projeto gráfico - o livro dos seres imaginÁrios

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Projeto acadêmico desenvolvido para a disciplina de design editorial. Consistia em se criar o projeto gráfico e ilustrações para O LIVRO DOS SERES IMAGINÁRIOS, de JORGE LUIS BORGES.

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O L I V R O D O S S E R E SI M A G I N Á R I O S

J O R G E L U I S B O R G E S

C O L A B O R A Ç Ã O M A R G A R I T A G U E R R E R O

T R A D U Ç Ã O H E L O I S A J A H N

C O SACNAIF Y

O L I V R O D O S S E R E SI M A G I N Á R I O S

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P R Ó L O G O

O nome deste livro justificaria a inclusão do príncipe Hamlet, do ponto, do traço, da superfície, do hipercubo, de todas as palavras genéricas e, talvez, de cada um de nós e da divindade. Em

suma, de quase o universo inteiro. Ativemo-nos, contudo ao que é imediatamente sugerido pela locução “seres imaginários”, compilamos um manual dos estranhos entes engendrados, ao

longo do tempo e do espaço, pela fantasia dos homens.

Ignoramos o sentido do dragão, como ignoramos o sentido do universo, mas em sua imagem existe alguma coisa que se coaduna com a imaginação dos homens, e assim o dragão surge em

diferentes latitudes e idades.

Um livro dessa índole é necessariamente incompleto; cada nova edição é o núcleo de edições futuras, que podem multiplicar-se ao infinito.

Convidamos o eventual leitor da Colômbia ou do Paraguai a enviar-nos os nomes, a fidedigna descrição e os hábitos mais conspícuos dos monstros locais.

Como todas as miscelâneas, como os inesgotáveis volumes de Robert Burton, de Fraser ou de Plínio, O livro dos seres imaginários não foi escrito para uma leitura consecutiva. Gostaríamos

que os curiosos o frequentassem como quem brinca com as formas cambiantes reveladas por um caleidoscópio.

São múltiplas as fontes desta “silva de vária lição”; elas estão registradas em cada artigo. Perdoem-nos alguma omissão involuntária.

J.L.B - M.G.Martínez, setembro de 1967

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ÍN

DI

CE

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A B A O A Q U H A O K A H

B A H A M U T L I L I T H

A N T Í L O P E S D E S E I S P A T A S C R O N O S O U H É R C U L E S

A P L A N A D O R I C T I O C E N T A U R O S

B I O G R A F I A B O R G E S F A S T I T O C A L O N

A N I M A I S D O S E S P E L H O S H O C H I G A N

B U R A K L Â M I A S

A N I M A I S E S F É R I C O S C R O C O T A S E L E U C R O C O T A S

A B T U E A N E T K U J A T A

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O D E V O R A D O R D A S S O M B R A S U N I C Ó R N I O C H I N Ê S

O T ’ A O - T ’ I E H

O C A T Ó P L E P A O S S I L F O S

O G A L O C E L E S T I A L

M A N D R Á G O R A S O S S Á T I R O S

O S L A M E D W U F N I K S

O P E R I T I O

O C E M - C A B E Ç A S O A S N O D E T R Ê S P A T A S

O M A C A C O D A T I N T A

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B I O G R A F I A B O R G E S

Jorge Francisco Isidoro Luis Borges nasceu em Buenos Aires, em 24 de agosto de 1899, e faleceu em Genebra, em 14 de junho de 1986. Antes de falar

espanhol, aprendeu com a avó paterna a língua inglesa, idioma em que fez suas primeiras leituras. Em 1914 foi com a família para a Suíça, onde completou os estudos secundários. Em 1919, nova mudança — agora para a Espanha. Lá,

ligou-se ao movimento de vanguarda literária do ultraísmo.

De volta à Argentina, publicou três livros de poesia na década de 1920 e, a partir da década seguinte, os contos que lhe dariam fama universal, quase

sempre na revista Sur, que também editaria seus livros de ficção. Funcionário da Biblioteca Municipal Miguel Cané a partir de 1937, dela foi afastado em 1946

por Perón. Em 1955 seria nomeado diretor da Biblioteca Nacional. Em 1956, quando passou a lecionar literatura inglesa e americana na Universidade de Buenos Aires, os oftalmologistas já o tinham proibido de ler e escrever. Era a

cegueira, que se instalava como um lento crepúsculo.

Seu imenso reconhecimento internacional começou em 1961, quando recebeu, junto com Samuel Beckett, o prêmio Formentor dos International Publishers —

o primeiro de uma longa série.

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O S A N T Í LO P E S D E S E I S P AT A S

Oito patas dizem que possui (ou carrega) o cavalo do deus Odin, Sleipnir, cuja pelagem é cinzenta e que

anda pela terra, pelo ar e pelos infernos; seis patas é o que atribui um mito siberiano aos primitivos antílopes. Com semelhante atribuição era difícil, ou impossível, alcançá-los; o caçador divino Tunk-poj fabricou patins especiais com a madeira de uma árvore sagrada que

rangia incessantemente e que os ladridos de um cão lhe revelaram. Também os patins rangiam e corriam com a velocidade de uma flecha; para conter, ou moderar, sua

correria, foi preciso instalar neles cunhas fabricadas com a madeira de outra árvore mágica.

