pela transição e pela reconstrução de valores. No conjunto, essas “meninas” orquestram imagens da mulher-para-ela-mesma, conforme a definição de Touraine (2007), num movimento que sinaliza uma heterogeneidade de facetas femininas, cujas angústias e prazeres, em constante movimento, caminham na contramão tanto do essencialismo historicamente atribuído à mulher e refutado pelo feminismo, como dos tradicionais papéis subalternos atribuídos aos negros, aos índios e às mulheres, refutados pelo pós-colonialismo.

Em A república dos sonhos (1984), romance que se

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ocupa da saga familiar do imigrante Madruga, vivida num intervalo de, aproximadamente, oito décadas, entre sua infância na Espanha e sua trajetória no Brasil, enquanto “fazia a América”, a escritora brasileira Nélida Piñon traz para a cena narrativa quatro gerações de mulheres que, conforme demonstramos em trabalho anterior5, constituem uma espécie de painel em que se pode vislumbrar a história da mulher desde o fim do século XIX ao longo do século XX, até a conquista da emancipação feminina, galgada no âmbito do movimento feminista. Trata-se da avó Teodora, da mãe Urcesina, da esposa Eulália, bem como das filhas Esperança e Antônia, das três noras e da neta Breta, além de Odete, a empregada agregada à família. São trajetórias femininas em meio às quais avultam nuanças colonialistas e patriarcalistas, mas, sobretudo pós-colonialistas e feministas.

São essas últimas, certamente, que conferem o tom da trajetória de Breta, a neta do patriarca da família, ambientada, quando adulta, nos rebeldes e difíceis anos 1960. Tendo sido engendrada de modo a assumir uma perspectiva revisionista e, considerando que um dos principais recursos estéticos do romance é o do livro dentro do livro, a chamada narrativa em abismo, interessa-nos ainda mais o fato de ser Breta a escritora incumbida de escrever e, quem sabe, reescrever a história familiar.

Isto porque se, tradicionalmente, o lugar da mulher tornado legítimo pelas forças hegemônicas imperialistas é o do silêncio, sendo-lhe vedado o direito à voz e, consequentemente, de externar o modo como avalia a realidade circundante, conforme tão bem equaciona Gayatry Spivak (2010), Breta é imbuída do direito de falar; mais que isso, é incumbida de falar. E se a saga familiar, constituída de tantos matizes, lhe permitiria variados enfoques, claro está que a história da mulher aí vivenciada, sob a égide do patriarca inveterado que fora Madruga, está entre os principais.

Dentre as escolhas semânticas empreendidas no

5 Ver Desconstruindo a opressão: A imagem da mulher em A República dos Sonhos, de Nélida Piñon. Maringá: Eduem, 2003.

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universo romanesco, cuja eficácia consiste em costurar o teor estético ao político, Breta põe luz no árduo caminho trilhado pelas mulheres, em que deslocamentos de toda ordem são vislumbrados, até chegar ao glorioso patamar em que se encontra: a de narradora da história, de pensamento descolonizado. Mais que isso, sendo ela o fruto da transgressão de Esperança, que, ao se relacionar com um homem casado e engravidar dele, é banida de casa e exposta a toda ordem de exclusão, até buscar na morte a última cartada, acaba por redimi-la através do modo como gerencia a própria vida, em que a palavra de ordem é o deslocamento: seja em termos políticos, quando se embrenha em aparelhos subversivos de esquerda em defesa de seus valores libertários, seja em termos pessoais, quando escolhe, depois de um casamento de apenas seis meses, não voltar a se casar: “Serei de quem eu decida, e por prazo estabelecido por mim. Assim, lanço e recolho a âncora a meu bel-prazer. Sou dona agora de meu barco e encalho na praia de minha preferência” (PIÑON, 1984, p. 523).

Nesse sentido, a trajetória de Breta encerra a um só tempo tanto a construção de si, a que Touraine (2007) reconhece como sendo o desejo primordial da mulher contemporânea, quanto a revisão, e consequente superação, da histórica opressão feminina, delineada por Bourdieu (2005), em A dominação masculina, a que suas antepassadas estiveram submetidas. Opressão essa que, em muito, se aproxima das práticas coloniais de objetificação e de outremização do subalterno.

Escrever a saga da família implica passar tudo isso em revista, rememorar, conferir significação aos fatos, entender-lhes a dinâmica e os alicerces culturais em que se assentavam para, ao final, superá-los e sintetizá-los por meio da própria existência e de sua missão de escritora:

A você caberá escrever o livro inteiro, a que preço seja. Ainda que deva mergulhar no fundo do coração, para arrancar a vida dali. Um livro que, ao falar de Madruga,

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de sua história, igualmente fale de você, de sua língua, do áspero e desolado litoral brasileiro, das entranhas dessa terra que vão do Amazonas ao Rio Grande. Eu viverei no livro que você vai escrever, Breta. Assim como Eulália, Venâncio, nossos filhos, a Galícia e o Brasil (PIÑON, 1984, p. 760).

Em A república dos sonhos, todavia, o avesso de Breta, a quem é dado o direito de falar e de se constituir como sujeito, pode ser reconhecido não só na trajetória conturbada de Esperança, na geração anterior, mas, de modo especial, na de Odete, a empregada negra, agregada à família, em torno da qual ainda persiste o preconceito cristalizado no âmago do Brasil colônia de que o negro constitui uma “raça” ou uma classe de pessoas legitimamente excluídas. Ainda que referenciada no ambiente familiar como a “fiel escudeira” de Eulália, não são raras as situações em que é reconhecida como uma negra humilhada pelos ecos da servidão. Daí espelhar-se na patroa face à ausência de referenciais advinda dessa sua condição, copiando-lhe o modo de ser, em uma busca desesperada pela própria identidade espoliada:

Algumas vezes Eulália questionou-se se não fora Odete premiada com uma vida anônima e sem rastro, unicamente para tê-la sempre ao seu lado, a enxugar-lhe a testa até o desenlace. De tal modo convertida em sua sombra que, ao virar a cabeça, nunca deixou de vê-la (PIÑON, 1984, p. 62).

Mas é ao refugiar-se na fantasia, inventando uma família na qual passa a acreditar, que a trajetória de Odete converte-se na mola propulsora dessas nossas reflexões acerca de A república dos sonhos, romance representativo de práticas literárias anticolonialistas e antipatriarcalistas. A diferença existente entre a vida idealizada perante os patrões, na qual teria um lar próprio com direito a mãe, tia e sobrinha, e suas dolorosas experiências dominicais,

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na casa “especialmente alugada para este fim”, em que a solidão e o abandono conferem o tom, abrem espaço na narrativa para ácidas críticas à mentalidade imperialista que permeia a casta da grei de Madruga no Brasil.

Não nos parece gratuito o fato de ter sido Breta a personagem “escalada” pela escritora para descortinar os segredos de Odete. Ao surpreender a criada no doloroso exercício de sua ilusão, ela, sem querer, a devolve “à senzala da qual sua família originara-se no passado”. Esse episódio emocionante assume, na economia do romance, o papel de mola propulsora de uma profunda reflexão da narradora-protagonista acerca dos sentimentos contraditórios e confusos que permeiam a relação dos brasileiros com suas origens africanas, equacionadas em termos de opressores x oprimidos, dominadores x subalternos, metrópole x colônia, enfim:

Os olhos saltados das órbitas, ela esticou o braço pedindo ajuda. Fui ao seu encontro, e Odete atirou-se ao chão, enlaçando meu corpo, auscutando-me o ventre com a cabeça. Seus soluços ressoavam por mim, enquanto ela recebia a bofetada da minha respiração descompassada. Devagar toquei-lhe os cabelos pixains, tão macios e delicados que me comovi. Como se eu viajasse pela África em sua companhia. Ali estava a África firmada no centro da minha barriga. África que nos criara e nos embalara, e de que tínhamos vergonha. Mas quem éramos nós afinal, povo mestiço e arrogante, para se supor com direitos de selecionar a terra, determinar áreas de degredo, e nelas estabelecer senhores e escravos? (PIÑON, 1984, p. 137).

Parece que essa cena flagra o instante mesmo em que Breta se dá conta da relação dominador-dominado que se estabelece entre os que trazem as marcas do branco-europeu-colonizador e os afro-brasileiros-colonizados, mesmo quando tal relação se consolida subjacentemente à aparência da cordialidade.

Rocha (1999), no seu “Gênero, raça e historicidade na escrita feminina dos anos 80”, reflete sobre essa

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problemática comparando a relação Eulália-Odete com aquela estabelecida entre Madruga e Eulália: na primeira, “Eulália, a branca-européia, de classe média, submete Odete, a afro-brasileira, empregada doméstica, pobre e subserviente” (PIÑON, 1984, p. 74); na segunda, Madruga submete Eulália: “afinal este é um casal europeu, e, entre eles, prevalece o representante do ‘sexo forte’” (PIÑON, 1984, p. 74).

Curiosamente, o próprio Madruga, em determinada discussão familiar que tinha como pauta as ponderações de Eulália sobre a pouca atenção que eles dispensavam à “família” de Odete, adverte sobre a realidade do “outro” no Brasil: “— E pensa então que Odete não sabe que nesta casa ela é uma espécie de serva, sem destino e sem direito de escolher? É uma desgraça ser negro e pobre neste país!” (PIÑON, 1984, p.128). Tal comentário, constatador da opressão a que são submetidos os que trazem a marca da diferença, poderia, perfeitamente, ser acrescido de mais um agravante: É uma desgraça ser negro, pobre e mulher nesse país!

Mas é, sobretudo, em A audácia dessa mulher (1999), romance de Ana Maria Machado publicado pouco mais de uma década mais tarde, que se observa uma das mais recorrentes práticas pós-colonialistas no âmbito dos estudos literários, a da reescrita – uma estratégia com a qual se pretende edificar uma visão crítica acerca de determinado corpus literário e da ideologia que subjaz a ele. Mais do que operar a intertextualidade, essa espécie de releitura e revalorização do passado funciona como uma prática de resistência à homogeneização presente no discurso dominante. O instrumento que utiliza é a recriação de textos canônicos preexistentes. Estes são reinventados, e resultam em novas produções que abrigam outras versões da mesma história. Sob esse novo prisma, possibilitado por um olhar diverso daquele que orientou o texto originário, as recriações advindas da reescrita revelam aspectos encobertos da engenharia discursiva presentificada em textos modelares.

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Em O Pós-colonialismo e a literatura (2000), Bonnici define a reescrita como uma estratégia em que “o autor se apropria de um texto da metrópole, geralmente canônico, problematiza a fábula, os personagens ou sua estrutura e cria um novo texto que funciona como resposta pós-colonial à ideologia contida no primeiro texto” (p. 40). Como exemplo, o crítico cita A tempestade, de Shakespeare, como sendo, provavelmente, o texto mais reescrito da literatura canônica inglesa. Nele, percebe-se o papel incisivo que assume o sujeito, isto é, aquele que age e que impõe seu domínio. Ele se constrói no ato de subjugar o outro, requerendo para si qualidades que institui como desejáveis, e apontando naquele a “falta” de tais características. Portanto, o sujeito precisa do outro para se firmar como tal, pois este outro inferiorizado é construído como seu “oposto”, diante do qual ele se sobressai, ao utilizar-se das categorias comparativas que criou. Nas reescritas construídas sob esse viés, a problemática metrópole-colônia é retomada de modo a salientar os atributos que fazem do texto original uma espécie de roteiro, no qual se podem encontrar os principais argumentos ideológicos do projeto colonial inglês, dentre os quais se destaca a construção da figura do nativo como “o outro”, o diferente, portanto, o inferior e, por isso mesmo, passível de dominação.

Em A audácia dessa mulher, queremos chamar atenção para o modo como a escritora reinventa a trajetória de Capitu, imortalizada no clássico Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, um século antes. A Capitu reinventada pela pena de Ana Maria Machado surge em meio à teia narrativa que se desenvolve em torno da trajetória de Beatriz Bueno, uma jornalista de sucesso ambientada no finalzinho do século XX, em cujas mãos chegam alguns escritos de Capitu. A viabilidade desse projeto narrativo emana das brechas deixadas no texto original, já que, aí, a esposa de Bentinho, de “olhos de cigana obliqua e dissimulada”, é silenciada e exilada pelo marido na Suíça, onde morre sozinha, anos mais tarde, em razão de tê-lo

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traído com o melhor amigo, sem que qualquer chance de defesa lhe tenha sido dada. Tais escritos, portanto, nas mãos da audaciosa jornalista, significar-lhe-ia a redenção.

Imbuída da crença de que “os livros continuam uns aos outros, apesar de nosso hábito de julgá-los separadamente” (MACHADO, 1999, p. 185), a escritora retoma a trajetória de Capitu, reinventando-lhe os caminhos percorridos durante o casamento com Bentinho e após seu exílio na Suíça. O argumento para a retomada da história é o “cadernão da Lina”, um misto de caderno de receitas e de diário íntimo, que, após ter passado por diversas gerações de mulheres, chega às mãos da jornalista, acompanhado de uma carta assinada por Maria Capitolina. A estratégia do livro consiste, portanto, em fazer com que Capitu, a personagem de ficção machadiana do século XIX, seja reconhecida por Beatriz, personagem de ficção ambientada no final do século XX, como uma mulher real que, apesar de ter sido também personagem de Machado, teria existido de fato.

Desse modo, está construída uma situação narrativa que permite à escritora, no limiar do século XXI, engendrar uma narrativa que funciona como resposta feminista à ideologia patriarcal que subjaz à construção de Dom Casmurro. É dentro desse espírito que os caminhos que teriam sido trilhados por Capitu, e que não caberiam no campo de visão do narrador Dom Casmurro, são iluminados. Tudo o que não foi dado ao/a leitor/a do romance original saber sobre essa intrigante personagem feminina, a quem Machado não deu voz, sendo-lhe o perfil filtrado pela ótica do marido ciumento, é permitido conhecer agora.

A carta de Capitu, destinada a Sancha, escrita quarenta anos após sua partida para a Suíça, revela o fato de ela ter presenciado, na véspera da morte de Escobar, o comprometedor flerte entre o marido e a melhor amiga. Essa revelação, que inverte a situação básica do romance oitocentista, já que Capitu passa de adúltera para vítima de traição, desencadeia uma série de outras situações

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que funcionam como respostas às lacunas deixadas no texto original: 1) em face da confissão de adultério do marido, após o flagrante referido, a decisão da separação é dela; 2) a semelhança entre Ezequiel e Escobar, com o tempo, desaparece; 3) ela responde à situação disfórica com a “audácia de se parir novamente” (MACHADO, 1999, p. 199): tornou-se simplesmente Lina, uma mulher cuja conquista da vida profissional e o desejo de redefinir os papéis sociais femininos que representa marcam-lhe a nova trajetória inaugurada após a separação conjugal.

Há que se salientar, em vista disso, que, embora a reescrita da trajetória da personagem machadiana lhe preserve a ambientação no século XIX, ela se concretiza dentro de outro contexto. Trata-se de uma homenagem a Machado de Assis, no ano do centenário da publicação de Dom Casmurro, realizada em um momento em que é visível na literatura, sobretudo na de autoria feminina, a representação da nova situação da mulher na sociedade, viabilizada pelo feminismo. Daí emergir, no lugar da representação da dominação masculina de que fala Bourdieu (2005), erigida por meio do discurso unilateral do marido ciumento e autoritário, a representação da construção da mulher-para-ela-mesma, definida por Touraine (2007), ou seja, a representação da mulher que, antes de se pautar na dor da opressão, pauta-se na inquietude da busca, tomada em termos afirmativos. O resultado aponta para uma figura feminina consciente do rumo que deseja imprimir à própria vida; rumo que, certamente, não é o da vitimização.

Eis a trajetória de Lina que, guardadas as proporções conferidas pelo contexto em que emerge, avança obedecendo à mesma lógica que subjaz à trajetória das “meninas” de Lygia Fagundes Telles, ou da Breta de Nélida Piñon: a lógica da subjetificação e, consequentemente, dos deslocamentos face às matrizes reguladoras das identidades tradicionais de gênero.

Em Problemas de gênero, Judith Butler esclarece que a ação do gênero requer uma performance repetida que,

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a um só tempo, é “reencenação e nova experiência de um conjunto de significados já estabelecidos socialmente; e também é a forma mundana e ritualizada de sua legitimação” (p. 200). As performances aqui perscrutadas avançam na contramão daquelas concebidas com o objetivo estratégico de manter o gênero em sua estrutura binária, no solo do modelo essencial/natural de identidade, deslocando-o para o modelo da temporalidade social. Noutras palavras, apontam para o acontecimento no qual a linguagem e a literatura não pairam acima da realidade e de suas práticas de dominação, mas, ao mesmo tempo, constituem-na e se constituem dela, representando-a e a subvertendo no próprio ato de recriá-la.

E, nesse sentido, há que se levarem em conta as forças que agiram para que tais escritoras tenham construído suas personagens do modo como o fizeram. Talvez se pudesse dizer que as personagens, em certa medida, consistem em representações da imagem que as escritoras fazem de si e daqueles que as cercam, afetadas pela porosidade presumida entre seu processo de criação e o meio acadêmico, matizado pelo pensamento feminista, com o qual, não raro, se relacionam.

Os romances aqui analisados, publicados no decorrer das últimas décadas do século XX, “conversam” com as discussões empreendidas na academia nesse período, sobretudo no que tangem às discussões acerca da subjetificação feminina, tão em voga, bem como ao repúdio às estruturas restritivas da dominação, relacionadas às teses da essencialidade e da identidade dos gêneros. Do mesmo modo, sendo o patriarcalismo uma ideologia integrante do colonialismo e do imperialismo, estabelecem conexões bastante significativas com o pensamento que alicerça os estudos pós-coloniais, na medida em que trazem, para o primeiro plano da narrativa, vozes femininas que resistem à colonização do pensamento, promovendo reflexões não só em nível das relações de gênero, mas também em nível étnico e classista.

Pós-Colonialismo, Feminismo e Construção de Identidades...

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REFERÊNCIAS

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Um Lugar Não Mais: o Romance Brasileiro Contemporâneo nos

Limites do Império (o Caso Bernardo Carvalho)

Paulo César Silva de Oliveira*

* Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ.

Resumo: Este artigo é uma reflexão acerca do posicionamento da ficção brasileira contemporânea face à questão do pós-colonialismo. Compreendendo como essencialmente proble-mática, no caso brasileiro, essa noção requer um debate plural acerca das vias e desvios essenciais que marcam o espaço-tempo do campo literário nacional: problema da língua; herança colonial; campo intelectual e produção ficcional e persistência das noções românticas de nação, nacionalidade, identidade e diferença. O romance O filho da mãe, de Bernardo Carvalho, se apresenta como ponto de inflexão desses questionamentos e será lido como paradigma de algumas interrogações recorrentes suscitadas pelo chamado pós-colonialismo, dentre os quais, destacamos o papel da literatura contemporânea brasileira como demandante de certas especificidades críticas, especialmente constantes no campo da crítica cultural e, porventura, política.

PalavRas-Chave: Pós-colonialismo; Literatura Brasileira; identidades; espaço-tempo.

abstRaCt: This article is a reflection on the positioning of the Brazilian literature regarding some postcolonial conceptions. Understanding this notion as essentially problematic in the Brazilian experience, a plural debate will be required, as the specificities of our colonization in space and time require a more accurate debate, specially concerning the questions of the language, of our colonial heritage; of our fictional production inserted in the intellectual field as well as on the persistence of the romantic notions regarding the concepts of nation, nationality, identity and difference. The novel O filho da mãe stands as an inflection point to these questions and it will be read as a paradigm of some recurrent problems evoked by the

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cultural and political postcolonial interpretation of culture, from which we will highlight the role of the contemporary Brazilian literature as a phenomenon that carries specificities, mainly in the critical, cultural and, by chance, political field.

KeywoRds: Postcolonial Studies; Brazilian Literature; identities; space-time.

Introdução

Os problemas que rondam a ideia de uma literatura pós-colonial no Brasil são, por vezes, homólogos a certas questões acerca das definições de uma América pós-colonial. No campo da literatura, essas relações se nutrem de especificidades que tornam tais definições ainda mais complexas ou delicadas. Como o que se denomina América Latina já denuncia uma nomenclatura de vínculo europeizante, por um lado; por outro, entretanto, também evidencia uma condição singular que, no caso do Brasil, permeia a questão da língua, em seu caráter de multidão solitária: solidão da língua na imensidão territorial comprovada nas cartografias e pelo gigantismo de nossa dimensão espacial, da expansão continental que nos caracteriza. A questão da língua portuguesa adquire, nesse cenário, configurações singulares e matizadas. Entender o contexto das condições da produção ficcional contemporânea, sob o viés do pós-colonialismo, objetivo dessa reflexão, requer de nós, portanto, uma breve introdução que demandará certo pensamento/posicionamento crítico-reflexivo, que trataremos, provi-soriamente, sob o termo interrogações de risco. Para essa tarefa, propomos discutir alguns pontos de inflexão, sendo o primeiro deles o caráter de “solidão gigantesca”, expressa no termo “solidão ao Sul”, assunto com que lidamos, sob outras matrizes, em outras ocasiões.

Neste momento, encaminharemos a questão, ini-cialmente, sob o viés dos questionamentos oriundos do próprio campo literário, abrindo a reflexão para

1 Referimo-nos, mais especificamente, ao ainda incipiente ensaio publicado em 1995, em que discutíamos o processo de integração da América Latina e do Caribe, em um trabalho escrito para um concurso internacional de ensaios sobre o tema. As referências a esse trabalho, retomado em bases mais amplas aqui, encontram-se em nossa bibliografia, em Oliveira (1996).

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a compreensão do lugar que o Brasil ocupa no mundo da globalização, bem como do fenômeno de língua que lhe é característico no cenário latino-americano, sem esquecer a questão dos nacionalismos formadores, desde o Romantismo, a pontuar certas discussões acerca das especificidades de uma literatura dita autêntica, brasileira. Quanto a isso, o estudo do pós-colonialismo, nas regiões de influência lusófona, se nutre de algumas características particulares, no nosso caso brasileiro, por exemplo, nossa relação com a colônia, ela própria problemática em face da configuração do espaço-tempo português como o de país sub-hegemônico.

Esta reflexão encaminhará, portanto: uma proposta de debate reflexivo-crítico em torno do posicionamento do Brasil no contexto latino-americano e sob a matriz da língua; uma retrospectiva e insistente recuperação das questões românticas sempre retornáveis, o que se verificará nesse trabalho; uma análise das relações colônia-metrópole, especialmente com base nas análises de Boaventura Sousa Santos (2004); e um estudo exemplar-analítico do romance O filho da mãe, de Bernardo Carvalho (2009), como texto-guia do que estaremos discutindo, no difícil trato com a literatura brasileira contemporânea em suas relações com o que se denomina problematicamente de pós-colonialismo.

Um lugar não mais: o espaço-tempo da língua

Os fenômenos advindos da reflexão sobre o caráter pós-colonial da produção literária não podem se furtar à exposição política, social e econômica, lembrando sempre que esses fenômenos estão também atrelados à contingência histórica, ao panorama do espaço-tempo que forma as especificidades das antigas colônias. No âmbito da crítica cultural, os embates teóricos que se dão no campo intelectual, especialmente os que se travam no campo literário, requerem de nós o mapeamento

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de certo percurso de discussão. Nossa escolha inicial recai sobre a questão da unidade, tema caro às nações colonizadas e que encontra na problemática da língua um potencial viés cítico-discursivo. Nas palavras de Claire Taylor (2007, p. 123), “(...) there is no ‘essential’ Latin American identity which can be expressed free from the constraints of an imposed, colonial language”. No caso português, um pensamento acerca da língua e da reflexão de cunho filosófico tem sido há tempos negligenciado, em nome de uma suposta ausência de reflexão filosófica em terras lusas, carência que se estendeu a suas possessões ultramarinas. Maria Helena Varela (1996) propôs uma leitura filosófica de nossos discursos literários como forma de desencobrir um pensamento plural e heterodoxo que seria encaminhado por obras e autores escolhidos (Fernando Pessoa, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, por exemplo) e que configuram uma espécie distinta de lógica não-excludente, a qual chamou de heterologos.

Nossa ainda incipiente leitura da questão da língua como elemento essencial de um pensamento acerca do posicionamento do Brasil no contexto latino-americano (OLIVEIRA, 1996) e no mundo, em última instância, coincidia à época com a escolha de Guimarães Rosa por Maria Helena Varela – no caso de Varela, a seleção de textos recaía com mais ênfase nas obras ficcionais significativas do mineiro. Em nossa experiência reflexiva, a leitura de Rosa havia nos encaminhado para as entrevistas do mineiro e, embora a obra de Varela naquela ocasião nos fosse desconhecida, lida posteriormente revelou-se um campo crítico que nos mostrou o quanto sua reflexão era avançada em relação ao que pretendíamos explorar, pois potencializava imensas possibilidades de questionamentos, muito mais complexos do que nosso modesto artigo até então pressupunha. A grande vertente problematizadora de Varela, a nosso ver, residia justamente não na tentativa de “resgate” do pensamento lusófono, nem na defesa de incapacidades ou menoridades filosóficas nacionais, e sim no sutil e arguto encaminhamento dessas questões

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rumo à desconstrução de mais um viés do logocentrismo ocidental, a partir da leitura dos discursos poético-narrativos, que a autora classifica como “excessivos e originais em nossa cultura” (VARELA, 1996, p. 19). À diferença de um logos sistemático e edificante, Varela propunha trilhar um percurso crítico que assumia a razão em língua portuguesa como “recriada nos seus desvios e metamorfoses, viagens e mestiçagens, como um logos mais edificante do que sistemático, mais poético do que noético (VERELA, 1996, p. 19, grifos da autora). Nessa trilha ousada, e de risco, Varela (1996, p. 98) afirmava que:

Na sua assistematicidade filosófica, o pensamento em língua portuguesa, sobretudo nos últimos cem anos, assume-se como razão nômade, pensamento em contínua busca de si, cartografado ao longo deste trabalho nos textos e autores em cuja intersecção se joga o sentido de uma filosofia outra, cuja clandestinidade metafísica é por demais pertinente. À figura da árvore do logocentrismo ocidental, cujas raízes, ramos e ramificações sugerem um sentido único, a dominância da essência universal sobre as singularidades e acontecimentos, o heterologos contrapõe a figura do rizoma com a sua existência descentralizada e plural, as suas diferenças e multiplicidades (VARELA, 1996, p. 98, grifos da autora).

Para Varela, é no mar de rizomas que poetas e profetas navegam. Expostos brevemente alguns aspectos centrais de seu pensamento, passemos a detalhar alguns pontos de nossa reflexão sobre a questão da língua e da unidade, bem como sobre o modo com que Guimarães Rosa originalmente advoga um espaço singular, posto que generoso e diferencial, para o Brasil e sua língua.

Como dissemos anteriormente, pensar o espaço-tempo do pós-colonialismo e suas implicações no mundo de língua portuguesa requer de nós, obviamente, um delineamento dos percursos de ambiguidades inerentes ao processo de colonização, sucedido pela descolonização que deixou e deixa profundas marcas. No caso brasileiro,

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é preciso compreender que o que se chama hoje de pós-colonialismo dificilmente se aplica aqui. O processo de independência, ocorrido em 1822, com a consequente instauração do Império, regido por um herdeiro do próprio trono português, do qual havíamos nos separado, revela processos de ambiguidades distintas das que marcaram a posterior descolonização dos outros territórios imperiais lusófonos, especialmente os de África e Ásia. Pensar o processo de configuração da identidade é atividade que demanda uma inserção em diversas áreas do conhecimento e da reflexão e, em nosso caso, a questão da língua pensada pela literatura aflorou como o tal modo de entrada de que tratamos no começo dessa reflexão. Cabe, nesse instante em que a ideologia da globalização se mostra promessa de integração com respeito às diferenças, indagar, criticamente, esse projeto exposto para verificar com quais recursos a literatura brasileira contemporânea oferece uma possibilidade reflexiva que, longe de ser integradora, subverte as noções vigentes acerca da natureza do mundo em rede, globalizado, e do próprio pensamento pós-colonial. Guardemos para adiante essas afirmações. No momento, interessa-nos retomar o conceito de unidade, um problema que, para a filosofia contemporânea, se mostrou central, especialmente na chamada desconstrução.

Frequentemente, retorna à cena discursiva a questão da integração, da unidade. E nos perguntamos se algum dia ela abandonara seu palco. Vista sob o caráter de urgência ou dormitando no lento processo de maturação de sua questão, na possibilidade mesma de sua constituição como questão fundamental, a problemática da unidade dos povos e de sua independência em relação aos antigos colonizadores reivindica seu posto nos segmentos mais diversos do pensamento contemporâneo. No entanto, acentuar essa urgência parece ser a estratégia fundamental do trabalho crítico, para o qual é preciso, para além do reconhecimento do tributo pago pela historiografia, superar a questão da unidade, não objetivando a recusa

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radical de seus pressupostos ou de sua contribuição para o estabelecimento de noções, conceitos e reflexões, mas no sentido de buscar, no espaço de um logos heterogêneo, conforme Varela, um pensamento da unidade que seja diferencial e generoso. Deste modo, não é apenas o “um” da unidade, mas, principalmente e adicionalmente, o “mais-que-um” e o “menos-que-um” que serão os elementos integradores os quais, além de nos possibilitar pensar o destino e a destinação de um povo multifacetado, retraçam a geografia existencial dessa multidão contida na ideia do todo, da unidade.

A unidade é quantidade que se toma arbitrariamente, qualidade do um, do único, do uniforme, daquilo que supostamente não pode ser dividido em sua pretensa homogeneidade, conforme um pensamento metafísico redutor poderia advogar. Mas, se é próprio da unidade, o “mais-que-um”, conceitua-se, assim, uma “práxis da reunião”, como entende Jacques Derrida, isto é: o “acordo que reúne ou recolhe harmonizando”, pressupondo a alteridade no evento que, sem se reduzir à sua eventualidade, pensa a “singularidade e a alteridade do outro” (DERRIDA, 1994, p. 46-47), na qual o “menos-que-um” busca, por sua vez, a compreensão da singularidade dos sujeitos do ponto de vista da diferença ontológica, nos mecanismos de constituição daquilo que chamamos o Ser, o qual se vê diante da promessa da junção: “A aliança de um rejuntar sem cônjuge, sem organização, sem partido, sem nação, sem Estado, sem propriedade (o “comunismo”, a que denominaremos mais adiante a nova Internacional)” (DERRIDA, 1994, p. 48).

Como aqui se pretende ver, o sentido de se pensar a questão da integração pressuposta nos discursos da globalização e que permeia as discussões pós-coloniais, quer venham das macroanálises históricas, das incursões sociológicas, econômicas, políticas, filosóficas, deve incorporar, com lucro, a questão da língua, justaposta ao projeto literário e à questão da diferença. E por quê? Porque vivemos uma realidade na qual a diferença da

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língua nos remete à solidão gigantesca do “mais-que-um”, na busca de uma utópica integração que, muitas vezes, se vive mesmo como delírio. A alteridade como projeto global e, ao mesmo tempo, como destino e marca das singularidades, se insinua nas dimensões ontológicas dos discursos constitutivos do outro, discursos que estruturam subjetividades singulares e se apresentam ainda como aquilo que a imaginação romântica brasileira pensou em termos de identidade/especificidade de nossa nação: ao sul do continente, uma (a nossa) língua singular surge como a diferença entre tantas e multifacetadas nacionalidades: língua que é o pressuposto “um”, a reunir mais de 200 milhões de sujeitos sob a égide da herança portuguesa.

Sabemos o quanto essas considerações são pro-blemáticas e exercem um poder e um fascínio que escamoteiam as mais daninhas ideologias nacionalistas, mas sabemos também que, historicamente, a imaginação romântica, entre nós, foi eficiente e até mesmo necessária para que se criasse um projeto de integração que, nas palavras de Antonio Candido, se define como “conjunto de fatores que tendem a acentuar no indivíduo ou no grupo a participação dos valores comuns da sociedade”, enquanto que a diferença tem o papel de acentuar “as peculiaridades, as diferenças existentes em uns e outros” (CANDIDO, 1985, p. 23). A despeito das dicotomias um tanto redutoras dessas definições aqui trazidas, podemos nos perguntar: dentro de um projeto de integração, o que nos remete a esse encontro com o outro, com a alteridade? Brasileiros que somos e ainda marcados pela imaginação romântica, a compreensão de nossa peculiaridade se apresenta como questão originária.

Não poderemos historiar o percurso dessa questão, pelo espaço de que dispomos, neste momento, mas nunca é obsoleto apontar, em nossa literatura, o deslocamento operado por Machado de Assis, quando polemiza a questão do elemento indiano no Brasil: “É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum”, dispara o bruxo. E arremata:

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(...) perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio Cesar, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês (ASSIS, 1986, p. 804).

A crítica machadiana não resolveu, obviamente, a questão da nacionalidade. Ainda nebulosa, ela permanece, hoje, paradoxalmente, rejeitada como sendo alicerce das piores atrocidades em seu nome cometidas, e, entretanto, apresenta-se, por meio de outros paradoxos, em pleno vigor, nas lutas e movimentos de libertação, emancipação e independência. As guerras fratricidas se nos apresentam sob a bandeira dos fantasmas nacionais e nacionalistas. Se a questão da identidade, mais propriamente da identidade da nação, fala muito aos povos subjugados, inclusive como bandeira de luta, ela se torna problema humanitário em diversos lugares do globo, inclusive nas nações mais avançadas do capitalismo ocidental. As ameaças de racismo e xenofobia, esta aparentemente represada, porém, ainda latente (mas, em muitos casos, patente), rivalizam com a intolerância para com o outro e para com as diferenças. Nesse sentido, a questão da unidade de língua se torna questão política, inscrita nas bases de um pensamento que encontra na literatura brasileira um campo heterológico de reflexões.

A questão do “um” – a marca que nos “une” no cenário da América Latina, e que se revela como diferença – seria homóloga à nossa língua-herança singular, à nossa destinação lusa. Enredada na multiplicidade cultural e linguística de outras heranças, especialmente a ibérica, berço e vínculo de futuras heranças latinas, a língua reflete contaminação e disseminação, diversidade que arregimenta forças em todo o território, fazendo valer a história como ciência do que muda, a requerer mobilidade de pensamento. No mundo globalizado, esse pensamento se alicerça na crítica ao projeto modernizador, que instituiu a técnica como fundamento. A modernidade

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se interroga acerca da utilidade de um povo sem técnica e se pergunta sobre aqueles povos cujas ramificações do progresso não atingiram um estágio modernizador tal que lhes permitissem não só a integração geográfica, mas também existencial. Na base desse preconceito, os processos coloniais visaram entregar e, posteriormente, impor aos incivilizados um modelo que, em seus países de origem, jamais aprofundaria os veios democráticos, ao contrário, também seria parâmetro de exclusão, controle e tirania.

