qual adulto qual comunidade 2004

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CENTRO DI FORMAZIONE “PAULO FREIRE” Convegno Dare la parola. L’educazione degli adulti per l’equità e l’inclusione sociale Milano, 24 Settembre 2004 QUAL ADULTO? QUAL COMUNIDADE? UMA PERSPECTIVA FREIRIANA (Notas para um debate) Moacir Gadotti (*) Paulo Freire escreveu um livro com o título “Pedagogia da pergunta”. Creio que é uma boa opção metodológica escrever algumas notas para um debate na forma de perguntas, inspiradas no título dado para esse colóquio. A ordem das perguntas foi aparecendo na medida em que eu ia respondendo. Contudo, creio que elas podem ser lidas a partir de qualquer ordem. São apenas perguntas. Perguntas que me faço como educador de jovens e de adultos. Eu não tenho todas as respostas, mesmo depois de 43 anos de magistério. Aliás, tenho mais perguntas do que respostas. - Que adulto? Que paradigma? Prioridade ao adulto mais necessitado, mais excluído, que precisa ter acesso à educação básica e à formação cidadã, democratizando a informação e a tecnologia, a partir de uma visão crítica da sociedade atual, como sociedade essencialmente injusta e excludente. A conscientização ainda é o tema gerador central da educação de adultos. Paulo Freire foi um dos grandes inspiradores do paradigma da educação popular. Entre as intuições fundamentais deste paradigma podemos destacar: 1 ª - a educação como produção e não meramente como transmissão do conhecimento; 2 ª - a defesa de uma educação para a liberdade, pré-condição da vida democrática; 3 ª - a recusa do autoritarismo, da manipulação, da ideologização que surge também ao estabelecer hierarquias rígidas entre o professor que sabe (e por isso ensina) e o aluno que tem que aprender (e por isso estuda); 4 ª - a defesa da educação como um ato de diálogo no descobrimento rigoroso, porém, por sua vez, imaginativo, da razão de ser das coisas; 5 ª - a noção de uma ciência aberta às necessidades populares e 6 ª - um planejamento comunitário e participativo. A qualidade em educação de adultos deve ser medida pelo atendimento às suas necessidades educacionais e culturais. Não se trata de “repassar” para eles um saber já (*) Moacir Gadotti, doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Genebra, é professor da Universidde de São Paulo e Diretor do Instituto Paulo Freire em São Paulo (Brasil). Escreveu vários livros. Entre eles: Convite à leitura de Paulo Freire (traduzido em japonês, espanhol, italiano, inglês), A educação contra a educação (francês e português), Pedagogia da práxis (português, espanhol, inlgês), História das idéias pedagógicas (português, espanhol), Perspectivas atuais da educação, Pedagogia da Terra e Os mestres de Rousseau. Seu livro Paulo Freire: uma biobibliografia, com cerca de 800 páginas, é o trabalho mais completo disponível sobre a vida e a obra de Paulo Freire. 1

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Qual Adulto Qual Comunidade 2004

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  • CENTRO DI FORMAZIONE PAULO FREIREConvegno Dare la parola. Leducazione degli adulti

    per lequit e linclusione sociale Milano, 24 Settembre 2004

    QUAL ADULTO? QUAL COMUNIDADE?UMA PERSPECTIVA FREIRIANA

    (Notas para um debate)

    Moacir Gadotti (*)

    Paulo Freire escreveu um livro com o ttulo Pedagogia da pergunta. Creio que uma boa opo metodolgica escrever algumas notas para um debate na forma de perguntas, inspiradas no ttulo dado para esse colquio. A ordem das perguntas foi aparecendo na medida em que eu ia respondendo. Contudo, creio que elas podem ser lidas a partir de qualquer ordem. So apenas perguntas. Perguntas que me fao como educador de jovens e de adultos. Eu no tenho todas as respostas, mesmo depois de 43 anos de magistrio. Alis, tenho mais perguntas do que respostas.

    - Que adulto? Que paradigma?

    Prioridade ao adulto mais necessitado, mais excludo, que precisa ter acesso educao bsica e formao cidad, democratizando a informao e a tecnologia, a partir de uma viso crtica da sociedade atual, como sociedade essencialmente injusta e excludente. A conscientizao ainda o tema gerador central da educao de adultos.