Por todo o firmamento, Tunk-poj perseguiu o antílope. Este, rendido, deixou-se cair por terra, e Tunk-poj cortou-

lhes as patas traseiras.

“Os homens”, disse, “são cada dia menores e mais fracos. Como vão poder caçar antílopes de seis patas se eu

próprio mal consigo?”

Desde aquele dia os antílopes são quadrúpedes.

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A N I M A I S E S F É R I C O S

1 5

A esfera é o mais uniforme dos corpos sólidos,de vez que todos os pontos da superfície são equidistantes do centro. Por isso e por sua faculdade de girar ao redor do eixo sem mudar de lugar e sem exceder seus limites,platão (Timeu, 33) aprovou a decisão de Demiurgo, que deu forma esférica ao mundo. Julgou que o mundo é um ser vivo e nas Leis (898) afirmou os planetas e as estrelas também

o são. Dotou assim a zoologia fantástica de enormes animais esféricos e censurou os obtusos astrônomos que não queriam entender que o movimento

circular dos corpos celestes era espontâneo e voluntário.

Mais de quinhentos anos depois,em Alexandria, Orígenes ensinou que os bem aventurados ressuscitariam em forma de esferas e entrariam rolando na eternidade.

Na época do renascimento, o conceito do céu como animal reapareceu em vanini, o neoplatônico Marsili Ficino falou dos pêlos, dentes e ossos da terra; Giordano Bruno achou que os planetas eram grandes animais tranquilos, de sangue quente e hábitos regulares, dotados de razão. No inicio do século XVII, Kepler discutiu com o ocultista Inglês Robert Fludd a prioridade da concepção da terra como monstro vivente, “cuja respiração de baleia, correspondente ao sono e a vigília, produz o fluxo e o refluxo do mar”. A anatomia, a alimentação, a cor, a memória e a força imaginativa e plástica do monstro foram estudadas por Kepler.

No século XIX, o psicólogo alemão Gustav Theodor Fechner (homem louvado por William James na obra A Pluralistic Universe) repensou com uma espécie de engenhoso candor as idéias anteriores. Aqueles que

não desdenham a conjetura de que a terra, nossa mãe, é um organismo, um organismo superior à planta, ao animal e ao homem, podem

examinar as piedosas páginas de seu Zend Avesta. Lerão aí, por exemplo, que a figura esférica da terra é a do olho humano, que é a parte mais nobre

do nosso corpo. Também, “que, se realmente o céu é a casa dos anjos, estes sem dúvida são as estrelas, porque não há outros habitantes no céu.

Para contemplar a paisagem mais maravilhosa do mundo é preciso chegar ao último andar da Torre da Vitória, em Chitor. Existe ali um terraço circular que permite dominar o horizonte inteiro. Uma escada em caracol leva ao terraço, mas só têm coragem de subir os que não acreditam na fábula, que diz o seguinte:

Na escada da Torre da Vitória vive desde o início do tempo o A Bao A Qu, sensível aos valores das almas humanas. Vive em estado letárgico, no primeiro degrau, e só desfruta de vida consciente quando alguém sobe a escada. A vibração da pessoa que se aproxima lhe incute vida, e uma luz interior se insinua nele. Ao mesmo tempo, seu corpo e sua pele quase translúcida começam a mover-se. Quando alguém sobe a escada, o A Bao A Qu se posiciona quase nos calcanhares do visitante e sobe pendurando-se à borda dos degraus curvos e gastos pelos pés de gerações de peregrinos. A cada degrau sua cor se intensifica, sua forma se aperfeiçoa e a luz que ele irradia é cada vez mais brilhante. Comprova sua sensibilidade o fato de que ele só atinge sua forma perfeita no último degrau, quando aquele que sobe é um ser evoluído espiritualmente. Se não for, o A Bao A Qu fica como que paralisado antes de chegar, seu corpo incompleto, sua cor indefinida e a luz vacilante. O A Bao A Qu sofre quando não consegue transformar-se totalmente, e sua queixa é um rumor que mal se percebe, semelhante ao roçagar da seda. Mas quando o homem ou a mulher que o fazem reviver estão cheios de pureza, o A Bao A Qu pode chegar até o último degrau, já completamente formado e irradiando uma viva luz azul. Seu retorno à vida é muito breve, pois quando o peregrino desce, o A Bao A Qu rola e cai até o degrau inicial, onde, já apagado e semelhante a uma lâmina de contornos vagos, espera o próximo visitante. Só é possível vê-lo bem quando chega à metade da escada, onde os prolongamentos de seu corpo, que à maneira de bracinhos, ajudam-no a subir, definem-se com clareza. Há quem diga que ele olha com o corpo inteiro e que quando tocao lembra casca de pêssego. No decorrer dos séculos, o A Bao A Qu chegou uma única vez à perfeição.

O capitão Burton registra a lenda do A Bao A Qu em uma das notas de sua versão de As mil e uma noites.

