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PROFETAS E PROFETISAS, PROMOTORES(AS) DA JUSTIÇA, NA DEFESA DOS DIREITOS DOS POBRES Dom Sebastião Armando Gameleira Soares

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PROFETAS E PROFETISAS, PROMOTORES(AS) DA JUSTIÇA, NA DEFESA DOS DIREITOS DOS POBRES

Dom Sebastião Armando Gameleira Soares

DIREITOS HUMANOS

1. Dois pressupostos estão contidos na noção de Direitos Humanos: LIBERDADE (Direitos) e LEI (Deveres)

2. Na base da concepção moderna de Direitos Humanos tem estado o princípio do INDIVIDUO (burguês), inspirado pela corrente racionalista/ intelectualista/ abstrata que está bem sintetizada na frase do filósofo francês Descartes: “EU penso, logo existo”; e no liberalismo econômico

1. A Bíblia nos apresenta uma visão realista do ser humano chamado a tornar-se PESSOA, livre, ou seja, carrega em si uma vocação e deve corresponder a ela em condições sociais hostis e degradadas, já que a sociedade (condição humana) se acha marcada pela alienação (pecado), isto é, o não acatamento da estrutura profunda da realidade e de suas exigências

A PROPOSTA DA BÍBLIA:

2. Daí nasce uma linguagem nada idealista ou abstrata, antes , intensamente concreta, quando se deixa claro que é preciso fazer a crítica do estado atual da realidade e lutar para chegar a reformular historicamente a vocação que, por exemplo, no relato da criação se aproxima bem do Novo Testamento pelo tema da “imagem de Deus”

3. Por isso, não se acha na Bíblia a distinção corrente entre Direitos Humanos e Direitos Sociais, pois os direitos das pessoas são necessariamente sociais, compartilhados socialmente; direitos e deveres são algo solidário

4. No profetismo, enfatiza-se a DENÚNCIA (análise crítica da realidade) e se reafirma pelo ANÚNCIO a esperança de novo momento histórico positivo, mediante a ação transformadora da sociedade, nesse sentido, “ação revolucionária”, enquanto radical reviravolta, tanto dos valores e crenças pessoais, quanto das relações humanas e das estruturas econômicas, sociais , políticas e culturais (cf. Rm 12,1-3)

A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

1. A consciência moderna de indivíduo significou ruptura com a cultura medieval, a saber, a afirmação de cada ser humano frente à pressão coletiva e institucional: quem nascia nobre permanecia nobre; quem nascia plebeu permanecia plebeu. Era afirmação da possibilidade de ascensão social. Com uma ressalva: a “cidadania” do indivíduo, porém, não alcançava mulheres nem pobres

2. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi sem dúvida um marco histórico na sociedade, sobretudo ocidental, mas ainda parece tributária a uma linguagem marcada pelo individualismo burguês e pelo idealismo racionalista que herdamos da cultura helênica: “Todo ser humano já nasce...” Será verdade de fato na história? Não devemos esquecer que o racionalismo é individualista e classista

O NOVO TESTAMENTO

1. No Novo Testamento, de modo particular nos escritos paulinos, a referência central não é INDIVÍDUO, mas PESSOA, e esta se constitui pela liberdade e se define como feixe de relações de igualdade, tendo como fundamento último a referência à transcendência divina e à condição divina da humanidade, revelada particularmente em Jesus, o qual se refere à divindade como sua íntima fonte (Pai)

O PRIMEIRO TESTAMENTO

2. No Primeiro Testamento, prevalece a mentalidade coletiva de aliança do povo com Deus e, consequentemente, entre si. Isto é importante base para o Novo Testamento: todo o povo – consequentemente todos os membros do povo – se acha em aliança com a Transcendência, o que confere radical e sublime dignidade a cada membro do povo e a suas relações de aliança entre si. Aqui está a base para o Apóstolo São Paulo cunhar o conceito de “Ecclesía” como nova assembléia alternativa à sociedade vigente

A TAREFA DA IGREJA

1. A concepção bíblica oferece a base para a missão da Igreja quanto aos Direitos Humanos:

1.1. A análise crítica e a denúncia da condição da realidade;

1.2. A ação diaconal (serviço) de transformação no campo econômico, sociopolítico e cultural;

1.3. Iniciando pelo anúncio integral do Evangelho como mensagem de “libertação do ser humano todo inteiro e de todos os seres humanos”, criaturas e filhas e filhos de Deus;

1.4. Promovendo o conceito de direitos humanos em sua integralidade: direitos da pessoa, direitos coletivos do povo, direitos dos povos;

1.5. Tendo em conta as condições objetivas da evolução das condições de vida da sociedade e da tecnologia, e de acordo com a evolução da consciência humana;

1.6. Por exemplo, um dado novo no campo do Direito é a íntima articulação entre Direitos Humanos e Direitos Ambientais, a partir da nova consciência de que o ser humano é terrestre (Adam), é TERRA (Adamah), e a TERRA é um complexo e entrelaçado “organismo” vivo, como se fossem macho e fêmea em intimidade matrimonial;