Se a língua se mostra fator de união entre comunidades de diferença, a técnica como diferença entre os que as possuem e os que não a têm espelha um abismo que resulta em práticas ideológicas de dominação a, paradoxalmente, acentuar as diferenças, mas colocando-as, ao mesmo tempo, em um campo dicotômico formado por positividades e negatividades: entre os que possuem a técnica e, portanto, estão integrados no processo globalizante, e os que não a possuem, os quais são, portanto negativamente diferentes. Assim se forma um campo ideológico, cuja aberração está em propor-se guardião da diferença, a qual, entretanto, não reúne e não pressupõe hospitalidade, solidariedade ou advento do outro.

Em que medida um projeto literário pode se inscre-ver nesse universo de questões, conferindo a ele um sentido que ultrapassa as pretensões meramente poético-narrativas para, no entanto, a elas, retornar adiante? Como o pensamento do heterologos aqui irá nos auxiliar na proposição de uma reflexão mais abrangente e que concebe o processo histórico como interrogação crítica peculiar do mundo e dos sujeitos? Façamos de um exemplo nossa proposta de leitura das condições críticas em torno de uma literatura brasileira que lida com os grandes temas da contemporaneidade, a saber, globalização, multiculturalismo, pós-colonialismo, dife-rença: Guimarães Rosa e seu processo criativo. Por enquanto, aceitemos essa constatação: certo consenso,

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no meio intelectual, indica uma lacuna teórica que se deve a uma incipiente produção filosófica, para não falar da inexistência de um pensamento original em língua portuguesa.

É pertinente notar que, na produção literária nacional, após o avanço machadiano, um grande mar-co da discussão crítica da literatura, da história e do pensamento por aqui é a abertura roseana, especialmente com o Grande Sertão: Veredas, não só porque esse romance examina a fundo a questão do indivíduo em sua solidão – solidão de língua, solidão geográfica, existencial etc. – mas também porque traz, no cerne de sua questão, a possibilidade de se pensar o sentido do projeto. Muitas vezes classificada – por estreiteza de pensamento de seus comentadores, ou por falta de instrumental teórico de parcela da intelligentsia – de literatura irracionalista, alienada, regressiva (nos obtusos sentidos dos termos), o projeto roseano sobrevive e vive, hoje, nas amplas aberturas e possibilidades de seus termos, que passam pela língua: “cada língua guarda em si uma verdade interior que não pode ser traduzida” (ROSA, 1983, p. 87); por uma proposta de ação, subjetiva e intransferível: “Minha língua (...) é a arma com a qual defendo a dignidade do homem” (ROSA, 1983, p. 87); por uma subversão filosófica: “a lógica é a prudência convertida em ciência; por isso não serve para nada” (ROSA, 1983, p. 93); ainda, por uma ampliação dos horizontes americanos: “A América Latina tornou-se, no terreno literário e artístico, digamos em alemão, “weltfähig” (apta para o mundo)– (ROSA, 1983, p. 96); “A América Latina talvez não seja uma incógnita principal, o “x”, mas provavelmente será o “y”, uma incógnita secundária muito importante” (ROSA, 1983, p. 97); “A América Latina inicia agora seu futuro. Acredito que será um futuro muito interessante, e espero que seja um futuro humano” (ROSA, 1983, p. 97); e, finalmente, por um projeto utópico: “Nunca me contento com alguma coisa. Como já lhe revelei, estou buscando o impossível, o infinito” (ROSA, 1983, p. 81). Palavras que datam de 1965.

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De lá para cá, o que houve com a América Latina? Fez a opção histórica pela incógnita secundária do “y”, na possibilidade de um futuro humano (e não “humanista”, acentuemos)? Estimulou a busca do inatingível como modo utópico, visando a uma ação libertadora? Subverteu as categorias hegemônicas? Questionou suas deficiências – reais, imaginárias ou a ela atribuídas – em relação à técnica e devolveu a esses questionamentos uma resposta singular? Propôs refletir o papel de sua língua e de seu destino no cenário globalizado? E fez de seus sujeitos empreendedores desse projeto? Onde o projeto? Por que o projeto? Para quê? No encaminhamento dessas questões, reside uma espécie de destino messiânico, como já apontamos, da vinda do outro: o outro como o “mesmo diferido”, a diferença na diferença, o “um”, o “mais-que-um” e o “menos-que-um” da unidade: marca de marcas cujo rastro se denuncia no projeto utópico dos povos – o qual não se trata aqui de resgatar, a não ser como reflexão renovada para o que se dirá mais à frente. E como essas ideias, encaminhadas ao texto ficcional roseano, podem nos fornecer uma chave para a reflexão acerca da literatura, hoje?

O sujeito da narrativa de Grande Sertão: Veredas, Riobaldo, é aquele que interroga e vibra no afã de questionar um suposto interlocutor, o narratário letrado, oposto a Riobaldo, apenas suficientemente letrado para alfabetizar seus companheiros, mas insuficientemente versado na arte de escrever. Riobaldo, o quase-fora da letra, mas dono da palavra, é quem introduz as questões originárias no relato: quem sou? Quem somos? Para onde vamos? O que é o bem e o mal? Deus existe? O diabo existe? Levando ao paroxismo essas indagações, Riobaldo aponta para a transgressão, e sua fabulação circula pelo sertão, que serve de arcabouço conceitual para as metáforas de fora-dentro, do que carece de fechos, do que se apresenta como acontecimento e paisagem: “O sertão está em toda a parte” (ROSA, 1986, p. 08), diz Riobaldo. Diz Rosa: “O sertão é a alma de seus homens” (ROSA,

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1983, p. 69). Sertão é símbolo de um universo, pátria espiritual, mundo original e de contrastes, cuja figura do sertanejo, longe de representar um tipo, projeta-se na definição maior do “sertanejo” como conceito e em sua universalidade na recusa dos paradigmas românticos: Dostoievski é um sertanejo; Soren Kierkegaard e Miguel de Unamuno, idem; também Friedrich Nietzsche; entre nós, Machado de Assis, e, na América Latina, Gabriel García Marquez, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, dentre tantos outros. São todos “homens do sertão”, o ponto de partida, mais do que qualquer outra coisa para se pensar um destino humano. Pois o modo de ser-sertanejo, para Rosa, reside na fabulação, questão essencial, pois somos intrinsecamente seres narrativos. Caso pudéssemos generalizar ao máximo certos conceitos, a fabulação seria um desses traços de união a equiparar os homens, dando sentido àquilo que chamamos de a humanidade do homem. A fabulação se dá no diálogo que constrói universos de realidade ao lado de universos ficcionais, além se abrir para o encontro que pressupõe inúmeros outros, que podem ser os outros da proximidade ou os outros desconhecidos, ou seja, os outros da diferença.

Determinação da linguagem no projeto que a metafísica encobre no dado da língua, pensar essa língua como intrínseca à humanidade do homem equivale a assumir um destino e uma determinação: estamos condenados a ela, como “língua-espectro”, homóloga ao fenômeno, conceito cuja definição é aparição do inaparente. A língua, no caso, a língua portuguesa na variante brasileira, permite que falemos de uma solidão essencial: “Apenas na solidão pode se descobrir que o diabo não existe. E isto significa o infinito da felicidade. Esta é minha mística” (ROSA, 1983, p. 73).

A mística roseana amplia e distende, de passagem, no projeto, o problema da “brasilidade” – e que podemos, guardadas as devidas proporções, estender ainda à questão da latinidade – cuja definição impossível, no entanto, estimula a reflexão. Para Rosa (1983, p. 91), se

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existe a tal “brasilidade”, ela é a língua de algo indizível, não captado pela razão, talvez um “sentir-pensar”, já que não se pode explicá-la, mas concretizá-la em exemplos: “Para compreender a “brasilidade” é importante antes de tudo aprender a reconhecer que a sabedoria é algo distinto da lógica” (ROSA, 1983, p. 93). Lógica que não diz muito acerca das amplas possibilidades de um projeto integrador, pois o cartesianismo instituído impregnou-se das dicotomias excludentes (aí contidas as ideias do maravilhoso, do fantástico, do irracional, que, supostamente formariam uma espécie de novo cânone literário específico para o caso latino-americano).

As palavras de Guimarães Rosa, na contracorrente dessas dicotomias, apontam para o questionamento do projeto, para o processo em que este é lançado, sob o lance e durante o lance. É um movimento do pensamento que se dissemina pela economia, pela política, e que se espraia na cotidianidade dos seres, ou mesmo, na manifestação diária das singularidades de povos cujo destino histórico se constrói nessas afirmações. Credo e poética. Retiramos dessa proposição uma práxis poética que compreende o sentido da unidade e do projeto integrador como reconhecimento das peculiaridades – de língua e geográfico-existenciais – de um país marcado por uma solidão fundamental ao sul de um continente marcado não somente pelo “um” da unidade integradora, mas também pelo “mais-que-um” e pelo “menos-que-um”.

No “mais-que-um” disseminam-se saberes, di-versidades, diferenças. Na reviravolta da questão, compreendida através do “menos-que-um” da questão da unidade, reside a utopia da singularidade como herança, mas essa herança denuncia um vínculo e esse vínculo é o do colonizador. Voltaremos a essa questão, mais detidamente. No “menos-que-um”, reside grande parte da proposta de Guimarães Rosa: pensar o indizível, seu caráter, sua definição e, acima de tudo, problematizar toda proposta de definição, bem como a transitoriedade

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da própria noção de proposta, com as cartas na mesa, postas: transitoriedade que se mostra vigorosa e que se nutre de uma crença no futuro.

Talvez um dia, quando o projeto utópico (e aí, po-deremos compreender a especificidade daquilo que se projeta) for, de fato, uma poética da unidade, possamos pensar outra poética, a da “distensão”, alocada na ideia de um pensamento sempre em processo, no qual viveremos a generosa indeterminação do futuro, experimentaremos o devir como possibilidade de reunião, lugar onde o pensamento dos intelectuais, escritores, filósofos, poetas e historiadores aqui evocados demarca territórios de utopias adormecidas. Um dia, talvez, uma multidão irá acordá-las e é essa possibilidade que faz com que, parafraseando Rosa, cada homem tenha seu lugar no mundo e saiba de sua possibilidade de cumprir seu papel, o qual jamais será maior do que sua capacidade de fazê-lo: capacidade de preencher os espaços de seu lugar, de servir à verdade e aos homens, como diz Rosa: “Conheço meu lugar e minha tarefa. Muitos homens não conhecem ou chegam a fazê-lo quando é demasiado tarde. Por isso tudo é muito simples para mim e espero fazer justiça a esse lugar e a essa tarefa” (ROSA, 1983, p. 73-74).

Esse é o ponto de inflexão por meio do qual queremos nos guiar nessa reflexão. É preciso, para os objetivos aqui traçados, mapear esse espaço de língua como singularidade, como reunião, e ainda como marca de diferença que denuncia rastros, desencobre pistas de um passado colonial quase sempre marcado pelo brutal processo de imposição de uma cultura, de uma economia e de um projeto de força sobre povos, mas que, como herança, nos forma e nos confere força.

A utopia roseana não pode se dissociar da crítica à herança do projeto colonizador, sabendo que o que somos, hoje, como ideia de povo, resulta desses embates, em que, assimilados os erros e acertos, os desmandos, as influências e as rejeições revelam, obviamente, atração e repulsa. No caso brasileiro, desde o Romantismo,

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essa repulsa encontrou, em Portugal, o óbvio alvo e o foco da rejeição, e, se por um lado, estruturou as bases de uma ideia de nacionalidade marcante e obviamente ambígua, por outro, se desviou da herança na rejeição do colonizador, muitas vezes sem perceber que essa rejeição era justamente uma espécie de retorno a ele. Daí a singularidade de nossa literatura em relação à matriz: ela espelha as próprias ambiguidades do colonizador, ele próprio dependente, como veremos no tópico seguinte.

Na viragem da literatura pós-machadiana, cujo projeto implicava uma redefinição da nação e de nossa especificidade, o projeto de Guimarães Rosa distendeu a questão do nacional, do projeto utópico e da língua como modo de se pensar o humano e não somente de pensar a pátria e a nação, ambas as noções frequentemente atreladas às piores atrocidades da caminhada humana. Por meio do projeto roseano, chegamos a uma ideia de literatura brasileira contemporânea que não pode prescindir da ideia da colônia, da colonização, de nossos processos formadores, que ergueram catedrais discursivas em torno da unidade e da diferença e que veem na língua não apenas herança, mas fenômeno de pertinência e recusa, atração e repulsa. Nessa direção, a sombra fantasmática do colonizador se revela nos rastros, no “um” da unidade de língua que só pode valer pelo “mais-que-um” da multidão e pelo “menos-que-um” da singularidade, do indizível, do menor. No caso da literatura brasileira contemporânea, essa relação com o passado colonial, em muitos autores, se dá pela denegação. Afirma-se o rastro ao negá-lo, por meio de uma atração pelo mundo que pouco resgata Portugal.

Em Bernardo Carvalho, autor a que recorreremos, essa atração é mesmo um projeto de negação do programa ideológico que se abriga sob o manto da identidade. Na obra de Carvalho, se há nação, esta é o mundo, e o Brasil, no exemplo que traremos, em seu romance O filho da mãe, quase se apaga, como a cumprir a ideia roseana de um destino humano, mas aqui, entretanto, aviltado

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pelas contradições, diferenças anuladas e negativamente configuradas por histórias de atrocidades.

Antes, porém, mais uma breve reflexão crítica se faz necessária ao nosso projeto: ao lado da reflexão sobre a língua e a linguagem, a compreensão de uma suposta literatura brasileira pós-colonial – posto que advogar uma literatura pós-colonial brasileira só pode se dar na contramão, a despeito e a favor do que se entende como literatura pós-colonial em África e nas demais colônias recentemente tornadas independentes – requer pensar a especificidade do colonizador e de seu processo histórico. Para tanto, nos socorreremos da reflexão de Boaventura de Sousa Santos (2004).

O outro-outro: entre Prósperos e Calibans

Como Rosa, mas em perspectiva totalmente diversa, Santos propõe-se a pensar os processos identitários no espaço-tempo da língua portuguesa. A singularidade do colonialismo português é marcada por uma espécie de colonialismo subalterno, ao mesmo tempo colonizador e colonizado. Santos propõe um conjunto de axiomas complexos, cuja tese é a de que, nos tempos do neoliberalismo e da globalização, devemos pensar o pós-colonialismo lusófono como contra-hegemônico. Passemos a resumir suas propostas iniciais (SANTOS, 2004, p. 11-23).

Santos propõe quatro hipóteses de trabalho. Em primeiro lugar, Portugal apresenta-se, desde o século XVII, como um país semiperiférico no sistema mundial capitalista. Na segunda hipótese, mais complexa, o sistema de base colonial português reproduziu essa condição semiperiférica, a qual se verifica hoje, no panorama da inserção portuguesa na União Europeia, daí decorrendo três sub-hipóteses: Portugal perpetrou um colonialismo subalterno, visto que a própria matriz era, ela própria, colonizada; a colonização portuguesa

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impregnou as colônias, mas a sociedade portuguesa também foi impregnada por elas; o processo de integração na União Europeia impacta dramaticamente a sociedade portuguesa. No caso da terceira hipótese, Santos mostra que é preciso compreender o sistema mundial atual para estabelecer a posição de Portugal nas atuais condições de globalização. Por último, a hipótese de que Portugal é uma cultura de fronteira, que assume essa forma de “zona fronteiriça”, de forte heterogeneidade interna.

Interessa-nos especificamente, nesse trabalho, a relação de Portugal com o outro colonizado. Ao colonizado, apresenta-se um duplo problema: ele é colonizado em relação a Portugal e em relação ao colonizador hege-mônico e que se apresenta como colonizador de Portugal. Se o colonialismo hegemônico se apresenta como “colonialismo de ponta”, de “excelência”, o colonialismo português se revela “retroativo”, dessincrônico. Como resultado dessas reflexões, o pós-colonialismo português deve ser compreendido sob duas acepções: uma, política, diz respeito à independência das colônias; e outra, marcada por um “conjunto de práticas e discursos que desconstroem a narrativa colonial escrita pelo colonizador e procuram substituí-la por narrativas escritas do ponto de vista do colonizado” (SANTOS, 2004, p. 16). Uma singularidade decorre da segunda acepção: a reivindicação pós-colonial de que a experiência da ambivalência e da hibridez entre colonizador e colonizado é mais complexa no caso português, visto que o colonizador experimentou esse hibridismo ao longo do processo colonizador, durante longos períodos. Outra questão é o tipo diferente de racismo praticado pela metrópole portuguesa, em que se exige “uma articulação densa com a questão da discriminação sexual e o feminismo” (SANTOS, 2004, p. 18). Finalmente, a falta de uma distinção clara entre colonizador e colonizado se nutre da peculiaridade de essa distinção estar inscrita na própria identidade do colonizador.

Esses elementos fazem Santos pensar em uma

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disjunção da diferença, em que se apresentam alguns duplos: “a identidade do colonizador português é, assim, duplamente dupla, constituída pela conjunção de dois outros: o outro que é o colonizado e o outro que é o próprio colonizador enquanto colonizado” (SANTOS, 2004, p. 19). Daí a alteridade definida por meio de uma relação coextensiva, alocada nos dois lados da margem: o outro-outro (colonizado) em sua relação com o “outro próprio” (o colonizador colonizado). No caso brasileiro, a identidade de colonizado foi construída no processo formador dessa configuração ambígua, em sua relação com o colonizador português e com o colonizador de ponta, à época da independência, o império britânico.

Conclui Santos por um “estigma de indecidibilidade”, marcado pela imagem de um Próspero incompetente, originariamente híbrido. Seria o resultado dessa colo-nização vacilante a emergência de uma subcolonização ou de uma hipercolonização? Seria esse tipo de colonização capacitante ou incapacitante para o colonizado? Teria esse processo aberto os espaços para o surgimento de Prósperos substitutos no seio dos Calibans? (SANTOS, 2004, p. 22).

Problematizar o processo indecidível que marca o projeto colonizador português implica não se deixar apanhar pela armadilha de ora procurar compreendê-lo no jogo das semelhanças, ora no jogo das diferenças. E essa conclusão nos importa diretamente, pois, junto a um processo já encaminhado, de reflexão em torno da língua, da linguagem, de nossa solidão ao sul, conforme o mote roseano, queremos compreender a especificidade de uma literatura brasileira construída, a partir do Romantismo de 1836, por meio dessas ambiguidades em relação à matriz colonizadora, o que se refletiu, a nosso ver, no Modernismo Brasileiro e, de certa forma, se reflete na literatura de hoje. Assim sendo, o Romantismo brasileiro nega o outro português, disputando com ele uma identidade interna que se constrói por meio de diálogos com o colonizador hegemônico.

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Em Alencar, essa busca se dará na identificação (negada por ele) com a literatura americana, de James Fenimore Cooper, e com fontes principalmente francesas e britânicas. Em Como e por que sou romancista, Alencar dirá que “se Chateaubriand e Cooper não houvessem existido, o romance americano havia de aparecer no Brasil a seu tempo” (ALENCAR, 1990, p. 61). Esse movimento de atração – a leitura dos clássicos franceses, contemporâneos, à época de Alencar, bem como a leitura dos britânicos, de Byron, em especial, e de Cooper, nos Estados Unidos, permeiam o testamento de Alencar como leitor – e dessa sua diferenciação e singularidade no panorama tropical evidencia-se um autor muito mais propenso à abertura discursiva do que supunha sua fortuna crítica.2 O caminho aberto por Alencar, cuja resposta mais importante foi dada pela crítica machadiana, e, mais tarde, disseminado no modernismo brasileiro, ganha contornos de luta cultural, na crítica às influências portuguesas. É o Próspero “vacilante” enfrentando seus dilemas.

Um exemplo dessa relação conflituosa pode ser observado no estudo de Arnaldo Saraiva (2004) acerca das relações entre o modernismo português e o brasileiro3. Saraiva analisa uma passagem do Bosquejo da história da poesia e língua portuguesa, obra publicada por Almeida Garrett em 1826, na qual o português elogia o poeta Cláudio Manuel da Costa, comparativamente à análise de Afrânio Coutinho, quem, para Saraiva, “empobreceu e desentendeu, como é frequente nele, esta bela passagem” (SARAIVA, 2004, p. 35). Como Saraiva não desdobra e esmiúça para o leitor os detalhes de sua leitura divergente, nem em que bases se deram tal “empobrecimento” e “desentendimento”, precisamos situar o debate. Em primeiro lugar, reproduziremos a passagem de Garrett (apud SARAIVA, 2004, p. 35):

E agora começa a literatura portuguesa a avultar e enriquecer-se com as produções dos engenhos brasileiros. Certo é que as majestosas e novas cenas da Natureza

2 O esforço em problematizar a questão alencariana resultou na obra A solidão tropical, em que Lucia Helena retoma a obra de Alencar e a apresenta sob o prisma de um “caráter mutante dessa (e do país) identidade” (HELENA, 2006, p. 121). A solidão tropical é leitura obrigatória para uma reavaliação do romantismo na prosa de seu maior escritor. Para um aprofundamento na questão das relações tensas entre a cor local e o projeto universal, que esse trabalho não comporta, ver a excelente discussão encaminhada por Lucia Helena sobre a visão de Machado de Assis, em “Ins-tinto de nacionalidade”, no diálogo com o projeto de José de Alencar (em HELENA, 2006, p. 171-185).

3 Recomendamos a leitura de um pequeno capítulo da obra de Arnaldo Saraiva (2004, p. 35-40), em que se discute a tensa relação entre a crítica portuguesa e a produção lite-rária brasileira. Nesse sentido, no campo da crítica literária, especialmente à época dos romantismos brasileiro e português, os problemas de hibridação e o jogo de espelhos entre uma literatura-matriz em relação à literatura da (agora ex) colônia refletem algumas ambivalências apontadas por Boaventura de Sousa Santos no campo sociopolítico. Sa-raiva (2004, p. 36) dirá que, se por um lado, “não faltaram demolidores portugueses de alguns livros e autores brasi-leiros”, também é certo que houve muitos “demolidores portugueses de livros e autores portugueses”.

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naquela vasta região deviam ter dado a seus poetas mais originalidade, mais diferentes imagens, expressões e estilo, do que neles aparece: a educação europeia apagou-lhes o espírito nacional; parece que receiam de se mostrar americanos; e daí lhes vem uma afetação e impropriedade que dá quebra em suas melhores qualidades.

Essa mesma passagem é citada por Afrânio Coutinho (1968, p. 20). Na leitura de Coutinho (1968, p. 21), a ideia de que a produção dos brasileiros “não fazia mais do que avultar e enriquecer a literatura portuguesa” seria seguida à risca, dado o prestigio de Garrett pelos autores de livros didáticos. Para Saraiva, no entanto, a ênfase de Coutinho no sintagma “literatura portuguesa”, sem lembrar de que este poderia ser desdobrado em literatura de língua portuguesa se agrava pela escamoteação do sintagma “espírito nacional”. Para Coutinho, a essência do pensamento de Garrett residia na compreensão da literatura brasileira como aspecto da literatura portuguesa e não nos aspectos de diferença, que, a despeito da recente independência, antagonizavam e aproximavam, em relação ambígua, a metrópole e a ex-colônia. Propomos perceber essa discussão na hipótese não excludente das relações de atração e repulsa. No caso, o “outro-outro” da colonização, em relação ao “outro próprio”, o colonizador, visto por Santos como, ele próprio, colonizado, reduplica as relações ambíguas que, no terreno político-econômico acabam por assemelhar-se no campo das lutas culturais. Saraiva acentua que também os portugueses eram demolidos em suas próprias terras, pois não estavam imunes à forte crítica interna que a literatura portuguesa romântica sofria. Podemos nos perguntar se esses fenômenos não se repetem nas diversas literaturas nacionais, inclusive nas chamadas áreas dos “colonialismos de ponta”. No caso brasileiro, entretanto, essa questão se matiza em cores diferentes.

Não podemos esquecer certas interpretações que compreendem a literatura brasileira como árvore que

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deriva do galho português, mas esse galho também seria dependente da herança de literaturas nacionais mais fortes. “Galho do galho”, a árvore brasileira nutriu-se, desde o Romantismo, de um “estado ideal de começo absoluto”, pensado por uma “teoria nacionalista” que acentuava a originalidade e a diferença a despeito do parentesco histórico com a matriz portuguesa, conforme apontara Antonio Candido (2004, p. 11). Candido (1981, p. 28) diria ainda que:

O problema da autonomia, a definição do momento e motivos que a distinguem da portuguesa, é algo superado, que não interessou especialmente aqui. Justificava-se no século passado, quando se tratou de reforçar por todos os modos o perfil da jovem pátria e, portanto, nós agíamos, em relação a Portugal, como esses adolescentes mal seguros, que negam a dívida aos pais e chegam a mudar de sobrenome.

Esse vínculo, que originou a polêmica Saraiva-Coutinho, é retomado pelo próprio Candido, em sua análise de um trecho do Caramuru, de Santa Rita Durão (CANDIDO, 2000, p. 7-19). Na passagem em que Paraguaçu adormecida é observada pelo “bravo Jararaca”, Candido observa a junção do locus amenus da tradição literária europeia com a perspectiva de um temário e vocabulário novos, além de uma paisagem que insere, no imaginário literário europeu, o dado da cor local brasileira. Para Antonio Candido (2000, p. 18), “os poetas mineiros do século XVIII viveram intensamente problemas desse tipo, inclusive sob o aspecto de confronto de duas ordens culturais opostas: a europeia e a americana (ou: a civilizada e a primitiva)”. Em nossa leitura, a visão de Candido apazigua aquilo que, de forma ambivalente, se manifesta na crítica de Garrett. E serve de mote para o que pretendemos desenvolver acerca das relações desenvolvidas no campo literário brasileiro, no caso, no âmbito da literatura brasileira contemporânea, em suas

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reflexões ficcionais acerca de seu papel no mundo, como ex-colônia e como nação marcada por uma literatura, novamente recorrendo a Candido (1981), empenhada, com todos os problemas que essa noção carrega.

Nossa independência se confunde com o influxo romântico e, entre nós, a consciência da função his-tórica de nossas letras, conforme bem definiu Candido, estabeleceu os movimentos de diferenciação e par-ticularização que, se por um lado, acirraram a rejeição do Próspero português, a ele retornaram por meio da denegação. Se o pós-colonialismo como período histórico se define, como vimos com Santos, pela independência das colônias, seria impróprio falarmos simplesmente de uma literatura pós-colonial contemporânea desdenhando o dado de que tais discussões acerca de nossas relações com a metrópole colonizadora – conforme visto em Alencar, Coutinho, Candido, Saraiva, Garrett etc. – se deram nessa ambivalência entre atração e repulsa, com a balança pendendo para essa última.

Como visto, a questão da língua, apontada por nós, no heterologos roseano, alia-se ao problema da herança, do vínculo colonial, mesmo quando aparentemente o rejeita ou esquece. Portanto, pensar, hoje, a ficção contemporânea de um autor como Bernardo Carvalho, desconhecendo que, nele, as noções de identidade e de nacionalidade são questões cuja negatividade se dá justamente pelos efeitos desastrosos dessas políticas e ideologias na relação com o destino humano do homem, de que falava Rosa, percebemos vinculações, disjunções, as quais chamaremos aqui de “estratégias de reenvios” (OLIVEIRA, 2010, p. 224), ou seja: “Esse movimento de temporalização na diferença, de se tornar espaço no tempo, característico da escritura, traduz-se no mundo de significações que o texto atualizará sempre, sem jamais ser surpreendido como uma presença”.

A isto, antepomos a reflexão de Santos (2004, p. 24):

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A identidade dominante reproduz-se assim por dois processos distintos: pela negação total do outro e pela disputa com a identidade subalterna do outro. Quase sempre o primeiro conduz ao segundo. (...) Do ponto de vista do diferente superior, porém, a identidade dominante só se transforma em fato político na medida em que entra em disputa com identidades subalternas. É esse o fato político que hoje designamos por “multiculturalismo”.

O problema da língua e da linguagem, conforme entendeu Rosa, encontra esse “outro-outro” de Santos (desde o século XIX politicamente liberto, como entende Candido) que se configura na negação da dívida colonial, mas os processos pelos quais a ficção contemporânea se apresenta no mundo globalizado ainda requererão uma meditação mais abrangente em torno desse temário aqui estabelecido.

Como hipótese de trabalho, e sempre lembrando de que estaremos a tratar da prosa de Bernardo Carvalho, especificamente em O filho da mãe, diremos que a narrativa brasileira contemporânea estabelece pólos discursivos jamais excludentes e que se revestem ora por uma atração pelo dado local, ora por uma atração pelo mundo. No conjunto das escritas que pretendemos trazer à discussão, entendemos a obra de Carvalho como inserida em um processo contínuo de apagamento das ideologias identitárias, narrativa cada vez mais voltada para a atração pelo mundo. Se negar a herança é impossível, já que a herança volta sob forma de denegação, diremos que, nem negação do outro colonizador, nem disputa com a identidade subalterna do outro, a ficção de Carvalho propõe a atração pelo mundo, em que o “outro próprio” ocupa uma posição dentre outras, não mais atrelada a um centro ou a uma origem, mas conforme um movimento que reconhece os efeitos da colonização, mas deles se distancia criticamente, como a olhar de forma enviesada para as noções aparentemente libertárias e que escondem símbolos e representações promovidas de forma a esvaziar

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o conteúdo crítico da denúncia de uma globalização muitas vezes devastadora, incipiente e redutora.

Um romance e suas questões

São Petersburgo, abril de 2003. Estamos às vésperas do tricentenário da cidade, onde duas mulheres russas se encontram em um café da Rua Rubinshtein. Pouco antes do encontro, após ouvir a sentença de morte iminente de seu médico, Iúlia Stepánova se dirige ao Comitê das Mães dos Soldados de São Petersburgo (organização que auxilia mães de soldados), decidida a salvar a vida do filho de alguém antes de morrer. Lá, encontra Marina Bondáreva, amiga de juventude, ela própria mãe de uma vítima de guerra e do regime russo. O encontro das duas no café é o ponto de partida para o romance O filho da mãe, de Bernardo Carvalho (2009). A partir desse encontro, a trama vai traçando paralelos entre dois jovens, Andrei e Ruslan: o primeiro, russo, mas cujo pai é brasileiro; o segundo, checheno, que foge da guerra e de seu país e ruma a São Petersburgo em busca da mãe russa que o abandonara ainda criança com o pai, na Tchetchênia. Utilizando o recurso da prolepse, o desfecho trágico da história do rapaz russo já é antecipado pelo narrador heterodiegético, no início do romance. A narrativa desse desfecho, no entrecruzamento de várias histórias marcadas pelo pano de fundo da guerra da Tchetchênia, forma o arcabouço das múltiplas tramas que denotam, como sempre, no romance de Carvalho, a opção pela multiplicidade de vozes. A isso, confirma-se a vocação diaspórica da prosa de Carvalho, disseminada geograficamente pela Tchetchênia de 20034 (período da chamada Segunda Guerra da Tchetchênia), pela São Petersburgo opressiva, ou pelas paisagens das montanhas de Grózni, e ainda pelo mar do Japão, e até mesmo alocada no Oiapoque, no Brasil.

A rigor, o romance não possui qualquer vínculo com

4 A Primeira Guerra da Tchetchênia ocorreu entre 1994 e 1996 e resultou na independência “de fato” e não “de jure” do território controlado pela Rússia e palco de inúmeros conflitos étnicos e políticos. O governo de Boris Yeltsin declarou o cessar-fogo em 1996, seguido da assinatura de um tratado de paz, no ano seguinte. Às baixas de dezenas de milhares de mortos, somam-se mais de 500 mil refugiados. A Segun-da Guerra da Tchetchênia iniciou-se em 1999, em res-posta a uma série de atentados de militantes chechenos a prédios Russos. Em resposta, o presidente Putin ordenara o bombardeamento e destruição de Grózni. Em represália, os chechenos promovem outra onda de atentados. O ápice da comoção russa por conta dos efeitos do conflito se deu em setembro de 2004, no que ficou conhecido como o Mas-sacre de Beslam, localidade em que um grupo de guerri-lheiros chechenos-ingussis ocupam uma escola municipal daquela cidade. O desfecho do episódio resultou na morte de 330 civis, sendo a maioria desses, crianças.

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elementos tidos como brasileiros, a não ser as referências ao pai da personagem Andrei, ou a possibilidade de fuga do jovem para nossas terras, tentando escapar de seu destino de guerra na Rússia. O encontro de Ruslan e Andrei também é sugestivo, pois se trata do início de uma história de amor entre os dois rapazes, necessária ao projeto de que o romance é fruto.5 Um leitor desavisado sobre a autoria do romance poderá mesmo pensar que a obra pertence à literatura russa. Essa impressão não é descabida e faz parte do movimento ficcional que alimenta a obra de Carvalho. Diremos aqui, como proposta de reflexão, que ela estabelece suas bases por meio de uma “atração pelo mundo”, configurada por uma “ficção migrante”, isto é, não uma ficção narrada por migrantes, nem a eles especialmente voltada, na representação do migrante, mas uma ficção itinerante, que não é demarcada, nem geograficamente, nem temporalmente e, ousaríamos dizer, nem mesmo existencialmente. O mundo de Carvalho é o da mobilidade, e o lugar de sua prosa é o que chamaremos de “um lugar não mais”, adjunto a “um tempo não mais”, que é o tempo configurado pela reflexão e pela rejeição, recusa de um mundo supostamente integrador, mas que categoriza, separa, exclui. Mas o que se rejeita aqui? Em nossa leitura, essa rejeição recai na questão da identidade e na problemática da nação, em um tempo em que se edifica uma ideologia da diferença no mínimo contraditória. Nesse aspecto, a prosa de Carvalho se revela ficção política.

Especialmente em O filho da mãe, a matéria ficcional serve à nossa reflexão no sentido de conferir um caráter denunciador da herança e da promessa globalizantes. O discurso que impulsiona a reflexão é também um discurso a ser produzido pela leitura, nem projeto romântico de Brasil, nem viés documental realista. Conforme apontam Hardt e Negri (2006), nos tempos do Império, as fronteiras se dissolvem, pois o Império, supostamente, não pressupõe limites, nem espaciais nem temporais, já que a pós-modernidade idealmente se situa além ou no

5 O romance integra o projeto “Amores Expressos”, em que um escritor brasileiro é envia-do a diferentes pontos do globo para ali situar uma história de amor. No caso de Bernardo Carvalho, coube-lhe a cidade de São Petersburgo.