A B A O A Q U

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1 7 1 7

Em um dos volumes das Cartas edificantes e curiosas, publicadas em Paris durante a primeira metade do século XVIII, o padre Zallinguer, da Companhia de Jesus, planejou um exame das ilusões e erros do povo de Cantão; num levantamento preliminar, anotou que o Peixe era um

ser fugitivo e resplandecente que ninguém havia tocado, mas que muitos pretendiam ter visto no fundo dos espelhos. O padre Zallinger morreu em 1736, e o trabalho iniciado por sua pena permaneceu inconcluso; cento e cinquenta anos depois, Herbert Allen Giles retomou a tarefa

interrompida. De acordo com Giles, a crença do Peixe faz parte de um mito mais amplo, que se refere à época legendária do Imperador Amarelo.

Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não eram, como hoje, incomunicantes. Além disso, eram muito diferentes um do outro; não coincidiam nem os seres nem as cores nem as formas. Os dois reinos, o especular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite o povo do espelho invadiu a Terra. Sua força era grande, mas ao cabo de sangrentas batalhas as artes mágicas do Imperador Amarelo prevaleceram. Privou-os de sua

força e de seu aspecto e reduziu-os a meros reflexos servis. Um dia, contudo, eles se livrarão dessa letargia mágica.

O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do espelho perceberemos uma linha muito tênue, e a cor dessa linha será uma cor que não se parece com nenhuma outra. Depois, irão despertando as outras formas. Gradualmente deferirão de nós, gradualmente deixarão de imitar-nos. Romperão

as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não serão vencidas. Junto com as criaturas dos espelhos combaterão as criaturas da água.

No Yunnan não se fala do Peixe, mas do Tigre do Espelho. Outros pensam que antes da invasão ouviremos, vindo dos espelhos, o rumor das armas.

A N I M A I S D O S E S P E L H O S

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O A P L A N A D O R

Entre os anos de 1840 e 1854, o Pai da Luz (que também se chama a Palavra Interior) proporcionou ao músico e

pedagogo Jakob Lorber uma série de prolixas revelações sobre a humanidade, a fauna e a flora dos corpos

celestes que constituem o sistema solar. Um dos animais domésticos cujo conhecimento devemos a essa revelação é o aplanador ou apisoador (Bodendrucker), que presta

incalculáveis serviços no planeta Miron, que o editor atual da obra de Lorber identifica como Netuno.

O aplanador tem dez vezes o tamanho do elefante, com que se parece muitíssimo. Está equipado de uma tromba

um pouco curta e de presas longas e retas; a pele é de uma cor verde pálida. As patas são cônicas e muito largas;

as pontas dos cones parecem encaixar-se no corpo. Esse plantigrado vai aplainando a terra e precede os pedreiros e os construtores. Levam-no a um terreno desigual e ele o

nivela com as patas, a tromba e as presas.

Alimenta-se de ervas e raízes e não tem inimigos, fora algumas variedades de inseto.

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Segundo a mitologia dos egípcios, Abtu e Anet são dois peixes idênticos e sagrados que vão nadando na frente do barco de Ra, deus do Sol, para avisá-lo de todo perigo. Durante o dia, o barco

viaja pelo céu, do nascente para o poente; durante a noite, debaixo da terra, direção oposta.

ABTU E ANE T

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B A H A M U T

A fama de Bahamut chegou aos desertos da Arábia, onde homens alteraram e enalteceram sua imagem. De hipopótamo ou elefante transformaram-no em peixe que se mantém sobre uma água sem fundo e sobre o peixe imaginaram um touro e sobre o touro uma montanha feita de rubi e sobre a montanha um anjo e sobre o anjo seis infernos e sobre os infernos a

Terra e sobre a Terra sete céus. Lemos numa tradição recolhida por Lane:

“Deus criou a Terra, mas a Terra não tinha sustentáculo e assim por baixo da Terra criou um anjo. Mas o anjo não tinha sustentáculo e assim por baixo dos pés do anjo criou um

penhasco de rubi. Mas o penhasco não tinha sustentáculo e assim por baixo do penhasco criou um touro com quatro mil olhos, orelhas, ventas, bocas, línguas e pés. Mas o touro não tinha sustentáculo e assim por baixo dos pés do touro criou um peixe chamado Bahamut, e por baixo do peixe pôs água, e por baixo da água pôs escuridão, e a ciência humana não vê

além desse ponto.”

Outros declaram que a Terra tem suas fundações na água; a água, no penhasco; o penhasco, na cerviz do touro; o touro, num leito de areia; a areia, em Bahamut; Bahamut, num vento

sufocante; o vento sufocante, numa neblina. Não se conhece a base da neblina.

Tão imenso e resplandecente é Bahamut que os olhos humanos não conseguem suportar sua visão. Todos os mares da Terra, postos em uma de suas fossas nasais, seriam como um grão de mostarda em meio ao deserto. Na noite 496 do livro As mil e uma noites conta-se que a Isa (Jesus) existe um mar, e por baixo do mar um abismo de ar, fogo, e por baixo do fogo,

uma serpente chamada Falak, em cuja boca estão os infernos.

A ficção do penhasco sobre o touro e do touro sobre Bahamut e de Bahamut sobre qualquer coisa parece ilustrar a prova cosmológica de que Deus existe, na qual se argumenta que toda causa exige uma anterior e se proclama a necessidade de afirmar uma causa primeira, para

não proceder ao infinito.

