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HÉLIO PEREIRA LIMA
RACIONALIDADE E EMANCIPAÇÃO
UMA LEITURA DA TEORIA DA MODERNIDADE DE
JÜRGEN HABERMAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
MESTRADO EM FILOSOFIA
JOÃO PESSOA - PB 2000
HÉLIO PEREIRA LIMA
RACIONALIDADE E EMANCIPAÇÃO
UMA LEITURA DA TEORIA DA MODERNIDADE DE
JÜRGEN HABERMAS
Orientador: Prof. Dr. Giovanni da Silva Queiroz
João Pessoa – PB 2000
HÉLIO PEREIRA LIMA
RACIONALIDADE E EMANCIPAÇÃO
UMA LEITURA DA TEORIA DA MODERNIDADE DE
JÜRGEN HABERMAS Aprovado em 16.03.2000
COMISSÃO EXAMINADORA
_________________________________________ Prof. Dr. Giovanni da Silva Queiroz (UFPB)
Orientador
_________________________________________ Prof. Dr. Edmilson Meneses Santos (UFSE)
Examinador
_____________________________________________ Prof. Dr. José Francisco de Melo Neto (UFPB)
Examinador
Dedico este trabalho a todos aqueles que acreditaram no diálogo e fazem dele o caminho de busca da superação dos conflitos
Agradeço à Universidade Católica de Pernambuco, na pessoa do Magnífico
Reitor, Pe. Theodoro Paulo Severino Peters, SJ., toda a confiança e o apoio
recebidos, para a realização deste trabalho;
Ao corpo docente do Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade
Federal da Paraíba, pela dedicação com que se dispôs a colaborar nessa etapa de
formação; e aos colegas mestrandos desse Programa, que comigo compartilharam
dos desejos e ansiedades, próprios de quem se lança na busca do conhecer.
De maneira especial, agradeço aos colegas do Departamento de Filosofia e
Teologia da Universidade Católica de Pernambuco, sobretudo aos que diretamente
contribuíram para a realização desta pesquisa;
À minha esposa, Maria Izabel e minha filha, Marina, com as quais
compartilho, mais proximamente, da experiência do diálogo.
Um particular agradecimento ao Prof. Dr. Giovanni da Silva Queiroz, que
com paciência e dedicação, acolheu a tarefa de orientar a elaboração deste trabalho.
“Penso que antes deveríamos aprender com os
desacertos que acompanham o projeto da modernidade, com
erros dos ambiciosos programas de superação, ao invés de dar
por perdidos a própria modernidade e seu projeto”
Jürgen Habermas
RESUMO
A presente dissertação tem como objetivo fazer uma leitura da teoria
da modernidade de Jürgen Habermas. O pressuposto dessa teoria é o de que o
processo de racionalização estabeleceu uma relação interna, indissociável, entre
modernidade e racionalidade. Tal indissociabilidade radica-se na compreensão de
que a racionalização possibilitou a liberação de conteúdos cognitivos, bem como
de tipos de racionalidades específicas, os quais só podem ser apreendidos mediante um
conceito de razão mais amplo: a razão comunicativa. Esta procura superar os limites
da filosofia da subjetividade, que se expressa na relação monológica entre sujeito e
objeto, que conhece o mundo egocentricamente. É mediante a perspectiva da
racional idade dialógica que se manifestam tanto a dignidade da modernidade, que
se fundamenta na diferenciação em esferas de valores independentes, quanto o
sentido emancipador desse novo modelo de razão, que consiste em resgatar sua
unidade, à medida que instaura o diálogo, com vistas ao entendimento, como
paradigma da intercompreensão entre sujeitos.
9
INTRODUÇÃO
Uma das preocupações encontradas no pensamento de Jürgen
Habermas, senão o acento principal, é a de que a modernidade é um “projeto
inacabado”. Isso significa que, ainda, existe algo a ser esclarecido, e, como tal, está
presente e é parte constitutiva das discussões que se fazem em torno da atualidade e
do sentido do mundo moderno. Tal afirmação pode ser reforçada, quando se
observa a aproximação entre os conceitos de modernidade e crise1. Sobretudo,
porque, nem sempre, se estabelece, com clareza, a compreensão do primeiro
conceito, que, por sua própria plurivocidade, sempre está aberto a mais de um
sentido, ou mesmo a epocalidades diversas. Porém, uma coisa é certa: esse conceito
sempre se evidencia quando se pretende explicitar o novo ethos que, por colocar-se
como momento do transitório, do fugaz, da mudança e do elogio do novo e atual, já
se apresenta como que envelhecido em sua própria dinâmica, mas que, ao mesmo
tempo, não quer se desvencilhar dos impasses gerados por ele mesmo, senão,
mediante o seu principal alcance, como bem foi definido por Kant: a conquista da
maioridade realizada dos homens, pelo uso público da razão. Por conseguinte, é na
aproximação dos conceitos de modernidade e crise que podemos compreender o
1 Para uma melhor compreensão do significado do conceito de crise que está sendo empregado neste trabalho, ver anexo, p. 126.
10
esforço teórico habermasiano, no sentido de buscar responder aos conflitos gerados
no interior dessa nova cultura, a partir das condições oferecidas por ela mesma.
O objetivo proposto nesse trabalho é procurar fazer uma análise da
relação entre modernidade e racionalidade, dentro do horizonte estabelecido por
Habermas, no discurso inaugural proferido por ocasião da entrega do Prêmio
Adorno, na cidade de Frankfurt, em 1980, Modernidade – Um Projeto Inacabado,
horizonte este retomado em O Discurso Filosófico da Modernidade (1985) e em
Pensamento Pós-Metafísico (1988). Nesses textos, ele vai defender que os ideais
sobre os quais foi plasmado o ethos iluminista, ainda, se encontram presentes nas
estruturas da sociedade moderna, e, porque não foram completamente realizados,
sobretudo no que concerne ao ideal de emancipação, presente na razão, não podem
ser abandonados, sob o risco de ter que abandonar a própria razão, signo sob o qual
o Ocidente quis se compreender, ao longo de sua história, e teve, na reflexão
filosófica, seu bastião, enquanto expressão reflexiva da realização do sentido da
vida, com vistas à construção da “morada” do homem.
O pretexto desse trabalho é, portanto, fazer um percurso no
pensamento de Habermas, para tentar compreender porque o projeto da
modernidade não pode ser descuidado. E se isso acontecer, significa abandonar a
capacidade da razão de ir buscar, mediante a reflexão, a liberação do controle de
poderes hipostasiados, por um lado, e, por outro, descobrir, com as suas próprias
medidas, as condições para a realização de uma humanidade emancipada.
A teoria da modernidade de Habermas foi construída a partir de um
eixo, a saber, o da razão comunicativa, sobre o qual gravitam duas construções
teóricas, convergentes. A primeira elaborada no horizonte do ethos Iluminista, tendo
como ponto de partida o processo de racionalização de M. Weber. A segunda,
mediante uma reconstrução teórica desde a “filosofia das origens”, para resgatar o
momento da razão mergulhado na contingência, à medida que reforça a idéia da não
realização do “projeto da modernidade”. Ambas as construções procuram
11
estabelecer a coextensividade dos conceitos de razão e de emancipação, bem como
a sua continuidade com a tradição do pensamento ocidental.
No capítulo primeiro, será tematizada a primeira construção teórica.
Esta já pode ser encontrada no artigo Modernidade – Um Projeto Inacabado, que é
retomada, de uma forma mais aprofundada, em O Discurso Filosófico da
Modernidade. Aqui se pode perceber que a reflexão gravita em torno da
configuração do contexto do ethos do Iluminismo. Porém, o ponto de partida da
teoria da modernidade de Habermas é o conceito de racionalização, oriundo de
Weber. Nesses dois trabalhos, ele recorre à Sociologia para tentar compreender o
processo de racionalização, não apenas como uma extensão progressiva a toda
sociedade da racionalidade com respeito a fins (Zweckrationalität) – racionalidade
instrumental, para Horkheimer e Adorno –, mas como um processo seletivo2. Esse
possibilitou a liberação, na sua máxima expressão, do potencial de racionalidade
comunicativa, mediante o qual pode-se lançar mão de um outro conceito de razão,
que seja capaz de apontar uma saída para as aporias da filosofia do sujeito.
Para Max Weber, o processo de racionalização deu-se como um
processo de desencantamento das imagens mítico-religioso-metafísicas do mundo,
no qual as diversas áreas do saber, ciência, moral e arte – modernização cultural –
conquistaram a sua autonomia e se desenvolveram, livres da tutela da religião e da
política. Simultaneamente, a economia e a política – modernização social – se
desenvolveram dentro de suas lógicas próprias, com regras definidas pelo mercado
e pelo direito positivo burguês, respectivamente. Essa clivagem, em diversas esferas
de justificação, já havia sido elaborada por Kant, nas suas “Críticas”. Ao realizar a
crítica à metafísica tradicional, que teve como conseqüência o estabelecimento dos
limites e das possibilidades de uma razão cindida, Kant nos legou um modelo de
razão cuja unidade tem, apenas, caráter formal. Essa clivagem da razão é percebida
2 A tese da seletividade dos processos de racionalização é, nas palavras de Richard J. BERNSTEIN “a pretensão sociológica mais importante de Habermas”, porque cria as condições para que ele possa pensar um conceito mais amplo de racionalidade, não explorado nem por M. Weber, nem por Horkheimer e Adorno. Habermas e la Modernidad. Trad. Francisco R. Martín. Madrid: Cátedra, 3a ed, 1994, p. 46 s.
12
por Hegel como sendo o motivo e a necessidade da filosofia, pois, é própria do
pensamento a consciência dessa contradição e a busca de sua superação. Aqui a
razão emerge como poder de unificação dos diferentes. Porém, dada sob a medida
do Espírito Absoluto, a resposta de Hegel às cisões da modernidade vai além das
suas próprias condições, pois esta quer se compreender dentro de seus próprios
limites. É o que Marx procura fazer, quando retira do espírito hegeliano a síntese, e
a coloca no trabalho. Por conseguinte, tanto a elaboração da síntese pelo Espírito, na
filosofia hegeliana, quanto à síntese elaborada pela práxis, marxiana, conforme
Habermas, não respondem às cisões da modernidade, porque ambas estavam
prisioneiras da filosofia da subjetividade.
No segundo capítulo, será analisada a herança da filosofia da práxis na
Escola de Frankfurt, especificamente, a crítica da razão iluminista, talhada à medida
da Dialética do Esclarecimento, de Horkheimer e Adorno. Estes tomaram o
processo de racionalização como um empreendimento no qual a razão substancial
foi tragada pela racionalidade instrumental, cujo serviço ao esclarecimento e a auto-
conservação selvagem conduz à reificação: “A essência do esclarecimento é a
alternativa que torna inevitável a dominação”3. Na dialética do Iluminismo, que é
unidade da regressão e do progresso, da liberdade e da barbárie, venceu a dimensão
regressiva da razão, suprimindo a própria dialética. Nesse espectro, a história passa
a ser interpretada como o desenrolar de uma trama, em cujos meandros se divisa a
perda progressiva da autonomia do sujeito, graças à dominação da natureza exterior
e da repressão da natureza interior, sob o domínio da razão instrumental.
Essa perspectiva é contestada por Habermas, sob o seguinte
argumento: se se despoja a razão da sua pretensão de validade, ela é assimilada ao
poder. Ao mesmo tempo significa negar a dignidade da modernidade que consiste,
exatamente, na diferenciação em esferas de valores independentes, conforme
defendeu Weber. Com isso, tentaremos mostrar que a inflexão dada, na Dialética do
3 T. ADORNO e M. HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 43.
13
Esclarecimento, aos efeitos reificantes da modernização sistêmica, impossibilitou
aos seus autores perceberem que o processo de racionalização liberou, também, o
potencial comunicativo de razão, enraizado no mundo da vida.
Finalmente, no terceiro capítulo, será feita a tentativa de análise da
segunda construção teórica. Aqui, haverá um esforço de compreensão do conceito
de razão comunicativa. Com esse conceito, Habermas acredita ter conquistado uma
saída para as cisões da razão na modernidade. Agora livre das aporias da filosofia
do sujeito, bem como da crítica radical da razão, o caminho está aberto ao diálogo
com o conceito de razão, mitigado, da perspectiva contextualista. Dessarte, se, na
primeira análise, o horizonte da reflexão é o Iluminismo, agora, resgatando o
momento da razão mergulhada na contingência, o horizonte se amplia até as origens
do pensamento ocidental. Sob esse aspecto, o próprio desenvolvimento da
perspectiva contextualista é tomado como um sinal de que a modernidade não
morreu, que o conceito de razão ainda está presente, e que os ideais iluministas têm
ainda algo a realizar. Mais do que isso: o que se observa, é que, se o momento do
condicionado, da cumplicidade da razão com o contingente, ainda, está presente, é
porque o momento do incondicionado, transcendental, está se revelando, ou como
diz Habermas, a precedência metafísica do uno frente ao múltiplo, e a precedência
contextualista do diverso frente ao uno são “cúmplices secretos”.
No Pensamento Pós-metafísico, principalmente quando trata do tema
da Unidade da Razão na Multiplicidade de suas Vozes, é retomado o conceito de
razão comunicativa, já consolidado na Teoria da Ação Comunicativa. Com isso, é
estabelecido um diálogo, agora, de uma forma mais ampla, com toda a tradição do
pensamento ocidental metafísico, mostrando que este conceito de razão, não apenas
está inserido nessa tradição, mas, acima de tudo, é um conceito de razão que abarca,
dialeticamente, os dois momentos da razão: o da contingência (pluralidade) e o da
necessidade (unidade). Assim, a teoria habermasiana da modernidade, resgatando os
dois momentos da razão, reafirma o papel que esta passa a desempenhar no
processo de racionalização: não mais como juiz absoluto, mas como uma razão
14
“débil”, mediadora do diálogo entre o mundo da vida e uma modernização social
que se tornou autônoma. Como um parceiro que não se acanha, nem se amesquinha,
no confronto com o seu outro: uma modernidade em crise, que reafirma e acredita
na sua capacidade de pensar, a partir de seus próprios limites. Isso significa que dos
limites de uma razão débil, vem a sua força, uma força que deita suas raízes no
diálogo, intersubjetivamente compartilhado, com vistas ao entendimento mútuo,
caminho para a conquista da maioridade realizada dos homens, condição para uma
vida emancipada.
Em suma, nessa perspectiva, o que se vai procurar analisar é se o
conceito de razão comunicativa, consegue lançar luzes sobre uma sociedade, cujos
sinais mais visíveis são de perda de sentido e de liberdade. Essa questão quer nos
lançar ao cerne da problemática do processo de racionalização, e ao coração da
teoria da modernidade de Habermas, qual seja, se de fato esse conceito resgata a
relação interna entre modernidade e racionalidade. Sob esse prisma, uma última
pergunta a ser feita é a seguinte: até que ponto os ideais da razão iluminista, que
postulavam uma humanidade emancipada, podem ser tomados como ideais que não
foram realizados, ainda, ou se eles foram perdidos ao longo da travessia sem retorno
da inexorabilidade da odisséia humana?
15
CAPÍTULO I
MODERNIDADE E RAZÃO
1.1. Weber: Uma Modernidade Racionalizada.
O presente capítulo tem como objetivo introduzir a análise sobre a
relação interna entre modernidade e racionalidade. Levando em consideração que o
intento desse trabalho é fazer uma leitura da teoria habermasiana da modernidade,
cujo cerne é essa relação acima referida, houve por bem, para efeito de maior
clareza possível na exposição das idéias, seguir o mesmo caminho percorrido por
Habermas para a elaboração de sua teoria. Esta tem como ponto de partida o
processo de racionalização de Weber, que é tomado como fio condutor para a
realização de uma leitura crítica do nosso tempo.
Isso significa, por um lado, que na teoria da racionalização weberiana
encontra-se a chave de leitura para a compreensão do que Habermas denomina de
“projeto da modernidade”4, cujo cumprimento ainda se encontra “inacabado” e, por
4 “... o projeto da modernidade, formulado no século XVIII pelos filósofos do Iluminismo, consiste em desenvolver impertubavelmente, em suas respectivas especificidades, as ciências objetivantes, os
16
outro, que a relação interna entre modernidade e racionalidade, tida como evidente
até Weber, mas colocada em questão pelo pensamento pós-moderno, só pode ser
resgatada se se retorna a Hegel, tendo em vista que foi ele “o primeiro filósofo a
desenvolver um conceito preciso de modernidade ...”5, e porque as tentativas de
saídas da crise desse novo ethos ainda não responderam à questão deixada em
aberto por ele, qual seja: a da certificação6 da modernidade.
Em O Discurso Filosófico da Modernidade (1985), Habermas procura
estabelecer e discutir, sistematicamente, um ponto de partida para a compreensão da
Modernidade, tomando como impulso gerador de sua análise a premissa segundo a
qual ela não esgotou todas as suas possibilidades de realização: é uma ilustração que
ainda não foi esclarecida7. A necessidade de sua certificação como problema a ser
considerado pela reflexão filosófica contemporânea adquire relevo no interior do
pensamento habermasiano mediante o desafio colocado pelo pensamento ‘pós-
metafísico’, que intenta romper com os ideais emancipadores da razão presentes no
pensamento ilustrado, uma vez que visualiza, nesses ideais, tão-somente, ou um
irônico e avançado engendramento de novas irracionalidades e repressão, ou abraça
a defesa da modernização social em detrimento da modernidade cultural.
fundamentos universalistas da moral e do direito e a arte autônoma, mas ao mesmo tempo consiste também em liberar os potenciais cognitivos assim acumulados de suas elevadas formas esotéricas, aproveitando-os para a prática, ou seja, para uma configuração racional das relações de vida”. J. HABERMAS, “Modernidade – Um Projeto Inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas, São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 110. 5 J. HABERMAS, O Discurso Filosófico da Modernidade. Trad. Ana Maria Bernardo et al. Lisboa: Dom Quixote 1990, p. 16. Doravante citado como DFM. 6 O conceito de certificação, em Habermas, significa o esforço da Modernidade em ir buscar em seu próprio conceito os critérios de sua orientação, por ser uma época histórica que não quer estar sujeita a passados exemplares, mas que tem de criar, a partir de si mesma, seus princípios normativos. Cf. Jürgen HABERMAS, DFM, p. 30. 7 J. HABERMAS, DFM, p. 282. Sobre o mesmo tema, Cf. J. HABERMAS, “Modernidade – Um Projeto Inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas, São Paulo: Brasiliense, 1992. É ilustrativo o comentário de Stephen K. WHITE sobre o que ele chama de “fundamentos conceptuais da modernidade ocidental”. Para ele, a análise de Habermas, sobre esses fundamentos, caminha na direção de assegurar o mesmo nível de autoconfiança que a auto-compreensão da modernidade uma vez possuiu. Crédito não encontrado na Dialética do Esclarecimento. Nesse sentido, “He (Habermas) was convinced that one could retain the power of his predecessor’s critique of modern life only by clarifying a distinctive conception of rationality and affirming the notion of a just or ‘emancipated’ society that would somehow correspond to that conception”. “Reason, modernity, and democracy”. In: Stephen K. White (ed.). The Cambridge Companion to Habermas. Cambridge: Cambridge University Press, 3ª ed, 1997, p. 4-5.
17
Sob esse aspecto é que a busca de certificação da modernidade passa a
significar o esforço realizado pela razão de construir uma consciência clara de si
mesma, e nesse empreendimento, somente a razão é crítica, o suficiente, para
realizar sua certificação, porque só a razão é capaz de negar a facticidade, de se
perceber como limitada, de superar as fronteiras de toda ilusão conformista da
irracionalidade.
Para a análise do problema da certificação da modernidade Habermas
recorre a duas construções teóricas. A primeira, que é o ponto de partida da sua
teoria da modernidade, se assenta na análise weberiana sobre o desenvolvimento
das sociedades modernas. Esse processo, denominado por Weber de
racionalização8, provocou a desintegração das concepções metafísico-religiosas do
mundo ocidental, gerando uma cultura profana. Aqui se retoma a necessidade da
Sociologia9, para a compreensão da crise da racionalidade ocidental. A segunda, se
assenta na análise do conceito de razão, no interior da reflexão filosófica iniciada
por Kant, para mostrar que o conceito de racionalização ocidental, elaborado por
Weber, não abarca a dimensão emancipadora do processo de racionalização, porque
subsume, à razão instrumental, o momento reflexivo da razão. Ao mesmo tempo em
que colocou sob suspeita a relação interna entre modernidade e razão.
O processo de diferenciação e formalização do mundo moderno –
racionalização – elaborado por Weber, paga tributo à genial diferenciação,
elaborada por Kant, nas suas três “Críticas”, sobre as esferas da vida humana, que se
exprimiu na distinção entre Ciência, Moral e Arte. De acordo com a caracterização
8 “He (Weber) designates as rationalization every expansion of empirical knowledge, of predictive capacity, of instrumental and organization mastery of empirical processes”. J, HABERMAS. The Theory of Communicative Action. Trad. Thomas McCarthy. Boston: Beacon Press, 1984, vol. 1, p. 159. Doravante citado como TCA. 9 A contribuição da Sociologia, para a compreensão da crise da razão, é colocada por J. HABERMAS nos seguintes termos: “Among the social sciences sociology is most likely to link its basic concepts to the rationality problematic [...] Sociology became the science of crisis par excellence; it concerned itself above all with the anomic aspects of the dissolution of traditional social systems and the development of modern ones”. TCA, vol. 1, p. 3-4. Sobre a mesma questão, Cf. J. HABERMAS, Teoría y Práxis. Trad. Salvador M. Torres e Carlos M. Espí. Madrid: Tecnos, 1990, p. 273-287.
18
weberiana da modernização cultural, a razão substancial10, que se expressava nas
imagens religioso-metafísicas do mundo, dividiu-se em três momentos, tendo, no
entanto, essa unidade, só caráter formal, isto é, mediante a forma da argumentação.
Assim, dado que as imagens do mundo se apresentam desagregadas, seus problemas
internos de justificação se cindem entre pontos de vista específicos da verdade, da
justeza normativa, da autenticidade ou do belo, podendo ser tratadas,
respectivamente, como questão de conhecimento, de justiça e de gosto.
Para se compreender o conceito de racionalização, oriundo de Max
Weber, há que considerar a sua objetivação nas esferas da cultura e da sociedade.
No primeiro caso, como um processo de desencantamento do mundo, mediante a
autonomização das Ciências empíricas, da Arte, da Moral e do Direito, que
buscaram suas fundamentações, a partir de suas próprias leis internas. Enquanto
processo de secularização, o desencantamento representa uma força libertária de
poderes hipostasiados, e, já, antecipa o ideal de uma sociedade emancipada. À
medida que esse potencial de racionalização foi incorporado à cultura e penetra nas
motivações valorativas das pessoas e nos sistemas centrais de ação que fixam a
estrutura da sociedade, dão origem ao processo de modernização da sociedade como
um processo por meio do qual emergem a empresa capitalista e o Estado moderno.
Ambos, Empresa e Estado, são regulados, internamente, por processos formais; o
primeiro, visando a defesa e a garantia do lucro, o segundo, visando a manutenção
impositiva da lei e da ordem, sob o manto da legitimidade.
Para a análise do processo de racionalização, Weber se serve de dois
conceitos distintos de racionalidade. No que diz respeito à racionalização social, ele
se guia pela idéia de racionalidade com respeito a fins (Zweckrationalität). Sob a
10 Por razão substancial se entende a razão que se expressava nas imagens do mundo religioso-metafísicas, a qual se divide, segundo Weber, em três momentos distintos, cuja unidade só pode ser mantida formalmente. “Uma vez que as imagens do mundo se desagregam e os problemas legados se cindem entre pontos de vista específicos da verdade, da justeza normativa, da autenticidade ou do belo, podendo ser tratados, respectivamente, como questão de conhecimento, como questão de justiça e como questão de gosto, ocorre nos tempos modernos uma diferenciação de esferas de valor: ciência, moral e arte”. J. HABERMAS, “Modernidade – Um Projeto Inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas, São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 110.
19
perspectiva do desencantamento do mundo, ele recorre a um conceito de
racionalidade complexo, porém, pouco elucidado11.
Max Weber elabora o conceito de racionalização dentro do contexto
científico que já havia se liberado da hipoteca da Filosofia da História e do
Evolucionismo do século XIX12. Nesse sentido, a racionalização não poderia ser
reduzida a uma mera oposição histórica, mediante a qual, o surgimento e o
desenvolvimento do método científico foram, aos poucos, tirando o véu da religião,
que cerceava o livre desenvolvimento da razão. Sob esse aspecto, os processos de
racionalização partem da necessidade das religiões mundiais de substituirem a
justificação mágica do mundo, por um conhecimento da natureza e por uma
explicação ética, passível de ser, racionalmente, justificada. O que significa dizer
que, na contramão do Iluminismo, nas palavras de Avritzer, “a racionalização
envolve uma sistematização de idéias e de comportamento no mundo e, enquanto
tal, não opõe ciência e religião, sagrado e secular”13.
Mesmo sendo o processo de racionalização cultural14 a pedra de toque
da teoria da racionalização de Weber, o passo seguinte de sua análise foi observar
que, à medida que as esferas axiológicas evoluíram, elaborando, internamente, seus
próprios critérios de valor, elas processaram, ao mesmo tempo, a substituição das
cosmovisões religiosas do mundo. Cada uma dessas esferas de valor, da Ciência, da
11 “Weber analyses the process of disenchantment in the history of religion, which is said to have fulfilled the necessary internal conditions for the appearance of Occidental rationalism; in doing so he employs a complex, but largely unclarified concept of rationality … in his analysis of societal rationalization … he allows himself to be guided by the restricted idea of purpose rationality [Zweckrationalität]”. J. HABERMAS. TCA, vol. 1, p. 143. 12 “Among the classical figures of sociology, Max Weber is the only one who broke with both the premises of the philosophy of history and the basic assumptions of evolutionism and who nonetheless wanted to conceive of the modernization of old-European society as the result of a universal-historical process of rationalization”. J. HABERMAS, TCA, vol 1, p. 143. 13 Leonardo AVRITZER. A Moralidade da Democracia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996, p. 57. 14 Para David INGRAM, “a racionalização cultural denota um conjunto complexo de eventos abrangendo a progressiva fixação, diferenciação e formalização das esferas de atividade relacionadas com o valor, a mais fundamental das quais gravita em torno da tríade kantiana da verdade (conhecimento), legalidade ou bem (direito e moralidade) e beleza (arte e gosto)”. Habermas e a Dialética da Razão. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora UnB, 2a ed. 1994, p. 68. Para um estudo sobre esse tema, cf. André LECCLERC. “Remarques sur la Notion de Rationalité Culturelle Selon Marshall Sahlins”. In: Claude Savary (org.). Cheminements dans l’Espace des Théories de l’Activité Symbolique et de la Culture. Université du Québec à Montreal: Press de l’Université du Québec, 1998, p. 225-243.
20
Política e da Economia desenvolve seu fundamento interno, sem o peso da
exigência de uma atitude moral ou religiosa particular, mas, apenas, sob a aceitação
externa de certa forma de conduta, assegurada pela soberania do Direito civil. Nas
palavras de David Ingram, significa que: “Correspondendo à crescente emancipação
(Verselbständigung) de cada esfera de valor, com respeito às restrições impostas
pela sua aglutinação anterior sob visões do mundo de caráter unitário e religioso,
corre um processo paralelo de auto-reflexão pelo qual cada forma de investigação é
fundamentada tendo em vista os princípios que lhe são peculiares”15. Por
conseguinte, a Ciência desenvolveu-se rumo à constituição de um conhecimento
empírico para conhecer e transformar o mundo, mediante um mecanismo causal
desencantado; a Economia organizou-se, funcionalmente, sob o meio do dinheiro,
para garantir o controle do mercado e a Política estruturou-se, sob a égide do Direito
positivo burguês, para elaborar regras impessoais para o funcionamento do corpo
hierárquico e burocrático. Portanto, todas as áreas do saber conquistam sua relativa
autonomia, e se desenvolvem, livres dos limites impostos pelo pathos religioso.
O diagnóstico da Modernidade de Weber, que, num primeiro
momento, surge como a conquista de um mundo desencantado, livre das amarras da
Religião, torna transparente que no interior do processo de racionalização a
desintegração da cosmovisão religiosa provocou uma tensão entre as diversas
esferas de valor, além do mais, revela que a própria fundamentação científica
padece dos mesmos limites de justificação das outras esferas de valor: seus
embasamentos não podem ser provados. Ou seja, Weber se rende ao fato de que o
mundo deve “permanecer fragmentário e sem valor em todos aqueles casos em que
é julgado à luz do postulado religioso de um ‘sentido’ divino da existência. Essa
perda de valor resulta do conflito entre a reivindicação racional e a realidade, entre a
ética racional e os valores que são, em parte, racionais, em parte irracionais”16. Ou
seja, com o desaparecimento progressivo do sentimento religioso, o aspecto
15 David INGRAM. Habermas e a Dialética da Razão. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora UnB, 2a ed., 1994, p. 69. 16 Weber, From Max Weber, apud, David INGRAM. Habermas e a Dialética da Razão. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora UnB, 2a ed. 1994, p. 74.
21
racional-valorativo da Ética de princípios é obscurecido pelas demandas racional-
propositadas do vocacionalismo ético. Com isso, pode-se inferir que a teoria da
modernidade de Weber traz, no seu seio, um conflito entre dois processos de
racionalização, cujo deslanche foi a predominância da racionalização social sobre a
cultural.
Por conseguinte, se o processo de racionalização do mundo ocidental
teve como ponto de partida a necessidade das “religiões mundiais substituir a magia
pelo domínio cognitivo sobre a natureza e por uma explicação ética capaz de ser
justificada”17, conforme Leonardo Avritzer, seu ponto de chegada revelou que o
avanço da secularização e do aumento desmesurado da precedência dos bens
materiais desencadeou uma erosão progressiva no sentido da existência18. Nas
palavras de Weber, isso significa que:
“Desde que o ascetismo se propôs a remodelar o mundo e a nele implementar os
seus ideais, os bens materiais foram assumindo uma crescente e inexorável força
sobre os homens. Hoje em dia, o espírito do ascetismo religioso – quem sabe se
definitivamente – escapou da jaula de ferro. O capitalismo vencedor, apoiado em
uma base mecânica, não mais carece do seu apoio. Também o róseo caráter da sua
sucessora, a Aufklärung, parece estar desvanecendo [...] Quando a plenitude
17 Leonardo AVRITZER. A Moralidade da Democracia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996, p. 57. Para L. Avritzer, “Weber não foi apenas o autor que ressaltou os fundamentos morais (ascese protestante) da Modernidade ... Ele foi o autor cuja obra pretendeu demonstrar os motivos pelos quais a própria Modernidade, na medida em que as estruturas da economia de mercado e do Estado moderno se desenvolvem, solapa os seus próprios fundamentos culturais”. Ibid., p. 64. 18 Se o processo de racionalização deve ser interpretado como uma força libertária que prepara o caminho para uma sociedade ‘emancipada’, na perspectiva habermasiana, para Weber, segundo David INGRAM, “a perda de sentido, em conseqüência da desintegração da cosmovisão religiosa em ‘idéias últimas’, é inevitável, pois o que se segue é uma contradição lógica, obrigando as ordens da vida correspondentes a ‘colocarem-se em tensão umas com as outras’”. Habermas e a Dialética da Razão. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora UnB, 2a ed. 1994, p. 73. Nessa mesma linha afirma Thomas McCARTHY que “Con el concepto de racionalización, Weber trataba de captar todo o complejo de tendencias relacionadas com el progreso técnico y científico e con sus efectos sobre la trama institucional de las sociedades tradicionales [...] Pese a que sus sentimientos frente a este proceso fueron ambiguos, Weber lo consideraba sin duda alguna como irreversible: o hombre moderno estaba condenado a vivir en un ‘estuche de servidumbre’”. La Teoria Crítica de Jürgen Habermas. Trad. Manuel. J. Redondo. Madrid: Tecnos, 3a ed.,1995, p. 38.
22
vocacional não mais pode ser relacionada diretamente aos mais elevados valores
culturais [...], o indivíduo renuncia a toda tentativa de justificá-la”19.