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fim da história. Nos romances de Carvalho, esses limites passam a ser cada vez mais distendidos. Em Mongólia, por exemplo, veremos o mergulho no coração das trevas desse país, em que a busca por um fotógrafo desaparecido leva um diplomata brasileiro a se aventurar na busca do outro – alteridade – e de si – subjetividade – em um mundo de espaços paradoxais: é cada vez menor o mundo, entretanto, mais intensamente aprofundam-se diferenças, recrudescem ideias de nacionalidade, de conceitos tribais, de soberania, estado, família etc. É nesse espaço difuso da Mongólia, entre povos de línguas desconhecidas – mesmo entre eles, a comunicação pode ser precária – que novamente a ficção migrante de Carvalho se desloca.

Em O sol se põe em São Paulo, romance imediatamente posterior a Mongólia, a narrativa trata, novamente, de uma busca, desta vez, em terras japonesas. Entendemos O sol se põe em São Paulo como um experimento que dá continuidade aos processos criativos do autor, cada vez menos afeito às homologias entre nacionalismo e ficção; entre identidade e narração, temas-chave do Romantismo brasileiro e contra os quais sua prosa propõe uma relação com o outro, não mais como o “outro brasileiro”, o “outro-outro”, o outro da nação, mas aquele desconhecido cuja imagem é construída, daí originando separações e estabelecendo preconceitos.

A ideia de identidade e de literatura nacional é finalmente solapada em O filho da mãe. Como realçado anteriormente, quase todas as referências ao Brasil são eliminadas e a narrativa se torna radicalmente migrante, no sentido de que sua unidade é configurada pelo olhar do narrador – sugestivamente e dominantemente heterodiegético. O tema também provoca aquilo que Hardt e Negri criticam e denunciam na era do Império, globalizante e pós-moderno: a discussão das diferenças. Para a ficção migrante, o olhar itinerante do narrador pode, com mais propriedade, estabelecer um conjunto de questões, um mapa em que as homologias são de difícil localização. Para o mundo imperial criticado por Hardt

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e Negri, as formas de racismo, anteriormente baseadas, na modernidade, em critérios biológicos, e embora não desaparecidas, são gradualmente superpostas por um novo racismo, este, agora, já formado amplamente por elementos de cunho cultural. As diferenças se dão justamente pelas semelhanças entre a teoria antirracial moderna e as teorias raciais imperiais. Isto é,

La teoría racista imperial coincide en afirmar que las razas no constituen unidades biológicas aisladas y que la naturaleza no puede dividirse em razas diferentes. También acepta que la conducta de los individuos y sus capacidades o aptitudes no dependen de su sangre ni de sus genes, sino que se deben al hecho de pertenecer a culturas históricamente determinadas de manera diferente. De modo que las diferencias no son fijas ni inmutables sino que son efectos contingentes de la historia social. La teoría racista imperial y la teoría antirracista moderna, en realidad, dicen cosas muy parecidas y en esta perspectiva es difícil hacer uma clara división entre ambas (HARDT; NEGRI, 2006, p. 174). Para os autores, as diferenças permitidas, sendo

diferenças que não provocam nenhum distúrbio no Império, são assimiladas e logo mescladas, indiferenciadas. Deste modo, criticam o Império que mascara lutas individuais sob um princípio enganoso de democracia e de universalidade. É o que chamam de “triplo imperativo do Império”: há uma primeira etapa, inclusiva, em que o Império mostra sua face liberal; uma segunda etapa, chamada de “diferencial”, na qual o Império não cria diferenças, mas usa as diferenças existentes a seu favor; e uma terceira e última fase, chamada de “administradora”, em que a administração e hierarquização das diferenças estabelecem uma “economia geral de domínio” (HARDT; NEGRI, 2006, p. 179-180). Sobre essa tríplice divisão, gostaríamos de estendê-la à nossa reflexão acerca do romance O filho da mãe, de Bernardo Carvalho.

A literatura possui – não como princípio básico, ou

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função, sejamos claros, mas como um elemento originário, uma das qualidades de seu modo de ser – a capacidade de colocar em cena, pelo discurso, um determinado saber acerca do mundo. Não diz que sabe algo do mundo, mas sabe de algo; não diz que tem função, missão ou objetivo, nem que se propõe a tal e qual coisa, mas seu discurso constituinte acaba por fazer com que suas relações com o mundo se cerquem de um viés problematizante, o real ali se imiscuindo sempre como um processo em que se percebe uma preparação do imaginário. Com isso, seus processos ambíguos acabam por nutrir forças questionadoras que demandam da teoria uma resposta a esses reclames. Em recente artigo, dizíamos que a prosa de O filho da mãe se encaminhava para uma direção que ultrapassava a questão local da guerra – a Segunda Guerra da Tchetchênia – para ser um testemunho maior das condições de possibilidade de existência do sujeito. Dizíamos naquele momento que

Ao eleger como protagonistas dois jovens homossexuais sob o chicote da barbárie, Carvalho ficcionaliza os meandros dos regimes autoritários sem desconhecer que neles subjaz o preconceito, irmão da intolerância. Por meio de um jogo que somente a literatura tem a capacidade e possibilidade de estabelecer, a questão da guerra é homóloga à própria condição humana frente às diferenças massacradas. Ofm deixa de ser apenas uma aventura de guerra para ser uma composição humana, na qual a barbárie representada pela guerra é, alegórica ou metaforicamente, estendida à própria condição de exercício da subjetividade (OLIVEIRA, 2011b, p. 110).

Hardt e Negri (2005, p. 340) afirmam que as novas possibilidades para a democracia se confrontam com a questão da guerra. Para os pensadores, nosso mundo contemporâneo é caracterizado por presenças de guerras civis permanentes e generalizadas, em que ameaças de violência efetivamente colocam em xeque e risco a democracia:

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The modern relationship between politics and war has been inverted. War is no longer an instrument at the disposal of political powers to be used in limited instances, but rather war itself tends to define the foundation of the political system. War tends to become a form of rule. (...) Violence tends no longer to be legitimated on the basis of legal structures or even moral principles. Rather the legitimation of violence tends only to come after the fact, based on the effect of the violence, its capacities to create and maintain order.

Se vimos, com Hardt e Negri, que a globalização do Império pressupõe, na primeira fase, chamada de inclusiva, incorporação de diferenças que não cria, mas as absorve, percebemos, por outras forças – aqui, a força da literatura – que essa “administração” e hierarquização das diferenças produzem híbridos monstruosos, os quais o discurso literário representa de forma crítica, amplificando suas contradições: no caso de O filho da mãe, seria este romance uma história de guerra, um relato ficcional da intolerância pós-imperialista, em uma Rússia de herança totalitária, ex-membro da comunidade soviética, ou seria recorte ficcional cuja ênfase recai em uma história de amor gay, ou, enfim, seria uma reflexão ficcional sobre as mães, vítimas indiretas e, por muitas vezes, silenciosas das guerras?

Como história de guerra, interessam-nos as relações entre literatura, representações da guerra e história; como relato ficcional da intolerância, pensamos em o quanto a ideia de incorporação das diferenças em uma massa uniforme pretendida pelo Império é desmentida veementemente pela literatura. Queremos compreender a literatura, conforme aprendido com Guimarães Rosa, como projeto utópico, aliada do que Marc Augé entende como possibilidade de uma utopia redentora (baseada na educação), mas que se defronta com questões paradoxais:

Se a humanidade fosse heroica, ela se acomodaria na ideia de que o conhecimento é seu fim derradeiro. Se a

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humanidade fosse generosa, compreenderia que a divisão dos bens é para ela a solução mais econômica. (...) Se a humanidade fosse consciente de si mesma, não deixaria as questões de poder obscurecer o ideal do conhecimento. Mas a humanidade como tal não existe, não há senão homens, ou seja, sociedades, grupos, potências... e indivíduos. O paradoxo atual diz que é no auge desse estado de diversidade desigualitária que a mundialização do mundo se realiza. Os mais oprimidos dos oprimidos têm consciência de pertencer ao mesmo mundo que os mais abastados e os mais poderosos – e inversamente. Nunca, no fundo, os homens estiveram em melhor situação para se pensarem como humanidade. Nunca, sem dúvida, a ideia de homem genérico esteve mais presente nas consciências individuais. Mas nunca, tampouco, as tensões imputáveis à desigualdade das posições de poder e de riqueza ou à preponderância dos esquemas culturais totalitários estiveram tão fortes (AUGÉ, 2012, p. 117).

As contradições do Império, apontadas por Hardt e Negri, e aqui reafirmadas pelo antropólogo Marc Augé, podem cruzar-se na ficção migrante de Bernardo Carvalho, revelando uma espécie de representação ficcional do paradoxal mundo contemporâneo. Em O filho da mãe, a promessa de assimilação das diferenças confirma apenas uma condição ideológica, que funciona como propaganda para os meios midiáticos e como antídoto para as revoltas individuais e coletivas, servindo ainda para atenuar as reações necessárias, mas essa integração duvidosa pouco avança em direção a um mundo mais humano.

Decorre dessas reflexões uma questão no mínimo preocupante: estaria a literatura, também ela, sob a influência do projeto de padronização das diferenças proposto pelo Império? Nesse caso, a defesa de uma literatura mundial alheia ao conceito de nação-estado não poderia estar a serviço, conscientemente ou mesmo por via da denegação, desse amálgama amorfo que supõe consensos que anulam? Dissemos que Carvalho cria um mundo ficcional em que se apagam, cada vez mais, tanto o

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projeto romântico de nação quanto a pragmática realista, tudo em nome de uma literatura migrante, feita por um escritor-migrante, por meio de narrador-migrante e de personagens-migrantes, em um mundo cujo espaço vem sendo cada vez mais reduzido. Mas, se verificamos, na leitura, que esse abandono jamais é acrítico e que a reflexão ficcional no discurso literário de Carvalho não se furta a discutir, na mobilidade contemporânea, a necessidade de resistência, aquela possibilidade já apontada por Augé, de todos se perceberem como parte desse mundo, pode passar a ser, no universo ficcional, também condição para se pensar, tanto uma utopia da educação quanto o que chamaremos de “utopia literária”, bem aos moldes da utopia redentora do destino humano desejada por Rosa. O que não demite o risco da subordinação, pois tudo depende da forma como lemos ou queremos ler a literatura, o que recai de qualquer modo, na questão ideológica dos embates culturais e políticos em terreno minado, o terreno da contemporaneidade.

O que faz com que um escritor brasileiro, carioca, de nome Bernardo Carvalho, migre para diversas partes do globo, e que, ao fazê-lo, ficcionalize as contradições das pluriformes organizações sociais e políticas do planeta, que, por meio de uma leitura comprometida, acaba revelando uma vontade de defesa de uma ética do humano envolvida, necessariamente, pelos processos sociais, econômicos e políticos do Império, o qual, em sua tentativa de cooptá-las, no fundo, acaba servindo ao pensamento crítico, em sua tarefa de desvelar as formas de mascaramento do empenho imperial pelo controle, por meio da política de “administração” eficiente das subjetividades.

As culturas da globalização se encontram justamente nesse limiar: entre uma ideia genérica de mundo homogêneo e que incorpora as diferenças e a realidade de certas regiões – como as ficcionalizadas em O filho da mãe, Mongólia e O sol se põe em São Paulo, nas quais a subjetividade encontra-se no tiroteio cerrado entre uma

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modernidade tardia, que não chegou a certas áreas – e a crescente propaganda de incorporação do novo e da diversidade.

A ficção migrante coopera com a emergência de trânsitos textuais, históricos, temporais. O romance de Carvalho é ficção global, migrante, partícipe de uma ordem na qual os textos literários dialogam criticamente com um sistema que acabam por desconstruir, opostos ao que pretende certa imaginação romântica (abrigo da ideia de nação, identidade, de literatura brasileira autêntica). Promove-se, portanto, uma ética planetária que pode se beneficiar de uma ética literária, e, por meio dessa atitude, migram – assim como migraram os colonizadores para as Américas –, na contramão do projeto colonizador, às regiões mais distantes ou diversas, culturalmente e politicamente. Ao contrário do projeto colonizador, a utopia literária acaba por estabelecer, de forma suplementar, espaços críticos diaspóricos e instáveis, um lugar não-mais, cujo projeto político é também educacional, conforme pretende Marc Augé (2012, p. 118):

Se o ideal de pesquisa e de descoberta, o ideal da aventura, tivesse que ser reforçado, tornar-se o único ideal do planeta, as consequências não seriam pequenas. (...) Uma sociedade governada unicamente pelo ideal da pesquisa não pode tolerar nem a desigualdade nem a pobreza.

Para Augé, essa utopia deve ser construída e realizada de forma a orientar cientistas, observadores do social, gestores da economia, e artistas: uma utopia da educação para todos. Como contribuição a esse mundo a ser erguido, a literatura dos escritores migrantes oferece a descoberta, a aventura, o sentido da busca do passado, da pesquisa, a qual não tolera desigualdades e pobreza, pois faz delas matéria crítica – e, portanto, torna seus postulados matéria de aprendizado, constitutiva de seu discurso. Ficção do outro-outro, a narrativa

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contemporânea, a qual, relutantemente, acreditamos ser também de caráter pós-colonial, compreende que a simples rejeição daquele pai, ele próprio subalterno, é momento ora superado, ora retomado pela denegação: ficção que se volta para o mundo quando deixa em espera a relação com o colonizador no acerto de contas que se dá na atração pelo mundo como um lugar não mais, configurado por uma errância que é, ao final, disposição política do discurso literário

As ficções migrantes guardam essa memória e esse destino: nômades, atravessam o mundo com seu olhar ambíguo e enviesado; aventureiras, não demitem do espírito humano o gosto pelo risco e pela descoberta; humanas, não rejeitam a identificação com o autor como o sujeito que as cria, não mais o gênio romântico, nem somente o sujeito da consciência, ou tampouco o sujeito isolado em si ou em sua torre de marfim, mas uma espécie de sujeito pedestre, migrante, caminhante, em eterno movimento, cuja metáfora de vida é a estrada como personificação do espaço-tempo, da história, do destino.

Conclusão

Ao ouvir a sentença de morte iminente, Iúlia Stepánova “sentiu, pela primeira vez, que não podia morrer sem salvar uma vida” (CARVALHO, 2009, p. 12). Marina Bóndareva teve a chance de salvar um rapaz de dezenove anos, morto em missão nas colinas de Grózni. Andrei, o rapaz morto, teve sua chance e tentou salvar a vida de Ruslan, espancado e morto por seu meio-irmão. A avó de Ruslan não consegue salvar a vida do filho e tenta desesperadamente salvar a do neto, sem sucesso. Nas montanhas da Tchetchênia, “todo homem tem um kunak, um amigo estrangeiro que o salvará da morte e que ele também tem a obrigação de salvar. Nenhum homem será completo enquanto não encontra o seu kunak” (CARVALHO, 2009, p. 161). A narrativa de O filho da

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mãe é pontuada por essa questão do outro. Ficcionalização da hospitalidade e da alteridade, ela trata de uma ação que no romance se revela impossível, mas move o destino das mulheres no Comitê das Mães dos Soldados de São Petersburgo. Salvar o outro estrangeiro, para que possamos seguir nosso caminho, é o destino de cada homem no romance, e diríamos mesmo que a questão se reveste de uma utopia da destinação humana, o destino humano previsto por Rosa para a América Latina, utopia distante, em um mundo de vidas desperdiçadas, em que a guerra, conforme visto com Negri e Hardt, passa a ser um instrumento de governança.

Na literatura brasileira contemporânea, esse mo-vimento migratório que pressupõe a vinda do outro sob a perspectiva da hospitalidade esbarra nos mecanismos e procedimentos imperiais. O “outro-outro” migrante, percebido na relação com o “outro-colonizador” e ele próprio subalterno, se lança, por atração, no mundo. Seu saber é ortodoxo, pois sua relação é do subalterno colonizado pelo “outro-subalterno”, mas a força de sua questão pode ali estar resumida: “o pensamento em língua portuguesa surge miscigenado e heterológico no seu corpus fluido e aparentemente sem sentido, porque intercambiador dos vários sentidos reais e possíveis” (VARELA, 1996, p. 317). Daí a literatura poder inscrever a alteridade em seu espaço, utópico por excelência, como uma instância sob estado de sítio. A questão dos nacionalismos, hoje, se inscreve, junto com as antigas noções de identidade, na via da heteronormatividade (LUIBHÉID, 2011), nas políticas pós-raciais (HESSE, 2011), nas discussões sobre a legalidade e a ilegalidade dos migrantes.

As condições para que afirmemos uma literatura brasileira contemporânea como pós-colonial, multi-cultural, ou, conforme preferimos/sugerimos, migrante, só podem ser dadas pelo reconhecimento de um processo diaspórico ao lado de um projeto de lugar: um lugar não mais, protagonizado por sujeitos migrantes, cuja destinação

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utópica está sendo vencida e controlada, por enquanto e no momento, pelos imperativos de uma ordem ambígua que mascara sua veia repressiva e a apresenta sob o signo da cordialidade e da tolerância.

A tentativa de pensar a língua como promessa e destinação, com o lugar desse “outro-outro” em face de si, em face de seu ex-colonizador e em face do mundo em que se insere, hipóteses de trabalho aqui apresentadas, buscam, na literatura, respostas para a questão da possibilidade desse certo outro pressuposto no discurso literário, daquele que se torna invisível para poder transitar no mundo fronteiriço e, paradoxalmente, cada vez mais restrito, no qual, como exemplo, a condição de existência dos amantes Ruslan e Akif, em O filho da mãe, só pode se dar na invisibilidade.

A questão da guerra, não mais restrita à intervenção bélica, deve ser pensada ao lado de outras condicionantes, como as que refletem o drama das subjetividades arruinadas. Daí o amor entre os dois jovens, Ruslan e Akif, no romance de Carvalho, servir como metáfora ou alegorização das condições do sujeito contemporâneo, que deveriam configurar aquele destino humano previsto por Rosa, mas se encontram suspensas no mundo globalizado e em compasso de espera. Essa questão fechará nossa conclusão, paradoxalmente abrindo um debate por vir: o das relações entre autoritarismo, guerra e subjetividade. Deixemos ao romance de Carvalho (2009, p. 38), portanto, a tarefa de apontar futuros caminhos heterológicos de reflexão:

De alguma forma, Ruslan passou a associar o amor ao risco e à guerra, porque não conhecia outra coisa. Associou o sexo à trégua (o desejo deixava a realidade em suspenso) e o amor à iminência da perda. E daí em diante só conseguiu amar entre ruínas.

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Antonio Callado e a Rasura da Identidade Nacional*

Rejane C. Rocha**

* Uma versão oral deste trabalho foi apresentada no 54º International Congress of Americanists, em Viena, em julho de 2012, com financiamento da FAPESP.

** Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.

Resumo: O questionamento, a rasura e a demolição de símbolos nacionais mantidos por séculos são importantes aspectos estéticos na ficção de Callado que desconstroem um Brasil imaginado. Desta forma, este artigo objetiva analisar os romances Quarup e A expedição Montaigne e a fim de observar o tom crítico e irônico dos romances que revela uma construção ideológica da identidade nacional.

PalavRas-Chave: Identidade Nacional, Antonio Callado, Expedição Montaigne.

abstRaCt: The questioning, the erasure and the demolition of national symbols maintained for centuries are important aesthetic aspects in Callado’s fiction that deconstruct an imagined Brazil. In this way, this paper aims to analyze the novels Quarup and A expedição Montaigne in order to observe the ironic and critical tone that reveals the ideological construction of the national identity.

KeywoRds: National identity; Antonio Callado; Expedição Montaigne.

A ideologia não aclara a realidade: mascara-a, desfocando a visão para certos ângulos mediante termos abstratos, clichês, slogans, ideias recebidas de outros contextos e legitimadas pelas forças em presença (BOSI, 1993, p. 145).

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Proposições

Embora o primeiro livro de Antonio Callado tenha sido publicado em 1953, a parte de sua obra que encontrou maior repercussão entre o público e a crítica foi aquela escrita e publicada entre as décadas de 60 e 70 e cuja temática está relacionada ao tenso panorama político do Brasil nesse período. A ditadura militar instaurada no país em meados da década de 60 e que durou, pelo menos, 20 anos não limitou o seu alcance ao campo político, mas estendeu seus tentáculos ao campo da cultura, instituindo a censura prévia por órgãos financiados e controlados pela própria força ditatorial, além de, de modo sub-reptício, ser responsável por outra modalidade de censura – talvez mais cruel do que a outra, porque impregnada nas subjetividades –, a “autocensura”, movimento de cerceamento e também direcionamento da criatividade artística infligida pelos próprios artistas a si mesmos e a seus pares por força das circunstâncias políticas de então. Não por um acaso, a obra de Callado tematizou de muito perto essas circunstâncias, reelaborando, ficcionalmente, o que a História gritava: assim como muitos de seus contemporâneos, o escritor sentiu a pujança do momento histórico e seu inarredável apelo. Era necessário dizer o Brasil.

Cumpre ressaltar, embora este não seja o propósito deste artigo, que dizer o Brasil sempre esteve entre as motivações ficcionais – e não só ficcionais – de Antonio Callado, mesmo antes de se abater sobre o país a ditadura militar1. É traço característico de suas ficções e também das reportagens e peças que escreveu a investigação/reflexão acerca dos traços políticos do ser nacional, entendendo-se político, aqui, no sentido mais amplo que a palavra pode ter, muito distante de sua redução mais popular relacionada a político-partidário. Embora a palavra ideologia comporte significados tão deslizantes quanto perigosos, é inegável o pendor para o enfrentamento do que é mais abertamente ideológico na produção do escritor. Exemplo disso pode

<?> Davi Arrigucci Jr. (1999, p. 315) argumenta que a matriz temática e formal do projeto ficcional de Antonio Callado se encontra na reportagem publicada pelo autor em 1953, Esqueleto da lagoa verde. Ali poder-se-ia identificar, por exemplo, “o entrechoque entre os vários relatos, que se fazem e desfazem à nossa vista, [que] acaba por confluir no discurso irônico que os entretece para a nossa perplexidade e a de quem os assume”.

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ser notado, no âmbito ficcional, desde pelo menos Assunção de Salviano, publicado em 1954: nesse romance – e também em Quarup, Bar Don Juan, Reflexos do baile, Sempreviva (mesmo que secundariamente) e A Expedição Montaigne2 – o escritor persegue o tema “revolução”, um conceito que, em sua obra, assume frequentemente contornos ambíguos e fugidios, nunca alinhados de forma simples e tranquila com qualquer orientação ideológica do momento em que está escrevendo.

É possível analisar cada um desses romances de Callado3 observando como o deslizamento dos significados da palavra “revolução” se constrói por meio de opções formais que acabaram por constituir o estilo literário do escritor: i) personagens atormentados em busca de um significado maior para a sua vida, como é o caso paradigmático de Nando, personagem de Quarup, sempre no encalço de uma espécie de miragem utópica: dos índios do Xingu, passando pelas mulheres até o “povo”, talvez a mais abstrata das utopias; mas também todos os personagens de Bar Don Juan e, de forma pungente, Quinho, de Sempreviva, debatendo-se sempre contra o vazio, seja aquele causado pela frustração diante da revolução que não se cumpriu, seja o causado pela saudade da noiva assassinada; ii) narradores e focalização que acompanham a tormenta dos sujeitos, seja pelo mergulho mais profundo na consciência dos personagens, quando a voz do narrador dilui-se na sua subjetividade, algo que está presente desde A madona de cedro, e surge ainda mais explicitamente em Sempreviva, seja por meio de seu estilhaçamento, que parece apontar para a impossibilidade de narrar a partir de um centro ideológico seguro, como é o caso exemplar de Reflexos do baile.

A fim de não estender essas considerações intro-dutórias, é necessário explicitar desde qual ponto de vista este artigo pretende ler a obra de Callado e quais contribuições pretende apresentar para a sua compreensão. No primeiro caso, reitera-se a leitura que tradicionalmente se tem feito a respeito da obra romanesca

2 Publicadas, respectivamente em 1967, 1971, 1976, 1981 e 1982. No decorrer do artigo, as datas indicadas entre parênteses informam a data de publicação da edição consultada.

3 O trabalho de maior fôlego, nessa direção, é a já clássica leitura de Ligia Chiappini sobre a obra calladiana: Quando a pátria viaja, publicado em 1983.

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de Callado: trata-se de uma ficção alinhada ao seu tempo – o que em alguns momentos rendeu ao autor a pecha de “oportunista” – e nunca descurada das contingências históricas, políticas e ideológicas do Brasil que, entre as décadas de 50 e 80, passou por um apregoado “milagre” econômico, pelas esperanças ora revolucionárias ora reformistas da esquerda, pelo golpe ditatorial e suas consequências, pela “década perdida”. No entanto, decorre da observação da maneira como em Callado tais contingências são ficcionalmente elaboradas, uma proposta de leitura que – e aqui expõe-se a contribuição deste trabalho –, acompanhando o tom sempre irrestrito da crítica que emerge dos seus romances, persiga a “interpretação de interpretações e outras interpretações”, proposta de Dirce Cortes Riedel (2009, p. 357-358), em texto do início da década de 904:

Trata-se de inverter a leitura do significado, passando o tempo matriz a ser o tempo da narrativa, o qual fornece um modelo para as representações comuns do tempo. Um modelo com proposta agenciada pelo sujeito que narra, cujo ato criador, em vez de realizar a versão de uma significação já dada, fornece o seu mundo particular de expressão, a que se associam operações dialéticas entre o texto e leitor ativo, em momentos diferentes e em relação a leituras anteriores.

Agregar ao reconhecimento do profundo lastro histórico da obra calladiana uma leitura que reconheça que ela se insere em uma tradição de significados forjados no âmbito dos discursos e da tradição literária, creio, não é incoerente, desde que se eleja como pressuposto o fato de que as contingências do momento histórico orientaram as opções formais de um escritor que objetivou exatamente a mirada crítica em relação à construção desses significados. Argumento que a obra romanesca de Antonio Callado insere-se de maneira particular na tradição do romance pós-64 pelo fato de que ela expõe a consciência de que

4 Artigo publicado originalmente em A interpretação: 2º Colóquio UERJ, em 1990, como esclarece a organizadora.

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o texto literário mobiliza significados dados, assim como constrói novos significados, além de explicitar isso em sua própria fatura. Uma espécie de resposta a certa impostura que identifica na obra alheia a ideologia enquanto que na própria, a Verdade.

Ao dilema do personagem-escritor do romance A Festa, de Ivan Ângelo [1976],

[...] estou entre deus e o diabo na terra do sol, entre escrever para exercer minha liberdade individual e escrever para exprimir minha parte da angústia coletiva; imagino histórias que tenho vergonha de escrever porque são alienadas e tenho medo de escrever histórias participantes porque são convencionais.

a obra romanesca de Callado parece responder com a diluição dos significados e oposições cristalizados – alienação versus participação (veja-se Bar Don Juan); convencionalismo versus radicalidade da experiência estética (veja-se Reflexos do baile); sentimento de cole-tividade versus experiência subjetiva (veja-se Sempreviva) – e com a explicitação da vacuidade dos significantes. E essa é uma postura ideologicamente participante, embora não seja óbvia.

Este artigo propõe, assim, uma análise de Quarup e Expedição Montaigne, atentando para aspectos que, a meu ver, possibilitam a realização de uma espécie de leitura especular dos dois romances: trata-se de duas obras que, inseridas no projeto ficcional de Antonio Callado, tematizam a construção e a desconstrução de conceitos e imagens que, ao longo do tempo, constituíram uma ideologia relativa ao ser brasileiro, em um período histórico bastante conturbado e, muitas vezes, internamente descontínuo e contraditório. Alem disso, nos romances citados emerge de forma mais sistemática e ampla dos que nos outros romances do autor um esforço de explicitação da identidade nacional como miragem, como significado construído ideologicamente e ambos colocam em pauta tal motivação a partir de soluções formais diferenciadas.

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Identidade nacional: espectro e miragem

Mario de Andrade, ao definir uma das motivações de escrita de Macunaíma, macunaimicamente escapou do conceito de identidade nacional propondo, em seu lugar, uma engenhosa formulação: “entidade nacional”. De um vocábulo para outro, o trânsito dos significados: se “identidade”, pressupõe, como aponta Leyla Perrone Moíses (2007, p. 191) “essência e origem”, “entidade” pressupõe, a despeito de sua concretude, a ausência de unidade e de determinação particular.

Perseguir o surgimento da ideia de identidade nacional, sua relação com as ideias de nação, de povo e de cultura seria extrapolar os limites deste artigo e da discussão que aqui proponho, além de ceder à armadilha de que Mário de Andrade escapou. Ciente da monumentalidade da discussão, o caminho que percorro para os propósitos desta reflexão é outro e os limites são enunciados pelo título desta seção.

Entender a identidade nacional como espectro e miragem é, antes de tudo, aproximá-la à ideia de uma imagem forjada, portanto não natural, estabelecida e construída, nunca inerente5. Renato Ortiz (1985), em texto que discute a questão, observa a diferença existente entre memória coletiva e memória nacional, sublinhando que, no primeiro caso estamos no terreno do mito e, no segundo caso, no terreno da ideologia.

O estabelecimento dessa diferença é importante para a compreensão da memória nacional e da identidade nacional – funcionando aquela como substrato para a elaboração desta – como “construções de segunda ordem” (p. 138), ideologicamente orientadas e diante das quais é mister perguntar: “quem é o artífice desta identidade e desta memória que se querem nacionais?” (p. 139).

Outro dado importante a respeito dessa construção ideológica a que se denomina identidade nacional é o fato de que, embora vinculada à História – já que se constrói via “memória nacional” – ela não se restringe à repetição

5 Stuart Hall (2006, p. 48) afirma que “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação”.

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de um passado sacralizado, o que a faria pertencente ao domínio do mito, mas projeta os seus significados para o futuro, assumindo um caráter prescritivo, embora abstrato:

A identidade nacional é uma entidade abstrata e como tal não pode ser apreendida em sua essência. Ela não se situa junto à concretude do presente, mas se desvenda enquanto virtualidade, isto é, como projeto que se vincula às formas sociais que o sustentam (ORTIZ, 1985, p. 138).

Fundamentalmente, vão no mesmo sentido os ar-gumentos propostos por Marilena Chaui (2004) para considerar a identidade nacional uma construção ideo-lógica. Digo fundamentalmente porque a filósofa entende mito de forma ligeiramente diversa de Renato Ortiz. Para ela, embora admita que o mito liga-se de forma inextricável ao passado – e, aqui, sublinha-se o sentido etimológico de mythos como “narração de feitos lendários da comunidade” –, é possível entendê-lo, também, a partir de uma significação projetiva, uma vez que tal narrativa pode ser uma “solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminho para serem resolvidos no nível da realidade” (CHAUI, 2004, p. 9).

As reflexões de Chaui caminham no sentido de argumentar que os conceitos de nação, caráter nacional e identidade nacional desenvolvem-se e realizam-se no âmbito da formação como também no âmbito da fundação:

[...] o registro da formação é a história propriamente dita, aí incluídas suas representações, sejam aquelas que conhecem o processo histórico, sejam as que o ocultam (isto é, as ideologias). Diferentemente da formação, a fundação se refere a um passado imaginário, tido como instante originário que se mantém vivo no presente no curso do tempo. [...] A fundação pretende situar-se além do tempo, fora da história, num presente que não cessa nunca sob a multiplicidade de formas ou aspectos que pode tomar (CHAUI, 2004, p. 9-10).

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A identidade nacional brasileira quando entendida, nos termos propostos por Marilena Chaui (2004), como “mito fundador” será relida e reconstruída a expensas do momento, do processo de formação histórica de um determinado período e é uma forma de representação que busca construir significados relativos à indivisibilidade do país e ao pacifismo do seu povo a fim de “bloquear o trabalho dos conflitos e das contradições sociais, econômicas e políticas” (CHAUI, 2004, p. 91) que, desde a colonização, atravessam a nossa História. Sempre outra e sempre a mesma, a noção de identidade nacional se altera, de acordo com o contexto histórico, mas para manter-se sempre igual, apontando para a necessidade ideológica de estabilidade e homogeneidade no seio da diferença, da incompletude e da multiplicidade.

A literatura, como expressão de cultura essencialmente vinculada ao seu tempo, mas não limitada a ele, constrói e simultaneamente desconstrói e revisa esses espectros e miragens. No Brasil, dois momentos são paradigmáticos nesse sentido: o Romantismo e o Modernismo e muito já foi discutido a respeito das imagens do ser nacional que esses movimentos literários engendraram/questionaram.

Da literatura brasileira produzida sob a égide da ditadura militar surge, de chofre, um posicionamento altamente crítico com relação ao que as forças repressivas oficiais e a classe média conservadora forjavam como identidade nacional. Às imagens que procuravam representar o país como aquele que inevitavelmente entraria para o rol dos países desenvolvidos inserindo-se nos esquemas do capitalismo multinacional através da observância da ordem civil e do conservadorismo moral, a prosa literária de então respondeu com a representação fragmentária e, por vezes, caótica da violência, da desigualdade social, dos desníveis regionais. Talvez ainda não se tenha condições críticas de compreender qual imagem de identidade nacional resultou da produção ficcional da época, mas é certo que ela se constrói em negativo em relação ao que foi apregoado pelos órgãos

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repressivos e seu tentáculo – hoje sabemos – de maior alcance: os meios massivos de comunicação, sobretudo a televisão.

Quarup

O enredo de Quarup, monumental romance de Callado publicado em 1967 e escrito entre 1965 e 1966 é intricado. A ação se passa entre as décadas de 50 e 60 e o personagem protagonista é Nando. Em torno dele giram os acontecimentos e a partir de sua perspectiva são narrados tanto os que são essencialmente ficcionais quanto aqueles que, embora incorporados pela ficção, fizeram parte da história do Brasil naquele momento turbulento do final da era Vargas e do Golpe militar impetrado em 1964.