    Paulo Freire foi um dos grandes inspiradores do paradigma da educao popular. Entre as intuies fundamentais deste paradigma podemos destacar:

    1 - a educao como produo e no meramente como transmisso do conhecimento;2 - a defesa de uma educao para a liberdade, pr-condio da vida democrtica;3 - a recusa do autoritarismo, da manipulao, da ideologizao que surge tambm ao estabelecer hierarquias rgidas entre o professor que sabe (e por isso ensina) e o aluno que tem que aprender (e por isso estuda);4 - a defesa da educao como um ato de dilogo no descobrimento rigoroso, porm, por sua vez, imaginativo, da razo de ser das coisas;5 - a noo de uma cincia aberta s necessidades populares e6 - um planejamento comunitrio e participativo.A qualidade em educao de adultos deve ser medida pelo atendimento s suas

    necessidades educacionais e culturais. No se trata de repassar para eles um saber j (*) Moacir Gadotti, doutor em Cincias da Educao pela Universidade de Genebra, professor da

    Universidde de So Paulo e Diretor do Instituto Paulo Freire em So Paulo (Brasil). Escreveu vrios livros. Entre eles: Convite leitura de Paulo Freire (traduzido em japons, espanhol, italiano, ingls), A educao contra a educao (francs e portugus), Pedagogia da prxis (portugus, espanhol, inlgs), Histria das idias pedaggicas (portugus, espanhol), Perspectivas atuais da educao, Pedagogia da Terra e Os mestres de Rousseau. Seu livro Paulo Freire: uma biobibliografia, com cerca de 800 pginas, o trabalho mais completo disponvel sobre a vida e a obra de Paulo Freire.

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  • cristalizado e elitista. Trata-se de construir junto com eles um novo saber, realmente libertador e significativo para o projeto de vida de cada um dos educandos-educadores, para viverem no mundo de hoje.

    - Como educar adultos hoje?

    Costuma-se definir nossa era como a era da informao. Se for pela importncia dada hoje ao conhecimento, em todos os setores, podemos dizer que vivemos mesmo na era da informao, na sociedade do conhecimento, sobretudo em conseqncia da informatizao e do processo de globalizao das telecomunicaes a ela associado. Todavia, o que constatamos que predomina mais a difuso de dados e informaes e no de conhecimentos (conhecimento informao com sentido). Isso est sendo possvel graas s novas tecnologias que estocam informaes, de forma prtica e acessvel, em gigantescos volumes, que duplica a cada 40 dias.

    Produzimos um bilho de bilhes por ano de bits (letras) de informao. H informao em excesso. Estamos entorpecidos pelo excesso de informao, excesso de coisas e de objetos. No precisamos de tanta informao. Precisamos de sentido para navegar num mar de dados e informaes. Precisamos de conhecimento. O que importante o conhecimento. S o sujeito produz conhecimento.

    - Como o ser humano produz conhecimento?

    Sabe-se hoje, por meio das neurocincias, que o crebro no funciona como numa fbrica de automveis. O crebro aprende de dentro para fora, total e no fragmentadamente, como na produo em srie. Funciona como um sujeito e no como um objeto, um mero receptor de informaes. No h transmisso de conhecimentos. O crebro no funciona como um computador que possui um disco rgido para armazenar o que vem de fora. O crebro humano nada tem a ver com a inteligncia artificial. Ele se auto-organiza, contri o conhecimento. O ser humano s aprende realmente o que consti autonomamente.

    O conhecimento a grande riqueza da humanidade. No apenas o capital da transnacional que precisa dele para a inovao tecnolgica. Ele bsico para a sobrevivncia de todos. Por isso ele no deve ser vendido ou comprado, mas disponibilizado a todos. Esta a funo de instituies que se dedicam ao conhecimento, apoiados nos avanos tecnolgicos. Esperamos que a educao do futuro seja mais democrtica, menos excludente. Essa ao mesmo tempo nossa causa e nosso desafio. Infelizmente, diante da falta de polticas pblicas no setor, acabaram surgindo indstrias do conhecimento prejudicando uma possvel viso humanista, tornando-o instrumento de lucro e de poder econmico. Democratizar o acesso ao conhecimento democratizar riqueza e renda.

    - Direito de todo adulto aos bens culturais e tecnolgicos produzidos pela humanidade.