Isso posto, é possível inferir que, na subsunção da racionalização
cultural pela racionalização social, temos a chave de leitura do conceito de
racionalização ocidental moderna de Weber, qual seja, o imperativo do conceito de
racionalidade com respeito a fins. Esse conceito ele o compartilha com Marx,
Horkheimer e Adorno. Em Marx, a racionalização se implanta, diretamente, pelo
desenvolvimento das forças produtivas, quer dizer, mediante a aplicação do saber
empírico, das melhorias das técnicas de produção, e com a organização,
qualificação e mobilização mais efetiva das forças de trabalho. Já as relações de
produção só são revolucionadas mediante a pressão racionalizadora das forças
produtivas. Em Weber, o marco institucional da Economia capitalista e do Estado
moderno é visto de outra maneira: não como um processo de racionalização das
forças produtivas, prisioneiro das relações de produção, mas, como um
desenvolvimento da ação racional com respeito a fins, tendo como conseqüência a
burocratização e a coisificação das relações sociais. Horkheimer e Adorno, e,
posteriormente, Marcuse, interpretaram o conceito de racionalização marxiana, na
perspectiva de Weber. Isso significa que, para eles, sob o signo da racionalidade
instrumental que se tornou autônoma, a racionalidade de domínio da natureza
emerge como a irracionalidade da dominação de uma classe sobre as outras, e as
forças produtivas, desacorrentadas, proporcionam relações alienadas. Segundo
Habermas:
“A Dialética do Esclarecimento remove a ambivalência que havia
alimentado Weber frente aos processos de racionalização e inverte
abruptamente a avaliação positiva de Marx. A ciência e a técnica – um
19 Max WEBER, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Trad. M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tomás J. M. K. Szmrecsányi. São Paulo: Liv Pioneira Editora, 12a ed., 1997, p. 131. Ou seja, sem Natureza, sem Deus e sem História, o homem encontra, nele mesmo, o princípio mediante o qual ele pauta a sua vida. No entanto, a dificuldade que daí aflora é que, o sentido é elaborado na imanência da história, pois, segundo Lima VAZ, “É justamente a dificuldade em decifrar essa inscrição no imenso derivar para um futuro incerto do universo científico-tecnológico, que torna sempre mais dramática a interrogação sobre os fins da cultura”. “A Cultura e seus Fins”. In: Síntese Nova Fase 57 (1992), p. 154.
23
potencial inequivocamente emancipatório para Marx – elas mesmas tornam-
se meio de repressão social”20.
Para Habermas, há um limite nessas três perspectivas de
racionalidade, não importando qual delas esteja correta. De fato, tanto Marx e
Weber, quanto Horkheimer e Adorno identificam a racionalização social como a
expansão da racionalidade instrumental dos contextos de ação, ao mesmo tempo,
eles têm uma noção vaga de um conceito mais amplo de racionalidade social – de
livres produtores, de exemplos históricos de comportamento ético de vida, uma
idéia de comércio e de trato fraternal com a natureza reabilitada – que se coloca
adiante do processo de racionalização que eles, empiricamente, descrevem. A
questão que se coloca é a seguinte: se eles identificam um conceito mais amplo de
racionalidade, por que não confirmá-lo no mesmo nível das forças de produção, na
racionalidade com respeito a fins e nos portadores totalitários da razão
instrumental? Segundo Habermas, isso não acontece por dois motivos:
primeiramente, porque Marx, Weber, Adorno e Horkheimer operam com um
conceito de ação que não é complexo o suficiente para apreender, nas ações sociais,
todos os aspectos da racionalização social; em segundo lugar, porque eles não
fazem a distinção entre categorias de ação e categorias de sistema: “a racionalização
das orientações da ação e das estruturas do mundo da vida não é o mesmo que a
expansão da ‘racionalidade’, isto é, da complexidade do sistema de ação”21. Noutros
termos, o problema não reside na razão instrumental, em si mesma, mas, na sua
universalização, na maneira como ela é resgatada, como uma forma de validade
exclusiva, quando se reduz a práxis à techne, ou ainda, quando se amplia a ação
racional com respeito a fins, a todas a esferas de decisão, sem dialogar com uma
teoria mais compreensiva de racionalidade22.
20 J. HABERMAS. TCA vol. 1, p. 144. 21 J. HABERMAS. TCA vol. 1 p., 145. 22 Cf. T. MCCARTHY. La Teoria Crítica de Jürgen Habermas. Trad. Manuel. J. Redondo. Madrid: Tecnos, 3a ed.,1995, p. 35 s.
24
É sob o aspecto da distinção entre dois processos de racionalização,
que se desenvolvem de forma independentes e com lógicas internas próprias, que
podemos compreender o conceito de razão comunicativa habermasiano23, conforme
veremos adiante, na terceira parte deste trabalho. Esse conceito de racionalidade
compreende o processo de racionalização ocidental de uma forma mais ampliada,
possibilitando que ele seja pensado como um processo de emancipação. O que não
ocorre no conceito de racionalização ocidental de Weber, que subsume, em um
único conceito, tanto o processo de racionalização social, como o de
desencantamento do mundo. É o desdobramento conceitual, realizado no interior da
teoria habermasiana de racionalidade, que possibilita a tematização do momento
emancipador da razão, desdobramento este que já vinha sendo trabalhado desde
Técnica e Ciência como Ideologia (1968). Aqui já se entra em contato com um
quadro conceitual, que faz uma distinção entre trabalho e interação e entre o quadro
institucional de uma sociedade e os subsistemas de ação racional com respeito a
fins24; distinção que é reelaborada com mais acuidade n’ A Teoria da Ação
Comunicativa.
Por conseguinte, a crítica que se faz ao conceito de racionalização
ocidental, se inscreve, no seio da análise de Weber, sobre o processo de
desencantamento do mundo moderno, pois este não considera, sob uma justa
medida, o processo de modernização cultural do ocidente. É sob a ótica do resgate
do processo de modernização ocidental que podemos compreender o fio condutor
da obra de Habermas, seu esforço intelectual para demonstrar que, segundo L.
Avritzer “... existe um processo paulatino de substituição da legitimação religiosa
das esferas axiológicas de valor por critérios de validade fornecidos pela
comunicação através da linguagem”25. Ou seja, se a origem da Modernidade está na
interior do processo de racionalização das imagens religiosas do mundo, a saber, na
23 Segundo Luiz B. L. ARAÚJO, “O conceito de razão comunicativa é o núcleo da reflexão de Habermas, pois possibilita ampliar o conceito restrito de racionalidade que está no fundamento da análise weberiana da Modernidade”. Religião e Modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola, 1996, p. 115. 24 J. HABERMAS. Técnica e Ciência como Ideologia. Lisboa: Edições 70, 1994, p. 60 e 83. Doravante citado como TCI. 25 Leonardo AVRITZER. A Moralidade da Democracia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996, p. 68.
25
racionalização cultural, essa racionalização, contudo, é apenas uma face da
totalidade do processo. Impõe-se, por conseguinte, considerar que, na própria
evolução do processo de racionalização, a legitimação religiosa foi substituída pela
busca do consenso, mediado pela linguagem, capaz de nos remeter, segundo
Habermas, “... aos conceitos formais de mundo objetivo, mundo social e mundo
subjetivo, e às correspondentes atitudes básicas frente ao mundo externo, cognitivo
e moralmente objetivado, e um mundo interno subjetivado”26. Cada uma dessas
esferas possui critérios próprios de validade – verdade, correção e veracidade – que
remetem à busca de justificação, por meio da linguagem. Portanto, o processo de
racionalização cultural não tornou incompatíveis os critérios de validade, verdade,
veracidade e beleza, exige, apenas, que cada um deles seja referido a uma dimensão
diferente de mundo, em relação ao qual agimos, reflexivamente.
Sob o conceito de modernização, o processo de racionalização
ocidental voltou à baila, nos anos 50, pelo funcionalismo das Ciências Sociais,
limitando o conceito a um ‘feixe de processos cumulativos’ cujo substrato é a
acumulação, o desenvolvimento e a consolidação do sistema capitalista. O limite
dessa abordagem, segundo Habermas, é que ela não oferece os elementos teóricos,
necessários para a compreensão do processo de racionalização ocidental. Ao tomar,
como uma abstração, o conceito de Modernidade de Weber, desenraízam-no das
suas origens européias, utilizam-no como um “padrão neutralizado espácio-
temporalmente de processos de desenvolvimento social”, rompendo o laço que une
a “Modernidade e o contexto histórico do racionalismo ocidental de tal modo que
deixam de ser concebidos como racionalização, como objetivação histórica de
estruturas racionais”27.
Esse ambiente de desvinculação de seu contexto, de uma Modernidade
que conquistou sua autonomia e que progride, por força própria, propiciou as
condições para o surgimento da expressão pós-Modernidade. O limite, dessa
26 J. HABERMAS. TCA, vol 1, p. 235-6. 27 J. HABERMAS. DFM, p. 14.
26
compreensão, reside na perda da conexão essencial interna, entre o conceito de
Modernidade e sua auto-compreensão, cuja conquista realizou-se no horizonte da
razão ocidental. É essa não compreensão dessa relação interna que abre espaço para
a relativização dos processos de modernização das sociedades ocidentais,
reduzindo-a um processo automático, e alimentando a ilusão de poder colocar-se
num ponto arquimediano como observador pós-moderno, externo ao processo. Tal
posicionamento se torna, também, possível, graças à aparente obsolescência da
modernização cultural, e à ilusão do desenvolvimento auto-suficiente da
modernização social. A modernização social executa, tão-somente, “as leis
funcionais da economia do Estado, da técnica e da ciência, as quais parecem ter-se
conjugado num sistema imune de influências”28. Nesse sentido, é uma cultura que já
esgotou todas as suas possibilidades, cristalizou-se; por isso os neoconservadores29
podem dar o adeus à Modernidade cultural. Aceitam o status de desenvolvimento
social e rejeitam toda possibilidade de sua auto-compreensão. Um outro adeus é
propugnado pelos jovens conservadores que, ao contrário dos neoconservadores, a
abandonam como um todo, por entenderem que a razão centrada no sujeito revelou
a sua verdadeira face: além de subjugar a natureza exterior, subjuga-se a si mesma
como vontade de poder instrumentalizador.
Essas duas formas de adeus à modernidade trazem algo em comum:
colocam-se fora da perspectiva conceitual em que se fundamenta sua auto-
compreensão. Abdicam dela, sem suprassumí-la como um momento de uma
negação determinada. Ora, se foi esse novo ethos quem criou o modelo normativo
que dá possibilidade para que se compare o factual com o desejável, o ideal de
28 J. HABERMAS. DFM, p. 15. 29 Em Modernidade – Um Projeto Inacabado, J. HABERMAS tipifica as três posições assumidas frente à crise da Modernidade: os jovens conservadores (antimoderno) cuja defesa da soberania da subjetividade descentrada, livre de todos os limites do ‘Eu’ transcendental, torna-se fundamento da rejeição da Modernidade no seu todo; os velhos conservadores (pré-moderno), cuja desconfiança na desagregação da razão substancial, lança-os na defesa a um regresso a posições anteriores à Modernidade; finalmente, os neo-conservadores (pós-modernos), que defendem as conquistas da Modernidade naquilo que pode ser assegurado, mas rejeitam o projeto da Modernidade como um todo. “Modernidade – Um Projeto Inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas, São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 121-122.
27
“auto-emancipação de uma humanidade razoável”30, para uma correta aproximação
do seu conceito, antes de cantar o seu requiescat in pace, é necessário, segundo
Habermas, “remontar a Hegel se quisermos compreender o que significava a relação
interna entre modernidade [Modernität] e racionalidade, tida como evidente até
Max Weber, e hoje posta em questão”31. O retorno a Hegel é imprescindível, não
apenas porque foi ele o primeiro a colocar o problema da certificação do novo
tempo, mas porque as saídas da sua crise, propostas até o presente momento, ainda
não responderam às questões deixadas em aberto por ele, quanto ao processo que
acompanha a evolução própria de cada um dos conceitos: modernidade e
racionalidade. Sem essa resposta, não apenas se desconfia que a saída, proposta pelo
pensamento pós-moderno não está ancorada nos pressupostos da auto-compreensão
moderna, inaugurados por Hegel, o que significa que o ‘pós’ não transcende o seu
horizonte, mas, também, se pergunta até que ponto esse abandono não é uma defesa
contra a Modernidade, o que confirma a sua atualidade.
1.2. Kant e Hegel: Subjetividade e Certificação.
O conceito de modernidade foi utilizado por Hegel, na sua Filosofia
da História, como um conceito epocal32, para referir-se à nova era. Para além de
uma referência meramente cronológica, o conceito se impõe como significado de
atualidade, do que, de fato, é um novo tempo e que, à guisa da perspectiva
messiânica, já começou: é kairós. Para a Filosofia, é o lugar cujo olhar remete à
história como um todo. “Aliás, diz Hegel, não é difícil ver que o nosso tempo é um
30 Sérgio P. ROUANET. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed.,1998, p. 269. 31 J. HABERMAS. DFM, p. 16. 32 G. W. F. HEGEL. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. Brasília: Editora UnB, 1995, p. 344 “Chegamos agora ao terceiro período do mundo germânico, e entramos assim no período do espírito consciente de sua liberdade, ao querer a verdade e a eternidade em si e por si universal”.
28
tempo de nascimento e de trânsito para uma nova época; o espírito rompeu com o
mundo de seu ser-aí [...] está a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega à
tarefa de sua transformação [...]. Seu abalo se revela apenas por sintomas isolados
[...]. Esse gradual desmoronar-se, que não altera a fisionomia do todo, é
interrompido pelo sol nascente, que revela num clarão a imagem do mundo novo”33.
O destaque dado ao presente, deve-se à condição de ser o gerador do que é novo.
Seu ponto de referência, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Sua meta, enquanto
atualidade da época mais próxima, uma renovação contínua, em relação ao passado
do qual se cindiu. Nesse sentido, as expressões novos tempos e tempos modernos
conquistam, portanto, um novo significado, válido até os dias atuais: revolução,
progresso, emancipação, desenvolvimento, crise, espírito da época, etc.
Essa dinâmica que impele a modernidade a estabelecer seu horizonte
de sentido, a partir das suas próprias condições, pode ser melhor compreendida se se
retoma, numa perspectiva histórica, comparativamente, o pensamento predominante
até o século XVII, e o alvorecer do chamado Século das Luzes. Numa forma sucinta
e lapidar, Ernest Cassirer assim descreve o cerne do pensamento filosófico do
século XVII: “Para que lhe parecesse verdadeiramente ‘filosófico’, era preciso que
o saber tivesse alcançado e estabelecido com firmeza a idéia primordial de um ser
supremo e de uma certeza suprema intuitivamente apreendida, e que tivesse
transmitido a luz dessa certeza a todo o ser e a todo o saber dela deduzido”34.
Quanto ao Iluminismo, este já havia conquistado, na linguagem kantiana, a sua
maioridade. Não queria, apenas, alargar, quantitativamente, o conhecimento, mas
ansiava por aprofundá-lo, por conhecer a sua origem e a direção a ser tomada, mas,
acima de tudo, conduzir o seu próprio rumo. Sob esse aspecto, a variedade de
caminhos que se abrem ao espírito não significa dispersão, mas essa multiplicidade
persegue a “certeza da unidade”. Esta, é descrita por E. Cassirer como:
33 G. W. F. HEGEL, Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 26. 34 Ernst CASSIRER. A Filosofia do Iluminismo. Trad. Álvaro Cabral. Campinas: Ed. Unicamp, 1992, p. 24.
29
“força criadora única, de natureza homogênea [...]. Quando o século XVIII
quer designar essa força, sintetizar numa palavra a sua natureza, recorre ao
nome ‘razão’. A ‘razão’ é o ponto de encontro e o centro de expansão do
século, a expressão de todos os seus desejos, de todos os seus esforços, de
seu querer e de suas realizações [...] o século XVIII está impregnado de fé
na unidade e imutabilidade da razão”35.
Sob esse aspecto, é que se pode compreender o motivo pelo qual a modernidade não
pode e não deseja mais persistir em colher, em épocas remotas, os critérios para sua
orientação, “ela tem que criar em si própria as normas que se rege. Ela vê-se
remetida para si própria sem que a isso possa fugir”36. Pois, só assim pode ela criar
suas próprias normas, sem ter que buscar, no passado rejeitado, os critérios para sua
orientação.
O conceito de modernidade, que é tomado por Hegel, perde sua
dependência em relação ao significado remoto do conceito de modernidade. Este se
expressava como a consciência de uma época que se posiciona, em relação ao
passado da Antigüidade, para compreender a si mesma, como sendo o resultado de
um processo de transição do antigo para o novo: o antigo era tomado, como modelo
normativo, digno de ser imitado. No sentido configurado pelo Iluminismo, esse
conceito lança suas raízes sobre a idéia de um progresso infinito do conhecimento e
do avanço, na direção do aprimoramento social e moral, desenvolvimento este que
perde, inexoravelmente, o fascínio pelos ideais do passado. Nas palavras de
35 Ibid., p. 22-23, grifos do autor. Continuando, E. Cassirer afirma que “A razão é una e idêntica para todo o indivíduo-pensante, para toda a nação [...] toda a cultura. De todas as variações dos dogmas religiosos, das máximas e convicções morais, das idéias e dos julgamentos teóricos, destaca-se o conteúdo firme e imutável, consistente, e sua unidade e sua consistência são justamente a expressão da essência própria da razão”. 36 J. HABERMAS. DFM, p. 18, grifos do autor. Sob o aspecto da autonomia da razão iluminista Cf. Ernst CASSIRER. A Filosofia do Iluminismo. Trad. Álvaro Cabral. Campinas: Ed. Unicamp, 1992, p. 24. “O século XVIII renunciou [...] a essa forma de ‘dedução’, de derivação e de explicação sistemática. Não rivaliza, em absoluto, com Descartes, Malebranche, com Leibniz e Spinoza, no tocante ao rigor e à autonomia do método. Busca uma outra concepção de verdade e da ‘filosofia’ que confere a uma e a outra mais amplitude, uma forma dotada de mais liberdade e mobilidade, mais concreta e mais viva. A Era do Iluminismo não outorga esse ideal de pensamento às doutrinas filosóficas do passado; prefere formá-lo tomando por exemplo a física contemporânea, cujo modelo tem sob os seus olhos”.
30
Habermas, a Modernidade é aquilo que “proporciona expressão objetiva a uma
atualidade do espírito do tempo que espontaneamente se renova”37.
Daí que para Hegel, o sentido de ser da Filosofia Moderna encontra-se
nas próprias clivagens da razão na modernidade e na sua separação de estruturas
normativas do passado. O que significa dizer que, à medida que ela toma
consciência de si, desperta para a necessidade de sua autocertificação38. Ou como
afirma Sérgio Rouanet: “rompendo suas amarras como o mundo antigo, ela teve de
buscar em si mesma suas coordenadas e suas normas”39. Portanto, a necessidade da
Filosofia surge pelo desaparecimento do poder da conciliação, o que significa que a
tarefa da Filosofia, para Hegel, é a de elevar o seu tempo ao nível do conceito.
Assim sendo, cumpre à filosofia ter um papel de reflexão sobre a totalidade que
contém, em si mesma, a razão subjetiva e o seu outro. Como Habermas afirma, “A
inquietação causada pelo fato de a Modernidade, na ausência de modelos, ser
forçada a encontrar o seu equilíbrio nas cisões por ela provocadas, é considerada
por Hegel a ‘fonte da necessidade da filosofia’”40.
37 J. HABERMAS. “Modernidade: Um Projeto Inacabado”. In. Otília ARANTES e Paulo ARANTES. Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 101. Sobre a idéia de que a Modernidade cria seu próprio classicismo, Habermas diz: “Desde sempre se considerou clássico aquilo que sobrevive aos tempos: no entanto, o testemunho moderno, em sentido enfático, já não extrai tal força da autoridade de uma época passada, mas unicamente da autenticidade de uma atualidade passada”. Ibid. 101. No que concerne ao avanço do conhecimento científico, H. PUTNAM diz que este foi tão aclamado no século XVII que seus defensores reivindicavam que “Newton sabia mais do que Aristóteles”. Razão, Verdade e História. Trad. A. Duarte. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 220. 38 Sobre a necessidade do filosofar que nasce da consciência do tempo, Lima Vaz assim reflete “[...] que experiências exemplares a consciência deve percorrer e cuja significação deve compreender para demonstrar-se como sujeito, a um tempo dialético e histórico, de um saber que contém em si a justificação da existência política como esfera do reconhecimento universal? Em concreto, esse saber é a filosofia hegeliana e o seu portador é o filósofo na hora de Hegel. A ele compete, em primeiro lugar, dar a razão de sua própria existência mostrando que o ato de filosofar não é um ato gratuito mas é a exigência da transcrição no conceito, do tempo histórico daquele mundo de cultura que colocou a Razão no centro de seu universo simbólico. Dando razão a sua existência, o filósofo anuncia o advento, na história do Ocidente, do indivíduo que aceita existir sob a forma da existência universal, ou da existência regida pela Razão”. “Senhor e Escravo: Uma Parábola da Filosofia Ocidental”. In: Síntese Nova Fase 21 (1981), p.19-20. 39 Sérgio P. Rounanet. As Razões do Iliminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed.,1998, p. 239. 40 J. HABERMAS. DFM. p. 27. Segundo Manfredo OLIVEIRA, em Hegel, o princípio, mediante o qual se compreende a Modernidade, é a subjetividade. Nesta, a liberdade humana estabelece seu eixo de sentido. “A emergência da subjetividade vai significar a emergência da soberania do sujeito autônomo sobre si mesmo”. “A Crise da Racionalidade Moderna: Uma Crise de Esperança”. In: Síntese Nova Fase 45(1989), p. 17.
31
Para Hegel, a Modernidade se compreende sob o horizonte do
princípio da subjetividade41. Este paradigma, instaurado por Descartes, como
subjetividade abstrata no Cogito, atinge, em Kant, a sua autoconsciência absoluta42.
O advento da subjetividade significa que o homem descobriu o centro que deve
reger toda a sua história: a Razão. A partir desta, agora, ele deveria construir um
mundo de liberdade efetiva, sem a tutela das amarras que, até então, o mantinham
preso ao passado: sua vitória representa, no Iluminismo, “[...] a saída do homem de
sua menoridade ... Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio
entendimento”43. Assumindo a condição da maioridade, a humanidade deveria, a
partir desse instante, fazer o uso público da Razão, efetivando sua emancipação,
frente à Religião e à Política, lançando fora as tutelas que a impediam de realizar a
conquista da idade adulta. Isso significa, segundo Manfredo Oliveira, que a
“liberdade vai ser concebida como reflexão, auto-relação do espírito a si mesmo, o
que vai abrir o horizonte para a autonomia do pensamento e da ação humana à
medida que tudo só se justifica levado ao tribunal do sujeito, que deve se auto-
afirmar e auto-conquistar em tudo”44. Assim, na modernidade, a religião, o Estado e
a sociedade, como, também, a Ciência a Moral e a Arte passam a ser configuradas
como manifestação da soberania da subjetividade.
A análise do processo de tomada de consciência da estrutura da razão
tem sua configuração lapidar na Crítica da Razão Pura. Aqui, Kant faz uma análise
dos fundamentos do conhecimento e, ao mesmo tempo, assume a tarefa de
denunciar o mau uso que fazemos da nossa faculdade de conhecimento. Nas suas
41 “O princípio do mundo moderno em geral é a liberdade da subjetividade; segundo esse princípio todos os aspectos essenciais patentes na totalidade espiritual desenvolvem-se para aceder aos seus direitos” W. Hegel, apud J. HABERMAS. DFM, p. 27. 42 Para Habermas, a estrutura da subjetividade é apreendida “como tal na filosofia, nomeadamente como subjetividade abstrata no Cogito ergo sum de Descartes, na forma da autoconsciência absoluta em Kant. Trata-se da estrutura da auto-relação do sujeito cognoscente que se debruça sobre si como sobre um objeto para se compreender como uma imagem num refletida num espelho, precisamente numa ‘atitude especulativa’. Desta Abordagem da filosofia da reflexão faz Kant a base das suas três ‘Críticas’. Faz da razão o supremo tribunal perante o qual tem de se apresentar uma justificação tudo aquilo que de uma forma geral reclama qualquer validade”. J. HABERMAS. DFM, p. 29, grifos do autor. 43 I. KANT. “Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento”. In: A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Trad. Artur Mourão. Lisboa: Ed. 70, 1995, p. 11. 44 Manfredo OLIVEIRA. “A Crise da Racionalidade Moderna: Uma Crise de Esperança”. In: Síntese Nova Fase 45(1989), p. 17.
32
três “Críticas”, ele abandona o conceito substancial da razão, e a apresenta cindida
em seus momentos, cuja unidade, somente é recuperada, formalmente. Separadas
entre si, assenta, cada uma das faculdades – da razão prática, de julgar e do
conhecimento teórico – nos seus próprios fundamentos. Segundo Habermas, “ao
fundar a possibilidade de conhecimento objetivo, de discernimento moral e de
valorização estética, a razão crítica não apenas assegura as suas próprias faculdades
subjetivas nem apenas torna transparente a arquitetônica da razão, mas desempenha
também o papel de um juiz supremo mesmo perante a cultura no seu todo”45.
Ao apresentar a estrutura tri-dimensional da Razão, nas suas três
“Críticas”, Razão Pura, Razão Prática e do Juízo, mesmo resguardando a unidade
do eu penso formal que acompanha todas as representações – condição para garantir
a unidade egológica da consciência sempre idêntica consigo mesma, na pluralidade
das representações –, Kant instaura a auto-interpretação lapidar da modernidade. É
o olhar retrospectivo de Hegel que faz ver, nessa interpretação, a imagem refletida
de sua época. Assim, por não sentir, como cisões, os momentos distintos da razão e
sua clivagem, nas diversas esferas da cultura, Kant não coloca, como um problema
para o pensamento, a necessidade de unificação que nasce das separações impostas
pelo princípio da subjetividade. Por conseguinte, é quando a modernidade se
concebe como uma época histórica, que não está sujeita a passados exemplares e
que tem de criar, a partir de si mesma, seu princípio normativo, que se impõe, à
Filosofia, a necessidade de pensar essas cisões. Aqui se vislumbra o cerne do
problema da sua certificação, qual seja, segundo Habermas, o de saber se
“o princípio da subjetividade e a estrutura da autoconsciência que é inerente
a essa subjetividade são suficientes como fonte de orientação normativa – se
são suficientes para ‘fundar’ não apenas a ciência, a moral, e a arte de uma
forma geral mas para estabilizar uma formação histórica que se libertou de
45 J. HABERMAS. DFM, p. 29. Segundo Habermas, “... porque a reflexão transcendental, em que esse mesmo princípio da subjetividade surge por assim dizer na sua nudez, reivindica ao mesmo tempo competência jurídica face a essas esferas, Hegel vê na filosofia Kantiana a essência do mundo moderno concentrada como num foco”. Ibid., p. 30.
33
todos os compromissos históricos. A questão é saber se da subjetividade e
da autoconsciência se podem extrair critérios colhidos no mundo moderno
servindo ao mesmo tempo de orientação dentro dele, o que significa, porém,
igualmente, que possam servir para criticar uma Modernidade em conflito
consigo própria. Como é que a partir do espírito da Modernidade poderemos
construir uma forma ideal interna que não se limite a imitar as múltiplas
manifestações históricas da Modernidade nem a impor-se a estas a partir de
exterior”46.
A questão, colocada desta forma, faz surgir um outro problema, que é
levantado, em relação ao poder da subjetividade, que se apresenta como princípio
unilateral. Pois, se de fato ele, o poder da subjetividade, tem força suficiente para
dar conta da “formação da liberdade subjetiva e da reflexão e de minar a religião,
[...] não é suficientemente forte a ponto de regenerar, no medium da razão, o poder
unificador da religião47”. Com isso, Habermas antecipa que, as cisões da
Modernidade resistirão, até mesmo, à figura do espírito absoluto de Hegel, que no
seu sistema assegurava, à Filosofia, o propósito de apresentar a razão como poder
unificador48.
A tentativa de superar as cisões da modernidade tem início com uma
crítica à unilateralidade do princípio da subjetividade, pois é só, por meio desse
caminho, que ela pode atingir a certificação do seu conceito, à medida que procura
atingir o equilíbrio, a partir de si mesma. O instrumento de que se vale é a reflexão,
46 J. HABERMAS. DFM, p. 30 47 J. HABERMAS. DFM, p. 31. É emblemática a posição de Habermas quando se trata da religião como medium unificador da cultura. Para ele, nenhuma figura da razão pode assumir o lugar da religião na sua dimensão unificadora. Nem mesmo o espírito absoluto de Hegel escapa a esse anátema. “Enquanto a linguagem religiosa trouxer consigo conteúdos semânticos inspiradores, que não podem ser jogados fora, que escapam à força de expressão de uma linguagem filosófica e que continuam à espera de uma tradução para discursos fundamentadores, a filosofia, mesmo em sua figura pós-metafísica, não poderá desalojar ou substituir a religião”. J. HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico. Trad. Flávio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Ed Tempo Brasileiro, 1990, p. 61. Doravante citado como PPM. Sobre a questão da religião em Habermas, Cf. Luiz. B. L. ARAÚJO. Religião e Modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola, 1996. 48 Segundo J. HABERMAS a filosofia de Hegel persegue um duplo objetivo, primeiramente intenta contra os sistemas filosóficos de Kant e Fichte no que concerne às “oposições filosóficas entre natureza e espírito, sensibilidade e entendimento, entendimento e razão, eu e não-eu, finito e infinito, saber e crença, ele (Hegel) pretende encontrar uma resposta para a crise da bipartição da própria vida” e, ao mesmo tempo, atingir a auto-compreensão da Modernidade expressa nesses sistemas. DFM, p. 31.
34
mediante a qual Hegel “reconhece a mais pura expressão do princípio dos tempos
modernos”49. Porém, segundo Habermas, Hegel não atinge, num primeiro
momento, a meta desejada, de restabelecer a reconciliação da totalidade dilacerada,
uma vez que, mesmo recorrendo à “intersubjetividade das relações de entendimento
mútuo, ele falha no objetivo que é essencial para a auto-fundamentação da
Modernidade, ou seja, o de pensar o positivo de modo tal que este possa ser
superado a partir do mesmo princípio de que ele próprio parte: precisamente, da
subjetividade”50. Pelo contrário, Hegel recorre a um modelo de reconciliação da
totalidade ética, estranha ao novo tempo, à guisa do modelo idealizado da polis
grega e da comunidade cristã primitiva. Este modelo é abandonado, e, logo em
seguida, coloca, em seu lugar, o conceito de saber absoluto que ultrapassa os frutos
do Iluminismo – a arte romântica, a religião da razão e a sociedade burguesa –, pois,
numa Modernidade em conflito consigo mesma, que conquistara a sua
autoconsciência, não estaria no passado exemplar, as normas para sua orientação.
Após abandonar o projeto inicial de Iena, no qual a arte fora
considerada como poder de reconciliação, Hegel coloca a Filosofia como sendo o
lugar, mediante o qual, a razão se manifesta como poder absoluto de unificação.
Com isso, ele quer superar a Filosofia kantiana, que colocou a autoconsciência da
razão como fundamento do pensar, mas ficou presa ao emaranhado da Filosofia do
entendimento, que, se por um lado, apreende as diferenciações das esferas da vida
humana – Ciência, Moral e Arte –, por outro, não se mostra capaz de pensar a
unidade das diferenças. Para ele, inere ao pensamento a certeza dessa contradição e
sua superação. Pois se o saber imediato rejeita a diferença, o pensamento é o seu
reverso: é movimento e mediação, uma vez que dilui o simples em suas
determinações e as reflete na sua unidade. Para Hegel, segundo Manfredo Oliveira,
o pensamento “é, essencialmente, a relação dos diferentes uns aos outros: o objeto
49 Ibid., p. 32. 50 Ibid., p. 39.
35
do pensar é sabido, em si mesmo, como relação de diferentes entre si, como a
unidade de contrapostos”51.
É sob esse aspecto que a Filosofia da subjetividade se estabelece no
nível da diferença primária da relação entre sujeito e objeto. Daí torna-se mais
compreensível o motivo pelo qual, para Hegel, por um lado, o novo tempo,
enquanto época das cisões, provoca na Filosofia a necessidade de superar essas
cisões, o que somente é possível mediante o reconhecimento de que o princípio da
subjetividade é um princípio unilateral. Por outro, ele vai tentar desenvolver um
conceito de razão com o poder de unificar as diferenças, pois ele se torna a instância
crítica interna da própria Modernidade, que vai além da subjetividade, sem negá-
la52. Assim, com o conceito de absoluto “que consiste somente na relação entre o
finito e o infinito, na própria atividade de reflexão”53, Hegel faz uso dos meios da
filosofia do sujeito com a finalidade de superar a razão centrada no sujeito.