Distintas chaves de leitura foram propostas para o romance mais popular de Antonio Callado e a identificação entre a “educação” ou “deseducação” de Nando e a formação ou desconstrução da ideia de nação, de Brasil são recorrentes. Interessa-me observar tal identificação a fim de entender como, a par da construção desse personagem-protagonista, Callado coloca em pauta a ideia de identidade nacional como constructo ideológico, como miragem. Ligia Chiappini (1983, p. 45-46), inventariando as imagens de Brasil formuladas em Quarup – a autora chama a atenção para o fato de que cada um dos personagens do romance tem visões distintas a respeito do Brasil e, por isso, cada um deles alimenta diferentes utopias em relação ao país – sublinha que:

Se em quase todas as personagens podemos constatar uma “teoria” do Brasil e identificar suas utopias, isso também acontece com Nando, a personagem central. Com uma diferença: ele é o único que evolui e que, portanto, transforma, aperfeiçoa e reinventa a cada momento o seu Brasil do passado, do presente e do futuro, aproveitando para isso um pouco de cada uma das pessoas com quem

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convive, cujas ideias filtra à luz da sua experiência, da sua formação e dos seus conflitos pessoais Sem discordar da observação da autora, julgo ser

possível interpretar as constantes reelaborações de Nando a respeito da identidade nacional como uma forma encontrada por Callado para questionar as interpretações parciais a respeito do país e, além disso, sublinhar o caráter de construção ideológica que cada uma delas carreia.

Seminarista com projetos missionários relativos ao estabelecimento de uma prelazia no coração da Amazônia, em uma reserva indígena onde se originaria, mais tarde, o Parque do Xingu, Nando inicia o seu percurso no romance diante de um bloqueio subjetivo que lhe entrava os planos e a missão: ele teme o desejo carnal pelas índias. A tal drama, íntimo, o romance acrescenta outros no primeiro capítulo, esses, essencialmente políticos, que fazem ancorar o enredo ficcional no chão histórico: a situação degradante a que são submetidos os trabalhadores dos engenhos de cana de açúcar em Pernambuco e as mobilizações sociais que resultariam, mais tarde, na criação das ligas camponesas. É importante salientar que, embora a tensão política se esboce desde o início do romance, o que avulta é mesmo a tensão íntima, subjetiva de Nando, emparedado voluntariamente em uma cripta dentro da qual parece tentar se resguardar da sina que caracteriza todo personagem romanesco, de acordo com Lucien Goldmann [1967]: viver em constante embate com as estruturas sociais degradadas, constituindo-se como “herói problemático”.

Iniciado sexualmente por Winifred, missionária protestante norte-americana, Nando parte, enfim, em direção ao Xingu, onde, mais uma vez, se imobiliza: insere-se na vida da comunidade indígena e do Posto de Proteção ao Índio, chefiado por Fontoura, mas vai perdendo, aos poucos, a motivação de seu ministério religioso, juntamente com suas utópicas crenças de instituir uma República Guarani no coração da Amazônia.

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As últimas páginas do terceiro capítulo do romance, intitulado “A maçã”, adquirem grande importância para o enredo, uma vez que parecem funcionar como uma espécie de passagem entre quem foi Nando até então e quem ele vai se tornar depois. A transcrição do excerto abaixo, embora não permita apreender a totalidade e complexidade dos acontecimentos narrados, permite captar o esforço do narrador em representar a simultaneidade dos acontecimentos:

Os índios da huka-huka e do moitará e do javari só ouviram porque conheciam muito bem a voz do Fontoura mas ligar não ligaram o grito dele não, porque não queria dizer nada que índio soubesse e viram logo que só podia ser lá coisa entre caraíba o Fontoura berrando o velho se suicidou, o velho se matou, o velho morreu [...] Sônia não tinha ouvido nem o nome dela e nem as notícias berradas e nem nada andando e andando na trilha do Anta que tinha graças a Deus entendido naquela cabeça bonita bonita por fora e esquisita por dentro que tinha que andar muito e que ir bem longe para guardar a fêmea branca [...] e Otávio empurrou para o chão Ramiro e Falua e esguichou o lança-perfume bem na cara dos dois que protestaram não faz isso Sônia volta Sônia e saíram quase tropeçando nos quarups que vinham rolando, rolando pelo declive tocados pelos pajés e plaf plaf plaf um atrás do outro foram entrando n´água e o maior de Uranaco mergulhou um pouco, emergiu, saiu boiando com sua faixa de algodão tinto e suas penas de arara e de gavião (CALLADO, 1984, p. 258-259).

Em uma prosa vertiginosa, que de certa forma se distancia do tom do romance até aqui, alterna-se a focalização em vários personagens e lança-se mão do discurso indireto livre. Em quatro páginas, expõe-se um turbilhão de acontecimentos: o fim do ritual indígena Quarup, a descoberta da fuga de Sônia e o desespero de Falua e Ramiro por conta disso, as consequências que o suicídio de Getúlio Vargas teve para aldeia e para os

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planos de se instituir uma grande reserva legal indígena – que seria inaugurada pelo próprio presidente em esperada e nunca concretizada visita à Amazônia. Curioso notar que o protagonista Nando perde, nessas páginas, o privilégio da focalização que deteve até aqui e que deterá em grande parte de todo o romance e que o narrador delineia, a partir da múltipla focalização e do discurso indireto livre, o quadro de caos, desespero e frustração de todos os personagens.

No início do capítulo quatro, “A orquídea”, encontramos Nando já desvinculado da vida religiosa depois de um lapso temporal difícil de calcular, mas que comportou a sua ida ao Mosteiro e o reencontro com Hosana, preso por assassinar Dom Anselmo. Não há explicações a respeito dos motivos que teriam levado o personagem a deixar de ser padre, mas infere-se que todos os acontecimentos que brutalmente atingiram a aldeia – e todo o país – e que foram narrados no estilo vertiginoso que acima se descreveu, acometeram Nando de uma consciência a respeito do seu “estar no mundo”. A missão religiosa fora uma espécie de substituta do ossuário em que Nando se resguardava da vida exterior e que não tinha mais razão de ser diante dos fatos – individuais e coletivos – ocorridos.

Se as motivações religiosas, “utópicas” de Nando desapareceram, outras tomaram o seu lugar na incursão do personagem ao coração do país. O capítulo quatro narra a viagem feita pelos expedicionários, entre eles Nando, em busca do centro geográfico do Brasil, num esforço simbólico de desbravar o interior do país, de tomar posse do âmago da nação. Outras ambições juntam-se a essas, de acordo com cada um dos personagens que fazem parte da expedição: Francisca assume para si o desejo que era do noivo revolucionário, agora morto, de sair em busca do centro do país para tentar entender a nação; Ramiro quer, ainda, procurar Sônia entre as tribos indígenas embrenhadas na selva; Fontoura e Vilaverde querem pacificar tribos remotas; Lauro quer comprovar,

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in loco, suas teses antropológicas. E Nando? Embora não se explicitem suas motivações, é certo que elas não mais se nutrem das visões ingênuas que o empurraram, pela primeira vez, ao Xingu:

– Eu por mim – disse Nando – acho que para se pegar o espírito do Brasil e as raízes de sua vocação no mundo o roteiro seria outro. Pouquíssimos brasileiros o fazem e daí a confusão em que vivemos. Eu considero a ida ao centro do Brasil, onde vivem os índios em estado selvagem, mais importante, muito mais importante do que conhecer o Rio ou São Paulo [...] Vejam bem – continuou Nando concentrado – é só no Brasil que ainda existem, tão perto das grandes cidades, homens mais em contato com Deus do que com a História, isto é, com o mundo da razão e do tempo. Entre eles, a aventura do homem na terra poderia começar de novo. (CALLADO, 1984, p. 19). A perspectiva de Nando a respeito do indígena como

tábula rasa – perspectiva, enfim, típica do colonizador de terras e de almas – não se cumpre e isso acaba sendo um golpe na sua ingenuidade e uma fratura nos seus planos de prelazia, tal qual tinha os imaginado. Além disso, conhecer Aicá, o indígena assolado por uma doença rara e cruel colocou Nando em confronto com suas crenças religiosas a respeito da existência de um Deus, sobretudo, bom. Eis um dos dilemas de Nando e um dos motivos que levaram à diluição de sua ingenuidade e de sua fé.

No entanto, livre das imagens idealizadas dos indígenas, possibilitadas pela religiosidade e o desconhecimento, Nando livra-se da imobilidade que caracterizara os seus primeiros tempos na selva e inicia um trabalho incansável de pacificação de indígenas. De qualquer maneira, não é possível apreender o que leva Nando a embrenhar-se cada vez mais fundo na selva e uma passagem do romance permite inferir que a motivação não está clara sequer para ele mesmo:

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Só então veio a Nando não exatamente o medo mas a estranheza de quem representasse no teatro a própria vida e fosse de súbito assaltado pela suspeita de que podia morrer por pura representação de uma morte que não ocorrera. (CALLADO, 2004, p. 272) .

O estranho sentimento que assola Nando, o de desdobrar-se em imagem forjada de si mesmo, não coincide com a ideia de um sujeito íntegro, ciente e certo de suas escolhas. Além do mais, logo desembarcaria no Posto Francisca, acenando com uma motivação afetiva para que ele, enfim, empreendesse a viagem rumo ao centro do país.

O capítulo quatro narra os eventos mais alegóricos do romance calladiano. Em busca do centro geográfico do país – seja o que for que ele signifique para cada um dos expedicionários – os personagens encontram saúvas, miséria e morte. A força alegórica do capítulo vem da eleição de imagens cuja força simbólica há muito frequenta o imaginário brasileiro: as saúvas e o indígena. No primeiro caso, as ressonâncias literárias não podem ser afastadas, já que, de Policarpo Quaresma a Macunaíma, as formigas representaram simbolicamente – a partir de sua fúria subterrânea – a corrosão das crenças relacionadas à possibilidade de o Brasil se tornar, finalmente, um país “civilizado”.

No que diz respeito à forma como o indígena é representado neste capítulo, a complexidade – e exemplaridade – é ainda maior, dada a força semântica que a imagem do índio carrega em nossa história, desde que foi alçado, pelo Romantismo, à categoria de representante da identidade nacional:

Os vinte, vinte e poucos cren-acárore que sobraram foram tocando para a frente como engenhocas de transformar em disenteria os estoques de comida da Expedição A um Lauro magro e fero que se queixava de gigolotagem dos cren respondeu Fontoura que

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eram batedores à altura da Cloaca Central de que se aproximavam todos: os cren acorriam com sincera pressa à Latrina (CALLADO, 1984, p. 365). A desconstrução impiedosa de significados relativos

à grandeza e respeitabilidade da Pátria explicita-se nesse pequeno fragmento: primeiro, o movimento é trazer à memória do leitor os significados que ressoam no vocábulo “batedores” – oficiais que abrem caminho para a passagem de governantes ou pessoas ilustres – para, em seguida, miná-lo a partir de uma imagem que desconstrói aquela cristalizada: os “batedores” da expedição estão à altura tanto daqueles que a compõem quanto da Pátria em si e são indígenas infectos que, ao invés de seguir à frente da expedição, perseguem-na, dela tirando proveito.

Mas é no fragmento seguinte que se delineia, talvez, a percepção mais triste a respeito do que venha a ser o “ser brasileiro”:

Quando caía a noite, zonzos de cansaço, olhos doendo de procurar avião, o grupo se detinha à beira do rio e se esforçava por pescar, aquele grupo onde só Francisca ainda transcendia e simbolizava alguma coisa. Os demais, pensava Nando, eram um bolo que já havia adquirido até homogeneidade racial. Os caraíbas emagreciam a poder de alimentar os cren que emagreciam de diarréia, todos crescendo em ossos e minguando em carnes. À medida que se descarnavam, ressecavam, empalideciam, os índios se tornavam menos mongóis, mais brasileiros, um grupo de paraíbas, de cearás, de jecas mineiros só que nus em pelo. A fome não era mais uma ânsia, mas um atributo coletivo. Os índios andavam atrás dos brancos e os brancos só andavam porque sabiam que se parassem iam virar índios (CALLADO, 1984, p. 367, grifos nossos).

A diluição das diferenças entre brancos e indígenas e a redução destes a uma identidade brasileira construída a expensas da fome e da derrocada física e moral não deixa espaço para as idealizações positivas construídas

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desde o Romantismo. Observe-se que, pela perspectiva de Nando, a desvalorização do ser nacional não se dá pela via construída pelo preconceito eurocêntrico, mas ao contrário: a imagem “homogênea”, desidealizada, rebaixada que surge quando os indígenas perdem, por causa da fome e da doença, a sua dignidade, é a que os aproxima de uma aparência “brasileira”. A notação irônica faz desmontar os discursos construídos pelo sistema colonial, tanto o que construía a imagem indígena como superior ao do branco, graças a sua “pureza” quanto a que, pelo contrário, valorizava este em detrimento daquele, graças a sua “civilidade”.

A observação de Francisca a Nando – “Você saiu de lá julgando que ia encontrá-lo no Xingu e agora vê que é lá que ele está” (CALLADO, 1984, p. 374) – quando ele sai do Xingu de volta a Palmares para “realizar o trabalho da [sua] vida” aponta não só para a guinada que dará a vida de Nando depois da expedição como também para o quanto a volubilidade de suas certezas pode ser atribuída à volubilidade de sua imagem da identidade nacional e da volubilidade da própria identidade nacional. Os capítulos cinco e seis narram, então, a passagem de Nando pelos movimentos sociais que se vinculavam às ligas camponesas, sobretudo a alfabetização de camponeses pelo método Paulo Freire, a sua prisão pelas forças da ditadura que depuseram o governo de Pernambuco em 1964 e, por fim, o abandono, por parte do personagem, de qualquer luta política para assumir a tarefa de amar as mulheres e ensinar os homens a amá-las.

No espectro revolucionário, Nando vai de um extremo a outro nesses dois capítulos: entre a revolução política e a revolução dos costumes, mais uma vez a opção de Callado é diluir as fronteiras rígidas dessas concepções cristalizadas e isso pode ser observado, por exemplo, nas conversas do personagem com antigos companheiros de engajamento político ou com Joselino, pai de Amaro, pescador que abandona o ofício familiar para “viver a sua vida de Amaro”:

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– Me espantava que Amaro tivesse deixado de auxiliar pai e mãe – disse Nando. – Eu ensinei a ele tirar ostras das pedras na praia sem passar o dia inteiro em cima de uma jangada e Amaro logo achou uma ostreira grande. Só precisa da sua faca e vende as ostras nos hotéis e restaurantes.

– E o resto do dia? O que é que faz?– Vive a sua vida verdadeira, sua vida de Amaro – disse

Nando.– Vida de vadio enfeitiçado. E com dinheiro no bolso.– O pior, na sua opinião, – disse Nando – é que Amaro

agora tem mais tempo de seu e ganha mais dinheiro, não é?

– Trabalha menos tempo, é isto que é mau. E por paga ainda maior ainda por cima (CALLADO, 1984, p. 510).

Na conversa com o velho pescador, Nando coloca em pauta, subjacente aos seus questionamentos, uma discussão bastante recorrente e muito comum no momento histórico em que se passa o romance e que diz respeito à alienação, ao valor e à divisão social do trabalho. E tudo isso para defender o ex-pescador que – usando um termo pejorativo da época – “desbundou”.

O apagamento da oposição entre ”engajamento político” versus “desbunde” culmina no jantar oferecido por Nando em memória de Levindo, estudante que fora morto dez anos antes defendendo os direitos dos trabalhadores de engenho. A grande celebração, descrita no romance em termos ritualísticos, serviria a Nando para “devorar a lembrança de Levindo, devorar Levindo, incorporá-lo, nutrir-se dele” (CALLADO, 1984, p. 549). Celebração, ritual e ato político, o jantar é ocasião que deflagra, mais uma vez, uma guinada na vida de Nando. Depois de sua realização – e de todas as consequências violentas dela advindas – Nando parte para a guerrilha, assumindo o nome “Levindo”, mas, mais do que isso, buscando em Levindo a crença irreparável no país, a sua perspectiva utópica, uma firmeza de princípios que

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Nando nunca tivera e que, talvez, só seja mesmo possível entre aqueles que, não mais entre nós, são sustentados pela memória daqueles que ficaram.

O que se pode observar pela leitura de Quarup feita até aqui é que o percurso do personagem Nando durante todo o enredo é uma busca pela sua própria identidade, mas também uma busca pela compreensão do país. As idas e vindas de Nando pelo território nacional – Pernambuco, Rio de Janeiro, Xingu, Pernambuco, Centro Geográfico, Rio de Janeiro, Pernambuco e sertão nordestino – pontuam uma ânsia que alia a autoinvestigação à problematização da identidade nacional e a homologia entre os resultados obtidos pelo personagem nessa dupla empreitada salta ao olhos: ao final do romance, o ex-padre, ex-missionário, ex-militante de esquerda, ex-amante deve assumir a identidade de outro – Levindo – a fim de construir a sua integridade, sempre buscada e nunca alcançada. O final do romance aponta para mais uma guinada na vida de Nando, mas o final em aberto não é conclusivo a respeito do que, afinal, ele fará com a nova identidade, como viverá, quais desafios enfrentará.

E o Brasil? Se existir mesmo uma homologia, é impossível delimitar a imagem de uma identidade nacional que se coloca no romance. Peças que ora se encaixam, ora são absolutamente incompatíveis, as identidades nacionais, os brasis que emergem do romance são espectros e miragens: sonhos frustrados e planos de impossível realização. Ainda assim, a busca visceral de Nando – e também dos outros personagens – imprimem ao romance um significado construtivo, quiçá utópico, totalmente ausente do outro romance que a partir de agora discuto.

A Expedição Montaigne

Publicado em 1982, A expedição Montaigne é uma obra muito peculiar no interior da prosa ficcional calladiana.

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Dialogando com temas, situações e personagens dos outros romances que o autor publicara até a data, esse romance, embora tão questionador quanto os outros romances de Callado, obedece a uma motivação corrosiva neles apenas entrevista. Além disso, a abertura para o futuro, para a esperança – tão marcada, por exemplo, em Quarup – lhe é totalmente desconhecida.

O enredo gira em torno de algumas figuras principais que são ladeadas por outros personagens: o índio Ipavu, o ex-funcionário do Serviço de Proteção ao Índio e atualmente jornalista, Vicentino Beirão, o pajé Ieropé, o diretor do reformatório indígena de Crenaque, Vivaldo; é organizado em capítulos curtos e narrado por um narrador em terceira pessoa que cede a focalização a cada um desses personagens, e a outros, de forma alternada. O que se narra são os planos de Vicentino Beirão que

[...] pretendia enfiar uma pororoca de índios pela história branca do Brasil acima, para restabelecer, depois do breve intervalo de cinco séculos, o equilíbrio rompido, certo dia aziago, pelo – as palavras são dele – aquoso e fúnebre ploft de uma âncora de nau, incrustada de mariscos chineses, eriçada de cracas das Índias, a rasgar e romper cabaço e regaço das túmidas águas pindorâmicas (CALLADO, 1982, p. 11).

A citação expõe a prosa peculiar em que o romance é construído, além de exemplificar a forma como a questão da identidade nacional será tratada em A Expedição Montaigne: a partir da exposição dos escombros do que se delineou, em diferentes épocas, como o “ser brasileiro”, Callado explicita a vacuidade da ideologia, construída via discursos e símbolos que, quando deslocados de seu contexto, nada mais representam.

O plano tresloucado de Vicentino Beirão, em termos mais simples, é o de montar uma expedição rumo à Amazônia para reunir o maior número possível de indígenas e invadir o Rio de Janeiro. A expedição reúne

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o índio aculturado Ipavu e mais alguns indígenas e parte da narrativa ocupa-se em descrever o percurso do grupo e os meios ilícitos de que usam para se sustentar durante a jornada. Paralelamente a essa história, narram-se os percalços pelos quais passa, na tribo de Ipavu, o pajé Ieropé, insistindo em tratar com pajelanças as doenças “civilizadas”, a fim de garantir a pureza dos costumes da tribo.

De tonalidade satírica, o romance trata os temas e delineia seus personagens sempre a partir da representação dos extremos e não é raro reconhecermos, nos personagens de A expedição Montaigne, traços de personagens de outras obras de Antonio Callado. O que ocorre, aqui, é que aspectos parciais de outros personagens são ampliados ao paroxismo, num esforço em compor com tintas caricaturescas os personagens do romance em questão.

O enredo se inicia com os personagens centrais do romance encontrando-se no desativado Reformatório Indígena de Crenaque. Ali, misto de prisão e hospital, vivem Ipavu, outros dois indígenas e Seu Vivaldo. O primeiro considerando a instituição o seu “lar, a casa dele, não a casa da gente ser parida mas a casa escolhida” (CALLADO, 1984, p. 14), uma vez que renega toda e qualquer possibilidade de voltar para a sua tribo e reinserir-se na cultura indígena. O último ali vivendo enquanto as autoridades decidem o que fazer com ele e com o lugar e, enquanto isso, gozando dos frutos dos pequenos roubos cometidos principalmente por Ipavu e que lhe garantiam uma “despensa e adega de tuxaua, coronel ou bispo” (CALLADO, 1984, p. 14). É nesse espaço que irrompe Vicentino Beirão, ex-funcionário do Serviço de Proteção ao Índio – a exoneração de Beirão, acusado de subversivo e exonerado por ocasião da promulgação do AI 5 é uma referência temporal que permite inserir a ação em um contexto histórico mais ou menos determinado –, ex-jornalista e aspirante a revolucionário para aliciar Ipavu e convencê-lo a fazer parte da expedição que vai

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[...] levantar, em guerra de guerrilha, as tribos indígenas contra os brancos que se apossaram do território a partir daquele glauco gluglu do ferro da cabrália caravela logo depois que a figura de proa, lança de S. Jorge e língua de dragão, abriu as coxas e os grandes lábios de mel da bugra Iracema, ocupada a lavar-se, sem uluri, na praia (CALLADO, 1984, p. 30).

O plano de invadir o Rio de Janeiro com uma tropa de índios já fora anunciado por Fontoura, em Quarup, mas sempre em tom jocoso e em momentos de frustração extrema e decepção com o trabalho no posto de serviço do qual era diretor. As bravatas de Fontoura escondiam o firme propósito de realmente cuidar dos indígenas. No caso de Vicentino, uma inversão se anuncia: o jornalista/revolucionário usa do discurso do empoderamento do indígena para escamotear os seus objetivos nada nobres, como o desenvolvimento do enredo fará ver.

Os personagens indígenas Ipavu e Ieropé também se constroem pela exploração dos extremos. Cada um em uma ponta da representação convencional do indígena, Ipavu é o indígena aculturado que não suporta a ideia de ser índio, enquanto Ieropé tenta resistir de todos os modos à aculturação, a ponto de causar a morte de integrantes de sua tribo por se recusar a distribuir a penicilina que mantinha sob sua guarda e insistir em tratar a gonorreia com os remédios e as rezas de seu arsenal de pajé.

Se se entende identidade nacional como uma construção ideológica, tal qual o fazem Renato Ortiz e Marilena Chaui – e mesmo Mario de Andrade, a se levar em conta a sua recusa em utilizar o termo – é lícito afirmar que as imagens que, ao longo da História do Brasil, se prestaram para a construção da materialidade dessa ideia podem ser aproximadas ao conceito de símbolo, uma vez que:

Os símbolos evocam uma realidade que não pode ser nem designada nem reconstruída por detrás deles. O seu duplo

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sentido suscita sempre ambiguidade. Estão constituídos de tal modo que a sua significação secundária apenas se alcança mediante as ruínas da significação primária.6

Nesse sentido, os personagens Ipavu, Ieropé e

Vicentino Beirão, podem ser entendidos como resposta caricaturesca/satírica às construções simbólicas que, em diferentes momentos de nossa história, se prestaram à conformação de uma identidade nacional: o índio e o revolucionário.

A construção dos personagens indígenas, por exem-plo, é paradigmática. A compreensão do seu papel, no romance, deve levar em consideração diversas camadas de significados que se acumularam ao redor da figura do índio, no decorrer de nossa história. Tal qual são delineados, em A Expedição Montaigne – antagônicos, díspares – Ipavu e Ieropé não se pretendem “mais reais” do que Peri e Macunaíma. O que ocorre é que o romance procura desvelar o quanto, dada a sua condição de símbolo, a figura do índio pouco pode comunicar de real, soterrada por configurações ideológicas que transformam cada vez mais em ruínas os significados primários de “ser índio”: homem que possui uma cultura e um modo de vida particulares e que, como qualquer ser humano, tem desejos e misérias.

Não por outra razão Ipavu e Ieropé são tão diferentes: é a exposição da diferença que permite o questionamento da homogeneidade – que, como tenho argumentado, é o princípio constitutivo da identidade. Nesse sentido, Expedição Montaigne, embora se utilize do recurso caricaturesco – no qual alguns críticos identificam um traço excessivamente esquemático – alcança uma maior complexidade na representação do indígena, quando comparado a Quarup. No romance de 1967, a estratégia era a de desvelar, desde a perspectiva do caraíba, o quanto de mistificação existia em relação à realidade indígena. Aqui, graças à alternância na focalização – quando o leitor se depara com a ocorrência do discurso

6 Verbete “símbolo”, redigido por Maria Luís Portocarrero Silva para o e-dicionário de termos literários.

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indireto livre, a revelar a subjetividade das personagens – é possível observar a percepção do próprio indígena a respeito da sua realidade, tal como ele a vive, e a respeito da sua realidade, tal qual é presumida pelo branco.

Branco era tão babaca ou tão distraído que acreditava que índio podia ganhar dele em alguma coisa, puta que pariu, parecia até conversa babaca de Zeca Ximbioá, que chegava a dizer que branco tinha medo de índio porque no meio dos índios o que era de um era de todos e que se o índio ficasse dono do Brasil de novo tudo voltava a ser como era antes e todo o mundo feliz, olha só a besteira de Ximbioá, imagina branco muito feliz porque arco e flecha era de todos e beiju também, pombas, quem é que quer essas merdas? Tudo era de todos porque índio não tinha cerveja, tira-gosto, empada, nem dinheiro, grana, porra, ninguém queria nada daquilo que o índio tinha e na praia ou em beira de rio índio vivia mesmo era paquerando navio, esperando que chegasse barco de branco (CALLADO, 1984, p. 39).

Se o que interessa aqui não é o fato de a reflexão feita por Ipavu, no excerto acima, aproximá-lo mais ou menos do que seja o “indígena real”, é inegável que o embate dos discursos, o jogo das mistificações e desmistificações – alcançados graças à inversão satírica – são expostos aos olhos do leitor a quem se impõe a pergunta: “significará sempre o duplo sentido simbólico uma revelação ou também uma dissimulação?”7 Ou ainda: qual é o significado que revela e também – talvez sobretudo – oculta personagens como Peri, Macunaíma, Ipavu e Ieropé?

O que é certo é que o tratamento dado por Callado aos personagens indígenas, em A Expedição Montaigne, é uma resposta à tentativa de construção de uma identidade nacional: desconstruir a homogeneidade da identidade indígena é, por extensão, desconstruir as ideias de origem e de pureza do “ser nacional brasileiro”, e isso é alcançado pelos vários diálogos intertextuais que

7 SILVA, verbete “símbolo” do e-dicionário de termos literários.

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o romance estabelece com imagens e significados forjados pelo nosso Romantismo, momento em que essa era uma preocupação central.

No excerto acima também se revela outra desconstrução simbólica, relacionada à figura do re-volucionário de esquerda. Embora tal tema mereça discussão mais aprofundada, creio ser relevante para a argumentação que desenvolvo aqui o apontamento de algumas ideias. Remonta de período mais recente a construção da simbologia do revolucionário, mais especificamente a partir da década de 60 e tanto a literatura quanto o cinema produzidos no período contribuíram para construção dessa simbologia. Trata-se de uma imagem forjada nos estertores ideológicos do período e a sua elaboração se relaciona também com o desejo utópico de criar um homem novo para um país novo. Seguindo o tom geral do romance A expedição Montaigne, Callado não deixa imune de seu esforço desmistificador a imagem simbólica do revolucionário de esquerda.

Zeca Ximbioá, guerrilheiro, tem existência apenas na memória de Ipavu e na memória e nos delírios de Ieropé, já que no presente da narrativa ele já tinha sido assassinado pelas forças de repressão da ditadura militar e suas crenças revolucionárias, quando referidas por Ipavu são ridicularizadas, como expõe o excerto que transcrevemos e, quando referidas por Ieropé, ajudam a alimentar a obsessão pela pureza cultural que anima o pajé. De um lado e de outro, restam discursos e ideias deslocados de seu contexto revolucionário original e que não fazem o menor sentido quando expressos pelos dois personagens.

O caso de Vicentino Beirão é mais complexo, dada a importância do personagem para o enredo. Logo no início do romance, delineia-se o desvario das motivações expressas e ocultas do pretenso revolucionário, bem como a sua estirpe de pseudointelectual, pedante, ignorante da realidade do país e mal intencionado:

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Foi várias vezes, na vasta biblioteca do seu apartamento no Leblon, fotografado entre livros franceses e cerâmica carajá, ou, de outro ângulo, perto da janela, entre uma espada que era cópia autenticada da de Bayard (sans peur et sans reproche era o ex-libris de Vicentino Beirão) e a borduna com que um índio arara tinha matado, no rio Ananás, o tenente Marquês de Souza, oficial do grupo de Rondon. A princípio mangaram dele, dizendo que falava em nome dos índios sem ter visto, sequer, a mata virgem, e o Beirão respondeu que, muito pelo contrário, era frequentador assíduo da Floresta da Tijuca: ali, no século passado, o arquiteto paisagista bretão Auguste François Glaziou tinha reduzido a selva às dimensões de um parque, de um soneto (CALLADO, 1984, p. 23-24).

Os significados que se acumulam em torno da figura do revolucionário são um a um desconstruídos pela caracterização de Beirão e pela explicitação de suas motivações, mais ligadas a uma mesquinha vingança do que à luta pela grandeza e melhoria do país.

“Mito fundador”, “entidade abstrata” a identidade nacional se alicerça em símbolos8 cuja função é, pa-radoxalmente, reviver uma realidade que inexiste pre-viamente ou, ainda, criar as memórias que devem ser honradas no futuro. O que faz Expedição Montaigne é desvendar, explicitar e questionar essa complexa estrutura.

Conclusão

Entre a publicação de Quarup e a de A expedição Montaigne mais de duas décadas se passaram e, para o Brasil, foram longas décadas durante as quais o país ao mesmo tempo em que encenou o papel de “país do futuro”, de promissora potência industrial, frequentou as listas nada honrosas de países com significativos – para não dizer vergonhosos – índices de desigualdade social, analfabetismo, mortalidade infantil, assassinatos

8 No artigo já citado de Marilena Chaui (2004) a autora prefere o termo “semióforo” para designar esses símbolos, entendendo mesmo o conceito de “Pátria” como tal.

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não explicados. Durante esse período, intelectuais e artistas viram os seus mais caros projetos para o país se transformarem em utopias cada vez mais impossíveis de serem realizadas, num primeiro momento bloqueadas pela repressão política violenta e, no momento seguinte, sufocadas por um capitalismo cada vez mais atroz que, se foi efetivamente implantado entre nós durante a ditadura militar, não findou com ela.

Os dois romances de Callado que foram discutidos aqui evidenciam, de forma paradigmática, esse turbilhão de acontecimentos contraditórios que assolaram o país nessas duas décadas. E, nesse sentido, eles estão muito bem acompanhados por uma produção literária que, entre a década de sessenta e a de oitenta, procurava testemunhar, discutir, compreender, representar o horror do cerceamento violento da liberdade. Ocorre que, em Callado, o testemunho, a discussão, a compreensão e a representação sempre se deixaram acompanhar por uma profunda consciência de que, para além do embate físico e político que se desenhava, movia-se de forma sub-reptícia um confronto de discursos e ideologias que tentavam se invalidar mutuamente. E o que passa a interessar, então, para o romancista, não é a representação da ideologia x ou y, mas o desvelamento do embate, do confronto, a partir da sua explicitação enquanto construção discursiva.

O romancista acompanhou de muito perto tais embates e escreveu, no calor da hora, romances que denunciaram não só a violência da repressão política, mas também a impostura de ideias forjadas às quais se procurava ocultar justamente seu caráter de construção. E isso tudo relacionado a ambos os lados da polarização política radical que caracterizou a época. Isso, no romance de 1982, era esperado, uma vez que a década de oitenta sucessivas vezes se viu caracterizada sob o signo da desi-lusão; no romance de 1967 era visionário e polêmico.

Passados trinta anos da publicação de A Expedição Montaigne e quarenta e cinco anos da de Quarup, percebe-se que, embora profundamente arraigada no contexto

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histórico que lhe impôs limites e lhe ofereceu assunto, a obra de Callado possui um alcance maior graças ao fato de que o autor conseguiu observar – e representar na sua produção literária – que a contingência histórica não pode ser entendida adequadamente se delimitada em décadas e destacada de uma série histórica maior, que compreende o passado mais remoto da nação, mas também as projeções do seu futuro. Se a repressão deflagrada pelo regime militar é tema recorrente na maioria dos seus romances, o distanciamento temporal permite ver que se move no interior de sua obra outra obsessão, de escopo mais amplo, que diz respeito à busca pela compreensão de como se funda e se forma um país.

A análise de Quarup e de A expedição Montaigne –como também a leitura das outras obras do escritor – aponta para o fato de que Callado não tencionava encontrar, nem representar, nem forjar a identidade nacional em suas obras, e sim refletir a respeito de seu caráter de construção ideológica. Lá, onde se busca a identidade nacional, estão os símbolos, os mitos, as palavras, a miragem. De Nando a Vicentino Beirão, a obra calladiana expõe o que isso significa... para o bem e para o mal.

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Entre Gritos, Silêncios e Visões: Pós-Colonialismo, Ecologia e

Literatura Brasileira

Roland Walter*

* Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Resumo: A hipótese deste ensaio é que a dupla brutalização dos seres humanos e da geografia (terra, paisagem, natureza, espaço, lugar) que caracteriza as diferentes fases e processos de colonização constitui o inconsciente político, cultural e ecológico da experiência brasileira — o fantasma deste holocausto recalcado que volta em resposta a uma Verleugnung fazendo sentir sua presença tanto nos níveis da enunciação e imaginação quanto no da experiência vivida. O objetivo analítico é a problematização desta hipótese por meio de um estudo interdisciplinar e comparativo da literatura brasileira com base na teoria pós-colonial e ecológica.

PalavRas-Chave: geografia, episteme cultural, memória, colonialidade, literatura brasileira

abstRaCt: The hypothesis of this essay is that the double brutalization of human beings and geography (land, landscape, nature, space, place) that characterizes the different phases and processes of colonization constitutes the political, cultural and ecological unconscious of the Brazilian experience—the phantasm of this repressed holocaust that returns in response to a Verleugnung and makes its presence felt at the levels of lived experience, imagination and enunciation. The analytical objective is the problematization of this hypothesis through an interdisciplinary and comparative study of Brazilian literature based on post-colonial and ecological theory.

