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1/44 C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm Sexta-feira, Setembro 15, 2006 O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste por Vandeck Santiago A surpreendente história de como, quando e por que a nação mais poderosa do planeta interveio na região mais pobre do hemisfério. Enquanto Mr. Gordon não vem A tarefa cumprida neste caderno especial parecia, a princípio, irrealizável como trabalho jornalístico, tamanho o gigantismo de que se revestia. Era preciso localizar e consultar documentos que se encontravam em arquivos dos Estados Unidos. Era preciso localizar e entrevistar personagens que estavam aqui e nos Estados Unidos. Era preciso dar sentido a dezenas de informações dispersas e checar a veracidade delas. Uma lista interminável de "era preciso...". Houve momentos em que se insinuou a opção tentadora de parar tudo, restringir o alcance da reportagem e publicá-la tal como estava. Mas a generosidade de cada um dos entrevistados, abrindo caminhos, e as condições dadas pelo Diario, propiciando o tempo e os recursos necessários, culminaram na conclusão do trabalho - ao fim de uma extenuante jornada de cinco meses de investigação jornalística. Localizamos todas as pessoas que planejávamos entrevistar, aqui e no exterior. A única entrevista não obtida foi a do embaixador dos EUA no Brasil naquela época, Lincoln Gordon. Em gentil contato com a reportagem ele alegou dois motivos para não falar, no momento: primeiro julga que teve uma atuação "apenas periférica" em relação ao Nordeste (há controvérsias, como veremos nas páginas seguintes); segundo, está escrevendo suas memórias e o método que utiliza consiste em ir enfocando cada período histórico sucessivamente. No momento Gordon - que tem 93 anos - está no capítulo 6 (anos 50) Só "chegará" ao Brasil no capítulo 8, e prevê que isso aconteça no início de 2007. Ok, quando 2007 chegar, tornaremos a entrar em contato com o embaixador. Mas, enquanto isso, vamos contando nossa história. Quando os americanos estavam chegando Em outubro de 1961 o economista e diplomata norte-americano Merwin Bohan desembarcou no Recife com uma missão do presidente dos Estados Unidos, John Kennedy. Deveria elaborar um plano de desenvolvimento para o Nordeste. Comandando uma equipe de três mistura digital Um site onde você pode ler de tudo um pouco e fazer seus comentários também. Gostaria de criar debates sobre como melhorar o lugar onde vivemos. Quem sou eu Nome: Fernando F. Almofrey Local: VITÓRIA DE SANTO ANTÃO / RECIFE, PERNAMBUCO, BR Visualizar meu perfil completo Previous Posts Commodities País alcança a meta de formar 10 mil doutores por ... Nova era para a ciência islâmica? Peroba e ILEGALIDADE Conhecimento!!!! Boas Festas Demitido, repórter acusa TV Globo de manipulação n... Independência ou voto! A HIPER COMUNICAÇÃO DO DNA Mães e Pais Próximo blog» Criar um blog | Login PESQUISAR BLOG SINALIZAR BLOG

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1/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

Sexta-feira, Setembro 15, 2006

O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste

O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste

por Vandeck Santiago

A surpreendente história de como, quando e por que a nação mais

poderosa do planeta interveio na região mais pobre do hemisfério.

Enquanto Mr. Gordon não vem

A tarefa cumprida neste caderno especial parecia, a princípio, irrealizável

como trabalho jornalístico, tamanho o gigantismo de que se revestia. Era

preciso localizar e consultar documentos que se encontravam em

arquivos dos Estados Unidos. Era preciso localizar e entrevistar

personagens que estavam aqui e nos Estados Unidos. Era preciso dar

sentido a dezenas de informações dispersas e checar a veracidade

delas. Uma lista interminável de "era preciso...". Houve momentos em

que se insinuou a opção tentadora de parar tudo, restringir o alcance da

reportagem e publicá-la tal como estava. Mas a generosidade de cada

um dos entrevistados, abrindo caminhos, e as condições dadas pelo

Diario, propiciando o tempo e os recursos necessários, culminaram na

conclusão do trabalho - ao fim de uma extenuante jornada de cinco

meses de investigação jornalística. Localizamos todas as pessoas que

planejávamos entrevistar, aqui e no exterior. A única entrevista não obtida

foi a do embaixador dos EUA no Brasil naquela época, Lincoln Gordon.

Em gentil contato com a reportagem ele alegou dois motivos para não

falar, no momento: primeiro julga que teve uma atuação "apenas

periférica" em relação ao Nordeste (há controvérsias, como veremos nas

páginas seguintes); segundo, está escrevendo suas memórias e o

método que utiliza consiste em ir enfocando cada período histórico

sucessivamente. No momento Gordon - que tem 93 anos - está no

capítulo 6 (anos 50) Só "chegará" ao Brasil no capítulo 8, e prevê que

isso aconteça no início de 2007.

Ok, quando 2007 chegar, tornaremos a entrar em contato com o

embaixador. Mas, enquanto isso, vamos contando nossa história.

Quando os americanos estavam chegando

Em outubro de 1961 o economista e diplomata norte-americano Merwin

Bohan desembarcou no Recife com uma missão do presidente dos

Estados Unidos, John Kennedy. Deveria elaborar um plano de

desenvolvimento para o Nordeste. Comandando uma equipe de três

mistura digital

Um site onde você pode ler detudo um pouco e fazer seuscomentários também. Gostaria decriar debates sobre comomelhorar o lugar onde vivemos.

Quem sou eu

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dezenas de especialistas em áreas diversas, Bohan concluiu o trabalho

em cerca de quatro meses. Em fevereiro de 1962 o relatório - intitulado

Northeast Brazil Survey Team Report, "Missão de Estudos sobre o

Nordeste do Brasil" - chegou às mãos de Kennedy. Pela primeira vez o

governo dos EUA preparava um plano específico de desenvolvimento

para uma região sub-nacional. A partir de então o Nordeste tornou-se

área prioritária no mais ambicioso programa dos EUA para a América

Latina, em toda a história: a Aliança para o Progresso, que pretendia num

prazo de 10 anos e com um investimento de US$ 20 bilhões elevar o

padrão de vida nos países latino-americanos a índices comparáveis aos

do mundo desenvolvido. O programa faz neste mês de agosto exatos 45

anos, mas sem nenhuma celebração, porque fracassou.

O "Relatório Bohan” , como o plano ficou conhecido, não foi divulgado

para o grande público. O DIARIO obteve uma cópia dele na Truman

Library (Biblioteca Truman), onde estão os arquivos do presidente Harry

Truman, na cidade de Independence, Missouri, nos Estados Unidos. A

apuração jornalística poderia cessar aí, no documento e na sua

descoberta, dado que a relevância de um e outro já justificavam uma

reportagem especial. Em vez disso utilizamos o "Relatório" como ponto

de partida para seguir adiante. Consultamos cerca de 300 páginas dos

arquivos norte-americanos, incluindo 1) relatórios da CIA a respeito do

Nordeste, que, embora já liberados, até então nunca haviam sido usados

para estudos específicos sobre a região, e 2) pronunciamentos do

presidente Kennedy e relatos de encontros oficiais em que ele se referiu

ao Nordeste.

Novamente a reportagem poderia ter parado aí. Mais uma vez, fomos

adiante. Localizamos personagens que participaram da história daquele

período. Como, entre outros, o padre pernambucano que atuou junto com

um agente da CIA (sem saber, diz o padre na entrevista que nos

concedeu) e o especialista em direito constitucional (pernambucano

formado na Faculdade de Direito) que tinha como livro de cabeceira a

obra clássica de um norte-americano (Breviário de um homem de bem,

de Benjamin Franklin), mas que presidiu e relatou o inquérito no qual os

convênios assinados entre os EUA e estados do Nordeste foram

considerados uma afronta à nossa soberania. Tivemos acesso à íntegra

do inquérito - outra peça histórica, de repercussão nacional, mas hoje

completamente desconhecida.

Entrevistamos brasilianistas norte-americanos, autores de obra

reconhecida na área (como Joseph Page, Martha Huggins, Stefan

Robock e Anthony Pereira), e brasileiros igualmente conceituados, como

Francisco de Oliveira, Moniz Bandeira e Wanderley Guilherme dos

Santos. A reportagem consistiu ainda na consulta a 410 edições do

DIARIO entre 1961 e 1965, na busca de matérias e artigos sobre o

Nordeste nos arquivos do The New York Times e na leitura de trabalhos

acadêmicos do Brasil e uma bibliografia composta em boa parte de

obras esgotadas ou nunca traduzidas para o português.

A conclusão do levantamento mostra que nenhuma outra área do Brasil,

no período Kennedy (1961-1963), teve uma presença americana tão

ampla quanto o Nordeste - o que inclui ajuda financeira (com um acordo

específico para a região, assinado em 13 de abril de 1962, entre

Kennedy e o presidente do Brasil, João Goulart), interferência na política

interna, infiltração nos movimentos sociais e ação de agentes de CIA.

O trabalho durou cinco meses, com dedicação exclusiva do repórter. O

prazo - talvez o mais longo já utilizado por um veículo do Nordeste na

produção de uma reportagem -, as condições (para viagens, entrevistas

e aquisição de material), os cuidados com a exatidão (a ponto de

procurar checar cada fato não documentado em pelo menos duas fontes,

explicitando no texto os casos em que a fonte era apenas uma) e o

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acesso a material inédito fazem deste caderno especial também um

documento. Que reúne fatos dispersos, dando-lhes um sentido

impossível de ser percebido quando analisados apenas isoladamente.

Que conta histórias até então não contadas e resgata outras da injustiça

do esquecimento. Que é uma contribuição jornalística à história não só

do Nordeste, mas da própria América Latina e das relações com os

Estados Unidos. E que, esperamos, tenha uma consistência à altura da

importância dos acontecimentos que relata.

As aldeias na história

As relações dos Estados Unidos com o Brasil são escassamente

abordadas em livros de autores brasileiros. Se em vez de "Brasil" a gente

escrever "Nordeste do Brasil" e limitar o período aos anos 60, a soma

será igual a zero.. Faça-se a lista das obras recentes sobre o golpe

militar de 1964, de escritores nacionais - e mesmo aí praticamente não

se fala na interferência norte-americana na região, apesar de toda a

magnitude que ela teve. Trata-se de uma conspiração contra o Nordeste?

Ou é puro preconceito? Nem uma coisa nem outra. Trata-se de um

fenômeno que o historiador pernambucano Potiguar Matos já definia em

1974, com perfeição. "Os episódios históricos ocorridos nos Estados

economicamente mais poderosos têm maior repercussão histórica, são

apresentados com mais significação, e aqueles episódios ocorridos nos

Estados economicamente mais fracos como que se diluem e

desaparecem nas páginas da nossa História", dizia ele, em palestra

sobre o sesquicentenário da Confederação do Equador. Em 1974

estávamos longe do atual estágio do desenvolvimento capitalista, a

globalização - fase em que a defesa da história regional torna-se um

imperativo para os que desejam preservar a memória e a identidade de

suas aldeias. "Em resposta ao avanço do atual processo de

globalização, que tende a estandardizar e a massificar os padrões de

procedimentos e os costumes de cima para baixo, cresce o interesse

das comunidades regionais e periféricas pela sua memória, pela sua

história", dizem os organizadores do livro Intérpretes do Brasil - Cultura e

identidade, lançado em 2004 em um estado também cultor da própria

história, o Rio Grande do Sul. O caderno especial que ora lançamos

segue nessa trilha. Sem provincianismo, que é a doença infantil da

questão regional, mas convencido de que há uma singularidade

nordestina nas relações Kennedy-Brasil. E com a convicção de que ser

universal é pertencer a todos os lugares, mas sem deixar de pertencer

ao lugar em que nasceu - seja o Rio Grande do Sul, o Nordeste,

Chiuahaua ou qualquer outra comunidade do Brasil ou do mundo.

Oliveira Lima e Nabuco, pioneiros

O primeiro estudo produzido por um brasileiro sobre os Estados Unidos,

estabelecendo comparações entre os dois países, é de autoria de um

historiador e diplomata pernambucano, Oliveira Lima (1867-1928).

Publicado em 1899, com o título Nos Estados Unidos - Impressões

políticas e sociais, é resultado de uma vivência de três anos nos EUA e

nele Oliveira Lima compara o atraso do Brasil com a modernização e

crescimento pelo qual os EUA estavam passando. Em 1912, novo livro,

The evolution of Brazil compared with that of Spain and Anglo-Saxon

America, fruto de 12 palestras que dera em universidades americanas.

Em virtude desses trabalhos ele "pode legitimamente ser considerado

como um dos primeiros, senão o founding father [Pai fundador] dos

brasilianistas norte-americanos", diz Paulo Roberto Almeida em O Brasil

dos Brasilianistas (2001).

Outro pernambucano, o abolicionista e escritor Joaquim Nabuco (1849-

1910), também deixou marca na origem das relações entre os dois

países. Nabuco foi o primeiro embaixador do Brasil nos EUA, em 1906, aí

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ficando até a morte, quatro anos depois. Nesse período foi o embaixador

mais influente da América Latina em Washington. Era amigo de Elihu

Root, secretário de Estado, que ganharia o Prêmio Nobel da Paz em

1912, e um entusiasta da Doutrina Monroe ("A América para o os

americanos"), convicto de que sem uma aliança com os EUA o Brasil

estaria indefeso diante do expansionismo europeu.

Kennedy descobre o Nordeste. A história vai começar

Os grandes temas internacionais em 1961 eram Cuba, Berlim e o

Vietnam. Mas naquele 14 de julho de 1961 o presidente John Kennedy

fez um discurso em que colocava uma nova região no mapa da agenda

internacional - o Nordeste brasileiro. "Nenhuma área tem maior e mais

urgente necessidade de atenção do que o vasto Nordeste do Brasil",

disse ele logo na abertura do seu discurso.

O pronunciamento faz parte do acervo da Biblioteca Kennedy, em Boston,

Massachussets (EUA). Alguns trechos da fala do presidente - como o

que fala do "vasto Nordeste do Brasil" - foram notícias do dia seguinte em

grandes jornais do mundo inteiro, inclusive no mais influente de todos,

The New York Times. Neste, com foto de Kennedy ao lado de Celso

Furtado, superintendente da Sudene (Superintendência para o

Desenvolvimento do Nordeste).

No Brasil, impacto e surpresa. A região só merecia atenção em períodos

de seca e todos os seus problemas pareciam ser de ordem climática. "O

Nordeste é uma causa perdida", era opinião dita mesmo por autoridades

brasileiras. conforme conta o professor Stefan Robock, autor de uma das

primeiras obras econômicas sobre a região (O Desenvolvimento

Econômico do Nordeste, 1963). Mas agora era o homem mais poderoso

do planeta que dizia ser aquela região "uma prioridade". Deflagrava-se ali

um processo que, no dizer de Robock, hoje professor emérito da

Universidade de Columbia, em Nova York, iria "projetar o Nordeste como

um foguete no cenário internacional"

O acordo - Menos de um ano depois daquela frase, em 13 de abril de

1962, Kennedy e o presidente do Brasil, João Goulart, assinaram em

Washington o Northeast Agreement ("Acordo do Nordeste"). O único

acordo assinado pelos EUA, na época, destinado a uma região de um

País. Previa um investimento de US$ 131 milhões na região, num prazo

de dois anos (feita a atualização para os dias de hoje, seria o equivalente

a US$ 650 milhões). Era muito dinheiro, quase o dobro do total do

comércio então existente entre Brasil e União Soviética.

O "Acordo do Nordeste" hoje só é lembrado, vagamente, em obras

específicas. Para Kennedy era algo tão importante que, por exigência

dele, a embaixada no Brasil lhe enviava relatórios diários sobre os

andamentos dos trabalhos na região. Foi o primeiro teste da Aliança para

o Progresso - cujas metas, oficializadas em 17 de agosto de 1961, na

conferência de Punta del Este (Uruguai), ambicionavam levar o

desenvolvimento à América Latina em 10 anos, com um investimento

(dinheiro público e privado) de US$ 10 bilhões. O mundo vivia sob a

Guerra Fria, período em que EUA e URSS disputavam nacos do mundo

(sem guerrear entre si; daí a expressão "Guerra Fria", em contraponto à

guerra tradicional, "quente"). "A Guerra Fria não será ganha na América

Latina. Mas pode ser perdida lá", dizia Kennedy. Com 6 milhões de

habitantes, Cuba já era para ele uma gigantesca dor de cabeça -

imaginem se o Brasil, com uma população 10 vezes maior, pendesse

para a esquerda...

E é aí que o Nordeste entra na história. Ainda como candidato a

presidente, em 4 de novembro de 1960, Kennedy fez discurso dizendo

que se nada fosse feito a situação de miséria na América Latina iria

provocar o aparecimento de "vários Fidel Castro". E citava um dado

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apavorante: "No Nordeste do Brasil o padrão de vida é tão miserável que

em duas cidades de lá, este ano, nenhuma criança sobreviveu a mais de

um ano de idade". Ele tomou posse em 20 de janeiro de 1961. No mês

seguinte despachou para cá uma missão de auxiliares, como Arthur

Schlesinger Jr., atualmente um dos mais respeitados intelectuais dos

EUA, e George McGovern, do programa Food for Peace (Alimentos para a

Paz). O relatório de Schlesinger Jr., que esteve na Zona da Mata vendo a

vida como ela é, deixou Kennedy ainda mais preocupado. Precisava fazer

alguma coisa.

Kennedy era um ávido leitor de jornais. Descobrira o Nordeste em duas

reportagens publicadas no The New York Times, que tiveram grande

repercussão nos EUA. A primeira, em 31 de outubro de 1960, tascava o

título: "Pobreza do Nordeste gera ameaça de revolta". A segunda, no dia

seguinte, mantinha o fogo alto: "Marxistas estão organizando

camponeses no Brasil". Ambas eram de autoria de Tad Szulc, um dos

mais conceituados correspondentes internacionais do NYT [veja matéria

na página 7].

Tornada foco da atenção internacional, o Nordeste teve também o seu

passado vasculhado - e o que se encontrou lá não oferecia tranqüilidade.

Havia, primeiro, uma série de rebeliões em Pernambuco; depois,

Canudos. No passado mais recente, um acontecimento ainda mais

preocupante: em 1935 (ou seja, cerca de 30 anos antes do momento em

que se fazia a análise) o Nordeste tivera um levante liderado pelos

comunistas, a chamada Intentona Comunista. Nada mais nada menos

do que a primeira rebelião comandada por um partido comunista nas

Américas. Depois, nas eleições parlamentares de 19..., os comunistas

haviam obtido uma grande vitória em Pernambuco: elegeram ...

No passado e no presente, todos os caminhos indicavam que, para os

interesses do governo norte-americano, o Nordeste do Brasil era uma

região perigosa.O presidente Kennedy não estava divagando ao dizer,

naquele 15 de julho de 1961, que esta "vasta região" era sua

preocupação mais imediata.

A história ia começar.