Esse modelo de certificação, elaborado por Hegel, segundo Habermas,
supera a própria possibilidade da Razão, pois, se por um lado, procura ultrapassar a
subjetividade, sem destruí-la, ou seja, a retém, no momento da negação
determinada, para suprassumí-la, em seguida, elevando-a, no momento da verdade,
por outro, a Razão assume, enquanto saber absoluto, o lugar deixado pelo destino, a
ponto de saber que o real é racional, que o significado essencial como um todo “já
51 Manfredo OLIVEIRA. “A Crise da Racionalidade Moderna: Uma Crise de Esperança”. In: Síntese Nova Fase 45(1989), p. 17. 52 Segundo Manfredo OLIVEIRA, o cerne da filosofia de Hegel pode ser captado, no interior da perspectiva aberta pela Filosofia transcendental, o que significa: “elaborar um conceito de razão, que seja capaz de dar conta das experiências da crise da Modernidade e tornar possível uma crítica de fundo ao reducionismo da Modernidade, para recuperar, numa dimensão superior, seu momento de verdade”. Ibid. p. 18. “Se o poder da unificação desaparece da vida dos Homens e os antagonismos perdem sua relação viva, a sua reciprocidade, e ganham autonomia, então surge a necessidade da filosofia ...”. Cf. W .Hegel, Differenzschrift, apud, Jürgen HABERMAS, DFM, p. 31. 53 J. HABERMAS, PPM, p. 165. J. HABERMAS, DFM., p. 42. Segundo Habermas “com o conceito de absoluto que supera todas as absolutizações e que retém apenas o processar infinito da auto-referência, enquanto incondicionado, que absorve todo o finito, Hegel pode compreender a Modernidade partindo do seu próprio princípio. E ao fazê-lo ele apresenta a filosofia como poder da unificação que supera todas as positividades que decorrem da reflexão – e cura, assim, os fenômenos modernos da desintegração”. Ibid., p. 44. Para Lima VAZ, “Será justamente em torno do núcleo conceptual constituído pela relação do homem com o Absoluto que se travará as grandes querelas pós-hegelianas e a herança de Hegel será disputada entre seus herdeiros de direita e de esquerda”. São, pois, as instâncias dialéticas do Espírito Absoluto: Arte (intuição), Religião (representação) e Filosofia (conceito) Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991, p. 120.
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foi decidido”54. Isso significa que, com o Espírito Absoluto, Hegel realiza uma
reconciliação55 com a Modernidade, renunciando à capacidade crítica da razão, ao
mesmo tempo em que assiste à neutralização das condições sob as quais ela
adquiriu a consciência de si mesma.
Sob o prisma da busca de certificação, de um conceito de razão que
aglutine todas as nuances da Modernidade, Habermas afirmará que o discurso da
Modernidade foi inaugurado por Hegel, no sentido de que sua filosofia se instaura
como o pensamento que se reconhece a si mesmo como sendo a consciência de sua
época. No entanto, com o conceito absoluto de razão56, Hegel a aprisiona no interior
do seu próprio conceito de auto-certificação, por subsumir o contingente, o terreno
do não-ente, do mutável, aos ditames do espírito sublimado que sorve todas as
contradições atuais, para o interior de sua “absoluta auto-referência”. Para os neo-
hegelianos, há que desublimar – libertar – a razão absoluta, “essa figura do
pensamento que é a crítica da Modernidade, a qual se inspira no espírito da
Modernidade, do peso do conceito hegeliano de razão”57. Nesse sentido é que
Feuerbach reclamará, na natureza interior e exterior, a existência sensível: sensação
e paixão comprovam a existência de um corpo, sentido pela resistência do mundo
objetivo; Kierkegaard lembrará a existência histórica de cada indivíduo, premida
pela busca da autenticidade de sua existência, que exige uma decisão de caráter
irrevogável e de interesse infinito; Marx insiste no ser material que, ao agir,
54 Roger GARAUDY assim reflete essa afirmação de Hegel de que o real é racional: “Para que o homem conquiste ao mesmo tempo a mais alta liberdade e a felicidade, para que ele se ache completamente em ‘casa’ no mundo que acaba de nascer, é preciso superar-lhe todas a contradições, não pelo combate, pois o princípio da nova ordem não é colocado em xeque, mas por uma racionalização total do real, pela tomada de consciência da necessidade da contradição e de sua racionalidade”. Para Conhecer o Pensamento de Hegel. Trad. Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM Ed., 1983, p. 17. 55 “Esto [a reconciliação] constituye la exigencia de la filosofía de la religión, (la necesidad de la filosofía en general). En esta reconciliación hay que corresponder a la exigencia suprema del conocimiento, del concepto y la razón; el conocer y el concebir no pueden ceder en nada ... e de su necesidad y dependencia, convicción ... Su altura misma consiste justamente en que él [o conteúdo absoluto] no renuncia a la Razón”. G. W. F. HEGEL. Lecciones sobre Filosofía de la Religión, 1. Trad. Ricardo Ferrara. Buenos Aires: Ricardo Ferrara, 1984, p. 21-22. Segundo J. HABERMAS, essa reconciliação significa que “Hegel vê a filosofia dispensada da tarefa de confrontar a existência corrompida da vida social e política com o seu conceito”. DFM, p. 50. 56 Para J. HABERMAS, ao conceber a realidade como uma unidade da essência e da existência, Hegel renuncia exatamente o que primordial para a Modernidade: a importância da transitoriedade plena de significado, antes defendida por ele em 1807. DFM, P. 59. 57 J. HABERMAS. DFM, p. 59.
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cooperativamente, sobre a natureza exterior, com vistas a suprir suas necessidades,
estabelece relações sociais, fundadoras da vida econômica, medium da
autoconstrução histórica da espécie. Noutros termos, os neo-hegelianos querem
recuperar a transitoriedade, que é o caráter próprio do novo tempo, como momento
no interior do qual se recupera o espaço para a crítica da própria História, à medida
que se libertam da égide da razão onisciente.
A crítica dos neo-hegelianos à razão absoluta, por conseguinte, toma
em consideração, as condições sobre as quais a razão se faz presente na História, ou
seja, recupera a própria história como atualidade aberta ao futuro, portanto, para
quem a própria crítica é uma forma de dar respostas à crise da atualidade. Eis o
elemento de continuidade com Hegel. Ao mesmo tempo, essa crítica assume o
problema constitutivo do discurso da modernidade, qual seja, um discurso que
rompe com a perspectiva ontológica que caracteriza a razão como Deus ou um ente
em geral, e com a perspectiva empírica, cuja caracterização remete às disposições
de um sujeito como capacidade de conhecer e de agir. Eis o elemento de
descontinuidade.
Para a continuidade do discurso sobre a razão na modernidade, a
recorrência à razão é imprescindível. Portanto, há que descobrir a razão na forma
como os sujeitos reproduzem sua vida e se comportam, em relação à natureza
interna e externa, cujos vestígios desse agir se fazem presentes nos contextos sociais
e culturais da vida, na qual eles se encontram, e se sedimentam em esboços ou
estruturas. Para Habermas, “essa ótica especificamente moderna é conduzida pelo
interesse numa autocertificação [...] (e) torna legíveis processos de formação
cultural suprasubjetivos, nos quais se entrelaçam processos de aprendizagem e
desaprendizagem”58. Sob esse prisma, de que na construção da história, condensam-
se processos supra-subjetivos articulados intimamente uns com os outros, é que
outras características do discurso moderno tornam-se visíveis, a saber: a crítica da
58 Ibid., p. 61.
38
razão centrada no sujeito, a simultânea posição de destaque e debilidade dos
intelectuais e a responsabilidade pelos destinos da História.
Daí que para uma correta compreensão da modernidade, há que se pensar um
outro conceito de razão, uma vez que os traços autoritários inerentes à dialética do
Iluminismo, radica-se no princípio da autoconsciência ou da subjetividade, dado
que o sujeito auto-referente adquire sua autoconsciência à custa da objetivação tanto
da natureza interior, quanto da exterior. Dessa forma, tanto no conhecer, quanto no
agir, o indivíduo reporta-se sempre a objetos, tornando-se prisioneiro dos atos que
se destinam a lhe assegurar o seu auto-conhecimento e sua auto-comprensão,
impossibilitando uma correta compreensão do grau de reflexão e de emancipação.
Não é sem razão que os críticos da modernidade se lançam contra o positivismo da
razão. De Hegel até Heidegger, passando por Marx, Nietzsche e, de maneira
especial, como a crítica à razão é dada na Dialética do Esclarecimento, o anátema
contra uma razão fundada no princípio da subjetividade, é singular: ela só denuncia
toda forma de des-razão, apenas, para estabelecer, no seu lugar, o domínio, o poder
da própria racionalidade, à medida que transforma os canais de conscientização e de
emancipação, em outras formas de objetivação e de controle, passando a gozar “de
uma sinistra imunidade ao colocar-se sob as formas de uma dominação
eficientemente dissimulada”59.
1.3. Marx: Trabalho e Emancipação.
Uma saída apontada para a certificação da Modernidade no interior do
pensamento hegeliano, só que com uma inflexão sobre a dimensão prática da razão,
59 Ibid,, p. 62.
39
é dada pelos hegelianos de esquerda. Estes procuram libertar o potencial
emancipatório da razão, acumulado ao longo da história, que se encontra prisioneiro
do ethos burguês, e aguarda o momento de sua libertação. Sob o olhar nas
mudanças econômicas, ocorridas na Europa, que criou uma nova sociedade marcada
pela mobilidade e pela transformação das relações sociais; mudanças cujo processo
se passava alheio à consciência participativa e deliberativa dos próprios sujeitos
atuantes, Marx tece sua crítica ao modus vivendi da sociedade burguesa capitalista.
Num primeiro momento, mostrando que a totalidade ética, pensada por Hegel, sob a
chancela da “filosofia da unificação”, não pode ser resolvida, apenas, pelo
pensamento. A sociedade civil desagregada não realiza a sua superação e a
conciliação dos seus conflitos, no Estado. Este, “não incorpora de modo algum a
sociedade antagônica numa esfera da eticidade viva; o Estado limita-se a preencher
os imperativos funcionais desta sociedade, e é ele próprio uma expressão da sua
eticidade dilacerada”60. Nesse contexto, a crítica de Marx a Hegel reside na busca
de uma saída para a totalidade ética dilacerada, não mais na Filosofia da reflexão,
mas no próprio âmago do conflito: no interior das forças produtivas.
Segundo Marx, no desenvolvimento das forças produtivas, presente no
rápido avanço dos instrumentos de produção e de comunicação, adormece o ímpeto
emancipador dos movimentos sociais que precisa ser despertado. Noutros termos,
no interior do sistema, permanece a esperança de se realizar a totalidade ética. Este
despertar das forças produtivas deve ser atribuído a um princípio da Modernidade,
mas não mediante o conceito de reflexão, e sim mediante o conceito de práxis do
sujeito produtor, trocando a autoconsciência pelo trabalho. “O objeto do trabalho,
portanto, é a objetificação da vida-espécie do homem, pois ele não mais se reproduz
a si mesmo apenas intelectualmente, como na consciência, mas ativamente e em
sentido real, e vê seu próprio reflexo em um mundo por ele construído”61.
60 Ibid., p. 68. 61 Karl MARX. “Manuscritos Econômicos e Filosóficos”. In.: Erich FROMM, Conceito Marxista do Homem. Trad. Otávio A. Velho, Rio de Janeiro: Zahar Ed., 7a ed., 1979, p.96-97. Cf. “A Ideologia Alemã”. In.: K. Max F. Engels. Florestan FERNANDES (org.). São Paulo: Ed. Ática, 1983, p. 187. “Ao produzirem os seus meios de vida, os homens produzem indiretamente a sua vida material mesma ... O que eles são coincide
40
A Filosofia moderna destacava duas relações entre sujeito e objeto62.
A primeira, enquanto sujeito do conhecimento, que forma para si opiniões acerca de
algo no mundo, passíveis de serem verdadeiras ou não. A segunda, enquanto sujeito
de ação, cujo agir com respeito a fins, realiza algo no mundo objetivo, e cujo
resultado pode ser de sucesso ou insucesso. Isso significa que, na mediação entre
conhecer e agir, sujeito e objeto estabelecem relações, e ambos são afetados e
modificados na sua forma. Nesse contexto, a formação do espírito é compreendida,
pela Filosofia da reflexão, como um processo de autoconsciência, sob o modelo da
auto-referência; já a Filosofia da práxis compreende o processo da formação da
espécie, como autoprodução. Nesse sentido, Étienne Balibar vai defender que, à
medida que Marx identificou a essência da subjetividade como prática, e a
efetivação dessa prática como sendo uma atividade revolucionária, ele trouxe a
categoria de sujeito para o materialismo, mas não só, ele, sobretudo, “derrubou um
dos mais antigos tabus da filosofia: a distinção radical entre práxis e poiesis”63.
Distinção essa, lapidar, realizada por Aristóteles, para se referir às diferentes esferas
portanto com a sua produção, tanto como o que produzem quanto também como o que produzem. Portanto, o que os indivíduos são depende das condições materiais da sua produção ...”. 62 “... subjective reason regulates exactly two fundamental relation that a subject can take up to possible objects. Under ‘object’ the philosophy of the subject understanding first of all capacities to relate oneself to such entities in the world in an objectivating attitude and to gain control of objects, be it theoretically. The two attitudes of mind are representation an action. The subject relates to objects either to represent them as they are or to produce them as they should be. These two functions of mind are intertwined: knowledge of states of affairs is structurally related to the possibility of intervention in the world as the totality of states of affairs; and successful action requires in turn knowledge of the causal nexus in which it intervenes”. J. HABERMAS, TCA, vol 1, p. 387. 63 Étienne BALIBAR. A Filosofia de Marx. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995, p.53. Sobre essa mesma questão, Hannah ARENDT diz que para Marx, numa sociedade plenamente socializada “cuja única finalidade fosse a sustentação do processo vital ... a distinção entre labor e trabalho desapareceria completamente; todo o trabalho tornar-se-ia labor, uma vez que todas as coisas seriam concebidas, não em sua qualidade mundana e objetiva, mas como resultado da força viva do labor, como função do processo vital”. A Condição Humana.Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 8a ed., 1997, p. 100. Adiante, após afirmar que a teoria de labor de Marx está orientada por este ideal “infelizmente um tanto utópico”, dado que o reino da liberdade só seria conquistado quando o homem fosse libertado do reino das necessidades físicas imediatas, ela considera que “em todos os estágios de sua obra, ele (Marx) define o homem como animal laborans para levá-lo depois a uma sociedade na qual este poder, o maior e mais humano de todos, já não é necessário. Resta-nos a angustiosa alternativa entre a escravidão produtiva e a liberdade improdutiva”. Ibid. p. 117. Valeria a pena perguntar, neste ponto, se a Razão Comunicativa de Habermas não recupera a distinção entre práxis e poiesis para assegurar o momento reflexivo – emancipatório – da práxis, que ficou prisioneiro, segundo Habermas, da dimensão instrumental da razão no paradigma da produção. Porém, a inflexão dada, por Habermas, ao momento reflexivo da práxis, não pode ser compreendida no sentido clássico de theoria, como contemplação. A reflexão possibilita a descoberta dos elementos cognitivos presentes no mundo da vida, e, mediante argumentos, instaura as condições simétricas para o diálogo com vistas ao entendimento, como veremos adiante.
41
do ser: a teoria e a práxis64, e que serviu de modelo à justificação histórica da
divisão social do trabalho; a superação, dessa divisão, adviria, segundo Marx,
mediante a revolução operada por um novo sujeito histórico: a classe operária.
Dessa forma, a Filosofia da práxis vai instaurar o princípio da Modernidade como
sendo o trabalho, em oposição à autoconsciência. Ao absorver a distinção entre
fazer e agir, a filosofia da práxis, para Lima Vaz, assume o núcleo dinâmico da
cultura da modernidade, tendo sua expressão teórica na filosofia do sujeito,
“fazendo da História ao mesmo tempo a matriz de todos os seus valores e a obra por
excelência do seu supostamente ilimitado poder de produzir”65.
Marx formula o princípio do trabalho através do aporte da idéia da
atividade criadora do artista, como meio de este abranger, também, o conteúdo
racional da cultura burguesa. Nessa perspectiva, mediante sua atividade, o artista
dispõe das suas forças vitais e as coloca na sua obra, e ao contemplá-la, reapropria-
se do produto do seu trabalho, como algo de permanente e expressão da
determinidade da consciência de si. Tal não acontece no trabalho assalariado
(alienado), cujo elo de ligação entre produção e apropriação das forças vitais
objetivadas é cindido, interrompendo o fluxo normal da práxis, que deveria abarcar
o conteúdo estético-expressivo, o prático-moral e a troca de equivalentes. Ou seja,
na sociedade capitalista, a mercadoria, por se apresentar como algo supra-sensível e
independente do seu produtor, é o elemento gerador da cisão entre o processo de
produção material e o processo de auto-esclarecimento. É por causa desse caráter
supra-sensível da mercadoria, segundo L. Avritzer, “que o processo de
esclarecimento político dos produtores não ocorre imediatamente” 66. A
recomposição dessa cisão passa por uma práxis emancipatória, que deve brotar do
64 Segundo J. HABERMAS, dado que a práxis se referia à ação política, para os gregos, havia que distingui-la da ação, que tem como fim a construção de artefatos úteis: poiesis. “Em última instância, a política sempre se orienta à formação do caráter; procede pedagogicamente, não tecnicamente”. Enquanto práxis, a política, persegue a perfeição ou a excelência humana: areté, portanto, não tem nada a ver com a poiesis, que, enquanto techné – a habilidade artesanal –, “consiste na fabricação habilidosa de obras e em domínio firme de tarefas objetualizadas”. Teoría y Práxis. Trad. Salvador M. Torres e Carlos M. Espí. Madrid: Tecnos, 1990, p.50. 65 Lima VAZ. “A Cultura e seus Fins”. In: Síntese Nova Fase 57 (1981), p.158-159. 66 Leonardo AVRITZER. A Moralidade da Democracia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996, p. 36.
42
próprio trabalho. No entanto, segundo Habermas, isso não ocorre, porque o trabalho
morto, o trabalho que foi arrancado do trabalhador, não é pensado como uma
intersubjetividade paralisada e mediatizada. Sob esse aspecto, as premissas
marxianas não superam os limites da razão centrada no sujeito, pois na relação
agente e mundo objetivo, a validade que pode ser afirmada é da racionalidade
cognitivo-instrumental, “e o poder unificador da razão, que agora é apresentado
como práxis emancipatória, não se dissolve nesta racionalidade com respeito a
fins”67, porque, a dimensão interativa da razão não está subsumida, na dimensão
sistêmica, como pensava Marx68.
Essa dificuldade de abarcar, mediante a Filosofia da práxis, um
conceito unificador de razão livre da auto-referência, e que contemple todos os
matizes da Modernidade, colidiu, segundo Habermas, com limites intransponíveis,
tanto quanto a Filosofia da reflexão. Para esta, a saída da filosofia centrada no
sujeito se deu mediante o recurso da automediação absoluta do espírito. Esse
modelo recebeu suas críticas, já na primeira geração dos discípulos de Hegel, que se
colocaram de encontro à supremacia secreta do universal, necessário e atemporal,
sobre o particular, contingente e temporal. Em Marx, o limite da Filosofia da práxis
está em reduzir a razão, apenas a uma das suas possibilidades: a teleo-atividade,
nesse sentido, ele não pode contrapor a filosofia da práxis à razão instrumental, ou
seja, ao processo inconcusso da racionalidade social, por ser, a racionalidade dessa
filosofia, parte integrante e resultado do contexto reificado.
A própria história do marxismo ocidental reflete as dificuldades
encontradas, para manter a unidade do discurso, em relação aos conceitos
fundamentais da filosofia da práxis. Algumas dessas dificuldades são relatadas por
Habermas, no sentido de enumerar a impossibilidade de Marx de propor uma saída
para as cisões da Modernidade. Primeiramente, quanto a avaliação positiva de
67 Ibid., p. 71. 68 Para Leonardo AVRITZER, “é ao nível dos processos de formação da identidade e produção da solidariedade e, principalmente do processo de argumentação moral que as possibilidades de emancipação dos indivíduos estão localizadas”, e não no interior do paradigma da produção. Voltaremos a esse tema, no
43
Marx, em relação ao avanço das forças produtivas e do potencial emancipador da
Ciência e da Técnica. Estas são vistas, por Lukács, Bloch e Marcuse, como um
meio eficaz de repressão social; em segundo lugar, ele fala que a filosofia da práxis
toma como “mera aparência” a relação sistêmica entre a Economia capitalista e o
Estado. Nesse sentido, quando fosse superada a relação de produção, junto com ela
desapareceria a relação sistêmica: as relações sociais coisificadas seriam
recuperadas, no mundo da vida, livres dos ditames da lei do valor. Sob esse prisma,
o cuidado que se deve ter é o de não tomar o processo de emancipação, apenas,
como um modo de des-diferenciação de interações humanas complexas, pois, do
contrário, o poder unificador da razão fica reduzido a uma mera ilusão, frente a
teoria dos sistemas.
Essas dificuldades refletem que, se por um lado o trabalho assegura
uma relação da modernidade com a racionalidade, por outro, ele se debate com o
mesmo desafio que se encontrava a filosofia da reflexão, qual seja: a estrutura da
exteriorização de si mesmo no trabalho, bem como a estrutura da relação consigo
mesma, leva implícita a necessidade de auto objetivação, por conseguinte, “o
processo de formação da espécie é determinado pela tendência que os indivíduos
trabalhadores, na medida da dominação da natureza exterior, só adquirem a sua
identidade pelo preço da repressão da sua própria natureza interior”69. Ou seja, o
modo como a razão avança sobre a natureza, para transformá-la no mundo da
cultura, faz-se com tamanha instrumentalidade, que destrói a possibilidade de, em
princípio, não mais haver uma natureza independente. Daí se entender a inflexão
dada, por Horkheimer e Adorno, na Dialética do Esclarecimento, a essa figura do
espírito objetivado: a instrumentalidade da razão. Para evitar a instrumentalização
decorrente da razão centrada no sujeito, Hegel contrapõe, à absolutização da
autoconsciência, a automediação absoluta do espírito70. No entanto, a filosofia da
capítulo seguinte, quando se tentará abordar a relação de continuidade e descontinuidade entre Adorno e Habermas. Ibid., p. 48. 69 DFM., p. 73. 70 Segundo Habermas, a escolha de Hegel do termo espírito não é arbitrária, uma vez que esse é referido, na linguagem ordinária, como espírito de um povo, de uma época, ou de um grupo etc, portanto, está acima da subjetividade da autoconsciência solitária. “O Eu como a identidade do universal e do particular só se pode
44
práxis, que nasceu como resistência à filosofia idealista, fica sem ter o que
contrapor à razão instrumental teleológica, quando a pressão para a objetivação se
faz sentir, no âmago da razão crítica, uma vez que a filosofia da práxis se
compreende a si mesma em termos materialistas, ou seja, como parte integrante e
resultado do contexto reificado.
Esse dilema da razão instrumental, é enfrentada por Horkheimer e
Adorno, na Dialética do Esclarecimento, porém, não no sentido de resolvê-la, de
apresentar uma saída, mas de levá-la ao paroxismo. Frente à razão instrumental, eles
opõem uma recordação, uma outra forma de relação com a natureza, envolta em
protesto contra a instrumentalização. Essa forma de resistência é denominada de
mímesis, que, nas palavras de Habermas, “faz lembrar uma relação entre duas
pessoas, na qual a pacífica exteriorização de uma, pela qual ela se identifica com o
modelo da outra, não exige a renúncia à própria identidade, mas concede, ao mesmo
tempo dependência e autonomia”71. Por estar livre da conceitualização que se
reflete na relação sujeito-objeto, a capacidade mimética apresenta-se como um mero
impulso, como o simples oposto à razão.
Por conseguinte, a crítica da razão instrumental, apresenta-se, na
Dialética do Esclarecimento, como uma denúncia contra a dominação que essa
razão exerce, mas não consegue explicar, por estar presa a conceitos que, se por um
lado, facultam ao sujeito dispor da natureza exterior e interior, por outro, não são
capazes de dar voz à natureza objetivada, para que ela denuncie os atentados de que
é vítima, por parte do sujeito. Nesse sentido, como a Teoria Crítica não renuncia à
esperança de uma sociedade emancipada, em Adorno, sobretudo, essa utopia será
vivida na imaginação estética. Para Olgária Matos, “A Teoria Crítica preserva a
transcendência da Utopia como verdade de um futuro de realização [...]. Eis a
conceber a partir da unidade de um espírito que integra a unidade do Eu com um outro, que com ele não é idêntico. Espírito é a comunicação dos particulares no meio de uma universalidade que se comporta como a gramática de uma língua em relação aos falantes, ou como um sistema de normas vigentes relativamente aos indivíduos agentes, e que não salienta o momento da universalidade perante a individualidade, mas garante a sua conexão particular”. “Trabalho e Interação”. In.TCI, p. 16. 71 DFM, p. 73.
45
importância da imaginação estética e da fantasia como instância em que estão
depositadas as mais genuínas aspirações do indivíduo. Na imaginação estética há a
utopia de uma razão ressensualizada, na medida em que indica um princípio de
realidade diverso do atual: a reconciliação do homem com o homem passa pela
reconciliação do homem com a natureza ...”72. Ou seja, a arte passa a ser vista como
o locus privilegiado, no qual ainda se esconde aquela capacidade mimética que
escapa à abordagem conceitual, e resgata a melancolia de um instante perdido, que
somente pode ser recuperado como saudade do inteiramente outro.
Em resumo, a dialética do Iluminismo realiza-se sob a égide da
liberdade subjetiva que se apresenta na maior conquista dos tempos modernos : a
autoconsciência. Porém, a força dessa dialética está no processo de aprendizagem
irreversível, segundo o qual “as formas de compreensão não podem ser esquecidas a
bel-prazer, mas podem ser apenas reprimidas ou corrigidas por outras melhores”73.
Por conseguinte, as cisões que afloraram do princípio dessa subjetividade, e que se
efetiva na sociedade, no Estado e na vida privada, aos poucos vão se apartando e se
autonomizando cada vez mais, de maneira a ressurgir, simultaneamente, sob o
espectro de uma abstração, de alienação frente ao contexto de uma totalidade ética,
o que antes se apresentava como ideal emancipatório. É sob esse aspecto que
Habermas irá dizer, a respeito de Hegel e de seus seguidores, que vão procurar
extrair dessa dialética a auto-compreensão do novo tempo, cujo poder de unificação
deve ser haurido da própria razão, uma vez que inere a esta dialética a
impossibilidade de recorrer ao poder unificador da religião, que eles não
conseguiram talhar, numa justa medida, um conceito de razão que abarcasse todas
as nuances de um Iluminismo, em si mesmo dialético. Mas não só, a ausência de um
ideal de razão que dialogasse com uma modernidade em conflito consigo mesma,
colocou sob suspeita a própria razão. Agora ela está desafiada a esclarecer-se a si
mesma. Esse desafio abriu as portas para a suspeição dos ideais emancipadores da
72 Olgária F. MATOS. Os Arcanos do Inteiramente Outro. São Paulo: Brasiliense, 2a ed., 1995, p. 288-289. 73 J. HABERMAS. DFM, p. 90.
46
razão, na forma de uma crítica radical da razão. É o que se tentará analisar no
capítulo seguinte, como Horkheimer e Adorno, mediante a Dialética do
Esclarecimento, vêem a razão que engendrou o ethos iluminista tão-somente a
expressão visível de um processo de racionalização, que foi conduzido sob o
domínio da razão com respeito a fins, como um processo de reificação, que minou a
possibilidade de realização do ideal Iluminista da autonomia do sujeito.
47
CAPÍTULO II
MODERNIDADE E MITO
2.1. Horkheimer e Adorno: A Modernidade e o Mito da Razão Esclarecida
Na primeira parte deste trabalho procuramos introduzir e discutir,
sumariamente, a relação entre modernidade e razão, dentro da teoria da
modernidade de Habermas. Com isso, tentou-se mostrar que se o ponto de partida
dessa teoria é o processo de racionalização oriundo de Weber, compreendido como
a extensão progressiva para o conjunto da sociedade da racionalidade com respeito
a fins (Zweckrationalität), seu desfecho será a afirmação da afinidade interna,
indissociável, entre modernidade e racionalidade, condição para assegurar o caráter
emancipador do processo de racionalização, enquanto processo no qual se busca
realizar a autonomia.
Essa autonomia, compreendida como maioridade realizada dos
homens e expressa no uso público da razão, tematizada por Kant, Hegel e Marx, se
vê questionada em seu sentido pela tradição da filosofia da práxis marxiana.
Horkheimer e Adorno, mediante a Dialética do Esclarecimento, vão contrapor ao
48
ideal emancipador da razão iluminista, um conceito de razão prisioneiro do mito,
que se expressa como razão instrumental. Esta é apresentada como uma categoria
interpretativa da história universal, e se alicerça na dominação da razão sobre a
natureza. E o Iluminismo, que se orgulhava da sua vitória sobre a fase mítica da
vida humana, vê-se envolto com uma razão que se anuncia na dominação da
natureza. Quanto ao seu programa de desencantamento do mundo “... a terra
totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”74.
A herança marxiana do conceito de práxis, esta compreendida como
síntese totalizadora do real e núcleo conceitual dinâmico iluminador da emergência
da emancipação do homem, recebe uma inflexão lapidar no chamado marxismo
ocidental. Essa crítica, realizada na perspectiva da teoria crítica da Escola de
Frankfurt, de maneira especial por Horkheimer e Adorno, tem um endereço
definido: o âmago do próprio conceito de razão Iluminista, no sentido de colocar,
conscientemente, sob suspeita, seu caráter emancipador. O confronto de Habermas
com seus mestres75 é emblemático, porque se inscreve no seio do debate
contemporâneo do marxismo ocidental, debate iniciado no final da década de
192076, quando as esperanças de uma sociedade emancipada, via revolução russa,
aparecia, cada vez mais, como uma idílica quimera, à medida que a revolução
socialista começava a revelar uma outra face: o Estado Soviético burocratizado
apresentava-se como a negação das esperanças da filosofia da práxis, que era a
conquista do Estado pelo novo sujeito histórico: o operariado. Com isso
74 T. ADORNO e M. HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 19. 75 As considerações aqui apresentadas partem do pressuposto de que o pensamento de Habermas está em continuidade com a Escola de Frankfurt. Sobre essa questão cf. A. ARATO, e E. GEBHARDT, (Ed.) The Essential Frankfurt School Reader. New York: Continuum, 1998. David HELD. Introduction to Critical Theory. Horkheimer to Habermas. Berkeley: University California Press, 1980. Martin JAY, M. La Imaginación Dialética. Trad. Juan C. Curutchet. Madrid: Taurus, 3a ed., 1986. S. Eric BRONNER. Da Teoria Crítica e seus Teóricos. Trad. T. R. Bueno e C. Meneguelo. Campinas: Papirus, 1997. Bárbara FREITAG. Teoria Crítica Ontem e Hoje. São Paulo: Brasiliense, 3a ed., 1990. Olgária C. F. MATOS. Os Arcanos do Inteiramente Outro. São Paulo: Brasiliense, 2a ed., 1995. Raymond GEUSS. Habermas e a Escola de Frankfurt. Trad. B. I. Borges. Campinas: Papirus, 1988. 76 S. BRONNER coloca que a mudança de enfoque da economia política para a teoria crítica deu-se em 1930, quando Horkheimer assumiu a direção do Instituto. Da Teoria Crítica e seus Teóricos. Trad. T. R. Bueno e C. Meneguelo. Campinas: Papirus, 1997, p. 96.
49
adiantamos, portanto, que não é nosso intuito proceder, neste trabalho, a uma
retomada de todos os problemas teóricos enfrentados pela Escola de Frankfurt, para
não incorrermos no risco da generalidade, mas, de maneira especial,
acompanharmos o confronto entre Habermas vs. Adorno e Horkheimer, sobre a
crítica da razão iluminista, talhada à medida da Dialética do Esclarecimento.