2 3

BURAKO primeiro versículo do capítulo 17 do Corão consta destas palavras: “Louvado seja Aquele que fez viajar, durante a noite, seu servo do templo sagrado até o templo que está mais longe, cujo recinto abençoamos, para fazê-lo ver nossos signos”. Os comentadores declararam que quem é louvado é Deus, que o servo é Maomé, que o templo sagrado é o de Meca, que o templo distante é o de Jerusalém e que, de Jerusalém, o Profeta foi transportado ao sétimo céu. Nas versões mais antigas da lenda, Maomé é guiado por um homem ou um anjo; nas de data posterior, recorre-se a uma cavalgadura celeste, maior que um burro e menor que uma mula. Essa cavalgadura é Burak, cujo nome significa “resplandecente”. Segundo Burton, os muçulmanos da Índia costumam representá-lo com rosto de homem, orelhar de burro, corpo de cavalo e asas e cauda de pavão real.

Uma das tradições islâmicas conta que Burak, ao deixar a Terra, derrubou uma jara cheia de água. O Profeta foi arrebatado até o sétimo céu e conversou com cada um dos patriarcas e anjos que o habitavam e atravessou a Unidade e sentiu frio que gelou seu coração quando a mão do Senhor lhe deu uma palmada no ombro. O tempo dos homens não é comensurável com o de Deus; ao voltar, o Profeta ergueu a jarra, da qual ainda não se havia derramado uma gota sequer.

Migual Asín Palacios fala de um místico murciano do século XIII que, numa alegoria que se intitula Livro da noturna viagem à Majestade do mais Generoso, simbolizou em Burak o amor divino. Em outro texto se refere ao “Burak da pureza da intenção”.

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CRONOS OU HÉRCULES

F A S T I T O C A L O N

O tratado Dúvidas e soluções sobre os primeiros princípios, do neoplatônico Damáscio, registra uma curiosa versão da teogonia e cosmogonia de Orfeu, em que Cronos – ou Hércules – é um monstro:

“Segundo Jerônimo e Helânico (se é que os dois não são um só), a doutrina órfica ensina que no princípio houve água e lodo, com os quais a terra foi amassada. Esses dois princípios aparecem como os primeiros: água e terra. Deles saiu o terceiro, um dragão alado, que na frente exibia a cabeça de um touro, atrás a de um leão, e no meio o rosto de um deus; chamaram-no ‘Cronos que não envelhece’ e também se chama a Inevitável, e que se dilatou sobre o universo e tocou seus confins [...] Cronos, o dragão, tirou de si uma tripla semente: o úmido Éter, o ilimitado Caos e o nebuloso Erebo. Debaixo deles pôs um ovo, do qual sairia o mundo. O último princípio foi um deus que era homem e mulher, com asas de ouro nas costas e cabeças de touro nos flancos, e sobre a cabeça um desmedido dragão, igual a todo tipo de feras [...]”.

A Idade Média atribuiu ao Espírito Santo a composição de dois livros. O primeiro era, conforme sabemos, a Bíblia; o segundo, o universo, cujas criaturas encerravam ensinamentos imorais.

Para explicar este último, compilaram-se fisiólogos ou bestiários. De um bestiário anglo-saxão resumimos o texto que se segue:

“Falarei também neste cantar da poderosa baleia. É perigosa para todos os navegantes. Esse nadador das correntes do oceano recebe o nome de Fastitocalon. Sua forma é a de uma pedra

rugosa e dá a impressão de estar coberta de areia; os marinheiros que o vêem pensam que é uma ilha. Amarram seus navios de alta proa à falsa terra e desembarcam sem temer nenhum perigo. Acampam, acendem fogueiras e dormem, rendidos. Então o traidor submerge no oceano; vai para

suas profundezas e deixa que o navio e os homem se afoguem na sala da morte. Costuma exalar da boa uma doce fragrância, que atrai os outros peixes do mar. Estes penetram em suas fauces, que se

fecham e os devoram. Assim o demônio nos arrasta para o inferno.”

A fábula está presente no livro As mil e uma noites, na lenda de são Brandão e no Paraíso perdido de Milton, que mostra a baleia dormindo “na espuma norueguesa”.

2 5 2 5

C R O C O T A S E

L E U C R O C O T A S

Ctésias, médico de Artaxerxer Mnêmon, recorreu a fontes persas para compor uma descrição da Índia, obra de valor inestimável

para saber como os persas do tempo de Artaxerxer Mnêmon imaginavam aquele país. O capítulo 32 desse repertório oferece

uma nota sobre o lobo-cachorro; Plínio (VIII,30) deu a esse hipotético animal o nome de crocota e declarou que “não havia

nada que ele não pudesse partir com os dentes e ato contínuo de digerir”.

Mais precisa que a crocota é a leucrocota, em que certos comentaristas viram o reflexo do gnu, e outros o da hiena, e outros

uma fusão dos dois. É rapidíssima e do tamanho de um burro silvestre. Tem patas de cervo, pescoço, cauda e peito de leão, cabeça de texugo, cascos cingidos, boca até as orelhas e um osso contínuo

em vez dos dentes. Vive na Etiópia (onde também há touros selvagens, dotados de cornos móveis) e consta que arremeda com

doçura a voz humana.

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Entre os índios sioux, Haokah usava os ventos como baquetas para fazer ressoar o tambor do

trovão. Seus chifres demonstravam que também era deus da caça. Chorava quando estava

contente; ria quando estava triste. Sentia frio como calor e calor como frio.