KeywoRds: geography, cultural episteme, memory, coloniality, Brazilian literature

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Para Walter Mignolo (2003), a literatura e a crítica pós-colonial se distinguem por basicamente três características principais: a) um discurso crítico que revela a colonialidad del poder que rege o moderno sistema mundial; b) um discurso que problematiza a relação entre lugares/histórias locais e fluxos globais em termos de episteme cultural e produção de saber; c) formas e práticas de agenciamento e de razão subalterna que desconstroem o paradigma da razão moderna. Anibal Quijano (1997), cujas ideias constituem uma das fontes principais dos argumentos de Mignolo, problematiza o que ele chama de colonialidad del poder como império político-econômico e sociocultural do Ocidente sobre o resto do mundo. Em contraposição a Michael Hardt e Antonio Negri (2003, p.171), para os quais o império é constituído por redes elusivas, “flexíveis e híbridas” de “produção de capital”, para Quijano a colonialidade do poder abrange: a) o conflito de epistemes culturais e estruturas de poder dentro de um processo histórico; b) a experiência (e noção) da diferença cultural como condição de subalternidade que oscila entre alienação e potencialização; c) a categorização hierárquica das regiões e populações mundiais pela hegemonia ocidental; d) o papel da mídia, da ideologia, do sistema educacional e do Estado no estabelecimento desta hierarquia dentro de cada nação e entre nações; e) a (re)invenção/(re)apropriação de lugares e espaços neste mapeamento (trans)nacional; f) os fluxos erráticos de capital e de seres humanos entre os mercados ‘livres’ que compõem o sistema capitalista nas diversas fases de sua globalização.1 O enfoque analítico de Quijano são as relações de poder e suas práticas e formas de controle de diversos âmbitos da existência social, como o trabalho, a natureza, as matérias primas, o sexo, o saber e a autoridade. Neste processo, o crítico peruano mapeia, em linhas gerais, alguns dos principais assuntos que caracterizam as duas violências que, enquanto efeito da colonialidade do poder, imbuem a paisagem da pós-colonialidade contemporânea: a

1 Arjun Appadurai (1996) amplia esta idéia ao pensar estes fluxos em cinco diferentes níveis, ou, nas palavras dele “panoramas”, a saber: etnopanorama (ethnoscape), tecnopanorama (technoscape), ideopanorama (ideoscape), finançopanorama (finanscape) e midiapanorama (mediascape)

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violência física e a violência epistêmica. Segundo Quijano (1997, p. 374) “hace falta estudiar y establecer de modo sistemático [...] las implicaciones de la colonialidad del poder en el mundo”.

Se, segundo Said (1978, 1994), Bhabha (1994), Young (1995), Lionnet (1995) e Shohat (2000), entre outros, o pós-colonialismo como crítica da História/Civilização Européia, do Ocidente, deve examinar a influência do passado colonial no presente pós-/neocolonial, e se, segundo Spivak (1999, p. 239-240), “um dos aspectos mais fascinantes da pós-colonialidade numa ex-colônia é o palimpsesto da continuidade pré-colonial e pós-colonial fraturada pela imposição imperfeita da episteme iluminista”, então, o entendimento dos efeitos do passado no presente se produz não somente por meio de um enfoque analítico sobre a relação colonizador-colonizado (ou qualquer outro tipo de relação dominador-dominado), mas também de um exame das relações intragrupais, em termos de assimilação, internalização de valores, mímica, cooptação e resistência, na ambígua e ambivalente encruzilhada de identidade e alteridade.

Em seguida, gostaria de focalizar um eixo desta colonialidad del poder até agora negligenciado pela crítica literária, a saber: a relação entre a geografia (paisagem/ natureza/ lugar/ espaço/ terra) e a episteme cultural (ethos/ cosmovisão/ identidade).2 O que se tem negligenciado é precisamente o mapeamento da poética mnemônica de textos literários problematizando tanto o corpo e a mente dos personagens como lugares de luta sobre o espaço social heterotópico quanto a complexa relação entre os sujeitos e seu ambiente no processo histórico. Este enfoque teórico será complementado por uma breve discussão sobre a nação brasileira − procedimento este que serve como base para a análise dos textos selecionados de escritores brasileiros multiétnicos.

O termo ‘lugar’ pode ser definido de maneira geo-gráfica, ambiental, fenomenológica (ao ligar ‘corpo’ e ‘lugar’) e genealógica (ao ligar ‘ancestralidade’

2 É necessário enfatizar aqui que muitos pensadores e críticos mencionam a importância da geografia/ natureza nas diversas fases de exploração colonial, imperial e/ou capitalista. Como Huggan e Tiffin (2010, p. 3) ressaltam, existe “uma longa história de preocupação ecológica na crítica pós-colonial”.

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com ‘território’), em termos de expansão de império, urbanização e diminuição da natureza virgem, entre outros. Se segundo Henri Lefebvre (1974), os espaços são percebidos, concebidos e vividos, ou seja, tanto reais quanto imaginados, e, segundo Claude Raffestin (1980), a territorialidade é um tipo específico de espaço delimitado pelo agenciamento dos personagens, então, alego que a demarcação do espaço (com seus lugares) resulta tanto de medições e mapeamentos cartográficos quanto do sistema semiótico de linguagem e suas imagens articuladas. Para Ashcroft (2001, p. 156), “o lugar é um resultado de habitação, uma conseqüência dos modos como as pessoas vivem num espaço”. Por outro lado, a maneira como pessoas habitam um lugar − seu imaginário, episteme cultural, língua, gestos, maneira de falar, vestir etc. − é determinada por este lugar: o que é verdade/realidade num lugar e para um determinado grupo necessariamente não o é para outro. As formas de espaço constituem tanto o meio como o modo de nossa conscientização, ou seja, o espaço torna-se, simultaneamente, a forma das experiências vividas e imagem de seus conteúdos. Isso significa que pertencer a um lugar é determinado menos pelo que se possui em termos de propriedade (terreno, casa etc.) do que pela relação entre a memória fragmentada e seletiva e a experiência vivida. Com base neste duplo sentido de lugar como entidade geográfica e produção sociocultural, argumento que qualquer análise espacial deve examinar seu significado intrínseco e extrínseco, ou seja, seus próprios vetores, como também as ramificações socioculturais e político-econômicas nas quais ‘raça’, ‘etnia’, ‘gênero’, ‘idade’, ‘classe’, entre outros vetores sociais contribuem para a constituição da experiência ambiental: como, em outras palavras, as histórias ‘naturais’ são profundamente enraizadas em si mesmas e, ao mesmo tempo, no processo glocal (local e global) das histórias mundiais.

Ao enfatizarem a produção da história no processo (pós-/neo)colonial do remapeamento mundial

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(WALLERSTEIN, 1991), os estudos pós-coloniais têm utilizado o conceito de ‘lugar’ para problematizar narrativas temporais de progresso impostas por poderes coloniais. Neste sentido, o lugar codifica o tempo sugerindo que as histórias encravadas na terra e no mar sempre têm providenciado metodologias vitais e dinâmicas para a compreensão do impacto transformativo do império e as epistemologias anticoloniais que este tenta negar e suprimir. A historização tem sido um dos meios primários dos estudos pós-coloniais e, como Albert Memmi, Paulo Freire, Edward Said e Frantz Fanon, entre outros, enfatizaram em suas obras, ela é crucial para o nosso entendimento do espaço. Assim, ao utilizar um modelo histórico de ecologia e uma epistemologia de espaço e tempo na análise literária, é necessário engajar um dialogo com a paisagem/natureza. Este diálogo histórico é necessário, porque o processo de desvincular a natureza da história ajudou a mistificar as histórias coloniais de migração forçada, sofrimento e violência humana. Como é amplamente documentado nas criações literárias, a natureza participa neste processo histórico em vez de simplesmente ser um circunstante/espectador, e muitos escritores nos fazem lembrar que o tempo acumula (e não passa) através de uma biota relacional, cujos elementos integrantes se constituem por um valor interior (e não um atribuído exteriormente). O passado continua existindo no presente não porque é posto no papel − isto significaria sua ausência na presença das letras −, mas por ser inscrito nas mentes e nos corpos dos diversos elementos da biota. Neste sentido, deveria se focalizar o que Edward Soja (1989, p. 7) chama a “geografia afetiva”, ou seja, “a concretização das relações sociais embutidas na espacialidade”, com o objetivo de problematizar as geografias injustas: como a natureza e a cultura em suas relações complexamente entrelaçadas são embutidas em desenvolvimentos geograficamente desiguais. A geografia (paisagem, natureza, lugar, espaço, terra), portanto, tem que ser reconceituada como socialmente produzida

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mediante relações de dependência e domínio (relações de poder); relações estabelecidas de maneira social e hierárquica entre o aqui e o lá, o local e o global.

São os processos de memorização e rememorização, tanto individuais e coletivas, que tecem as histórias enquanto espaço (diaspórico) que liga os lugares. Neste processo, deveria se analisar a relação entre a episteme cultural (ethos e cosmovisão) e sua determinação pela rede de múltiplas relações, práticas e formas de poder existentes nos lugares e espaços nos quais a trama se desenvolve. O meio ambiente não é mais limitado ao palco sobre o qual a trama se desenvolve; tampouco as atitudes do autor e dos personagens sobre o meio ambiente são limitadas ao desenvolvimento narrativo, mas são vistas como característica fundamental do horizonte ideológico da obra literária. “As paisagens”, alega Simon Schama, em Landscape and Memory (1996, p. 9), “que supomos livres de nossa cultura podem tornar-se, depois de um processo analítico [...] seu produto”.3 A opinião que a cultura enquanto produto humano deve ser separada da natureza evita o fato que a cultura humana reside no mundo natural e que a nossa existência depende dos processos deste. Somos, portanto ligados à Terra e às outras formas de vida na Terra. Tratar estas outras formas sem respeito resulta na não compreensão desta relação. Seguindo Walter Benjamin (1992), que define a alegoria barroca em termos de uma relação dialética em que uma linha, em vez de ser paralela é o traço de outra, considero a relação entre a história/experiência humana e a natureza um dos melhores exemplos desta dialética alegórica, ou seja, a natureza como registro da história/experiência/decadência humana.

Fredric Jameson (1992, p. 64), com base no argumento de Northrop Frye de que a literatura é uma forma mais fraca do mito ou estágio posterior do ritual, alegou que “toda literatura deve ser permeada por aquilo a que chamamos de inconsciente político, que toda literatura tem que ser lida como uma meditação simbólica sobre o

3 As traduções neste ensaio são de minha autoria.

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destino da comunidade”. Neste sentido, junto com este inconsciente político, cuja base é radicada nas relações humanas caracterizadas por domínio, subalternização e resistência, alego que existe um inconsciente ecológico que imbui a relação entre seres humanos e seu ambiente. Se, para Jameson, o inconsciente político é ausente e ao mesmo tempo presente porque desejada revolução cultural que transformaria a hegemonia injusta do sistema político em democracia justa, defino o inconsciente ecológico como ausente e, ao mesmo tempo, presente, porque desejada revolução ecológica que constituiria uma mudança de visão em relação à biota.

Uma mudança de visão e das nossas atitudes em relação ao mundo vegetal e animal − uma ética biótica − é necessariamente baseada numa mudança de imaginação cultural,4 “um compromisso reabitador”, escreve Lawrence Buell (2001, p. 170), que “implica a extensão de uma posição moral e, de vez em quando, até mesmo legal ao mundo não humano”. Esta mudança de visão, cujo objetivo é uma mudança de se relacionar e viver, portanto, segundo o poeta, romancista e filosófo martiniquenho Édouard Glissant, implica em substituir a episteme corrosiva e destrutiva do “humanismo (a noção do ser humano privilegiado)” (GLISSANT, 1992, p.74) com uma “consciência planetária” igualitária (GLISSANT, 1997a, p.164), que inclui “a linguagem da paisagem” (GLISSANT, 1992, p. 146).

No Brasil − como em todo o continente americano − a brutalização das pessoas é ligada à brutalização do espaço e estas brutalizações são enraizadas no passado: o genocídio de tribos indígenas, a escravidão e o sistema de plantação e as várias formas de exploração da natureza, entre outros, caracterizaram as diferentes fases e processos de colonização e ainda continuam a ter um impacto sobre o pensamento e o agir das pessoas, não somente em termos de como as pessoas se relacionam e tratam os diversos outros (penso, por exemplo, no racismo e no sexismo em suas formas tanto ideológicas quanto instintuais), mas de

4 Especialmente dos sistemas internalizados, conjuntos de disposições que geram práticas específicas, o que Pierre Bourdieu (1977), no processo da analisar o habitus, chamou de “inconsciente cultural”.

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como as imagens destes eventos traumáticos perseguem estes pensamentos e agenciamentos. A representação do espaço5 é simbolizada por uma natureza nutrida pelos corpos violados da história colonial, um engajamento literal com o que o poeta caribenho Wilson Harris (1981, p. 90) chama “o fóssil vivo de culturas enterradas”. Alego como hipótese que esta dupla brutalização dos seres humanos e da geografia (terra, paisagem, natureza, espaço, lugar) é interligada e constitui, de diversas maneiras, o inconsciente sociocultural e ecológico da experiência brasileira, em particular, e pan-americana, em geral − o fantasma deste holocausto recalcado que volta em resposta a uma Verleugnung, fazendo sentir sua presença tanto no nível da enunciação quanto no da experiência vivida.

“A cultura” como “forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo”, argumenta Milton Santos (2007, p. 81-82), “é uma herança, mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio, um resultado obtido por intermédio do próprio processo de viver”. Em cada cultura, a geografia (paisagem/lugar/espaço/natureza/terra) tem um papel fundamental na constituição do imaginário cultural e um povo: ela é tanto natural quanto cultural; uma entidade material e uma idéia/visão mítica que participa na definição identitária. Édouard Glissant (1992, p. 105), entre outros, argumenta que na escritura pan-americana, a geografia não é somente um elemento “decorativo com uma função de apoio”, mas “emerge como plena personagem”. Ela surge enquanto espaço mnemônico de sensações e visões enraizadas em histórias individuais e coletivas, espaço este que situa o indivíduo dentro de uma comunidade num processo histórico. Nas Américas, segundo Glissant (1992, p. 61-62), este processo histórico não tem sido linear desde os tempos da colonização. A história dos afrodescendentes caribenhos, por exemplo, é uma “não-história” esquizofrênica caracterizada por

5 Espaço nacional que, segundo o critico Antonio Cornejo Polar (2000, p. 147), é caracterizado por “heterogeneidade conflituosa”, como resultado da colonização imperialista. Para ele, as nações latino-americanas são “traumaticamente desmembradas e cindidas”.

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[...] rupturas [...] que começaram com um deslocamento brutal, a escravatura. A nossa consciência de história não podia ser depositada contínua e gradualmente como sedimento [...], mas se formou no contexto de choque, contradição, negação dolorosa e forças explosivas. Este deslocamento do continuum e a incapacidade da consciência coletiva de absorver tudo isso caracteriza o que chamo uma não-história.

Ao falar da perspectiva afrodescendente, Glissant conota o cerne do problema identitário que diz respeito, também, a outros grupos étnicos pan-americanos: a relação com a origem, num espaço onde diversos efeitos da colonialidade continuam a ter um efeito sobre as relações intersubjetivas. Ter uma identidade significa ter uma história inscrita numa terra. Ter uma história imposta contra a vontade, sem poder inscrevê-la na terra enquanto seu dono, como no caso dos afrodescendentes pan-americanos, significa ter uma não-identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada durante um processo colonial, como no caso das primeiras nações indígenas pan-americanas, significa ter uma não-identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada durante um processo colonial, como no caso dos colonizadores e seus descendentes, significa ter uma não-identidade nutrida pelo remorso recalcado. Refletida nestas não-identidades − identidades fragmentadas e/ou alienadas por condições de violência − é a importância da geografia e da memória, enquanto elementos para se colocar como sujeito. Sem lugar, a consciência e subjetividade do ser humano são inconcebíveis. Este lugar pode ser de natureza geográfica e/ou linguística, religiosa, cultural − um lugar epistêmico. Para povos colonizados e grupos marginalizados, o processo da descolonização e desmarginalização significa que o lugar unheimlich − o lugar (e a correspondente episteme cultural) da subalternização − tem que ser transformado num lugar heimlich; um lugar-lar, onde a equação mundo/imagem do self (rompida e distorcida

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pelo processo colonizador) é reestruturada com base no próprio ethos e cosmovisão. O lugar-lar e sua construção na língua, portanto, é um dos meios pós-coloniais cruciais para lembrar (e assim juntar) os fragmentos de uma cultura/história/identidade estilhaçada e parcialmente perdida nos traços nômades entre mares e (não-)lugares, bem como entre os muitos ditos e não ditos de diversos discursos.

Repetindo brevemente o cerne do problema para elaborá-lo em seguida: como crítica ao império da história e cultura europeias e, por extensão, do Ocidente, a teoria pós-colonial revela e problematiza: a) a durabilidade do poder colonial desde o passado ao presente; b) como surgem, neste processo, novas formas e praticas de domínio e subalternização. Com o enfoque nas relações de poder, nas posições do sujeito (agenciamento), nas diásporas e nos deslocamentos criados por meio do colonialismo/imperialismo/globalização, a teoria pós-colonial na área da crítica literária negligenciou questões com respeito à interface cultura/natureza.

A ecocrítica, dentro dos estudos literários, tem se desenvolvido em três direções fundamentais: a) no sentido de uma metodologia sociológica interdisciplinar que examina a relação entre personagens e a natureza, enfocando a consciência ecológica destes com relação a questões ecológicas locais e globais; b) no sentido de uma metodologia cultural-antropológica interdisciplinar que problematiza a alienação e reificação do ser humano enquanto resultado da dominação da natureza, dentro do projeto civilizatório moderno; c) no sentido de uma metodologia ética interdisciplinar, cujo objetivo é a revisão do sistema de valores culturais antropocêntricos como base de uma coexistência planetária inter-relacionada. O que liga estas três abordagens é a compreensão da natureza enquanto entidade físico-material e como entidade social ativamente envolvida na dinâmica das construções culturais.

É preciso aprofundar o diálogo entre os estudos

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pós-coloniais e ecológicos já que a separação entre a história do império e os pensamentos ecológicos contribui para a constituição de um discurso que ofusca um dos pilares básicos do colonialismo, a saber: a exploração da natureza. A estreita ligação entre a geografia (paisagem/lugar/espaço/natureza/terra) e a episteme cultural, por um lado, e a contínua destruição da natureza em nome do progresso econômico e de um consumo desenfreado, por outro, fazem necessário o estudo dos textos literários sob o enfoque de uma teoria que liga questões pós-coloniais e ecológicas. Neste sentido, uma análise baseada no eixo político-cultural-ecológico deveria examinar a atitude (des)colonizadora de um texto nas suas formas, estruturas, discursos e temas narrativos. Isso implica a problematização das relações de poder que determinam a posição e o agir do sujeito dentro de uma sociedade. Neste processo, a interrogação ecocrítica do antropocentrismo e o enfoque sociocultural do pós-colonialismo são interdependentes, já que estes assuntos afetam as diversas espécies e esferas da biota. Uma análise pós-colonial ecologista deveria elevar ao primeiro plano os modos como a narrativa, no seu nível discursivo e temático, traduz (e assim produz) alteridade e diferença cultural.6 Em outras palavras, deve-se problematizar o que o filósofo Deane Curtin chama de “racismo ambiental”, isto é, “a conexão, em teoria e prática, entre raça e ambiente de forma que a opressão de um é ligada e sustenta a opressão de outro” (2005, p. 145). O racismo ambiental é um fenômeno sociológico exemplificado no tratamento ecologicamente discriminatório de povos socialmente marginalizados ou economicamente discriminados. É uma forma extrema do que Val Plumwood (2001, p. 4) chama de “centrismo hegemônico”: a perspectiva autoprivilegiadora como base do racismo, sexismo, colonialismo e imperialismo; formas de domínio entrelaçadas que tenham sido convocadas historicamente com o objetivo de explorar a natureza e ao mesmo tempo minimizar pretensões não humanas a uma natureza compartilhada. Neste processo, não se deve

6 O cerne deste enfoque é a questão da ideologia: a organização de práticas significantes materiais que constituem subjetividades – entendidas como posições de inteligibilidade, ou seja, os modos de saber necessários pela reprodução de disposições/ordens sociais existentes (por exemplo, a divisão patriarcal do real em termos de gênero; os modos de produção/consumo em termos de capitalismo; a necessidade/ justificação de processos colonizadores) – e produzem as relações vividas mediante as quais os indivíduos são ligados – de maneira hegemônica ou contra-hegemônica – às relações de produção e distribuição de poder dominantes (e às relações de exploração daí resultantes), numa formação social específica num dado momento histórico.

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esquecer, como Plumwood (2003, p. 53) assinala, que a definição ocidental da humanidade sempre dependeu e continua a depender da presença do não humano como incivilizado e animalesco. A justificação de processos de invasão, colonização e dominação procedeu desta base antropomórfica e racista que nega e cancela o self independente da natureza. A noção da diferença cultural como processo transcultural de compartilhamento implica na confluência de diferenças sem a sublimação dos seus diversos elementos num todo coerente: um reconhecimento da sobreposição e/ou justaposição dos diversos outros constituindo o self. Neste sentido, num contexto pós-colonial, a identidade e a cultura envolvem diferenças mutuamente refratadas e muitas vezes deslocadas, na dança esquizofrênica da cultura e do imperialismo. Gostaria de afirmar que isto é a base a partir da qual se deve pensar a alteridade/diferença cultural entre o local e o global, num contexto pós-colonial.

Como pensar ecologicamente, em tempos de fluxos diaspóricos que fazem com que os limites entre o local e o global, por um lado, e o pós-colonial e neocolonial, por outro, se tornem tênues? Como conceber uma cidadania ambiental no hífen do transnacional? Lawrence Buell (2007, p. 227) alega que “pensar ecologicamente requer pensar contra ou além da nação e da nacionalidade”. Para ele “o ecoglobalismo” é “uma maneira de pensar e sentir com respeito à ambientalidade que abrange toda a terra”. Neste sentido, a ecocrítica não tem somente o mandato, mas também a capacidade de examinar e compreender construções humanas transnacionais/diaspóricas de lar e lugar, já que, em geral, questões ecológicas são relacionadas às questões políticas, econômicas, sociais e culturais. Segundo Pablo Mukherjee (2010, p. 144):

[...] qualquer campo teorizando as condições globais do colonialismo e imperialismo (os estudos pós-coloniais) deve considerar as inter-relações complexas de categorias ambientais como, por exemplo, a água, a terra, a energia, o

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habitat e a migração com categorias políticas ou culturais como, por exemplo, o Estado, a sociedade, a literatura, o teatro, as artes visuais. Igualmente, qualquer campo dando importância interpretativa à natureza (os estudos ecológicos/ambientais) deve ser capaz de traçar as coordenadas sociais, históricas e materiais de categorias como a floresta, o rio, as regiões e espécies.

Em seguida, gostaria de focalizar brevemente a questão da nação brasileira e sua identidade coletiva, para, depois, poder melhor examinar a relação entre a geografia e a episteme cultural, na literatura brasileira contemporânea.

Enquanto David J. Hess (1995) e Roberto DaMatta (1991) destacaram que a cultura e identidade brasileira constituem uma “charada” e um “dilema”, Darcy Ribeiro (1995a, p. 22) delineia o Brasil como “uma etnia nacional, um povo-nação [...] um só povo incorporado em uma nação unificada, num Estado uni-étnico”7. Segundo Ribeiro, há que se considerar o Brasil − não obstante a sua estratificação étnica e cultural e suas diferenças regionais e a “estratificação classista de nítido colorido racial”, que como vestígio da escravidão constitui o antagonismo abismal entre uma minoria dominante e a massa subalterna − como uma “unidade nacional” caracterizada por uma “uniformidade cultural” (RIBEIRO, 1995a, p. 21-24). Concluindo, ele diz: “somos um povo em ser, impedido de sê-lo” (RIBEIRO, 1995a, p. 447). Ribeiro imagina o Brasil como uma nação cuja episteme cultural − ethos, cosmovisão e locução − é baseada na ideologia de mestiçagem: um processo transcultural de “desfazimento, refazimento e multiplicação [...] desindianizando o índio, desafricanizando o negro, deseuropeizando o europeu” que produziu “um povo síntese [...] uma civilização nova” (RIBEIRO,1995b, p. 13). Contrário a Gilberto Freyre, cuja ideologia do sincretismo da diversidade cultural derrete a diversidade cultural num todo harmonioso sem conflitos e antagonismos, Ribeiro situa (e desconstrói)

7 Esta unidade não abrange e não é afetada pelo que Ribeiro chama de muitas “microetnias tribais”.

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esta ideologia no seu contexto histórico, sociocultural e socioeconômico específico. Alego que Ribeiro, na sua obra científica e criativa, focaliza as fissuras desta diversidade transculturada, problematizando um espaço e povo-nação fronteiriço como efeito (histórico) de um conflito internacional que opõe o Brasil ao mundo industrializado dentro de uma estrutura (neo)colonial de dominação e subordinação8. No entanto, enquanto Ribeiro enfatiza o que Renato Rosaldo (1993, p. 28, 207-215) chamou de “cultural borderlands” (zonas culturais fronteiriças) − processos de transformação e inconsistências, conflitos e contradições internas; zonas de diferença dentre e entre culturas − ele continuamente realça os “cultural patterns” (padrões culturais) − um povo-nação homogêneo − como na seguinte passagem:

O surgimento de uma etnia brasileira, inclusiva, que possa envolver e acolher a gente variada que aqui se juntou, passa tanto pela anulação das identificações étnicas de índios, africanos e europeus, como pela indiferenciação entre as várias formas de mestiçagem, como os mulatos (negros com brancos), caboclos (brancos com índios), ou curibocas (negros com índios). Só por esse caminho, todos eles chegam a ser uma gente só, que se reconhece como igual em alguma coisa tão substancial que anula suas diferenças. [...] Dentro do novo agrupamento, cada membro, como pessoa, permanece inconfundível, mas passa a incluir sua pertença a certa identidade coletiva (RIBEIRO, 1995a, p. 133).

O que se infere deste tipo de oscilação, um argumento que reconhece a “uniformização dos brasileiros no plano cultural, sem, contudo, borrar suas diferenças” (RIBEIRO, 1995a, p. 21)9, é que Ribeiro pratica uma dupla codificação, uma leitura mediante a continuidade e a ruptura, a síntese e a simbiose, um dialogismo transcultural que cria pontes de ligação entre os padrões culturais sincrônicos e as zonas culturais fronteiriças com sua não-sincronia polirrítmica que informa a sociedade brasileira pós-colonial.

8 Em Maíra (1976) e Utopia selvagem (1982), Ribeiro traduz esta visão fronteiriça da realidade brasileira pela transcendência da divisão entre o discurso literário, etnográfico e histórico. A mistura destes discursos (e genres) questiona tanto a verdade única estabelecida como o tratamento do Outro − a dicotomia entre cultura e natureza − pelos discursos da ciência moderna e implica uma busca por alternativas no nível metadiscursivo.

9 Embora esta uniformização forçosamente traga no seu bojo a homogeneização de diferenças culturais/étnico-raciais, relegando-as ao subtexto do texto nacional.

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Para poder melhor entender a ligação entre a heterogeneidade e a homogeneidade cultural, este “entre-lugar” cultural do Brasil e da brasilidade, é necessário examinar quem imagina/inventa a nação, de que posição e ponto de vista e com que objetivo. Como se explica o fato de que a maioria dos brasileiros nega sua herança negra e/ou indígena? Como podemos definir uma nação que é paradoxalmente caracterizada por (e imaginada como) um crisol, uma unidade em diferença − ou seja, por uma interação multicultural e uma autodefinição que percebe e aceita a diferença cultural como uma parte integral da sua estrutura social, ethos e cosmovisão − e por uma diferença como separação em que questões de gênero, raça, etnicidade e classe se entrelaçam e se chocam como resultado do passado colonial; uma nação na qual o deslize entre inclusão e exclusão define o entre-lugar dos afro-brasileiros e indígenas, entre outros grupos étnicos, como nacionais e não-nacionais − um lugar ambivalente onde aparecem e desaparecem? Quais os efeitos deste passado e sua representação na literatura brasileira? Em seguida, rapsódias da literatura brasileira multiétnica darão respostas parciais a esta pergunta.

A atual poesia afrodescendente enfoca as diversas formas e práticas de violência que ligam a escravidão de ontem − a dor e vergonha que trazem “a marca das chibatas” (OLIVEIRA, 1986, p. 46) no corpo e na alma − com o que Henrique Cunha Jr. (1993, p. 159) chama de “opressão intelectual” e Cuti (1986, p. 92), as “veias trituradas nas indústrias” do presente, e como estas afetam a subjetividade e identidade do afrodescendente brasileiro. Ela denuncia a perpetuação desta violência pelas barreiras de um racismo institucionalizado e pela internalização dos valores brancos por parte dos afrodescendentes: entre outros, o padrão de beleza, processos mitopoéticos, esquemas classificadores e uma educação excludente que leva a falsa ideia de “que os livros não fazem bem para a cabeça” (RIBEIRO, 2005, p. 55). Esta internalização de valores leva à “quebra da nossa identidade negra” (CUTI,

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1996, p. 42), ou, segundo, Esmeralda Ribeiro (1994, p. 27), ao “olhar negro/ perdido no azul do tempo”. A busca deste olhar negro enquanto reconstrução identitária própria, implica “redesenhar/ a Nação” (RIBEIRO, 1994, p. 21) e “retomar toda história/ de todos os fatos/ contar todas as verdades/ para todas as idades/ do teu mito que/ para sempre se refaz em/ liberdade, liberdade, liberdade” (DA SILVA, 1988, p. 150). O ato de revisar e retificar a história narrada pelos outros, ato este que implica a recriação da episteme cultural afro-brasileira com base na própria mitopoética, se faz necessário por causa do falso mito de uma mestiçagem “democrática” que trouxe “benefícios” para “todos” e em nome do qual fatos e eventos históricos foram e continuam sendo distorcidos e/ou esquecidos. Na escola, como narra a protagonista do conto “Metamorfose”, de Geni Guimarães (2001, p. 62), o passado do Brasil negro difere daquele transmitido pela memória oficial: “Vi que a narrativa da professora, não batia com a que nos fizera a Vó Rosária. Aqueles escravos da Vó Rosária eram bons, simples, humanos, religiosos. Esses apresentados então eram bobos, covardes, imbecis. Não reagiam aos castigos, não se defendiam, ao menos”. Ao ver o povo negro refletido unicamente enquanto vítima e não como agente no espelho rachado da história brasileira, ela sente “vergonha” (2001, p. 63-64), e, esfregando pó no seu corpo, tenta “tirar todo o negro da pele” (2001, p. 66). Esta contínua colonização da psique negra gera um círculo vicioso de várias formas e práticas de violência, prorrogando o entre-lugar epistêmico do afrodescendente. Muitas vezes, nas tentativas de atravessar este lugar da esquizofrenia racial, o afro-brasileiro se sente, nas palavras da narradora, em Um defeito de cor (GONÇALVES, 2007, p. 61), “um navio perdido no mar”; navio este cuja tripulação não consegue ver suas caras invisíveis nas brumas da não-história.

Em “América Negra”, o poeta e capoeirista afro-brasileiro Élio Ferreira (2004, p. 51) declara que nas “Américas, / o que passou, não passou [...]”, mas acumula

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em pobreza, miséria, crise identitária (branqueamento) e violência social. Sentindo-se exilado no seu próprio país − “estrangeiro em terras inimigas” − a voz poética exige “Brasil,/ arranca essa máscara branca da sua cara” (2004, p. 52) e pergunta: “quando você me pagará seus débitos?” (2004, p. 53). Pergunta-chave, a meu ver, porque o passado lança uma sombra gigantesca sobre o presente: o acúmulo de riquezas, por um lado, e o acúmulo de pobreza, por outro; acúmulo este que constitui uma das bases principais da violência, da má distribuição da terra e do baixo nível de educação que dilaceram o país. Um país que, depois de se enganar com o mito da democracia racial, continua “emparedado”, no sentido de João de Cruz e Souza (1986, p. 28), dentro de sonhos, muros e “brumas ensangüentadas de nossos pesadelos” (CUTI, 2004, p. 25). Uma nação − “recortada por veias negras/ abertas” (CUTI, 1988, p. 48) − que se denomina multicultural, mas é incapaz de traduzir o princípio de igualdade e justiça para a estrutura social e a conduta do seu povo. Segundo Jamu Minka (2004, p. 84), “só em infinitas prestações/ cidadania para o Brasil pele escura”. Em “Torpedo”, Cuti (2008, p. 124) pergunta: “irmão, quantos minutos por dia/ a tua identidade negra toma sol/ nesta prisão de segurança máxima?/ e o racismo em lata/ quantas vezes por dia é servido a ela/ como hóstia?”. A não-cidadania afrodescendente na sociedade brasileira fronteiriza a homogeneidade nacional: “Orgulho de ser brasileiro?/ quero fogo nesse outdoor” (MINKA, 2006, p. 139). Que país é este que se autodenomina multicultural, mas onde “Ainda o mesmo navio negreiro,/ Chegar e partir” (SOBRAL, 2008, p. 122)? No conto “Civilização”, Oswaldo de Camargo (2008, p. 232) resume o efeito da colonialidade nos dias de hoje: “Um odor áspero, de colônia, me envolve, como nuvens de Civilização”. Mesmo se “audimos um passado ainda vivo” (PEREIRA, 2002, p. 72), é graças à criação literária afro-brasileira que se ouve o batuque “de ódio e de amor” desta memória. Para Carlos de Assumpção (2008, p. 117), este batuque

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entoa a possibilidade de uma utopia multiétnica: “Batuque batuque bate/ Tambor que bate/ O toque de reunir/ Todos os irmãos/ De todas as cores/ Num quilombo”.

O ato de dar vozes pessoais e raízes históricas à dor, ao sofrimento e ao remorso causados por diversas formas e práticas de violência, − “o valor e a importância da raiva” (GRAÚNA, 2007) − bem como o ato de lembrar e problematizar a experiência de subalternização enquanto efeito (pós-/neo)colonial – porque e como as coisas aconteceram? − abre a possibilidade de evitá-las no futuro; ou seja, nas palavras da narradora, no romance Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo (2003, p. 130): “enquanto o sofrimento estivesse vivo na memória de todos, quem sabe não procurariam, nem que fosse pela força do desejo, a criação de um outro destino”. Gostaria de alegar que esta participação da violência e das suas consequências no ato da reflexão, conscientização e humanização das vítimas demonstra a capacidade da imaginação humana de construir liberdade a partir do espaço da não-liberdade. Neste sentido, a literatura afro-brasileira contemporânea trabalha o trauma do passado para transformá-lo em memória coletiva consciente, capaz de construir um caminho que leve a um Dasein, em que o autodesprezo é substituído por auto-estima. A cura deste trabalho de resistência reside no uso criativo e transformativo da violência, ou nas palavras da escritora indígena Graça Graúna (2006, p. 120): “dançamos a dor/ tecemos o encanto/ de índios e negros/ da nossa gente”.