Assim, já de saída, a questão que se levanta é a seguinte: até que ponto pode-se
dizer que, em O Discurso Filosófico da Modernidade, Habermas não leva, em
consideração, o contexto em que foi escrita a obra de 1947; as questões a que ela
procurava responder e como estas foram decisivas para os desenvolvimentos e às
assunções posteriores do pensamento de Adorno77?
De fato, Habermas está ciente da gravidade do contexto no qual foi
escrita a Dialética do Esclarecimento. Tanto é que ele recorrerá à análise de
Dubiel78 para dizer que três fatores foram determinantes para a formação da teoria
crítica: primeiro, a experiência soviética, que confirmava o prognóstico de Max
Weber quanto ao acelerado processo de burocratização do Estado, tendo como
conseqüência a perda dos ideais democráticos de liberdade da sociedade; segundo, o
avanço do nazi-fascismo, que revelava a capacidade interventiva do Estado-gestor
na economia, à medida que barrava o avanço da ameaça revolucionária e, por fim, o
desenvolvimento da cultura de massa, principalmente nos Estados Unidos, que se
consolidava como força integradora do capitalismo79.
77 Marcos NOBRE. A Dialética Negativa de Theodoro W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 31 e 41. O autor defende que Habermas falha na sua avaliação sobre Adorno. Primeiramente porque Habermas não deixa claro que houve modificações no pensamento de Adorno após 1947. “Não se trata aqui de discutir a crítica de Habermas, que aponta para uma ‘contradição performativa’ no modelo da crítica de Horkheimer e Adorno. Trata-se apenas de mostrar que partindo exclusivamente da Dialética do Esclarecimento não se consegue uma correta compreensão da obra tardia”. Em segundo lugar, na sua tentativa fracassada de “encontrar em Adorno (ainda que seja ‘uma vez’) um estado de comunicação sem coerção que é antecipado quando pretendemos anunciar algo verdadeiro”. 78 J. HABERMAS. TCA, vol. 1. p. 366s. 79 “The Soviet-Russian perversion of the humane content of revolutionary socialism, the collapse of the social-revolutionary labor movement in all industrial societies, and the socially integrative accomplishments of a rationalization that had penetrated into cultural reproduction – these were the basic experiences that Horkheimer and Adorno attempted to work through theoretically in the early 1940s”. J. HABERMAS. TCA, vol. 1, 1984, p. 367. Marie J. GAGNEBIN. Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro: Imago, 1997, apresenta uma quarta justificativa à dramaticidade e aspereza da linguagem da Dialética do Esclarecimento: o fato de ser uma obra de exílio. Este é emblemático por si mesmo para experiência judaica: é sinônimo, por excelência, de uma negação determinada. “Para onde quer que se
50
No embate com Adorno e Horkheimer, em O Discurso Filosófico da
Modernidade, a reação com respeito a Horkheimer, é peculiar. De saída, coloca-o
entre os chamados ‘escritores obscuros da burguesia’. De uma só penada, Adorno e
Horkheimer são associados aos escritores negros, Sade e Nietzsche, mediante a
Dialética do Esclarecimento, “o seu livro mais negro, para conceptualizar o
processo de autodestruição do iluminismo”. O contraponto estabelecido ante a
forma pessimista com que é tratado o conceito de Aufklärung80 de Adorno e
Horkheimer utilizado na Dialética do Esclarecimento, é posto sem rodeios.
Segundo Habermas, a singularidade da tradição iluminista revela-se e se consolida
como o pensamento que se contrapõe ao mito, sob duas nuanças de um mesmo
embate: por um lado, por estabelecer o melhor argumento como arma contra a força
repetidora da tradição e, por outro, por quebrar o “sortilégio dos poderes coletivos
por meio de intelecções individualmente adquiridas transposta em motivos”. Nesse
sentido, o iluminismo representa, não apenas, a antítese ao mito, como se fosse este
tão-somente o elemento contraditório do diálogo: o iluminismo é, em sua natureza,
a própria subtração do poder do mito.
As idéias desenvolvidas na Dialética do Esclarecimento gravitam em
torno de um eixo que é constituído sobre duas teses centrais: “o mito já é
esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia”81. Isso posto,
segundo Habermas, eles incorrem numa petitio principii, da qual se deduz uma
vantagem metódica: “Os mitos depositaram-se nas diversas estratificações do texto
homérico; mas o seu relato, a unidade extraída às lendas difusas, é ao mesmo tempo
a descrição do trajeto de fuga que o sujeito empreende diante das potências
dirijam os olhares só há dominação e morte e, pior ainda, acomodação à morte e resignação à dominação” (p. 108). 80 Horkheimer atribui dois sentidos ao conceito de “Aufklärung”: primeiramente, como o pensamento filosófico surgido na Inglaterra, França e Alemanha, em oposição à teologia; em seguida, como “o pensamento filosófico total que, ao contrário da mitologia, conduziu a batalha para alcançar a clareza sobre suas próprias idéias e tornar seus conceitos visíveis para todos ... Os dois sentidos estão ligados um ao outro”. Max Horkheimer, Apud, S. Bronner. Da Teoria Crítica e seus Teóricos. Trad. T. Bueno e C. Meneguelo. Campinas: Papirus,1997, p. 121. 81 T. ADORNO e M. HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 15.
51
míticas”82. Ou seja, a história da subjetividade apresenta-se como um processo de
fuga ante à violência das potências míticas cujo ambiente de sua realização não se
apresenta como a pátria, cujo retorno é sonhado, mas como o ‘labirinto’ do qual se
deve escapar, para assegurar a própria identidade.
Essa libertação, no entanto, não se dá de forma plena. O indivíduo é
como que constantemente compungido a regressar às origens, da qual retorna,
mediante o sacrifício ‘simbólico’, e se resgata da ‘maldição’. Para Habermas, esse
regresso ritual, além de ser uma “necessidade vital” para a consciência coletiva, na
esteira de Durkheim, assegura a “coesão social”. Portanto, o logro inerente ao
sacrifício simbólico, cujo retorno é, apenas, aparente é a sua máxima expressão, é
parte constitutiva do sacrifício, e, não apenas, uma expressão de astúcia, como
pensavam Adorno e Horkheimer: o eu deve subtrair-se ao objeto sacrifical.
Porém, essa pseudo-realização da libertação representa, para Adorno e
Horkheimer, a prova de que o iluminismo permanece refém da potência mítica, o
que comprova, por um lado, a sua recaída na mitologia e, por outro, que ele não
atingiu plenamente a sua realização. É o que eles procuram comprovar, através da
odisséia da consciência, na qual, em cada estágio de sua evolução, ela se sente
atraída pelas origens de cujo encanto só pode escapar, mediante à renúncia imposta
a si mesma. Esse é o custo que o eu se impõe, a si mesmo, para conquistar a própria
identidade, à medida que se despede da ‘arcaica’ união com a natureza, tanto da
natureza externa quanto da interna: “Com a negação da natureza no homem, não
apenas o telos da dominação externa da natureza, mas também o telos da própria
vida se torna confuso e opaco”83. No episódio do canto das sereias, a beleza plástica
da cena fala por si mesma. Ao ouvir o canto das sereias, Ulisses, acorrentado ao
mastro, encarna “o domínio do homem sobre si mesmo em que se funda o seu ser, é
sempre a destruição virtual do sujeito a serviço do qual ele ocorre; pois a substância
dominada, oprimida e dissolvida pela autoconservação, nada mais é senão o ser
82 Ibid., p. 55. 83 Ibid., p. 60.
52
vivo, cujas funções configuram, elas tão somente, as atividades da autoconservação,
por conseguinte exatamente aquilo que na verdade devia ser conservado”84. Essa é a
dupla face de Janus do iluminismo: o homem só consegue preservar a identidade
conquistada à custa do domínio da natureza exterior – ouve-se o canto das sereias
mas a condição de se estar acorrentado impede o contado com elas – e da repressão
da natureza interior – o desejo de ir ter com as sereias não é satisfeito por estar
preso ao mastro, símbolo da identidade, do eu, conquistada.
Sob esse aspecto, a Dialética do Esclarecimento remete as origens do
iluminismo às origens do processo histórico-universal. Nesse sentido, o
desencantamento do mundo moderno, com penetração em todas as esferas da vida
social: na economia, na cultura, na tecnologia, na lei e na política, assim como
pensou Weber85, que para Habermas representa a conquista da autonomia dessas
diversas esferas, para Adorno e Horkheimer, só aparentemente está realizado. A
emancipação do mundo moderno recai sobre ele mesmo como uma ilusão. O
controle racional da natureza exterior, inerente ao processo de desenvolvimento das
forças produtivas, impõe-se, apenas, pela necessidade de auto-preservação.
Nesse ponto do debate, em O Discurso Filosófico da Modernidade,
Habermas levanta três problemas (‘impressões’) que, segundo ele, devem ser
considerados pelos leitores da Dialética do Esclarecimento: 1) a similaridade da
tese levantada com o niilismo nietzschiano, 2) a consciência dos autores em relação
ao viés tomado para proceder a crítica da cultura e 3) a inflexão dada à crítica da
cultura que coloca, em questão, a credibilidade da própria crítica.
Quanto ao primeiro problema, concernente à crítica radical da razão
feita no primeiro excurso, a impressão deixada é a de que “a própria razão destrói a
humanidade que ela mesma possibilitou ... [pois] o processo do iluminismo se deve,
desde os seus primórdios, ao impulso de auto-preservação que mutila a razão
84 Ibid., p. 60 e 61. 85 Cf. Max WEBER. Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Trad. M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tomás J. M. K. Szmrecsányi. São Paulo: Liv. Pioneira Editora, 12a. ed, 1997.
53
porque só reclama em formas de dominação da natureza e do instinto orientada para
fins, justamente como razão instrumental”86. Daí o questionamento, será que a
razão, nas suas manifestações mais tardias – ciência, direito e arte – está subjugada
aos ditames da lógica da razão com respeito a fins?87 Certamente que, para
Habermas, o primeiro ensaio embarca nessa perspectiva, ao apresentar a ciência
moderna subsumida ao positivismo lógico, que hipertrofia o conhecimento técnico,
em detrimento do teórico: “Compreender o dado enquanto tal, diz Adorno e
Horkheimer, descobrir nos dados não apenas suas relações espácio-temporais
abstratas, com as quais se possa então agarrá-las, mas ao contrário pensá-las como a
superfície, como aspectos mediatizados do conceito, que só se realizam no
desdobramento de seu sentido social, histórico, humano – toda a pretensão do
conhecimento é abandonada.”88.
Se tal é a sorte da razão, no tocante à ciência moderna, que caiu no
sorvo da razão instrumental, semelhante destino tiveram, também, a moral e a arte,
segundo Adorno e Horkheimer, pois, com o desencantamento do mundo, os padrões
de orientação ético-religioso perderam sua força persuasiva, doravante subsumida à
ciência: “O fato de ter, não encoberto, mas bradado ao mundo inteiro a
86 J. HABERMAS. DFM, p. 113, grifos do autor. 87 É importante frisar que tanto para Adorno e Horkheimer quanto para Marcuse, o modelo da razão ocidental burguesa talhado à medida do conceito de racionalização de Max Weber, se expressa como uma razão formal, que se pretende axiologicamente neutra. É a razão que se efetivou no Ocidente e engendrou o Capitalismo. Segundo H. MARCUSE, “Industrialização e Capitalismo na Obra de Max Weber”. In: Cultura e Sociedade, vol 2, trad. W. L. Maar et al. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, p. 115, “a idéia especificamente ocidental da razão se realiza efetivamente em um sistema da cultura material e intelectual (economia, técnica, “modo de vida”, ciência, arte) que encontra seu desenvolvimento pleno no capitalismo industrial ...”. É a razão instrumental (Zweckrationalität), cuja lógica ‘oculta’ é a do domínio da natureza exterior, que se converte no domínio da natureza interior e dos homens sobre eles mesmos, que minou a possibilidade de emancipação. Para Max HORKHEIMER, “A razão subjetiva (instrumental) perde toda a espontaneidade, toda a produtividade, todo o poder de descobrir e fazer valer novos conteúdos, ela perde sua própria subjetividade”. “Meios e Fins”, Eclipse of Reason, apud, Olgária C. F. MATOS, Os Arcanos do Inteiramente Outro. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 142. Em Habermas, a inflexão dada ao conceito de racionalização e de razão instrumental (Zweckrationalität) percorre um caminho singular dentro da tradição da Teoria Crítica, para ele há que reconhecer a evolução própria a cada conceito, ou seja, por um lado a independência da Modernidade social frente à cultural, por outro a autonomia da ciência e sua necessária evolução frente as outras áreas do saber. “With science and technology, with autonomous art and the values of expressive self-presentation, with universal legal and moral representations, there emerges a differentiation of three value spheres, each of which follows its own logic”. Cf. J. HABERMAS. TCA, vol. 1, p. 163-4, grifos do autor. 88 T. ADORNO e M. HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Trad. Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 5a ed. 1996, p. 38-39.
54
impossibilidade de apresentar um argumento de princípio contra o assassinato ateou
o ódio com que os progressistas ainda hoje perseguem Sade e Nietzsche”. E mais:
eles “Não pretenderam que a razão formalista tivesse uma ligação mais íntima com
a moral do que com a imoralidade”89. Quanto à arte, esta quedou-se paralisada e
esvaziada de conteúdos crítico e utópico. Assim, ao ser fundida com o
entretenimento, destituída do seu caráter de transcendência, reproduz-se, na
indústria cultural, como mera imitação90: não reflete mais o caráter criador da
subjetividade do gênio. Desvitalizada de seu poder e separada, em domínios
culturais distintos, a razão substancial, agora como razão formal, é despojada de
suas pretensões de validade e assimilada ao poder; sem a capacidade crítica, a razão
renuncia a sua capacidade de se posicionar entre ‘sim’ e ‘não’, gerando uma relação
obscura entre o poder e a validade, pois se dispensou da tarefa de se pronunciar
sobre a questão de valor, e se volta apenas, segundo Adorno e Horkheimer, para os
princípios da autoconservação:
“... a razão constitui a instância do pensamento calculador que prepara o
mundo para os fins da autoconservação e não conhece nenhuma outra
função senão a de preservar o objeto a partir de um mero material sensorial
como material para a subjugação” 91.
89 Ibid., p. 111. Para Lima VAZ, a gravidade da crise da cultura moderna, está no âmago do próprio processo de constituição do ethos ocidental: “A grande falha aberta no solo cultural da Modernidade torna-se, assim, definitivamente visível e é ela que desenha o perfil da crise de uma civilização que se tornou universal pela difusão planetária das suas obras e do seu way of life, mas que não logrou infundir nessa universalidade a alma de um ethos que fosse o princípio vital da sua unidade e do seu sentido”. “Ética e Civilização”. In: Síntese Nova Fase, 49 (1990), p. 10. 90 Na Dialética do Esclarecimento, Adorno ainda mantém, de alguma maneira, uma similaridade com a acepção negativa do conceito de mimese herdado de Platão: como representação. Nesse sentido, segundo Gagnebin, “Poderíamos afirmar que prevalece, no pensamento de Adorno( e de Horkheimer), na época da Dialética do Esclarecimento, uma certa condenação da mímesis, descrita antes de tudo como um processo social de identificação perversa ... No fim da vida ... reabilitou a categoria da mímesis na sua Teoria Estética ... (na qual a arte é vista como) ‘refúgio do comportamento mimético’”. J. M. GAGNEBIN. Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História, Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 93, 97 e 103. 91 T. ADORNO e M. HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Trad. Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 5a ed. 1996, p.83. É nesse sentido que podemos compreender a afirmação de M. WEBER: “Na medida em que as operações são racionais, toda ação individual das partes é baseada em cálculo”. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Trad. M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tomás J. M. K. Szmrecsányi. São Paulo: Liv. Pioneira Editora, 12a. ed, 1997, p. 5.
55
Eis, pois, em linhas gerais, o diagnóstico sombrio da modernidade no
seu processo de racionalização, dado na Dialética do Esclarecimento. Porém, ao
que se resiste nesse diagnóstico, não é a clareza com que se acentua o processo de
racionalização social como um processo de reificação – os riscos da colonização do
mundo da vida são uma constante. Não obstante, há que reconhecer a dignidade da
modernidade cultural, pois, segundo Habermas, na esteira de Weber, a autonomia –
diferenciação – das esferas de valor, com a competência para se desenvolverem
independentemente uma das outras, não reduz, pelo contrário, potencia a capacidade
de diferenciar entre “sim” e “não”, pois em questão de verdade, de justiça e de
gosto, cada uma pode desenvolver sua lógica própria. É fato que no avanço visível
da modernização social, o horizonte de validade tende a ser restringido à
racionalidade com respeito a fins, porém há que considerar também, em meio à
tendência de se confirmar todas as questões de validade à racionalidade com
respeito a fins
“a compulsão ... induzida pela racionalização das imagens do mundo e dos
mundos da vida, para a progressiva diferenciação de uma razão que assume
uma forma processual ... . [E mais] À assimilação naturalista das pretensões
de validade do poder, à destruição da capacidade crítica, opõe-se o
desenvolvimento de especialistas nas quais uma esfera de validade
articulada proporciona às pretensões de verdade proposicional, justeza
normativa e autenticidade, um sentido próprio, sem dúvida também um
sentido próprio esotérico, e uma vida própria por sua vez ameaçada pela
cisão da práxis comunicativa do quotidiano” 92.
É sob esse prisma que, a Dialética do Esclarecimento não faz justiça à
modernidade cultural, quando a nivela à social, fechando-a sob os limites da
racionalidade instrumental, ou seja, não reconhece os avanços nas suas esferas de
conhecimento, de valor e de arte. Sob esse prisma é que Habermas se interroga
sobre as motivações que subjaziam ao pensamento de Adorno e Horkheimer: por
92 J. HABERMAS. DFM, p. 115, grifos do autor.
56
que eles inflectiram a dialética do iluminismo a ponto de colocar em xeque o
próprio projeto da modernidade?
2.2. Os Limites de uma Crítica Total da Razão
Para contrapor o que Habermas chama de ‘unilateralidade’ da crítica
da Dialética do Esclarecimento, ele recupera a perspectiva da crítica da ideologia
marxiana. Primeiramente, sob a perspectiva de que Adorno e Horkheimer vêem o
iluminismo como uma fracassada tentativa de se libertar do poder do destino.
Iniciando sua argumentação, ele distingue duas formas míticas do pensar. A
primeira, no que diz respeito à constituição da identidade, da emancipação; a
segunda, à descrição desse pensamento. Sobre a primeira, refletiu-se ligeiramente
nos parágrafos anteriores; diz respeito ao comportamento ambíguo do sujeito frente
às potências míticas originárias cujo aspecto preponderante é a luta pela
constituição da identidade do eu, com vista à emancipação das forças primitivas.
Para Adorno e Horkheimer, o iluminismo saiu derrotado nessa luta frente às forças
primitivas do destino. Quanto à segunda, tem que ser levado em consideração que o
processo de desmitologização traz, a reboque, a diferenciação de conceitos
fundamentais. Ou seja, no mito temos, ainda, uma des-diferenciação entre conceitos
e realidade, gerada pela própria força integradora do mito, expressa pela linguagem:
“... a imagem lingüística do mundo ainda está entrosada com a ordem do
mundo [diz Habermas] ... Categorias de validade, como verdadeiro’ e
‘falso’, ‘bom’ e ‘mau’, estão ligados a conceitos empíricos como troca,
causalidade, saúde, substância, fortuna. O pensamento mítico não permite
diferenciação de conceitos fundamentais entre coisas e pessoas, inanimado e
animado, entre objetos que podem ser manipulados e agentes a que
atribuímos ações e manifestações lingüísticas. Só a desmitologização desfaz
57
o sortilégio que a nós nos parece como uma confusão entre natureza e
cultura”93.
É o processo do iluminismo que promove essa diferenciação entre
natureza e cultura94. A imagem temporalizada do mundo moderno pode ser distinta
do próprio mundo. Cada mundo se estabelece como uma entidade singular em
interação com o outro: mundo objetivo, mundo social e mundo interior, cuja
validade pode ser reclamada, na perspectiva de verdade, retitude, veracidade; é o
que Max Weber denominou de racionalização das mundividências. Nesse sentido
Habermas argumenta que:
“só quando as conexões factuais de sentido e também de relações internas e
externas forem decompostas nos seus elementos de origem; só quando a
ciência, a moral e a arte forem em cada momento especializadas numa
exigência de validade, seguirem a sua lógica própria a cada momento e
forem purificadas de toda a escória cosmológica, teológica e cultural – só
então pode instalar-se a suspeita de que a autonomia da validade,
reivindicada por uma teoria, seja ela empírica ou normativa, é aparência,
porque se introduzem furtivamente nos seus poros interesses e exigências de
poder dissimulados”95.
Sob esse aspecto, é que se estabelece o cerne da problemática
levantada por Habermas, da qual ele deduz toda a sua defesa, quanto a
impossibilidade de uma crítica radical, sem o perigo de se cair na contradição
performativa96. A crítica da ideologia só pode instaurar-se, a partir do momento em
93 Ibid., p. 116. 94 Lima VAZ reflete esse processo de diferenciação com uma pergunta emblemática: “Que fins teriam levado o homem a abandonar o seguro porto da Natureza e a aventurar-se no mar incerto da cultura? [e complementa] A pergunta pode parecer tão ociosa quanto se tem por evidente que a invenção da cultura teria se apresentado exatamente ao homem como o único caminho capaz de assegurar seu lugar na Natureza”. “A Cultura e seus Fins”. In: Síntese Nova Fase 57 (1992), p. 149s. 95 J. HABERMAS. DFM, p. 117, grifos do autor. 96 Para a filosofia pragmática-transcendental, o conceito de contradição performativa ou pragmática, inscreve-se na contramão do pensamento pós-metafísico, que defende a não-fundamentação do saber teórico-prático. Sob esse aspecto, para K-O. Apel, uma fundamentação última do conhecimento e da ação não apenas é factível como intranscendível, pois a tarefa própria da filosofia é a da fundamentação última. Manfredo Oliveira assim resume o cerne desse conceito: “A contradição não se dá em nível semântico, isto é, entre duas partes de uma sentença, mas entre o que é afirmado e as condições necessárias de possibilidade dessa
58
que pretende demonstrar que a validade da teoria traz um sutil liame com as origens
da qual se diz liberta, e que esconde uma ‘mistura ilícita de poder e validade’, de
quem deve a sua reputação. E mais, ela tem que mostrar, de que maneira e em que
nível, a conexão de sentido e de realidade é constitutiva e até que ponto elas se
confundem, e esta confusão se dá porque tais exigências de validade são
determinadas por ‘relações de poder’. Assim, a crítica da ideologia, mais do que um
embate entre duas teorias, é um contestar da verdade da teoria suspeita, a partir de
determinados princípios, ‘desocultando a sua falta de veracidade’. Nesse sentido, a
crítica dá continuidade ao processo do iluminismo, pois revela que determinadas
teorias, mesmo sob o manto de um discurso desmitologizado categorialmente,
ainda, permanecem prisioneiras do mito.
Que o iluminismo, mediante esse gênero de crítica, torna-se reflexivo
é ponto pacífico para Habermas. Porém, por que será que Adorno e Horkheimer
inflectiram a crítica a tal ponto, que ela foi tragada pela suspeita de não mais refletir
a verdade, ou seja, por que desautorizar a própria razão, colocando sob suspeita seus
próprios fundamentos? Somente uma explicação é possível: a não realização da tão
sonhada revolução socialista no Ocidente, e a barbárie da Segunda Guerra,
trouxeram à tona a idéia de que a razão havia abandonado a história, deixando atrás
de si o rastro de uma “civilização em auto-desagregação”97. Noutros termos, a
esperança recorrente nos anos trinta de que o potencial da razão presente na cultura
burguesa, sob a pressão do desenvolvimento das forças produtivas, alavancaria a
afirmação, ou seja, entre o conteúdo e o ato de afirmar: o ato implica e pressupõe a verdade, enquanto o conteúdo afirma não haver verdade”. Manfredo OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 282. 97 Para ilustrar tal perspectiva, J. Habermas cita uma passagem da Dialética do Esclarecimento, referente às “Notas” sobre a filosofia e a divisão do trabalho: “Ela (a filosofia) não reconhece nenhuma norma ou objetivo abstratos que, ao contrário dos vigentes, fossem praticáveis. Sua liberdade em face da força de sugestão da ordem existente reside justamente no fato de aceitar os ideais burgueses, sem transigir com eles, quer se trate dos ideais que seus defensores ainda proclamam mesmo desfigurados, quer se trate dos ideais que, apesar de toda manipulação, ainda possam ser reconhecidos como o sentido objetivo das instituições tanto técnicas quanto culturais”. Assim, talhada à medida dos ideais burgueses, a crítica da ideologia se apresenta assim, por um lado, como uma aparência enganosa de uma teoria convincente e, por outro, seu ponto de partida crítico sedimenta-se e está a serviço dos ideais da classe dominante, sob a roupagem do interesse geral. Apud J. HABERMAS. DFM, 118. T. ADORNO e M. HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Trad. Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 5a ed. 1996, p. 227.
59
emancipação, aflora, nos anos quarenta, como uma radical desconfiança na crítica
da ideologia marxista, cuja radicalização se expressa no convite ao “iluminismo a
iluminar-se a si próprio”98. Neste ponto o problema torna-se agudo, pois, mediante a
crítica total da razão, efetuam uma crítica das suas próprias condições; não apenas a
crítica contra a irracionalidade dos ideais burgueses, mas contra o potencial da razão
presente nesses ideais, à guisa do que fizera o iluminismo, em relação ao mito99.
É sob o conceito de razão instrumental que Adorno e Horkheimer
afirmam a usurpação da razão pelo entendimento calculador, à medida que este
restringe a diferença entre validade e poder, e, ainda, subtrai a diferenciação de
conceitos fundamentais que a compreensão moderna do mundo julgava ter
conquistado quando da pretensa superação definitiva do mito. A razão, enquanto
razão instrumental, assimilou-se ao poder, renunciando, desta forma, à sua força
crítica – esta é a última desocultacão de uma crítica da ideologia, aplicada a si
mesma. Nessa linha de raciocínio, reforçando a perspectiva da Dialética do
Esclarecimento, Marcuse dirá que “esta racionalidade formal parece ter se
transformado despercebidamente no curso do desenvolvimento do conceito: na
medida em que se converte em questão de dominação ela se subordina por força de
sua própria racionalidade interna a uma outra, a saber, a razão da dominação”100.
Em busca de uma saída para a crítica total da razão, Habermas defenderá que, aqui,
se instaura o paradoxo101 porque, no momento da descrição, ela tem ainda que fazer
98 Cf. T. ADORNO e M. HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Trad. Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 5a ed., 1996, prefácio. 99 Essa radical inflexão no conceito de razão operada na Dialética do Esclarecimento criticada por Habermas pode também ser analisada, segundo Marcos Nobre, na forma como Adorno e Habermas retomam o conceito de ideologia de Marx. Para Adorno a ideologia “não é mais o véu, mas apenas e tão-somente o ameaçador rosto do mundo”. Ou seja, por não haver mais a legitimação tradicional, a ideologia, no capitalismo, é produzida conjuntamente com a produção material. Habermas aceita o pressuposto marcusiano de que a técnica e a ciência tornaram-se ideologia, porém, há que considerar não apenas o aspecto patológico desse desenvolvimento: é necessário pensar o potencial emancipatório que lhe é inerente, o que só é possível mediante uma reformulação das categorias marxistas de forças produtivas e relações de produção, pelas categorias de trabalho e interação. Cf. Jürgen HABERMAS “Trabalho e Interação”. In. TCI, p. 41-43; sobre o mesmo tema, ver, também, p. 83. 100 H. MARCUSE. “Industrialização e Capitalismo na Obra de Max Weber”. In: Cultura e Sociedade. Trad. W. L. Maar et al. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, p. 124. 101 O paradoxo da crítica da razão é vista de maneira diversa por Horkheimer e Adorno. Segundo Sérgio P. ROUANET, para o primeiro “o paradoxo consiste no impasse de uma crítica da razão subjetiva feita na perspectiva da razão objetiva que o próprio Horkheimer considera extinta, ele consiste, para Adorno, no
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uso da crítica que se anunciou morta. Não obstante, isso não é problema para
Adorno. Na Dialética Negativa, ele estava consciente dessa contradição
performativa e defendia a permanência nela pois, “só o desenvolvimento insistente,
incansável do paradoxo abre perspectiva de ‘memoração da natureza no sujeito’ de
carga quase mágica, em cuja realização está encerrada a verdade mal compreendida
de toda a cultura’”102.
A fidelidade de Adorno ao impulso para uma crítica total da razão,
dada sob a medida da Dialética doEsclarecimento, aproxima-o de Nietzsche103, cuja
crítica à razão mina até mesmo a possibilidade da crítica. Por isso é que Habermas
dirá este trabalho é tributário a Nietzsche, não apenas como uma estratégia de uma
crítica da ideologia autofágica. Esse tributo reflete-se no conteúdo, por exemplo, na
sua “história primitiva da subjetividade”, no qual o processo de “domesticação dos
antigos instintos, deu-se mediante renúncia, cujo desfecho foi a repressão da
natureza interior, tendo como conseqüência a dominação da natureza exterior e se
consolidam na ‘dominação institucionalizada’ do homem sobre o homem. Esse
parentesco em termos de conteúdo entre a Dialética do Esclarecimento e Nietzsche,
fica patente, também, na crítica da razão instrumental, em cujas manifestações
subjazem “imperativos de auto-preservação e dominação”104.
impasse de uma filosofia baseada numa dialética que, segundo essa mesma filosofia, já deixou de existir”. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed., 1998, p. 333-334. 102 J. HABERMAS. DFM, p. 120. 103 Habermas insere Nietzsche na segunda versão reflexiva do iluminismo, como o antípoda de Hegel. Enquanto este elevou a razão à categoria de absoluto, aquele “recalcou a estrutura paradoxal, explicou a assimilação da razão ao poder, consumada na Modernidade como uma teoria do poder que se remitologiza voluntariamente e que, em lugar de pretensão de verdade, retém apenas a pretensão retórica do fragmento estético”. Ibid., p. 120. Para uma análise da relação arte, ciência e moral, Cf. Roberto MACHADO. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1985. 104 “Uma teoria do conhecimento pragmática e uma doutrina afeccional da moral desmascaram a razão teórica e a razão prática enquanto ficções puras onde as pretensões de poder vão buscar um álibi eficaz ...”. J. HABERMAS. DFM, p. 122. Segundo Sérgio P. ROUANET, a crítica de Adorno à razão, não se insere na versão do irracionalismo Nietzschiano, de uma genealogia de poder afirmativa vs. uma genealogia de poder negativa. “Adorno recusou todas essas saídas (Nietzsche, Heidegger e Derrida) e assumiu o paradoxo, tematizando-o e incorporando-o no movimento interno da dialética negativa. Só a razão pode criticar a razão, e não o poder, ou a arte ou o êxtase dionisíaco: nisso, ele se distancia de todos os irracionalismos”. Ou seja, Adorno não foge à dialética do Iluminismo, uma vez que este é, ao mesmo tempo, dominação da razão calculista e a única possibilidade da quebra da lógica do mundo reificado. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed., 1998, p. 334-335.
61
Uma crítica que destrói seus próprios fundamentos, para Habermas,
não oferece uma saída por negar os pressupostos de sua própria validade, mais
ainda, ela libera as forças de emancipação para o lado do anti-iluminismo. Mesmo
assim, Adorno insiste na negação determinada. Dado que “a aporia da razão
criticando a razão é consciente [nas palavras de Sérgio Rouanet] e é nela que
Adorno vê a dignidade e o desespero do pensamento negativo, que não pode nem
abdicar da razão, nem abdicar diante dela”105, ele não se dá por escusado, frente ao
apelo da contradição performativa. Permanecer nesse lugar, adjudica-se a posição
de que não há saída. Ou seja, Adorno e Horkheimer não creditam uma saída
emancipatória para a Modernidade cultural a partir do sujeito talhado à medida da
razão instrumental, ao mesmo tempo em que não vêem lampejos de uma outro
modelo de razão, nas formas de vida existente. O certo é que a teoria que dava
sustentação aos pressupostos teóricos de Adorno e Horkheimer, perdera a
sustentabilidade: tanto no que diz respeito ao caráter emancipador das forças
produtivas, quanto na formação de uma consciência revolucionária unitária.