H A O K A H , D E U S D O T R O V Ã O

2 8

Descartes afirma que os macacos poderiam falar, se quisessem, mas que resolveram guardar silêncio para não serem obrigados a trabalhar. Os bosquímanos da África do

Sul acreditam que houve um tempo em que todos os animais podiam falar. Hochigan não gostava desses animais; um dia

desapareceu, e levou consigo esse dom.

Descartes afirma que os macacos poderiam falar, se quisessem, mas que resolveram guardar silêncio para não serem obrigados a trabalhar. Os bosquímanos da África do

Sul acreditam que houve um tempo em que todos os animais podiam falar. Hochigan não gostava desses animais; um dia

desapareceu, e levou consigo esse dom.

Licofronte, Claudiano e o gramático bizantino João Tzetzes mensionaram, cada um de seu lado, os ictiocentauros; nos textos

clássicos não se encontra nenhuma outra referência a eles. Podemos traduzir ictiocentauros por centauro-peixes; a palavra foi aplicada a seres que os mitólogos também chamaram de centauro-tritões. Sua representação é frequente na escultura romana helenística.

Da cintura pra cima são homens, da cintura pra baixo são peixes, e têm patas dianteira de cavalo ou de leão. Seu lugar é no cortejo das

divindades marinhas, ao lado dos hipocampos.

H O C H I G A N

I C T I O C E N T A U R O S

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De acordo com um mito islâmico, Kujata é um grande touro dotade de quatro mil olhos, quatro mil orelhas, quatro mil narizes, quatro mil bocas, quatro mil línguas e quatro mil

pés. Para locomover-se de um olho a outro ou de uma orelha a outra, bastam quinhentos anos. Kujata se apóia no peixe

Bahamut; sobre o lombo do touro há uma rocha de rubi, sobre a rocha um anjo e sobre o anjo nossa terra.

“Porque antes de Eva foi Lilith”, lê-se num texto hebraico. Sua lenda inspirou ao poeta inglês Dante Gabriel Rossetti (1828-82) a composição de Eder Bower. Lilith era uma

serpente; foi a primeira esposa de Adão e lhe deu glittering sons and radiant daughters (filhos resplandecentes e filhas esplendorosas). Depois, Deus criou Eva; Lilith, para

vingar-se da mulher humana de Adão, convenceu-a a provar do fruto proibido e a conceber Caim, irmão e assassino de Abel. Essa é a forma primitiva do mito, seguida por Rossetti. No decorrer da Idade Média, sob a influência da palavra layil, que em hebraico quer dizer “noite”, ele foi se transformando. Lilith deixou de ser uma serpente para ser um espírito noturno. Às vezes é um anjo que governa a geração dos homens; outras, demônios que

assaltam os que dormem sozinho ou os que andam pelas estradas. Na imaginação popular costuma assumir a forma de uma silenciosa mulher alta, de negros cabelos soltos.

K U J A T A

L I L I T H

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A S L Â M I A S

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Segundo os clássicos latinos e gregos, as lâmias viviam na África. Da cintura para cima tinham a forma de uma linda mulher; para baixo, a de uma serpente. Alguns as definiram como feiticeiras; outros como monstros malignos. Não possuíam a faculdade da fala, mas seu silvo era melódioso. Nos desertos atraíam os viajantes, para depois devorá-los. Sua origem remota era divina; provinham de um dos muitos amores de Zeus. Na parte da Anatomia da melancolia (1621) que se trata de paixão do amor, Robert Burton conta a história de uma lâmia que assume forma humana e seduz um jovem filósofo “não menos gracioso que ela”. Leva-o para seu palácio, situado na cidade de Corinto. Convidado para o casamento, o mago Apolônio de Tiana chama-a pelo nome; imediatamente, a lâmia e o palácia desaparecem. Pouco antes de morrer, John Keats (1795-1821) se inspirou no relato de Burton para compor seu poema.

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A M A N D R Á G O R A

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Como o borametz, a planta chamada mandrágora é limítrofe com o reino animal, porque grita quando a arrancam; esse grito é capaz de enlouquecer os que o ouvem (Romeu e Julieta, IV, 3). Pitágoras chamou-a de “antropomorfa”; o agrônomo latino Lúcio Columela, de “semi-homo”; e Alberto Magno escreveu que as mandrágoras representam a humanidade, inclusive com a distinção dos sexos. Antes, Plínio havia dito que a mandrágora branca é o macho, e a preta, a fêmea. Também que os que a colhem desenham três circulos com a espada em torno dela e olham para o poente; o cheiro das folhas é tão forte que costuma emudecer as pessoas. Arrancá-la era correr o risco de passar por terríveis calamidades; o último livro da Guerra dos Judeus, de Flávio Josefo, aconselha que recorraa um cão adestrado. O animal morre depois de arrancar a planta, mas as folhas servem para fins narcóticos, mágicos e laxantes.

A suposta forma humana das mandrágoras sugeriu à superstição que elas crescem ao pé dos patíbulos. Browne (Pseudoxia epidemica, 1646) fala da gordura dos enforcados; o romancista popular Hanns Heinz Ewers (Alraune, 1913(, do sêmen. Mandrágora, em alemão, é Alraune; antes era Alruna. A palavra vem de runa, que significou “mistério”, “coisa escondida”, e depois foi aplicada aos caracteres do primeiro alfabeto germânico.