Dançar a dor significa perlaborá-la buscando a transformação de um trauma inconsciente para uma memória consciente sedimentada como consciência coletiva da episteme cultural.10 Na poesia de Graça Graúna (1999, p. 51), as sombras da colonialidade se refletem na “plastifica[ção] [d]o verde” pelos invasores cuja ganância “paviment[ou] o destino” dos primeiros habitantes destas terras. No poema “O Guarani” (2009), em homenagem à Sepé Tiaraju, Graúna aponta para um dos problemas desta nação, a saber: a questão da terra que, desde o

10 O processo da perlaboração do trauma é descrito no ensaio Mourning and Melancholy, de Sigmund Freud.

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passado, continua sem solução satisfatória para muitos brasileiros, mas principalmente para os indígenas: “Da real história poucos sabem/ o que se deu no século dezoito/ Sepé Tiaraju morto em combate/ em nome da cultura do seu povo./ Junto a mil e quinhentos guaranis/ afirmando que “esta terra já tem dono”./ Na luta contra o mal ele morreu”. Em “Canción peregrina” (GRAÚNA, 2009, p. 27), portanto, a voz poética enfatiza o entre-lugar dos ameríndios nos países latino-americanos: “Yo canto el dolor/ desde el exílio”. A dor, “de não conhecer mais de perto/ o que ainda resta/ do cheiro da mata/ da água/ do fogo/ da terra e do ar” (GRAÚNA, 2012, p. 58). Deste não-lugar a voz poética se delineia como “fragmento [...] da fúria no choque cultural” (GRAÚNA, 2012, p. 58) “gritando la angústia acumulada” (GRAÚNA, 2009, p. 28).

Enquanto alguns gritam as angústias da colonialidade, na vivência contemporânea, outros, como os personagens nos romances de Antonio Torres, são sufocados por estas. Totonhim, em O Cachorro e o Lobo (1997, p. 185), resume esta angústia acumulada assim: “A gente está sempre indo e vindo. Essa é a nossa sina. O destino dessa terra. Ir e vir. Vir e voltar”. Isto é, a relação (pós-/neo)colonial entre o Sul e o Nordeste faz com que nos romances de Torres esta angústia se traduza em uma contínua migração dos personagens entre estas regiões da nação − um deslocamento que resulta no emudecimento, loucura e/ou suicídio de muitas personagens.

Gritos e silêncio: as duas maneiras que articulam e problematizam não somente os efeitos da colonialidade na contemporaneidade pós-colonial. Implícito também se encontra uma questão-chave que remete ao termo ‘pós-colonial’: o Brasil pode ser chamado uma nação pós-colonial’, se continua ser caracterizado por relações coloniais entre grupos étnicos e regiões? Um país fissurado, segundo Roberto Schwarz (1992, p. 22), por “deslocamentos” e “impropriedades”, ou seja, a “utilização imprópria” das idéias filosóficas, culturais

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e raciais que originaram na Europa. Uma das mais interessantes traduções literárias destas ideias fora do lugar (brilhantemente trabalhado na encruzilhada do local e do global por Schwarz) e seus efeitos para o povo brasileiro no processo histórico é, a meu ver, Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Mais do que O Feitiço da Ilha do Pavão, uma paródia pós-moderna de um momento específico da história colonial brasileira, Viva... revela as origens da estratificação social e racial no sistema colonial da escravidão/plantação. Ao revelar e desconstruir a política e o discurso maniqueísta da classe dominante, baseada na divisão implacável em dicotomias nas quais o signo primário é axiomaticamente privilegiado − branco/negro, mulato/negro, bem/mal, letrado/iletrado, europeu/brasileiro, cultura/natureza, centro/margem, entre outras − por intermédio da incorporação da fala popular e da cosmogonia e cosmologia afro-brasileira do candomblé, Ribeiro ressuscita um sistema de crença cultural ignorado e/ou distorcido e, neste processo, representa práticas etnoculturais comuns como alter-realidade e alter-ethos de uma comunidade imaginada de maneira homogênea pela historiografia oficial. Esta heterogeneização de uma falsa homogeneidade cultural cuja ideologia obscurece as raízes, formas e práticas de dominação, exploração e subalternização, solapa o silêncio brutalmente imposto nos afrodescendentes pela escravocracia. Neste sentido, alego que, no romance, o silêncio do escravo sem língua, os gritos abafados dos afrodescendentes escravizados e as histórias contadas e traduzidas pela memória oral tanto por Dadinha quanto por Patrício nos fazem entender que existem várias formas de ver, estar e relacionar-se no mundo. Em outras palavras, Ribeiro (1984, p. 673) explode o silêncio imposto aos subalternos − as formas e práticas de outrização que impede a livre (re)criação identitária − com os gritos e as falas de um povo “erradio mas cheio de esperança”; um povo em busca de um consenso nacional baseado numa episteme multicultural

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caracterizada por diferenças que se unem de maneira harmoniosa sem perderem suas particularidades.11

Além desta memória coletiva e social, como diria Maurice Halbwachs, que imbui a tessitura dos textos literários e trabalha a ligação entre a episteme cultural e a geografia, a literatura brasileira revela uma memória interbiótica que evoca os efeitos coloniais na contemporaneidade pós-colonial, tanto em termos específicos ligados à nação brasileira quanto em termos humanos universais. Em seguida, elaborarei esta questão em dois romances de Clarice Lispector e Benedicto Monteiro e na poesia de Manoel de Barros.

A poética desconstrutiva de Clarice Lispector, em Água Viva, problematiza o sujeito autônomo, a representação do real por meio da linguagem escrita e o processo da narração, a história como contínuo linear e as questões implícitas de origem e verdade. Ela escreve no limiar, uma zona de contato textual e existencial na qual a representação e a transgressão, objetividade e subjetividade se encontram e entrelaçam, no limite que separa “o intangível do real” e “o figurativo do inominável” (LISPECTOR, 1994, p. 17, 86) e, ao mesmo tempo, os une; na qual o eu é pluralizado em fragmentos de representações discursivas mediante o que Cixous (1994, p. 136) chamou de “um processo continuo de de-selfing [...] de-egoization”; na qual os limites entre o humano, o animal, o mineral e o vegetal são permeáveis dentro de um processo narrativo não de descrição mas de devenir perfomático: um fluxo de significação que transcende seus limites semióticos fechados em direção ao espaço heteróclito e heterotópico de ambiguidade, ambivalência e correspondência contraditória, abrindo espaços de possibilidades alternativas, de transformação. Neste processo, o ato de escrever constitui e abre um entre-lugar que problematiza e explode o pensamento cartesiano com o objetivo de transcendê-lo em direção ao ‘it’: a encruzilhada onde a racionalidade e a espiritualidade, a razão e a emoção se encontram numa dança que libera os

11 No pensar de Édouard Glissant (1992, 1997, 2005, 2006, 2009), poder-se-ia dizer que Ribeiro rompe o pensamento sistêmico (de raiz) − a diferença cultural como separação/exclusão − suplementando-o por um pensamento rizomático caracterizado pelo relacionamento das diversidades.

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impulsos do inconsciente na consciência e, neste processo, criam um espaço intersticial de liberdade discursivo e existencial. Vejamos, por exemplo, os seguintes trechos:

“O que te falo nunca é o que eu te falo e sim outra coisa, [...]. Entro lentamente na escrita [...]. É um mundo emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras − limiar de entrada de ancestral caverna que é o útero do mundo e dele vou nascer. [...] Vejo aranhas penugentas e negras. Ratos e ratazanas [...]. Entre as pedras o escorpião. Caranguejos [...]. Baratas velhas [...]. E tudo isso sou eu (LISPECTOR, 1994, p. 18-19).

Meu estado é o de jardim com água correndo. [...] Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca (LISPECTOR, 1994, p. 21-22).

E eu inteiro rolo e à medida que rolo no chão vou me acrescentando em folhas [...] (LISPECTOR, 1994, p. 26).

Improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria [...] uma orgíaca beleza confusa (LISPECTOR, 1994, p.27).

[...] sou orgânica. [...] Mergulho na quase dor de uma intensa alegria − e para me enfeitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens. [...] Quero a profunda desordem orgânica que no entanto dá a pressentir uma ordem subjacente (LISPECTOR, 1994, p. 28, 31).

Não humanizo bicho porque é ofensa − há que respeitar-lhe a natureza − eu é que me animalizo (LISPECTOR, 1994, p. 54).

[...], eu, inscrição aberta no dorso de uma pedra, dentro dos largos espaços cronológicos legados pelo homem da pré-história (LISPECTOR, 1994, p. 80).

Esta “desarticulação” (LISPECTOR, 1994, p. 88) da ordem para a sua implícita desordem, que performa a sinfonia atonal e heterotópica das coisas, é evocada por uma memória interbiótica que descoloniza o nosso antropomorfismo e o reterritorializa num presente articulado para futuras ações imaginadas. A narradora de Água Viva evoca este tipo de memória para liberar a temporalidade e espacialidade sincrônica do pensamento racional para seus inerentes elementos não sincrônicos,

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processo este que, segundo o filósofo Ernst Bloch (1973, p. 126), é caracterizado por uma “mehrstimmige [...] und mehrräumige Dialektik”, ou seja, uma dialética polifônica e poliespacial. O que, para Bloch (1985, p. 131-132, 161-166), constitui o princípio da esperança, é um processo que une o que ele chama de “Noch-Nicht-Bewuβte”, o ainda-não-consciente e o “Nicht-Mehr-Bewuβte”, o já-não-mais-consciente, numa imaginação direcionada para o futuro com a função utópica de criar um mundo melhor baseado na realidade do presente − esta utopia concreta que “ein Real-Mögliches psychisch vorausnimmt”, psiquicamente antecipa um real-possível em oposição à utopia abstrata que “in einem Leer-Möglichen herumspielt und abirrt”, brinca e se perde num vazio-possível. Em Lispector, argumento, uma memória interbiótica traduz este princípio da esperança para outra realidade e maneira de ser e se relacionar com a diferença cultural/biótica ao desarticular o mesmo (racional) para seus outros imaginados. Liberdade, para Lispector, surge no espaço intervalar, em que pensamento e sentimento se entrelaçam, em que, segundo Manoel de Barros (2010a, p. 41), a palavra não significa mais, mas entoa.

“[...] eu queria ser chão [...] para que em mim as árvores crescessem. Para que sobre mim as conchas se formassem [...] para que sobre mim os rios corressem”. É assim que Manoel de Barros (2010b, p. 89) evoca a sua ligação com a natureza, ou melhor, a sua convicção de as pessoas e a terra serem enredadas num ser unificado e mutuamente recíproco. A poesia de Barros desconstrói a pretensão à verdade única do saber racional e da atitude antropomórfica do ser humano ao ressaltar que o ser e a história da terra são inseparáveis do ser e da história das pessoas e vice-versa. Uma das questões-chave que ela levanta e responde em múltiplas facetas é: de onde vem a palavra ‘humano’? Da palavra-raiz ‘humus’. Isto significa que a palavra ‘humano’ carrega literalmente dentro de si o húmus de onde surgimos e voltamos. O compromisso reabitador de Barros, ainda mais radicalmente do que

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em Lispector, faz com que a linguagem seja um meio e um espaço descolonizadores − “palavras que fossem de fontes e não de tanques” (BARROS, 2010b, p. 97) − com o objetivo de nos conscientizar que fazemos parte da natureza. Esta atitude descolonizadora é necessariamente baseada numa recriação de pensar e se articular: “Conforme a gente recebesse formatos da natureza, as palavras incorporavam as formas da natureza. [...] Se a brisa da manhã despetalasse em nós o amanhecer, as palavras amanheciam” (BARROS, 2010b, p. 145). Em Barros, portanto, a palavra entoa uma utopia concreta, como diria Ernst Bloch, por meio de uma memória interbiótica que nos incita a rememorizar e agir segundo uma ordem pós-racional caracterizada por uma relação igualitária entre seres humanos e não humanos.

Em A Terceira Margem, o autor brasileiro Benedicto Monteiro recria este tipo de memória interbiótica por meio da voz do caboclo Miguel dos Santos Prazeres. Ao viajar na sua canoa da primeira margem (o vilarejo à beira do rio) por meio da segunda margem (a água dos rios) em direção à terceira margem (a floresta), a voz de Miguel é suplementada (em sua diferença) pela voz de um geógrafo cujo objetivo é estudar os problemas da região para descobrir se é possível construir ‘A Cidade do Futuro’ na Amazônia. Ligado a este projeto científico é seu projeto pessoal de escrever um livro sobre o lendário Miguel dos Santos Prazeres. As viagens dos dois personagens constituem os dois níveis da trama. Ao mesmo tempo separados e ligados pelas duas vozes em diálogo imaginado, esses níveis são suplementados por um terceiro nível enunciativo: a voz de um narrador que reflete sobre o fazer literário e problematiza os efeitos bárbaros do processo civilizatório na região.

No livro, portanto, Monteiro mina o lugar como etos mnemônico dentro do espaço nacional por meio de diversas perspectivas estruturadas pelas viagens do geógrafo e de Miguel. Neste processo, a territorialidade, vista aqui como a vivência num local, é traduzida pelo

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agir e pelos pensamentos dos personagens (um diálogo silencioso de monólogos individuais): subjetividades constituídas por meio de experiências que depois se tornam o agente de práticas culturais específicas e sua expressão. Em outras palavras, o significado da territorialidade é transmitido por meio da consciência espacial, suas práticas sociais e relações de poder. Disso resulta que os limites da territorialidade são estabelecidos tanto por um mapeamento cartográfico quanto pelo sistema semiótico da linguagem e suas imagens articuladas.12

No início da sua viagem, o geógrafo admite que “existe [...] alguma coisa nos olhos e na fala do povo que eu [...] ainda não consegui decifrar” (MONTEIRO, 1991, p. 80). No seguinte trecho, nota-se que o geógrafo sente-se fora do lugar, mas tenta entender, ou melhor, sentir o lugar e seu povo “em toda a complexidade das implicações humanas” em vez de compreendê-lo “apenas como um fato natural” (MONTEIRO, 1991, p. 17):

Tenho viajado de barco, tentando reconstituir os caminhos de Miguel [...]. Parece que ando sempre na sombra ou nas águas desse ubíquo rio andante. Vou de margem em margem e de porto em porto, a pretexto de uma rota simplesmente geográfica. À medida que me afasto da cidade, que subo ou desço os rios, entro nos lagos e quase me perco nos igarapés, sinto mais de perto que é quase física a sua realidade (MONTEIRO, 1991, p. 85).

Miguel, por outro lado, não perde suas raízes locais na rota aquática entre o vilarejo e a floresta:

Já quando me avezei pela canoa gita, desapareceu pra mim essa questão de margens e ribanceiras cortantes. Os furos, os igarapés, os rios e os lagos uniram todos os caminhos andantes. Só eram separadas, de vez em quando, por correntezas e remansos. De repente, o mundo ficou sem ilhas − o senhor sabe − não precisava pontes. A travessia era um caminhar constante (MONTEIRO, 1991, p. 31).

12 O meu argumento se nutre dos pensamentos de Santos (2007), Soja (1989), Raffestin (1980) e Lefebvre (1974).

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A travessia de Miguel é facilitada pela intimidade deste com o ambiente, uma vivência simbiótica caracterizada por trans-subjetividade e trans-tempo: uma mistura entre tempos e seres cujo principal símbolo é o boto − uma criatura andrógina parte peixe, parte homem em constante metamorfose. Ao usar este ente da mitologia amazônica que subverte e transgride qualquer ordem estabelecida e cujo ritual favorecido é a sedução de mulheres e uni-lo a Miguel, Monteiro, por meio de uma memória-imaginação interbiótica, recria a episteme cultural desta região amazônica como um constante processo de recriação performativa e híbrida entre todos os elementos; um organismo aberto, vivo e circular:

[...] não era só a intimidade que eu tinha com os peixes. Havia também a maior intimidade que eu tinha com os pensamentos. Era paresque um gozo sereno de liberdade, o senhor entende? Eu era quase um peixe dentro d’água, uma árvore crescendo da terra úmida, ou um pássaro voando livremente [...]. Eu via e ouvia por dentro, de olhos fechados. As cores verdes invadiam toda a minha vista. Era como se eu abrisse os olhos no fundo da água limpa. Nuvens e ondas se misturavam. E folhas, folhas verdes, vertendo cores de todas as cores, reverdeciam na água. E a água e as nuvens na minha mente [...]. Boiei de canga-pé como boto [...] no meio delas [mulheres]. [...] Eu sou um e sou muitos (MONTEIRO, 1991, p. 32, 34, 36, 130).

Esta memória interbiótica, além de recriar o mundo de referências do caboclo Miguel, serve como contramemória, no sentido de Foucault (1987) e Lipsitz (1990), por sua característica oral; memória esta que via discurso skaz13 resiste ao poder ditatorial da palavra escrita determinada pela historiografia e discurso oficiais:

Nunca dei o meu nome por ficar escrito, o senhor sabe. Sempre tinha medo que a minha alma ficasse amarrada nessa porção de letras. Sabe, eu tenho medo que o meu

13 Para Bakhtin (1984, p. 190-193), skaz indica um discurso oral que vibra no e atua sobre o discurso escrito.

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nome escrito me entregasse pra Governo. Mas como o senhor paresque entende das muitas cores e das muitas palavras, é capaz de se embrenhar pelos meus caminhos sempre abertos (MONTEIRO, 1991, p. 185).

Se esta contramemória interbiótica recupera um mundo de referências, uma episteme cultural que dá sentido a uma identidade específica, então, o inconsciente político da multivoicedness enunciativa − esta encruzilhada de vozes entre o nível diegético e metadiegético que articula a diferença e a mesmice cultural − aponta para formas e práticas de (neo)colonialidade que continuam a assolar a Amazônia: o projeto de desenvolvimento governamental, em cooperação com interesses internacionais, que abrange a exploração de recursos naturais e o agrobusiness, entre outros, sem levar em consideração os interesses daqueles que vivem na região. Nesta época, a nação nunca tentou ouvir e compreender a região: eis o significado do diálogo silencioso entre as vozes mudas da enunciação narrativa. É neste silêncio falante da contramemória interbiótica que podemos ler/escutar os ecos da ética do inconsciente político, cultural e ecológico que imbuem a tessitura do texto de Monteiro.

Os textos da literatura brasileira analisados neste trabalho demonstram que as diversas fases de colonialidade têm um impacto sobre a nação e seus habitantes no presente. Desde o passado colonial até o presente chamado pós-colonial, as formas e práticas neocoloniais não cessam de instalar novas maneiras de domínio, exploração e subalternização com os efeitos de cada fase imbuindo as formas e práticas da fase seguinte. Vistos em conjunto, os textos, como construtos mnemônicos, encenam diversos tipos de memória − a memória individual, sociocultural, e interbiótica − com o objetivo de problematizar as diversas facetas dessa colonialidade. Ao revelar uma ligação entre o inconsciente político (a relação intersubjetiva baseada em domínio e subalternização), o inconsciente cultural (a inserção dos seres humanos num sistema hegemônico

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via doutrinação e ideologia) e o inconsciente ecológico (a exploração e destruição da natureza), os textos conotam o entrelaçamento entre questões históricas, político-econômicas, culturais e ecológicas na proliferação da colonialidade. Neste sentido, as criações literárias brasileiras questionam se o termo ‘pós-colonial’ é o mais propício para descrever uma realidade caracterizada por diversos aspectos coloniais e delineiam possibilidades alternativas em termos de viver, relacionar-se e habitar a terra.

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Caliban Reescrito: a Figura do Oprimido em A Tempestade,

De augusto Boal

Sirlei Santos Dudalski*Mariana De-Lazzari Gomes**

* Universidade Federal de Viçosa – UFV.

** Universidade Federal de Viçosa – UFV.

Resumo: A partir do século XX, Caliban, personagem d’A Tempestade (1610), de Shakespeare, tem sido adotado como um ícone cultural, especialmente no Caribe, América Latina e África, sendo considerado um emblema das populações nativas colonizadas. A proposta desta pesquisa é observar como se delineia a figura do oprimido em A Tempestade (1979), apropriação de Augusto Boal. A peça de Boal aponta para uma reinterpretação do discurso hegemônico, assim, pretendemos contextualizá-la enquanto reescritura transgressiva, à luz do que Boal formulou como Poética do Oprimido.

PalavRas-Chave: Caliban; Oprimido; Reescritura; Poética do Oprimido.

abstRaCt: From the twentieth century on, Caliban, character from The Tempest (1610) by Shakespeare, has been adopted as a cultural icon, especially in the Caribbean, Latin America and Africa. He has also been considered an emblem of the native colonized peoples. This research aims at observing how the figure of the oppressed is delineated in A Tempestade (1979), an appropriation by Augusto Boal. Boal’s play reinterprets the hegemonic discourse, so we intend to contextualize his play as a transgressive rewriting, in the light of what Boal formulated as the Poetics of the Oppressed.

KeywoRds: Caliban; Oppressed; Rewriting; Poetics of the Oppressed.

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À guisa de introdução: teatro, o pão do povo

A justiça é o pão do povo.Às vezes bastante, às vezes pouca.Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim.Quando o pão é pouco, há fome.Quando o pão é ruim, há descontentamento.

Bertolt Bretch, Poemas.

Há quem diga que o teatro também é o pão do povo,

mas pode o teatro se equiparar à justiça? Do mesmo modo, sendo a justiça uma atitude política, pode o teatro também sê-la? Augusto Boal, em seu livro Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, “procura mostrar que todo teatro é necessariamente político, porque políticas são todas as atividades do homem, e o teatro é uma delas” (BOAL, 1991, p. 13). Pretender a separação entre teatro e política fatalmente conduz ao erro, o que caracteriza uma atitude política. O teatro é uma arma eficiente, diz Boal (1991), e é em virtude disso que as classes dominantes sempre buscaram e buscam se apropriar dele, para empregá-lo como aparato de dominação. Tão eficiente é esta arma que ela pode, igualmente, reverter-se em libertação, ou seja, se há bom pão, não há fome nem descontentamento.

Desde a Grécia clássica pode-se observar a relação antagônica entre teatro e política/poder. Para Aristóteles, por exemplo, poesia e política eram disciplinas adversas, que deveriam ser estudadas separadamente, porque possuíam leis particulares, serviam a escopos distintos e, por isso, serviam a diferentes finalidades.

No modelo aristotélico, o nível superior de felicidade alcançada pelo indivíduo é consequência de seu comportamento virtuoso. “Seja, pois, a felicidade o viver bem combinado com a virtude [...]” (ARISTÓTELES, 2005, p.109). Sendo assim, uma das consequências do

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comportamento virtuoso é a justiça que, por sua vez, seria inerente à realidade, qual seja: para os iguais, partes iguais; para os desiguais, partes desiguais. Sem nenhum critério, pois Aristóteles não cogita a probabilidade de transformação das desigualdades. Simplesmente as aceita como equitativas porque são empiricamente verificáveis (BOAL, 1991).

Em virtude disso se descortinou nosso interesse por comparar, à luz do discurso pós-colonialista, a figura do oprimido em A Tempestade, de William Shakespeare, escrita entre 1610 e 1611, e na apropriação de mesmo título, realizada por Boal, em 1979, tendo como representante desta figura a personagem Caliban.

A dramaturgia nos parece outra forma de escrita que possibilita a experiência dessa estética. No teatro, os significados são fluidos, relativos, passíveis de novos arranjos. Também no teatro os signos se intercruzam e se destituem de sua arbitrariedade para se deixarem manipular por outras interposições significativas. Trata-se de um convite à imaginação, à habilidade de criação, à apreensão de um jogo significante (FERRARA, 1988).

Além disso, toda manifestação artística, como o teatro, por exemplo, ao ser registrada, concretiza uma maneira de compreender o mundo, o que é essencial para a formação das culturas. A dramaturgia auxilia na propagação destas culturas, fornecendo instrumentais de que se valem os indivíduos para a apreensão do conhecimento “na sua expressão pessoal e na sua vida em sociedade [...] de tal modo que cada um possa melhor consumir a produção cultural e, ao mesmo tempo, exprimir culturalmente seus anseios e necessidades” (MIRANDA, 2006, p. 9).

A teoria pós-colonial tem trazido à tona o que o discurso colonialista, durante séculos, fez questão de obscurecer: “narrar o inenarrável, sendo fiel aos anônimos, cujas histórias tecem a imaginação e o universo de nossas marcas simbólicas” (MIRANDA, 2006, p. 9-10).

Dessa forma, é preciso considerar, em um primeiro momento, o trabalho seminal de Octave Mannoni (1993),

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que toma de empréstimo A Tempestade de Shakespeare e teoriza o complexo de dependência do colonizado em relação ao colonizador, isto é, simultânea e imutavelmente, o colonizador sempre oprime e o colonizado sempre acata a opressão. Assim, nota-se um paralelo entre a atitude do colonizado para com a chegada de estranhos e a atitude de Caliban para com a chegada de Próspero.

Mannoni, um oficial francês, escreveu La psychologie de la colonization, publicado pela primeira vez em 1948 e traduzido para o inglês em 1956 como Prospero and Caliban: The Psychology of Colonization, no qual tenta explicar as mentes dos colonizadores e colonizados. Descreve o “complexo de dependência” que, segundo ele, é inato em todos e do qual o indivíduo se separa à medida que vai ficando adulto. O rompimento com este complexo pode ser negativo para algumas pessoas que não conseguem superar o sentimento de abandono resultante e que, por isso, desenvolvem outro complexo, o “complexo de inferioridade”. Segundo Mannoni, este complexo de inferioridade está sempre presente no colonizador, que, como consequência, é compelido a dominar e, algumas vezes, a usar a força contra outras pessoas. No entanto, no colonizado, o “complexo de dependência” nunca desaparece; na verdade, é até reforçado. Então o colonizado desenvolve uma necessidade de estar sob o constante controle do colonizador. A “psicologia da colonização” está criada; nem o dependente nem o europeu são capazes de superar os seus primeiros complexos. Não é difícil prever quais papéis Próspero e Caliban irão incorporar.

A formulação de Mannoni foi amplamente criticada. Em Pele negra, Máscaras brancas (2008), Frantz Fanon dedica um capítulo intitulado “Sobre o pretenso complexo de dependência do colonizado” em resposta à obra de Mannoni, afirmando que, de acordo com a “psicologia da colonização” de Mannoni, não existe saída para os povos colonizados a não ser considerarem a si mesmos como inferiores. Para Fanon (2008), os complexos são

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construídos devido à ideia racista de que os europeus são superiores aos não europeus. Em situações coloniais, essas ideias estão sempre tão presentes, principalmente por meio da opressão, que os colonizados acabam se considerando inferiores, reforçando, dessa maneira, as relações racistas inauguradas pelos europeus. A obra de Mannoni também foi criticada por Aimé Césaire em Discurso sobre o colonialismo (1977). Apesar de toda a crítica, Peter Hulme afirma que a análise da personalidade de Próspero feita por Mannoni continua a ser um marco no estudo da situação colonial (HULME, 1993, p. 121).

Em 1988, quando o Instituto Folger1 patrocinou um seminário sobre Shakespeare e o colonialismo os na época denominados teóricos revisionistas chamaram a atenção para o movimento de neutralizar algumas leituras profundamente a-históricas de A Tempestade (SKURA, 1992).

Nessa abordagem revisionista, a figura de Caliban se manifesta em uma nova forma, sugerindo que a reinscrição do Caliban da época de Shakespeare até os anos 1980 levou a dois modos diferentes de representação. O primeiro modo, tal como escrito por Mannoni, reforça o discurso colonial, enquanto que o segundo, defendido pelos revisionistas, critica este discurso.

Na esteira dessa abordagem, podemos identificar um dos primeiros exemplos da representação do Caliban do Terceiro Mundo. Em seu livro, Todo Caliban (2004), Roberto Fernández Retamar faz referência ao artigo Caliban, publicado em 1971, no qual afirma que foi o primeiro a considerar Caliban como símbolo das ex-colônias espanholas, tais como Cuba e outros países do Caribe e da América do Sul. Usando essa personagem para simbolizar os latino-americanos, Retamar se contrapõe ao ponto de vista de Jose Enrique Rodó, que identificou Caliban como símbolo brutal, degenerado, contrário de Ariel, que representa a nobreza do espírito humano. Retamar argumenta, ainda, que Caliban tem muito em comum com os latino-americanos, principalmente no

1 O Instituto Folger foi fundado em 1970 para colaborar com o Folger Shakespeare Library e contava com a participação de duas universidades de Washington, DC. Nos anos seguintes, seu horizonte se expandiu do local para o regional e do regional ao internacional e hoje conta com o envolvimento de 41 universidades e faculdades. Com o apoio de agências como a Andrew W. Mellon Foundation e da National Endowment for the Humanities, o Instituto oferece seminários, conferências e colóquios em áreas representadas nas coleções da Biblioteca Folger.

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sentido de que estes, subjugados, falam a língua dos colonizadores.

Ainda mais que isso, Retamar também mostra que o colonizado não precisa ter vergonha de todos os comentários depreciativos a seu respeito, porque essas referências são meras fabricações verbais e, mesmo que as observações dos colonizadores sobre seu “atraso” sejam verdade, são estes colonizadores os culpados por isso. Assim, a interpretação de Caliban defendida por Retamar vai de encontro à interpretação da dependência proposta por Mannoni.

A partir desse ponto, alguns escritores, como Boal, começam a se apropriar da versão shakespeariana d’A Tempestade, interpretando Caliban como um emblema das populações nativas colonizadas.

“Todos somos Caliban”

“A colonização falsifica as relações humanas, destrói ou esclerosa as instituições, e corrompe os homens,

colonizadores e colonizados.” Albert Memmi, Retrato do Colonizado

Precedido pelo Retrato do Colonizador É fato que A Tempestade, de Shakespeare, é uma

das mais lidas, relidas e reescritas obras da literatura inglesa, e que pode ser contemplada por uma visão crítica como uma réplica às decorrências sociais e políticas da colonização que se estenderam ao período pós-colonial.

Albert Memmi (2007), em sua obra Retrato do colo-nizado precedido pelo retrato do colonizador, publicada pela primeira vez em 1957, propõe-se a refletir sobre as relações entre colonizador e colonizado, bem como sobre a formação de suas identidades.

O retrato do colonizador, assim, pinta-se pelo legitimar da usurpação, inclusive da identidade cultural do colonizado. As ações do colonizador, então, centram-

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se na rejeição ao colonizado, pois é nas infelicidades do dia a dia que aquele assevera sua identidade diante deste.

De outro lado está a indignação do colonizado pelo aviltamento e opressão intrínsecos ao fato colonial, como o discurso colonialista que o estigmatiza como sujo, ladrão, preguiçoso e medíocre. A consequência dessa estigmatização é a despersonalização do colonizado, que encontra, como alternativa para lidar com tamanha desumanização, um paradoxo: amar o colonizador e odiar a si próprio ou se revoltar, objetivando sua autoafirmação.

Em vista disso, é fato, também, que a figura de Caliban é uma das mais exploradas pelos estudos Pós-coloniais, pois, de acordo com Roberto Fernández Retamar (2004), o conceito-metáfora de Caliban é o traço marcante do processo de colonização:

Nuestro símbolo no es pues Ariel, como penso Rodó, sino Caliban. Esto es algo que vemos com particular nitidez los mestizos que habitamos estas mismas islas donde vivió Caliban: Próspero invadió lãs islas, mató a nuestros ancestros, escravizó a Caliban y le enseñó su idioma para entenderse con él: ¿Qué otra cosa puede hacer Caliban sino utilizar ese mismo idioma para maldecir, para desear que caiga sobre El “la roja plaga”? No conozco otra metáfora más acertada de nuestra situación cultural, de nuestra realidad.(...) ¿qué es nuestra historia, que és nuestra cultura, sino la historia, sino la cultura de Caliban? (RETAMAR, 2004, p. 33-34)1.

Assim como Memmi (2007), Retamar (2004) enfatiza a questão da identidade do colonizado, que acaba por se tornar um rascunho ou uma cópia da cultura de quem o colonizou. Tão complexa se torna a relação entre opressor e oprimido que ambos os autores colocam a língua como componente que só alarga a confusão identitária do colonizado, pois seu linguajar principal acaba por se tornar o idioma do colonizador: “de que otra manera puedo hacerlo, sino en una de sus lenguas, que es ya también nuestra lengua, y con tantos de sus instrumentos

Nosso símbolo não é, pois Ariel, como pensou Rodó, mas Caliban. Isto é algo que vemos com particular nitidez nos mestiços que habitam estas mesmas ilhas onde viveu Caliban. Próspero invadiu as ilhas, matou nossos ancestrais, escravizou Caliban e lhe ensinou seu idioma para se entender com ele: que outra coisa pode fazer Caliban senão utilizar esse mesmo idioma para maldizer, para desejar que caia sobre ele “a praga vermelha”? Não conheço outra metáfora mais acertada de nossa situação cultural, de nossa realidade. (...) Que é nossa história, que é nossa cultura, senão a história, senão a cultura de Caliban? (Retamar, 2004, p. 33-34, tradução nossa).

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conceptuales, que también son ya nuestros instrumentos conceptuales?” (RETAMAR, 2004, p. 22)1.

Seguindo a mesma linha, Alden T. Vaughan e Virginia Mason Vaughan (1991) prospectam Caliban como o escravo que, percebendo-se vítima da ação colonizadora e amordaçado em uma relação de opressão social, rebela-se e tenta derrocar seu opressor.

Caliban passa a ser um ícone cultural - especialmente no Caribe, América Latina e África -, considerado um símbolo de todos aqueles que, injustamente, foram deixados à margem e que lutam para se livrarem, ao mesmo tempo, da dominação física, representada pela exploração da sua força de trabalho, e da mental, representada pelo “complexo do colonizado” descrito por Mannoni.

A partir de então, a reinterpretação de um discurso hegemônico, na figura do Caliban colonizado e próximo aos contextos do Caribe, América Latina e África se delineia e é levada a cabo por escritores como George Lamming2 e Aimé Césaire3. Apropriações d’A Tempestade, de Shakespeare, numa perspectiva pós-colonial, como a de Césaire, oferecem aos leitores um Caliban que não se resume a um escravo revoltado e sim um Caliban que representa o despontar de uma América Latina, de um Caribe e de uma África em busca de reafirmar sua identidade.

