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ANDRÉ MATTOS SOARES
PRESSUPOSTOS DO DIREITO INTERTEMPORAL NO PROCESSO CIVIL
Mestrado em Direito
PUC/São Paulo
2007
2
ANDRÉ MATTOS SOARES
PRESSUPOSTOS DO DIREITO INTERTEMPORAL NO PROCESSO CIVIL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título
de MESTRE em Direito (Direito das Relações
Sociais), sob a orientação do Prof. Doutor Nelson
Nery Junior.
PUC/São Paulo
2007
3
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
________________________________________
________________________________________
4
À Keila, esposa e companheira incondicionada de
jornada, e aos pequenos Gustavo e Leonardo; aos
meus pais, por me ensinarem que a vida transcende o
plano material.
5
Agradeço ao meu orientador, Prof. Doutor Nelson Nery
Junior, pela confiança e valiosas sugestões
apresentadas.
6
RESUMO
O fenômeno relativo ao conflito de leis no tempo, a reclamar a aplicação dos princípios e normas atinentes ao direito intertemporal, encontra-se diretamente relacionado aos institutos da vigência e da eficácia das leis, o primeiro necessário à verificação da época do fato, se pretérito, pendente ou futuro e o segundo respeitante à perquirição da norma cujos efeitos se aplicarão a certa situação fática. Porque inerente ao natural sentimento humano de inviolabilidade ao passado e considerando o atual estágio evolutivo do homem, a irretroatividade das leis e o respeito aos direitos adquiridos devem ser a regra nos ordenamentos jurídicos em geral. Assim o é, portanto, no sistema brasileiro, o qual, ademais, proscreve em sede constitucional a violação ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Malgrado o direito pátrio tenha sofrido as influências das doutrinas subjetiva e objetiva, das quais, respectivamente, sobressaem as figuras de Gabba e Roubier, e embora a noção de situação jurídica ultrapasse a dos direitos adquiridos, as correntes se equivalem em termos gerais, para fins de resultados práticos. Por outro lado, os modos de projeção das leis no tempo (retroatividade, eficácia imediata e ultratividade) devem ser compreendidos nos seus justos limites, notadamente no tocante à incidência do novel diploma sobre os efeitos futuros do ato precedente, circunstância a caracterizar mero efeito imediato da lei, do qual, todavia, se resguarda o direito adquirido. A Carta Magna, ainda, não veda a retrooperância da lei, para cujo efeito exige seja expressa lei nova, desde que se respeite o direito adquirido (que abrange os conceitos de ato jurídico perfeito e coisa julgada), limitação aplicável às leis de ordem pública e às emendas constitucionais. A violação excepcional ao direito adquirido somente é permitida se o exigir o princípio da dignidade da pessoa humana. A lei processual, a seu turno, submete-se ao regime geral de direito intertemporal previsto na Constituição e na Lei de Introdução, donde, em princípio, não detém efeito retroativo, não atingindo os atos processuais aperfeiçoados sob o regime anterior, possuindo, ao revés, imediata eficácia em relação aos processos pendentes. Não obstante a aplicabilidade do regramento geral, o processo é de complexidade tal que o efeito da lei nova ao feito em curso apresenta particularidades derivadas da necessária harmonia dos atos processuais, da obediência a princípios processuais, da peculiaridade de certos institutos processuais, conseqüências que podem postergar ou excluir a pronta eficácia do novel comando normativo.