O Gênesis (30, 14-6) incluiu uma curiosa referência às virtudes geradoras da mandrágora. No século XII, um comentador judeu-alemão do Talmude escreveu este parágrafo:

“Uma espécie de corda sai de uma raiz no solo, e na corda amarrado pelo umbigo, como uma cabaça, ou melão, o animal chamado Yadu’a, mas o Yadu’a é em tudo igual aos homens: rosto, corpo, mãos e pés. Ele arranca e destrói todas as coisas, até onde alcança a corda. É preciso cortar a corda com uma flecha, e com isso o animal morre”

O médico Discórides identificou a mandrágora com a circéia, ou “erva de Circe”, sobre a qual se lê na Odisséia, no livro x:

“A raiz é negra, mas a flor é como o leite. É difícil para os homens arrancá-la do solo, mas os deuses são todo-poderosos”.

3 4

Plínio (VIII,32) conta que nos confins da Etiópia, não longe das fontes do Nilo, vive o catóblepa.

“Fera de tamanho médio e andar preguiçoso. A cabeça é notavelmente pesada, e portá-la é muito cansativo para o animal; ele sempre se inclina para a terra.

Se não fosse por essa circunstância, o catóblepa acabaria com o gênero humano, porque todo homem que vê seus olhos cai morto.”

Catoblepas, em grego significa “ que olha para baixo”. Cuvier sugeriu que o gnu (contaminado pelo basilisco e pelas górgonas) inspirou o catóblepa aos antigos.

No fim da Tentação de santo Antão, lê-se:

“O catóblepa, búfalo negro com uma cabeça de corpo que cai até o chão, unida aos ombros por um pescoço fino, longo e mole como um intestino vazio. Está atolado no lodo, e suas patas desaparecem sob a enorme melena de pelos duros que lhe

cobre a cara:

“’Corpulento, melancólico, fosco, não faço outra coisa senão sentir sob o ventre o calor do lodo. Meu crânio é tão pesado que não consigo levantá-lo. Enrolo-o em torno de mim, lentamente, e, com as mandíbulas entreabertas, arranco com a

língua as ervas venenosas umedecidas por meu hálito. Uma vez devorei minhas próprias patas sem perceber.

“’Ninguém, Antão, viu meus olhos, ou aqueles que os viram morreram. Se eu levantasse as pálpebras – róseas e inchadas –, você morreria na hora.’’”

O C A T Ó B L E P A

3 5

O cem-cabeças é um peixe criado pelo Karma de umas palavras, por sua póstura repercussão no tempo. Uma das biografias chinesas de Buda conta que este se encontrou com uns pescadores, que arrastavam uma rede. Ao cabo de infinitos

esforços, trouxeram à praia um enorme peixe, com uma cabeça de macaco, outra de cachorro, outra de cavalo, outra de raposa, outra de porco, outra de tigre, e

assim até o número cem. Perguntou-lhe Buda:

“Não és Kapila?”

“Sou Kapila”, responderam as cem cabeças antes de morrer.

Buda explicou aos discípulos que, numa encarnação anterior, Kapila fora um brâmane que se havia feito monge e que a todos havia superado na compreensão

dos textos sagrados. Por vezes, os companheiros se enganavam e Kapila os chamava de cabeça de macaco, cabeça de cachorro, etc. Quando morreu, o Karma dessas invectivas acumuladas o fez renascer como monstro aquático, curvado sob

o peso de todas as cabeças que havia atribuído a seus companheiros.

O C E M

C A B E Ç A S

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Existe um curioso gênero literário que ocorreu independentemente em diversas épocas e nações: o guia do morto nas regiões ultraterrenas. O céu e o inferno de Swedenborg, as

escrituras gnósticas, o Bardo Thödol dos tibetanos (título que, segundo Evans-Wentz, deve ser traduzido por “Libertação por intermédio da audição no plano da pós-morte”) e o Livro Egípcio dos mortos não esgotam os exemplos possíveis. As “semelhanças e diferenças” dos dois últimos mereceram a atenção dos eruditos; baste-nos aqui repetir que para o manual

tibetano o outro mundo é tão ilusório quanto este, e para o egípcio é real e objetivo.

Nos dois textos encontramos um tribunal de divindades, algumas com cabeça de macaco; nos dois, uma ponderação das virtudes e das culpas. No Livro egípcio dos mortos, uma pena e um coração ocupam os pratos da balança; no Bardo Thödol, pedrinhas brancas e pretas. Os tibetanos têm demônios que agem como furiosos verdugos; os egípcios, o Devorados das

Sombras.

O morto jura não ter sido causa de fome nem causa de choro, não ter matado e não ter mandado matar, não ter roubado os alimentos funerários, não ter falsificado as medidas, não ter retirado o leite da boca da criança, não ter afastado os animais do pasto, não ter

aprisionado os pássaros dos deuses.

Se mente, os quarenta e dois juízes o entregam ao Devorador, “que pela frente é crocodilo, pelo meio leão e, por trás, hipopótamo”. É ajudado por outro animal, Babaí, a respeito do qual sabemos unicamente que é horrendo e que Plutarco o identifica com um titã, pai da Quimera.