É nesse sentido que, para Habermas, de Hegel a Adorno e Horkheimer
as tentativas de saída apontadas debateram-se num beco sem saída; ou bem se caiu
na defesa de uma razão absoluta, ou bem a razão se denegou da sua própria
condição de crítica.
A questão que se coloca é a seguinte: por que os caminhos apontados
para a certificação da Modernidade apresentaram-se sempre como um beco sem
saída? Qual saída se propõe à razão, de forma que ela não se apresente como
absoluta ou prisioneira de interesses com respeito a fins, ou, ainda, de uma razão
que se autodenega a possibilidade da crítica? Para Habermas, há que sair do
paradigma do conhecimento dos objetos para o paradigma da compreensão mútua
entre sujeitos capazes de fala e de ação. Este caminho não conduz às aporias da
filosofia do sujeito.
105 Sérgio P. ROUANET. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed., 1998, p. 335.
62
Antes de passarmos para a saída apontada por Habermas à questão da
certificação da modernidade, levantamos algumas questões no sentido de saber se a
mudança de paradigma proposta por ele significa o rompimento com seus
predecessores na Escola de Frankfurt. Será que, na intenção de preservar os
elementos emancipadores da racionalização ocidental, ele, estaria denegando
qualquer liame com pensamento de seu mestre, Adorno, e com a tradição crítica?
Como o representante mais “brilhante” da teoria crítica, nas palavras de Stephen
Bronner106, até que ponto podemos dizer que há continuidade ou apenas
descontinuidade entre o pensamento de Habermas e de seus predecessores na Escola
de Frankfurt?
2.3. Adorno, Habermas e o Esclarecimento: Variações Sobre um Mesmo Tema
A firmeza da linguagem utilizada e a força da argumentação de O
Discurso Filosófico da Modernidade, em resposta às críticas do que Habermas
denominou de “contra-iluminismo”, coloca-o em rota de colisão com o pensamento
de seu mestre, Adorno. No entanto, nas palavras de Marcos Nobre, se a Dialética do
Esclarecimento paga tributo a Nietzsche, a razão comunicativa, no seu correlato
mundo da vida, paga “tributo ainda à lógica da mimese”107. O fio que liga
Habermas e Adorno pode ser encontrado no artigo de Friedrich Pollock, State
Capitalism: Its Possibilities and Limitations108. Aqui é possível divisar elementos
de continuidade e de descontinuidade nos pensamentos de Adorno e de
106 S. BRONNER. Da Teoria Crítica e seus Teóricos. Trad. T. R. Bueno e C. Meneguelo. São Paulo: Papirus, 1997, p. 19. 107 Marcos NOBRE. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo:Iluminuras, 1998, p. 185. 108 Friedrich POLLOCK. “State Capitalism: its Possibilities and Limitations” In: The Essential Frankfurt School Reader. A. ARATO e E. GEBHARDT (editores). New York: Continuum, 1998, p. 71-94.
63
Habermas109, ao mesmo tempo recuperar os traços comuns dos dois pensamentos e
colocá-las sob o mesmo eixo e, a partir deste, estabelecer os elementos de
continuidade e descontinuidade.
Nesse artigo, Pollock utiliza-se do conceito de “capitalismo de estado”
para designar a nova fase que se sucede ao “capitalismo privado”, cuja tônica é a de
que ao mercado foi subtraída a função reguladora do equilíbrio entre produção e
distribuição, à medida que o Estado foi assumindo esses controles, outrora próprios
ao mercado. “O desenvolvimento da Europa desde o fim da primeira guerra é
interpretado, social e economicamente, como um processo transicional,
transformando capitalismo privado em capitalismo de estado”110, diz Pollock.
Doravante, problemas econômicos, na velha acepção do termo, desaparecem, e, os
ajustes que antes eram perseguidos por meio das leis naturais de mercado, agora
passam a ser problemas administrativos.
Tanto Adorno quanto Habermas partem dessa fonte comum, e dela
retiram conseqüências diversas. Se, para o primeiro, a alternativa marxista
“socialismo ou barbárie” não se realizou; se o “socialismo real” não é socialismo e a
barbárie não se instalou por inteiro, que espectro é esse que instalou no pós-guerra?
Para Marcos Nobre, a possibilidade do modelo do capitalismo democrático não
estava clara para Adorno e Horkheimer, não obstante “a nova barbárie”, o mundo
totalmente administrado, já se vislumbrava no horizonte, como se deixa entrever
109 Para Marie FLEMING, mesmo que em O Discurso Filosófico da Modernidade, Habermas conteste “as teses provocativas, desenvolvidas por Horkheimer e Adorno no período que se seguiu à manifestação das atrocidades nazistas [...], por serem pouco convincentes como indicador de possibilidades futuras de emancipação, uma vez que se baseavam num entendimento restritivo da razão”, ele os mantém ligados ao impulso emancipatório do esclarecimento. Emancipation and Illusion. Pensilvânia: The Pennsylvania State University Press, 1997, p. 15 e 37. (tradução nossa). Essa perspectiva corrobora com a de Marcos NOBRE para quem há uma continuidade entre o pensamento de Habermas e de Adorno. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998. Principalmente o capítulo I e o Fecho. 110 “The word state capitalism (so runs the argument) is possibly misleading insofar as it could be understood to denote a society wherein the state is the sole owner of all capital, and this is not necessary meant by those who use it. Nevertheless, it indicates four items better than do all other suggested terms: that state capitalism is the successor of private capitalism, that the state assumes important functions of the private capitalist, that profit interests still play a significant role, and that it is not socialism …”. Friedrich POLLOCK. “State Capitalism: its Possibilities and Limitations” In: The Essential Frankfurt School Reader. A. ARATO e E. GEBHARDT (editores). New York: Continuum, 1998, p . 71-2.
64
nos escritos sobre a “indústria cultural”. Na nota sobre a nova edição alemã de 1969
da Dialética do Esclarecimento eles afirmam que a ameaça do pleno controle não
está descartada: o avanço “em direção à integração total está suspenso, mas não
interrompido”111. Isso significa que, para Adorno, principalmente, a nova ordem
estabelecida não antecipa ou cria novas possibilidades de emancipação: a dor, o
sofrimento e a falta de sentido diante da sociedade administrada, atuam como
antídoto frente a toda tentativa de justificação da realidade. O “Welfare State” não
revela, e sim perturba o diagnóstico do capitalismo tardio, que tomou corpo na
década de 1940.
Se essa é a análise de Adorno sobre o capitalismo avançado, a
perspectiva de Habermas é diversa. Tal diferença é apresentada por Marcos Nobre
numa recorrência a um texto de Dubiel, que estabelece, com clareza, uma distinção
de perspectiva entre esses filósofos. Sob esse prisma, os fundadores da teoria crítica,
principalmente, Pollock, Horkheimer e Adorno, interpretaram – sob o olhar
retrospectivo – “a ordem nacional-socialista como produto fatalmente exitoso do
domínio do capitalismo sobre as crises”112. Noutras palavras, Adorno concentrou
suas preocupações nas características autoritárias e manipuladoras do sistema
capitalista113. Em Habermas, por outro lado, temos um olhar prospectivo para o
111 T. ADORNO e M. HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 9. Para Marcos NOBRE, Habermas não faz justiça a Adorno, à medida que não considera suficientemente o fato de que o diagnóstico 1947 não permaneceu intocável nos seus escritos posteriores: “... algumas das reformulações incisivas que dele se seguem não serão repetidas por Adorno”. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 30. 112 Ibid., p. 32. 113 Cf. A. ARATO e E. GEBHARDT. The Essential Frankfurt School Reader. New York: Continuum, 1998, p. 21 - 22. Na introdução, A. Arato afirma que, ao contrário de Adorno, Horkheimer, Kirchheimer e Marcuse, Newmann e Pollock lutam contra a histórica alternativa fascista, à medida que insistem na “... juridical-legal protection of civil rights and the survival of some residues of popular political participation under late capitalism postulated a New Deal type of system as the achievement of the democratic forces …”. E mais, enquanto a teoria de Adorno, “postulating the conquest of the subjective factor”, conduz à teoria da indústria cultural; “the theory (de Pollock) focusing on the role of democratic mass movements led to Pollock’s theory of ‘State Capitalism’ and eventually to the Offe-Habermas theory of political crisis”. Nessa mesma linha de raciocínio Helmut DUBIEL dirá que é possível fazer duas leituras da nova configuração descrita por Pollock: uma adorniana, da descrença na domesticação da dinâmica do capitalismo, ou seja, a democracia como uma ‘ideologia da ilusão’; outra, habermasiana, que aponta os elementos de emancipação presentes na ação política. O que não deve ser feito, segundo Dubiel, é reduzir essa oposição num esquema simples de ‘pessimismo’ e ‘otimismo’. “Naturally such simplifications are inadmissible … The central Habermasian category of system integration subsumes many of the implications of critical theory for a theory of domination … Down to the basic structure of their categories, both reflect the differences of their context of origin. One is a theory of late totalitarian capitalism, the other a theory of the Welfare state in a postfascist
65
capitalismo do pós-guerra: é um capitalismo que se desenvolve em meio a uma
sociedade dilacerada por conflitos e tensões, e que, diferentemente da análise do
marxismo tradicional, essas não serão superadas numa forma de sociedade superior.
Sobretudo porque, no capitalismo avançado, a ciência, em perfeita sintonia com a
tecnologia, assumem um papel proeminente, pois se tornam, elas mesmas, forças
produtivas. Além do mais, do ponto de vista político, por estarem subordinadas à
finalidade de promover um estável e amplo crescimento econômico, a tomada de
decisão sobre a gestão da economia passa a ser de natureza técnica.
O que caracteriza do ponto de vista ideológico o capitalismo avançado
é a transformação da política numa espécie de tecnologia. Na esteira de Marcuse,
ciência e técnica tornaram-se, elas mesmas, ideologia114. Assim, enquanto outros
autores proclamam a morte da ideologia e a defesa de uma gestão de poder
pragmático e tecnocrático, Habermas revela o próprio cerne da ideologia desse novo
tecido social. Se por um lado, no início do capitalismo os conflitos de classes eram
eles mesmos propulsores da mudança, segundo Marx, as tensões do capitalismo
tardio não se dão mais na esfera da relação forças produtivas vs. relações de
produção, ao mesmo tempo em que os operários já não representam a força
propulsora da mudança, por outro lado, a crise do capitalismo democrático migrou
para a esfera da legitimação, e é gerida tecnocraticamente.
Em conseqüência, dado que a vida econômica é planejada e
administrada pelo Estado, em consonância com as grandes empresas, as crises
econômicas tendem a converter-se em crises políticas. Aqui reside o cerne da teoria
na crise do capitalismo tardio: “a teoria do capitalismo é a teoria da crise. Na
medida em que se pode prognosticar – esta crise começou”115. Portanto, os
mass democracy”. “Domination or Emancipation? The Debate Over the Heritage of Critical Theory”. In Axel Honneth …, et al. (ed). Cultural-political Intervention in the Unfinished Project of Enlightenment. Massachusetts: MIT Press, 2a ed, 1997, p. 4-5. 114 H. MARCUSE. “Industrialização e Capitalismo na Obra de Max Weber”. In: Cultura e Sociedade. Trad. W. L. Maar, et al. São Paulo:Paz e Terra, 1998, p. 132s. J. HABERMAS. TCI, p. 45s. 115 Marcos NOBRE. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 32.
66
problemas que gravitam em torno da “crise de legitimação”116, são mais
ameaçadores ao sistema que mesmo os econômicos, próprios ao desenvolvimento
do capitalismo, pois, o caráter tecnocrático – pragmático – da gestão moderna não é
suscetível de gerar fidelidade à ordem política, e que, portanto, a população não se
sente comprometida ante um regime político que não é capaz de cumprir sua tarefa
específica, que é a de garantir a continuidade do crescimento econômico. Ou como
diz Pollock: “O genuíno problema de uma sociedade planejada não jaz na esfera
econômica, mas na esfera política, nos princípios a serem aplicados nas decisões e
sobre o que deve ter preferência ...”117. É sob esse aspecto que o sistema político se
depara com uma “crise de legitimação”, em virtude de seu caráter estritamente
tecnocrático. Ou como diz Anthony Giddens, comentando Habermas: “Do mesmo
modo que a distinção de classes gerou a instabilidade econômica e deu origem ao
movimento operário do séc. XIX, essa contradição emergente tende a gerar novos
movimentos sociais que procuram injetar de novo na vida política os valores que se
perderam e que têm a ver, por exemplo, com as relações entre seres humanos e o
ambiente e com as relações dos indivíduos entre si”118.
Sob esse ponto de vista significa dizer que, enquanto encontramos em
Habermas uma reformulação do quadro categorial marxista, em Adorno deparamos
com a pergunta sobre a não-efetivação da emancipação, quando todas as condições
para sua realização estavam dadas. Noutros termos, enquanto o primeiro reformula
116 Na época de Marx, a luta de classes era uma fonte de tensão e de potencial de transformação social. No capitalismo tardio, com o capital organizado sob o signo “estado de bem-estar social” o conflito entre forças produtivas e relações de produção foi arrefecido. Para Habermas, no “capitalismo tardio”, como a vida econômica é administrada pelo governo em conjunto com as grandes empresas, as crises econômicas tendem a converter-se em crises políticas. E dado que o caráter tecnocrático da política moderna não desperta fidelidade contínua frente à ordem política, em virtude do não comprometimento com as grandes massas da população, as ameaças ao sistema daí decorrentes são maiores que as crises econômicas. Nesse sentido, segundo Anthony GIDDENS, “... em virtude da sua natureza tecnocrática confinada, a ordem política carece da autoridade legítima de que necessita para governar”. Isso é o que Habermas denomina de “crise de legitimação”. “Jürgen Habermas”. In K. Skinner (org.). As Ciências Humanas e os seus Grandes Pensadores. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 173. 117 Friedrich Pollock. “State Capitalism: its Possibilities and Limitations” In A. Andrew e E. Gebhardt, (ed.) The Essential Frankfurt School Reader. New York: Continuum, 1998, p. 75. Ele ainda acrescenta: “Obviously, such decisions cannot be completely arbitrary but are to a wide degree dependent upon the available resources”. 118 A. GIDDENS. “Jürgen Habermas”. In K. Skinner (org.). As Ciências Humanas e os seus Grandes Pensadores. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 173.
67
o quadro categorial de Marx para poder compreender a forma democrática do
capitalismo, o segundo as interroga do “ponto de vista da sua caducidade
necessária”119. De fato, o ponto de partida assumido desde Técnica e Ciência como
Ideologia é o da mudança dos pressupostos fundamentais do “materialismo
histórico”, cuja reformulação é elaborada nesses termos:
“A conexão de forças produtivas e de relação de produção deveria ser
substituída pela relação mais abstrata de trabalho e interação. As relações de
produção designam um nível em que o marco institucional esteve ancorado,
mas só durante a fase do desenvolvimento do capitalismo – não antes, nem
depois (...). Tenho a suspeita de que o sistema de referência desenvolvido
em termos de relação análoga, mas mais geral, de marco institucional
(interação) e subsistemas da ação racional dirigida a fins (‘trabalho’ no
sentido amplo da ação racional estratégica) se revela mais adequada para
reconstruir o limiar sociocultural da história da espécie”120.
Assim, a questão não é reformular, do ponto de vista retrospectivo de
Adorno, os pressupostos teóricos marxistas, mas interrogá-los sobre o estado de
não-emancipação; o que não é o mesmo que afirmar a rendição ao estado de
reificação, pois a pergunta: “como é possível que a emancipação não tenha se dado
e continua a não se dar?” quer dizer: “o sentido da teoria enfática não é
prognóstico”121. Mais ainda, permanecer na negação determinada significa que é
ainda competência da filosofia “o esforço de ir além do conceito através do
conceito”122. Ou seja, Adorno não capitula frente ao irracionalismo, mas faz uso da
razão para criticar a razão. Assim se compreende porque a filosofia continua a
existir: porque foi perdido o momento histórico de sua realização123, e numa
119 Marcos NOBRE. A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 39. 120 J. HABERMAS. TCI, p. 83. 121 T. W. Adorno, Apud. Marcos NOBRE A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 41. 122 Ibid., p. 41. Comenta Marcos Nobre: “A filosofia de Adorno, portanto, não é uma tentativa de superar as antecessoras, mas tem por tema exatamente o fracasso de todas as tentativas pós-kantianas de dar a última palavra em termos teóricos e práticos e enfim conseguir conceptualizar o que antes não se conseguiu”, p. 180. 123 Cf. S. BRONNER Da Teoria Crítica e seus Teóricos. Trad. T. R. Bueno e C. Meneguelo. Campinas: Papirus, 1997, p. 226.
68
humanidade não-reconciliada, não se pode pensar como se a identidade já estivesse
sido abolida. Ou como diz, Olgária Matos, “A Razão Crítica, depois de se defrontar
com o sofrimento, não renuncia à esperança – e seu maior serviço à Razão é a
autocrítica ...”124. Por outro lado, sob o olhar prospectivo de Habermas, não
devemos eliminar as possibilidades de emancipação, ainda presentes na
modernidade racionalizada, especificamente, no interior das forças produtivas, pois
se a ciência e a técnica se transformaram em ideologia – eis o aspecto patológico
(não-emancipatório) –, há que preservar o potencial de emancipação dessas forças
ainda não realizado125.
Isso posto, pode-se descrever a continuidade e a descontinuidade entre
Adorno e Habermas nos seguintes termos: com o primeiro temos um pensar que
mergulha na negação determinada e nela permanece, ou seja, ele vê nas
inevitabilidades aporéticas da racionalização o lugar e o objeto da “crítica
imanente”126: trabalha nos limites da filosofia da consciência. Para o segundo, como
a filosofia da práxis é vista como uma variante da filosofia do sujeito127, as aporias,
sobre as quais a teoria crítica se debate e não consegue desvencilhar-se, devem ser
revistas sob a luz do paradigma da compreensão mútua, de forma que os problemas
tradicionais enfrentados pela teoria da sociedade sejam ampliados. Eis a
124 Olgária C. F. MATOS. Os Arcanos do Inteiramente Outro. São Paulo: Brasiliense, 2a ed., 1995, p. 325. Nesse sentido, Sérgio P. ROUANET irá dizer que “O telos da dialética negativa é romper pelo pensamento a supremacia do pensamento sobre seu Outro ... A faculdade que visa aquilo sobre o qual não tem nenhum poder de algum modo já participa da natureza do que é visado: pois seu objeto, o não-idêntico, é a esfera da impotência absoluta. Nesse sentido podemos dizer que o pensamento é a mímesis do não idêntico, a imitação daquilo que é tão importante quanto ele próprio”. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras. 5a ed., 1998, p.335. 125 “A melhor vantagem de um potencial ainda não realizado leva à melhoria de um aparelho econômico-industrial, mas hoje já não conduz eo ipso a uma modificação do marco institucional como conseqüências emancipatórias. Pois, a questão não é se esgotamos um potencial disponível ou ainda a desenvolver, mas se escolhemos aquele que podemos querer em vista da paz e da satisfação da existência. Mas importa logo acrescentar que unicamente podemos pôr esta questão e não dar-lhe uma resposta antecipadora ...”. J. HABERMAS. TCI, p. 89. 126 Para Adorno, a “‘crítica imanente’ não significa comparação do conceito com o conceituado em vista da sua unidade (atual ou potencial), mas não-identidade de conceito e conceituado em vista da ilusão necessária de sua identidade”. Marcos NOBRE A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 175. 127 J. HABERMAS. Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade. Trad. Flávio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, vol. 1, 1997, p. 19. Habermas dirá que por não ter refletido sobre o nexo entre natureza em si, natureza para si e sociedade a filosofia da práxis “tornou evidente a recaída no pensamento pré-crítico”. Sobre o mesmo tema, Cf. J. HABERMAS, PPM, p. 49, principalmente a nota 13.
69
descontinuidade. Não obstante, diz Marcos Nobre, “revelar a ambigüidade do
conceito marxista de trabalho, na confusão de ação racional com respeito a fins e
interação simbolicamente mediada, não se faz por oposição à idéia de crítica, senão
porque esse conceito de trabalho não é suficientemente crítico”128. Eis, pois, a
continuidade com a teoria crítica. E mais, se é verdade que a mudança de
paradigma, está em “libertar o ‘cerne racional da mimese’, assim como Marx
revelou o cerne racional da dialética hegeliana”, Habermas “encontrou na mimese
de Adorno (e de Horkheimer) os germes do novo paradigma comunicativo ...
pagando o tributo ainda à lógica da mimese”129. Tal tributo se tematiza mediante a
distinção entre sistema e mundo da vida, cujas relações sim-páticas (num falar
compreensivo configurador) dos homens entre si, e destes com as estruturas
atematizadas do mundo da vida perseguem mais a abertura de novos horizontes de
significado e garantidores da comunicação livre de distorção, e menos relações anti-
páticas (um falar apreensivo desfigurador), cujos interesses estão determinados
pelos meios do dinheiro e do poder.
Apresentados esses elementos de continuidade e descontinuidade entre
Adorno e Habermas, cujo objetivo principal foi o de procurar delinear o fio
condutor entre o pensamento de Habermas e o da teoria crítica, coloca-se a seguinte
questão: no discurso normativo da modernidade há espaço para o paradigma da
intersubjetividade? Se a resposta é afirmativa, indaga-se: esse paradigma é capaz de
preencher as lacunas, ou melhor abre perspectiva para se sair das aporias da
filosofia do sujeito, e resgata o conteúdo normativo desse novo ethos? Por fim,
considerando que Habermas faz assunção dos conteúdos normativos dos novos
tempos, portanto, retoma a Kant, a Hegel e a Marx, vale perguntar, se com o
conceito de razão comunicativa ele recupera e assegura os ideais de autonomia e de
emancipação, presentes nesses conteúdos?
128 Marcos NOBRE A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 183. 129 Ibid., p. 183 e 184.
70
O fato é que a crítica radical da razão, segundo Habermas, é uma fuga
da própria dialética do iluminismo, por negar o lugar que ela ocupa no momento da
crítica. Esse abandono se reflete, sobremaneira, à medida que negam seu vínculo
com as conquistas da modernidade cultural – mesmo fazendo uso delas – ao mesmo
tempo em que resistem ao retorno às formas primitivas do pensamento religioso.
Além do mais, há um outro elemento a ser considerado, é que a crítica, mesmo
conduzindo-se por intuições que detectam na modernidade contextos de vida
reificados e explorados, não se dá conta de que a denúncia inspira-se numa
“sensibilidade peculiar [...] registrada à imagem de uma intersubjetividade intacta
que o jovem Hegel começou por imaginar como totalidade ética”. Ou seja, a crítica
total da razão ao atingir o alvo das contradições impingidas pela modernização
social, abarca os conteúdos estéticos da experiência, mas é incapaz de cobrar a
mudança moral. Isso se dá porque, ao rejeitarem o princípio normativo da
subjetividade – e suas conseqüências “mutiladoras de uma auto-referência
objetivante” – rejeitam também aquelas dimensões não realizadas da subjetividade:
“a perspectiva de uma prática auto-consciente em que a auto-determinação
solidária de todos pudesse associar à auto-realização autêntica de cada um
individualmente”130. É como se seguissem o aforismo: ‘jogam fora a água turva, e,
com ela, também a criança’.
Na esteira desse raciocínio, um outro equívoco é a rejeição da
modernização social. A crítica radical da razão, por não distinguir os critérios
emancipatórios e conciliadores dessa modernização, já apontada por Hegel, Marx,
Weber e Lukács, encobre, ao mesmo tempo, o seu caráter explorador.
Conseqüentemente, encobre o caráter ambivalente do processo de racionalização,
uma vez que, à medida que potencia a paisagem de um mundo administrado, solapa
as tênues manifestações das possibilidades de emancipação nelas presentes.
Por conseguinte, somente pode-se realizar uma crítica da razão, se o
seu fundamento, para não ser arbitrário, estiver legitimado mediante o potencial da
130 J. HABERMAS. DFM, p. 310.
71
razão inerente à práxis cotidiana. Sob esse aspecto, o conceito de razão
comunicativa “introduzido inicialmente de modo provisório, remetendo para além
da razão centrada no sujeito, tem de conduzir para fora dos paradoxos e dos
nivelamentos de uma crítica auto-referencial da razão...”131. Ao mesmo tempo ela
deve se colocar em confronto com uma teoria concorrente que relega todo e
qualquer conceito de razão, como se este fosse apenas uma questão exclusiva da
tradição européia, que ficou prisioneira do pensamento centrado no sujeito. Uma
tentativa de “reabilitação da razão” torna-se um empreendimento de risco, pois tem
que evitar cair nas malhas da razão centrada no sujeito, quer sob o signo da razão
instrumental – cujo toque transforma tudo em objeto, inclusive a si mesma – quer
como uma razão inclusiva, que sorve tudo para o seu seio e em seguida erige-se
acima da unidade e da diferença. E, ainda, nas malhas do contextualismo radical,
que coloca tudo no terreno contingente do relativismo. Metaforicamente é o que
Habermas fala em ter que navegar entre Cila – que reclama para si absolutamente
tudo que lhe cai entre os dentes – e Caríbdis132 – que traga nas suas vagas aqueles
que ousam atravessá-las. É sob esse prisma que o paradigma da consciência
exauriu-se. Não consegue navegar sem cair entre os dentes de Cilas ou no abismo
de Caríbdis, pois, ou bem se hipertrofia a razão, ou se minam os seus fundamentos.
131 Ibid., p. 313. 132 J. HABERMAS. DFM, p. 61. Cf. T. ADORNO e M. HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 63.
72
CAPÍTULO III
RAZÃO COMUNICATIVA E MODERNIDADE
3.1. O Problema da Razão no Pensamento Pós-metafísico
Como procuramos apresentar ao longo dos capítulos precedentes, uma
das preocupações centrais do pensamento de Habermas é a defesa de que a
modernidade é um “projeto inacabado”. Isso significa que os potenciais cognitivos
da razão, que foram liberados no processo de racionalização, não foram esgotados
ou simplesmente absorvidos pelo avanço da modernização social. São potenciais
que se encontram presentes no “mundo da vida” e podem ser resgatados com vistas
à transformação racional das condições da existência. É sob o prisma do resgate
desses potenciais cognitivos, que se pode compreender, por um lado, a necessidade
da releitura da filosofia plasmou o ethos Iluminista – Kant, Hegel e Marx – para se
restabelecer a relação entre modernidade e racionalidade e, por outro, a partir dessa
relação, manter o exercício da crítica frente à tentativa de se negar os ideais
emancipadores da razão, como procuramos apresentar no confronto Habermas vs.
Adorno e Horkheimer.
73
A perspectiva do discurso da crítica radical à razão é algo que se
apresenta não apenas sob o espectro da Dialética do Esclarecimento. A própria
tarefa da filosofia é colocada em xeque, sobretudo, por aqueles que dispensam o
recurso de um conceito unificador de razão para fundamentar o discurso sobre a
realidade, e não necessitam nem encontram na razão um ponto de apoio para as
novas configurações culturais. Mas não só, desde Marx, canta-se, até mesmo, o
adeus à própria filosofia133. Isso significa que se a filosofia simplesmente abandona
a pergunta pela razão, o preço que ela deve pagar por esta modéstia, nas palavras de
Habermas, “é o abandono da pretensão de razão com que o pensamento filosófico
veio ele próprio ao mundo”134.
É essa preocupação, com a tarefa da filosofia, no pensamento pós-
metafísico, que faz com que Habermas, por um lado, defina, já na introdução da
Teoria da Ação Comunicativa, que “o tema fundamental da filosofia é a razão”135.
Assim, ele resgata o cerne do problema sobre o qual a filosofia se colocou desde as
suas origens: o de explicar o mundo na sua totalidade. Nesse sentido, o esforço da
filosofia foi o de procurar explicar o mundo, a unidade na diversidade dos
fenômenos a partir de princípios descobertos na própria razão. Por outro lado, ele
percebe que, com o avanço das ciências particulares, esse pensamento da unidade e
da precedência da teoria frente à prática136 perdeu destaque no contexto
contemporâneo, pós-metafísico: “A filosofia não dispõe mais de critérios de
validade próprios e diferentes, capazes de ficar incólumes à idéia da precedência da
prática frente à teoria, depois que as culturas de experts passaram a prescindir de
133 J. HABERMAS. “Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete”. In: Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 26-27. Habermas fala de um adeus à filosofia que se realiza sob três formas, que ele denomina de terapêutica: Wittgenstein (a filosofia é uma doença que deve buscar sua cura através da linguagem); heróica: Heidegger e Bataille (“... dar lugar a um outro meio que possibilite o retrocesso não-discursivo à esfera imemorial da soberania ou do ser”); salvífica (recolher-se à defesa de antigas verdades). 134 Ibid., p. 19. Adiante ele dirá “... gostaria finalmente de defender a tese de que a filosofia, mesmo quando se retrai dos papéis problemáticos do indicador de lugar e do juiz, pode – e deve – conservar sua pretensão de razão nas funções modestas de um guardador de lugar e de um intérprete”, p. 20. 135 J. HABERMAS. TCA. vol 1. p. 1. 136 J. HABERMAS. “Conhecimento e interesse”. In: TCI.
74
uma justificação, assumindo em si o poder de definição sobre os respectivos
critérios de validade”137.
Em meio ao embate ante “prós” e “contra” as conquistas da razão na
Modernidade, encontramos um pensamento que não se rende à perspectiva da
‘morte’ da razão, que desde Kant, “se dividiu em seus elementos e cuja unidade de
agora em diante só tem caráter formal”138. A esperança de Habermas é obter um
conceito de razão que expresse a relação de unidade139 que foi cindida com o
processo de racionalização. Uma unidade que se persegue, não como uma
imposição externa a esse processo, e sim gestada, no seu interior, como ele mesmo
afirma, uma unidade somente perceptível na multiplicidade de suas vozes140. Daí
que a necessidade de se pensar a filosofia sob um outro paradigma é algo inerente a
esse mesmo processo de racionalização, porque ele dispensa, cada vez mais,
qualquer tipo de fundamentação filosófica última141 para as suas formações
culturais. Pois, uma vez que o processo de racionalização ocidental possibilitou que
cada área de conhecimento – Ciência, Direito e Arte – conquistasse sua autonomia,
concomitantemente, ele liberou-se da tutela dos conteúdos normativos.
É sob esse clima de renúncia às conquistas do processo de
racionalização que encontramos, no pensamento de Habermas, uma insistente
137 J. HABERMAS. PPM, p. 59. 138 J. HABERMAS. “Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete”. In: Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.1989, p. 18. 139 “‘Coming to an understanding’ refers to communication aimed at achieving a valid agreement. It is only for this reason that we may hope to obtain a concept of rationality by clarifying the formal properties of action oriented to reaching understanding – a concept expressing the interconnection of those moments of reason that became separated in the modern period, no matter whether we look for these moments in cultural value spheres, in differentiated forms of argumentation, or in the communicative practice of everyday life, however distorted that may be”. TCA, vol. 1, p. 392. 140 J. HABERMAS. PPM, p. 153. Cf. J. HABERMAS. “Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete”. In: Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 33. “... os aspectos da razão que se diferenciaram nessas contracorrentes queriam remeter a uma unidade que, no entanto, só pode ser reconquistada aquém das culturas dos especialistas, por conseguinte no cotidiano, e não além, nos fundamentos e profundezas da filosofia da razão”. 141 Cf. TCA, vol1, p. 2. “All attempts at discovering ultimate foundation, in which the intentions of First Philosophy live on, have broken down”. Max WEBER, assim define o abandono da perspectiva de justificação, na Modernidade: “Quando a plenitude vocacional não mais pode ser relacionada diretamente aos mais elevados valores culturais [...], o indivíduo renuncia a toda tentativa de justificá-la”. Max Weber, apud, L. AVRITZER. A Moralidade da Democracia. São Paulo: Ed Perspectiva, 1996, p. 66.
75
defesa de um retorno às origens do pensamento que tomou corpo no interior do
ethos Iluminista. Pois, segundo ele, somente a partir de uma análise reconstrutiva da
racionalidade é que se pode perguntar sobre a atualidade ou palidez da razão; da sua
capacidade de contribuir para compreensão dos desafios da crise da sociedade
moderna ou da sua despedida em direção ao que foi denominado de “pós-
modernidade”: uma sociedade que dispensou a preocupação pela pergunta sobre os
fins.