Todos os homens do presidente

Durante o governo Kennedy o Nordeste virou rota para os principais

auxiliares dele. O primeiro grupo esteve aqui já em fevereiro de 1961,

pouco mais de um mês depois de sua posse como presidente. Era

comandado por dois peso-pesados: o professor Arthur Schlesinger Jr.,

atualmente um dos mais respeitados intelectuais dos EUA, e George

McGovern, diretor do programa Food for Peace (Alimentos para a Paz) e

que anos depois seria candidato - derrotado - a presidente.

Eles estavam em visita a América Latina. Estiveram ainda na Argentina,

Peru, Bolívia, Panamá e Venezuela. Em Pernambuco, foram à Zona da

Mata, ver a miséria cara-a-cara. Como fica um sofisticado cidadão de

primeiro mundo ao deparar-se com a miséria a poucos passos de

distância? Estarrecido, foi assim que ficaram Schlesinger Jr. e McGovern.

Em 10 de março Schlesinger encaminhou memorando ao presidente

Kennedy contando quão urgente era a necessidade de reformas na

região.

Em julho de 1961 um irmão de Kennedy, em giro pela América Latina,

também esteve aqui. Em Caruaru ganhou um artesanato em barro de

Vitalino (um boi). No engenho Galiléia (Vitória de Santo Antão), onde

havia surgido as Ligas Camponesas em 1955, encontrou-se com

camponeses. De volta aos EUA, enviou para eles um gerador de energia,

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que ainda está lá (sem uso).

O poderoso Secretário de Defesa, Robert McNamara, que ficou no cargo

de 1961 a 1968, foi outro auxiliar direto de Kennedy a visitar o Nordeste. A

lista inclui ainda Sargent Shriver, diretor do Peace Corps (Voluntários da

Paz), casado com uma irmã do presidente (o "Sargent" é nome próprio,

não é patente militar). E Richard Goodwin, que escrevia os discursos de

Kennedy e foi o autor do nome Aliança para o Progresso (originalmente

concebido em espanhol, Alianza para el progreso).

Ascensão e queda do "Acordo do NE"

Embora hoje desaparecido da historiografia brasileira, o "Acordo do

Nordeste" tem características que lhe dão importância internacional. É

um caso exemplar para o estudo da ajuda externa e um marco para a

reconstituição da interferência norte-americana no Brasil nos anos 60.

Virou tese do brasilianista Riordan Roett, depois transformada no livro

The Politics of Foreign Aid in the Brazilian Northeast ["A política de ajuda

externa no Nordeste do Brasil"], lançado em 1972 nos EUA.

Ele ficou praticamente acertado já durante encontro de Kennedy com

Celso Furtado (foto), em 1961. A oficialização veio em 13 de abril de

1962. Estabelecia um investimento de US$ 131 milhões, em dois anos,

para obras de curto prazo, e posteriormente obras de longo prazo, em

cinco anos, para as quais seriam liberados novos recursos. Não eram

doações, mas empréstimos a juros e prazos bem mais favoráveis do

que as taxas normais.

A base do programa era o Plano Bohan, mas o próprio Merwin Bohan

discordou da forma como Washington tratou do assunto. Ele defendia

que as ações deveriam estar subordinadas à Sudene e a participação de

especialistas americanos ficaria limitada a uma pequena equipe. Mas os

EUA montaram "um império" no Recife. s ficou responsável pela

execução do "Acordo". O desentendimento entre USAID (organismo do

Departamento de Estado, responsável pela execução do "Acordo")e a

Sudene não tardou. A Sudene entendia que cabia a ela a direção dos

trabalhos, e os americanos dariam apenas suporte e financiamento. A

USAID pensava diferente - a realização dos trabalhos não envolvia

subordinação à Sudene.

A visão dos problemas do Nordeste também eram conflitantes. Para a

Sudene o problema era de desenvolvimento; para a USAID, embora isso

verdade, a principal questão era de segurança - de impedir que a região

viesse (pelas armas ou pelo voto) a ser tomada pelos comunistas

nacionalistas ou esquerdistas, um trio que na visão dos EUA era uma

coisa só.

Os americanos começaram então a fazer convênios direto com os

estados, passando por cima da autoridade da Sudene e do próprio

governo federal - tornou-se um caso de discussão sobre a soberania

nacional. O impasse só foi resolvido com o golpe militar, quando Furtado

e sua equipe foram exonerados. Do "Acordo do Nordeste" só obras de

curto prazo (que tinham o objetivo imediato de enfrentar a influência

esquerdista na região) foram executadas. As de longo prazo nunca

saíram do papel. Em 1970, no governo de Richard Nixon, a Aliança para o

Progresso foi extinta.

O Nordeste, segundo a CIA

O Nordeste era uma região "potencialmente explosiva", os comunistas e

seus simpatizantes estavam a ponto de ganhar as eleições e "assumir o

controle político" no Recife e em Pernambuco e o "aumento de 30% nos

gêneros de primeira necessidade" favoreciam a agitação na região. Para

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completar, havia líderes "pró-comunistas" como Francisco Julião e

Miguel Arraes, em ascensão eleitoral: havia técnicos como Celso

Furtado, um profissional "respeitável" mas que tivera ligações com "o

movimento comunista" no passado e mantinha no presente relações

com a "extrema esquerda e nacionalistas” , como se não bastasse, havia

ainda a seca, que levava os nordestinos a saquear armazéns. Tudo isso

numa área que, em pobreza, era "comparável ao Haiti".

Este era o Nordeste descrito em relatórios produzidos pela CIA em 1961,

1962 e 1963 - todos eles lidos pela reportagem do DIARIO. Estão

liberados para consulta pública, mas até agora nunca haviam sido

pesquisados para um trabalho específico sobre o Nordeste. Com

relação a questões nacionais, o tom dispensado a João Goulart é

sempre hostil. O presidente brasileiro, que acabou derrubado pelo golpe

militar de março de 1964, não passava de "um oportunista", conforme os

relatórios.

Os integrantes da CIA usavam os consulados como base. No Recife

havia um agente em 1961; dois em 1963 e quatro em 1965.

Arquivos abertos - Nos EUA existem desde 1966 a Lei de Liberdade de

Informação, pela qual após determinado prazo são liberados alguns

documentos confidenciais. A consulta dos relatórios da CIA pode ser feita

no próprio site da Agência (www.cia.gov). Nos documentos liberados às

vezes há trechos cobertos por tarjas; significa que sua revelação ainda

pode prejudicar "a defesa do Estado". Ocorrem casos em que o mesmo

documento é liberado em anos diferentes e, nesses casos, a liberação

posterior traz o texto já sem as tarjas. Um exemplo: o relatório sobre a

capacidade de "influência subversiva" de Fidel Castro na América Latina,

produzido em 9 de novembro de 1962. Na primeira liberação um trecho

estava coberto; só na segunda liberação (em 14 de março de 2000)

desaparece a tarja e podemos ler que se trata de uma referência ao

Nordeste - região brasileira que, segundo o relatório, "possibilitava a

Castro muitas oportunidades".

Alguns trechos dos relatórios:

Ligas Camponesas (I): "Julião visitou Cuba e a China Comunista, e as

Ligas são fortemente infiltradas por comunistas. Muitos dos seus

membros são simpatizantes da nova Cuba" (The outlook for Brazil /

"Perspectiva para o Brasil", em 8 de agosto de 1961)

Ligas Camponesas (II): "As Ligas Camponesas, fundadas em meados

dos anos 50, por líderes comunistas e socialistas para agitar a região

por reformas rurais, existem em muitas partes do empobrecido Nordeste

do Brasil. (...) Francisco Julião, o principal líder das Ligas, iniciou

cooperação com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), dissidente do

PCB, e que é pró-Pequim e favorável à violência revolucionária". (Peasant

leagues in northeastern Brazil - "Ligas Camponesas no Nordeste do

Brasil" / 1º de junho de 1962)

Previsão para o Nordeste em 1962: "O PCB e os aliados pró-Castro

provavelmente manterão o pobre e rural Nordeste em agitação. Lá, os 25

mil membros das Ligas Camponesas, lideradas pelo pró-comunista e

pró-Castro Francisco Julião tornou-se uma poderosa força de agitação

entre os trabalhadores rurais" (The outlook for Brazil - "Perspectivas para

o Brasil", 8 de agosto de 1961)

Ganhos da esquerda em 1961: "Os comunistas e seus aliados no Brasil

obtiveram grandes ganhos nas últimas semanas, particularmente no

Nordeste do país (...)" (Leftists gains in Brazil / "Ganhos da esquerda no

Brasil", 15 de dezembro de 1961)

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Conflitos pela reforma agrária: "O problema da reforma agrária está-se

tornando uma aguda questão política. Já resultou em conflitos e pode

provocar outros ainda mais sérios, em vista dos informes sobre a

distribuição de armas para grupos de camponeses no Nordeste e no Rio

Grande do Sul". (Brazil's six months under Goulart - "Seis meses do

governo Goulart" / 23 de março de 1962)

Eleições em Pernambuco: "As três disputas governamentais mais

significativas serão ao que tudo indica as de Pernambuco, o mais

importante estado do empobrecido Nordeste brasileiro; de São Paulo, o

coração industrial do Brasil, e do Rio Grande Sul, que é o estado do

esquerdista presidente Goulart e do seu cunhado, Leonel Brizola, anti-

Estados Unidos"

(The brazilian elections - "As eleições brasileiras" / 5 de outubro de 1962)

Celso Furtado: "É um respeitado economista e planejador, com uma

eclética, mas predominante atitude estatizante. Foi anteriormente ativo no

movimento comunista e ainda mantém estreita aproximação com a

esquerda radical e com elementos nacionalistas “. (The character of the

Goulart regime in Brazil - "Característica do governo Goulart" / 27 de

fevereiro de 1963)

Comunistas em Pernambuco: "Os comunistas e seus aliados podem

estar ganhando o controle da cidade do Recife e do Estado de

Pernambuco, onde exercem uma forte influência" (Situation and prospect

in Brazil / "Situação e perspectiva do Brasil",10 de julho de 1963)

A invasão que não houve

O governo brasileiro "sabia" que o Pentágono formulara um plano de

emergência para invadir o Nordeste, afirma o escritor e historiador Moniz

Bandeira. O plano, diz ele, surgira em virtude do temor dos Estados

Unidos de que na região nordestina explodisse uma revolução ou conflito

de grandes proporções sob inspiração de Cuba. Moniz Bandeira é o

maior estudioso brasileiro do governo João Goulart e das relações

Estados Unidos-América Latina, assuntos que há 40 anos estão no

centro de suas obras. É autor de O governo João Goulart (lançado em

1978 e hoje na 7a. edição) e de Formação do Império Americano (2005).

Em 6 de agosto último recebeu o prêmio de Intelectual do Ano (troféu

Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores).

Em relação aos estudos sobre o período Goulart, as principais fontes de

Bandeira são entrevistas com personagens daquele período (como o

próprio Goulart), os arquivos desses personagens e documentação de

arquivos tanto nacionais quanto dos EUA. Dessa documentação

consultada por ele faz parte um informe encaminhado a João Goulart

pelo SCIFI (o serviço de informações do governo) sobre "um campo de

pouso clandestino em Teresina (PI)", que faria parte, segundo Bandeira,

de uma "operação especial" organizada pela CIA para a eventualidade de

uma invasão. O Itamaraty já atentara também para o alto número de

vistos solicitados pelo embaixador Lincoln Gordon para norte-

americanos que vinham ao Brasil. Só em 1962 chegaram aqui 4.968

americanos, marca superior a todos os anos anteriores, inclusive os da II

Guerra Mundial, quando os EUA montaram bases militares no país. "A

maioria deles tinha como destino o Nordeste", afirma Bandeira. Cientista

político, professor titular (aposentado) de história da política exterior do

Brasil, na UnB (Universidade de Brasília), Bandeira mora hoje na

Alemanha. Esteve no Brasil no início de agosto, para receber o Juca Pato,

quando falou com o Diario.

O golpe - A "ocupação do Nordeste" esteve no centro de uma dramática

conversa entre o ministro San Tiago Dantas e o presidente João Goulart,

em 31 de março de 1964, no Rio de Janeiro. A conversa foi relatada a

9/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

Moniz Bandeira pelo próprio Goulart, em entrevista. As tropas golpistas

do general Mourão já haviam saído de Minas Gerais. O governo

contorcia-se, diante da queda iminente. San Tiago obtivera informações

de que os EUA apoiavam o golpe. E, com certeza, disse ao presidente,

iriam ocupar o Nordeste, onde já estariam vivendo como civis cerca de 5

mil militares.

Para Moniz Bandeira, ainda há muitas histórias a ser contadas da

relação dessa época entre os Estados Unidos e o Brasil -

particularmente no Nordeste. Ele reclama da pouca presença de

pesquisadores brasileiros nesta área.

Armas e infiltração

Duas histórias da época em que a CIA estava com os olhos - e os pés -

postos no Nordeste.

1) À meia-noite de 16 de julho de 1963 um misterioso submarino chegou

à costa pernambucana. Era norte-americano, prefixo WZI-0983, seu

comandante provavelmente chamava-se Roy, sobrinho de um general

norte-americano chamado Mac Clark. Desembarcou em Pernambuco

750 brazucas, revólveres, espingardas e granadas, que foram

transportadas para estados do Nordeste. Generais brasileiros,

reformados, estiveram no desembarque. Tudo isso consta de um

informe do SCIFI (Serviço Federal de Informações e Contra-Informações,

órgão do governo federal), encaminhado ao presidente João Goulart e

que hoje faz parte do acervo do governo dele, guardado no CPDOC

(Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do

Brasil), no Rio de Janeiro. A chegada de armas já era, em si, um fato

grave. Mais ainda porque parte delas era fabricada na Tcheco-

Eslováquia, na época um país comunista. O que diabos armas tchecas

estavam fazendo numsubmarino americano? A suposição: era uma

tentativa de provocação. Para que - quando necessário - fossem

"apreendidas" e mostradas como prova de que os comunistas estavam

armando "revolucionários nordestinos".

2) Havia no Recife um grupo de militantes dedicado única e

exclusivamente à agitação. Mas não uma agitação como as outras. Eles

recebiam dinheiro da CIA para imprimir publicações marxistas e distribui-

las na cidade. O objetivo de sempre: confirmar a "penetração comunista"

no Nordeste. Os recursos eram utilizados também para imprimir

panfletos anunciando comícios e reuniões das Ligas Camponesas e

assegurando que o líder do movimento, Francisco Julião, estaria

presente. O problema é que nem Julião iria fazer-se presente nem havia

os comícios e reuniões. Quando o povo chegava lá alguns elementos

infiltrados (ligados àquele "grupo") provocavam brigas e desordens,

tentando associar as Ligas e Julião à baderna. Quem conta esta história

é o missionário norte-americano Fred Morris. Seu depoimento está no

livro da pesquisadora Jan Knippers Black, United States penetration of

Brazil (A penetração dos Estados Unidos no Brasil), publicado em 1977

nos EUA. Obra citada por estudiosos estrangeiros e brasileiros, é um

minucioso levantamento da interferência americana no Brasil naquele

período.

O padre, o agente secreto e um mistério

O sindicalismo e o cooperativismo rural pernambucano tiveram, nas

suas origens, a participação da CIA, com dinheiro para pagamento de

salários, realização de cursos e o envio para cá de um agente secreto,

que veio trabalhar como "especialista em cooperativismo". A participação

deu-se por meio de convênios com a CLUSA (Liga Cooperativa dos

Estados Unidos), uma entidade privada norte-americana que era

destinatária de recursos da CIA.

10/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

Após o golpe militar outra organização privada dos EUA, o Iadesil

(Instituto Americano para o Desenvolvimento do Trabalho Livre), que tinha

ligações com o governo norte-americano, também passou a atuar no

movimento rural pernambucano. Convênios com esta última resultaram

na construção de três centros sociais para a Fetape, em Carpina,

Garanhuns e Ribeirão. Todos ainda em funcionamento.

O contato da CLUSA e do Iadesil em Pernambuco foi o padre Crespo,

criador do Sorpe (Serviço de Orientação Rural de Pernambuco), entidade

apoiada pela Igreja. No embate que se travava no campo pernambucano,

no início dos anos 60, o padre Crespo e o Sorpe eram a ponta de lança

da Igreja Católica para a fundação de sindicatos rurais. Tinham a

oposição das Ligas Camponesas e do PCB - contrários à ação

considerada moderada do Sorpe, que evitava conflitos e não queria

saber de invasão de terras nem muito menos de "reforma agrária na lei

ou na marra" (palavra de ordem das Ligas Camponesas).

Um exemplo da ligação deste movimento rural com os Estados Unidos

verificou-se em novembro de 1962, com um fato inimaginável para os

dias de hoje: no encerramento de um encontro de sindicalistas rurais de

cinco estados do Nordeste, um dos participantes do ato foi o cônsul dos

EUA no Recife, Lowell Killday.

Fetape - Ativo, conhecedor da área (nasceu em Bom Conselho) e com

sólida formação teórica (formou-se em Paris), padre Crespo vivia

cruzando canaviais a bordo de um fusquinha cujo ano não lembra mais,

e vestindo uma batina cinza - esta com a qual aparece na foto ao lado. O

trabalho logo rendeu frutos. A hoje poderosa Federação dos

Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape) é resultado da

ação dele. Criada em 6 de junho de 1962, obteve o reconhecimento do

Ministério do Trabalho em 17 de outubro daquele ano - a primeira

federação de trabalhadores rurais do Brasil surgiu em Pernambuco e

sob inspiração da Igreja Católica. Na época, eram necessários cinco

sindicatos legalizados para formar uma federação. O Sorpe tinha o

controle dos sindicatos de Caruaru, Lajedo, Limoeiro, Timbaúba e Vitória

de Santo Antão. Depois veio a criação das cooperativas mistas de

trabalhadores, novamente a partir da ação do Sorpe do padre Crespo.

As ligações da CLUSA com a CIA foram reveladas em maio de 1967, em

reportagem do The New York Times. Depois disso o Sorpe rescindiu o

contrato com ela e "devolveu" (a expressão é do padre Crespo) o agente

secreto. O brasilianista Joseph Page cita o caso deste agente, no livro A

Revolução que nunca houve, sem mencionar o nome. O padre Crespo dá

o nome: Thimoteo Rogen. Mas enfatiza: não sabia queele tivesse

qualquer ligação com a CIA. Nunca teve qualquer indicação neste

sentido, assegura. Quem também lembra do Thimoteo é o hoje

sociólogo Francisco de Oliveira, que naquela época ocupava a

superintendência-adjunta da Sudene. Conta que já havia então

desconfianças sobre a verdadeira identidade dele, e que nunca aceitou

aproximação com ele. "Ele queria era me cooptar", afirma. Em 1966 o

arcebispo de Olinda e Recife, D. Hélder Câmara, também fazia a sua

advertência sobre a relação com as entidades americanas: "Ficai alerta a

ajudas que forem propostas em nome de sindicatos livres, pois elas são

criadoras de peleguismo".