O DEVORA DOR D A S S O M B R A S

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Há na Terra, e sempre houve, trinta e seis homens retos cuja missão é justificar o mundo perante Deus. São os lamed wufnik. Não se conhecem entre si e são muito pobres. Se um homem chega a saber que é um lamed wufnic, morre imediatamente, e um outro, talvez em outra região do planeta, toma seu lugar. Sem suspeitar, esses homens são os pilares secretos do universo. Não fosse por eles, Deus aniquilaria o gênero humano. São nossos salvadores e não sabem.

Essa crença mística dos judeus foi exposta por Max Brod. Sua remota raiz pode ser encontrada no capítulo 18 do Gênesis, quando o Senhor declara que não destruirá a cidade de Sodoma se nela houver dez homens justos.

Os árabes têm um personagem análogo, os kutb.

OS LAMED WUFNIKS

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De acordo com os chineses, o galo celestial é uma ave de plumagem de ouro, que canta três vezes por dia. A primeira, quando o Sol toma seu banho matinal nos confins do oceano; a segunda, quando o sol está no zênite; e a última, quando afunda no

poente. O primeiro canto sacode os céus e desperta a humanidade. O galo celestial é antepassado do yang, princípio masculino do universo. Dispõe de três pésaa e faz seu ninho na árvore fu-sang, cuja altura chega a milhares de milhas

e que cresce na região da aurora. A voz do galo celestial é muito forte; seu porte, majestoso. Põe ovos dos quais saem pintos de crista vermelha que responde a seu canto pela manhã. Todos os galos da terra descendem do galo celestial, que também se chama galo da aurora.

O GALO CELESTIAL

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“Esse animal é muito comum nas regiões do norte e tem quatro ou cinco polegadas de comprimento; é dotado de um instinto curioso; os olhos parecem cornalinas e o pêlo é negro-

azeviche, sedoso e flexível, macio como um travesseiro. Gosta muito de tinta nanquim, e, quando as pessoas escrevem, senta-se com uma mão sobre a outra e as pernas cruzadas

esperando que terminem, e bebe o resto da tinta. Depois torna a acocorar-se e fica quieto.”

Os poetas e a mitologia o ignoram; mas todos, em algum momento, já o encontramos, na quina de um capitel ou no centro de uma frisa, e sentimos um levíssimo desconforto. O cão que

guardava os rebanhos do triforme Gerião tinha duas cabeças e um corpo, e felizmente Hércules o matou; o t’ao-t’ieh inverte esse procedimento e é mais horrível, porque a enorme cabeça projeta

um corpo para a direita e outro para a esquerda. Costuma ter seis patas, porque as da frente servem para os dois corpos. As feições podem ser de dragão, de tigre ou de gente; “máscara de

ogro”, é como os chamam os historiadores da arte. É um monstro formal, inspirado pelo demônio da simetria a escultores, oleiros e ceramistas. Mil e quatrocentos anos antes da era cristã,

durante a dinastia dos Shang, já figurava em bronzes rituais. T’ao-t’ieh significa “glutão”. Os chineses o pintam na louça para aconselhar a frugalidade.

O MACAC O D A T I N T A

O T ’ AO - T ’ I E H

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Parece que a sibila da Eritréia afirmou, num de seus oráculos, que Roma seria destruída pelos peritios. Quando os ditos oráculos desapareceram, no ano 642 da nossa era (foram queimados acidentalmente), quem se ocupou de restaurá-los omitiu o vaticínio, por isso eles não trazem

nenhuma indicação a respeito.

Diante de um antecedente assim obscuro, tornou-se necessário que lançasse mais luz sobre essa questão específica. Foi assim que, depois de mil e uma dificuldades, soube-se que no século XVI um rabino de Fez (com toda a certeza Aaron-Ben-Chaim) publicou um opúsculo dedicado aos animais fantásticos em que era citada a obra de um autor árabe que lera e em que se mencionava a perda de um tratado sobre os peritios quando Omar incendiara a biblioteca de Alexandria. Embora o rabino não forneça o nome do autor árabe, teve a feliz idéia de transcrever alguns parágrafos de sua obra, deixando-nos uma valiosa referência a respeito do peritio. Na falta de maiores elementos, é

adequado que nos limitemos a copiar textualmente os referidos parágrafos; ei-los aqui:

“Os peritios vivem em Atlântida e são metade cervos, metade aves. Do cervo têm a cabeça e as patas. Quanto ao corpo, é uma ave perfeita, com as asas e as penas que lhe correspondem. “Sua particularidade mais assombrosa consiste no fato de que, quando atingidos pelos raios do Sol, em vez de projetoar a sombra do próprio corpo, projetam a de um ser humano, de onde alguns concluem

que os peritios são espíritos de indivíduos que morreram longe da proteção dos deuses.

“[...] já foram surpreendidos alimentando-se de terra seca [...] voam em bandos e foram vistos a grande altitude nas Colunas de Hércules.

“[...] eles (os peritios) são temíveis inimigos do gênero humano. Parece que quando conseguem matar um homem. na mesma hora sua sombra corresponde a seu corpo e obtêm o favor dos deuses [...]”

Embora os parágrafos precedentes sejam suficientemente explícitos, é lamentável que não tenha chegado informação confiável sobre os peritios.