No Pensamento Pós-metafísico, Habermas retoma, mais uma vez142, a
questão da crise da filosofia no pensamento pós-metafísico, e procura ratificar sua
resposta afirmativa em favor da continuidade da razão no projeto da modernidade.
Só que agora tomando uma distância ainda mais ampla, indo aquém de Kant e
Hegel, para estabelecer um diálogo, como ele mesmo afirma na introdução, “no
âmbito da controvérsia com as variantes contextualistas de uma crítica à razão que
predomina atualmente”143. Nessa retomada da defesa desse projeto é reafirmada a
necessidade da mudança de paradigma da racionalidade, para responder aos
desafios que se fazem presentes à razão: quer seja, ao hipertrofiá-la, à guisa dos
“velhos conservadores”, quer seja, na perspectiva contextualista, que nega qualquer
elemento de validade universal à razão, ou, ainda, sob a ótica da primeira geração
da Escola de Frankfurt, que, sem negar a universalidade da razão, a reduz à
dimensão instrumental.
O ponto de partida estabelecido em Pensamento Pós-metafísico para a
análise do problema da razão no pensamento pós-metafísico, pode ser encontrado
na seguinte questão:
“Até que ponto a filosofia do século XX é moderna? ... E mesmo que a
filosofia – um empreendimento profundamente voltado à antigüidade e ao
142 Com pequenas variações no tema, encontramos reconstruções do pensamento ocidental elaboradas por Habermas em defesa do projeto da Modernidade, principalmente, em Teoría y Praxis. Trad. Salvador M. Torres e Carlos M. Espí. Madrid: Tecnos, 2a. ed., 1990. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Trad. Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.1989. TCA, vol. 1 e vol. 2. 143 J. HABERMAS. PPM, p. 7.
76
seu renascimento – tivesse aberto realmente suas portas ao espírito
inconstante da Modernidade, voltado à inovação, ao experimento e à
aceleração, poderíamos colocar uma outra questão, capaz de nos levar mais
além: será que também ela é vítima do envelhecimento da
Modernidade...?144
Esse é o horizonte sobre o qual é analisado o problema da crise da
filosofia na atualidade, a saber: a ruptura com a razão substancial, que se dividiu em
esferas axiológicas autônomas e o desafio de a filosofia romper a cápsula que
protege cada uma dessas esferas, sem negar a racionalidade autônoma de cada uma
delas, e ao mesmo tempo restabelecer o diálogo entre a prática comunicativa
cotidiana e uma modernização cultural “narcisista”, que se satisfaz em seus
domínios autônomos. Essa cisão pode ser interpretada, como sendo a não
necessidade de um medium de unidade para o pensamento filosófico, por um lado, e
como a rendição da razão, frente a não realização do ideal emancipatório
Iluminista145, por outro. Sob esse aspecto, o problema enfrentado pela teoria da
modernidade de Habermas pode ser colocado a partir da seguinte questão: como
captar a unidade da razão sem se render à tentação de: 1) dar ouvidos aos discursos
aporéticos da filosofia da subjetividade, que reclamam um retorno à metafísica pós-
kantiana; 2) mergulhar nos labirintos multifacetários do pensamento “pós-
moderno”, que a tudo sorve para o terreno do contingente, 3) identificar sua
expressão, mediante a crítica radical da razão, apenas, como a vitória da ‘barbárie’,
e, ao mesmo tempo, manter-se fiel à tradição do pensamento ocidental?
O caminho percorrido por Habermas na história do pensamento
ocidental persegue o intento de mostrar que, se o ponto de partida da razão
comunicativa está em sintonia com a tradição filosófica ocidental, a meta de
144 J. HABERMAS. PPM, p. 11. 145 A perspectiva emancipatória da razão, segundo J. HABERMAS, está presente desde as origens do pensamento filosófico, pois ao tornar presente a identidade do mundo pela contemplação, o eu conquista a sua identidade: “Esta é a razão que nos leva a dizer que o pensamento filosófico, voltado para as origens, continha força emancipatória”. PPM., p. 156. Cf. J. HABERMAS. “Conhecimento e Interesse”. In. TCI, p. 135.
77
chegada não é um simples continuum do conceito de razão a partir da metafísica
tradicional146. Nesse sentido, é que ele vai refazer todo o caminho da metafísica,
desde Parmênides, para mostrar que esse conceito de razão, não é tributário do
conceito tradicional de razão, quer seja sob o paradigma do “ser”, quer sob o da
“consciência”. A razão comunicativa, por ter um caráter eminentemente processual
e por perseguir o entendimento mútuo sobre o mundo da vida, em toda sua latitude
e, ainda, por “ajudar a recolocar em movimento a cooperação paralisada, como um
móbile teimosamente emperrado, do fator cognitivo-instrumental como o moral-
prático e o estético-expressivo”147, é uma razão débil148, que não esmaga ou oprime
a particularidade, em nome da universalidade, mas, sob o paradigma da
intercompreensão mútua, assume a condição de intérprete e mediadora do diálogo,
com vistas ao entendimento, pois esse, juntamente com o consenso, residem no
interior da linguagem, constituindo o seu telos.
3.2. Limites dos Paradigmas Ontológico e da Consciência, para a Compreensão da
Crise da Razão na Modernidade.
A crítica à perspectiva da filosofia das origens se expressa na
cumplicidade com que seus conceitos se aproximam dos conceitos das grandes
religiões. Pois, se, por um lado, estas interpretam a unidade sob uma perspectiva
ético-salvífica, por outro, os filósofos, mesmo na direção do pensamento que leva
146 Para J. HABERMAS, são três as características fundamentais da metafísica tradicional: 1) o pensamento da identidade: todas as coisas e acontecimentos da experiência são considerados parte de um todo; 2) a doutrina das idéias. Desde Platão se concebe que a unidade que subjaz à multiplicidades dos fenômenos como seu fundamento ontológico é de natureza conceitual. 3) conceito forte de teoria. Na metafísica, a teoria substitui a religião, enquanto forma por excelência de vida consciente: exige-se o abandono da vida natural e promete um contato com o sentido que está para além das contingências do cotidiano. PPM, p. 151s. 147 J. HABERMAS. “Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete”. In: Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 33. 148 J. HABERMAS fala de uma razão débil: “um conceito de razão cético e pós-metafísico, mas não derrotista”. “A Unidade da Razão na Multiplicidade de suas Vozes”. In: PPM, p.152.
78
do mythos ao logos, ficam presos ao conceito contemplativo149 de verdade, que
carrega um forte componente ético-religioso: bios theoretikós. É sob esse aspecto,
que Habermas vai mostrar como o tema mais importante da filosofia das origens,
permaneceu insolúvel no seu interior, a saber: o problema da “unidade” e da
“multiplicidade”150.
Enquanto origem e fundamento de tudo, o uno apresenta-se como
possibilidade de se pensar a realidade como um todo. Razão pela qual os fenômenos
não são explicados por si mesmos, mas só na sua relação com o todo: a partir de
algo que subjaz aos fenômenos, que pode ser apreendido conceitualmente. Foi essa
postura metafísica que rompeu a relação imediata do homem com o seu mundo.
Agora, sob a égide da metafísica, a relação se realiza mediada por princípios: o
particular só se explica pelo universal, que é o seu fundamento. É o triunfo do uno
sobre o múltiplo, do universal sobre o particular.
Essa questão é abordada por Habermas sob três aspectos. Primeiro
aspecto: relação do uno e do múltiplo; do infinito e do finito. Como é que o uno
pode ser tudo sem colocar, em risco, sua unidade? Plotino ensaia a primeira
resposta: “o uno é tudo e nem sequer um (de tudo)”. O uno é tudo porque, enquanto
origem, está presente em tudo; mas não é um de tudo, porque só conserva sua
unidade, enquanto alteridade. O segundo aspecto é o da individualidade. Se tudo é
reconduzido ao uno, como ficam a integridade, a individualidade e a
inconfundibilidade do singular? Sob as categorias de gênero e espécie, a metafísica
decompôs o universal, no particular151. Mesmo assim, o particular permanece sendo
149 Segundo J. HABERMAS, “A palavra ‘teoria’ remonta às origens religiosas: theoros era o nome do representante que as cidades gregas enviavam aos festivais públicos. Na teoria, isto é, contemplando, aliena-se ele no acontecer sagrado. No uso lingüístico filosófico, teoria transfere-se para o espetáculo do cosmos. Como contemplação do cosmo, a teoria pressupõe já a demarcação da fronteira que, com o Poema de Parmênides, funda a ontologia e retorna no Timeu de Platão: reserva para o logos um ente depurado da instabilidade e da incerteza e deixa à doxa o domínio do perecível ...”. “Conhecimento e Interesse”. In: TCI, p.129 e 130. Essa mesma perspectiva é retomada em PPM, p. 156. “A filosofia está referida à vida consciente, como se esta fosse um telos”. 150 PPM, p. 154. 151 “Para o trabalho de desmembramento do geral no particular a metafísica tem à disposição os conceitos de gênero e diferença específica”. J. HABERMAS. PPM, P. 158. Esse conceito de desmembramento é compreendido por M. OLIVEIRA como decomposição. “A metafísica conheceu as categorias do gênero e da
79
particular, somente em relação a um determinado geral. Ou seja, são as
características acidentais que o individualizam. Por fim, o da negatividade da
matéria. Por que a metafísica pensa a matéria somente como não-ente, de forma
negativa? Por que ela só é pensada como oposta ao inteligível? Posto o primado do
bem, de quem tudo precede, por que então o mal?
A modernidade realiza a primeira grande reviravolta na metafísica
tradicional com Kant152. Seu objetivo é fundamentar o conhecimento buscando
resolver as aporias da metafísica tradicional, elaborando um outro conceito de
razão. Para ele, a unidade do múltiplo não é mais uma totalidade objetiva, mas o
produto da ação da subjetividade, construído pelo próprio sujeito, que age mediante
regras. Essa síntese encontra seu ápice na unidade egológica do sujeito sempre
idêntica ela mesma. Por um lado, essa síntese gera objetos para a consciência, por
outro, a unidade construída pelo sujeito é referida a toda experiência possível e ao
incondicionado. Essa unidade se faz no âmbito do sujeito, pois, na experiência, não
há correspondência para o todo e o incondicionado. Portanto, a “razão teórica” só
pode conhecer o que lhe é dado na experiência: o todo da metafísica é inatingível.
Já a “razão prática”, assim como a teórica, desenvolve uma unidade sintética,
incondicionada, de todas as condições em geral, uma totalidade que se constitui
enquanto unidade sintética, incondicionada, de todos os homens, através de leis
objetivas comuns.
A resposta kantiana resolve só parcialmente as questões da metafísica
tradicional. A relação do uno e do múltiplo, do infinito e do finito, retorna, agora, na
versão transcendental. O dualismo agora passa a ser colocado na relação entre a
“razão pura” e a “razão prática”, entre liberdade e causalidade da natureza,
legalidade e moralidade. O dualismo dos mundos não é superado nem mesmo
quando introduz um terceiro tipo de idéias da razão, que considera a história e a
diferença específica para decompor o universal no particular”. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 340. 152 Segundo M. HEIDEGGER, Kant provocou o primeiro e o mais profundo abalo na metafísica tradicional. Kant y el Problema de la Metafísica. Trad. Gred I. Roth. México: Fondo de Cultura, 2a. ed., 1996, p. 20.
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natureza do ponto de vista teleológico. Continua em aberto o problema da
“indizibilidade” do individual153.
Com Hegel, a tentativa de renovar o pensamento da unidade da
metafísica, ganha um novo contorno, à medida que ele tenta superar a dualidade
colocando a razão dentro da história. Para Manfredo Oliveira, “Hegel, a partir da
reviravolta antropocêntrica da modernidade vai pensar o uno como ‘sujeito
absoluto’, liberdade absoluta. Por outro lado, a história é o espaço de mediação
entre o uno e o múltiplo, o infinito e o finito”154. Hegel buscará a superação dessa
dualidade ao apresentar a razão como poder de unificação, pois, “entende sua
filosofia da reconciliação como resposta à necessidade histórica de sobrepujar as
rupturas do novo tempo a partir de seu próprio espírito”155. Essa unidade será dada
através da recuperação do não-ente história para o interior do idealismo, e sob o
conceito de absoluto, “que não é concebido nem como substância nem como
sujeito, mas apenas como processo mediador da auto-relação que se reproduz, sem
qualquer condição (...) que retém apenas o processar infinito da auto-referência,
enquanto incondicionado, que absorve todo o finito”156. Por conseguinte, ao trazer a
história para dentro da filosofia, Hegel deu um passo decisivo em relação ao
pensamento metafísico, que só se compreendia cosmologicamente. A partir daí, o
trabalho de síntese do espírito será realizado através e dentro da história,
integrando-se à sua dinâmica. Porém, segundo Habermas, a perspectiva de
superação da dualidade kantiana, através do absoluto da história, que foi
propugnada por Hegel, carrega um limite que, como vimos na primeira parte desse
trabalho, sofreu resistências, já na primeira geração de seus discípulos, pois deixou
aberta a porta, não só para uma busca de síntese realizada através do trabalho social
(Marx) ou da escolha-radical (Kierkegaard), mais próxima à síntese kantiana, como
também propiciou, por um lado, a crítica radical da razão, e, por outro, a dispensa
153 J. HABERMAS. PPM, p. 162-163. 154 M. A. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 342. 155 J. HABERMAS. PPM, p. 164. 156 J. HABERMAS. DFM, p. 42 e 44.
81
de uma teoria unitária para a ciência, que, com o advento da epistemologia pós-
empirista, revolucionou a imagem que a ciência tinha de si mesma157.
Esse clima de renúncia, a uma perspectiva universalista da razão, é um
reflexo da consciência moderna do tempo e deve ser encarado como testemunho de
que o processo de racionalização ainda permanece aberto aos que ousam desbravar
campos desconhecidos, que se expõem aos riscos do novo, que não temem as
surpresas do inédito, e se lançam na direção de um futuro ainda não demarcado:
“Na valorização do transitório, diz Habermas, do fugaz, do efêmero, na celebração
do dinamismo, se exprime propriamente a nostalgia do um presente imaculado e
imóvel”158. Parafraseando Adorno159, na desagregação da modernidade é posto o
selo de sua autenticação.
Os reflexos do caráter dinâmico e provisório do novo tempo, da defesa
da cultura da multiplicidade e do louvor ao contingente, da consciência da
pluralidade de mundos históricos e da variedade liberta de síntese, deixaram aberto
o caminho para a investida do relativismo. Foi esse contexto que impulsionou a
mudança de paradigma da “filosofia da consciência” para a “filosofia da
linguagem”: a guinada lingüístico-pragmática passa a se constituir o horizonte da
filosofia contemporânea. Isso significa que, se a linguagem constitui um meio para
as objetivações histórico-culturais do espírito humano, uma apreciação segura das
objetivações desse espírito deve partir, não dos fenômenos da consciência, mas das
suas expressões lingüísticas. Por conseguinte, não é por acaso que, a partir dessa
guinada, o domínio que Hegel denominou de “espírito objetivo”, foi tematizado
numa dupla direção: por um lado, como linguagem, cultura e história em geral; por
157 Há, na discussão contemporânea, uma tentativa de re-unificar a ciência mediante a naturalização. Tal discussão foge ao horizonte deste trabalho. 158 J. HABERMAS. “Modernidade - Um Projeto Inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 102. 159 T. ADORNO. Teoria Estética. Apud. J. HABERMAS. “Modernidade - Um Projeto Inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um Ponto Cego no Projeto Moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992, P. 104.
82
outro, como idiomas nacionais, culturais e históricos160. Aqui, se reacende o velho
tema da unidade e da multiplicidade: como pensar juntos esses dois aspectos?
Nesse contexto, a questão acerca da possibilidade do conhecimento
objetivo recebe duas respostas: uma objetivista outra relativista. Essas duas
abordagens recebem um tratamento especial por parte de Habermas, porque elas se
inscrevem na perspectiva de analisar a modernidade, no interior da sua própria
dinâmica. É um enfrentamento que não capitula diante da desilusão causada pelas
falsas superações da filosofia, ou ainda que não teme confrontar-se com as aporias
da modernização cultural, e que serve de ensejo para posições denominadas por
Habermas de “conservadoras”161. Pelo contrário, esse enfrentamento assume os
desafios de um ethos, em conflito consigo mesmo, e que busca a sua auto-
certificação. Sob esse aspecto é que podemos compreender, por um lado, que o
embate com a perspectiva contextualista, mais precisamente com R. Rorty e H.
Putnam, é um debate que se insere na continuidade da tradição do pensamento
ocidental, e se inscreve no interior de um diálogo na busca de compreensão das
objetivações históricas do espírito. Noutros termos, o contextualismo é reflexo do
espírito de uma época que intentou se compreender a partir de suas próprias forças,
e que não abandonou o problema de pensar a questão da unidade e da
multiplicidade. Por outro lado, o pensar da unidade na multiplicidade significa, para
Habermas, que o contextualismo trabalha com uma metafísica negativa: “O primado
metafísico da unidade perante a multiplicidade e o primado contextualista da
pluralidade frente à unidade são cúmplices secretos”162. Ou seja, o contextualismo
torna-se o principal desafio para a filosofia na contemporaneidade porque ele opera
160 A diferença está em, por exemplo, tematizar a linguagem como universal (Humbold e seus seguidores) que os idiomas nacionais realizam, ou partir dos diversos idiomas e tentar encontrar o que há de universal nestes. 161 Sob esse aspecto é que se pode compreender a recusa de Habermas em aceitar os discursos que anunciam o fim do projeto da Modernidade, principalmente quando nega à filosofia a possibilidade de compreendê-la nas suas próprias contradições. Daí a acusação de Habermas aos três tipos de conservadorismos que postulam um adeus, não só a Modernidade como um todo, mas à própria filosofia na sua tentativa de compreender o desenvolvimento da razão em meio às contradições da Modernidade. Cf. J. HABERMAS. “Modernidade - um projeto inacabado”. In: Otília ARANTES e Paulo ARANTES, Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992. “Filosofia como guardador de lugar e como intérprete”. In: Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. 162 J. HABERMAS. PPM, p. 153.
83
com um conceito de razão que objetiva salvar, apenas, o momento do não-idêntico,
do transitório, do heterogêneo que foi sacrificado ao idealismo. Portanto, é uma
crítica que mergulha no meio da arena do conflito da crise da razão na modernidade,
sem a ela renunciar. Tal enfrentamento é o que pretendemos abordar, logo em
seguida.
3.3. A Modernidade e o Contextualismo: Uma Razão Mitigada
Procuramos situar, sumariamente, o ambiente sobre o qual se
estabelece o diálogo entre Habermas e a perspectiva contextualista, e como esse
diálogo se inscreve no interior da tradição do pensamento moderno, na tentativa de
resgatar os elementos ainda não realizados dos ideais da razão iluminista. Como
vimos, nesse ambiente, motivado, sobretudo, pelo avanço das ciências da natureza,
o que se encontra não é, apenas, um distanciamento, e sim um clima de renúncia,
cada vez mais acentuada, às tentativas de justificação que vigoravam até o
Iluminismo. No horizonte desse debate, o contextualismo, abraçado por Richard
Rorty, parte na defesa de que o legado deixado pela modernidade foi “a perda da fé
em nossa capacidade de advir com um conjunto único de critérios, que todas as
pessoas em todos os lugares e tempos possam aceitar, de inventar um jogo de
linguagem singular que possa de algum modo controlar todos os trabalhos feitos por
todos os jogos de linguagem já desempenhados. Mas a perda dessa meta teórica
mostra meramente que um dos temas secundários menos importante da civilização
ocidental – metafísica – está no processo de encerramento das atividades”163. Isso
posto, o que a perspectiva rortiana postula, já não é, à guisa de Adorno da Dialética
163 R. RORTY. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Trad. Marcos. A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará 1997, p. 289.
84
Negativa, uma “solidariedade com a metafísica no instante de sua queda”, mas a
renúncia a qualquer forma de conhecimento que busque uma fundamentação última.
Os “pragmáticos”, como afirma Rorty, não necessitam nem de metafísica nem de
epistemologia: a verdade é o que “é bom para acreditarmos”, é uma crença bem
justificada164. Noutros termos, dispensada da tarefa de pensar o mundo, à filosofia
resta, apenas, assumir o discurso “edificante” (edifying)165.
Diante da renúncia à possibilidade de buscar, na razão, o fundamento
da unidade, como fica a questão acerca da possibilidade do conhecimento objetivo,
vista na sob a ótica contextualista? As perspectivas do contextualismo de R. Rorty
(relativista) e H. Putnam (objetivista) esboçam duas saídas distintas. O primeiro
apóia a objetividade do conhecimento “na intersubjetividade de um consenso, ao
qual subjaz (...) o consenso em nossa linguagem, em nossas formas de vida
faticamente compartilhadas”166. Por esse caminho, ele substitui a busca de
objetividade pela realização da solidariedade na comunidade lingüística, à qual
pertence, casualmente167. O limite desse contextualismo, para Habermas é que ele
não ousa elevar o mundo da vida até o nível abstrato, postulando uma comunidade
ideal e geral, intersubjetivamente comunicativa, libertos de sua provincialidade.
Essa perspectiva, por conseguinte, há que evitar a toda idealização, à medida que
renuncia ao conceito de racionalidade, por ser este um conceito-limite, com
164 “... não há nada a ser dito nem sobre a verdade, nem sobre a racionalidade, para além das descrições dos procedimentos familiares de justificação que uma dada sociedade – a nossa – emprega em uma ou outra área de justificação [...] Para o pragmático ... ‘conhecimento’ é, como ‘verdade’, simplesmente um elogio feito às crenças que pensamos estar bem justificadas; as crenças que, por enquanto, tornam uma justificação adicional desnecessária”. Ibid., p. 39, 40 e 41, grifos do autor. 165 Sobre a perspectiva assumida por R. RORTY de que a tarefa da filosofia deve ser dividida, entre filósofos edificantes e filósofos sistemáticos, Cf. Filosofia e Espelho da Natureza. Trad. Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, cap. VIII. J. HABERMAS vai de encontro a essa divisão argumentando que se, em última instância, a validade das concepções não pode ser medida senão pelo acordo alcançado por argumentos, então o solo sobre o qual deitam a validade de nossas disputas tem um fundamento vacilante. “Filosofia como Guardadora de Lugar e como Intérprete”. In:. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. São Paulo: Tempo Brasileiro, 1989, p. 29. 166 J. HABERMAS. PPM, p. 172. 167 “Para os pragmáticos, o desejo por objetividade não é o desejo de escapar das limitações de uma comunidade, mas simplesmente o desejo de alcançar a maior concordância intersubjetiva possível, o desejo de estender a referência do pronome ‘nós’ tão longe quanto possível”. R. RORTY. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Trad. Marcos. A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997, p. 39.
85
conteúdo normativo explícito, que se dirige a uma comunidade universal e
ultrapassa os limites de uma determinada comunidade168.
Postular um conceito limite como “racionalidade” e “verdade”, é
alargar, por demais, a nossa capacidade de descrever os nossos procedimentos
familiares de justificação, segundo R. Rorty. Se uma tal afirmação é considerada
etnocêntrica ou “relativista”, é porque os pragmáticos não desenvolvem uma teoria
“positiva”, tendo a verdade como referência, mas uma negativa, segundo a qual há
que abandonar a distinção tradicional entre conhecimento e opinião, e instaurar a
distinção entre “a verdade como correspondência à realidade e a verdade enquanto
um sinal de aprovação para crenças bem justificadas”169. Isso significa, para os
pragmáticos, que operam como uma base ética e não epistemológica ou metafísica
do valor da investigação humana, que não há nada a ser dito sobre a verdade para
além do que cada um de “nós” defendemos, como sendo bom para acreditar. Ou
seja, o que atribuímos como “conhecimento” ou como “verdade” é tão-somente um
elogio feito às crenças que tomamos como bem fundamentadas: não necessitam de
uma justificação adicional.
Em defesa desse contextualismo, R. Rorty dirá que, a crítica a ser feita
aos pragmáticos é tão-somente por que eles levam muito a sério a própria
comunidade. A “evocação ritual da ‘necessidade de se evitar o relativismo’ é
maximamente compreensível enquanto uma expressão da necessidade de preservar
certos hábitos da vida européia contemporânea”170. Ser etnocêntrico, segundo essa
perspectiva, é estabelecer uma divisão entre as pessoas para as quais devemos
168 A idéia da necessidade de uma fundamentação racional, é combatida por R. RORTY, desde A Filosofia e o Espelho da Natureza, Trad. Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, de 1979, principalmente o capítulo 5. Ele mantém a mesma posição em Contingência, Ironia e Solidariedade. Trad. Nuno F. da Fonseca. Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 115, quando diz que: “Se não há um centro para o eu, então há apenas maneiras diferentes de coser novos candidatos para crença e desejo a tecidos já existentes de crença e desejo”. Mais, recentemente, ao afirmar que Habermas, ao afeiçoar-se à idéia de validade universal, faz dela seu próprio conceito, da mesma forma que Platão e Agostinho “... para se relacionar com algo mais largo do que eles e as circunstâncias contingentes nas quais nas quais eles se descobriram”. Truth and Progress, vol 3. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 321. 169 R. RORTY. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Trad. Marcos. A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997, p. 40. 170 Ibid., p. 46.
86
justificar nossas crenças e as outras. Por conseguinte, afirmar que temos de
trabalhar com as “nossas próprias luzes” é defender que – tendo em vista que o
modo tradicional ocidental metafísico-epistemológico de objetivar nossa maneira de
ser não está mais se realizando, não cumpre mais sua tarefa – devemos estar abertos
para o encontro com as crenças de outras comunidades e confrontá-las com as que
já possuímos: isso não significa que devamos buscar um ponto de apoio
arquimediano, sobre o qual possamos avaliar as nossas crenças e as das outras
pessoas, mas que a nossa referência será sempre o nosso ethnos “... que se orgulha
de si mesmo por sua suspeição frente ao etnocentrismo – antes que sua habilidade
em incrementar a liberdade e a abertura dos encontros do que por sua possessão da
verdade”171.
A tomada de posição frente a esse contextualismo radical é reforçada,
num primeiro momento, dentro da perspectiva contextualista objetivista de H.
Putnam. Habermas defende, com H. Putnam contra R. Rorty, que
“(...) se eliminamos a distinção entre uma opinião justificada hic et nunc e
uma verdadeira, isto é, aceitável sob condições idealizadas, então não
podemos mais explicar nossa capacidade de aprender reflexivamente, ou
seja, de melhorar nossos próprios standards de racionalidade”172.
Na visão de H. Putnam, não são as normas de uma determinada
comunidade que asseguram se uma teoria é ou não uma racionalização, mas “uma
teoria ideal da racionalidade, uma teoria que nos daria as condições necessárias e
suficientes para que uma crença seja racional nas circunstâncias relevantes de
qualquer mundo possível”173. Ele defende, frente a Rorty, que se todo argumento
racional fosse uma racionalização então não faria sentido defender ou sustentar
qualquer ponto de vista racionalmente. Ou seja, se um ponto de vista é tão bom
171 Ibid., p. 14. 172 J. HABERMAS. PPM, 1990, p. 172 e 173. H. PUTNAM, dirá, nesse sentido, que “... o fato de fazermos estes juízos mostra que temos uma idéia reguladora de um intelecto justo, atento, equilibrado ...”. Razão, Verdade e História. Trad. António Duarte. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 206, grifos do autor. 173 H. PUTNAM. Razão, Verdade e História. Trad. António Duarte. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 140.
87
como qualquer outro, então, o ponto de vista de que o relativismo é falso é tão bom
como qualquer outro174. Por conseguinte, mesmo não postulando algo como um
“fundamento” para a racionalidade, H. Putnam defende que é possível construir
uma concepção de racionalidade mais “racional” à medida que, mediante o diálogo,
trabalhamos no interior da nossa tradição. O que significa dizer que o simples fato
de falarmos em “diferentes concepções de racionalidade postula um Grenzbegriff,
um conceito-limite da verdade ideal”175. Portanto, mesmo que a racionalidade não
possa ser definida mediante um cânone, ou um conjunto de princípios a serem
seguidos, não significa que o barco navega à deriva, pois: “... temos para nos guiar
uma concepção evolutiva das virtudes cognitivas”176.
É sob a perspectiva de H. Putnam, de que não existe apenas o
diálogo177, mas, para além deste, há que postular um “conceito limite”, mediante o
qual pode ser criticado o limite da “comunidade de diálogo” de R. Rorty, que não
consegue superar o etnocentrismo. Numa situação de dissenso, quando o que está
em jogo não são apenas opiniões rivais e sim standards de racionalidade
concorrentes, temos que admitir a idéia de uma relação de simetria entre “nós” e
“eles”. Por isso mesmo, temos que alargar o nosso horizonte de compreensão, não
apenas, para assimilar o “nós” à perspectiva “deles”, mas, principalmente, porque
precisamos reformar, previamente, nossas práticas cotidianas de justificação. O que
significa dizer que, no processo de diálogo, ambos os partidos têm um ponto de
apoio comum: de que o entendimento é possível, e, porque em toda comunidade
lingüística, assegura Habermas, idéias como verdade, racionalidade ou justificação,
preenchem a mesma função gramatical, mesmo que sejam interpretadas e aplicadas,
a partir de critérios distintos178.
174 Ibid., p. 156. 175 Ibid., p. 264. 176 H. PUTNAM dirá que ao eliminarmos o normativo empreendemos um “suicídio mental”, uma vez que, mesmo não tendo um ponto de apoio arquimediano, e de falarmos sempre em linguagem de ocasião e lugar, “a exatidão e a inexatidão do que nós falamos não é justamente devida a um tempo e a um lugar”. “Why Reason Can’t be Naturalized”. In: Synthese, 52 (1982), p. 3-23, grifos do autor. 177 H. PUTNAM. Razão, Verdade e História. Trad. António Duarte. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 264. 178 J. HABERMAS. PPM, p. 175.
88
Essa breve retomada da perspectiva contextualista teve, como
objetivo, resgatar o segundo eixo da teoria da modernidade de Habermas. Assim,
tentou-se mostrar que para ele, mesmo caminhando na direção do pensamento da
unidade da razão, na perspectiva da guinada lingüística, é importante reconhecer a
importância desses dois tipos de contextualismo – relativista e objetivista. Estes
refletem o espírito da cultura atual que, se por um lado arrasta tudo para o
torvelinho da experiência contingente (relativismo), por outro, ainda, tenta
resguardar um a priori que assegure uma teoria de racionalidade ideal
(objetivismo). Esse confronto pretende lançar luzes, não apenas, sobre o processo
de construção do conceito intersubjetivo de razão, mas, sobretudo, para realçar sua
relevância, pois, a razão comunicativa procura ver os potenciais cognitivos dos
ideais do Iluminismo, ainda, presentes, mesmo que fragmentados, na prática
comunicativa de cada “mundo da vida”. Ao mesmo tempo, compreende-se,
também, porque, a razão comunicativa declara tudo contingente, até mesmo as
condições da gênese do seu próprio meio lingüístico, exceto as “estruturas do
entendimento lingüístico possível”, porque elas constituem um limite, um
componente intransponível, “para tudo aquilo que pretende ter validez no interior
de formas de vida estruturadas lingüisticamente”179. Isso significa que, no momento
da defesa relativista – de que as formas de vida e os jogos de linguagem são
incomensuráveis –, eles não só não escapam, como fazem uso, mesmo que
implicitamente, dos critérios formais da compreensão moderna do mundo: mesmo
que os padrões de racionalidade estejam dependentes de contexto e sejam
historicamente cambiáveis, as pretensões de validade reclamadas transcendem
qualquer contexto imediato.
Com isso, ou seja, com a pressuposição de um limite intransponível
no interior da linguagem, Habermas acredita sair da armadilha tanto do
contextualismo (R. Rorty)180 – que não pode argumentar sem cair na contradição
179 Ibid., p. 176. 180 Para R. RORTY, não há ponto arquimediano ou gancho celeste a partir do qual possamos olhar e julgar nossas ações. O que possuímos são apenas nossos standards de valores, nosso ethnos, mediante o qual
89
performativa – quanto do objetivismo (H. Putnam) – que, no momento da defesa de
sua tese, deve tomar uma posição entre a linguagem e a realidade. Por conseguinte,
o recurso à pragmática transcendental, enquanto tematização dos pressupostos
universais pragmáticos da ação comunicativa, não significa, de forma alguma, a
busca de um ponto de vista extramundano, de um sujeito sem mundo e sem história,
que imaginasse fazer proferimentos infalíveis. Mais do que isso, é a busca de um
conceito de razão, de uma razão histórica, cujas pretensões de validade levantadas
são dependentes do contexto e, ao mesmo tempo, transcendentes: “A tensão ideal
que irrompe na realidade social remonta ao fato de que a aceitação de pretensões de
validade, que cria fatos sociais e os perpetua, repousa sobre a aceitabilidade de
razões dependentes de um contexto, que estão sempre expostos ao risco de serem
desvalorizadas através de argumentos melhores e processos de aprendizagem que
transformam o contexto”181.