"Nem comunista nem capitalista" - Padre Crespo vive numa casa ampla

mas modesta, cheia de galinhas no quintal, no Janga, subúrbio do

município de Paulista (Região Metropolitana do Recife). Aos 74 anos, é

pai de nove filhos. Cursou o mestrado em comunicação rural na UFRPE

e fez de sua trajetória no campo o tema da dissertação Comunicação e

Libertação - Relato analítico da trajetória de ummilitante junto a

camponeses em Pernambuco, 1955-1990, apresentada em 2003.

11/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

Licenciou-se da Igreja em 1972, para casar. D. Hélder Câmara foi quem

celebrou o casamento. Como padre licenciado, continuou atuando na

Igreja. Depois do golpe de 64 chegou a ser investigado pelos militares.

Havia mandado um telegrama a João Goulart, apoiando as medidas a

favor da reforma agrária. Mas nunca foi preso. Diz-se um homem sem

ideologia, nem comunista nem capitalista, que defendeu os

camponeses sempre seguindo a doutrina da Igreja. Com firmeza, conta

ele, mas evitando conflitos e sem em nenhum momento aceitar a opção

pela violência. Tem uma profunda admiração pelos Kennedy, em

particular por Robert Kennedy, ao lado de quem andou pelos canaviais

de Carpina (PE), quando o irmão do presidente americano esteve aqui

em novembro de 1965.

A seguir, trechos da entrevista que, com a voz pausada e cercado de

lembranças, concedeu ao Diario:

Entrevista [ Padre Crespo ]

Diario de Pernambuco: Como foi o seu contato com as entidades ligadas

à CIA?

Padre Crespo: Havia no Nordeste na época uns 400 funcionários da

USAID, era o trabalho de cooperação com o Nordeste, mas nenhum

deles trazia na testa a sigla CIA.

Diario: O técnico em cooperativismo que veio trabalhar com o Sorpe na

organização das cooperativas era um agente da CIA. O senhor tinha

alguma informação sobre isso? Quanto tempo ele ficou aqui?

Padre Crespo: Ele era técnico em cooperativismo. Chegou aqui como

técnico em cooperativismo. Conhecia muito o assunto, nos ajudou muito.

Em 1968 começaram os rumores de que ele era da CIA e aí nós

rescindimos o convênio e o devolvemos para a Liga das Cooperativas

Americanas [CLUSA]. Foi uma perda grande para o movimento

cooperativista, criamos 18 cooperativas com a ajuda dele. Então, o

trabalho dele foi de grande importância para a gente, mas consideramos

que era mais prudente agir assim, encerrando os convênios.

Diario: O senhor lembra-se do nome dele?

Padre Crespo: Claro, trabalhamos juntos durante anos, como é que eu ia

esquecer? Era Thimoteo Rogen [ele soletra o nome, a pedido do

repórter].

Diario: O senhor voltou a ter algum contato com ele depois disso?

Padre Crespo: Não, nunca mais.

Diario: Ele falava português?

Padre Crespo: Falava, muito bem.

Diario: O que ele disse quando vocês rescindiram o contrato?

Padre Crespo: Ele disse que não era da CIA.

Diario: Como foi o início dos contatos com a Liga das Cooperativas

Americanas e com o Iadesil?

Padre Crespo: A Fetape já estava criada [em 1962] e era preciso que

começássemos a criar as cooperativas. Era um momento em que

precisávamos de uma melhor estrutura. Fui a uma reunião em São Paulo

e lá encontrei um representante da organização sindical americana. Mais

tarde a Liga das Cooperativas Americanas mandou um técnico em

12/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

cooperativismo para nos ajudar a organizar as cooperativas.

Diario: Como foram os convênios?

Padre Crespo: Transparentes, todos transparentes, nada encoberto. Foi

um convênio em que também participaram a Fetape, o Ministério do

Trabalho, o Sorpe, a Liga das Cooperativas Americanas. A gente recebia

recursos financeiros para montar a infra-estrutura das cooperativas,

recebia recursos técnicos para a capacitação de lideranças, e

recebemos um técnico em cooperativismo para nos ajudar, o Thimoteo.

Diario: E os os três centros sociais que a Fetape tem hoje?

Padre Crespo: Todos tiveram escritura pública passada para a Fetape, e

com programas coordenados pela Fetape. Cada um deles, em Carpina,

Garanhuns e Ribeirão, foi construído num terreno de 1 hectare. Diziam

que a gente estava entregando o movimento aos americanos... Mas tudo

era coordenado pela Fetape. E nós exigimos desde o início a escritura da

doação do terreno e da doação do prédio. Nunca houve ingerência dos

americanos, e esses centros ainda hoje servem à Fetape, como um

espaço para debate, formação de lideranças.

"Sem levar o camponês ao extremo da revolta"

"O jovem agente da CIA que trabalhava como técnico da Liga Cooperativa

(CLUSA) tinha se movimentado de modo rápido e silencioso para

desenvolver contatos estreitos com o Sorpe e com o padre Crespo.

Dentro de pouco tempo ele estava canalizando recursos da CIA para

dentro do movimento a fim de ajudar no pagamento de salários e

despesas do Sorpe e atrair pessoas que, de outro modo, poderiam não

ter contribuído com seus esforços para o sindicalismo rural. Ele também

trabalhou de maneira efetiva com as pessoas do Sorpe para estimular

os novos sindicatos rurais e fundar cooperativas que poderiam fornecer

uma ampla variedade de serviços agrícolas. Estas cooperativas

futuramente produziram benefícios materiais para os seus membros.

Mas de maior importância para os interesses da segurança dos Estados

Unidos foi o fato de que sua organização e sua administração desviaram

os líderes camponeses das lutas políticas no interior pernambucano,

onde eles poderiam ter sido envolvidos nos esforços para obter

modificações radicais no status quo. Embora tenha sido utilizado o

descontentamento para convencer os camponeses a formar as

cooperativas, o movimento cooperativista nunca negou sua aceitação

das estruturas políticas e econômicas existentes. Certa vez, o próprio

homem da CIA-CLUSA observou: "Ao convencer o camponês de que a

miséria de sua condição é desnecessária, deve-se tomar o cuidado de

não empurrá-lo até o extremo da revolta contra as autoridades e os

interesses constituídos que o têm mantido no seu estado atual". Ao todo,

a estratégia da CIA de financiar o Sorpe e de estabelecer cooperativas

agrícolas foi uma ação bem concebida e bem executada para ajudar a

reduzir o potencial revolucionário do movimento trabalhista rural em

Pernambuco"

(Trecho do livro A Revolução que nunca houve, de Joseph Page)

Reencontro em 2003

Ethel Kennedy esteve em Pernambuco em novembro de 1965,

acompanhando o marido. Voltou em 9 de maio de 2003, viúva - o marido,

Robert Kennedy, foi assassinado nos EUA, em 1968. Nesta segunda

visita ela exigiu que os organizadores da sua viagem agendassem um

encontro com o padre Crespo e com Euclides Nascimento. Encontraram-

se todos na sede da Fetape, centro do Recife. Falaram da situação da

13/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

luta pela terra no Brasil e recordaram passagens do dia em que Robert

esteve em Pernambuco. A ambos Ethel presenteou com uma medalha

do Memorial Robert Kennedy (EUA).

Euclides Nascimento, líder sindical formado nos cursos do Sorpe, foi o

primeiro presidente da Fetape. Estava no cargo quando Robert Kennedy

veio a Pernambuco. Juntamente com o padre Crespo, o acompanhou na

caminhada pelos canaviais de Carpina e Nazaré da Mata. "Os Kennedy

são diferente de todos esses políticos dos Estados Unidos, de Bush,

todos eles. O presidente Kennedy queria o bem da América Latina.

Robert, também", acredita Euclides, que continua atuando na Fetape. "É

por isso que quando um Kennedy vai subindo, eles matam", conclui.

Eles, quem?, indaga o repórter. "Eles", torna Euclides, sucinto.

Padre Crespo também guarda dos Kennedy a melhor das impressões,

sobretudo de Robert. "Ele queria uma América unida e livre. A gente

estava no carro e ele disse isso: queria uma América unida e livre",

recorda Crespo. O Brasil já se encontrava sob ditadura militar, instaurada

com o golpe de 1964.

" A penetração da polícia dos EUA no Brasil ainda continua "

Cerca de cinco mil policiais brasileiros receberam treinamento nos EUA,

entre 1963 e 1973, para enfrentar possíveis insurreições urbanas e

rurais. Entre eles, policiais do Nordeste do Brasil. A cooperação com os

Estados Unidos não era um fato novo, mas aquele tipo de treinamento,

sim. Os estrategistas do governo norte-americano, na gestão Kennedy,

queriam polícias "profissionalizadas" para o novo desafio da segurança -

em vez de guerras convencionais, com exércitos enfrentando exércitos,

irrompia um novo tipo de guerra, as de "libertação", em que os combates

eram travados entre forças do próprio país. As polícias tinham aí peso

decisivo. Podiam detectar - e combater - a ação da esquerda antes que

elas descambassem para uma revolução. Esse raciocínio norteava a

ação do Counter Insurgence Group (CI, na sigla em inglês. Era o Grupo

Especial de Contra-Insurreição, organismo criado no governo Kennedy,

com status ministerial). Nessa época (1962) deu-se também a criação

da Academia de Polícia Internacional, onde houve os cursos.

A professora norte-americana Martha Huggins é hoje a maior

especialista do mundo neste assunto. Durante 10 anos ela investigou o

tema, pelo qual interessou-se em 1976, quando entrevistava um policial

civil pernambucano e viu na sala dele um diploma de curso de

treinamento nos EUA. O diploma visto na sala da Secretaria de

Segurança Pública, no Recife, era o fio de uma teia da - nas palavras

dela - "internacionalização da segurança norte-americana, mediante

treinamento de polícias estrangeiras". Martha não revela o nome do

policial pernambucano, mas diz que ele chegou ao fim da carreira em

1993, ocupando "cargo oficial" no Detran. A pesquisa da professora

Martha virou o livro Polícia e Política - Relações Estados Unidos/América

Latina (Cortez Editora), publicado em 1998. Ela volta ao tema em seu

novo livro, Operários da Violência (UnB), recentemente lançado, e que

tem como co-autores os professores Mika Haritos-Fatouros e Philip G.

Zimbardo.

Martha Huggins é professor de Estudos Latino-Americanos e Sociologia

na Universidade de Tulane, em Nova Orleans (EUA), de onde concedeu -

em português - a entrevista abaixo:

Entrevista [ Martha Huggins ]

Diario de Pernambuco: O que despertou o seu interesse por este tema,

da cooperação policial entre os EUA e a América Latina?

Martha Huggins: É uma história interessante. Em 1975, quando eu fazia

pesquisas para o meu primeiro livro - From slavery to Vagrancy in Brazil

14/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

[lançado nos EUA em 1984, mas nunca publicado em português] -, sobre

a repressão contra escravos e homens livres no fim da escravidão em

Pernambuco, conheci um integrante da Polícia Civil que recebera

treinamento nos Estados Unidos, no Grupo Especial de Contra-

Insurgência. Vi na parede da sala dele, em 1976, um diploma da AID.

Resolvi naquele momento que, após terminar o livro no qual estava

trabalhando, iria investigar o programa da AID. Em 1989, durante a

pesquisa, li uma reportagem que listava os torturadores que haviam

atuado durante o regime militar. O nome do policial de Pernambuco, que

eu entrevistara em 1976, estava lá. Em 1993, quando fazia a pesquisa

para o novo livro, Operários da Violência, tentei entrevistá-lo novamente.

Ele não aceitou. Neste ano, 1993, ele estava no fim de carreira e ocupava

um cargo oficial no DETRAN.

Diario: Qual o nome dele?

Huggins: Não posso revelar. A ética da pesquisa não me permite.

Diario: Houve outros policiais do Nordeste que participaram desses

cursos? Eles ascenderam na carreira depois desses cursos?

Huggins: Sim, houve. Em 1993 eu entrevistei dois no quartel do Derby,

em 1993. Os dois progrediram na carreira depois do curso. A maioria

dos policiais que entrevistei, aí incluídos todos os dos outros estados,

teve melhoria na carreira. Constatei isso também através dos dados da

pesquisa.

Diario: A ação do Grupo Especial de Contra-Insurreição (CI) surgiu no

Governo Kennedy, período em que o Nordeste estava sob forte tensão

social. Como foi a relação com o Nordeste, nesta área policial, durante

esta época?

Huggins: No Nordeste a ação do CI foi mais no sentido da colaboração

entre o exército brasileiro e os EUA. Se a situação ficasse de alguma

forma fora do controle a estratégia do CI exigia a entrada doexército,

fosse sozinho ou em colaboração com os Estados Unidos.

Diario: Toda essa intervenção policial dos EUA não acontece mais? Ou

continua acontecendo disfarçada sob outro nome?

Huggins: Grande pergunta. Sim, continua acontecendo. Agora, a

penetração da polícia dos EUA nos países em desenvolvimento continua

de várias formas. Existem programas de diversas agências dos Estados

Unidos. É o que estou pesquisando no momento. Hoje em dia existem

agências e pessoas não-governamentais atuando na área de

treinamento de policiais internacionais. Neste modelo, corporações dos

Estados Unidos recebem orçamento do próprio Estados Unidos - do

Pentágono, principalmente - e atuam como "agência privada", criando

uma situação muito perigosa e praticamente não-transparente.

Diario: Qual a participação do FBI nesse processo?

Huggins: A partir da década de 1990 o FBI entrou de novo na área de

treinamento de polícias estrangeiras, e tem hoje um escritório no Rio - de

novo, como nas décadas de 1930, 40 e, acho, 50. Eu nãoficaria surpresa

se o FBI estivesse atuando hoje em Pernambuco na área de treinamento

da polícia estadual. Hoje em dia o Departamento de Estado dos Estados

Unidos tem programas que usam o FBI para promover treinamento

policial.

A americanização do Brasil

Não começou com John Kennedy. Começou no pós-Guerra e

consolidou-se durante a administração dos dois antecessores dele,

15/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

Harry Truman (1945-1953) e Dwight Eisenhower (1953-1961). É aí que

se encontra a origem tanto da incorporação maciça de palavras em

inglês ao nosso vocabulário (como sex appeal, gangster, duplex, nylon e

far west - esta "aportuguesada" para faroeste), quanto da absorção do

gesto do polegar para cima ("thumbs up") como sinal de positivo.

O jogo pesado da americanização, porém, esteve muito além disso. A

industrialização, por exemplo. Os Estados Unidos não queriam que o

Brasil tivesse um "desenvolvimento industrial excessivo", capaz de vir a

competir com as indústrias norte-americanas. A nós caberia apenas o

papel de produzir matérias-primas; os EUA se encarregariam do

processamento industrial delas e, fechando o círculo, de vender o

produto para nós. Óbvio que a intenção não era expressa assim

cruamente, em linguagem tão pouco diplomática, mas na prática esta

era a política externa norte-americano para o Brasil, conforme mostra o

pesquisador Gerald K. Haines, em The americanization of Brasil ("A

americanização do Brasil"). O livro trata do período 1945-1954 e tem

como fontes documentos de arquivos norte-americanos. Lançado nos

EUA em 1989, é obra indispensável para quem deseja conhecer as

relações entre os dois países.

O "não queriam" utilizado no parágrafo anterior deve ser entendido no

sentido do que significa "não querer" para uma potência mundial - o

sentido da interferência e da pressão. No caso do Brasil, excetuados

alguns reveses (como a criação da Petrobras em 1954), os EUA foram

muito bem sucedidos nessa tarefa, conta Haines. Os EUA, diz o autor,

empenharam-se em "controlar, influenciar e moldar o Brasil rumo à

modernização". Tudo isso seguindo uma agenda que consistia em

"evitar financiamentos para projetos de desenvolvimento, explorar

recursos estratégicos e promover os negócios americanos na indústria e

na agricultura".

Como pano de fundo desta história, acrescente-se queo Brasil fora o

único país da América do Sul a enviar tropas para lutar ao lado dos

aliados, na II Guerra Mundial. Em seu segundo Governo (1951-1954),

Getúlio Vargas queixava-se de que os EUA estavam ajudando a

reconstruir a europa ocidental mas nada faziam pelo desenvolvimento do

Brasil.

" É preciso tirar o Nordeste da poeira da História"

Com a autoridade de quem estuda a América Latina há mais de 40 anos,

o brasilianista Joseph Page afirma que é "preciso tirar o Nordeste da

poeira da história". Em entrevista ao Diario, da Georgetown University

(Washington), onde é diretor, Page diz que os acontecimentos

registrados na região no período 1960-1964 "contêm lições sobre a

ineficácia da interferência dos Estados Unidos nos assuntos internos de

outros países". Lições ainda atuais, enfatiza. "Dado o que está

acontecendo agora no Iraque, porém, temo que elas não tenham sido

aprendidas", diz.

Page é autor de A Revolução que nunca houve, o único livro a focar a

presença americana no Nordeste entre 1960-1964 e também a única

obra de um brasilianista a abordar o golpe militar de 64 a partir dos

acontecimentos na região. Caso algum dia se faça a lista das dez obras

mais importantes para a história contemporânea do Nordeste, A

Revolução que nunca houve terá lugar garantido. Publicado nos EUA em

1972, traduzido para o português em 1989, está hoje esgotado.

A ação do governo Kennedy no Nordeste é tema de três obras

fundamentais para a compreensão daquele período, todas também

esgotadas: Desenvolvimento econômico regional - O Nordeste do Brasil,

de Stefan H. Robock (1964), Política econômica na América Latina, de

Albert Hirschman (1963) e The politics of foreign aid, Riordan Roett

16/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

(1972) - este nunca lançado em português. Os três com foco nas

questões de desenvolvimento econômico e ajuda externa. O livro de

Page aborda estes aspectos secundariamente e concentra a atenção na

tensão social e política vivida na região e no Brasil naquela época. Ele

publicaria anos depois The Brazilians ["Os brasileiros"] e Peron: A

biography.

O que ocorreu no Nordeste durante o período Kennedy, na opinião de

Page, possibilita um abrangente estudo do subdesenvolvimento - "em

ação e em conflito". É um episódio da história em que se confrontaram

"mudanças e reacionarismo, opções políticas e opções militares" - um

quadro de tensão social aguda numa área então classificada como"a

mais pobre do hemisfério".

"Provavelmente", continua ele, a ação do governo Kennedy na região teve

tanto a preocupação com o desenvolvimento quanto com a expansão das

esquerdas na região: "Se a região se desenvolvesse economicamente,

isto poderia contrapor-se ao apelo das organizações de esquerda". Esta

linha de raciocínio "dá sentido" à singularidade de os Estados Unidos

criarem um plano de desenvolvimento voltado exclusivamente no

Nordeste. A Aliança para o Progresso e os Estados Unidos tinham por

princípio elaborar apenas planos globais, não sub-nacionais. "Mas a

responsabilidade pelo desenvolvimento reside no país anfitrião, não

naquele que oferece a ajuda. Como uma nação soberana, o Brasil tinha

a responsabilidade de decidir se o Plano Bohan era consistente com

uma visão brasileira de desenvolvimento do Nordeste, e aceitar ou

rejeitá-lo", afirma. Sobre as relações com a América Latina, Page destaca

que elas "sempre foram marcadas pela indiferença da parte dos Estados

Unidos". O que aconteceu entre1961 e 1970, quando da vigência da

Aliança para o Progresso, "foi uma exceção à regra, provocada pelos

temores surgidos da ameaça posta pela Revolução Cubana".