    Nos ltimos anos a informao deixou de ser uma rea ou especialidade para tornar-se uma dimenso de tudo, transformando profundamente a forma como a sociedade se organiza. Pode-se dizer que est em andamento uma Revoluo da Informao como ocorreu no passado a Revoluo Agrcola e a Revoluo Industrial. As novas tecnologias criaram novos espaos do conhecimento. Agora, alm da escola, tambm a empresa, o espao domiciliar e o espao social tornaram-se educativos. Cada dia mais pessoas estudam em casa pois podem, de casa, acessar o ciberespao da formao e da aprendizagem a distncia, buscar fora a informao disponvel nas redes de computadores interligados - servios que respondem s suas demandas de conhecimento. Todo adulto, numa sociedade democrtica precisa ter acesso rpidos, fcil e permanente ao conhecimento, cultura e tecnologia produzidos pela humanidade.

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  • Esses espaos de formao tm tudo para permitir maior democratizao da informao e do conhecimento, portanto menos distoro e menos manipulao, menos controle e mais liberdade. uma questo de tempo, de polticas pblicas adequadas e de iniciativa da sociedade. A tecnologia no basta. preciso a participao mais intensa e organizada da sociedade. O acesso informao no apenas um direito. um direito fundamental, um direito primrio, o primeiro de todos os direitos pois sem ele no temos acesso aos outros direitos.

    - O que cabe educao de adultos?

    Cabe a ela organizar um movimento global de renovao cultural aproveitando-se de toda essa riqueza de informaes. Na sociedade da informao a educao de adultos deve servir de bssola ao educando para navegar nesse mar do conhecimento, superando a viso utilitarista de s oferecer informaes teis para a competitividade, para obter resultados. Deve oferecer uma formao geral na direo de uma educao integral. O que significa servir de bssola? Significa orientar criticamente os adultos na busca de uma informao que os faa crescer e no embrutecer.

    As conseqncias para a escola e para a educao em geral so enormes: ensinar a pensar; saber comunicar-se; saber pesquisar; ter raciocnio lgico; fazer snteses e elaboraes tericas; saber organizar o seu prprio trabalho; ter disciplina para o trabalho; ser independente e autnomo; saber articular o conhecimento com a prtica; ser aprendiz autnomo e a distncia.

    Neste contexto cabe educao de adultos: amar o conhecimento como espao de realizao humana, de alegria e de contentamento cultural; cabe-lhe selecionar e rever criticamente a informao; formular hipteses; ser criativa e inventiva (inovar); ser provocadora de mensagens e no pura receptora; produzir, construir e reconstruir conhecimento elaborado. E mais: numa perspectiva emancipadora freiriana da educao, a educao de adultos tem que fazer tudo isso em favor dos excludos. No discriminar o pobre. Ela no pode distribuir poder, mas pode construir e reconstruir conhecimentos, saber, que poder. Numa perspectiva emancipadora da educao, a tecnologia no contribuiu muito pouco para a emancipao dos excludos se no foi associada ao exerccio da cidadania.

    - Educar adultos para que sociedade?

    Tenho utilizado duas categorias para designar a sociedade do futuro: sustentabilidade e virtualidade para chamar a ateno para uma sociedade sustentvel e uma sociedade que democratiza o acesso informao.

    Costuma-se designar por sociedade sustentvel aquela que capaz de satisfazer suas necessidades sem comprometer as chances de sobrevivncia das geraes futura. Mas no s isso. A sociedade sustentvel requer uma mudana de nosso estilo de vida, para que seja: a) ambientalmente sustentvel no acesso e uso dos recursos naturais e na preservao da biodiversidade; b) socialmente sustentvel na reduo da pobreza e das desigualdades na promoo da justia social; c) culturalmente sustentvel na conservao do sistema de valores, prticas e smbolos de identidade que determinam integrao nacional ao longo do tempo e d) polticamente sustentvel aprofundando a democracia e garantindo o acesso e participao de todos os setores da sociedade nas decises pblicas.

    Trs dcadas de debates sobre nosso futuro comum deixaram algumas pegadas ecolgicas, tanto no campo da economia, quanto no campo da tica, da poltica e da educao, que podem nos indicar um caminho diante dos desafios da educao de adultos do Sculo XXI. A sustentabilidade tornou-se um tema gerador preponderante neste incio de milnio para pensar no s o planeta, um tema portador de um projeto social global e capaz de reeducar nosso

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  • olhar e todos os nossos sentidos, capaz de reacender a esperana num futuro possvel, com dignidade, para todos.