7
ABSTRACT
The phenomenon regarding law conflicts in time, claiming the application of principles and rules concerning intertemporal law, is directly related to validity and efficiency law institutes, the first necessary to the checking of the fact’s period, if past, during or future and the second concerning the investigation of the rule which effects will be applied to a certain factual situation. As it is inherent to natural human feelings of inviolability to the past and considering the actual evolutional stage of man, the non retroactivity of laws and the respects to acquired rights must be the rule in the juridical ordination in general. And thus it is in the Brazilian system, which, furthermore, proscribes in a constitutional headquarter the violation to acquired rights, to perfect juridical act and to a sentenced thing. In spite of the father law having suffered the influence of subjective and objective doctrines, from which, are respectively enhanced the figures of Gabba and Roubier, and although the notion of the juridical situation exceeds that of acquired rights, the flows are more or less equivalent in general terms, for means of practical results. On the other hand, the ways of law projection in time (retroactivity, immediate efficiency and ultra activity) must be understood in their right limits, especially as to incidence of novel diploma on the future effects of the precedent act, circumstance to characterize the simple immediate law effect, from which, however we protect the acquired law. The Magna Carta, yet, does not obstruct the retrooperancy of law, for which effect it demands the expression of a new law, once the acquired right is observed (which embraces the concepts of perfect juridical act and judged thing), limitation applied to public order and constitutional amendments. The exceptional violation to acquired rights is only allowed if required by the principle of dignity of the human being. On the other hand, the procedural law, is submitted to the general regime of intertemporal right mentioned in the Constitution and in the Introduction Law, from where, at first, it has no retroactive effect, not reaching the procedural acts improved under the previous regime, possessing, instead, immediate efficiency regarding the pending processes. In spite of the applicability of the general regulation, the process is of such complexity that the current new law effect presents particularities originated from the necessary harmony of the procedural acts, of the obedience to the procedural principles, of the peculiarity of certain procedural institutes consequences which might postpone or exclude the prompt efficiency of the normative novel command.
ERRATA
1) Página 89: onde se lê “... serão excluídos tanto os efeitos retroativosquanto os imediatos...”, leia-se “... serão excluídos os efeitos imediatos...”.
2) Página 103: onde se lê “Forçoso convir, pois, que a regraconstitucional da irretroatividade...”, leia-se “Forçoso convir, pois, que a regraconstitucional-substancial da irretroatividade...”.
3) Página 107, nota 199 de rodapé, onde se lê “... se ocorridos, no caso,os pressupostos e restritos...”, leia-se “... se ocorridos, no caso, ospressupostos específicos e restritos...”.
4) Página 139, Capítulo 11, onde se lê “11. Síntese Histórica do DireitoBrasileiro no Intertemporal Processual”, leia-se “11. Síntese Histórica do DireitoBrasileiro no Campo Intertemporal Processual”.
5) Página 145, notas 272 e 273 de rodapé, onde se lê “Ibidem”, leia-se“Ibidem, p. 135” e “Ibidem, mesma página”, respectivamente.
8
SUMÁRIO
PARTE I: PREMISSAS GERAIS
INTRODUÇÃO............................................................................... 12
1. A SOCIEDADE, O DIREITO E A LEI......................................... 17
1.1. Sociedade e Direito........................................................... 17
1.2. O Direito Como Objeto Cultural......................................... 19
1.3. A Lei Jurídica..................................................................... 20
2. DIREITO TRANSITÓRIO E DIREITO INTERTEMPORAL........ 30
3. PLANOS DE EXISTÊNCIA, VIGÊNCIA, VALIDADE E
EFICÁCIA DA LEI..........................................................................
34
3.1. A Relevância dos Conceitos.............................................. 34
3.2. Processo Legislativo.......................................................... 35
3.3. Existência Jurídica............................................................. 37
3.4. Validade............................................................................. 39
3.5. Vigência............................................................................. 44
3.6. Eficácia.............................................................................. 48
3.7. Eficácia/vigência e Direito Intertemporal........................... 51
4. O PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS................. 53
4.1. Breve Sinopse Histórica do Princípio da Irretroatividade.. 53
4.1.1. O direito hindu.......................................................... 54
4.1.2. O direito chinês......................................................... 55
4.1.3. O direito grego.......................................................... 55
4.1.4. O direito romano....................................................... 56
4.1.5. O direito canônico..................................................... 58
4.1.6. Da Revolução Francesa aos dias atuais.................. 59
9
4.1.7. O Princípio da irretroatividade no direito brasileiro... 60
5. AS PRINCIPAIS CONSTRUÇÕES DOUTRINÁRIAS SOBRE
O DIREITO INTERTEMPORAL.....................................................