Deu - várias vezes - no New York Times

Para o leitor médio americano dos anos 60, o Brasil era um lugar

incrivelmente distante onde se falava mañana e se fazia a siesta. Mas

entre outubro de 1960 e abril de 1964 outras palavras foram associadas

à imagem de país distante. Palavras como "Nordeste do Brasil",

"Sudene", "Ligas Camponesas", "Recife", "Miguel Arraes" e "região

brasileira vítima da seca" entraram em avalanche para as páginas da

imprensa internacional. Vez por outra, havia menções até ao "padre

Cícero" e "Lampião". Os principais jornais e revistas dos Estados

Unidos, como o The New York Times e a Newsweek, e da Europa, como

o Le Monde (França) e a Der Spiegel, da Alemanha, mandavam para cá

repórteres e fotógrafos. A dimensão da importância que a imprensa

internacional dava aos acontecimentos daqui pode ser medida com o

fato de que para cá vinham os profissionais mais qualificados e em

ascensão. Do NYT, por exemplo, vieram Tad Szulc e Juan de Onis, que

se tornariam escritores com obra reconhecida. Não só as grandes

publicações buscavam aregião; o The Christian Science Monitor, dos

EUA, enviou um promissor jovem chamado Ralph Nader - o mesmo que

viraria um símbolo da defesa do consumidor nos EUA e por três vezes

disputaria a presidência americana como candidato independente, em

1996, 2000 e 2004.

Era tal a cobertura que as fotografias feitas no Nordeste acabavam

servindo de ilustração para reportagens e artigos sobre a América Latina

- como no artigo "Red shadows over Latin America" ( Sombras vermelhas

sobre a América Latina), escrito pelo embaixador dos EUA na ONU, Adlai

Stevenson, e publicado no NYT de 6 de agosto de 1961. A análise aborda

todos os países latino-americanos, mas a foto que a ilustra é de

Francisco Julião no Recife, tendo ao fundo um quadro em tamanho

natural de Fidel Castro - de autoria do artista pernambucano Abelardo da

Hora. Em outra, "Brasil circunda o abismo" (NYT, 18 de agosto de 1963),

17/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

há três ilustrações: uma foto de João Goulart, a segunda da mulher dele,

Tereza, e a terceira de Julião novamente, conversando com camponeses.

Do que foi publicado na imprensa estrangeira, as únicas reportagens

mencionadas em teses e livros de autores brasileiros são as que saíram

no NYT em 31 de outubro e 1º de novembro de 1960. A cobertura, porém,

foi bem mais ampla. Incluía tanto os conflitos, como a morte do líder das

Ligas em Sapé (PB), Pedro Teixeira, quanto experiências como a do

Método Paulo Freire em Angicos (RN). Falava de anônimos e de líderes

políticos, como Miguel Arraes, que numa matéria da Newsweek é citado

como tendo dito que os únicos americanos de que gostava eram os

cigarros - porque podia queimá-los...

Anos depois do golpe militar de 1964, no exílio, alguns líderes da

esquerda brasileira consideravam que a cobertura internacional no Brasil

- e em particular no Nordeste - fora "exagerada" e que servira aos

interesses do governo norte-americano de justificar a interferência no

País. O argumento se revela pouco consistente quando se lê as

reportagens - muitas vezes contrárias aos chamados "interesses dos

EUA".

Dias do Brazilian Northeast

Algumas das matérias publicadas sobre o Nordeste, no NYT, no período

Kennedy:

1) Castro tries to export 'fidelismo' - "Castro tenta exportar Fidelismo" - .

27 de novembro de 1960 2)'Troubled land' seen ("Transmissão de 'Terra

Conturbada'") - 15 de junho de 1961. Matéria sobre documentário da

jornalista norte-americana Helen Jean Rogers, intitulado The troubled

Land.

3) Leftist in Brazil warns of revolt - ("Esquerdista no Brasil alerta sobre

revolta") - 18 de novembro de 1961:

4) Brazil Studying Rise of Peasant Leagues as Concern is aroused over

violence in Northeast Region ("Ascensão das Ligas preocupa o Brasil,

enquanto cresce violência no Nordeste") - 10 de abril de 1962. Sobre o

assassinato do líder das Ligas Camponesas de Sapé (PB), João Pedro

Teixeira, morto numa emboscada.

5) Risks and opportunity of Brazil's Northeast challenge aid Alliance of

U.S. ("Riscos e oportunidade do Nordeste do Brasil desafiam ajuda da

Aliança para o Progresso") - 17 de abril de 1962. "A Aliança para o

Progresso está preparando-se para ajudar o desenvolvimento do

Nordeste do Brasil em uma um período cheio de riscos e

oportunidades", afirma texto de Juan de Onis.

6) Communism top issue in Brazilian State election ("Comunismo é tema

principal em eleição de Estado no Brasil") - 3 outubro de 1962. O estado

é Pernambuco e a eleição era entre Miguel Arraes e João Cleofas.

7) Brazilian governor scores U.S. Aid Plan (28 de outubro de 1962) -

Sobre a acusação de Arraes de que os convênios diretos entre EUA e

estados brasileiros eram inconstitucionais.

8) Brazil conducts a literacy drive ("Brasil faz jornada de alfabetização") - 2

de junho de 1963. "Projeto apoiado pelos EUA tenta alfabetização em 40

horas", destaca reportagem de Juan de Onis sobre o Método Paulo Freire

em Angicos (RN)

9) Brazil's Goulart skirts the Abyss ("Brasil de Goulart circunda o abismo")

- 18 agosto de 1963. De autoria de Juan de onis. Três fotos como

ilustração: uma de João Goulart, no meio do povo; a segunda da mulher

18/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

dele, Tereza Goulart, e a terceira de Julião, em encontro com

camponeses".

10) 12 Slain as peasants fight police in Northeast Brazil ("12 mortos em

conflito entre camponeses e polícia no Nordeste do Brasil") - 17 de

janeiro de 1964.

Do Missouri para o Nordeste

Independence, no estado de Missouri, é uma cidade com pouco mais de

100 mil habitantes. Nos Estados Unidos é conhecida por ser a terra onde

cresceu o presidente Harry Truman e para onde ele voltou, após seus

dois mandatos. No Brasil, é mais uma das centenas de cidades

americanas da qual nunca ouvimos falar. Convém atentar para

Independence, porém. Lá estão guardados documentos que dizem

respeito à história do Brasil e do Nordeste - e que nunca foram

consultados por pesquisadores brasileiros.

O material está na Truman Library (Biblioteca Truman), que guarda o

acervo documental alusivo a Harry Truman, presidente de 1945 a 1953.

Os Estados Unidos têm 10 bibliotecas presidenciais. Na Biblioteca

Lyndon Johnson, em Washington, estão documentos da época do golpe

militar de 64 no Brasil - revelados pela primeira vez no Brasil pelo

jornalista Marcos Sá Corrêa, em célebre matéria publicada no Jornal do

Brasil. Em escala cronologicamente seguem-se as bibliotecas de

Kennedy, Dwight Eisenhower e Truman.

Nesta encontram-se os papéis do embaixador e economista Merwin L.

Bohan, que chegou ao Recife em 23 de outubro de 1961, para elaborar o

plano recomendado por Kennedy. [Aqui, um esclarecimento: se o plano

foi encomendado por Kennedy, por que está na Biblioteca Truman?

Porque o início da carreira de Bohan deu-se durante o governo Truman]

Estão lá o próprio plano, cartas, textos e uma entrevista de Bohan - e por

essa documentação vê-se que a posição de Bohan contraria aquela que

acabou adotada pelo governo dos Estados Unidos, na execução do

"Acordo do Nordeste". Bohan - lemos nas cartas dele - defendia que

todos os projetos deveriam estar subordinados à Sudene, exatamente o

oposto do que aconteceu.

O trabalho de Bohan no Nordeste ganhou o nome oficial de "Missão de

Estudos ao Nordeste do Brasil". O plano é abordado em dois livros

lançados em 1972: Politics for Foreign Aid, de Riordan Roet (nunca

publicado em português), e The revolution that never was (que saiu no

Brasil como A revolução que nunca houve, pela Editora Record), de

Joseph Page. A íntegra do plano, porém, nunca foi publicada. Para

localizá-lo a reportagem do Diario pesquisou o acervo de cada uma das

bibliotecas citadas, em contato por telefone e via internet. A busca parou

na última biblioteca pesquisada: a Truman Library. Descobrimos que lá

estavam os documentos de Bohan: não só o plano, mas a

correspondência dele relacionada ao trabalho no Brasil. A gentil

arquivista Carol Martim, fez a cópia do material (US$ 0,50 a página) e o

enviou pelo correios. O Plano Bohan tem dois volumes, entre propostas e

apêndices. Se nenhuma outra importância ele tivesse, ainda assim seu

valor histórico seria inquestionável. Como diz o professor Stefan Robock,

autor de uma das primeiras obras sobre o desenvolvimento do Nordeste:

"Tanto a Aliança como os Estados Unidos enfatizam os planos nacionais

globais como base para a concessão de ajuda. O governo norte-

americano desviou-se desse princípio fundamental ao assumir os

primeiros compromissos para com o Nordeste".

Saúde, irrigação, eletrificação rural...

O Plano Bohan faz uma análise geral do Nordeste e divide as medidas

propostas em dois programas. Um de curto prazo, previsto para demorar

dois anos (com medidas de impacto, capazes de combater a influência

19/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

esquerdista na região), e outro de longo prazo, que deveria ser

implantado em cinco anos. Bohan e sua equipe valeram-se do Plano de

Desenvolvimento que fora elaborado pela Sudene, mas deram ênfase a

pontos que nos projetos da Sudene eram secundários (como a

educação básica e saúde). Embora muitos dos projetos do Plano Bohan

estivessem contaminados pela preocupação de "combater o

comunismo" e fossem considerados "meramente assistencialistas",

neles havia pontos que décadas depois seriam incorporadas a

programas da esquerda. Veja abaixo algumas das medidas (os trechos

sob aspas são originais do Plano Bohan):

Curto prazo

ABASTECIMENTO D'ÁGUA

l Perfuração de poços artesianos onde sejam "necessários e viáveis

para o serviço de pequenas comunidades ou mocambos";

l implantação de "sistemas de abastecimento para as cidades [do

interior] com chafarizes, banheiros e lavanderias";

l ampliação dos sistemas de distribuição "das cidades litorâneas

levando-os aos mocambos e à construção de chafarizes públicos para

servir aos mais necessitados"

ELETRIFICAÇÃO RURAL

O item para o qual está prevista a maior parcela da verba de US$ 33

milhões destinada ao programa de curto prazo: US$ 9 milhões

POSTOS VOLANTES DE SAÚDE

Objetiva oferecer "imediatamente serviços médicos e sanitários onde

atualmente não se conta com serviços ou instalações permanentes".

ALFABETIZAÇÃO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL

Alerta para o fato de que a alta percentagem de analfabetismo

combinada com a falta de "treinamento em artes e ofícios mais

elementares" fazia com que os jovens entrassem no mercado como

trabalhadores "não qualificados do mais baixo nível".

Outras recomendações

l Apoio à melhoria do ensino: Assistência dos EUA mediante "a exibição

de filmes e fornecimento de projetos, complementados por unidades

áudiovisuais móveis; ampliação do atual centro áudiovisual de Salvador

(BA); implantação de três novos centros de educação áudiovisual no

Recife, Fortaleza e Natal"

l Criação de acampamentos como os existentes nos Estados Unidos

(chamados Acampamentos de Voluntários Civis de Conservação), em

articulação com o corpo de engenheiros das Forças Armadas do Brasil.

Para servir de espaço onde seria possível "dotar os elementos

desempregados do meio rural de uma formação básica mais completa,

proporcionando-lhes alguns conhecimentos agrícolas e industriais de

caráter prático e objetivo, noções imprescindíveis de higiene, asseio e

responsabilidades cívicas". Visava uma "clientela inicial de 2.500

indivíduos", mas poderia ser "prontamente desdobrado, de sorte a

abranger 12 mil".

INSTALAÇÃO DE 'CENTROS OBREIROS DA ALIANÇA PARA O

PROGRESSO'

20/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

Neles funcionariam um escritório da Delegacia do Trabalho; um centro

de saúde para atender à população rural; cursos de extensão doméstico-

agrícolas que tratariam de medidas básicas sanitárias, de problemas de

higiene, de saúde e dealimentação, de aperfeiçoamento de métodos

agrícolas e de técnicas horti-granjeiras; aulas básicas de alfabetização e

centro social para a população rural com filmes educativos e recreativos.

Outros serviços - como bibliotecas, agência de empregos, serviços de

migração e escritório de crédito rural - poderiam ser também integrados

aos "Centros".

O tom político da proposta

O objetivo oculto dessa medida era contrapor-se à influência das Ligas

Camponesas. Por isso recomendava que os "Centros Obreiros" fossem

instalados "as áreas onde existe maior concentração de trabalhadores

rurais". E mais: "Nas terras açucareira do Nordeste, como podem os

trabalhadores rurais saber que existe uma possibilidade de mudança e

de progresso sem que precisem recorrer à violência? O que poderia

trazer-lhes a esperança que agora necessitam tão desesperadamente?"

Longo prazo

INFRA-ESTRUTURA

l Melhoria do transporte rodoviário

l Ampliação do fornecimento de energia elétrica

SAÚDE

Propõe instalar 75 postos de saúde nos nove estados do Nordeste.

"Visto que essa atividade não está incluída no plano qüinqüenal da

Sudene [grifo do repórter], torna-se importante enquadrá-lo nos

programas dos órgãos regionais. A experiência adquirida com esta

espécie de programa no Brasil demonstra claramente que postos

permanentes localizados estrategicamente numa região e executando

atividades normais de saúde pública, têm um notável efeito sobre a

incidência de doenças contagiosas e o melhoramento geral das

condições de saúde"

Propõe a "criação de uma série de centros de saúde para minorar, se

não erradicar completamente, alguns problemas sanitários que

caracterizam a região" e a implantação de um sistema de suprimento

d'água "para que as deficiências do problema de saúde sejam

radicalmente sanadas".

EDUCAÇÃO BÁSICA E PROFISSIONAL

Detalhamento:

l Prevê a construção de 39 mil salas de aulas, a um custo equivalente a

US$ 1.100 por sala. "Admitindo que cada sala de aula seja utilizada por

dois turnos de 40 alunos cada (80 alunos por sala, anualmente), o déficit

escolar de 3 milhões de crianças [calculado para a região, na época]

poderia ser eliminado".

l Construção de escolas primárias e de 10 centros de preparação de

professores: "Uma das causas fundamentais do alto índice de

analfabetismo do Nordeste é a absoluta insuficiência de escolas

primárias. Calcula-se em 4,5 milhões o número de crianças em idade

escolar existentes em todo o Nordeste, embora somente 1,4 milhões

21/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

estejam realmente matriculadas, ou seja, 30%. Ademais, o corpo

docente dessas escolas é em grande parte integrado por moças

formadas pelas escolas normais espalhadas pela região, além de um

grande número de "professoras leigas", que nunca freqüentaram uma

escola normal".

l Escolas industriais e agrícolas: Cursos técnicos com dois anos de

duração.

"À proporção que estes jovens tivessem oportunidade de aprender algum

ofício básico sua produtividade aumentaria correspondentemente". E

uma parcela deles resolvesse emigrar, tudo bem: "O grupo que pretende

emigrar para o sul ou para a região centro-oeste teria maior segurança

se fosse não como trabalhadores sem ofício, que há por todo o país,

mas como trabalhadores com conhecimento de alguma profissão, tais

como marcenaria, oficina metalúrgica, instalações hidráulicas, pintura,

ofício de pedreiro, soldagem, oficina auto-mecânica etc.

MIGRAÇÃO

l Proporcionar instrução elementar (alfabetização) aos migrantes em

potencial.

l Proporcionar-lhe algum aprendizado básico, como por exemplo o

trabalho de madeiras e metais.

l Prestar-lhes assistência na escolha de uma carreira por meio de

orientação profissional

l Selecionar os migrantes levando-se em conta o seu preparo, condições

de saúde e adaptabilidade ao trabalho industrial

l Fornecer-lhe informações básicas sobre oportunidades de emprego,

salários e condições de trabalho no resto do país

l Substituir o recrutamento particular (que no passado ocasionou graves

abusos) e os movimentos desordenados de famílias inteiras em

caminhões, por uma direção planificada do fluxo migratório através de

um sistema nacionalde emigração, colonização e serviços de colocação

profissional.

l Para facilitar a fixação permanente dos trabalhadores nordestinos em

seu destino final, seria aconselhável o estabelecimento de postos de

recebimento, recursos hospitalares e educacionais, bem como centros

de colocação profissional.

Melhoramento da produção e

fornecimento de alimentos

Considera este elemento o mais importante uma vez que "para tornar o

Nordeste uma região economicamente viável" é imprescindível o "ataque

frontal às causas que impedem a expansão da produção de gêneros

alimentícios e de outros produtos agrícolas".

"Os EUA não têm projeto para a América Latina"

"O que me impressionou no Plano Bohan foi sua abrangência, com uma

exausta lista das avaliações, recomendações e projetos. Ele contém

recomendações detalhadas sobre como combater a seca, melhorar o

abastecimento de alimentos nas áreas rurais, melhorar os serviços

médicos e educacionais, fazer a eletrificação rural, viabilizar o

abastecimento de água, melhorar estradas e a tecnologia de

comunicação. O relatório foi feito com a participação de acadêmicos

22/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

especialistas em meteorologia, irrigação, administração pública,

geologia, horticultura tropical, comunicações, extensão agrícola e

educação industrial. Outro ponto importante é o seu significado para

comparação da política externa dos Estados Unidos. Significa que o

governo dos EUA realmente tinha um projeto para a região, nesta época.

Nem todos concordam com o plano, evidentemente, e muitos o viram

com suspeição. Mas o projeto existiu. Esta é a grande diferença entre a

política externa dos EUA para a América Latina naquela época e hoje.

Atualmente não há projeto dos EUA para a América Latina. A mensagem

dos EUA hoje parece apenas ser: 'baixem as barreiras para a entrada de

nossos produtos para que vocês possam comprá-los'

(Avaliação do cientista política Anthony Pereira, dos EUA, autor de obras

sobre o Nordeste a América Latina e um dos entrevistados para este

caderno

l Veja a entrevista completa dele na página 15

"Em 10 anos, melhoria do nível de vida"

"Existe oportunidade, se o esforço aqui sugerido for mantido por 10 anos,

para se aumentar substancialmente o nível de vida no Nordeste.