O opúsculo do rabino que permitiu essa descrição estava depositado até antes da última guerra mundial na Universidade de Munique. É doloroso dizê-lo, mas atualmente esse documento também desapareceu, não se sabe se em consequência de um bombardeio ou por obra dos nazistas. É de esperar que, se esta última tiver sido a causa de sua perda, com o tempo ele reapareça para adornar

alguma biblioteca do mundo.

O P E R I T I O

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Assim os chamaram os gregos; em Roma lhes deram o nome de faunos, pãs e silvanos. Da cintura pra baixo eram cabras; o corpo, os braços e o rosto eram humanos e peludos. Tinham pequenos cornos na testa, orelhas pontiagudas e nariz encurvado. Eram lascivos e beberrões. Acompanham o deus Baco em sua alegre conquista do

Industão. Armavam emboscadas para as ninfas; adoravam dançar e tocavam flauta com destreza. Os camponeses os veneravam e lhes

ofereciam as primícias das colheitas. Também lhes ofereciam ovelhas em sacrifício.

Um exemplar dessas divindades menores foi capturado numa caverna da Tessália pelos legionários de Sila, que o levaram até seu chefe.

Emitia sons inarticulados e era tão repulsivo que Sila imediatamente ordenou que o devolvessem às montanhas.

A memória dos sátiros influenciou a imagem medieval dos diabos.

O S S ÁT I R O S

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A cada uma das quatro raízes ou elementos em que os gregos haviam divido a matéria correspondeu, depois, um espírito. Na obra de Paracelso, alquimista e médico suiço do século XVI, encontramos

quatro espíritos elementares: os gnomos da terra, as ninfas da água, as salamandras do fogo e os silfos, ou sílfides, do ar. Essas

palavras são de origem grega. Littré procurou a etimologia de “silfo” nas línguas celtas, mas é totalmente inverossímil que Paracelso

conhecesse essas línguas ou sequer suspeitasse de sua existência.

Atualmente ninguém acredita nos silfos; mas a locução “silhueta de sílfide” continua sendo aplicados às mulheres esbeltas como elogio trivial. Os silfos ocupam um lugar intermediário entre os

seres materiais e os imateriais. A poesia romântica e o balé não os desdenharam.

O S S I L F O S

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Plínio atribui a Zaratustra, fundador da religião que até hoje professam os parses de Bombaim, a redação de dois milhões de versos; o historiador árabe Tabari afirma que suas obras completas, eternizadas por piedosos calígrafos, abarcam doze mil couros

de vaca. Consta que Alexandre da Macedônia mandou queimá-las em Persépolis, mas que a boa memória dos sacerdotes foi capaz de salvar os textos fundamentais, e desde

o século IX eles são complementados por uma obra enciclopédica, o Bundahish, que contém esta página.

“Sobre o asno de três patas dizem que está no meio do oceano e que três é o número de seus cascos e seis o de seus olhos e nove o de suas bocas e dois o de suas orelhas e um o de seu chifre. Seu pêlo é branco, seu alimento é espiritual, e todo ele é justo. E dois dos seis olhos estão no lugar dos olhos e dois na ponta da cabeça e dois na nuca;

com o olha penetrante de seis olhos domina e destrói.

“Das nove bocas três estão na cabeça e três na nuca e três dentro das ilhargas… cada casco, pousado no chão, cobre o lugar de uma manada de mil ovelhas, e sob o

esporão podem manobrar até mil ginetes. Quanto às orelhas, são capazes de abarcar o Mazandarão.*1 O chifre dá a impressão de ser de ouro e oco, e dele cresceram mil

ramificações. Com esse chifre vencerá e dissipará todas as corrupções dos malvados”.

Sobre o âmbar sabe-se que é o esterco do asno de três patas. Na mitologia do masdeísmo, esse monstro benéfico é um dos auxiliares de Ahura Mazdah (Ormuz),

princípio da vida, da luz e da verdade.

O A S N O DE TRÊ S PATAS

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O unicórnio chinês, ou k’i-lin, é um dos quatro animais de bom agouro; os outros são o dragão, a fênix e a tartaruga. O unicórnio é o primeiro dos

animais quadrúpedes; tem corpo de cervo, cauda de boi e cascos de cavalo; o chifre que lhe cresce na testa é de carne; o pêlo do lombo é de cinco cores

mescladas; o da barriga é pardo ou amarelo. Não pisoteia a grama verde nem faz mal a alguma criatura. Sua aparição pressagia o nascimento de um rei

virtuoso. É de mal agouro ferí-lo ou encontrar seu cadáver. O términio de sua vida é de mil anos.

Quando a mãe de Confúncio o tinha no ventre, os espíritos dos cinco planetas levaram-lhe o animal “que tinha forma de vaca, escamas de dragão

e um chifre na testa”. É assim que Soothill descreve a anunciação; uma variante recolhida por Willhelm diz que o animal se apresentou por conta

própria e cuspiu uma lâmina de jade em que se liam as seguintes palavras:

FILHO DO CRISTAL DA MONTANHA (OU DA ESSÊNCIA DA ÁGUA), QUANDO A DINASTIA TIVER CAÍDO GOVERNARÁS COMO REI SEM

INSÍGNIAS REAIS.

U N I C Ó R N I O C HINÊ S

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