3.4. Racionalidade e Emancipação: uma Modernidade Certificada?
Procuramos seguir o percurso do pensamento habermasiano, tentando
mostrar alguns dos problemas enfrentados por sua filosofia, para responder aos
desafios apresentados às aporias do conceito de razão que foi plasmado no interior
do ethos Iluminista. A dialética do Iluminismo instaurou-se como uma dialética que
procurava resgatar, numa síntese superior, tanto o momento regressivo como o
progressivo da liberdade. Porém, nesse movimento, predominou o imperativo da
razão instrumental. Nesse sentido, a crítica realizada à razão, sob a medida da
avaliamos e julgamos nossos comportamentos. Nada é capaz de transcender a própria cultura. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Trad. Marcos A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997, p. 28s. 181 J. HABERMAS. Direito e Democracia. Trad. F. B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, vol. 1, 1997, p. 57.
90
Dialética do Esclarecimento e, mais ainda, do pensamento pós-metafísico, por
exemplo, tem seu lugar reconhecido. Porém, o problema da razão, não pode ser
reduzido, apenas, à retirada do véu que encobre os limites e as aporias da razão. Tal
desvelamento já foi realizado pelos seus críticos. Por conseguinte, considerando que
é um esclarecimento que ainda não se esclareceu, parafraseando Habermas, há que
perguntar, a ele mesmo, e a partir da dinâmica interna de sua dialética, por que ficou
saliente, apenas, o momento da negação. Ou seja, por que não tomar a negação,
como negação determinada, para não cair no ceticismo frente à razão. Há que tomar
a crise como catarse, como um momento sobre o qual a razão se debruça sobre si
mesma e procura superar a visão que a reduz, tão-somente, a uma das suas possíveis
dimensões.
Na modernidade, a razão foi pensada a partir do paradigma da
subjetividade, que, em si mesma, detinha as medidas de determinação do outro de
si, de forma que o conhecimento se fazia compreensível como um momento de
determinação, que é produção do sujeito (Kant). Sob esse aspecto, a subjetividade
surge como a origem de todo sentido, que, na relação com o outro de si, ela
conquista-se a si mesma como sujeito. Nessa relação, nas palavras de Manfredo
Oliveira, “o outro emerge como um momento indispensável no processo de
autoconquista através de um processo de objetivação: ela (a subjetividade) se refere
aos objetos do mundo e a si mesma como realidade, cujo sentido dela provém”182.
Sob esse aspecto, a relação do sujeito com o mundo, na perspectiva da filosofia da
subjetividade, é uma relação entre sujeito e objeto, porque os processos de
subjetivação e de objetivação universal são coincidentes. Noutros termos, a razão
subjetiva é uma razão manipuladora, pois só conquista a si mesma – autorelação –
através de um relacionamento objetivante com o outro.
Na lição inaugural de 1965, em Frankfurt, sobre Conhecimento e
Interesse, já está introduzido o problema da razão comunicativa sob o prisma do
182 Manfredo OLIVEIRA. “A Crise da Racionalidade Moderna: Uma Crise de Esperança”. In: Síntese Nova Fase 45 (1989), p. 29.
91
conceito de emancipação. Ali encontramos a defesa de que, assim como os
interesses práticos e técnicos têm seu lugar no interior das ciências histórico-
hermenêuticas e empírico-analíticas, é próprio das ciências de orientação crítica
essa preocupação pelo interesse emancipatório; uma vez que o sentido de validade
dos enunciados críticos é aquilatado pelo conceito de auto-reflexão. Isso significa
que: por ser determinada através de um interesse emancipatório do conhecimento, a
auto-reflexão liberta o sujeito da “dependência de poderes hispostasiados”183.
Ao resgatar o conceito de auto-reflexão e tomá-lo como determinante
do interesse emancipatório do conhecimento, Habermas quer mostrar que o
fundamento da emancipação deita raízes sobre uma sólida base que é a linguagem.
Eis porque esta não pode ser compreendida, apenas, como instrumento de descrição
ou interpretação do universo e da tradição184. Seu surgimento na história do gênero
humano representa a ruptura cultural com a natureza, é o ponto de inflexão em que
a consciência-de-si defronta-se com outra consciência-de-si, estabelecendo o
horizonte do mundo humano, o qual só encontra fundamento e sentido no
reconhecimento185. A linguagem constitui a mediação intransponível para as
objetivações histórico-culturais do espírito humano, por conseguinte, uma análise
confiável de suas atividades deve ter como base não os fenômenos da consciência,
mas suas expressões lingüísticas:
“O que nos arranca à natureza é o único estado de coisas que podemos
conhecer segundo a sua natureza: a linguagem. Com a estrutura da
linguagem, é posta para nós a emancipação. Com a primeira proposição,
expressa-se inequivocamente a intenção de um consenso comum e sem
restrições ... Na auto-reflexão, o conhecimento pelo conhecimento vem
183 J. Habermas. “Conhecimento e Interesse”. In: TCI, p. 141. Esse trabalho foi publicado na coletânea de artigos que deu origem ao livro Técnica e Ciência como Ideologia, publicado na Alemanha em 1968. 184 Para um estudo detalhado da evolução da filosofia da linguagem no pensamento contemporâneo, de Platão até os dias atuais, Cf. Manfredo OLIVEIRA, Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia. São Paulo: Loyola, 1996. 185 Navegando, ao que parece, nos conceitos hegelianos da Fenomenologia, cujas saídas apontadas na dialética do ‘Senhor e do Escravo”, não desaguam no reconhecimento, e sim no estoicismo, cepticismo ou consciência infeliz, Habermas apresenta a ação comunicativa, fundada no diálogo intersubjetivo, livre de coação, como um caminho de superação dessa lacuna dessa dialética, ao mesmo tempo em que aponta uma saída às aporias da filosofia do sujeito.
92
coincidir com o interesse pela maioridade. O interesse emancipatório visa a
consumação da reflexão enquanto tal. Sem dúvida, só numa sociedade
emancipada, que tivesse levado a cabo a maioridade dos seus membros é
que a comunicação se desdobraria no diálogo, livre de dominação ... a idéia
do verdadeiro consenso”186.
Essa perspectiva de emancipação procura recuperar o conteúdo não
realizado da dialética iluminista, qual seja, liberdade e autonomia do sujeito, pelo
uso público da razão, abrindo-se na direção de postular um novo conceito de razão
que não seja, por um lado, destituído de corpo, prisioneiro de uma subjetividade
espontânea constituidora de mundos, e, por outro, que não reduza a história, apenas,
à condição de uma automediação do espírito absoluto. Ao mesmo tempo, que não
recua nem diante de uma dialética negativa, que constrange toda expressão dessa
dialética ao seu caráter instrumental, nem daqueles que dispensam a necessidade de
um ideal de razão que esteja para além dos limites contextualistas, que consideram
defensável, apenas, o que se justifica dentro dos limites de opinião e de crença do
seu etnos.
Diante do exposto, recolocamos a questão levantada acima: se nos
moldes da filosofia do sujeito, a razão, que reclama pretensão de validade e
universalidade, não deu conta de pensar uma síntese que restabelecesse a unidade
das cisões da razão na modernidade, sem cair nas aporias da filosofia da
subjetividade, até que ponto o paradigma de razão comunicativa consegue
reconstruir a unidade cindida?
O ponto de partida para se retomar o problema da razão na
Modernidade só pode ser colocado dentro da necessidade da mudança de paradigma
da filosofia do sujeito, sobretudo por este não poder responder à altura das
investidas que lhe foram desferidas pela filosofia analítica da linguagem e pela
psicologia comportamental187. O que constrange a superar o solipsismo, o
186 HABERMAS, J. “Conhecimento e Interesse”. In: TCI, p. 144. 187 “Early in the twentieth century, the subject-object model of the philosophy of consciousness was attacked on two front – by the analytic philosophy of language and by the psychological of behavior. Both renounced
93
isolamento da consciência individual frente ao mundo exterior e toda a sua
alteridade, dá-se pela necessidade tanto de superar a relação sujeito-objeto, na qual
tudo é reduzido a objeto, inclusive o próprio eu, quanto pela impossibilidade de, em
última análise, se justificar tanto a validade universal quanto a objetividade do
conhecimento, a partir apenas da consideração da consciência individual. Noutros
termos, tem-se que superar o modelo da relação sujeito-objeto, por um conceito de
razão mais amplo: a relação entre sujeitos, uma vez que não podemos nos furtar à
força da auto-reflexão presente na modernidade, mas com ela romper os laços que a
prendem ao “logocentrismo” ocidental188, estabelecidos por Descartes e Kant.
A filosofia da consciência, que se expressa sob o modelo da relação
sujeito-objeto, não consegue ir além da dimensão cognitivo-instrumental do saber
proposicional, porque, nesse modelo, conhecimento e ação ocorrem sob o arbítrio
isolado do sujeito. Assim, ao reduzir a racionalidade à dimensão não-comunicativa
da linguagem, se reduz seu raio de abrangência, além de impedir a expressão de seu
potencial emancipador. Esse equívoco do “logocentrismo” ocidental, de não
considerar os outros aspectos da razão ocidental – normativos e estético-expressivo
– deu-se porque:
“... a auto-compreensão ocidental distingue o ser humano pelo monopólio de
se opor ao ente, reconhecer e tratar objetos, fazer cumprir afirmações
verdadeiras, (por conseguinte) a razão ficará de um ponto de vista
direct access to the phenomena of consciousness and replaced intuitive self-knowledge, reflection, or introspection with procedures that did not appeal to intuition. They proposed analyses that started from linguistic expressions or observed behavior and were open to intersubjective testing. Language analyses adopted procedures for rationally reconstructing our knowledge or rules that were familiar from logic na linguistics; behavioral psychology took over the methods of observation and strategies of interpretation established in studies of animal behavior”. TCA, vol 2, p. 3. Daí se compreender que a mudança de paradigma não é simplesmente uma troca de etiqueta. “... após a implosão da figura da razão prática pela filosofia do sujeito, não temos mais condições de fundamentar os seus conteúdos na teleologia da história, na constituição do homem ou no fundo casual de tradições bem-sucedidas ... Por esta razão, eu resolvi encetar um caminho diferente, lançando mão da teoria do agir comunicativo: substituo a razão prática pela comunicativa. E tal vai muito além de uma simples troca de etiqueta”. J. HABERMAS. Direito e Democracia I. Trad. Flávio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, vol. 1, 1997, p. 19. 188 “Todas estas tentativas (pós-hegelianas) de destranscendentalizar a razão ficam presas ainda a pré-decisões conceituais da filosofia transcendental. As alternativas falsas caem somente quando há a passagem para um novo paradigma, o do entendimento”. PPM, p. 52.
94
ontológico e epistemológico da análise lingüística limitada a apenas uma das
suas dimensões”189.
Essa redução da linguagem a, apenas, uma das suas dimensões –
representativa de estado de coisas – é uma herança que vem desde Platão190. Foi o
avanço da filosofia da linguagem ordinária que direcionou sua compreensão para a
dimensão da “prática social concreta”, tomando-a, nas palavras de Danilo
Marcondes, “como um sistema de atos simbólicos realizados em determinado
contexto social com objetivo preciso e produzindo certos efeitos e conseqüências
convencionais”191. Com isso, rompeu-se com a tradição da filosofia que a
considerava como um meio através do qual se descrevia o mundo ou se interpretava
a realidade. Sob esse aspecto, a Filosofia da Linguagem Ordinária procurou romper
com o solipsismo do “logocentrismo” ocidental, bem como com a posição inicial da
Filosofia da Linguagem, que se voltava mais para a lógica interna da linguagem, e
com “problemas tais como sentido, referência, predicação, etc”192.
Essa perspectiva aberta pela Filosofia da Linguagem Ordinária vem
mostrar que é, primeiramente, a “utilização comunicacional” de uma linguagem,
articulada em proposições, o elemento essencial da nossa forma de vida sócio-
cultural e que consolida o nível de reprodução social genuína de vida193. Assim, em
termos de Filosofia da Linguagem, segundo Habermas,
189 “... a relação do ser humano com o mundo é cognitivamente reduzida: ontologicamente é reduzida ao mundo dos entes como um todo (como totalidade dos objetos que podem ser representados e dos estados de coisas existentes); epistemologicamente é reduzida, à capacidade de conhecer estados de coisas existentes ou de as produzir de forma racional propositada, e semanticamente é reduzida a um discurso concreto no qual se usam proposições assertórias e não é admitida qualquer exigência de validade no foro interno”. J. HABERMAS. DFM, p. 289. 190 J. HABERMAS, DFM, p. 289. Sobre esse aspecto “secundário” do uso da linguagem, Manfredo OLIVEIRA afirma: “Desde o Crátilo de Platão, a linguagem é considerada como instrumento secundário do conhecimento humano. O mundo conhecido reflete-se valendo-se das frases da linguagem. Há, pois, uma relação entre linguagem e mundo, realizada por meio do caráter designativo da linguagem: as palavras são significativas na medida mesma em que designam objetos. Para saber qual é a significação de uma palavra qualquer, temos de saber o que é por ela designado”. M. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 119. 191 Danilo MARCONDES. Filosofia, Linguagem e Comunicação. São Paulo: Cortez, 2a ed., 1992, p. 32. 192 Ibid, p. 21 e 37. 193 J. HABERMAS. DFM, p. 289. Cf. “Conhecimento e Interesse”. In: TCI, p. 144.
95
“... surgem a originalidade e a igualdade de valor das três funções
lingüísticas logo que abandonamos o nível analítico do juízo ou da
proposição e alargamos a análise a atos da fala, exatamente à utilização
comunicativa de frases. Os atos elementares da fala apresentam uma
estrutura na qual se combinam três elementos: o componente proposicional
para a representação (ou menção) de estados de coisas, o componente
ilocucionário para a admissão de relações interpessoais e, finalmente, os
componentes lingüísticos que experimentam a intenção de quem fala ”194.
Essa abordagem, em termos da teoria dos atos da fala, das complexas funções
lingüísticas, reveste-se de conseqüência para a semântica, para os pressupostos da
teoria da comunicação e para o próprio conceito de racionalidade. Há que antecipar
aqui que estas conseqüências estão limitadas, especificamente, apenas no que
resulta imediatamente relevante para a crítica da razão instrumental.
No primeiro aspecto, o semântico, a teoria do significado ampliada à
pragmática, demonstrou que a função da linguagem ultrapassa os limites estritos da
construção e descrição dos fatos195. A partir das três funções originárias da
linguagem, os atos da fala podem ser contestados mediante três pretensões de
validade diferentes: o ouvinte pode negar o enunciado como um todo, contestando a
verdade do que é anunciado, ou a justeza da ação da fala, ou ainda a veracidade da
intenção expressa do falante.
O segundo aspecto, dos pressupostos ontológicos da comunicação,
procura criticar a concepção ontológica inerente à filosofia do sujeito, por
considerar o “mundo”, em relação ao qual o sujeito fazia referências pelas suas
representações ou proposições, como a totalidade dos objetos ou estados de coisas
existentes. O mundo dos objetos é correlato de todas as afirmações verdadeiras.
194 J. HABERMAS. DFM,, p. 289. 195 “A semântica da verdade apropriou-se desta idéia desde a época de Frege: nós compreendemos uma proposição assertórica quando sabemos o que é o caso, se ele for verdadeiro ... No âmbito dessa teoria, a problemática da validez é localizada exclusivamente na relação da linguagem com o mundo, tido como totalidade dos fatos. A validez é equiparada à verdade de asserções; por isso, um nexo entre significado e a validez de expressões lingüísticas só se estabelece no discurso que constata fatos. No entanto, a função de
96
Porém, se os atos de fala regulativos e expressivos, da mesma forma que os
constatativos, podem ser aceitos como válidos ou recusados como inválidos, e se
introduz a retitude normativa e a veracidade subjetiva com pretensões de validez
análogas à verdade, “têm de ser postulados ‘mundos’ análogos aos fatos para
relações interpessoais reguladas legitimamente e para vivências subjetivas
imputadas”196. Não apenas um “mundo” que é objetivo, sob o qual nos colocamos
em atitude de terceira pessoa, mas também um normativo, frente ao qual nos
sentimos obrigados, bem como um subjetivo, que, na qualidade de primeira pessoa,
nos revelamos ou velamos perante o outro. Assim, em cada ato de fala, o falante se
refere, simultaneamente, a algo no mundo objetivo dos fatos, ao mundo social
comum das normas, e ao mundo subjetivo das vivências pessoais. A herança
“logocêntrica” capitula ante a dificuldade terminológica de ampliar o conceito
ontológico de mundo.
Quanto às conseqüências para o terceiro aspecto, o do conceito de
racionalidade, é que, para Habermas, a racionalidade revela-se, fundamentalmente,
menos como posse, e mais como os sujeitos capazes de linguagem e de ação
adquirirem e usam a linguagem197, ou seja, a inflexão está no uso do conhecimento
adquirido. Por conseguinte, na perspectiva da razão comunicativa significa que o
conhecimento se adquire mediante interações lingüisticamente mediadas, entre
sujeitos que se orientam por relações de exigências de validade, sedimentadas no
reconhecimento intersubjetivo. O que não acontece na perspectiva da razão centrada
no sujeito, pois aqui ele conhece o mundo egocentricamente. Sob esse aspecto a
representação constitui, conforme já fora observado por Karl Bühler, apenas uma de três funções originárias da linguagem”. J. Habermas. PPM., p. 77-78. 196 J. HABERMAS. DFM, p. 290. Há, ainda, situações em que a linguagem não se refere a nenhum dos mundos. 197 “I shall presuppose this concept of knowledge without further clarification, for rationality has less to do with the possession of knowledge than with how speaking and acting subjects acquire and use knowledge”. J. HABERMAS. TCA, vol.1, p. 8. Em PPM, p. 69-70, Habermas irá afirmar que “... tanto as atividades não-lingüísticas como as ações de fala encarnam um saber proposicional; contudo, o modo específico de empregar o saber decide sobre o sentido da racionalidade, que serve como medida para o sucesso da ação. Se tomarmos como ponto de partida o uso não-comunicativo do saber proposicional em ações teleológicas, iremos detectar a idéia da racionalidade orientada para fins (Zweckrationalität) tal como foi elaborado na teoria da escolha racional. E se partirmos do uso comunicativo do saber proposicional em atos de fala, descobriremos a idéia da racionalidade orientada para o entendimento (Verständigungsrationalität), que numa teoria de significado pode explicitar apoiando-se nas condições para a aceitabilidade de ações de fala”.
97
razão comunicativa por ser processual, e por incluir o moralmente prático e o
esteticamente expressivo, é mais rica que a razão teleológica, que se reduz à
cognitivo-instrumental. É uma racionalidade que
“faz lembrar as antigas representações do logos na medida em que comporta
conotações da força não coercitivamente unificada, geradora de consenso,
de um discurso cujos participantes ultrapassam as suas opiniões a princípios
limitadas subjetivamente, a favor de um acordo racionalmente motivado. A
razão comunicativa expressa-se num entendimento descentrado do
mundo”198.
Essas conseqüências da teoria dos atos da fala, muito sumariamente
tematizadas, não pretenderam, em hipótese alguma, ser uma abordagem abrangente
da teoria da competência comunicativa habermasiana199. Como falamos acima,
estas considerações estão circunscritas, tão-somente, no que resulta imediatamente
relevante para a crítica da razão instrumental.
Sob esse prisma, da crítica da razão instrumental, há que considerar
que, tanto a natureza e a sociedade objetivadas quanto à autonomia, enquanto
autoafirmação da racionalidade com respeito a fins, são momentos derivados da
razão que se tornaram autônomos, em relação às estruturas de interação do mundo
da vida. Assim, a razão centrada no sujeito não é mais do que o resultado de uma
cisão e de uma usurpação, mediante a qual um momento subordinado, graças ao
processo de autonomização das diversas esferas de valor, na modernidade, destaca-
se de sua matriz, e assume o lugar da totalidade, sem poder assimilar a estrutura do
todo, ou o que é mais grave, impondo a dominação da parte sobre o todo. É nesse
sentido que Adorno e Horkheimer não perceberam a ironia que representou o
processo de diferenciação, no qual à medida que o potencial de razão comunicativa
foi libertado sob as formas de estruturas de mundos da vida modernos, os
198 J. HABERMAS. DFM, p. 291. 199 Para uma abordagem abrangente da teoria da competência comunicativa de Habermas, Cf. M. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 294s.
98
imperativos dos subsistemas econômicos e administrativos voltaram-se contra a
prática frágil do cotidiano, potenciando a dominação dos imperativos desses
subsistemas sobre os momentos não-emancipados da razão prática.
Horkheimer e Adorno, à medida que viam na razão instrumental
apenas os imperativos para a “autoconservação” do sujeito, não perceberam que são
as atividades coordenadoras da ação que asseguram à espécie humana a sua
manutenção através de atividades coordenadoras da ação de seus membros, e que
esta coordenação, em âmbitos centrais da existência, é mediada por um tipo de
comunicação que visa ao acordo. Isso significa que a reprodução da espécie exige,
do mesmo modo, o cumprimento de condições de racionalidade que somente estão
presentes na ação comunicativa. “Estas condições, segundo Habermas, se tornaram
perceptíveis na modernidade com a descentração do nosso entendimento do mundo
e a diferenciação de distintos aspectos universais de validade”200.
Conseqüentemente, se na modernidade as imagens religioso-metafísicas do mundo
perderam credibilidade, o próprio conceito de “autoconservação” é atingido por essa
mudança, uma vez que a integração normativa da ação cotidiana passa a exigir uma
orientação que não esteja prisioneira da subjetividade. Assim, o processo de
“autoconservação” na perspectiva descentrada, passa a exigir as condições da
racionalidade da ação comunicativa, pois torna-se dependente das “realizações
integrativas” do sujeito que coordenam suas ações mediante pretensões de validade
suscetíveis de crítica. Daí que a vida social se reproduz através de ações racionais
com respeito a fins de seus membros, e, simultaneamente, por uma vontade comum
ancorada na prática comunicativa201.
Sob essa perspectiva, o potencial de racionalidade comunicativa, que
somente pode ser liberado, na sua máxima expressão, com o advento das formas
modernas de mundo da vida, deve ser abordado, tanto ao que concerne a sua
200 TCA, vol. 1, p. 397. 201 “The social-life context reproduces itself both through the media-controlled purposive-rational actions of its members and through the common will anchored in the communicative practice of all individuals”. J. HABERMAS, TCA, vol. 1, p. 398.
99
mudança, quanto ao seu desenvolvimento, como simultaneidade. Ou seja, a
autonomização das esferas de valor não reteve, mas liberou o potencial aprisionado,
de cada uma das esferas de valor, resgatando validade própria para cada um dos
mundos: a ciência, ligada ao mundo da verdade factual, a moral, ligada ao mundo
social das normas e a arte ligada ao mundo subjetivo. Foi esse processo de
diferenciação, portanto, que possibilitou o surgimento de pretensões de validade
específicas, em relação aos quais os sujeitos podem se posicionar entre sim e não.
No processo de diferenciação, como afirma Sérgio Rouanet: “o indivíduo adquire
pela primeira vez condições de agir autonomamente, sem o peso inibidor da religião
e da autoridade, secular ou religiosa: as ações passam a ser coordenadas segundo os
critérios de racionalidade inerentes ao processo comunicativo, e não mais segundo
determinações heterônomas”202. Isso significa que há um equívoco na descrição
weberiana do processo de desencantamento do mundo, à medida que separa a
racionalidade substancial da racionalidade formal. Portanto, o desencantamento não
usurpou os conteúdos míticos, metafísicos e religiosos da tradição, tornando-os
impotentes frente à racionalidade teleológica; pelo contrário, a defesa da
racionalidade comunicativa, exatamente por causa do seu caráter processual, está
“diretamente implicada no processo de vida social e que os atos de
compreensão tomam conta dos atos de um mecanismo coordenador da ação.
[E mais] O tecido de ações comunicativas alimenta-se de recursos do mundo
da vida e é, ao mesmo tempo, o medium através do qual se reproduzem as
formas de vida concreta ... Por isso pode reconstruir o conceito hegeliano de
totalidade do contexto da vida independentemente das premissas da filosofia
da consciência”203.
Dessa forma, o caráter de simultaneidade e interdependência entre os
dois processos de racionalização, o cultural e o social, possibilita visualizar que, à
medida que o avanço do primeiro se fez presente, o segundo foi ganhando corpo e
se desenvolveu na esfera do Estado e da economia, passando a ser regido por uma
202 Sérgio P. ROUANET. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed., 1998, p. 340. 203 J. HABERMAS. DFM, p. 292.
100
lógica própria, independente do processo de coordenação comunicativa das ações,
pelo meio do dinheiro e do poder, tem como conseqüência a reificação e a
burocratização das relações vitais. Essa lógica de dominação da razão instrumental,
sem precedente, radicada na esfera do sistema, ganhou vulto, e se ampliou, a ponto
de seus tentáculos ameaçaram anexar a sua lógica de imperativos funcionais todas
as esferas do mundo da vida. A essa ameaça Habermas denomina de “colonização
do mundo da vida”. Ela progressivamente substitui a coordenação comunicativa das
ações pela lógica funcionalista da razão instrumental. Mesmo que não seja uma
batalha entre forças do bem e do mal, com um final previamente definido, é
necessário que sejam ampliadas e criadas novas condições simétricas de diálogo
para que as “reservas” de racionalidade comunicativa, hauridas do mundo da vida,
possam resistir às investidas da razão instrumental.
A questão que se coloca, agora, é: com o conceito de razão
comunicativa habermasiano, não se estaria criando uma nova versão idealista para a
filosofia? O próprio Habermas levanta a questão de saber se, com este conceito e
com sua força transcendente de exigências universais de validade, não se estabelece,
novamente, um idealismo que se distancia da filosofia da práxis. Um mundo da vida
que se reproduz mediante o agir orientado ao entendimento não se distancia dos
seus processos de reprodução material? De fato, materialmente, ele se reproduz
mediante objetivos preestabelecidos pelos que intervém nesse mundo. Contudo,
essas ações instrumentais intercruzam-se com ações comunicativas, à medida que
executam planos de outros participantes e com eles interagem no processo de
comunicação. Por esta via, “também são associados ao meio do agir orientado para
a comunicação problemas da esfera do trabalho social. Assim, também a teoria do
agir comunicativa espera que a reprodução simbólica do mundo de vida esteja junta
com a reprodução material daquele”204. Ou seja, não se trata de um modelo idealista
de razão: esta tem o seu lugar no próprio mundo da vida, pois está radicada nas
estruturas intersubjetivas mediadas pela linguagem, e reclamam o uso da razão em
204 J. HABERMAS. DFM, p. 297.
101
todas as dimensões da vida. Tal reclame, pressupõe a autonomia de todos os que se
colocam sob o horizonte da comunicação, porque estão aptos para se posicionar
frente às esferas axiológicas de valor, e sobre elas chegar a um entendimento mútuo,
livre de coação. Isso significa que os pressupostos da racionalidade comunicativa
não fogem, pelo contrário, reafirmam o ideal emancipador da razão Iluminista.
Por conseguinte, a diferença entre razão comunicativa e razão
instrumental não pode ser estabelecida, “sem resistência”, sob a hegemonia da
“autoconservação”, pois ela não se refere a um sujeito que se conserva relacionando
com os objetos na sua atividade representativa e na sua ação, nem a um sistema que
mantém sua integridade imune ao seu meio. A razão comunicativa se refere a um
mundo da vida simbolicamente estruturado, que se constitui mediante as
contribuições interpretativas de seus membros e que só se reproduz através da ação
comunicativa. Assim, “A razão comunicativa não se limita simplesmente a dar
como prontos o sujeito ou o sistema; pelo contrário, ela participa na estruturação do
que deve ser preservado”205. A perspectiva utópica de reconciliação e liberdade tem
seu fundamento nas condições mesmas da socialização comunicativa dos
indivíduos, e é erigida no interior dos mecanismos lingüísticos da reprodução da
espécie.
Frente à suspeita de que a razão comunicativa aparece como uma
‘razão pura’, que num momento seguinte se encarnasse na vida, isto é, só depois
vestisse a roupagem lingüística, Habermas afirma que se trata de uma razão
encarnada em contextos comunicativos das estruturas do mundo da vida. Ou seja,
na medida em que planos de ação de atores diversos se envolvem no uso da língua,
tendo em vista a comunicação no tempo histórico e sobre o espaço social, tomam-se
posições do tipo “sim/não”. Essas posições reclamam validade, podem ser
criticadas, e são critérios para a prática cotidiana. Assim, o reconhecimento
intersubjetivo de exigência de validade requerido pelo acordo comunicativo
proposto, possibilita a criação de uma rede de interação social no contexto do
205 TCA, vol. 1, p. 398.
102
mundo da vida. Por seu turno, essas exigências de validade têm uma dupla face:
enquanto exigências, transcendem todo o contexto local; porém, as decisões
tomadas têm que ser assumidas no aqui e no agora, e reconhecidas por todos os
concernidos, do contrário, inviabilizaria o acordo entre os participantes da interação
e impossibilitará a realização da cooperação. Assim, o momento transcendente de
validade universal acaba com toda a regionalização; o momento obrigatório de
exigências de validades aceita aqui e agora dá-nos a base de uma práxis ligada ao
contexto. Ou, como diz Habermas,
“de um lado, a validez exigida para as proposições e normas transcende
espaços e tempos; de outro, porém, a pretensão é levantada sempre aqui e
agora, em determinados contextos, sendo aceita ou rejeitada, e de sua
aceitação ou rejeição resultam conseqüências fáticas da ação”206.
O momento incondicionado, dentro do processo de compreensão,
significa que a validade exigida para as asserções e normas, transcende espaço e
tempo, porém, as exigências são levantadas no aqui e agora e são aceitas ou
recusadas com conseqüências factuais. É o que K. O. Apel denomina de
entrecruzamento entre a comunidade ideal e a comunidade real de comunicação.
Sob esse aspecto, a prática comunicacional torna-se reflexa, mas não como uma
reflexão pré-ligüística do sujeito do conhecimento. “Esta reflexão pré-lingüística-
solitária é substituída pela estratificação de ação e discurso inscrita na ação
comunicativa. Pois as pretensões de validade apresentadas factualmente remetem
direta ou indiretamente para argumentações com as quais podem ser trabalhadas e
eventualmente resolvidas”207.
Duas considerações podem ser extraídas do processo argumentativo:
primeiro, este se apresenta, antes de mais nada, como processo de argumentação,
sobre pretensão de validade, como o meio de reflexão do agir comunicativo, que
está livre da hipoteca objetificadora da filosofia do sujeito; segundo, ao estarem
206 PPM, p. 176. 207 J. HABERMAS. DFM, p. 298.
103
envolvidos numa argumentação, os participantes não podem deixar de supor,
reciprocamente, que as condições da situação ideal de discurso208 foram fielmente
cumpridas. Ou, como afirma Sérgio Rouanet, “se a comunicação se deu sem
interferências estranhas, e sem deformações subjetivas, podemos dizer que o
consenso foi alcançado racionalmente, porque se verificou através da argumentação
racional”209.