Havendo condições favoráveis, a atual renda per capita poderá ser

duplicada ainda dentro do período de vida da presente geração (em 15

anos). Por encorajador que se apresente este projeto, ele tem que ser

visto em função do nível de vida extremamente baixo hoje prevalecente. É

provável que a taxa de crescimento prevista aqui não forneça um nível

tolerável de consumo durante um período de 5 ou 10 anos, a menos que

se tomem outras medidas de auxílio próprio e melhoria de estrutura. Tal

perspectiva desencorajadora agrava-se ainda mais ao se compreender a

diferença de renda. A solução para este dilema está em

simultaneamente reduzir a densidade demográfica por meio de um ritmo

acelerado de emigração. Como foi dito antes, a solução para os

problemas do Nordeste deve ser encontrada na integração daquela

região com o resto do país, que se encontra em rápida expansão. Tal

integração exige, por sua vez, a concentração de esforços no

melhoramento da produtividade e mobilidade do homem do Nordeste.

Esta é, na verdade, uma tarefa importante e urgente para o Brasil e para

a Aliança para o progresso"

(...)

"A fim de obter os maiores resultados no menor período de tempo,

propõe-se o reinício, o mais breve possível, de muitos projetos

atualmente suspensos por falta de recursos e concentrar os recursos,

naqueles que possam ser postos em funcionamento em breve espaço

de tempo. Segundo um levantamento procedido pela Fundação Serviço

Especial de Saúde Pública, existem atualmente 126 projetos de serviços

d'água em construção no interior do Nordeste. Os escritório de

engenharia da SDESP no Nordeste estimam que pelo menos 48 destes

poderiam ser concluídos dentro de um ano, uma vez obtida a verba, e

132 poderiam estar operando dentro de dois anos".

(Trechos do Plano Bohan)

"Os EUA não batem prego sem estopa"

Durante uma tensa reunião com o coordenador da USAID (Agência

Americana para o Desenvolvimento Internacional) no Nordeste, John

Dieffenderfer, o superintendente-adjunto da Sudene perdeu a paciência.

"O tempo dos marines já passou", disse em português, prontamente

traduzido por um intérprete presente à reunião.

"Perhaps, perhaps", respondeu Dieffenderfer, um "talvez, talvez" que não

23/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

precisou de tradução.

O encontro deu-se em 1963. O superintendente-adjunto, que na época

tinha 26 anos, é hoje o célebre sociólogo Francisco de Oliveira, professor

titular (aposentado) de sociologia da USP e autor de obras como Elegia

para uma Re(li)gião (1993) e Os sentidos da democracia (2003). O

diálogo acima foi contado por ele ao Diario, do seu escritório em São

Paulo. Chico de Oliveira, como é conhecido por amigos e no meio

acadêmico, foi testemunha e protagonista dos acontecimentos daquela

época no Nordeste - momento em que, considera, os Estados Unidos

interferiram nos assuntos internos do Brasil de forma tão"ampla e

descarada" que é difícil encontrar paralelos na história. A conversa entre

ele e Dieffenderfer reproduz o clima existente entre a Sudene a USAID,

marcado por desentendimentos desde o início.

Merwin Bohan defendia que os EUA deveriam enviar um grupo enxuto de

especialistas para trabalhar em cooperação com a Sudene. Seria mais

eficaz e contornaria eventuais atritos provocados por sentimentos

nacionalistas. Em vez disso, porém, veio uma missão completa da

USAID. A embaixada dos EUA decidira que o Nordeste era um problema

primeiramente de segurança e só depois, de desenvolvimento. A

indicação de Dieffenderfer para dirigir a agência no Nordeste foi do

embaixador Lincoln Gordon.

Ingerência - Chico de Oliveira posicionou-se contra a ajuda americana

desde o início. Não era um instrumento de desenvolvimento eficaz para

os países subdesenvolvidos, disse em discurso para universitários no

Recife (depois publicado como O Nordeste e a Cooperação

Internacional, novembro de 1962). Trazia estagnação em vez de

progresso social e muitas vezes servia somente como "uma segurança

contra as revoluções". Hoje, 44 anos depois, ele reitera: "Os Estados

Unidos não batem prego sem estopa. Nunca ajudam ninguém sem

interferir. Toda ajuda deles traz implícita alguma interferência". Quando o

Plano Bohan circulou entre os círculos governamentais do Brasil,

encontrou em Chico um crítico feroz. As medidas de curto prazo, segundo

ele, eram "estritamente assistencialistas", e tinha como objetivo

combater a ação das Ligas Camponesas e das lideranças das forças

populares na região. As de longo prazo, na opinião dele, traziam

embutido o propósito de criar uma estrutura capaz de ser utilizada pelos

americanos, no caso de tornar-se necessária uma ação militar na região.

O golpe militar encerrou de vez todas estas discussões. "O Nordeste

pagou caro. Era na região que estavam em curso as propostas e

projetos mais inovadores", lembra ele, em seu escritório abarrotado de

livros, reproduções de Velázquez e discos de Luiz Gonzaga.

Os problemas do Nordeste vistos pelo Plano Bohan

Saúde

"Um dos mais sérios problemas de toda a região do Nordeste segundo

o número registrado de óbitos e o coeficiente de incidência patológica, é

a diarréia, cujo índice de mortalidade é 10 a 20 vezes superior ao dos

Estados Unidos. O índice de mortalidade infantil, superior a 400 mil em

duas das capitais, situa-se entre os mais altos do mundo. O tempo

perdido, os esforços em vão, e o custo da luta contra a diarréia

constituem um dos principais sorvedouros da economia do Nordeste. A

história do desenvolvimento de Porto Rico e dos Estados Unidos, bem

como estudos epidemiológicos em muitas partes do mundo, têm

demonstrado de modo decisivo que o uso da água em quantidades

razoáveis e de boa qualidade surte resultado cabal na redução da

moléstia".

Saneamento básico

24/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

"A melhoria das condições sanitárias é, juntamente com o

aperfeiçoamento da instrução e do artesanato, o elemento vital na

valorização dos recursos humanos do Nordeste.

Razões da baixa produtividade

"A baixa produtividade da região decorre de uma diversidade de fatores:

l Os métodos de cultivo adotados não se valem dos aperfeiçoamentos

tecnológicos;

l a população economicamente ativa é em sua grande parte constituída

de analfabetos e possui pouco resistência física, em virtude de uma

alimentação deficiente, e as precárias condições de saúde são

atribuídas à inexistência de instalações sanitárias e água potável

.l a estrutura agrária remonta ao período colonial e não oferece incentivos

ao progresso, seja da parte do proprietário das terras ou do lavrador,

condicionada a imposições institucionais (o sistema de preços mínimos

para o açúcar, por exemplo, oferece proteção aos produtores nordestinos

marginais, contra a concorrência da região açucareira de São Paulo, de

rendimento mais eficaz);

l quadros empresariais que primam pela ausência em contraposição ao

resto do território nacional;

l de resto, as secas periódicas e a distribuição irregular das

precipitações pluviais normais na região, acarretaram o agravamento

dos problemas de estrutura"

Desemprego disfarçado

"Outro sintoma da penúria imanente à região, conjugado com a

inexistência de oportunidades de emprego, pode ser observado na

grande parcela da força de trabalho no denominado setor terciário

[comércio]. À guisa de exemplificação existe uma percentagem de 18%

em serviços, em contraposição a uma percentagem de 10% em toda a

indústria. Essa proporção é de molde a sugerir um apreciável índice de

desemprego disfarçado. Ocorrências recentes puseram em foco o perigo

inerente a essa contingência no que se refere ao progresso social e

econômico da região, projetando-se além de seus limites, para

interessar a todo o Brasil e o hemisfério" (Trechos do Plano Bohan)

Todas as queixas do autor

O economista e embaixador Merwin Lee Bohan morreu em 1975, aos 76

anos, desiludido com o destino que os Estados Unidos deram ao seu

plano para o Nordeste. Em carta enviada ao pesquisador Riordan Roett,

autor de um livro sobre o "Acordo do Nordeste", Bohan dizia que nada

tivera a ver com o que acontecera com o programa após março de 1962.

O Plano Bohan fora entregue a Kennedy no mês anterior. "Depois que

soube que o Império da USAID decidira montar uma sede no Recife,

desinteressei-me completamente dos acontecimentos", afirma ele na

carta. A USAID era o organismo do Departamento de Estado

encarregado, entre outras coisas, da aplicação do "Acordo do Nordeste".

A carta - obtida pelo Diario na documentação de Bohan guardada na

Truman Library (Biblioteca Truman), em Independence, Missouri (EUA) -

revela a discordância dele com os rumos que o programa tomou. Afirma

que o trabalho deveria ser feito "em cooperação" com a Sudene. E que os

comunicados do governo americano sobre o assunto falavam a princípio

em umaequipe de 5 ou 6 "qualificados" especialistas para trabalhar em

parceria com a Sudene. Em vez disso o que se verificou foi o envio de

25/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

uma grande equipe - mais de uma centena deles.

Uma entrevista de Bohan, concedida em 1975, consta também do acervo

da Truman Library (Oral Interview). Nela o embaixador é ainda mais

explícito em relação às críticas. "Em uma carta [enviada a Teodoro

Moscoso, coordenador geral da Aliança para o Progresso] a gente

recomenda que fosse enviado no máximo 7 ou oito técnico [americanos]

ao Nordeste do Brasil, para trabalhar com a altamente nacionalista

Agência de lá [a Sudene]. Sete ou oito. Dentro de um ano havia mais de

150 em uma pequena cidade do Nordeste. O programa foi arruinado pela

burocracia".

A carta a que ele se refere - da qual também obtivemos cópia -,

encaminhada a Teodoro Moscoso, é de 30 de janeiro de 1962. "Não há

panacéia para os problemas do Nordeste. Estes problemas podem sem

enfrentados apenas por meio de um longo e paciente esforço para

melhoria de fatores humanos e materiais da região", escreve ele. "Isto

quer dizer que a educação deve ter a mesma prioridade dada a medidas

econômicas".

Bohan diz na carta que as obras de curto prazo previstas no programa

podem, "se executadas imediatamente", convencer "as massas do

Nordeste da realidade da Aliança para o Progresso, acalmar a

inquietação das massas e darão tempo para que a Sudene ponha em

execução medidas para aliviar a região da opressiva pobreza".

Todo o programa da Aliança para o Progresso previa a instalação de

placas e símbolos nas obras, mostrando o responsável por elas (ou

seja, a Aliança). Bohan discordava dessa tônica "propagandista". Em

nova carta a Teodoro Moscoso, em 6 de abril de 1962, ele afirmava: "A

preocupação com nossa imagem é ingênua e perigosa. Nos leva a

cometer o erro de tentar vender a nós mesmos, em vez daquilo que nós

representamos". O resultado disso era pôr as pessoas sob a

"desconfortável obrigação" de mostrar-se agradecidas. O

reconhecimento mais eficaz, dizia ele, era aquele que acontecia

"espontaneamente". O que os EUA precisava era de uma "ponte" com a

América Latina, coisa que deixara de ter desde a II Guerra Mundial,

afirmava ele.

Glossário

Aliança para o Progresso: Programa criado pelo presidente John

Kennedy para o desenvolvimento da América Latina. Suas metas,

lançadas oficialmente em 17 de agosto de 1961, defendiam "teto,

trabalho, terra, saúde e educação" - um ideário que transposto para os

dias de hoje seria considerado de "esquerda" ou até mesmo

(dependendo de quem o avalia) de "extrema-esquerda". Na época foi um

programa criado para contrapor-se à influência da Revolução Cubana,

que se espalhava por toda a América Latina. "Aqueles que tornam

impossível a revolução pacífica farão inevitável a revolução violenta", dizia

Kennedy. A Aliança para o Progresso pretendia, entre outras coisas,

garantir o crescimento econômico da América Latina, erradicar o

analfabetismo, assegurar escolas para todas as crianças em idade

escolar, aumentar em cinco anos a expectativa de vida, fazer a reforma

agrária e reduzir o desemprego. Tudo isso a um investimento de US$ 20

bilhões, para aplicação em 10 anos. A Aliança para o Progresso foi a

versão "latinizada"do Plano Marshall, que reconstruiu a Europa Ocidental

no pós-guerra. O Plano Marshal deu certo; a Aliança, não. Entre os vários

motivos por que isso aconteceu, dois se destacam: 1) a resistência da

conservadora elite latino-americana a reformas; 2) a opção dos EUA em

priorizar medidas de segurança para "conter o comunismo", o que

acabou contaminando a face desenvolvimentista do programa. A Aliança

para o Progresso acabou em 1970, no governo Richard Nixon, sem

atingir nenhuma das metas previstas.

26/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

Guerra Fria: Trata-se da disputa travada entre União Soviética e Estados

Unidos, após a II Guerra Mundial. O nome "Fria" deriva do fato de não ser

uma guerra tradicional (com exércitos em luta). Seu período mais tenso

foi exatamente durante o governo Kennedy, com a invasão da "Baía dos

Porcos" por exilados cubados treinados pela CIA (17 de abril de 1961), a

construção do Muro de Berlim (13 de agosto de 1961) e a Crise dos

Mísseis (outubro de 1962). Os acontecimentos verificados no Nordeste e

no Brasil, na época, estiveram diretamente ligados ao clima da Guerra

Fria.

"Foi uma invasão silenciosa"

Germano Coelho presidiu e relatou um inquérito que se transformou na

primeira e única contestação oficial à política do governo Kennedy para o

Brasil. Contestação de um governo eleito, feita com base em

documentos. Aconteceu em fevereiro de 1963. Recém-empossado

governador do Estado, Miguel Arraes nomeou uma comissão para

investigar os acordos existentes entre Pernambuco e os Estados Unidos.

Formada por seis intelectuais: Antonio Baltar, Salomão Kelner, Augusto

Wanderley Filho, Luiz Pandolfi, Gildo Guerra e Germano Coelho,

secretário estadual de educação e cultura. Por decisão dos integrantes

da comissão, Germano - professor de direito constitucional, com

mestrado em Paris - assumiu a presidência e a relatoria da comissão.

Os trabalhos começaram em 12 de fevereiro e foram concluídos em 1º

de maio de 1963. Reuniu documentos colhidos no Brasil e nos Estados

Unidos. E ao juntar todas as informações constatou algo que, em

conjunto e em minúcias, era impactante: o governo dos Estados Unidos

estava priorizando acordos diretos com estados onde o governador fazia

oposição ao presidente João Goulart, e beneficiando com o maior

montante de recursos aquele que deveria ser o candidato oposicionista à

presidência, Carlos Lacerda, governador da Guanabara. "Era uma

invasão, uma invasão silenciosa. Estava tudo ali, nos dados que

reunimos, nos documentos", recorda Germano. Para o governo dos EUA

era outra coisa: chamava-se "política das ilhas de sanidade

administrativas", termo cunhado pelo embaixador Lincoln Gordon.

Oficialmente consistia no apoio preferencial aos estados que estivessem

sendo "bem administrados". Coincidentemente, as "ilhas de sanidade"

eram governadas por opositores de Goulart... O resultado do inquérito foi

divulgado em reunião na Sudene, da qual participou o próprio

embaixador Lincoln Gordon. Em 80 páginas, um contundente diagnóstico

da ação norte-americana. "Foi uma surpresa para o Lincoln. Ele não

esperava nunca um trabalho com aquela profundidade. Ele não

conseguiu responder. Ficou calado. E eu disse para um colega na

reunião: 'Calamos o imperialismo americano'", conta Germano, que mais

tarde seria prefeito de Olinda e hoje é superintendente executivo do CIEE

(Centro de Integração Empresa Escola).

O estudo feito em Pernambuco ganhou repercussão nacional e

internacional. Mostrava que os EUA estavam passando por sobre a

autoridade da Sudene e do presidente João Goulart, assinando

convênios diretos com os estados. Isso era inconstitucional, afirmava o

inquérito, que virou livro da Editora Brasiliense, com o título Aliança para o

Progresso - resultado de inquérito, lançado ainda em 1963. Com base

no estudo, Arraes cancelou todos os convênios assinados entre

Pernambuco e os EUA. É a história desse inquérito que Germano Coelho

nos conta nesta entrevista, concedida com duas características que ele

mantém desde aquela época: um sorriso permanente e uma cultura que

passeia pela história e pelo espírito das leis com a familiaridade de

quem se sente em casa.

Entrevista [ Germano Coelho ]

Diario de Pernambuco: Vamos começar tirando uma dúvida: naquela

época o senhor era anti-americano?

27/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

Germano Coelho: Eu, anti-americano? Sabe qual era o meu livro de

cabeceira, um livro que influenciou tanto a minha vida? Breviário de um

homem de bem, de Benjamin Franklin, um dos que assinaram a

Constituição americana. Posso ser anti-americano se um dos livros que

mais influenciaram minha vida foi o de Benjamin Franklin?!... Naqueles

tempos o que eu via era que os americanos estavam aqui cometendo

um crime contra o Brasil.

Diario: Quando na reunião com o embaixador Lincoln Gordon o senhor

disse "Calamos o imperialismo americano"...

Germano: Há dois campos nos Estados Unidos. O campo do atual

presidente Bush, que é um campo que se faz entendido pela força, pela

violência, pelas armas, e o campo com o qual eu me identifico, da

constituição americana de 1787. o campo de Roosevelt, da luta pela

liberdade, democrática, do New Deal, o campo das chamadas public

corporations [corporações públicas]...

Diario: Como era a situação na administração de Pernambuco, quando o

senhor assumiu?

Germano: Encontrei a USAID, um órgão do Departamento de Estado dos

EUA, com um controle efetivo da Educação. Havia convênios assinados

entre o governo anterior, de Cid Sampaio, diretamente com os

americanos. Era uma influência muito. Eles é que tinham recursos para

investir e implantar escolas em todo o território.

Diario: Na prática, como se dava esta influência?

Germano: Por exemplo: havia uma escola recém-construída com verbas

dos convênios. Eu queria abrir essa escola, colocá-la pra funcionar, mas

dependia da liberação do professor Philip Schwab, que era o assessor

para educação da USAID no Brasil. Então veja: eu, secretário de

educação, queria colocar uma escola para funcionar e não podia. Só com

a autorização do professor Schwab. E aí eu comecei a me documentar.

Mandava ofício para o professor Schwab para a abertura de tal escola,

recebia ofício dele comunicando porque não podia... Fui juntando

documentação, provando que eu era secretário de educação mas o

Estado não tinha mais o poder quanto à educação.

Diario: Como era o funcionamento da USAID em relação à secretaria de

educação?

Germano: Eles possuíam muitos recursos. Havia profissionais locais

que preferiam trabalhar para eles, porque pagavam melhor. Naquela

época nós queríamos alugar um prédio para mudar a sede da secretaria

da educação. Íamos alugar um prédio de oito andares, que fica no Bairro

do Recife, em frente ao prédio atual do Banco do Brasil. Mas a USAID

chegou primeiro e alugou o prédio. Quer dizer, o lugar que daria para

[sediar] a secretaria de educação foi o lugar em que eles ficaram. Por aí

você vê a dimensão da estrutura deles. Era um escritório enorme. Não

tratava só de Pernambuco, mas do Nordeste inteiro.

Diario: Como foram os trabalhos da comissão encarregada de investigar

os convênios?