1.7. A Igreja já não deve situar-se nas vizinhanças do poder do Estado, mas na rede de articulação da sociedade civil, a qual deve ser o sujeito principal da vida sociopolítica e cultural, e tem o papel de controle sobre a minoria poderosa e sobre o Estado; este, por sua vez, deve ser cobrado por sua tarefa de representar os interesses da sociedade, como um todo, na função de regulador de relações e instituições, mediante a LEI. É evidente que haverá sempre tensão entre os interesses coletivos mais amplos e os interesses de pequenos grupos de poder, O que exige lutar para fortalecer o poder da sociedade civil. Isto só se torna efetivo na medida em que a sociedade se organiza como sujeito coletivo consciente e politicamente forte, como poder popular.

A TAREFA DA PROFECIA

1. Não sabemos quem é Deus, é mistério “abscôndito”, diz Isaías. Para estabelecer o DIREITO, a Bíblia parte da realidade experimentada por nós, ou seja, de alguma maneira Deus se faz presente na vida das pessoas, na forma de um valor absoluto que funciona como divindade, isto é, se impõe como valor central e dá sentido a todos os valores que dirigem a vida. Pouco importa o nome que Lhe damos, o que importa é que, por esse valor se vive, se mata e se morre. Há sempre um valor na vida que exerce a função de “Deus” ou “deus”;

2. O valor “divino” que se impõe e legitima a vida das pessoas pode libertá-las ou dominá-las. Se liberta, a Bíblia o compreende como presença do Deus vivo. Se oprime, são os ídolos, expressão de nossa alienação da realidade nossa e do mundo;

3. O Deus vivo é invisível e transcendente, não pode ser representado por nenhuma criatura e é o fundamento de toda a realidade, não se pode manipulá-Lo;

4. Manifesta-se na maravilha da natureza por Ele criada e particularmente no ser humano. Para a Bíblia, o homem e a mulher são em conjunto a Sua imagem, semelhantes a Ele enquanto livres e responsáveis por administrar, “cultivar e guardar” o mundo como jardim divino;

5. Para que a liberdade originária seja preservada e se desenvolva, a Bíblia estabelece o Direito ou a Lei, como explicitação de condições concretas em vista de manter a liberdade, a igualdade e a responsabilidade entre as pessoas e em face da realidade mais ampla do mundo. A profecia é a maneira concreta de vigiar para que essas condições sejam compridas;

6. O Direito ou a Lei tem dois eixos fundamentais: preservar a liberdade das pessoas, vigiando para que não se imponha a opressão nas relações humanas, quer interpessoais, quer sociais, quer politicas; e para que a liberdade seja preservada é preciso que haja o máximo possível de igualdade quanto à posse e administração das coisas, ou seja, na relação com o meio ambiente (ecologia) e nas relações sociais de produção (economia política) (cf. Os 4,1-3). Isto equivale a dizer que para a Bíblia o que prevalece não é o direito do indivíduo, mas da pessoa e esta só tem sentido na coletividade, uma vez que é feixe de relações e se constitui em referência às demais pessoas e a toda a realidade do mundo. É o “xalôm”, a felicidade ou plena harmonia , o “bem viver”, de nossos povos aborígenes.

7. Por isso, a profecia denuncia sempre o poder sobre as pessoas (opressão) e a apropriação das coisas (injustiça), as duas “máquinas” de produzir pobres e excluídos(as)

8. De maneira realista, a Bíblia desmascara e revela como está a realidade do povo quanto a esses dois eixos essenciais da vida de cada pessoa e da coletividade: poder e riqueza. De um lado, o Deus vivo; doutro lado, os ídolos.

9. E chama as pessoas a converter-se, isto é, mudar a direção de seus caminhos, em dois sentidos: quanto aos poderosos libertar-se da vontade de poder (opressão) e da ganância da posse (apropriação); quanto às vítimas, tomar consciência da própria dignidade de imagem de Deus, e lutar para libertar-se do medo e da covardia, e organizar-se coletivamente, “exorcisar” a “introjeção do opressor no oprimido” (Paulo Freire).

CRITÉRIOS PARA COMPREENDER A PROFECIA BÍBLICA

1. Só se compreende o profetismo a partir de sua inserção na crise histórica;

2. Só se entende a profecia a partir de sua inserção na política;

3. Só se entende o profetismo a partir de sua parcialidade em favor de oprimidos(as)

4. Só se entende o profetismo a partir da experiência pessoal de indissolúvel aliança da causa de Deus com a causa dos necessitados(as);

5. Só se pode entender a profecia bíblica se se tem em conta a “negação” da civilização ;

6. Só se entende a profecia como denúncia da alienação religiosa;

7. PROFECIA é palavra apaixonada que denuncia situações de opressão e injustiça, e indica caminhos de libertação, com a certeza de que é possível a novidade na história. Hoje diríamos, a certeza de que outro mundo é possível, necessário e urgente. Na experiência profética, percebe-se como é intenso o senso de urgência;