Falando em América Latina, importa pensar no Brasil enquanto parte desta América que, nas palavras de Tzvetan Todorov (1998), não é “exemplar no sentido de que representaria um retrato fiel de nossa relação com o outro”, mas que “nos permite fazer uma autorreflexão” (TODOROV, 1998, p. 250), ou seja, não é ignorando a história que vamos nos livrar do risco de repeti-la.

A Poética do Oprimido, de Augusto Boal, é concebida justamente em um momento no qual não se podia mais ignorar a história, em um momento de ditadura imposta pelo regime militar no Brasil. O caminho encontrado para responder aos impasses suscitados pela repressão foi o da inovação estética no teatro, criticando, de modo incisivo,

1 [...] de que outra maneira posso fazê-lo, se não em uma de suas línguas, que já é também a nossa língua, e com tantos de seus instrumentos conceituais, que também já são nossos instrumentos conceituais? (Retamar, 2004, p. 22, tradução nossa).2 Romancista e ensaísta barbadiano cujas obras – sendo as centrais os ensaios intitulados The Pleasures of Exile (1960) e os romances In the Castle of my Skin e Water with Berries (1970) - se aportam no processo de descolonização das nações caribenhas.3 Dramaturgo, poeta e político martiniquense que se apropriou d’A Tempestade, de Shakespeare, concebendo Caliban como escravo negro.

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o modelo aristotélico seguido pelo teatro ocidental, que, por meio da catarse, cria uma identificação entre as personagens e o público e manipula suas emoções, impedindo, assim, que haja qualquer probabilidade de descontentamento e, por conseguinte, de transformação social. Esta transformação social só acontece a partir da desconstrução do modelo aristotélico e a partir da liberdade dada ao espectador de pensar e agir em lugar da personagem.

N’A Tempestade, de Boal, embora Caliban ainda tenha sido aquele que resistiu – mesmo “caçado e queimado vivo, devorado por cães e pisoteado por cavalos, cortado e retalhado por espadas, arrebentado pelos estilhaços do ferro e da pólvora, ou mesmo combalido por doenças infecciosas” (MOURA, 2001, p. 9) –, percebe-se um traço de brasilidade, de envolvimento com um Brasil que ainda sofre as consequências da opressão colonialista.

Essa apropriação do texto shakespeariano abre espaço para a discussão acerca da figura de Caliban e aponta para a reinterpretação de um discurso hegemônico, que, por sua vez, tende a conferir ao escritor a total liberdade de se (re)apropriar dos fatos que teatraliza.

O Teatro do Oprimido nasceu em um contexto histórico de final dos anos 50 para o início dos anos 60, período em que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) havia se consolidado e angariado adesão da maioria dos artistas e intelectuais. De acordo Mariângela Alves de Lima, em seu texto História das ideias (1978), no princípio é o teatro de Arena que adota uma nova proposta de espaço cênico, diferente daquela seguida até então pelo teatro brasileiro, embasada no palco italiano. De acordo com Boal (2000),

[...] o palco italiano, que simula um quadro na parede, com personagens em movimento, distantes, é invenção da burguesia renascentista, que privilegiava os indivíduos possuidores da virtu maquiaveliana, aqueles que tentavam tomar o poder da nobreza, mas sem se solidarizar com

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o povo, ao qual, economicamente, estavam fadados a explorar também. Privilegiava o indivíduo excepcional, capaz de tudo, o virtuoso, e não todos os indivíduos (BOAL, 2000, p. 250).

Nessa nova estética, o espaço da representação passa a ocupar o centro e a colocar a cena à altura do olhar do espectador. O espaço cênico, assim, podia ser instalado em qualquer lugar, o que, para uma proposta que ainda estava se delineando, significava economia de recursos. Em virtude disso, o teatro passa a proporcionar acessibilidade a um público que antes não tinha condições financeiras de assistir aos espetáculos.

Entretanto, não houve, na proposta inicial do Arena, um questionamento sobre as características deste público, especialmente porque os espetáculos apresentados ainda seguiam os moldes de outras companhias teatrais que se constituíram a partir de alicerces muito díspares. Sobre isso, Boal (2000) diz:

Na alternância, Renato montou Silveira Sampaio, Só o faraó tem alma, Alfredo Mesquita dirigiu um espetáculo duplo, A falecida senhora sua mãe, de Feydeau, e Casal de velhos de Mirbeau, e eu, que não gostava de ecletismo, insisti no filão realista, They knew what they wanted, com o espantoso título de A mulher do outro, de Sydney Howard, que nos permitia continuar Stanislavski com peças estrangeiras. Fazendeiros norte-americanos: nada a ver com os brasileiros. A globalização cultural ainda não tinha operado em nós a Prótese do desejo, ainda desejávamos falar de nós, ouvir nossa voz, ver nosso rosto. [...]Era como se estivesse fazendo prova de fim de ano em Nova York sem pensar na plateia de São Paulo que tinha outras preocupações e não estava interessada em problemas rurais norte-americanos (BOAL, 2000, p. 153).

Finalmente, em 1956, tem início a modificação na forma de atuar. Em lugar de novos grupos de atuação

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cultural, o Arena passa a investir em capacitações a partir de suas próprias experiências em teatro. José Renato Pécora continua na Direção Geral, Boal assume o Departamento Cultural, Fausto Fuser cuida do Departamento de Teatro Infantil e o Departamento de Publicidade fica a cargo de Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Riva Nimitz (LIMA, 1978).

Enquanto essa nova organização se consolidava, espetáculos eram paralelamente produzidos:

Ao mesmo tempo em que Boal ensaiava Ratos e homens, José Renato e Beatriz de Toledo Segall orientavam um curso de treinamento inicialmente planejado para ter a duração de dois anos no TPE. O curso deveria funcionar com um estágio para os participantes que quisessem futuramente integrar a equipe do Arena (LIMA, 1978, p. 4).

Desse modo, Eles não usam Black-tie surge como marco de uma proposta de valorizar as produções nacionais e compor uma estética embasada em uma linha de discussões sobre a realidade política brasileira a que Lima (1978) nomeia como nacionalismo crítico de vertente descolonial:

Grande parte dos movimentos nacionalistas da arte brasileira emergiu de uma espécie de complexo de colonizado. A descoberta da raiz brasileira foi uma forma, até certo ponto, útil historicamente, que permitia ao colonizado reconhecer-se em oposição ao colonizador. Como se as diferenças pudessem garantir ao colonizado as dimensões assustadoramente grandiosas do colonizador (LIMA, 1978, p. 5).

Ainda que não se atentasse especificamente a este complexo, o Arena passa a pensar o teatro por meio das relações entre o povo e o aparato do poder político e econômico, tomando uma posição efetiva em favor da descolonização (LIMA, 1978).

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Dentro dessa perspectiva, o Arena conta com Augusto Boal para efetivar, com Revolução na América do Sul, sua verdade artística calcada nos signos de uma arte coletiva.

O Golpe Militar de 1964 veio obstacularizar a maturidade artística da dramaturgia brasileira. Sábato Magaldi, no artigo “Tendências contemporâneas do teatro brasileiro” (1996), nos elucida que este golpe trouxe para o teatro outra hegemonia: a da censura.

A sobrevivência do teatro tornou-se dificílima com a edição do Ato Institucional nº 5 e o advento do governo Médici, que sufocou o que ainda restava de liberdade. No palco só se passou a respirar de novo com a abertura política iniciada no governo Geisel e prosseguida no governo Figueiredo (MAGALDI, 1996, p. 277). Roda Viva, de Chico Buarque, explica-nos Armando

Sérgio da Silva, em seu livro Oficina: do teatro ao te-ato (1981), era discutida em todos os lugares. Até mesmo os políticos se preocupavam em discutir esse espetáculo na Assembleia Legislativa. Ainda que temerosa, boa parte da população vencia o medo e lotava a plateia. Os atores de teatro passaram de artistas a corruptores da sociedade brasileira. Proibida pela censura e, ainda assim, desafiadora, Roda Viva sobreviveu inclusive ao espancamento dos atores, conforme nos conta Boal (2000).

A partir daí, as peças que o Arena queria montar estavam todas proibidas. Proibição profícua. De certa forma, foram a censura e a perseguição política os embriões do Teatro do Oprimido, pois, mesmo assim, grupos que realizavam experiências teatrais fora das instituições teatrais ainda sobreviviam, em busca de organizar uma resistência e discutir sobre os aspectos tanto estéticos quanto políticos da sociedade brasileira pós-golpe de 64.

Boal começa a formar grupos de Teatro-Jornal4. Estes grupos representavam em qualquer lugar, desde

4 O Teatro-Jornal foi uma resposta estética à censura imposta, no Brasil, no início dos anos 1970, pelos militares, para escamotearem conteúdos, inventarem verdades e iludirem. Nesta técnica, encena-se o que se perdeu nas entrelinhas das notícias censuradas, criando imagens que revelam silêncios. Criada em 1971, no Teatro de Arena de São Paulo, esta técnica foi muito utilizada na época da ditadura militar brasileira, para revelar informações distorcidas pelos jornais da época, todos sob censura oficial. Ainda hoje é usada para explicitar as manipulações utilizadas pelos meios de comunicação (Disponível em http://www.ctorio.org.br).

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que longe da polícia. Os espetáculos eram escritos e, duas horas depois, encenados. O sonho de difundir as técnicas para que qualquer cidadão pudesse fazer teatro, usar a riqueza da linguagem dramática para pensar a resistência à opressão começa a tomar contornos de realidade.

Preço alto foi pago. Depois da prisão e da tortura, Boal parte para o exílio.

O ministro nos recebeu com salamaleques e biscoitos finos. Ouviu nossos projetos, entusiasmado, quase nos condecorou com pesadas medalhas pátrias. Na porta, despedindo-se, lembrou detalhe importante: pela manhã, havia assinado decreto que nos exonerava. Estávamos no olho da rua, todos. Se quiséssemos retornar, teríamos que fazer exame diante de banca constituída pelos professores mais reacionários do país. Perdi o segundo terço do meu salário...Os cravos tiveram o trágico destino de todas as flores: a lata do lixo.Passei dois anos em Portugal (BOAL, 2000, p. 313-314). Assim, quem assiste à concepção do Teatro Invisível5

é a Argentina. Portugal viu nascer Murro em ponta de faca e A Tempestade, enquanto muitos exilados se suicidavam. Linguagem metafórica por causa da queda de Perón e da Revolução dos Cravos. Paris trouxe a oportunidade de sistematizar e divulgar o Teatro do Oprimido pelo mundo, sem metáforas.

Em virtude disso, A Tempestade, de Boal, apropria-se da peça de Shakespeare para questionar a exploração da América do Sul pelo colonialismo europeu e, especialmente, para discutir a postura neocolonialista dos Estados Unidos. Ele principia sua reescritura transgressiva com a marca que traduz a postura ideológica da Poética do Oprimido:

Este espetáculo pode ser feito em palco à italiana ou em arena; em teatro ou em circo; numa garagem ou na rua. Para mim, o importante é que seja feito com muita verdade,

5 O Teatro-Invisível que, sendo vida, não é revelado como teatro e é realizado no local onde a situação encenada deveria acontecer, surgiu como resposta à impossibilidade, ditada pelo autoritarismo, de fazer teatro dentro do teatro, na Argentina. Uma cena do cotidiano é encenada e apresentada no local onde poderia ter acontecido, sem que se identifique como evento teatral. Desta forma, os espectadores são reais participantes, reagindo e opinando espontaneamente à discussão provocada pela encenação (Disponível em http://www.ctorio.org.br).

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muita sinceridade, muita cor, que pode até exagerar um pouco, mas que fique claro, bem claro, que somos belos porque somos nós, e nenhuma cultura imposta é mais bela do que a nossa (BOAL, l979, p.1).

De acordo com Aimara da Cunha Resende (1999), Boal mantém os principais aspectos encontrados mais tarde na fonte, principalmente pelos novos historicistas e pós-colonialistas críticos, recriando a caracterização de acordo com sua própria teoria no Teatro do Oprimido e em consonância com sua visão sobre a exploração do império em relação aos países menos desenvolvidos. Próspero é um usurpador que lida com o habitante oprimido da ilha, Caliban, e também com outros membros das classes mais baixas, facilmente manipuláveis, como se fossem objetos colocados na ilha unicamente para servi-lo.

Caliban, sendo um patriota idealista que sonha restituir a sua terra de volta para aqueles que, como ele, nasceram na mesma condição e não são usurpadores, é alvo da raiva de Próspero e se encontra na condição de pobre e punido. Já Gonçalo, por exemplo, reproduz em seu discurso a aceitação de sua categoria de oprimido:

GONÇALO – (CANTA)

CANÇÃO DO SOFRER DEMAIS

Ouçam a minha opinião –cheguei a esta conclusão:quando alguém é desgraçadotem gente em pior estado.

Muito feliz, sorridente,o conde perdeu o condado;exultante e contente, cantou:tem gente em pior estado.

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Das suas vacas e boisfoi o fazendeiro roubado.Tem gente em pior estadodisse o homem iluminado.

Perdeu o pobre o futuroe a colheita o campesino;tudo muda, isso é seguro,ninguém vence o seu destino (BOAL, 1979, p. 37).

Desse modo, enquanto Gonçalo se encontra na fronteira de subordinado que “não pode deixar de sentir, ao mesmo tempo, o desconforto da angústia e o embaraço do inevitável desejo de copiar e imitar” (BELLEI, 2000, p. 150), Caliban, ao contrário, parece ocupar o espaço da fronteira, desenhando “mapas que definem a parte de dentro e os que a habitam como mais significativos do que tudo o que se encontra do lado de fora” (BELLEI, 2000, p. 150):

CALIBAN – Começa então a transformação (SAI ESTÉVÃO EM BUSCA DAS GARRAFAS). Responde minha besta: como podem ser do seu patrão, se as uvas nós a cultivávamos com as nossas mãos; se o vinho nós o fermentamos com a nossa ciência; se as bodegas nós as construímos com a nossa madeira? Como podem ser do teu patrão, se tudo quem fez fomos nós? (BOAL, 1979, p. 47).

As colocações de Edward Said (1990) acerca do discurso orientalista também ilustram nossa leitura, na medida em que este autor observa que o orientalismo não é simplesmente um discurso que produz certo conhecimento do Oriente, mas sim um estilo “ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente” (SAID, 1990, p.3). Embora não possa ser simplesmente correlacionado ao processo de exploração material do Oriente, o discurso produz uma forma de

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conhecimento que é de grande utilidade no auxílio deste processo que serve para definir o Ocidente como a sua origem, servindo para negar culturas estrangeiras, ou seja, servindo para negar a expressão do outro. Fazendo parte da fronteira, vendo negada a sua cultura e usurpado o seu país, Caliban mantém sua postura de resistência.

CALIBAN – Esta ilha pertence-me, e você roubou-me! Quando você veio pela primeira vez, eu acreditei em você, e você me corrompeu! Deu-me o supérfluo, e eu dei-te as minhas terras. Deu-me colares, espelhos e anéis, eu ofereci-te os meus rios, as minhas praias e os meus campos. Que sobre ti caiam todas as maldições da terra! Que te matem os escorpiões, os sapos e os morcegos. Você reina na minha terra e eu sou escravo no meu país! (BOAL, 1979, p. 24).

CALIBANEu quero o meu jantar.A ilha é minha, da mãe Sycorax,Que você me tirou. Logo que veio,Me afagava, mimava, inda me dandoUmas frutinhas, e ainda me ensinouA chamar a luz grande e a pequena,Que queimam dia e noite. E eu te amava,E mostrei a você tudo na ilha – As fontes, onde é estéril e onde é fértil.Maldito seja! Todos os encantosDe Sycorax – sapos, escaravelhos,E morcegos, te ataquem todos juntos!Pois eu sou o seu único vassalo.Eu era rei. Você me fez de porcoNestas pedras, guardando para vocêA ilha toda (SHAKESPEARE, 1999, p. 35)6. Comparando as duas passagens d’A Tempestade de

Boal e da de Shakespeare, observamos que a perspectiva pós-colonial de leitura nos permite entrever que, de acordo com Michel Foucault, em A ordem do discurso

6 Tradução de Bárbara Heliodora

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(1971), é em virtude daquilo que ainda está por dizer que basta apenas uma obra literária para dar lugar, concomitantemente, a uma infinidade de discursos: o discurso de Caliban em ambas as obras nos revela que, na condição de colonizado, ele se mostra consciente de que foi seduzido pelo colonizador para, em sequência, ser usurpado de suas terras e escravizado em nome do poder hegemônico. O poder retórico e emocional do discurso shakespeariano oferece a Boal uma opção discursiva que se constitui em resistência às leituras colonialistas do texto de Shakespeare, além de retomar um espaço textual privilegiado para abordar o problema da opressão.

Assim, a figura de Caliban n’A Tempestade, de Boal (1979), ratifica essa fundação mais firme de uma representação voltada para a perspectiva do terceiro mundo, em sintonia com a realidade social e com as dificuldades políticas de um país chamado Brasil. Para Boal (1991), o Teatro do Oprimido é o teatro das classes oprimidas e de todos os oprimidos, mesmo no interior das classes. Assim, Caliban representa o colonizado pelo colonizado: tanto o protagonista quanto o espectador são Caliban e nunca se contentam em apenas refletir sobre o passado, mas repensam o presente e se preparam para o futuro.

A Poética do Oprimido nos remete ao antropofagismo de Oswald de Andrade. A antropofagia exibe um rosto fecundo, diferente do aniquilamento com que habitualmente aparece no discurso do colonizador sobre o colonizado, que utiliza o canibalismo como símbolo máximo da violência.

Na perspectiva oswaldiana, a antropofagia significa um tipo de transubstanciação em que o devorador se altera no devorado, ou seja, o oprimido se altera no opressor e, diante disso, o discurso melindroso das relações coloniais transforma-se em discurso que gera novas identidades. Assim ocorre, ao final d’A Tempestade, de Boal, quando se tem, por um momento, a impressão de que Caliban foi apenas o derrotado para, no momento seguinte, perceber-

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se que, aos moldes do Teatro do Oprimido, é delineado como indivíduo transformador, social e coletivo:

CALIBAN – Que o nobre casal tenha muitos filhos, como é o desejo do senhor Próspero...PRÓSPERO – Finalmente aprendeste boas maneiras...CALIBAN (AFASTANDO-SE, EM VOZ BAIXA) - ... e que todos os filhos morram enforcados no cordão umbilical, e que apodreçam no ventre da sua mãe, e que a gangrena destrua cada fibra dos seus corpos, e que o diabo em pessoa...PRÓSPERO – Que é que você está dizendo?CALIBAN (ALTO) – Que tenham longa vida...PRÓSPERO – Bom...CALIBAN (BAIXO) - ... no inferno! (BOAL, 1979, p. 92-93).

O que se percebe, no texto de Boal, é uma abordagem de comportamentos intersubjetivos, pertinentes ao contexto de um Brasil que precisa adotar uma atitude antropofágica, numa concepção de canibalismo que abrace uma postura de contra-ataque aos poderes opressivos do colonialismo justamente por não negá-los e sim por, através do teatro em que o espectador-cidadão se torna parte da sua própria obra de arte teatral, apontar “o seu funcionamento silencioso, as suas forças e fraquezas e o seu jogo de dominação de risco”, (BELLEI, 2000, p. 90), de modo a instigar um fazer teatral que liberte da opressão.

Considerações finais: o descortinar de um novo cenário

O Teatro do Oprimido tem como objetivo transformar o espectador passivo em sujeito da ação dramática. Este espectador torna-se também ator, a partir do momento em que apresenta o espetáculo segundo suas necessidades de discutir certos temas ou de ensaiar certas ações. Dessa forma, é infundido no espectador o desejo de praticar, na

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sociedade, as ações ensaiadas no teatro. “A prática destas formas teatrais cria uma espécie de insatisfação que necessita complementar-se através da ação real” (BOAL, 1991, p. 150). Enquanto Aristóteles sugere uma Poética em que o espectador dá poder ao personagem de pensar em seu lugar, a Poética do Oprimido instiga à ação. Não existe espectador que permita ao ator agir ou pensar em seu lugar.

O teatro político ambiciona confirmar a natureza inerente à ação teatral, bem como obter a reflexão aberta da plateia em torno de motes de ordem sociopolítica e também da sua mobilização para uma atuação real na sociedade. Perante esse escopo, do mesmo modo que o teatro de Bertolt Brecht consagrou o distanciamento no teatro moderno ocidental, a Poética do Oprimido coopera com modificações estéticas no que tange ao procedimento de representar e confia ao espectador não só um caráter crítico e indutivo, como também o convida a uma participação funcional na cena, sendo esta participação condição sine qua non para que o jogo teatral se cumpra.

Até porque a estética jamais será dissociada do teatro, nem a ética da política. Já dizia Augusto Boal que a discussão sobre as relações entre o teatro e a política é tão velha quanto o teatro, ou quanto a política. É a plateia que ergue as analogias cênicas das figuras dramáticas entre si, desde o particular até o geral, do simplesmente engraçado até aquilo que provoca o riso para fazer pensar. Assim surge a estatura política do teatro.

Para Boal, Shakespeare, em suas peças, mostrava amplo interesse por assuntos sociopolíticos (BOAL, 1991). Frequentando analiticamente A Tempestade, Boal se apropriou dela e estabeleceu um espaço textual privilegiado para o entendimento de um novo modelo dos estudos literários que se ocupa de uma prática politizada e atenta para questões atinentes ao exercício do poder (BELLEI, 2000), criando uma forma alternativa de leitura que se constitui em resistência às leituras convencionais do texto de Shakespeare, além de retomar um espaço textual privilegiado para abordar o problema da opressão.

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REFERÊNCIAS

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Caliban Reescrito: a Figura do Oprimido em A Tempestade...

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Maria de Jesus to the Solidary Diction in Conceição Evaristo

Valeria Rosito*

* Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Resumo: Este trabalho discute o lugar da autoria feminina numa modernidade periférica, que se estende de finais dos anos 50 do século XX às primeiras décadas do século XXI. Marcas duplas de gênero e cor, nas penas de Carolina Maria de Jesus e de Conceição Evaristo, traduzem radicalmente a experiência literária como resistência simbólica ao processo diaspórico dos povos afrodescendentes e problematizam noções de pertencimento sob a égide de ‘nação’. No caso de Carolina, o gênero documental lavrado em seus diários mascara a natureza irrefutavelmente literária e solitária de seus escritos. Em se tratando de Conceição, o literário se constrói por imperativos memorialísticos, que fundam o lugar autoral na solidariedade das vozes subalternas.

PalavRas-Chaves: Autoria feminina; Literariedade; Carolina Maria de Jesus; Conceição Evaristo; Gêneros textuais.

abstRaCt: This article examines the place of female authorship in late modernity extending from the late 50’s in the 20th century through the first two decades of the 21st century. Double marks of gender and color in the writings of Carolina Maria de Jesus and Conceição Evaristo’s, radically translate literary experience as symbolic resistance to the diasporic processes undergone by afro descendant peoples as well as question notions of belongness under the concept of ‘nation’. In Jesus’s case, the documentary genre of her diaries masks off the undeniable literary and solitary nature of her writings. In the case of Evaristo’s, literary writing is wrought by memorialistic demands which found authorship in solidary subaltern voices.

KeywoRds: Female authorship; Literariness; Carolina Maria de Jesus; Conceição Evaristo; Text genres.

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Sure, she would move on. One day, she would narrate, loosen up the voices, the murmurs, the stifled scream which was hanging there, which belonged to each and everyone. One day, Maria-Nova would write the speech of her people.1

Conceição Evaristo, Becos da Memória

Half a century pulls apart Carolina Maria de Jesus and Conceição Evaristo. However, if long-lasting subaltern experience of gender and color did not suffice to bring them together. Both Afro Brazilian writers would strengthen their bond by the radically literary-propelling nature of their writing, primarily that which might bother traditional criticism as ‘documentary’. Self-baptized “the Canindé slum dweller” and reportedly poorly educated, Jesus wrote over five thousand pages among diaries, novels, and plays from the mid-fifties to the mid-sixties in the twentieth century. Evaristo, a contemporary poet, essayist, and fiction writer, has been writing and publishing in diversified genres. As she likes to say, her biography intermingles and recovers an immemorial past of ‘the defeated’, to resort to a category by Walter Benjamin (1994). A vital impetus lies right at the core of this sisterhood, which shall be taken care of in this discussion. I refer to the aesthetically-conditioned aspect, actualizing and coming full circle in pages of a common and unfinished story. I stress their fictional-propelling characteristic as the main quality in that realization whether in the openly documentary writing in Jesus’s diary Garbage Room (2006) or whether in Evaristo’s biographical novel or short story-like biographies such as Becos da Memória (Memory Corners, 2006) or Insubmissas Lágrimas de Mulheres (Insubmissive Tears of Women, 2011). The following discussion sustains that to the subaltern, whereas writing might ensure social status, fiction becomes crucial for spiritual survival. The overwhelming strength of fiction overshadows Jesus’s ‘documentary’ efforts to report on the subhuman conditions she lived

1 My translation from the original: “Sim, ela iria adiante. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo.”

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in, on the one hand, and makes it possible for Evaristo, several decades later, to vindicate her predecessor with shared authorship and academic interest. To the effect of a change of this caliber, it is relevant to underline [1] the collapse of traditional nation-conceived fiction and [2] the mutation in the concepts of fiction and literariness.

Joel Rufino dos Santos, an Afro Brazilian intellectual, develops a rather productive etymological motto to address Jesus’s case. By stating “she is three: the woman, the writer, and the character” (SANTOS, 2009, p. 21), the historian and fiction-writer himself reviews the concept of alienation:

In common language, it means madness (the mad person is out of his/her mind) or the passing on to someone else whatever rightfully belongs to him or her (to alienate a car, for example). Philosophical language maintains those two basic understandings, but goes beyond. It is alienated he or she that is out of his or her circumstances – for example, an industrialist who sides with the workers on class-struggle confrontations; an imprisoned convict who systematically sides with jail agents, and the like. We, human beings, at some point along our trajectories part company with nature, including the other animals – we get alienated, therefore, to exist as human beings. Alienation, in this case, turns out to be an act of self-governing. (SANTOS, 2009, p.20, highlights added).2

By ascribing positive value to the concept of alienation as inherent to the human condition Rufino raises the “as if” condition to existential imperative concluding that “literary pleasure proves to be a kind of alienation; someone by you has to remind you that whatever you are reading is not true. Like all other pleasure, it is dangerous: you’d better get busy with the real, objective, and useful things.” (p.24).3 When referring to her own writing with

2 My translation from the original: Na linguagem comum, significa loucura (o louco está fora de si) ou entrega a outrem do que é seu por direito (alienar um carro, por exemplo). A linguagem filosófica mantém estas duas acepções básicas, mas vai além. Alienado/a é o que está fora de suas circunstâncias – por exemplo, um empresário que trava a luta de classes do lado dos empregados, um presidiário que se coloca sistematicamente do lado dos carcereiros, e assim por diante. Nós seres humanos, em algum ponto da nossa trajetória nos separamos da natureza, incluindo os outros animais – nos alienamos, portanto, para existirmos como humanos. Alienação, neste caso, é um ato de autonomia.”

3 My translation from the original: “o gozo literário é também uma espécie de alienação: alguém, ao seu lado, precisa lhe lembrar que aquilo que está lendo não é verdade. Como todo gozo, é perigoso: melhor ocupar o seu tempo com coisas reais, objetivas, úteis.”

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a neologism, Evaristo calls it “biographilliving”4. Another way to locate her gut-level experience as a writer as inextricably bound to her biography. An experience I identify and call “aesthetic temper” in Jesus.

Before diving into the aesthetic effects in the concrete writing of both, I point out to Lukács, as a theoretical reference to substantiate the defense of the fictional quality in both writers. I underline the counter-hegemonic nature of that quality, especially where the descriptive and report-like matrix of literary tradition in Brazil would warmly welcome documentary and reflexive writing (Candido, 2003; Velloso, 1988).

In the essay “Narrate or Describe?” (1968), Lukács strongly sets up the limits between participation and observation as mutually exclusive drives in social criticism forged in literary writing. To the Hungarian thinker, much of the mid to late nineteenth century fiction, apparently critical to the capitalist scene in those days, would fall into observation and description rather than evolve into participation and narration. Presumably engaged writers would fall short of organizing a text where relations between the different elements of their narrative would be visible and narrow. Whether the scene at stake was a horse race, whether it was the description of an object, should they stand aloof and disconnected from the tensions along the main narrative axis, they would divorce history and pay homage to a “biography of things”, granted their virtuosity. A mirror-like relation would bring together immediate objectivism in turns with an equally deleterious subjectivism, through which the subject’s conflicts are no longer anchored in his/her historical inscription. In Lukács’s perspective, it is the lack of relation between the subject, with his/her personal history and the objective world that subverts the possible bond between the narrator and his/her surroundings, ensuring his/her humanity, as experience is qualified by participation.

On the basis of Lukács’s understanding of 4 “Escrevivência” in Portuguese.

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historically-engaged narratives, I move on to discuss the fictional anchorage deriving from the relation between objective and subjective life wrought into literary matter by the narrator of Garbage Room. I take notice, therefore, of one of those three personae constituting Carolina Maria de Jesus, as pointed out by Joel Rufino. I take notice of the fiction writer, despite her immediate, documental, and biographical matter and objects of interest, integrating her diary. I am interested in the literary caliber exceeding the most documental obviousness, and sometimes heavy-handed metaphors she reproduces. Let’s take note of Jesus’s aesthetic creation resulting from alternating moves from external references and comments. Let’s pay particular attention to the pattern description-comment-ornamentation-description, in the following passage:

[João] Bought a cup of sparkling water, 2 cruzeiros. Gave him a lecture. Can you believe a slum dweller with such fine selections? [...] The children eats (sic) a lot of bread. They like fresh bread. But when there isn’t any they eat stiff bread. Stiff is the bread we eat. Stiff is the bed we sleep (sic). Stiff is the life of the slum dweller. Oh! São Paulo the queen who proudly shows off your golden crown which turns out to be the skyscrapers. You who wear velvit (sic) and silk and put on cotton socks which turn out to be the slum. [...]The money was short to get the beef, I made noodles with carrot. The was no oil, it tasted horrible. Vera is the only one who complains and wants second helpings (JESUS, 2006, p. 37).5

The question-comment concluding the description

of her child João’s unauthorized actions (l.1-2) unveils the family’s socio-economic status. Jesus knows where she speaks from. More relevantly than its descriptive aspect, the refinement of the rhetoric question echoes in dialogism the voice of the absent one (of the ‘non slum-

5 My translation from the original: “[João] Comprou um copo de água mineral, 2 cruzeiros. Zanguei com ele. Onde já se viu favelado com estas finezas?... Os meninos come muito pão. Eles gostam de pão mole. Mas quando não tem eles comem pão duro. Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado. Oh! São Paulo rainha que ostenta vaidosa a tua coroa de ouro que são os arranha-céus. Que veste viludo e seda e calça meias de algodão que é a favela....O dinheiro não deu para comprar carne, eu fiz macarrão com cenoura. Não tinha gordura, ficou horrível. A Vera é a única que reclama e pede mais.”

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dweller’, the one on upper social steps). She, therefore, imprints a polyphonic character to her diary that goes much beyond the possible immediate objectives of ‘communicating’ her misery. After all, where does that question-reprimand come from? Three times reiterated, the term “bread” (literally and metaphorically the family’s food-for-survival) is qualified by contrasting adjectives – “mole” and “duro” - which, in Portuguese, can be applicable to nouns other than ‘bread’, signaling their ‘hardness’. The last adjective – “duro” – meaning ‘stale’, ‘stiff’, and ‘hard’, in Portuguese, reverberates three times in the opening of the following sentences. The rhythm attained by that repetition, by effect of gradation, is crowned with the nouns preceding the adjective “duro”, in a progression going from the most concrete to the most abstract: “bread”, “bed”, and “life”.

By ornamentation in the pattern I refer specifically to the stylistic elements Aristotle points out in book III of his Rhetoric, as argumentation helpers (ARISTÓTELES, 2005). As opposed to what the name might suggest, ornamentation is described as structuring mechanisms to argumentation and as crucial to rhetorical purposes. In the concrete case of an enunciation place taken by a female slum-dweller, her enunciation is strengthened (as its parts are ornamented) as it succeeds in referring to, alluding to, or emulating classical or neoclassical conventions of her Parnassian predecessors. In the midst of precious gems and metals, and the Greek urns of those notorious poets, Jesus invests with prosopopoeia in the apostrophe to the city (“Oh! São Paulo the queen”). She dresses her interlocutor with a velvet and silk made golden crown. However, she carefully and wisely exposes, by contrast with the fine and dear material on the upper part of that figure, the queen’s feet, wearing unrefined and rough material – cotton – placed on the lower part of the queen’s very royal body.

It is worthy noticing, in addition, that the unexpected combination of high and low elements accounts for a

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shock or surprise effect, proper to the satirical poetry of one of the most notorious seventeenth century poets in Brazil. As opposed to Jesus, Gregório de Matos was highly learned and had perfect command of the poetic coda in his days, articulating social criticism to the specific genres proper to the different circumstances he addressed. The poem “Desaires da Formosura” (“Beauty’s Inelegance”) by Matos suggests a parallel use of high and low lexica in gradation from top to bottom, like in the passage above by Jesus. The poet relates what was regarded as the most spiritual beauty to rare and precious elements until he ends up with the grossest references to the woman’s physiological functions, as can be seen below:

Ruby, shell of pearls, pilgrim,Animated crystal, live scarlet,Two sapphires on top of smooth silver,Waved gold on top of fine silver.

This little face belongs to Caterina; And because she sweetly subjects and killsShe is not less ungrateful because she is divineAnd lightening by lightening hearts she comes to fulminate Transported one afternoonDrinking admiration and merrinessFábio saw she who he had already put up altars: He said equally lovingly and hurt: Ah gentle muchacha what could it be of you If so beautiful as you are you did have not shit!6

In the case of Jesus, the manipulation of poetic effects might be accounted for by her poetic flair and aesthetic aspect, as I call it. However, a display of cultivation and reading permeates her prose, with generalized enclitic use of pronouns and careful choice of rare lexica, but reaches a peak in direct citation of presumably prestigious poets, as can be observed below:

6 My translation from the original: “Rubi, concha de perlas peregrina,/ Animado cristal, viva escarlata,/ Duas safiras sobre lisa prata, Ouro encrespado sobre prata fina. //Este o rostinho é de Caterina; / E porque docemente obriga e mata, /Não livra o ser divina em ser ingrata / E raio a raio os corações fulmina.//Viu Fábio uma tarde transportado/ Bebendo admirações, e galhardias /A quem já tanto amor levantou aras://Disse igualmente amante e magoado:/ Ah muchacha gentil, que tal serias/Se sendo tão formosa não cagaras!”