    O cenrio no otimista: podemos destruir toda a vida no planeta neste milnio que se inicia. Vivemos numa sociedade em risco. Uma ao conjunta global necessria, um movimento como grande obra civilizatria de todos indispensvel para realizarmos essa outra globalizao (alterglobalizao), essa planetarizao, fundamentada em outros princpios ticos que no os baseados na explorao econmica, na dominao poltica e na excluso social. O modo pelo qual vamos produzir nossa existncia neste pequeno planeta, decidir sobre a sua vida ou a sua morte, e a de todos os seus filhos e filhas. A Terra deixou de ser um fenmeno puramente geogrfico para se tornar um fenmeno histrico.

    Estamos diante do crescimento incessante e paralelo entre a misria e a tecnologia: somos uma espcie de sucesso no campo tecnolgico, mas muito mal sucedida no governo do humano. Vivemos na era da informao, mas no do conhecimento e da comunicao. As tecnologias da comunicao no significam comunicao humana. Temos necessidade, por isso, de uma esfera pblica cidad (Jrgen Habermas), uma esfera pblica de deciso no-estatal; precisamos, como diz Adela Cortina, de uma tica pblica cvica, fundada numa sociedade pluralista (por exemplo: respeitar respostas distintas a perguntas sobre a vida, isto , praticar o pluralismo tico); na convivncia autntica (viver juntos e no apenas justapor-se); na construo coletiva (tarefa a realizar permanentemente pois os pontos de convergncia no so automticos) e no descobrimento mtuo e no dilogo (buscar o que temos em comum).

    - O que significa educar para uma outra globalizao?

    Os paradigmas clssicos, fundados numa viso industrialista predatria, antropocntrica e desenvolvimentista, esto se esgotando, no dando conta de explicar o momento presente e de responder s necessidades futuras. Necessitamos de um outro paradigma, fundado numa viso sustentvel do planeta Terra. O globalismo essencialmente insustentvel. Ele atende primeiro s necessidades do capital e depois s necessidades humanas. E muitas das necessidades humanas a que ele atende, tornaram-se humanas apenas porque foram produzidas como tais para servirem ao capital.

    Para a educao de adultos precisamos de uma Pedagogia da Terra, uma pedagogia apropriada para esse momento de reconstruo paradigmtica, apropriada cultura da sustentabilidade e da paz, da justipaz. Ela vem se constituindo gradativamente, beneficiando-se de muitas reflexes que ocorreram nas ltimas dcadas, principalmente no interior do movimento ecolgico. Ela se fundamenta num paradigma filosfico (Paulo Freire, Leonardo Boff, Sebastio Salgado, Boaventura de Sousa Santos, Milton Santos, Edgar Morin) emergente na educao que prope um conjunto de saberes/valores interdependentes.

    A resposta globalizao capitalista neoliberal no campo da educao est em educar para uma outra globalizao, educar para a humanidade, educar para uma sociedade sustentvel, que supe:

    1) Educar para pensar globalmente. Na era da informao, diante da velocidade com que o conhecimento produzido e envelhece, no adianta acumular informaes. preciso saber pensar. E pensar a realidade. No pensar pensamentos j pensados. Da a necessidade de recolocarmos o tema do conhecimento, do saber aprender, do saber conhecer, das metodologias, da organizao do trabalho na escola.

    2) Educar os sentimentos. O ser humano o nico ser vivente que se pergunta sobre o sentido de sua vida. Educar para sentir e ter sentido, para cuidar e cuidar-se, para viver com sentido em cada instante da nossa vida. Somos humanos porque sentimos e no apenas porque pensamos. Somos parte de um todo em construo.

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  • 3) Ensinar a identidade terrena como condio humana essencial. Nosso destino comum no planeta, compartilhar com todos, sua vida no planeta. Nossa identidade ao mesmo tempo individual e csmica. Educar para conquistar um vnculo amoroso com a Terra, no para explor-la, mas para am-la.