Germano: Nenhum de nós, era filiado a partido. Reunimos um grande

material. Mandei buscar os documentos na União Pan-Americana

[entidade sediada nos EUA, que guardava a documentação dos

convênios]. Em inglês e português. Tinha de comparar nos dois idiomas,

comparar o sentido. Porque aí você podia captar mais a dominação.

28/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

Diario: O que vocês descobriram?

Germano: O problema não era só Pernambuco, não. A gente descobriu

que Aluízio Alves, do Rio Grande do Norte, tinha convênio assinado com o

presidente Kennedy. Que Petrônio Portela, do Piauí, tinha convênio

assinado... Ora, nenhum estado-membro pode assinar convênio com

uma nação estrangeira. Só quem pode assinar convênio com outra

nação são os países. O Brasil. Então, eles passaram por cima do

governo de João Goulart.

Diario: Mas estes convênios dos outros estados já era uma coisa

conhecida no Brasil, não? Eram acordos abertos, com solenidades...

Germano: É, mas isso se conhecia fragmentadamente. Não da forma

que a gente mostrou.

Diario: Qual foi o problema mais grave que vocês descobriram?

Germano: Fizemos um levantamento detalhado sobre quem era o

governador, a que partido pertencia e quanto recebera. Quando

concluímos olevantamento, estava lá: todos os governadores eram da

UDN, que fazia oposição a João Goulart. E havia um "Acordo do

Nordeste", mas o estado que mais recebera recursos fora a Guanabara,

de Carlos Lacerda, também da UDN, e que era o nome da oposição,

apoiado pelos americanos, para disputar a presidência em 1965. O que

você tinha ali era uma articulação clara. Recursos para governadores

contrários a João Goulart e, dentre estes, o mais beneficiado era

exatamente aquele que iria disputar a presidência. Era uma invasão

silenciosa. Uma articulação política interna feita por uma nação

estrangeira. Uma coisa gravíssima. Afrontava a soberania do Brasil.

Diario: Esse quadro, inteiro, era desconhecido no Brasil? Foi a primeira

vez que esta situação foi mostrada dessa forma?

Germano: Foi, era algo desconhecido no Brasil. Tudo o que se tinha era

informação dispersa, fragmentada. O Inquérito que nós fizemos mostrou

a dimensão do problema. Eu fui a Brasília, levei o resultado ao ministro

da Justiça, João Mangabeira. Olheo que João Mangabeira disse [em tom

solene]: "Só podia vir de Pernambuco. Vocês estão defendendo a

Federação! Nunca se viu uma coisas dessas, um estado-membro

assinar acordo com uma nação estrangeira!". Fui também ao ex-

presidente Juscelino Kubitschek, que tinha muito prestígio com Kennedy.

Contei o que estava acontecendo, deixei o texto do inquérito lá. Três dias

depois ele deu entrevista dizendo: "Pernambuco tem razão. A Aliança

para o Progresso precisa ser revista".

Recomendações específicas

"1º) O Estado de Pernambuco deve denunciar os acordos eivados de

flagrante inconstitucionalidade, estruturados de modo a consubstanciar

uma abdicação de prerrogativas inalienáveis.

2º) O Estado de Pernambuco não deve admitir nenhuma forma de

debilitamento e alienação de seus órgãos administrativos, como por

exemplo a criação de entendidas paralelas para a co-direção de

programas específicos; a atribuição de gratificações que equivalem ou

excedem os vencimentos de seus funcionários, degradando, assim, o

serviço público; e a divulgação, perante a opinião pública, a pretexto de

criação de uma mística da Aliança para o Progresso, de todas as

realizações administrativas como oriundas de um órgão cada vez mais

identificado com a agência de um governo estrangeiro.

3º) O Estado de Pernambuco não deve admitir, no cumprimento de suas

tarefas administrativas, que os projetos total ou parcialmente financiados

29/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

por ajuda externa sejam elaborados, dirigidos ou controlados por

representantes de qualquer órgão estrangeiro".l Trecho do inquérito

sobre a Aliança para o Progresso, realizado em Pernambuco em 1963

A versão de Cid Sampaio

Cid Sampaio governou Pernambuco de 1959 a 1962. Está hoje com 85

anos e, devido a problemas de saúde, encontra-se impossibilitado de

dar entrevista. Em 1963 ele lançou um livro sobre o seu mandato, Quatro

anos de governo. Abaixo, o trecho em que ele fala sobre os convênios

com a Aliança para o Progresso:

"(...)ajuda substancial foi a resultante de convênio firmado com o governo

norte-americano, instituindo-se o serviço que se denominou "Serviço

Educacional Aliança para o Progresso" e que começou a funcionar em

agosto do ano próximo findo. (...) Elaborado um plano de construções

escolares e instituído um órgão de estudos, fiscalização e execução,

constituído de engenheiros e técnicos do Departamento de Obras da

Secretaria de Viação, foi possível, em menos de um semestre, através de

uma ação intensiva, rápida e sistematizada, a edificação de 60 salas de

aula, ficando em construção mais de 250, distribuídas pela Capital e por

todo o interior do Estado. Os programas de construção e aquisição de

mobiliário são feitos trimestralmente. O plano global prevê 1.200 salas

de aula, obrigando-se o governo norte-americano, através da USAID, a

inverter no programa conjunto a soma de um milhão de dólares.

A Aliança para o Progresso, em Pernambuco, se converteu num sistema

conjugado de esforços de dois governos para a solução do problema

educacional elementar, que, nem por ser um problema de espaço

interno, deixa de se projetar no espaço internacional, tantas são as suas

implicações e seus interrelacionamentos. Menos que intervenção

assistencial de outra nação, economicamente forte - o que importaria, de

certo, numa omissão do assistido em achar o seu próprio caminho, com

todas as conseqüências, daí advindas para a personalidade moral e

material de um povo - representa a contribuição norte-americana, uma

participação no auto-esforço ao povo de Pernambuco"

Good morning, Recife

Nunca os Estados Unidos estiveram tão próximos do Recife quanto

naqueles agitados anos do governo Kennedy. E também, naqueles

agitados anos, nenhuma outra região latino-americana recebeu tantos

norte-americanos quanto o Nordeste. E ainda, em tempo algum,

pernambucanos e nordestinos receberam tantos convites para visitar os

Estados Unidos - com tudo pago, of course - quanto naqueles agitados

anos. Era tamanha a presença norte-americana que ninguém se

surpreendia ao abrir o jornal e ver uma cena inusitada em qualquer

época: um almirante dos EUA, todo sorrisos, com um mal colocado

chapéu de cangaceiro na cabeça. Pois aconteceu. Saiu na primeira

página do Diario de 10 de maio de 1963. O almirante chamava-se Tyree

Jr., comandava as forças navais dos EUA no Atlântico Sul e pôs o chapéu

de cangaceiro durante festa para recepcioná-lo no Clube Internacional.

Toda esta história começou a partir do interesse do presidente Kennedy

pela região. Vieram depois o "Acordo do Nordeste", reportagens no The

New York Times, fotos de manifestações das Ligas Camponesas em

tudo que era jornal e revista (aquelas cenas de camponeses com as

foices pra cima e coisa e tal), dólares, o temor e a ansiedade de um novo

foco de conflitos no mundo - e pronto, o Nordeste entrou na rota

internacional, como uma escala obrigatória.

A conexão com os Estados Unidos estreitou-se ainda mais em 1963,

quando a companhia aérea norte-americana Pan Am pôs em atividade

um vôo Recife-Nova York. A aeronave, uma das mais modernas da

companhia, tinha capacidade para 138 passageiros. O vôo inaugural

30/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

partiu daqui em 23 de maio daquele ano. A viagem era sem escalas e

demorava 9 horas. Tempo mais curto do que a viagem do Recife a

Petrolina, no Sertão, que na época só podia ser feita de carro e demorava

pelo menos 10 horas - a maior parte do trajeto sob poeira, porque de

Caruaru em diante seguia-se por estrada de terra.

Pernambuco era o Estado mais influente do Nordeste e o Recife era a

capital que todos visitavam ao vir à região. A rota era percorrida também

por europeus. Como o célebre fundador do Le Monde, Beuve Méry, que

esteve aqui em 1º de junho de 1963, e de outro francês ainda mais

célebre, o filósofo Jean Paul Sartre, que chegou ao Recife em agosto de

1960. Na palestra que fez na Faculdade de Filosofia, o tradutor contratado

não apareceu. A tarefa acabou sendo cumprida por um paraibano que

falava francês e inglês e ocupava o posto federal mais importante no

Nordeste - Celso Furtado, superintendente da Sudene. No final da

palestra, Furtado quebrou outro galho para o filósofo e para os

organizadores da palestra: deu carona, dirigindo seu próprio carro, para

Sartre, até o hotel em que ele estava hospedado. Assim como o tradutor,

o motorista contratado também não aparecera.

Na área audiovisual, o Nordeste chegara às residências dos EUA em 13

de junho de 1961, como tema do documentário The Troubled Land("Terra

Conturbada"), produzido e dirigido por Helen Jean Rogers. Kennedy e

Celso Furtado assistiram ao documentário na Casa Branca. O programa

mostrava o drama dos sem-terra nordestinos. Tocou o coração dos

norte-americanos. Um casal de Minessota, Long Island, telefonou à

emissora oferecendo-se para comprar terra para uma família daqui. Em

Chicago um telespectador procurou 25 amigos e pediu que mandassem

roupas para os camponeses. Não há notícia se as roupas chegaram e

se a terra foi comprada. O documentário nunca passou no Brasil; o

presidente Jânio Quadros considerou que ele era ofensivo ao país.

Da mesma forma que os norte-americanos vinham para cá, ia gente

daqui para lá. Em caravanas, muitas vezes. Como a de jornalistas (14 de

Pernambuco e um do Ceará), que "sob os auspícios do Departamento

de Estado e da Agência de Informações (Usis)" dos EUA (matéria do

Diario em 7 de junho de 1963), foram conhecer o American way of life. O

adido cultural do consulado norte-americano no Recife, Douglas Elleby,

teve o privilégio de, ao ser transferido para outro país, ser alvo de um

abaixo-assinado de jornalistas pernambucanos pedindo que ele ficasse.

O futebol tambémse fez presente nesta tendência. O Sport Club do Recife

participou de um torneio internacional nos EUA - junho/julho de 1963 -

como representante do Brasil, enfrentando equipes do México,

Alemanha, França, Espanha e México. Recebeu por jogo US$ 1.500, um

cachê que nunca até então houvera recebido. O dinheiro dava para pagar

jogadores, técnico e até - o "até" aqui foi usado em matéria do Diario

sobre o assunto, em 11 de junho de 1963 - o massagista. (Para quem

gosta do jogo, seja ele futebol ou soccer: O Sport ficou em 4º lugar).

No fluxo Nordeste-EUA, uma das atividades de propaganda do governo

norte-americano era levar pessoas da região para viver durante um ou

dois meses com famílias de lá. Um dos participantes foi Dinaldo Bizarro,

na época estudante de agronomia da UFRPE. Ficou em Pigeon, estado

de Michigan. Se fosse possível usar a palavra "grotão" em relação a

algum município dos EUA, Pigeon seria um deles. No último censo, de

2000, tinha 1.207 habitantes e 496 casas. Ao retornar de lá, Dinaldo

avisoulogo: "Não fui teleguiado. Tive oportunidade de conhecer e visitar

os lugares que quis". E, maravilhado: "O nível de vida das pessoas,

apesar de pertencerem à classe média, era altíssimo. A maioria possuía

carros do ano e em geral duas casas". Outro participante do programa foi

Marcelo Jorge de Castro Silveira, que ficou em Palmyra (3.145 habitantes,

com 1.330 casas, no censo de 2000), na Pennsylvannia. E Mario

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Romanguera, que foi para Wooster (24.000 habitantes, 10.040

residências), em Ohio.

Os governadores da região tinham tratamento VIP da Casa Branca -

como nunca tiveram antes e como certamente nunca mais virão a ter.

Aluízio Alves (RN) e Virgílio Távora (CE) quando queriam passar o pires

em busca de recursos para seus estados não iam para Brasília; iam

para Washington. Pela Pan Am e partindo do Recife.

A presença dos norte-americanos aqui também tinha seus lances

inusitados. Como o do envio de um galinheiro portátil, inventado na

Lousiana, que servia para a criação de até 100 pintos de corte.

Construído com madeira rústica ou sobras de madeira, era o tipo de

produto que poderia muito bem ter serventia para o Nordeste,

acreditavam os americanos. Não vingou.

Hoje o presidente Kennedy é nome de rua ou avenida em todas as

capitais do Nordeste. Em Pernambuco há "avenida Presidente Kennedy"

no Recife, Olinda e Jaboatão. Em Fortaleza é mais do que isso: lá dá

nome a um bairro. Em Natal, é nome de um instituto de Educação. Nas

pequenas cidades do interior também é comum encontrar "Rua

Presidente Kennedy". Até paraninfo ele foi: turma de 1963 de economia

da Universidade Federal de Pernambuco o escolheu como tal. A

solenidade foi em fevereiro de 1964, no Recife. O embaixador Lincoln

Gordon o representou. Os estudantes responsáveis pela indicação

ganharam viagem aos EUA e foram recebidos pelo senador Robert

Kennedy., em Washington (em junho daquele ano).

Era uma vez no Brasil

O dia em que Lincoln Gordon escapou de ser enterrado vivo

O embaixador Lincoln Gordon foi fazer uma palestra em Fortaleza, no

Ceará. Dias antes o líder do movimento sindical de esquerda, José

Beleza, procurou o governador Virgílio Távora. Queria autorização da

Secretaria de Polícia para fazer uma passeata e o enterro simbólico do

embaixador. Virgílio, que fora eleito com apoio da Aliança para o

Progresso, reagiu:

- Não me consta que o embaixador Lincoln Gordon haja morrido.

- É um ato simbólico, governador, para mostrar nosso repúdio à política

dos Estado Unidos - explicou José Beleza.

E Virgílio, encerrando a conversa:

- Doutor, no meu Estado só se enterram os mortos.

Não houve passeata nem enterro simbólico e Lincoln Gordon fez sua

palestra sem problemas.

O avesso do avesso

Em 1965, quando Lincoln Gordon continuava embaixador, Virgílio Távora

governador, Arraes fora deposto e o Brasil tornara-se o mais fiel aliado

dos EUA nas Américas, o jornalista Carlos Heitor Cony notou que havia

algo errado no nome do nosso país. A submissão do Brasil era tanta na

época que, disse Cony, "em vez de Estados Unidos do Brasil" (como era

o nome oficial do nosso país) deveria ser "Brasil dos Estados Unidos".

Hoje, graças a Deus, é República Federativa do Brasil.

Robert, o irmão, em Pernambuco

Não há dúvidas que foi a cena mais inusitada ocorrida no Recife nos

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anos 60. Do alto da capota de um caminhão, em frente ao edifício JK, no

centro da cidade, um homem alto e claro fazia um discurso inflamado a

favor dos pobres e dos trabalhadores rurais. O momento não era

conveniente para comícios: 23 de novembro de 1965, o Brasil em plena

ditadura militar. O idioma utilizado, este é que era inconveniente mesmo:

puro inglês do norte dos Estados Unidos, onde o orador nascera.

Bestializado, o povo embaixo procurava entender na tradução de João

Gonçalves, então superintendente da Sudene, qual o verdadeiro teor do

palavreado daquele estranho orador, que era ninguém menos que o

senador Robert Kennedy, conhecido como "Bob", irmão do presidente

John Kennedy.

Na primeira vez que estivera no Brasil, em 1963, Robert viera enviado

pelo irmão presidente para pressionar o presidente João Goulart a

impedir a "esquerdização" do governo. Em 1965 John Kennedy estava

morto (assassinado em 23 de novembro de 1963) e João Goulart,

exilado no Uruguai, deposto que fora em 31 de março de 1964. O sinal

de que os tempos eram outros viu-se logo na chegada de Bob ao Recife.

A polícia prendeu os universitários Henrique de Carvalho Matos (de

Engenharia), Maria da Conceição Lins (Medicina) e Jorge Henrique

Vadivieso Bernal (Engenharia), acusados de distribuir panfletos contendo

críticas à política externa dos Estados Unidos e ao governo brasileiro -

material altamente subversivo para os padrões de 1965.

Uma comitiva o procurou à noite. Queria que ele fosse a uma festa

carnavalesca organizada no Clube Amante das Flores, em homenagem

ao presidente Kennedy. À frente do ato estava uma norte-americana que

se especializou em estudar o Carnaval pernambucano, Katarina Real.

Robert não foi à festa - a data era a de dois anos da morte do irmão.

No dia seguinte, Bob viajou a Zona da Mata. Da janela da Cooperativa

Mista de Trabalhadores Rurais de Carpina fez discurso defendendo "a

urgente organização dos trabalhadores em sindicatos e

associações"para "tornar possível a reforma agrária". Caminhou pelos

canaviais ao lado do padre Crespo. Conversou com camponeses,

perguntando se eles recebiam o salário mínimo, e até repreendeu o

proprietário José Jaime Coutinho, por interferir na conversa: "O diálogo é

comigo".

Depois veio ao Recife, onde discursou no centro da cidade e na Sudene,

nesta ordem. "O progresso de toda a América Latina repousa, em larga

escala, no progresso do Brasil. E o futuro do Brasil, por seu turno,

depende do Nordeste, que é um país dentro de um país", afirmou na

Sudene [veja trechos ao lado]. Em seguida fez palestra para estudantes

da Faculdade de Filosofia, seguida de debate. Solicitou da polícia que

liberasse os três estudantes presos para que eles pudessem participar

do ato. Pedido negado. Mas a polícia permitiu que eles enviassem as

perguntas por escrito. O sociólogo Gilberto Freyre fez o discurso de

abertura. Lembrou o passado rebelde e nativista de Pernambuco e disse

que o estado apoiava revolução: "Revolução no sentido em queJohn

Kennedy entendia revolução". Que não tivesse, continuava Freire, nem

ditadores "de feitio caudilhesco" nem "ditaduras stalinescas".

No debate, ao contrário do que se poderia pensar, as perguntas foram

duras. "Como justificar a intervenção dos Estados Unidos na República

Dominicana, quando, há pouco tempo, V. Exia. defendeu na ONU, entre

outros postulados democráticos, o princípio da não-intervenção?",

perguntou um. Bob disse que era contrário à intervenção. "Não só a esta,

como a qualquer intervenção de um país nos assuntos internos de outra

nação", enfatizou. Um dos estudantes presos na véspera, Jorge

Henrique, que aceitara enviar pergunta por escrito a Kennedy, indagou

sobre o apoio dos EUA à Guerra do Vietnã. "A Guerra do Vietnã é difícil e

muito desagradável. Ninguém nos EUA simpatiza com ela", respondeu

33/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

Kennedy, acrescentando, porém, que a guerra "está sendo financiada,

dirigida e orientada pelo Vietnã do Norte". Um terceiro estudante

esquentou o clima. Quis saber como ele via o "momento políticodo

Brasil" e que conceito tinha de "eleições livres, eleições diretas e

eleições indiretas". Resposta de Bob Kennedy: "Como visitante não me

fica bem, não tenho mesmo autoridade para opinar sobre assuntos da

alçada interna do país que visito. Afirmo-lhes, apenas, o que disse no

Peru, no Chile, na Argentina e aqui: sou um defensor intransigente das

instituições livres, das eleições livres, da imprensa livre, da segurança

policial e dos postulados democráticos". Tirando a parte da "segurança

policial", o estudante que entregasse panfletos com estas palavras seria

preso por distribuir material subversivo.