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I pushed on the cart and off I went for more scrap paper. Vera kept on smiling. And I thought of Casemiro de Abreu, who said: “Smile child. Life is beautiful”. Except if it was beautiful on those days. Because nowadays it is much more adequate to say: “Cry child. Life is bitter”. (HANSEN, 2004, p. 85-7).

Inflexion of meaning, wrought in the ironic comment to the original verse by a Brazilian romantic poet, nevertheless, aggregates authorial value e dilutes any hypothesis of a deferential stand on Jesus’s part. The verse reproduced refers to a diametrically opposed reality – a class-based nation – from that which the listener, reader, and writer re-work.

The physiological gaze cast upon the city, animated as a body unevenly dressed, as in the passage above, gains an extra clout by metonymical elaboration in a further reference to the city as home. The elevated and low terms and images mentioned are reiterated in the metaphorization of the social-existential topic, which nourishes the title for Jesus’s diary:

[...] At eight-thirty in the evening I was already at the slum, breathing the odor of the excrement mashed with the rotten clay. When I am away in the city I have the feeling I am in the living room with its crystal chandeliers, its velvit (sic) rugs, ceten (sic) pads. And when I am in the slum I have the feeling I am an object out of use, worth to be in a garbage room. (JESUS, 2006, p.33)7.

The passage still plays with the differentiated use of “estar” and “ser”. The narrator’s transit about the city gives her the feeling of the transience ascribed by the verb “estar”, her ephemerons being in a noble place – the city. By striking contrast, the slum is more than a place for staying (“estar”), for it gives her the ontological feeling of “being” – and of a reified “being”, a commodity, for it goes round on the circuit of commercial exchanges and can be out of order and out of use. The aesthetic effect in Jesus’s

7 My translation from the original: “[...] As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.” The forms of the verbs ser and estar I italicized in the passage are translated as forms of the same verb to be in English. The ensuing discussion above highlights the semantic play with the two verbs in Portuguese as well as the aesthetic effects attained.

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Diary evinces, therefore, the viscerally literary temper of that writing, which develops far beyond communicating misery or reporting on social injustice, as suggested before.

In the aforementioned essay on description and narration (Lukács, 1968), a cosmovision is evoked as proper to those who keep up a holistic-like type of narrative. With the narrative parts and elements interconnected, thus, proper criticism to the generalized parceling of production orders can then take place. Homer’s Iliad comes in as an emblem for Lukács’s theoretical construction. Generous description of each object meets the purpose of binding them historically to their users. That is, those objects have a history of their own and, like their corresponding characters, are not commodities to be disposed of or replaced at random. Objects are heroic legacy, part of the body, I would add, the body of the heroes - as their ‘arms’ would testify. In book XVIII of the Iliad, Achilles’s mother Thetis gets her son ‘made-to-order’ arms from Vulcan, so that he can avenge the death of his beloved Patroclus:

And Vulcan answered, “Take heart, and be no more disquieted about this matter; would that I could hide him from death’s sight when his hour is come, so surely as I can find him armour that shall amazethe eyes of all who behold it.When he had so said he left her and went to his bellows, turning them towards the fire and bidding them do their office. Twenty bellows blew upon the melting-pots, and they blew blasts of every kind, some fierce to help him when he had need of them, and others less strong as Vulcan willed it in the course of his work. He threw tough copper into the fire, and tin, with silver and gold; he set his great anvil on its block, and with one hand grasped his mighty hammer while he took the tongs in the other.8 Notice below the unique hand-made ornamentation

of the arms is made with dear material and comprises a narrative itself:

8 Samuel Butler’s version of the corresponding passage in Portuguese, translated from the Greek by Odorico Mendes: “Diz Vulcano: “Sossega, não te aflijas./ Pudesse à minaz Parca subtraí-lo,/ Como lhe hei-de aprestar brilhantes armas,/Dos humanos espanto.” Eis vai-se aos foles,/Víra-os ao fogo, e ordena-lhes que operem./Eles em vinte forjas respiravam,/ Ora com sopro lento, ora apressado,/ Segundo o que há na mente e quer o artista./ Cobre indômito ao fogo e estanho e prata / E ouro pôs fino, ao cepo vasta incude, A tenaz numa mão, noutra o martelo.” Disponível em: < http://pt.wikisource.org/wiki/Anexo:Imprimir/Il%C3%ADada_(Odorico_Mendes)>. Acesso 03 jan. 2012.

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First he shaped the shield so great and strong, adorning it all over and binding it round with a gleaming circuit in three layers; and the baldric was made of silver. He made the shield in five thicknesses, and with many a wonder did his cunning hand enrich it. He wrought the earth, the heavens, and the sea; the moon also at her full and the untiring sun, with all the signs that glorify the face of heaven- the Pleiads, the Hyads, huge Orion, and the Bear, which men also call the Wain and which turns round ever in one place, facing. Orion, and alone never dips into the stream of Oceanus.9

If the ‘production order’ Lukács refers to is heroically on display when the several stages of the manufacturing process are inextricably related to man’s life, Jesus production cycle stands out for its epic status. Repeatedly, the literal action of collecting – garbage (scrap paper, cans, etc.) – is mixed with the work of collecting words. Symbolically, paper (scrap paper) is recycled (long before the generalized recycling ‘waves’) into stationery - raw-material for Jesus’s aesthetic undertaking: “I am unguided, unsure about where to start with: I want to write. I want to work, I want to do the laundry.” (p. 40).10 This time, the reiteration of the first person of the verb “to want” anticipates equivalent predicates that start firing off, from the most ethereal (“to write”) to the most specific (“to do the laundry”). They are both mediated by laborial action (“to work”) in two versions: spiritual (to write ‘fiction’) and physical (to do the laundry) – both, in Jesus’s case, handwork.

It is also relevant the ambivalence of ‘paper’ as well as of ‘collecting’. Metonymical labor brings together waste (scrap paper) and poetry. They are values integrating a poetic economy contrary to mercantile economy: it is worthy of value whatever is disposed of as raw material for producing whatsoever is dear in the symbolic order: “...I like to be home, locked in. I don’t like to be chatting on the corners. I like to be by myself and

9 Samuel Butler’s version of the corresponding passage in Portuguese, translated from the Greek by Odorico Mendes: “Sólido forma o escudo, ornado e vário/ De orla alvíssima e triple, donde argênteo/ Boldrié pende, e lâminas tem cinco./ Com dedáleo primor, divino engenho,/ Insculpiu nele os céus e o mar e a terra;/ Nele as constelações, do pólo engastes, / Oríon valente, as Híadas, as Pleias,/ A Ursa que o vulgo denomina Plaustro,/A só que não se lava no Oceano. Disponível em: < http://pt.wikisource.org/wiki/Anexo:Imprimir/Il%C3%ADada_(Odorico_Mendes)>. Acesso 03 jan. 2012.

10 My translation from the original: “Estou desorientada, sem saber o que iniciar. Quero escrever. Quero trabalhar, quero lavar roupa.”

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reading. Or writing! I turned at Frei Galvão street. There was hardly any scrap paper.” (p. 23, highlights added). Jesus’s interior world – that of her domestic and spiritual writing – contrasts with the external world, imposing and threatening as physical subsistence presses on. As a result, the ambivalence of ‘paper’, a term flooding her Diary, conditions the horizons of meanings of the final sentence, as misery – both material as spiritual – as “there was hardly any scrap paper”.

The fictional temper of Carolina Maria de Jesus brews on the circuit collection-disposal. It takes off from immediate nature and life, a permanent reference, to fabricate the imaginative space, in a constant back-and-forth swing from abstract-concrete or concrete-abstract. Let’s appreciate the denaturalization of cosmic forces in nature, in their indifferent and banal manifestations: “MAY 22 Today I am sad. I am nervous. I am not sure whether I should cry or run until I fall unconcious (sic). The thing is that when the day broke today it was raining. I did not go out to get money. I spent the day writing”.11 Text typology in the Diary proves the failure of crono-logics as a resource for symbolic organization of chaos, and makes Jesus dive into the internal logic of “alienated” writing, in Rufino’s terms, resisting, in its gratuity, against mercantile logic. “To get money” and “to spend the day writing” are contradictions juxtaposed without the aid of connectives in the day’s entry. After all, money, in cash form, is paper made, and the scrap she collects has exchange value and monetary equivalence. Unexplainable contradictions to the “very clean little black woman”, the seamstress, unhappy about her own job, and therefore, startled at Jesus’s apparent freedom: “To collect scrap and yet to be able to sing”.

It is productive to bring in similar passages in Conceição Evaristo’s Becos da Memória (2008). The effects of the hard work of the laundry women, the “lineage” several women in the writer’s family belong in, are highlighted in the set of contrasts, formally elaborated in sentences without conjunctions:

11 My translation from the original: “22 DE MAIO Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se choro ou saio correndo sem parar até cair inconciente. É que hoje amanheceu chovendo. E eu não saí para arranjar dinheiro. Passei o dia escrevendo.”

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With the persistence of rain, it was worse. All would get damp, all moldy, all clay, all mud and cold. The warmers were few. The patronesses’ laundry would not get dry. The work would take long and much from us and little did come out of it. The sun, sometimes, would show and signal hopeful days in the sky. The laundry was rushed onto the clothes line, and hardly was it thrown over it would return drenched, and at times, dirty to the basin in the corner of the shack. “They needed washing over again.” (EVARISTO, 2006, p. 128, highlights added).12

The indifferent action of nature – the rain and the sun are intermingled, ironically, with the opposites “all” and “little” and “few”, resulting from the forging of a shock between lack and excess, coexistent and socially produced.

From a broad social historical context where Joel Rufino takes his stand, Carolina Maria de Jesus would have been “a lonely poor”, even rejecting the social class identity (her first person plural was in the roll of the poor) and writing not to but against blacks and slum dwellers (Santos, 2009, p. 116). One can understand why and how she could displease both the Greek and the Trojan:

To the social classes who flirted with her, in fascination, Carolina stood for the poor, but that fascination reached an end when they realized she was a “haughty poor”. When it came to the poor who rejected her, from the very beginning, her literature was useless. To them she was nothing but a “conceited nigger”. (p.118).13

It sounds reasonable to say that her uniqueness does not welcome taxonomies. Uncomfortable as it might feel to her readers, she permanently swings back and forth on her positions. At times, she might affect certain pride in her negritude whereas, simultaneously, she takes distance from any collective identity. Let´s keep that (im)possibility to speak until later when we can address it with Gayatri Spivak’s provocations.

12 My translation from the original: “Com a persistência da chuva, era pior. Tudo ia ficando úmido, tudo mofo, tudo barro, tudo lama e frio. Os agasalhos eram poucos. As roupas das patroas não secavam. O trabalho custava tanto e pouco rendia. O sol, às vezes, aparecia trazendo um tempo esperançoso no céu. As roupas corriam para os varais e, mal eram penduradas, retornavam molhadas e, às vezes, sujas às bacias no canto do barraco. “Era preciso lavá-las de novo.”

13 My translation from the original: “Para a sociedade que a cortejou, fascinada, Carolina representava os pobres, mas o fascínio acabou quando viram ser uma ‘pobre soberba’. Já para os pobres que a rejeitaram, desde sempre, sua literatura em nada serviu. Para eles, nunca passou de uma ‘crioula metida.’”

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The female characters in Conceição Evaristo, by contrast, are not prone or destined to solitude, despite their many ‘highjacks’ in life. Social wear and tear and the multifaceted diasporas, not infrequently, isolate or silence them. It is not, however, a definite condition or attitude on their way, which includes, at the bottom line, the wish for integration – integration, but not domestication. Whether the context is the corners in the eradicated slum in Becos da memória or the places visited by the narrator-interviewer in Insubmissas lágrimas de mulheres, final redemption of the exploited is wrought upon assertion of a collective identity, usually conducted by female figures. Family provides for a constantly widening solidarity core, which takes in all of those who have no ‘representation’, a dear category to the Indian essayist Gayatrik Spivak.

In the case of her biographical-novel, Becos da memória, 2006, several female characters stitch up collective identities, starting at their family nucleus. In the midst of misery and pettiness – never absent – grandeur and solidarity are intertwined. Some of those characters are spearheads to social retrieval and symbolic multiplication. In the space of perverse inclusion, for example, Maria-Nova, the girl who finds meaning to life in the act of writing, is also the one who sets on to report on the conservative character of school and schooling. She gets to learn, from the peak of pain – hers and her folks’ – new meanings to old academic topics, as, for example, “Slavery Abolition”:

Maria-Nova stood up and said that, on slaves and freedom, she would have many lives to tell. And that would take the whole class and that she was unsure whether it was what the teacher was after. She had to tell about some slave quarters today whose inhabitants were still not free, for they had nothing to live on. […] There were a lot of stories, out of another History, no matter how far away in time and space they were. She thought of Uncle Totó. Was it what the teacher call a free man? (EVARISTO, 2006, p. 137-138).14

14 My translation from the original: “Maria-Nova levantou-se dizendo que, sobre escravos e libertação, ela teria para contar muitas vidas. Que tomaria a aula toda e não sabia se era bem isso que a professora queria. Tinha para contar sobre uma senzala que, hoje, seus moradores não estavam libertos, pois não tinham nenhuma condição de vida. [...] Eram muitas as histórias, nascidas de uma outra História, apesar de muitas vezes distantes no tempo e no espaço. Pensou em Tio Totó. Isto era o que a professora chamava de homem livre?”

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As Negro Alírio, the militant unionist, the newly-arrived outsider the girl looks up to, Maria-Nova makes sense of her mission in the community space:

She looked once more at Negro Alírio. She meant to tell him what decision she had made. She silenced, however, sure she was going to follow him. Sure, she would move on. One day, she would narrate, loosen up the voices, the murmurs, the stifled scream which was hanging there, which belonged to each and everyone. One day, Maria-Nova would write the speech of her people (EVARISTO, 2006, p.161).15

Along Rufino’s comment on Carolina-the-character - the solitary poor - Maria Nova and Negro Alírio stand as perfect antipodes to the Canindé’s slum dweller. They are socially oriented missionaries and articulators. As in Carolina-the-writer, Conceição Evaristo takes off from the factual records of an ‘immediate and original’ biography also to attend to the designs of an internal logic, presumably superior in strength to the referential, documental, and immediate reporting. Again, it is interesting to think of this move as in opposition to the documentary matrix prevailing in the Brazilian literary tradition. It might be in the realm of the fictional and of the ‘alienated’, back to Rufino, the possibilities of rereading the past and putting together the ruins scattered by History and dominant literary traditions. And Evaristo might be able to offer, in the twenty-first century, and in the ‘alienation’ of her writing, a canal for edification of those ruins, scattered and solitary, among which, Carolina Maria de Jesus’s aesthetically marked writings stand out. If their creative imagination brings the two writers together, they part company when it comes to the solitary inscription of the first against the collective stand of the second.

Gender alliance is a conducting thread in the thirteen short stories integrating Insubmissas lágrimas de mulheres (Evaristo, 2011). All of them are entitled

15 My translation from the original: “Olhou novamente para Negro Alírio. Quis falar com ele sobre o que já havia decidido. Calou, sabendo, entretanto, que iria adiante com ele. Sim, ela iria adiante. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo”.

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with the names and family names of the leading female characters approached by the female narrator, under the guise of producing ‘interviews’. An introductory half-page - titleless – announces: “Therefore, these stories do not belong exclusively to me, but they are nearly mine as, at times, they merge with mine. Do I make believe? I do, positively, and shameless”16, and she adds later that “between the fact and the narrative of the fact, something is lost and therefore, added,17 summing it up at the closing of the consideration that “upon recording these stories, I keep up the premeditated act of delineating a ‘biographilliving”18 (Evaristo, 2011, p. 9). From the prologue, co-authorship is reiterated in the body of the short stories, especially in “Lia Gabriel” and “Regina Anastácia”, respectively:

While Lia Gabriel narrated her story to me, a recall flash of Aramides Florença messed between the two of us. Not just that of Aramides, but of several other women were confused in my mind. For a spark of a second, it also came to mind the flash image of Painful Mater and of God’s son nailed to the cross, biblical fictions conveying the faith of many. Other goddesses, savior women, trying to get rid of the cross, grew large in my memory. Aramides, Lia Shirley, Isaltina, Daluz and many others who challenged the beads of an infinite rosary of pain. (EVARISTO, 2011, p. 81).19

In the juxtaposition of images and flashes, emblematic configuration of the Benjamin’s vision of history written up “against the grain”, authorial merging also clouds the unproductive limits between the strictly biographical and the factual, on the one hand, and the “make-believe” suggested in the introduction to the anthology, on the other hand. After all, a reminder that the truth of fiction is verisimilitude. Thus, women and female characters are interchangeable, and the blurring of those limits causes no damage to literary truth:

16 My translation from the original: “Portanto, estas histórias não são totalmente minhas, mas quase que me pertencem, na medida em que, às vezes, se (con)fundem com as minhas. Invento? Sim, invento sem o menor pudor.”17 My translation of: “entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta”.18 My translation from the original: “ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência.”19 My tranaslation from the original: “Enquanto Lia Gabriel me narrava a história dela, a lembrança de Aramides Florença se intrometeu entre nós duas. Não só a de Aramides, mas as de várias outras mulheres se confundiram em minha mente. Por breve instante, me veio também a imagem da Mater Dolorosa e do filho de Deus pregado na cruz, ficções bíblicas, a significar a fé de muitos. Outras deusas, mulheres salvadoras, procurando se desvencilhar da cruz, avultaram em minha memória. Aramides, Lia Shirley, Isaltina, Daluz e mais outras que desafiavam as contas de um infinito rosário de dor”.

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Flashes of other queens came to mind: Mãe Menininha do Gantois, Mãe Meninazinha d’Oxum, the Queens of Congo fests, royalties I ran across in my childhood in Minas; Clementina de Jesus, D. Ivone Lara, Lia de Itamaracá, Lea Garcia, Ruth de Souza, Senhora Laurinda Natividade, Professor Ifigênia Carlos, Dona Iraci Graciano Fidelis, Toni Morrison, Nina Simone ... And still several other women, my sisters across the Atlantic, whom I saw in Mozambique and Senegal, in the cities and in the villages. And many others and many others. (p. 106-7)20

Geographical crossing in the name of a new cartography of the I necessarily dismantles excluding criteria of those teams of “defeated”, who can now show their marks of production on a two-folded front. First, exhuming traditions, stories, names and archaic origins, wiped out in the ‘civilizing’ process. Secondly, making a productive appropriation of practices exogenous to their African origins, like writing, to set up a dialogue with literary and poetic traditions they were excluded of (or, at times, as in the case of Machado de Assis, included by a process of whitening and ‘universalizing’).

It is by the assertion of syncretism that the short story “Adelha Santana Limoeiro” presents her main character:

Since I could not make sense of why her image looked so familiar to me, I decided to find her looks like those on a stamp I had seen several times, still in my childhood days: that of Saint Anne, the old saint, Our Lady’s mother, Jesus’s grandmother. And because most stamps of female and male saints are white, and to confirm my findings of likeliness, I had decided to believe Adelha Santana Limoeiro would look like Saint Anne (that was the way we would put it when we were small), when the saints were black. After ensuring the validity of my likeliness invention round and round, the notion of syncretism helped me out. I mixed it all up. Adelha Santana Limoeiro, black, could actually remind one of the white saint, because Jesus’s grandmother usually makes a syncretic appearance as

20 My translation from the original: “Lembranças de outras rainhas me vieram à mente: Mãe Menininha do Gantois, Mãe Meninazinha d’Oxum, as Rainhas de Congadas, realezas que descobri, na minha infância, em Minas, Clementina de Jesus, D. Ivone Lara, Lia de Itamaracá, Lea Garcia, Ruth de Souza, a Sra Laurinda Natividade, a Profa. Ifigênia Carlos, D. Iraci Graciano Fidelis, Toni Morrison, Nina Simone [...] E ainda várias mulheres, minhas irmãs do outro lado do Atlântico, que vi em Moçambique e no Senegal, pelas cidades e pelas aldeias. Mais outras e mais outras.”

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Nanã, a Nago myth. Mixing faith, I worked out the possible merge. I stepped on the two plots, since Nanã is also old. Adelha Santana Limoeiro is Nanã, that who is familiar with slime, mud, ooze where the dead are. Saint Anne, Nanã, Limo(eiro).21, 22 (p.2-3, highlights added)

Onomastic games, nevertheless, are more plentifully realized as a second structuring narrative strategy (co-authorship is the first one). They add sophistication to cultural co-belongness, closer to syncretism than to dialectic synthesis. First names of the female characters in Insubmissas lágrimas de mulheres reflect legacies that qualify ‘proper’ not just as original, but also what has become ‘one’s own’ on account of historical incorporation – mnemonic product of the alternance between remember-forget. Out of Christian female and male saints (Maria do Rosário Imaculada dos Santos, Mirtes Aparecida Daluz e Mary Benedita) and of the literary characters (Saura Benevides Amarantino), moving on to the names of the slave owners adjunct to the names of their ‘human property’ (Rose Dusreis)23, in addition to the memories of their stolen away transatlantic motherlands (Líbia Moirã), and reaching the self-naming processes with Natalina Soledad, baptized as Troçoleia Malvina Silveira, all of the name-titles imprint, in high profile, marks of pain, as well as signs of the overcoming of pain on the part of the main characters. The “Maria de Jesus” in Carolina Maria de Jesus, would perfectly thicken up the broth.

It is in the female solidarity that the Philomela-like characters in Insubmissas lágrimas de mulheres find echo for insubmission against a wide spectrum of physical and moral violence they are the target for. The narrator’s pen invests against misogyny practiced by those who, from any race, color, or creed, substantiate strongly asymmetrical gender relations with the female subjection. The philomelas of Conceição (Oxum) Evaristo populate Brazil up to 21st century and the misogynic picture

21 My translation of: “Já que eu não conseguia atinar com o porquê da imagem dela me ser tão familiar, decidi achá-la parecida com uma estampa, que eu tinha visto várias vezes, ainda na minha infância: a de Santa Ana, a santa velha, a mãe de Nossa Senhora, a avó de Jesus. E como as ilustrações de santas e santos, na grande maioria são brancas, para confirmar os meus achados de parecença, resolvi crer que Adelha Santana Limoeiro pareceria com Santana (era assim que falávamos quando criança), quando a santa fosse negra. Buscando assegurar a validade de meu invento de semelhança para lá e parecença para cá, na ideia de sincretismo encontrei a solução. Confundi tudo. Adelha Santana Limoeiro, negra, poderia sim, relembrar a santa branca, a Santana, pois a avó de Jesus aparece sincretizada com Nanã, mito nagô. Misturando a fé, fiz o amálgama possível. Pisei nos dois terrenos, já que Nanã é também velha. Adelha Santana Limoeiro é Nanã, aquela que conhece o limo, a lama, o lodo, onde estão os mortos. Santana, Nanã, Limo(eiro).

22 Note: The writer obviously splits the character’s last family name Limo(eiro) to evince etymology and highlight semantic possibilities. ‘Limo’ stands for ‘slime’ and ‘limoeiro’ is also the lime tree.

23 ‘Dusreis’ comes out as agglutination for ‘dos Reis’, that is, of the Reis, belonging to the family Reis.

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referred to becomes more complex either in fiction as well as out of it. Stepping away from frequent (and simplistic) triumphant versions, both black women as several characters in Evaristo’s short stories get into the middle social strata, go to school, work as teachers, plastic artists, nurses, dancers, economists, writers, among others. Nonetheless, they go on sharing, like their generation predecessors with less schooling, leading roles and responsibility for their material and affective self-sustenance and that of their families.

The brief visit into Carolina Maria de Jesus’s and Conceição Evaristo’s writings addresses Gayatri Spivak’s questions in two of her most notorious essays on aesthetic and political representation: “Who Claims Alterity?” (1994) and Can the Subaltern Speak? (2010). In the first, the Indian critic describes the logic of internal colonization in India after political emancipation. She sustains that post colonial ‘internal’ representatives (the West alterities) echo nothing but the desire and the interest of the former colonizer. They are privileged ‘natives’ and informants, coopted and domesticated, as they belong to the upper castes, where the smallest part of India’s population lies. Jesus’s case is emblematic of that thesis for, in the fifties, the writings and the life of that slum dweller disturbed categories and expectations of either middle or low classes, insofar as ‘class’ discourses were sought.

As Rufino pointed out, in less than ten years Carolina Maria de Jesus stepped out of the miserable life in the slum, was famous, and neared misery again. Alterity claimed by the writer of Canindé echoed, in fact, in her lifetime. She was first published with the mediation by Audálio Dantas, a journalist wandering along the banks of the polluted Tietê River, in São Paulo, Brazil, in search of evidence for the urban collapse in the ‘developing years’ the country was going through. However, stepping out of the strictly biographical time, Jesus’s claim is still echoing in the significant mutations in the realm of literary theory, in the mapping out of literary objects and, doubtlessly,

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in the widening of cultural studies, which challenges traditions in the Institutes of Letters and Humanities. Her claims also reverberates on institutional measures and legal provisions which, for sure, taking care of diversity, compete with the market greed, now a lot more volatile and sensitive to ‘internal voices’ than in those days. ‘Alterity’, as a problem posed by Spivak in her 1989 essay, as well as ‘subalternity’, in her 1985 essay, addresses issues of political and aesthetic representation in post colonial India, which are widespread and magnified worldwide in the mid 80’s.

Especially in “Can the Subaltern Speak?”, the Marxist writer warns against the double displacement of the feminine in colonial historiography, considering that “the ideological construction of gender maintains male domination. If in the context of colonial production, the subaltern subject has no story and cannot speak, the female subaltern subject is more deeply in obscurity.” (SPIVAK, 2010, p. 66-68). The theoretician bets on the assessment of silence, of what is unsaid, as a methodological procedure. That would suit the investigator who seeks routes less attractive to the eyes of mainstream knowledge producers. In this sense, the excessive discursiveness in Jesus’s Diaries, integrating her reporting, the claims for justice, vengeance wishes, moralizing impetus, and prejudices – frustrates the expectations of ‘poverty’s portraitists’ to find homogeneous and good-mannered discourse which might soothe them back with self-satisfaction (SPIVAK, 2010, p. 27). Additionally, as I believe to have demonstrated, Jesus’s writing is punctuated by zones of silence which overflow from the discontinued chronological diary, anchored in her undeniable ‘aesthetic temper’. The autonomous and literary dimensions of Jesus’s writing are a lot more eloquent of her existential condition than what her descriptive records can tell.

Part taking the same aesthetic aspect, the writing of Conceição Evaristo is added with a collective nature of identity assertion and vindication, unknown to Carolina

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Maria de Jesus. It seems the fiction by the former bridges up the gap, in Spivak’s terms, “between making the mechanism visible and making the individual vocal”. Obviously, it is not without a risk that such bridging opens up room for oral manifestation, whose narratives are intertwined, in absence and silence, and whose representation by the fiction writer can also, whether in rare moments, step back from more radical challenges posed to gender roles. To put the slum corners she was actually familiar with, in memory and in writing, Evaristo echoes Jesus, in the biographical pages that feed her fiction. She also shares with her predecessor, a rosary of short stories. The first one translates them in the poetic records of a diary, in which poetic imagination is masked behind chronological and sociological concerns, yet pointed and flamboyant along its narrative flow. The second validates “stories that do not belong to her alone”, sure that her fiction and poetry can bring together the defeated and silenced ones. Post colonial female writing in Brazil seems to be setting up a highly productive dialogue with the very mainstream traditions accounting for the obliteration of those female voices and their own memories and traditions. Fiction aspect and poetic imagination have brought back up onto the foreground the scattered ruins of broken female histories and ascribed legitimacy to what was once generally regarded as lacking – in the case of female writing – lacking literariness.

REFERENCES

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Pareceristas ad hoc

Andrea Ciacchi (UNILA)Arnaldo Franco Júnior (UNESP)Helena Bonito Couto Pereira (Univ. Mackenzie)Liane Schneider (UFPB)Luiz Antônio Mousinho Magalhães (UFPB)Maria Analice Pereira (IFPB)Marilene Weinhardt (UFPR)Sandra Amélia Luna Cirne (UFPB)Zuleide Duarte (UEPB)

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Normas da revista

Normas para apresentação de artigos

• Só serão aceitos trabalhos enviados pela internet para o endereço: [email protected]

• Os artigos podem ser apresentados em português ou em outro idioma. Devem ser produzidos em MSWord 2007 (ou versão superior), com uma folha de rosto onde constem os dados de identificação do autor: nome, instituição, ende-reço para correspondência (com o CEP), e-mail, telefone (com prefixo), título e temática escolhida. A extensão do texto deve ser de, no mínimo, 10 páginas e, no máximo, 20, espaço simples. Todos os trabalhos devem apresentar também Abstract e Keywords.

• O espaço para publicação é exclusivo para pesquisadores doutores. Eventualmente, poderá ser aceito trabalho de não doutor, desde que a convite da comissão editorial – casos de colaborações de escritores, por exemplo.

• Após a folha de identificação, o trabalho deve obedecer à seguinte sequência:

- Título – centralizado, em maiúsculas e negrito (sem grifos);

- Nome(s) do(s) autor(es) – à direita da página (sem negrito nem grifo), duas linhas abaixo do título, com mai-úscula só para as letras iniciais. Usar asterisco para nota de rodapé, indicando a instituição à qual está vinculado(a). O nome da instituição deve estar por extenso, seguido da sigla;

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- Resumo – a palavra Resumo em corpo 10, negrito, itálico e maiúsculas, duas linhas abaixo do nome do autor, seguida de dois pontos. O texto-resumo deverá ser apresentado em itálico, corpo 10, com recuo de dois centímetros de margem direita e esquerda. O resumo deve ter no mínimo 3 linhas e no máximo 10;

- Palavras-chave – dar um espaço em branco após o re-sumo e alinhar com as mesmas margens. Corpo de texto 10. A expressão palavras-chave deverá estar em negrito, itálico e maiúsculas, seguida de dois pontos. Máximo: 5 palavras-chave;

- Abstract – mesmas observações sobre o Resumo;

- Keywords – mesmas observações sobre as palavras-chave;

- Texto – em Times New Roman, corpo 12. Espaçamento simples entre linhas e parágrafos. Usar espaçamento duplo entre o corpo do texto e subitens, ilustrações e tabelas, quando houver;

- Parágrafos – usar adentramento 1 (um);

- Subtítulos – sem adentramento, em negrito, só com a primeira letra em maiúscula, sem numeração;

- Tabelas e ilustrações (fotografias, desenhos, gráficos etc.) – devem vir prontas para serem impressas, dentro do padrão geral do texto e no espaço a elas destinados pelo autor;

- Notas – devem aparecer ao pé da página, numeradas de acordo com a ordem de aparecimento. Corpo 10.

- Ênfase ou destaque no corpo do texto – negrito. Palavras em língua estrangeira – itálico.

- Citações de até três linhas vêm entre aspas (sem itálico), seguidas das seguintes informações entre parênteses: so-brenome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s). Com mais de 3 linhas, vêm com recuo de 4 cm na margem esquerda, corpo menor (fonte 11), sem aspas, sem itálico e também seguidas do sobre-

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nome do autor (só a primeira letra em maiúscula), ano de publicação e página(s).As citações em língua estrangeira devem vir em itálico e traduzidas em nota de rodapé.

- Anexos, caso existam, devem ser colocados antes das referências, precedidos da palavra ANEXO, em maiúsculas e negrito, sem adentramento e sem numeração. Quando constituírem textos já publicados, devem incluir referência completa, bem como permissão dos editores para publi-cação. Recomenda-se que anexos sejam utilizados apenas quando absolutamente necessários.

- Referências – devem ser apenas aquelas referentes aos textos citados no trabalho. A palavra REFERÊNCIAS deve estar em maiúsculas, negrito, sem adentramento, duas linhas antes da primeira entrada.

alguns exemPlos de Citações

• Citação direta com três linhas ou menos

[...] conforme Octavio Paz, “As fronteiras entre objeto e sujeito mostram-se particularmente indecisas. A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade, ou pelo menos, o único testemunho de nossa realidade.” (PAZ, 1982, p. 37)

• Citação indireta

[...] entre as advertências de Haroldo de Campos (1992), não há qualquer reivindicação de possíveis influências ou contágio, ao contrário, foi antes a poesia concreta que assumiu as conseqüências de certas linhas da poética drummoniana.

• Citação de vários autores

Sobre a questão, pode-se recorrer a vários poetas, teóricos e críticos da literatura (Pound, 1977; Eliot, 1991; Valéry, 1991; Borges, 1998; Campos, 1969)

• Citação de várias obras do mesmo autor

As construções metafóricas da linguagem; as indefinições; a presença da ironia e da sátira, evidenciando um confron-to entre o sagrado e o profano; o enfoque das personagens

Normas da revista

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em diálogo dúbio entre seus papéis principais e secundários são todos componentes de um caleidoscópio que põe em destaque o valor estético da obra de Saramago (1980, 1988, 1991, 1992)

• Citação de citação e citação com mais de três linhas

Para servir de fundamento ao que se afirma, veja-se um trecho do capítulo XV da Arte Poética de Freire: Vê, [...] o nosso entendimento que a fantasia aprendera e formara em si muitas imagens de homens; que faz? Ajunta-as e, de tantas imagens particulares que recolhera a apreensiva inferior [fantasia], tira ele e forma uma imagem que antes não havia, concebendo que todo o homem tem potência de rir [...] (FREIRE, 1759, p. 87 apud TEIXEIRA, 1999, p. 148)

alguns exemPlos de RefeRênCias

• Livro

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo. Para-doxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

• Capítulo de livro

BERND, Zilá. Perspectivas comparadas trans-americanas. In: JOBIM, José Luís et al. (Org.). Lugares dos discursos literários e culturais – o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário. Niterói: EdUFF, 2006. p.122-33.

• Dissertação e tese

PARMAGNANI, Claudia Pastore. O erotismo na produção poética de Paula Tavares e Olga Savary. São Paulo, 2004.Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-cias Humanas, Universidade de São Paulo.

• Artigo de periódico

GOBBI, M. V. Z. Relações entre ficção e história: uma bre-ve revisão teórica. Itinerários, Araraquara, n. 22, p. 37- 57, 2004.

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219Normas da revista

• Artigo de jornal

TEIXEIRA, I. Gramática do louvor. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 abr. 2000. Jornal de Resenhas, p. 4.

• Trabalho publicado em anais

CARVALHAL, T. F. A intermediação da memória: Otto Ma-ria Carpeaux. In: II CONGRESSO ABRALIC – Literatura e Memória Cultural, 1990. Anais... Belo Horizonte. p. 85-95.

• Publicação on-line – Internet

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