    4) Formar para a conscincia planetria. Compreender que somos interdependentes. A Terra uma s nao e ns, os terrqueos, os seus cidados. No precisaramos de passaportes. Em nenhum lugar na Terra deveramos nos considerar estrangeiros. Separar primeiro de terceiro mundo, significa dividir o mundo para govern-lo a partir dos mais poderosos; essa a diviso globalista entre globalizadores e globalizados, o contrrio do processo de planetarizao.

    5) Formar para a compreenso. Formar para a tica do gnero humano (Paulo Freire), no para a tica instrumental e utilitria do mercado. Educar para comunicar-se. No comunicar para explorar, para tirar proveito do outro, mas para compreend-lo melhor. A Pedagogia da Terra funda-se nesse novo paradigma tico e numa nova inteligncia do mundo. Inteligente no aquele que sabe resolver problemas (inteligncia instrumental), mas aquele que tem um projeto de vida solidrio. Porque a solidariedade no hoje apenas um valor. condio de sobrevivncia de todos.

    6) Educar para a simplicidade e para a quietude. Nossas vidas precisam ser guiadas por novos valores: simplicidade, austeridade, quietude, paz, saber escutar, saber viver juntos, compartir, descobrir e fazer juntos. Precisamos escolher entre um mundo mais responsvel frente cultura dominante que uma cultura de guerra, de competitividade sem solidariedade, e passar de uma responsabilidade diluda uma ao concreta, praticando a sustentabilidade na vida diria, na famlia, no trabalho, na escola, na rua. A simplicidade no se confunde com a simploriedade e a quietude no se confunde com a cultura do silncio. A simplicidade tem que ser voluntria como a mudana de nossos hbitos de consumo, reduzindo nossas demandas. A quietude uma virtude, conquistada com a paz interior e no pelo silncio imposto.

    - O que entender por perspectiva freiriana?

    O futuro, dizia Freire, no pode ser previsto, mas pode ser inventado. Da a sua tese do sonho possvel diante da malvadez neoliberal.

    Diante da situao do mundo de hoje, de cultura da guerra e de insustentabilidade, podemos desenhar, para fins didticos, duas perspectivas dois pontos de vista, dois caminhos possveis de futuro, mesmo no querendo dicotomizar a realidade que est sempre em processo. Para fins didticos, metaforicamente, podemos chamar o primeiro de ponto de vista de Washington e o segundo de ponto de vista de Angicos (um povoado pobre do nordeste brasileiro onde Paulo Freire iniciou sua primeira experincia com a educao de adultos).

    a) a perspectiva de Washington, funda-se na tica do mercado, endeusa a competitividade e demoniza a solidariedade, combate o fundamentalismo com outro fundamentalismo, v o mundo como um campo de batalha de interesses, defende o modelo capitalista de globalizao neoliberal que divide o mundo em globalizadores e globalizados e considera a educao como uma mercadoria, formando consumidores.

    b) a perspectiva de Angicos, funda-se na tica do gnero humano, prega a compaixo e a amorosidade, combate o fundamentalismo com o dilogo preventivo (no com a guerra preventiva), v o mundo como a simbiose, o desenvolvimento com cooperao, defende uma sociedade-mundo, considerando a Terra como uma nica comunidade, considera a educao como um direito cujo objetivo formar cidados.

    No conheo Washington. Conheo Angicos. Mas creio que existem muitos Washingtons em muitos lugares do mundo (no um privilgio dos EE.UU). Felizmente, tambm existem muitos Angicos onde nasce a esperana de um outro mundo possvel.

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  • - Qual dos dois pontos de vista o mais verdadeiro?

    O ponto de vista do oprimido mais verdadeiro do que o ponto de vista do opressor porque o oprimido nada tem a esconder enquanto que o opressor necessita esconder o seu jogo, suas manhas e artimanhas, para continuar oprimindo. Contudo, Paulo Freire advertia que o oprimido no se libertar sem libertar o seu opressor. A alternativa para um futuro melhor para a humanidade no a eliminao do inimigo, mas a superao da contradio entre os dois. Por isso ele sempre foi contra qualquer forma de terrorismo, tanto o terrorismo religioso, quanto o terrorismo econmico e o terrorismo de Estado.