O Nordeste nunca esteve distante do pensamento do presidente

Kennedy. Para ele a região simbolizava e corporificava a esperança da

Aliança para o Progresso inteira. Ele enviou uma missão especial para

cá. Determinou fundos especiais e alimentos para auxiliar os senhores.

E assegurou que nenhuma região tinha maior prioridade nos assuntos

do governo. Os cortadores de cana com os quais falei hoje de manhã

talvez nunca ouviram falar dele. Mas ele os conhecia. Ele conhecia os

problemas e as esperanças do Nordeste do Brasil. Os gritos que se

ouvem na América Latina, pelo fortalecimento das eleições livres, pelos

padrões mínimos de um salário condigno - esses gritos são ecos de

vozes que ouvi em meu próprio país (Trecho de discurso de Roberto

Kennedy, na Sudene)

A eleição que não acabou

O presidente John Kennedy disputou uma eleição no Recife. Tão

importante foi a disputa que o todo-poderoso embaixador Lincoln Gordon

veio representá-lo. E defensores da candidatura dele foram recebidos no

Congresso norte-americano, em Washington, pelo irmão do presidente,

deputado Robert Kennedy.

A eleição, realizada em 1963, foi para paraninfo da Turma de Economia

da UFPE. O adversário do presidente foi o geógrafo e escritor Manuel

Correia de Andrade, que tinha em sua "chapa", como patrono, ninguém

menos que Caio Prado Jr., autor do clássico Formação do Brasil

Contemporâneo e proprietário da Editora Brasiliense, de São Paulo. O

patrono na chapa de Kennedy era o ex-presidente Juscelino Kubitschek.

"Eu ganhei", diz ao Diario Manuel Correia, hoje um autor

internacionalmente reconhecido, autor de A Terra e o homem do

Nordeste, considerado um dos 100 livros mais importantes do Brasil.

"Kennedy ganhou", rebate o atual ... tesoureiro da Associação Comercial

de Pernambuco (ACP), Clóvis Cabral, um dos mais entusiastas

defensores da candidatura do presidente e que integrou a comitiva de

oito estudantes que se encontrou com Robert Kennedy em Washington.

Encontramos também o laureado da turma, o agora economista Clóvis

Cavalcanti, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e professor da

UFPE. Segundo ele, na primeira eleição, ganhou Manuel Correia. Depois,

os defensores de Kennedy promoveram nova disputa (da qual os

"eleitores" de Manuel Correia não participaram) e o presidente foi eleito.

O fato é que houve duas festas para os formandos de Economia de 1963

da UFPE. Numa, festejou-se a vitória de Manuel Correia. Caio Prado veio

para a solenidade. Na outra, festejou-se a vitória de John Kennedy. Esta

foi mais solene. Juscelino Kubitschek esteve presente. E o embaixador

veio representar Kennedy. Clóvis Cabral guarda cópia do discurso dele.

A eleição - aparentemente inofensiva, aos olhos de hoje - é um retrato

perfeito de quão profunda era a presença norte-americana em

Pernambuco, de como as posições estavam aqui radicalizadas e de

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quanto a situação tinha repercussão no país. A ponto de um ex-

presidente (JK), um embaixador e um autor e editor do porte de Caio

Prado participarem das solenidades da formatura. "Era uma disputa

entre direita, que apoiava Kennedy, e esquerda, que apoiava Manuel

Correia", diz Clóvis Cavalcanti. O outro Clóvis, o Cabral, pró-Kennedy,

afirma: "Havia na região uma sensação muito forte de que os comunistas

estavam avançando"

A escolha de Kennedy como paraninfo resultou, para um grupo dos seus

"eleitores", numa visita a nove cidades dos Estados Unidos, com visitas

a "instituições, seu comércio e agricultura e pequenas indústrias",

segundo o programa oficial.

. Clóvis, o Cabral, recebeu convite para fazer mestrado em uma

universidade de lá. Compromissos com a família impediram que

aceitasse. O Clóvis laureado, o Cavalcanti, fez mestrado em Yale em ...

Manuel Correia era professor e exercia a diretoria de ... do governo

Arraes. Seu livro, A Terra e o Homem no Nordeste, lançado naquele

1963,está na ... edição. Os três fazem restrições à política externa norte-

americana de hoje. Clóvis, o Cabral, aquele pró-Kennedy, faz uma

distinção pertinente: "Uma coisa é o povo americano. Outra coisa é o

governo americano".

Kennedy em Sapé?

Três vezes o presidente Kennedy marcou de visitar o Brasil. Duas

cancelou, e a terceira não pôde cumprir porque foi assassinado. Nas três

vezes o Nordeste estava na rota que ele iria iria cumprir. Na última foi

quando mais se avançou na definição do roteiro. O assunto foi tratado

em reunião na Granja do Torto, da qual participaram o presidente João

Goulart, o embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon; o assessor de

imprensa de Kennedy, Pierre Salinger; o general Amauri Kruel, chefe do

gabinete militar, e o deputado federal Francisco de Assis Lemos, autor

do relato que utilizamos aqui.

O que um deputado da Paraíba fora fazer ali? O próprio Goulart o

mandara chamar. Na visita ao Brasil o presidente Kennedy queria dirigir-

se aos brasileiros falando a partir de uma cidade do Nordeste, disse

Goulart na reunião.

Assis Lemos conta estas histórias no livro Nordeste - O Vietnã que não

houve/ Ligas Camponesas e o golpe de 64, lançado em 1996 pela

Universidade Federal da Paraíba e Universidade Estadual de Londrina.

Ele foi cassado pela ditadura militar. Transferiu-se para o Paraná e

trabalhou na Embrapa durante o governo Fernando Henrique Cardoso.

O primeiro mensalão. Kennedy sabia?

O maior envolvimento dos Estados Unidos nos assuntos internos do

Brasil aconteceu nas eleições de 1962. Milhões de dólares foram

utilizados na campanha de 869 políticos brasileiros - 600 candidatos a

deputado estadual, 250 a federal, 11 a senador e 8 a governador, todos

eles considerados pró-Estados Unidos, hostis ao comunismo e

contrários ao governo de João Goulart. Houve uma CPI para investigar o

caso, mas ninguém foi punido. A organização que estava por trás de

tudo, o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), teve o fechamento

decretado em 1963, mas não restaram provas: toda sua documentação

foi destruída, tornando impossível fazer a lista completa dos

mensaleiros. Não se sabe quanto deles se elegeram se elegeram, mas

é certo que muitos só obtiveram o mandato graças aos dólares

despejados em suas campanhas.

Há controvérsias sobre a quantia gasta. Chegou a US$ 5 milhões (cerca

de US$ 25 milhões, em valores de hoje), segundo o embaixador Lincoln

Gordon que, na única auto-crítica dele sobre a açãonorte-americana

35/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

daquele período no Brasil, reconhece que foi um erro envolver-se nas

eleições locais. O ex-agente da CIA Philip Agee, que atuava na América

Latina em 1962, dá outra cifra: US$ 12 milhões (US$ 60 milhões, hoje),

segundo conta no livro Dentro da "Companhia" - Diário da CIA (1976)

Independente da cifra, o fato é que a maior fatia dessa dinheirama coube

a candidatos do Nordeste - e Pernambuco aí ocupou o primeiro lugar. "A

administração Kennedy desejava ardentemente derrotar o prefeito

'comunista' do Recife, Miguel Arraes, que concorria ao governo com uma

campanha de esquerda, nacionalista e anti-americana", afirma a

pesquisadora norte-americana Ruth Leacock em Requiem for revolution -

The United States and Brazil, 1961-1969, lançado nos EUA em 1990 e

sem tradução em português. Os Estados Unidos enviaram para

Pernambuco até marqueteiros para ajudar na campanha do adversário

de Arraes.

A CPI instaurada para investigar o IBAD constatou que seus recursos

vinham de empresas nacionais e, na maiorparte, norte-americanas, que

serviriam de fachada para recursos provenientes da CIA. Lincoln Gordon

confirma em entrevista à pesquisadora Ruth Leacock que os dólares

vinham mesmo da CIA. O envolvimento dos EUA nas eleições brasileiras

de 1962 foi debatida em 23 de junho daquele ano, numa reunião entre o

presidente John Kennedy, o assessor Richard Goodwin e Gordon [veja

matéria ao lado]. Se a investigação da origem dos recursos do IBAD

fosse até o fim, não se sabe onde iria parar. Talvez chegasse à própria

Casa Branca, cogita Ruth Leacock.

"É muito dinheiro para uma eleição"

Funcionava assim: o presidente Kennedy apertava um botão e a

conversa começava a ser gravada. O detalhe é que os seus

interlocutores não sabiam disso. O próprio presidente certamente

também não esperava que os seus diálogos viessem a ser divulgados

no futuro. Desde 1940 os presidentes americanos tinham o hábito de

gravar as conversas; Kennedy sofisticou a gravação, dotando-a de um

aparato montado pelo Serviço Secreto. Parte de suas conversas pode

hoje ser ouvida por qualquer pessoa; estão em CD e em texto no livro

The presidential recordings, volumes 1-3, à venda nos EUA (US$ 165). A

primeira gravação feita por ele teve o Brasil como tema, numa reunião

em 23 de julho de 1962. Participaram, além do presidente, o seu

assessor Richard Goodwin e o embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln

Gordon. Eles trataram, entre outras coisas, das eleições no Brasil, que

seriam realizadas em outubro daquele ano. A comparam, em

importância, às eleições italianas de 1948, quando os comunistas eram

favoritos e os EUA interferiram secretamente com recursos e pessoal

para impedir a vitória deles (conseguiram). Na conversa Kennedy

espanta-se com o total de dólares que seriam empregados nas eleições

do Brasil: "É muito dinheiro para uma eleição". Há partes originalmente

suprimidas do diálogo, por serem consideradas ainda impróprias para

divulgação. Veja alguns trechos abaixo:

Kennedy: Os comunistas são fortes [no Brasil]?

[Lincoln] Gordon: Como partido, são fracos.

(...)

Kennnedy: Mas agora eles ganharam boa parte da esquerda?

Gordon: Boa parte. Eles hoje ocupam postos chave e estão-se

organizando...

Kennedy: Goulart lhes dá proteção?

36/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

Gordon: Ele os protege tanto no governo quanto nos sindicatos.

(...)

Kennedy: Os moderados estão muito desanimados no Brasil?

Gordon: Não a ponto de desistir. Estão muito descontentes. (...) Aluízio

Alves [governador do Rio Grande do Norte] quer organizar um centro forte,

levemente de esquerda. Acho que devemos apoiar totalmente a idéia.

[nesta parte, seis segundos da conversa são suprimidos, considerados

"sigilosos"]

Gordon: (...) Não podemos mais ser complacentes. Creio que devemos

fazer mais e provavelmente teremos de fazer mais com um pouco menos

de preocupação sobre possíveis desperdícios e perda do controle [da

situação]. (...) Há uma organização, o Ipes, por exemplo, [inaudível]

progressista, que precisa de ajuda financeira; ela tem [inaudível] apoio e

eu acho que devíamos ajudá-la.

[Richard] Goodwin: Acho que as eleições podem ser decisivas. O Linc

[Gordon] as compara às eleições italianas de 1948

Kennedy: Eu sei. Quanto é que vamos investir nisso?

Gordon: Nesse caso, creio que alguns milhões de dólares.

[aqui foram cortados sete segundos de diálogo também considerados

"sigilosos"]

Kennedy: É muito dinheiro. Sabe como é, aqui, numa campanha

presidencial, gasta-se mais ou menos 12 [milhões de dólares]. E [com]

nossos custos... já são US$ 8 milhões. É muito dinheiro para uma

eleição.

Gordon: Exato.

Kennedy: (inaudível)

Kennedy [dirigindo-se a Gordon]: Bem, isso já está sendo gasto no

momento? Você já está levando isso adiante?

[39 segundos "sigilosos" são suprimidos nesta parte]

(...)

Gordon: Acho que há algo que podemos fazer em relação a Goulart como

parte de uma estratégia geral. Gostaria de alertar o sr. sobre a

possibilidade de uma ação militar. Há uma grande probabilidade de isso

acontecer".

Paulo Freire e a arte de "engordar cascavéis"

A primeira experiência de alfabetização de adultos com base no Método

Paulo Freire aconteceu no Nordeste e com financiamento americano. Em

Angicos, um minúsculo município do Sertão do Rio Grande do Norte

(população hoje de pouco mais de 11 mil habitantes). Consistia na

alfabetização em 40 horas. Começou em 18 de janeiro de 1963 e a

última aula das primeiras turmas realizou-se em 2 de abril do mesmo

ano. Uma idéia da importância que a experiência adquirira: foi o

presidente João Goulart quem deu a última aula. Estavam lá os alunos,

representantes da Aliança para o Progresso, governadores do Nordeste

e mais uma penca de autoridades civis e militares.

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Uma das autoridades presentes era o general Castelo Branco. Na saída,

amigavelmente, ele perguntou ao secretário de educação do Rio Grande

do Norte, Calazans Fernandes: "Meu jovem, você não acha que está

engordando cascavéis?".

Calazans talvez não, mas os americanos da Aliança para o Progresso

não concordavam com esse tipo de criatório. Pouco tempo depois,

cancelaram o financiamento. Já Paulo Freire nunca se incomodou com o

fato de a experiência ter sido alavancada com dinheiro dos americanos.

"Se eu tenho autoridade sobre o que se vai fazer no projeto, eu não quero

saber se o dinheiro vem da Aliança ou do japonês", disse ele em

entrevista à TV Universitária de Natal em 21 de maio de 1993 (Ensinar e

aprender com Paulo Freire, Nilcéa Lemos Pelandré, 2002). Logo em

seguida à experiência de Angicos, Freire foi convidado por Goulart para

coordenar a Campanha Nacional de Alfabetização. Ia sair o "vovô viu a

uva" e "o boi baba o bebê", para entrar uma alfabetização que falava do

cotidiano dos alunos, de casa, comida, terra, saúde, educação. O golpe

de 64 acabou com a Campanha.

A reportagem do Diario encontrou em Angicos uma ex-aluna da

experiência daquela época. Ela tinha sete anos e, embora o curso fosse

para adultos, assistia às aulas acompanhando os pais, que eram

alunos. Na aula que João Goulart deu em Angicos, Maria Eneide estava

lá. O presidente perguntou seela sabia ler; ela respondeu lendo matéria

de um jornal que um assessor solícito do presidente providenciara. "O

que você quer ganhar?", perguntou Goulart. "Uma bolsa para carregar

meus cadernos", respondeu Maria Eneide. Goulart deu ao pai dela uma

quantia suficiente para comprar a bolsa e alimentos para uma semana.

Maria Eneide continuou estudando, no sacrifício. Fez vestibular três

vezes, até entrar no curso de Pedagogia. Hoje é professora na cidade

onde aprendeu a ler; trabalha na alfabetização de adultos. Se toda

cascavel fosse como Maria Eneide seria ótimo para o Nordeste ter

milhares delas.

"Não é tarde para reviver um plano de desenvolvimento para o Nordeste"

A segurança pública no Nordeste é o tema da pesquisa que vem sendo

desenvolvida por um dos mais conceituados brasilianistas da nova

geração, o cientista político Anthony Pereira. No trabalho ele compara as

políticas de seguranças do Recife, Natal e Fortaleza, de 1985 até hoje.

Nascido na Califórnia (EUA), Pereira descobriu o Nordeste a partir dos

estudos feitos para a sua tese de doutorado em Harvard, sobre os

trabalhadores rurais - pesquisa na qual acabou estudando as Ligas

Camponesas e Francisco Julião. A tese virou o livro The End of

Peasantry: The Rural Labor Movement in Northeast Brazil, 1961-1988 ("O

fim do campesinato: o movimento dos trabalhadores rurais no Nordeste

do Brasil, 1961-1988"), lançado nos EUA em 1997. Seu livro seguinte, de

2005, aborda a repressão dos regimes militares na América Latina:

Political (in) Justice: National Security Legality in Brazil and the Southern

Cone ([in] Justiça política: a legalidade da segurança nacional no Brasil e

no Cone Sul").

Pereira tem uma qualidade intelectual rara mesmo entre estudiosos: ele

está sempre um passo adiante das análises convencionais. Dos novos

pesquisadores americanos que estudam a América Latina, é um dos

nomes mais brilhantes. Até a última segunda-feira ele estava no Recife,

onde trabalhou como professor visitante da UFPE. Deixou a cidade para

ir ensinar na Universidade de East Anglia, Inglaterra. Abaixo, sua

entrevista:

NORDESTE

Diario de Pernambuco: Como surgiu o seu interesse em estudar a

questão agrária no Brasil?

38/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

Anthony Pereira: Quando eu era rapaz, em Sacramento, capital da

Califórnia, vi uma marcha de trabalhadores rurais chegando ao prédio

onde fica a assembléia legislativa e a sede do governo estadual. Os

trabalhadores, a maioria deles mexicanos e mexicanos-americanos,

pertenciam ao sindicato de trabalhadores rurais. Tinham marchado

muitos milhas, e eram liderados por um carismático líder, chamado

César Chavez. O então governador do estado, Ronald Reagan, recusou-

se a receber os trabalhadores. Ver aqueles trabalhadores rurais abriu

meus olhos para a existência de uma outra Califórnia - não a da classe

média dos subúrbios, onde eu vivia -, mas a Califórnia das fábricas dos

campos, onde trabalhadores migrantes trabalhavam durante longas

horas sob o sol e lutavam por direitos básicos como um salário decente

e escolas para seus filhos. Mais tarde, como aluno da Universidade de

Harvard, participei de um seminário sobre movimentos agrários na

história, dado pelo historiador John Womack, e aprendi muito sobre os

camponeses de Morelos [México], liderados por Emiliano Zapata, os

Cristeros e outros rebeldes agrários da história do México. Fazer este

seminário levou-me a querer conhecer o que havia sido o importante

movimento social agrário no Brasil, e isto levou-me ao estudo das Ligas

Camponesas e dos sindicatos rurais.

Diario: O senhor tem estudado questões do Nordeste há anos, morou

aqui, viajou pela região... Considera que a história das relações do

governo Kennedy com o Nordeste é conhecida na região?

Pereira: Não, não é. A política dos EUA naquela época era de alguma

forma contraditória, uma vez que o governo queria amostras de

experiências bem sucedidas para a Aliança para o Progresso, mas

somente para estados de governos de centro ou de centro-direita. Havia

até uma expressão - "Ilhas de sanidade administrativa" - para designar

os governos com os quais o governo dos EUA aceitava trabalhar. Entre

estes estados não se incluía o de Pernambuco, com Miguel Arraes, nem

o Governo federal de João Goulart.