8. O protesto apaixonado da profecia não convoca a ver a Deus, fixar-se em Sua imagem, como é tão comum nas religiões. De fato, fixar-se na imagem é próprio das religiões dos ídolos, pois a imagem é sempre reflexo do artífice ou seja de nós que nos projetamos nela;

9. Para a profecia, como aliás para a Bíblia em geral, não se pode ver a Deus. A vocação do povo de Deus é escutar-Lhe a Voz, que soa a partir dos acontecimentos e da interpretação que as pessoas e grupos fazem dos acontecimentos. Assim, é imprescindível escutar-nos umas pessoas as outras, de tal forma que a Voz ecoe como grito coletivo, exigência de que se cumpra a Lei de Deus, que preserve a liberdade e a igualdade do conjunto do povo;

10. “Escutar” sugere o ato complexo de voltar-se para outrem, dirigir-lhe o ouvido para perceber suas necessidades; supõe relacionar-se com a alteridade, a diferença e a diversidade, e não impor a própria visão e a própria palavra, o que nos é facultado é propor a palavra. Em termos teológicos, é busca de escutar a Voz de Deus através dos acontecimentos e de milhares de vozes que não são simplesmente o eco de minha própria voz;

11. Para isso é preciso maturidade para acolher experiências alheias, confiar e entregar-se a uma obra coletiva de escuta e de atuação na história. Naturalmente, equivale a vencer o medo de viver que nos leva a agarrar-nos a nós mesmos(as) como a um “brinquedo” que a criança não quer soltar com medo de perder-se. Nosso “brinquedo” é a vida e não compartilhá-la revela nosso medo de viver, de perder nosso lugar

A VOCAÇÃO PROFÉTICA

1. O relato da vocação de Moisés pode ser de grande inspiração para nós. Antes de tudo, deixa-se chocar pelo impacto da realidade de seu povo e decide defendê-lo e uni-lo. Essa descoberta transtorna e muda radicalmente sua vida: solidarizar-se com gente oprimida complica a vida e pode levar à marginalização e à perseguição. Moisés é obrigado a tornar-se migrante;

2. Moisés porém engana-se quanto ao método de ação: Pretende agir individualmente e de maneira imediatista. A experiência com Deus no deserto é narrada na Bíblia como o salto de consciência em relação a sua missão: percebe melhor quem é Deus, o “Deus dos Pais” que vê e escuta o clamor do povo e decide Ele mesmo descer para libertá-lo. Desce e se revela como labareda de fogo que não se consome, o que simboliza o chamado a empunhar a espada de fogo da batalha de Deus pela liberdade do povo;

3. Moisés descobre que a vocação é de Deus, o qual se sente Ele mesmo chamado pelo grito do povo, e se sente apenas como instrumento: nem a vitória será sua para ofuscá-lo pelo orgulho, nem o fracasso deverá abatê-lo, pois a causa é de Deus mesmo: “Eu estarei contigo”;

4. É fundamental perceber que Deus revela Seu Nome (YHWH, “Eu estou aí”) na conversa sobre a libertação do povo. Na verdade, a libertação é a causa de Deus, é o que de fato Lhe interessa. Não podemos saber quem é Deus, só podemos perceber Sua presença em nossas experiências de libertação, ou seja, de construção histórica da liberdade;

5. Além disso, Moisés aprende o método de agir: reunir o povo e, assim fortalecido, enfrentar o opressor, para defendê-lo. No deserto, em seguida o sogro vai ajudá-lo a aprender que sua liderança tem de ser compartilhada, pois quem trabalha sozinho não dá conta de resolver tudo, e além disso se esgota;

6. Para assumir esse novo método, foi preciso perceber que a missão é mais profunda, é de Deus mesmo; por isso, não cabe o medo nem a fuga. Também percebeu que a missão é mais ampla, é coletiva; finalmente, que não pode ser assumida de modo imediatista, é de longo respiro, pois a construção da liberdade na história, a desalienação da consciência humana é tarefa inacabável que tem de ser assumida por cada geração.

A VIDA DO POVO É O CENTRO DA FÉ

Para a Bíblia, não vêm em primeiro lugar as questões religiosas, antes, são as questões econômicas, sociais, políticas e culturais da vida em sociedade que estão no centro de nossas relações com Deus, isto é, no centro da fé. É daí que brota o chamado à prática do amor e da esperança. Talvez o esquema a seguir ajude a clarear esta afirmação.

MANDAMENTOS (DIREITO)

“Há muitas maneiras de amar o próximo, mas só há uma maneira de amar a Deus, amando o próximo”

DEUS Não aos ídolos Não representável Não manipulável Fonte da liberdade e da

igualdade: “Sábado”

FUNDAMENTO TRANSCENDENTE

PRÓXIMO (A) Homem e Mulher, imagem e

semelhança de Deus: Liberdade e Igualdade na História (relações econômicas, sociais, políticas e culturais)

RELAÇÕES CONCRETAS

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