Sob esse aspecto, Habermas procura explicitar que a força da razão
comunicativa está sedimentada na busca da coesão, da compreensão intersubjetiva e
do reconhecimento mútuo. Assim, no seio desse universo, não é possível separar o
irracional do racional, não há um ponto arquimediano seguro, no interior do qual
possamos nos refugiar com a verdade e, através dele, olharmos os que jazem nas
sombras da ignorância. Qualquer violação do contexto de vida comunicacional não
atinge, apenas, o indivíduo isoladamente, mas reflete-se sobre a comunidade, e cuja
responsabilidade deve recair sobre ela. Essa idéia corrobora com o fato de que a
razão comunicativa, não apenas, está limitada contextualmente, mas que suas
possibilidades encontram-se mediatizadas, no tempo histórico e no espaço social,
pelas experiências que têm como centro o corpo. Seu potencial discursivo
confunde-se com os recursos do mundo da vida, que, enquanto saber intuitivo e a-
problemático, se oferece como suporte semelhante ao que a filosofia do sujeito
atribuía à consciência, como realizadora de síntese. Por conseguinte, essa razão, que
se expressa na ação comunicativa, faz a mediação com as estruturas comuns dos
mundos da vida, que só atingem as formas de vida particulares, mediante o agir
orientado ao entendimento, através do qual ela deve reproduzir-se. Eis porque essas
estruturas gerais, no processo histórico de diferenciação, podem se fortalecer. Nesse
sentido, temos, aqui, a chave para a compreensão do processo de racionalização do
208 Para Manfredo OLIVEIRA, tal situação ideal “... não é nem um fenômeno empírico, nem uma pura construção do espírito, mas simplesmente uma pressuposição mútua inevitável nos discursos. Nesse sentido, a situação ideal se manifesta como o fundamento normativo da compreensão lingüística: ela é antecipada e, enquanto antecipada, eficaz”. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 314. 209 Sérgio P. ROUANET. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed., 1998, p., 339. “Nesse sentido, a racionalidade pode ser vista como a capacidade dos atores e locutores de alcançarem um saber falsificável na tríplice dimensão do mundo objetivo, social e subjetivo”.
104
mundo da vida, e simultaneamente para a liberação concomitante do potencial de
razão, investido no agir comunicativo. Segundo Habermas, é essa tendência
histórica que possibilita explicar o conteúdo normativo da modernidade que está
ameaçado de autodestruição, sem recorrer às assunções da filosofia da história.
Ao propor uma saída para a crise da razão na modernidade, através de
um novo paradigma de razão, que emerge da dimensão comunicativo-pragmática da
linguagem, Habermas não intenta buscar, como vimos, um ponto de vista
extramundano, a partir do qual obtivesse um lugar privilegiado para espargir o olhar
sobre as contradições de um ethos em conflito, e lançar proferimentos infalíveis.
Pelo contrário, é no interior dos pressupostos universais da pragmática da
linguagem que se radica seu conceito de razão, mediante o qual se levantam
pretensões de validade que são, simultaneamente, dependentes de contexto e, ao
mesmo tempo, o transcendem.
Duas conseqüências podem ser abstraídas dessa mudança de
paradigma, para uma compreensão da crise da razão na modernidade.
Primeiramente: o debate em torno dessa crise não está numa simples decisão entre
uma posição universalista ou relativista. O que importa é colocar sob o mesmo teto
e pensar juntos, o universal e o particular, o empírico e o transcendental, o
contingente e o necessário. Como Habermas afirma: “O conceito de razão
construído sobre o pressuposto da atividade voltada ao entendimento livra-nos do
dilema de ter que escolher entre Kant e Hegel .... (Pois) não é mais preciso superar o
desnível transcendental entre o mundo inteligível e o mundo dos fenômenos através
de uma filosofia da natureza ou da história (...)”210. Isso significa que: a síntese, que
se postula, tem uma perspectiva falibilista. Pois, mesmo que o saber intuitivo dos
agentes da ação comunicativa tenha, como pressuposto, a totalidade do mundo da
vida, que se faz presente de forma pré-reflexa e difusa, no processo de tematização
210 J. HABERMAS. PPM, p. 178. “A razão comunicativa não é destituída de corpo, como se fosse a espontaneidade de uma subjetividade constitutiva de mundo, em si mesma alheia ao mundo, e também não constrange a história – reivindicada para a automediação absoluta de um espírito historicizado – sob uma teleologia que se fecha em círculo”.
105
desse saber, vêm juntas com o conteúdo, que é, simultaneamente idealizado e
efetivo, as pretensões de validade sempre criticáveis, e a capacidade dos agentes de
se orientarem por essas pretensões.
Com isso se descarta a perspectiva de fundamentação última de Apel.
Essa tomada de posição dirige-se rumo à especificidade da razão comunicativa,
como diz, Manfredo Oliveira “é que ela é, ao mesmo tempo, imanente, isto é, só
controlável em contextos concretos dos jogos de linguagem e instituições da vida
humana, mas, por outro lado transcendente, ou seja, é igualmente uma ‘idéia
reguladora’, na qual nos orientamos, quando criticamos nossa vida histórica”211.
Enquanto a filosofia transcendental apontou na direção da necessidade, a tônica da
reflexão do pensamento pós-metafísico volta-se para o terreno do contingente. Daí a
afirmação de Habermas de que idéias como univocidade, verdade, justiça,
sinceridade e imputabilidade, que encontram espaço e deixam seus vestígios no
ventre fértil da história, “não têm força formadora de mundo; podem ser tomadas,
quando muito, no sentido de idéias heurísticas da razão”212. É nesse sentido que se
pode compreender porque a razão comunicativa é considerada uma razão débil, que
coloca tudo sob a ótica do contingente, menos as estruturas do entendimento
lingüístico213.
A segunda conseqüência diz respeito à pergunta de Adorno: o que
resta do conteúdo normativo da metafísica, no “instante de sua queda”? Se a razão
não pode mais fazer uso dos conceitos universalizantes do idealismo, uma vez que
os limites da filosofia do sujeito sacrificam o momento do particular e do
contingente, ao universal e necessário ao mesmo tempo, essa mesma razão, não
pode se render ao desafio de pensar esses conteúdos normativos, a partir da medida
dos ideais que ela mesma tornou possível, no Iluminismo. A razão não pode se
render à facticidade conservadora do status quo, pois seria antecipar a vitória do
211 M. OLIVEIRA. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p.347. 212 J. HABERMAS. PPM, p.179. 213 Ibid., p. 152 e 176.
106
irracionalismo. Só a razão é crítica, o suficiente, para reconhecer os seus limites,
mas, acima de tudo, as possibilidades de superação desses limites. Isto significa
dizer que, ou bem se toma uma matriz mais ampla para a análise da razão na
Modernidade, ou corre-se o risco de reduzir a razão a, apenas, uma das suas
dimensões. Com isso, nega-se o potencial emancipador da razão, condição para que
se possa, pelo menos, pensar na possibilidade de uma sociedade emancipada.
Eis, pois, o ideal presente no conceito habermasiano de racionalidade:
a dimensão crítica da razão pode ser recuperada, pois ela continua viva e permanece
presente nas estruturas da intersubjetividade lingüísticas. Portanto, não há por que
se render ao desafio da metafísica negativa. Mesmo na qualidade de uma razão
“débil”, “A razão comunicativa é uma casca oscilante – porém, ela não se afoga no
mar das contingências, mesmo que o estremecer em alto mar seja o único modo de
ela ‘dominar’ contingências!”214. Noutros termos, o “resíduo” de incondicionado
presente na razão comunicativa, por não ser algo de absoluto, não pode, nem
mesmo, fundamentar uma “metafísica negativa”. Porém, essa sua condição de ser é
que possibilita a asseveração da pluralidade, da diferença e da contradição, à
medida que se coloca como mediadora e intérprete do diálogo entre o saber dos
experts e a práxis cotidiana, carente de orientação.
A razão comunicativa não anuncia nem um mundo abandonado por
Deus, nem se coloca como um consolo. Seu escopo, que, dialeticamente é sua
grandeza e seu limite, está em procurar analisar as condições indispensáveis ao
entendimento em geral e, a partir daí, desenvolver a idéia de uma subjetividade
íntegra, capaz de possibilitar um entendimento não coagido entre os indivíduos. O
ideal de uma intersubjetividade intacta deve ser entendido tão somente como a
revelação de condições simétricas de reconhecimento recíproco livre. “Entretanto,
esta idéia não deve ser carregada com as cores da totalidade de uma forma de vida
reconciliada e projetada no futuro nos moldes de uma utopia; ela contém nada mais,
214 Ibid., p. 181.
107
mas também nada menos, do que a caracterização formal de condições necessárias
para formas não antecipáveis de uma vida não fracassada”215.
Com efeito, se a razão comunicativa não anuncia o absurdo de um
mundo abandonado por Deus, nem levanta a pretensão de consolar quem quer que
seja, o que postula, Habermas, com o conceito de razão comunicativa? É patente, no
pensamento desse filósofo, a presença de uma atmosfera otimista, se bem que
ponderada, em relação aos ideais emancipatórios do pensamento Iluminista, bem
como suas repercussões para a constituição do ethos moderno. Sem seguir uma
ordem hierárquica de precedência de problemas, pode-se afirmar, lato sensu, pelo
menos, quatro desafios que estão presentes na teoria da modernidade de Habermas,
com as quais ele dialoga, procurando uma saída que reconheça a dignidade da razão
que plasmou esse ethos: 1) argumentar, contra Weber, que o processo de
racionalização cultural não foi absorvido pela racionalidade societária, dado que as
formas de interação lingüísticas presentes no mundo da vida ainda resistem às
ingerências do sistema sobre suas formações culturais; 2) não capitular diante da
dialética negativa de Adorno, que anuncia a ilusão do progresso de um mundo
administrado, e não percebe os sinais de emancipação na racionalização cultural; 3)
suprir as lacunas das teorias objetivistas e contextualistas. Os primeiros, que
defendem a existência de uma realidade independente para a qual convergem nossas
interpretações, pois terão que levar em conta o medium da linguagem. Os
contextualistas, ao defenderem que qualquer descrição possível é, apenas, uma
construção particular da verdade, pois não podem defender suas teses sem cair em
contradição performativa.
À medida que propõe uma saída às aporias da filosofia do sujeito,
Habermas está a reafirmar a confiança na cultura ocidental, uma cultura que se quis
compreender, não obstante suas crises, sob o signo da razão. Se no processo de
racionalização o avanço da racionalidade instrumental, que reduz a objetos
215 Ibid., p. 182. Em TCA, vol. 1, p. 73. Habermas chamará de “utopismo”, o erro da modernidade de pensar que com os conceitos de compreensão descentrada do mundo e de racionalidade procedimental, fosse possível derivar, simultaneamente, o “ideal of a completely rational form of life”.
108
manipuláveis, todas as esferas da vida humana, significou a precedência desse
modelo limitado de racionalidade, a própria consciência desse processo de
manipulação e dominação revela que, também, com a racionalização, uma outra
dimensão da razão se tornou presente: a dimensão racional da práxis comunicativa.
Muito embora essa práxis seja uma dimensão constante da vida humana, foi a
modernidade que liberou, das hipotecas das tradições culturais, o processo
discursivo de validade, pelo qual o sujeito, conscientemente, busca criar, mediante
procedimentos discursivos de argumentação, as condições de sua emancipação.
Nesse processo, não é mais o sujeito solipsista que, a partir da razão subjetiva
autocentrada, manipula o mundo em sua volta. O conceito de razão comunicativa
resgata a autonomia de cada sujeito, que se coloca sob o horizonte da comunicação,
como sendo a condição de possibilidade sobre a qual se realiza a emancipação.
Mediante o resgate dessa autonomia, é reconhecido o direito de cada um de se
colocar, livremente, como parceiro na comunicação, levantando pretensões de
validade, que não significam monopólio, mas que são submetidas à crítica, e tornam
factível o reconhecimento mútuo de sujeitos entre si, condição para a realização do
ideal de uma sociedade emancipada.
Portanto, a pertinência e a força do paradigma de racionalidade
comunicativa, fundado na intersubjetividade lingüística, reside na própria decisão
em favor da razão216, pois, segundo Siebeneichler, “A decisão em prol da razão
equivale à antecipação de uma sociedade emancipada, ou seja, à antecipação da
maioridade realizada dos homens”217. Desse modo, frente ao desafio da negação da
razão, ou da subsunção das dimensões da razão, apenas, à dimensão analítico-
instrumental, acreditar na razão que, mediante uma avaliação crítica das pretensões
de validade intersubjetivamente reconhecida, libera as forças emancipatórias da
razão. Nesse sentido, como diz Sérgio Rouanet, parafraseando Pascal, é melhor
216 Segundo Marconi PEQUENO, “Com o conceito de razão comunicativa, Habermas acredita fundar um racionalismo novo capaz de interagir como o pensamento sem, com isso, colocar em risco a dignidade da razão”. “O Sujeito e a Questão da Razão Comunicativa”. In: Revista de Filosofia. Dezembro/1991, p. 86. 217 F. B. SIEBENEICHLER. Jürgen Habermas: Razão Comunicativa e Emancipação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2a. ed., 1990, p. 65.
109
apostar em Habermas, pois, “se ganharmos, ganharemos tudo; se perdermos, não
perderemos nada, porque não podemos ficar mais pobres do que já estamos”218.
218 Sérgio P. ROUANET. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 5a ed., 1998, p. 347.
110
CONCLUSÃO
Após esse percurso realizado numa das nuances do pensamento de
Habermas é possível, à guisa de conclusão, retirar alguns elementos indicativos de
que a inflexão dada por esse filósofo ao problema da razão e da emancipação, na
sua teoria da Modernidade, vincula-se à tradição da cultura ocidental que, desde as
suas origens, procurou compreender-se sob signo da razão, e encontrou, na filosofia,
enquanto a expressão do logos demonstrativo, um locus privilegiado de amparo e de
resistência. Amparo, frente à ameaçante necessidade inexorável da natureza, da
sucessão do mesmo; resistência, diante às tentativas de se tomar a cultura como algo
de antemão definido ou conduzido pela vis a tergo, sob o olhar lancinante do
destino.
É visível o esforço do pensamento de Habermas para manter viva essa
tradição. Pois, se é verdade, segundo a máxima, que tradição só permanece viva se
ela se recria incessantemente, é verdade, também, que uma transformação
indiscriminada operada numa tradição pode colocar em risco a sobrevivência da
própria tradição cultural. Sob essa perspectiva mais ampla, é possível lançar um
olhar sobre as contribuições desse pensamento à filosofia ocidental e perceber que a
sua preocupação primeira está em procurar resgatar, em meio à crise que se abateu
sob o ethos moderno, aqueles vestígios de razão que, se outrora revelaram-se tão
saliente, a ponto de serem proclamados com a maioridade realizada dos homens
111
(Kant) ou o tempo privilegiado, kairós, no qual a consciência realiza
terminantemente a experiência de si mesma (Hegel), agora tornaram-se quase
imperceptíveis; como que foram apagados os seus rastros, e a história humana foi
lançada à sorte desenfreada de uma cultura de mercado, que regrediu ao estágio
primitivo, no qual a realização da existência se dá, não na busca do sentido da
descoberta do outro, da solidariedade, ou da criação de algo que seja permanente,
como expressão da determinidade da consciência de si, mas no mero consumo pelo
consumo, atingindo sua máxima expressão na supressão da permanência do objeto.
Sob o prisma da crise da razão na modernidade é que se pode perceber
a grandeza do esforço de Habermas em resguardar as conquistas da razão que
tomou corpo no ethos iluminista. Nesse intento, ele resgata, por um lado, a partir do
processo de reconstrução do caminho da razão no ocidente, o liame que une as
manifestações da racionalidade moderna a toda tradição do pensamento ocidental, e,
por outro, realiza uma crítica a toda tentativa de abandonar as conquistas do
esclarecimento, antes mesmo de mostrar que seus potenciais foram esgotados.
Quando se postula abandonar essas conquistas, sem que antes se pergunte pela sua
atualidade, corre-se o risco de dar um salto na direção de algo que se apresenta, tão-
somente, como um espectro que nos remete a um futuro vazio. O “projeto do
esclarecimento” ainda está por ser realizado; eis, pois, o que ele pretende defender
com sua teoria da modernidade.
Destarte, à guisa de conclusão, retomamos os três elementos
constitutivos dessa teoria – modernidade, racionalidade e emancipação – para
procurar mostrar que é mediante a elaboração de um conceito mais lato de razão – a
razão comunicativa – que se inscreve o que Habermas denominou de certificação
do novo tempo, a saber: a relação interna entre modernidade e racionalidade.
Portanto, sem maiores pretensões, com a retomada desses três elementos, não se
está postulando dar um arremate conclusivo a essa teoria, mas, tão-somente,
recuperar os elementos significativos dessa relação.
112
Quanto à recuperação do conceito de modernidade, desde o início
deste trabalho, perseguiu-se o intento de compreender a lenta e custosa reconstrução
filosófica desse conceito realizada por Habermas, e, por extensão, acompanhar a
defesa desse “projeto”, cuja dinâmica interna irrompe como um reflexo de uma
atualidade em contradição, resistente às sínteses apressadas que propugnam a sua
despedida.
Submetendo esse conceito à reflexão filosófica, Habermas procura
recuperar suas categorias constitutivas, para, a partir dessa análise, afirmar que o
“projeto da modernidade” está “inacabado”. Nesse sentido, enquanto conceito
filosófico, a modernidade recupera sua dignidade de ser um “tempo” no qual a
estrutura representativa do tempo perde sua força repetitiva, própria do simbolismo
mitológico, para ser recuperada numa atualidade temporal, revestida de uma
novidade qualitativa, de forma que o tempo presente venha a assumir a sua
dignidade, mediante “uma estrutura axiológica capaz de desqualificar a primazia do
antigo e pôr em questão a instância normativa de um passado fixado na identidade
de uma origem, diante da qual o presente deva abdicar da sua novidade”219.
Em Habermas, a reflexão filosófica sobre o conceito de modernidade
se situa no âmago da expressão objetivada do espírito subjetivo: uma sociedade em
conflito que, não obstante os avanços, cada vez mais rápidos, no âmbito da ciência e
da tecnologia, mostra-se impotente diante da perda de ideal, de sentido, e incapaz de
forjar um projeto humanizador das relações sociais. Por conseguinte, somente dessa
atualidade em conflito é que a filosofia, situada no presente, se instaura, por um
lado, como reflexão capaz de conferir ao presente a dignidade de instância de
compreensão e, por outro, enquanto crítica, com condições de julgá-lo à luz dos
valores hauridos desse mesmo presente, pois, parafraseando Hegel, só a filosofia
está apta para captar o tempo no conceito, por isso ela torna-se a enteléquia da
civilização moderna.
219 Lima VAZ, “Religião e Modernidade Filosófica”. Síntese Nova Fase. 53 (1991), p. 149, grifos do autor.
113
É sob esse aspecto, o da busca de significado do “novo tempo”, que se
estabelece a relação interna entre modernidade e racionalidade. Daí o segundo
elemento, indispensável para a compreensão da teoria habermasiana: a razão
comunicativa. Esta, em sendo a pedra de toque da defesa do “projeto inacabado”,
advoga que ele ainda não se esgotou, exatamente porque, enquanto potencial de
razão que foi liberado, na sua máxima expressão, com o advento das formas
modernas de mundos da vida, conseqüentemente com o processo de autonomização
das diversas esferas de valor, seu esgotamento somente poderá ser postulado se
antes for demonstrado que as instituições históricas sobre as quais essa razão tomou
corpo já não se deixam mais compreender por este conceito. Se isso for
demonstrado, uma nova mudança de paradigma torna-se indispensável para se
pensar as contradições da sociedade contemporânea. Do contrário, procurar uma
saída que não responda, a partir das condições criadas pela modernidade, as suas
próprias contradições é forjar artifícios para fugir aos seus desafios, por um lado, e
perder o vínculo interno que a prende à racionalidade, por outro.
Sob esse prisma é que se compreende a relevância do conceito de
razão comunicativa, dado que ele surge como uma resposta à necessidade de um
tempo histórico e de um espaço social determinados, que não mais quis se
compreender a partir do seu passado ou da “razão da autoridade”. Pelo contrário,
agora, esse novo ethos descobriu-se como um tempo no qual a autoridade reside e
deve ser buscada na própria razão.
Quanto às contradições geradas por esse novo ethos, em cuja dialética
procurou-se equilibrar tanto o momento repressivo quanto o momento emancipador
da razão, o conceito de razão comunicativa habermasiano procura enfrentá-las e dar
uma resposta sem fugir às condições que o processo de racionalização tornou
possível: a liberação do potencial comunicativo da razão, presente nos diversos
mundos da vida.
Enquanto razão autônoma, a razão comunicativa é uma razão crítica,
que acompanha o progresso da racionalidade instrumental e procura mostrar que o
114
avanço hegemônico da economia de mercado globalizado, planificador das relações
sociais sobre os diversos mundos da vida, não é condição, nem significa o progresso
para uma sociedade humanizada. Para tanto, é necessário que sejam resgatados os
ideais básicos de cidadania, de direitos humanos e do respeito pela diversidade
cultural. Eis, pois, a dimensão não idealista da razão comunicativa. Por estar situada
na prática e por estar fundada num paradigma dialógico, essa dimensão da razão
está sempre aberta ao diálogo com as outras formas de racionalidade que a clivagem
da razão na modernidade tornou possível. Nesse diálogo, ela procura desmascarar as
falsas racionalidades, pois, somente mediante o confronto dialógico é que se pode
chegar ao verdadeiro consenso, sobre como queremos construir uma sociedade mais
humanizada.
É sob esse aspecto que é possível compreender o terceiro elemento da
teoria da modernidade de Habermas: a questão do sentido e a dimensão
emancipadora da razão comunicativa. Essa dimensão se patenteia como o elemento
impulsionador da relação interna entre a modernidade e a racionalidade. É mediante
um conceito de interação com vistas ao entendimento, que a idéia de emancipação
se instaura no coração da razão comunicativa. Ela cria as condições para que todos
os indivíduos participem da discussão dos objetivos e estejam envolvidos na
consecução dos processos sociais que direta ou indiretamente venha a afetá-los.
Sob esse prisma, a emancipação da sociedade não pode ser vista como
um processo que caminha pari passu com o desenvolvimento das forças produtivas.
Por conseguinte, se é visível o progresso da razão instrumental, nos âmbitos da
ciência e da técnica, por mais avançado que esteja, por si só ele não garante a
realização da tão sonhada “vida boa”. A realização das necessidades básicas à
existência, necessidade fundamental à sobrevivência da espécie, deve vir acolitada
pela criação de condições sociais e históricas que assegurem um diálogo livre
intersubjetivo. Tais condições, que se encontram presentes no mundo da vida,
devem ser resgatas mediante o diálogo não coercitivo, antecipatório à idéia de uma
intersubjetividade intacta, capaz de criar condições para um entendimento sem
115
coerção, tanto dos indivíduos no seu relacionamento recíproco, como também da
identidade de um indivíduo que se entende consigo mesmo. Pois, nas palavras de
Habermas, “Intersubjetividade intacta constitui a manifestação de condições
simétricas de reconhecimento recíproco livre”220.
Isso não significa que a prática comunicativa esteja imune aos
desafios dos conflitos sociais, em torno dos quais estão envolvidos interesses
antagônicos. Pelo contrário, ela constitui, mutatis mutandis, como que uma ilha de
liberdade, na qual a busca da superação dos conflitos se dá mediante o diálogo, em
meio a uma prática social predominantemente repressiva. Nesse sentido, ao
reconhecer na prática comunicativa a possibilidade de serem resgatados os ideais
iluministas de racionalidade, emancipação, autonomia, liberdade, frente a uma
modernização que avança autonomamente, Habermas, mediante o conceito de razão
comunicativa, procura assegurar que, não obstante terem sido “recalcados” pelos
ideais da sociedade de consumo do “capitalismo tardio”, os “impulsos”
emancipadores desses ideais não foram destruídos: estão na “clandestinidade”. É
por isso que se pode resguardar, ainda, um cifra de esperança: é necessário
continuar admitindo um desenvolvimento para melhor. Entretanto, “esta idéia não
deve ser carregada com as cores da totalidade de uma forma de vida reconciliada e
projetada no futuro nos moldes de uma utopia; ela contém nada mais, mas também
nada menos, do que a caracterização formal de condições necessárias para formas
não antecipáveis de uma vida não fracassada”221.
Essas considerações sobre a teoria da modernidade de Habermas,
conspiram na direção de se questionar: se, e até que ponto, essa teoria, de fato, faz
justiça aos ideais emancipadores da razão iluminista, à medida que reascende a
esperança de uma mudança na sociedade? Ou se estamos diante de um modelo
analítico, que, para não capitular frente à defesa pragmática, de que “não há nada
220 J. HABERMAS. PPM, p. 182. 221 Ibid., p. 182
116
para emancipar”222, e da Dialética Negativa de Adorno, prontamente reconhece o
status reificador do avanço da racionalização sistêmica sobre o mundo da vida, e
busca na racionalização cultural, mediante o conceito da razão comunicativa, uma
rememoração de possibilidades latentes de esperança de emancipação, que ressoam
tão-somente como consolo, frente a um mundo no qual o alento apenas confirma a
preocupação de W. Benjamin de que “... esse inimigo ainda não parou de
vencer”223?
Sob esse prisma, uma última consideração que gostaria de fazer sobre
a teoria habermasiana da modernidade, é no sentido de levantar uma questão a
respeito do seu conceito de razão. Não estaria este conceito carregando um estigma,
que nos parece ser um limite: é uma dimensão da razão que se apresenta, apenas,
como resistência frente à ameaça de uma outra dimensão da razão – sistêmica – que,
a olhos vistos, vai minando as possibilidades da realização do ideal de uma
sociedade emancipada?
Essa idéia de razão comunicativa como resistência pode ser
encontrada, em grandes linhas, em L. Avritzer224. Para este, o intento de Habermas
é mostrar que o projeto da modernidade pode ser defendido, desde que se descarte o
legado iluminista, segundo o qual o progresso moral é decorrência da aplicação,
neste campo, dos princípios das ciências naturais, por um lado, e, por outro, a
crença de que a evolução da ciência com vistas ao controle técnico da natureza e a
evolução dos sistemas econômicos podem ser compreendidos enquanto processos
empíricos de ampliação da racionalidade disponível. Por conseguinte, quando
Habermas faz referência à questão da moral e da ciência, ele não recorre
diretamente a Kant, Hegel e Marx, e sim, a Weber. Os motivos que o levam a
222 “A utopia pragmática não é então, aquela em que a natureza humana tenha sido liberta ... Pois nós queremos narrativas acerca de um cosmopolitanismo crescente, apesar de não querermos narrativas acerca da emancipação. Pois nós pensamos que não há nada para emancipar ...”. Richard RORTY. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Trad. Marcos. A. Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará 1997, p.283-284. 223 Walter Benjamin. “Teses sobre Filosofia da História”. In.: KOTHE, Flávio R. (org.) Walter Benjamin. 2. ed. Trad. Flávio R. Kothe. São Paulo: Ática, 1991. (Col. Sociologia). 224 Leonardo AVRITZER. “Jürgen Habermas: Razão de uma Modernidade Antecipada”. Síntese Nova Fase, 49 (1990), p. 71-83.
117
recorrer a Weber, para lançar as bases da sua teoria é porque ele pretende defender
“uma modernidade despida das dicotomias religião/ciência e pré-
capitalismo/capitalismo”225. Que não busca suas origens nem nas filosofias do
século dezoito, nem na perspectiva evolucionista do século dezenove. Assim, o
legado weberiano cumpre a função de lançar para um momento histórico anterior ao
século dezoito a emergência desse novo tempo, compreendido como a dissolução
das imagens metafísico-religiosas do mundo.
Destarte, ao antecipar a modernidade, Habermas a coloca em
diacronia com o surgimento e consolidação do mercado, ao mesmo tempo em que
atribui o seu impulso inicial ao surgimento de estruturas da consciência que
tomaram corpo no plano da tradição cultural, diferenciando, assim, dois tipos de
racionalidade. A primeira, racionalidade comunicativa, associada à emergência das
esferas axiológicas de valor, base de sustentação do novo ethos e ligada à interação
social. A segunda, racionalidade sistêmica, está diretamente vinculada ao
desenvolvimento da ação racional com respeito a fins, tendo como conseqüência a
burocratização e a coisificação das relações sociais, com predominância do dinheiro
e do poder. O limite dessa teoria está em associar o surgimento do Estado e da
economia ao desenvolvimento do segundo tipo de racionalidade, e todo o potencial
de comunicação e de emancipação, na esfera da razão comunicativa. “Habermas, ao
cindir a modernidade, despe-a desde as suas origens, do potencial de emancipação
inerente à esfera do trabalho”226. O que significa dizer que, na sua teoria, o potencial
emancipador da esfera do trabalho está negado, e que as relações dimanadas do
mercado não contém potencial emancipatório.
As conseqüências dessa clivagem operada no coração do “projeto”
que se pretende defender, tornam-se “um exercício de resistência de forças isoladas
numa trincheira isolada, cujo poder de força já não é mais capaz de decidir a
225 Ibid. p., 74. 226 Ibid., p. 81. “A obrigação de tornar esta esfera estanque em relação à da comunicação, obrigação decorrente da antecipação da modernidade, implica negar qualquer possibilidade de emancipação dos trabalhadores. Mas importante do que discutir se tal possibilidade existe ou não é perceber a conseqüência da sua negação para uma perspectiva da modernidade”. Ibid. p., 81.
118
batalha”227. Se é assim, não há como não concordar com os argumentos de L.
Avritzer contra a teoria da modernidade de Habermas. No entanto, há que
considerar o seguinte aspecto: o limite dessa teoria pode ser o de ter deixado
exposto um flanco, de ter considerado a razão comunicativa apenas como uma razão
débil, “uma casca oscilante”228 e quase sem defesa. Porém, não será essa sua
grandeza, por não postular um modelo de razão absoluto, que antecipasse todas as
saídas da crise, que se lançasse numa empresa suicida de uma emancipação
salvacionista? L. Avritzer fala de “forças capazes de vir instaurar o novo”. Porém
não diz qual é o novo e, menos ainda, quais são essas forças.
Portanto, não obstante a pertinência desse indicativo de L. Avritzer,
não pode ser esquecido que uma das principais características da Modernidade,
senão a mais importante, é exatamente a autonomia da razão. Nesse sentido, cumpre
ao filósofo, mediante o uso público da razão autônoma, ser aquele que procura ir à
frente, abrindo uma trilha no denso bosque da existência, porém, não antecipa que
adiante haverá uma clareira ou um abismo. Apenas está consciente de que se for um
abismo, este terá que ser contornado, passos terão que ser recuados, novos caminhos
terão que ser abertos; quanto à clareira, essa terá que ser construída, não de acordo
“com o modelo da realização de fins visados, mas significa principalmente o surgir
espontâneo, não controlável teleologicamente, a partir dos esforços cooperativos,
falíveis e sempre fracassados, que procuram eliminar ou atenuar os sofrimentos de
criaturas vulneráveis”229.
Penso que a razão comunicativa, mesmo que seja apenas como
resistência, veio nos mostrar que ainda há possibilidade de sermos agentes, em meio
a uma sociedade globalizada, na qual nos pensamos “livres”, por termos acesso, em
“tempo real”, a tudo o que o mercado produz. Porém, só virtualmente livres porque,
sem nome e sem rosto, parecemos mais como que peças descartáveis de uma
engrenagem desgastada pela repetitividade do mesmo: um futuro que ressurge como
227 Ibid., p. 82. 228 PPM, p. 181. 229 PPM, p. 182.
119
algo construído com resíduos dos refugos do passado. Por conseguinte, frente ao
mundo do sistema, a razão comunicativa faz ver que há um mundo da vida, no qual
podemos resgatar o sonho de uma humanidade emancipada, pois nele podemos nos
sentir vizinhos, amigos, solidários, senhores da nossa vontade, de nossos desejos e
dos nossos sonhos, principalmente quando compartilhados. É um mundo familiar
onde todos se sentem reconhecidos, individualizados, com nome e com rosto.
Destarte, mesmo que seja apenas como resistência, nesse mundo podemos dizer
como o poeta “faz escuro, mais eu canto!”
120
ABSTRACT
The objective of this Thesis is to make an interpretation, reading
of the Theory of Modernity by Jürgen Habermas. The postulate of this Theory
is that the process of Rationalization established an inseparable inner relation
between Modernity and Rationality. This inseparability is rooted in the
comprehension that Rationalization made possible the liberation of cognitive
contents and types or specific rationalities. And these can only be
apprehended by means of a wider concept of Reason: the Communicative
Reason. This rich and meaningful viewpoint tries to overcome the limits of
the so called Philosophy of Subjectivity, which, in its turn expresses the
monological relation between Subject and Object, considering the world on
an egocentrical way. It is by means of this dialogical rationality perspective
that, either the dignity of Modernity, which consists of independent values
differentiation, either this new Reason model emancipating sense, which rests
upon its unity regaining, manifests it self, as a result of a processing dialogue,
in search of understanding, as a paradigm of intercomprehention among
subjects.
121
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