    Paulo Freire insistia que o dilogo entre antagnicos no possvel. Entre eles h o conflito. No mximo pode existir um pacto. Como, ento, falar de dilogo? possvel dialogar com um terrorista? No, no h dilogo com o terrorismo porque o terrorismo a prpria negao do dilogo. Por isso que o dilogo precisa estabelecer-se antes, atuar antes, sobre as causas e no a posteriori. Todos estamos cansados de ver que combater o terrorismo atravs da guerra s fortalece o terrorismo. Devemos prevenir o terrorismo, agindo sobre suas causas. O dilogo precisa ser estabelecer antes que atos de terrorismo aconteam. Nas suas razes; ele deve ser radical. O terrorismo precisa ser prevenido. Precisamos nos assegurar que ele no prevalea sobre o dilogo.

    Por isso, sustentamos que a Perspectiva de Washington est equivocada, porque no previne, no age sobre as causa do terror. Espera atos terroristas para depois fazer a sua guerra contra ele. Porque a sua cultura a cultura da guerra to presente em quase todos os hinos nacionais e no a cultura do dilogo, to defendida por Paulo Freire, a cultura da justipaz, como costumamos dizer hoje. O pensamento dialgico de Freire aponta para um novo patamar civilizatrio, para um novo estgio espiritual para a humanidade.

    Diante do estado do mundo hoje, o dilogo j no mais uma opo poltica. O dilogo hoje um imperativo histrico e existencial. A alternativa ao dilogo o terrorismo, a globalizao da crueldade, a guerra. As duas possibilidades esto hoje presentes na conjuntura atual: de um lado a legitimidade democrtica e, de outra, a legitimidade da fora.

    - Por que priorizar a educao de adultos?

    H uma razo simples para argumentar em favor da prioridade educao de adultos: a educao um direito que no prescreve aos 14 anos. No h sociedades que tenham resolvido seus problemas sociais e econmicos, sem equacionar, devidamente, os problemas de educao, e, no h pases que tenham encontrado solues de seus problemas educacionais, sem equacionar devida e simultaneamente a educao de adultos.

    So muitos os benefcios de um programa de alfabetizao de adultos, inclusive para a proteo da infncia. Conforme, documento publicado pelo Banco Mundial no ano 2000 (Including the 900 million), os participantes em programas de educao de adultos, principalmente de alfabetizao e letramento, tm maior confiana e autonomia no interior de suas famlias e comunidades, esto mais vontade que os no alfabetizados quando levam e trazem seus filhos da escola e monitoram o seu progresso, participam mais efetivamente na comunidade e na poltica, e desenvolvem novas e produtivas relaes sociais atravs de seus grupos de aprendizagem.

    preciso investir mais na educao de jovens e adultos. o que recomendou a UNESCO na sua Conferncia de Hamburgo (1997), enfatizando a necessidade de reconhecer o papel indispensvel do educador bem formado, garantir a diversidade de experincias, reafirmar a responsabilidade inegvel do Estado diante da educao, fortalecer a sociedade civil e a cidadania, integrar a educao de jovens e de adultos como uma modalidade da Educao

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  • Bsica, reconceituar a educao de jovens e de adultos como um processo permanente de aprendizagem do adulto.

    uma humilhao para um adulto ter que estudar como se fosse uma criana, renunciando a tudo o que a vida lhe ensinou. preciso respeitar o aluno, utilizando-se uma metodologia apropriada, que resgate a importncia da sua biografia. Os jovens e adultos alfabetizandos j foram desrespeitados uma vez quando tiveram seu direito educao negado. No podem, ao retomar sua instruo, serem humilhados mais uma vez por uma metodologia que lhes nega o direito de afirmao de sua identidade, de seu saber, de sua cultura.

    - Educar adultos com que currculo?

    As concepes de currculo tm variado muito e ainda causam polmicas, sobretudo quando se discutem parmetros ou contedos programticos. natural que esse debate exista, pois currculo tem a ver com processo, movimento, percurso, como a etimologia da palavra o indica. As exigncias da formao variam conforme o tempo e o lugar. O currculo no esttico. Ele vida. Da precisarmos sempre de uma reorientao curricular.