Diario: Uma série de fatores convergiu a atenção dos EUA e do Brasil

para o Nordeste, neste período. Atenção que se traduziu em

empréstimos, formulação de planos de desenvolvimento e inserção da

questão nordestina na agenda nacional. No final, o resultado ficou longe

do esperado. Podemos dizer que tivemos aí uma grande oportunidade

perdida de desenvolvimento do Nordeste e da redução das

desigualdades em relação ao Centro-Sul?

Pereira: Penso que sim, uma oportunidade foi perdida. O regime militar

acabou com as reformas reclamadas no início dos anos 60 e o resultado

foi um modelo de desenvolvimento extremamente provocador de

desigualdades, concentrando renda nos estratos sociais mais altos da

população e também nas regiões já mais favorecidas do país, como São

Paulo. Esta forma de concentração não aconteceu em toda parte. Se você

olha os Estados Unidos no mesmo período, de 1960 a 1980, você vê um

quadro diferente. A desigualdade regional entre o sul e o norte declinou,

em parte por causa dos pesados gastos em infraestrutura - aeroportos,

rodovias, portos - e instalações militares no sul. Isso, em troca, trouxe

novos investimentos e novas migrações de pessoas para o sul [ região

menos desenvolvida dos EUA] e houve uma ascensão da economia do

sunbelt ["Sunbelt" é como se designa nos EUA o sul mais o sudeste].

Isto quer dizer que não é tarde demais para reviver a idéia de um plano

de desenvolvimento regional para o Nordeste.

Diario: Nesses tempos de mundo globalizado, que interesse existe ainda

em estudar regiões periféricas como o Nordeste?

Pereira: O Nordeste tem tanto consideráveis problemas econômicos

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quanto um tremendo potencial econômico, talvez um potencial

econômico mais forte que outras partes do Brasil. Demograficamente, é

um gigante. Se fosse um país, seria o quarto maior pais da América

Latina, com uma população menor somente que a do resto do Brasil,

México e Colômbia. Contém a maior concentração de pobreza das

Américas, mas sua economia não está estagnada - a indústria agro-

exportadora em torno de Petrolina teve um crescimento acelerado, por

exemplo. A região é rica em energia hidroelétrica, e se a tecnologia para

a energia solar for melhorada, o Nordeste pode ficar em muito boa

posição para desenvolver este setor. Por isso não sei se é exato afirmar

que o Nordeste é uma região periférica.

AMÉRICA LATINA

Diario de Pernambuco: Por que até hoje a América Latina ainda está tão

distante econômica e socialmente do Canadá e Estados Unidos?

Anthony Pereira: É uma questão interessante, mas ressaltar a diferença

entre Brasil e Estados Unidos e Canadá é só uma forma de olhar a

questão do desenvolvimento brasileiro. Os Estados Unidos e o Canadá

são ex-colônias que se beneficiaram enormemente do fluxo do capital

britânico e da proximidade deles com o mercado europeu nos séculos

19 e 20. Suas histórias, portanto, são muito diferentes de qualquer país

da América Latina. Se você compara o Brasil com outros países ditos

"emergentes" comoMéxico, Índia, África do Sul, Nigéria, Indonésia e

China, o Brasil não parece tão distante. O Brasil tem um sólido registro

de crescimento econômico no século 20, um dos maiores do mundo.

Diario: Em relação à persistência da pobreza...

Pereira: Voltemos à comparação com os Estados Unidos. Ao analisar

diferenças, você deve começar com o tipo de colonialismo dos EUA - que

teve uma colonização de agricultura familiar - comparado com o

colonialismo de latifúndio que houve no Brasil e muitos outros lugares na

América Latina. O colonialismo que houve nos EUA faz uma grande

diferença, porque criou uma divisão igualitária de recursos, o que em

conseqüência fortaleceu a estabilidade política. Estes fatores facilitaram

a transição de uma sociedade agrária para uma industrial e posterior

pós-industrial nos Estados Unidos. O Brasil fez a transição para uma

sociedade agrária muito depois dos EUA.

Diario: Hoje que não existe mais o perigo do comunismo, qual o

interesse estratégico da América Latina para os EUA?

Pereira:O fim do comunismo não mudou o fundamental nos interesses

dos EUA na América Latina e no resto do mundo. Por mais de um século

o interesse estratégico dos EUA tem sido dominar um mundo liberal

capitalista, um sistema que é aberto a exportação do capital, produtos,

serviços, idéias e pessoas dos Estados Unidos. À parte este princípio

geral, a maior parte do resto da agenda americana para a América Latina

é negativa. Os EUA aparecem hoje como um país que quer menos

imigrantes do México; que quer estabelecer um freio à influência de Hugo

Chávez na América Latina; que quer conter a guerrilha colombiana,

reduzir o fluxo de drogas ilícitas da América Latina e o fim da lavagem de

dinheiro do Oriente Médio na área de tríplice fronteira próxima a Foz do

Iguaçu - a área onde Argentina, Paraguai e o Brasil se encontram. O que

está faltando é uma agenda positiva mais extensiva.

Diario: O senhor vê uma certa paranóia na América Latina de que toda

ajuda dos Estados Unidos envolve algum interesse oculto, e que esse

interesse oculto beneficia apenas os Estados Unidos e é prejudicial aos

outros? Ou não há paranóia em pensar assim?

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Pereira: Apesar de toda pressão americana para um sistema de

mercado mundial aberto ser claramente movida por interesse próprio, aí

pode haver ganhos mútuos no comércio. Os EUA são o mais importante

mercado exportador para o Brasil e muitos outros países. Os EUA têm

hoje um déficit no comércio com o Brasil - importa do Brasil mais do que

exporta. Na primeira metade de 2006, o déficit era de US$ 6 bilhões. É

um estímulo tremendo à economia brasileira. Por outro lado, economias

fechadas não beneficiam necessariamente a todos em um país. Durante

o período de alta barreiras protecionistas no Brasil, de 1930 a 1980, o

Nordeste do Brasil subsidiou o desenvolvimento industrial do sudeste.

Um comércio mais livre com os Estados Unidos poderia ter sido melhor

para o Nordeste do que ser forçado a comprar bens manufaturados de

São Paulo.

Diario: Em livro recém-publicado nos EUA, Friendly Fire, a autora, Julia

E.Sweig, diz que o "fenômeno do antiamericanismo" surgiu na América

Latina. E a América Latina está agora assistindo à ressurgência da

esquerda no poder. O que este fenômeno pode significar para a política

externa dos Estados Unidos?

Pereira: Os benefícios das reformas neoliberais na Era do Consenso de

Washington foram claramente exageradas, e as reformas tiveram

resultados desapontadores, com pouco progresso na redução da

pobreza e da desigualdade. O cientista político mexicano Jorge

Castañeda tem recomendado que os EUA devem distinguir entre uma

"esquerda má", que incluiria Fidel Castro em Cuba, Chávez na Venezuela

e Evo Morales na Bolívia, que deveria ser condenada, e uma "esquerda

boa", que seria a de Bachelet no Chile, Lula no Brasil, Vasquez no

Uruguai com a qual poderia trabalhar. Não é claro, na análise de

Castañeda, se Nestor Kirchner na Argentina e Alan Garcia no Peru

pertencem à "esquerda boa". Como análise histórica, creio que é uma

tese muito simplista. Parece atribuir o surgimento da "esquerda má"ao

fanatismo ideológico da parte da alguns líderes. De fato, embora esta

esquerda tenha surgido por causa do fracasso de um grupo de líderes,

como por exemplo Sanchez de Losada na Bolívia e Andrés Perez na

Venezuela, e a inabilidade das políticas deles, predominantemente

políticas neoliberais. Contudo, a tese de Castañeda é um bom guia para

o que a elite de planejadores dos EUA tem decidido fazer na América

Latina - sustentar direitistas como Uribe na Colômbia, mas também

cooperar com líderes moderados dos partidos de esquerda como

Bachelet, Lula e Vazquez, por falta de opção.

Diario: Pela proximidade geográfica e interesses econômicos e políticos,

os Estados Unidos e a América Latina estão condenados a uma eterna

relação mútua de desconfiança?

Pereira: Desde que os Estados Unidos têm pretensão de ser uma

superpotência global, suas relações com a América Latina será de

alguma forma tensionada, porque os principais interesses dos EUA

estão fora do hemisfério americano - na Europa, no Oriente Médio, na

Ásia Central e por aí vai. A postura dos EUA como superpotência é o que

tem impedido uma forma de cooperação que a gente vê na União

Européia nas duas últimas décadas. Na União Européia, os países do

norte europeu transferiram consideráveis recursos para desenvolvimento

de infraestrutura de países do sul, como Portugal, Espanha e Grécia.

Em busca do desenvolvimento perdido

Entre o final de 1959, quando surgiu a Sudene, e março de 1964, quando

houve o golpe militar, o Nordeste viveu um momento singular de sua

história. Pela primeira e única vez o desenvolvimento da região esteve

entre as prioridades nacionais, e com apoio internacional. Fazia-se até

previsão - generosas previsões para uma região acostumada a uma

secular lentidão. Caso os projetos previstos fossem implantados, em 10,

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15 anos o Nordeste começaria a sair da letargia rumo ao

desenvolvimento e à redução das desigualdades com o Centro-Sul.

"As possibilidades de substancial progresso econômico e social para o

Nordeste pareceram mais promissoras do que em qualquer outro

período neste século", escrevia em 1963 o economista Albert Hirschman,

em estudo sobre a região. Cerca de 40 anos depois, outro americano

estudioso das questões do Nordeste, o brasilianista Anthony Pereira

encarrega-se do epitáfio daquela experiência: "Perdeu-se naquela época

a oportunidade para desenvolvimento do Nordeste. O regime militar

acabou comas reformas reclamadas no início dos anos 60, e o resultado

foi um modelo de desenvolvimento extremamente provocador de

desigualdades, concentrando renda nos estratos sociais mais altos da

população e também nas regiões já mais favorecidas do país, como São

Paulo".

Pela ampla variedade de forças e de projetos envolvidos, o que ocorreu

no Nordeste naquele período é muito mais do que um episódio

estritamente regional - é uma crônica fracassada da busca de uma

região pobre pelo desenvolvimento, da qual se podem tirar

ensinamentos válidos ainda hoje. Entre outras coisas, mostra que, do

ponto de vista de uma região pobre, as crises têm grande potencial de

transformação, enquanto a estabilidade costuma levar à estagnação.

De 1964 para cá, com uma outra alteração que não modifica o sentido da

afirmação, a questão regional desapareceu da agenda brasileira - o que

implica dizer que as políticas para redução das desigualdades regionais

se desvaneceram juntas, fantasiadas aqui e acolá por medidas pontuais.

A Sudene, que era vinculada diretamente ao presidente, foi relocada para

o ministério de sua área. O Nordeste, que na expressão de Celso

Furtado havia sido incluído "no amplo contexto do desenvolvimento

econômico brasileiro", retornava ao papel de figurante na política

nacional. "Pacificada", a região já não despertava mais atenção. "O Brasil

é uma nação, e a proposta do governo é desenvolver todas as regiões e

não apenas esta ou aquela", disse o ministro Delfim Netto em 28 de

julho de 1970, ao responder reivindicações de governadores da região.

Aos dados: Naqueles anos 60 a renda per capita do Nordeste

correspondia a um terço da renda do sudeste e à metade da do Brasil. É

praticamente o mesmo quadro que se vê hoje. "Ao cabo de 40 anos, o

Nordeste mostra expressivos índices de desempenho econômico, muito

embora ainda aquém das efetivas necessidades de sua vasta

população", reconhece o estudo "Bases para a recriação da Sudene",

elaborado por uma equipe de especialistas, por encomenda do governo,

e concluído em 2003. Mas "em termos sociais as conquistas foram muito

modestas. Os indicadores sociais continuam a situar a região nos mais

desfavoráveis postos, em comparação com qualquer das demais

regiões do país", completa o estudo.

O rosário de desgraças vai além: concentração de renda (maior aqui do

que no Brasil), concentração de domicílios abastecidos com água

encanada e saneamento, baixa produtividade, maior incidência de

pobres, agropecuária fragilizada, reduzido volume de exportação, índices

negativos na difusão de conhecimento, desequilíbrio no acesso a

serviços básicos... Acrescente-se aí um processo perigoso para o futuro

da região, que os especialistas chamam de "insulamento da economia

nordestina" - que significa o isolamento da economia local, na medida

que (salvo alguns segmentos) demonstra baixa competividade para

participar do comércio com outras regiões e internacional.

Sem política regional, e sem um órgão coordenador das necessidades e

potenciais de toda a região, é pouco provável que este quadrosofra

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modificações substanciais. O que nos remete a uma história do tempo

da Aliança para o Progresso. Na sala do seu coordenador, Teodore

Moscoso, nos Estados Unidos, os visitantes eram alertados por uma

placa que dizia: Please, be brief. We are 25 years later ("Por favor, seja

breve. Estamos 25 anos atrasados"). Talvez seja um exercício de

inutilidade, mas convém pensar quantos anos deveríamos colocar numa

placa sobre o desenvolvimento do Nordeste.

Manuel Correia de Andrade

"Aquele momento do início dos anos 60 foi uma oportunidade perdida

para o desenvolvimento do Nordeste. A questão Nordeste, a questão

regional, desapareceu da agenda nacional. É uma discussão que

infelizmente está parada há muito tempo. Agora era o momento para que

estivéssemos debatendo o Nordeste, debatendo a transposição do Rio

São Francisco, que é a espinha dorsal para qualquer política na região,

debatendo a questão da terra, formulando propostas, debatendo a

desigualdade regional, a necessidade de um planejamento regional, ...

Porque sem um planejamento tudo fica muito disperso. Não funciona. É

importante recriar a Sudene, mas com muito cuidado para que ela seja

de fato uma entidade impulsionadora do desenvolvimento do Nordeste, e

não mais um cabide de empregos"

l Geógrafo, autor de A Terra e o Homem do Nordeste

Wanderley Guilherme dos Santos

"Não é só o Nordeste, mas todo o Brasil que precisa da instabilidade

produtiva. Não há o que esperar da estabilidade. É a perpetuação da

rotina. E quanto mais tradição e consenso, como é o caso do Nordeste,

mais danosa é a estabilidade. Veja que a mobilização existente no

Nordeste no início dos anos 60 trouxe um abalo ao modo tradicional de

fazer política no Brasil. Os não se rebelam no Brasil porque sabem que é

sobre eles que sempre recai o custo do fracasso de alguma ação

coletiva reivindicatória. Veja o caso das Ligas Camponesas - seus

militantes muitas vezes pagaram o custo do fracasso com a própria vida.

Mas, do ponto de vista da transformação da situação deles, para os

pobres é preferível correr o risco do fracasso a deixar-se levar pelo

caráter letal da estabilidade. Nesta não há saída para eles".

l Cientista político, autor de Horizonte do Desejo

Celso Furtado

"Tenho a impressão de que o Nordeste, onde eu estava na época, foi a

região mais prejudicada pelo golpe. O Nordeste foi surpreendido com

uma política em andamento, um movimento social, através das Ligas

Camponesas, da Sudene e da Igreja Católica, que apontavam para uma

outra direção. Tudo isso foi destruído. No Nordeste as conseqüências

foram mais graves, pois a repressão exercida acabou com o movimento

social existente, as Ligas e a Igreja Católica. A região do país que havia

acumulado maior atraso social era o Nordeste. O atraso aumentou ainda

mais com a mudança. O movimento de 1964 passou desapercebido em

várias partes do País. Foi um golpe a mais, mesmo em São Paulo, houve

atendimento de certos interesses econômicos e a região se acomodou"

l 1º superintendente da Sudene

(Entrevista publicada pelo Estado de S. Paulo, em 4 de março de 2004)

Fontes

Arquivos

JFK Library (Boston, Estados Unidos); Truman Library (Independence,

Missouri - EUA); CIA (www.cia.gov); CPDOC/FGC (Rio de Janeiro) e

Cehibra/Fundaj (Recife - PE)

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Jornais

Diário de Pernambuco, edições entre 1961 e 1965

Livros Em português

A revolução que nunca houve, Joseph Page (Record, Rio, 1989); As

quarenta horas de Angicos, Carlos Lyra (Cortez Editora, SP/ 1996);Bases

para a recriação da Sudene, Grupo de trabalho interministerial para a

recriação da Sudene (2003);Crise regional e planejamento (O processo

de criação da Sudene), Amélia Cohn (Perspectiva, SP, 1976);

Construindo o sindicalismo rural, Maria do Socorro de Abreu e Lima

(Editora Universitária, UFPE, 2005); Desenvolvimento econômico regional

- O Nordeste do Brasil, Stefan H. Robock (Editora Fundo de Cultura, RJ,

1964); Elegia para uma re(li)gião, Francisco de Oliveira (Paz e Terra, SP,

1993); Ensinar e aprender com Paulo Freire, Nilcéa Lemos Pelandré

(Cortez Editora, SP, 2002); Francisco Julião, as Ligas e o Golpe Militar de

64, Vandeck Santiago (Comunigraf, PE /2004); Francisco Julião: Luta,

paixão e morte de um agitador, Vandeck Santiago (Assembléia

Legislativa, PE / 2001);Inquérito sobre a Aliança para o Progresso,

Editora Brasiliense, SP, 1963; Intérpretes do Brasil - Cultura e identidade

/ Gunter Axt e Fernando Schüler (orgs.) / Artes e Ofícios (RS), 2004;

Nordeste: O Vietnã que não houve - Ligas Camponesas e o golpe de 64,

Francisco de Assis Lemos (UEL/UFPB, 1996); O Brasil dos brasilianistas

(1945-2000), Rubens Antonio Barbosa, Marshall C. Eakin e Paulo

Roberto de Almeida (Orgs.) / Paz e Terra (RJ), 2002; O processo

revolucionário no Nordeste (em A Dialética do desenvolvimento), Celso

Furtado (Fundo de Cultura, 1964); Polícia e Política: Relações Estados

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1963); Quatro anos de governo (1959-1963) - Cid Sampaio (Recife,

1963); Relações Brasil-EUA no contexto da globalização, Moniz Bandeira

(Senac, SP, 1997); Sete palmos de terra e um caixão, Josué de Castro

(Brasiliense, SP / 1965)

Em inglês

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1970); The americanization of Brazil, Gerald K. Haines (SR Books, USA /

1989); The end of the peasantry - The rural labor movement in Northeast

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1997); The most dangerous area in the world - John F. Kennedy confronts

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Trabalhos acadêmicos

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junto a camponeses em Pernambuco (1955-1990), Paulo Crespo

(Dissertação de Mestrado; UFPE, 2003)

Moradores de engenho, Christine Paulette Yves Rufino Dabat (Tese de

Doutorado; FPE, 2003)

Relações Brasil-Estados Unidos: O caso da Aliança Para o Progresso no

44/44C:/Users/BIBLIOTECA-PC/…/Mistura Digital O plano de Kennedy para desenvolver o Nordeste.htm

posted by Fernando F Almofrey @ 2:39 PM

Ceará, Ilza Maria Grangeiro Xavier Lage (UFPE/UFCE, 2001)

(FIM).

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