    O currculo o verdadeiro espao da educao. Alm de ser o espao do conhecimento tambm o espao do debate das relaes sociais e humanas, o espao do poder, do trabalho e do cuidado, da gesto e da convivncia. Por isso tem a ver com a tica, a sustentabilidade, a questo da violncia. Currculo e projeto eco-poltico-pedaggico da escola seja ela de adultos ou no so realidades inseparveis. O currculo revela a trajetria poltico-pedaggica da escola, seus sucessos e insucessos, seus fracassos e vitrias. Se a escola est inserida no projeto de vida de seus instituintes professores, funcionrios, alunos e comunidade - o currculo relaciona-se tambm com o projeto de vida de cada um deles. Por isso, ele precisa ser avaliado e reavaliado constantemente. Ele ao mesmo tempo contexto e processo, projeto de vida institucional e individual.

    No Instituto Paulo Freire partimos da tese freireana de que a escola burocrtica e domesticadora privilegia relaes autoritrias no espao escolar. Em oposio a essa escola, a escola cidad s se constri com base na democracia e na cidadania. Hoje podemos identificar numerosas experincias de educao cidad, no s no Brasil mas tambm no exterior. Trata-se de um rico movimento educacional que est associado a uma concepo pedaggica cada vez mais consolidada e que temos chamado de concepo dialtica da educao, seguindo os caminhos da pedagogia da prxis e da educao popular. So exemplos, direta ou indiretamente inspirados no pensamento de Paulo Freire. Alguns dos seus princpios pedaggicos ou de intuies originais de sua prtica so facilmente encontrados nessas experincias de educao cidad, fundadas em relaes eminentemente democrticas.

    Voltemos questo inicial do currculo: que currculo?. A educao clssica, nascida na Grcia, partia das preocupaes dos filsofos, dos homens livres. Eles definiam o que era e o que no era importante estudar, o que era cientfico e o que no era. O currculo clssico, por isso, desconsiderava temas relacionados ao dia-a-dia, ao trabalho, mulher, cidade. Os contedos das disciplinas do saber escolar ainda hoje refletem o currculo clssico. A vida cotidiana, a violncia, a sensibilidade e a subjetividade no so levados em conta como deveriam pelo currculo. Por isso precisamos reorient-lo.

    Creio que h muito de arbitrrio e cultural na escolha de contedos programticos na escola. Hoje, as novas propostas curriculares do cada vez mais importncia aos chamados temas transversais mais relacionados com o cotidiano das pessoas tica, sade, meio ambiente, diversidade cultural, gnero, consumo etc realando os vnculos entre educao e vida.

    Nos ltimos anos tenho insistido no que chamo de ecopedagogia como uma pedagogia inspiradora do novo currculo. S recentemente que a palavra ecopedagogia comeou a

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  • circular nos meios educacionais. O conceito de ecopedagogia vem se desenvolvendo incorporando a sustentabilidade da vida em geral, para alm da economia e da ecologia. Foi assim que surgiu a Pedagogia da Terra. Ela mais ampla do que a pedagogia da educao ambiental. Est mais para uma educao sustentvel, para uma ecoeducao, do que para a educao ambiental. A educao sustentvel no se preocupa apenas com uma relao saudvel com o meio ambiente, mas, a partir da vida cotidiana, preocupa-se com o sentido mais profundo do que fazemos com a nossa existncia, com o nosso projeto de vida, no pouco tempo que passamos pelo planeta Terra.

    As pedagogias clssicas so antropocntricas. A ecopedagogia parte de uma conscincia planetria (gneros, espcies, reinos, educao formal, informal e no-formal). Ampliamos o nosso ponto de vista. Do homem para o planeta, acima de gneros, espcies e reinos. De uma viso antropocntrica para uma conscincia planetria e para uma nova referncia tica.

    Estes princpios deveriam, por exemplo, orientar a concepo dos contedos e a elaborao dos livros didticos. Piaget nos ensinou que os currculos devem contemplar o que significativo para o aluno. Sabemos que isso correto, mas incompleto. Os contedos curriculares tm que ser significativos para o aluno? Sim, mas tm que ser significativos tambm para a sade do planeta.

    A educao de adultos no pode formar apenas o bom profissional. Deve formar o cidado. E para isso ela deve dar o exemplo, ela deve ser cidad. o exemplo que ensina. E no s o exemplo. O compromisso de todos os instituintes da educao de adultos com um projeto que chamamos propositadamente de eco-poltico-pedaggico, um projeto de escola e de vida emancipador. Em diferentes graus ele pode tornar-se possvel em todos os cursos de educao de adultos e de escolas onde existirem sujeitos que no perderam a esperana de mudar o rumo das coisas.

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