66
5.1. Savigny.............................................................................. 68
5.2. Gabba................................................................................ 70
5.3. Chironi………………………………………………………… 74
5.4. Affolter………………………………………………………… 75
5.5. Duguit e Jéze………………………………………………… 76
5.6. Roubier………………………………………………………... 77
6. RETROATIVIDADE, EFICÁCIA IMEDIATA E
ULTRATIVIDADE...........................................................................
82
6.1. Retroatividade e Eficácia Imediata.................................... 82
6.2. Pós-Atividade ou Ultratividade da Lei Velha..................... 86
7. FUNDAMENTOS DO PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE E
DO RESPEITO AO DIREITO ADQUIRIDO...................................
89
8. A INTERPRETAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL............. 96
8.1. A Relativização do Princípio da Irretroatividade das Leis. 96
8.2. O Poder Constituinte Derivado.......................................... 104
8.3. Leis de Ordem Pública...................................................... 106
8.4. O Caráter Relativo do Princípio do Respeito ao Direito
Adquirido........................................................................................
110
9. O CONCEITO DE DIREITO ADQUIRIDO, QUE
COMPREENDE O ATO JURÍDICO PERFEITO E A COISA
JULGADA.......................................................................................
114
10
PARTE II: DIREITO INTERTEMPORAL PROCESSUAL CIVIL
10. POSIÇÃO E OBJETO DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL.... 124
10.1. Posição do Direito Processual Civil................................. 124
10.2. Objeto do Direito Processual Civil................................... 130
11. SÍNTESE HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO NO
CAMPO INTERTEMPORAL PROCESSUAL.................................
137
12. O DIREITO INTERTEMPORAL E O PROCESSO CIVIL......... 142
12.1. Regras Gerais de Direito Intertemporal e o Processo
Civil.................................................................................................
142
12.2. O Efeito Imediato e as Normas Dispositivas................... 151
12.3. Direitos Adquiridos Processuais...................................... 152
12.4. O Efeito Imediato e os Institutos de Natureza Mista........ 154
12.5. O Efeito Imediato e os Princípios Processuais................ 173
12.6. As Teorias da Unidade, das Fases Processuais e do
Isolamento dos Atos Processuais...................................................
176
CONCLUSÃO................................................................................. 185
BIBLIOGRAFIA.............................................................................. 187
ANEXOS......................................................................................... 199
11
PARTE I
PREMISSAS GERAIS
12
INTRODUÇÃO
O direito intertemporal, definido como o conjunto de normas e
princípios jurídicos solucionadores dos conflitos decorrentes da sucessão de
duas leis no tempo, tem sido estudado há muito por juristas de escol e
rememorado especialmente em épocas nas quais sobrevém uma nova
legislação dispondo sobre o mesmo assunto disciplinado pela lei então em
vigor, oportunidade na qual se questiona sobre a preservação das relações
jurídicas iniciadas sob a vigência da norma revogada.
Quando uma lei entra em vigor, deparamo-nos com três tipos de
situações jurídicas, a saber: (a) situações jurídicas iniciadas e findas antes
da data de início de sua vigência (pretéritas); (b) situações jurídicas
originadas antes de sua vigência, mas cujos efeitos perduram após essa
data (pendentes); e (c) situações jurídicas iniciadas após a data de sua
vigência (futuras).
Ao direito intertemporal não interessam as situações passadas, as
quais produziram todas as conseqüências jurídicas sob o regime do diploma
revogado, tampouco as situações futuras, surgidas inteiramente após a lei
nova; aquelas serão regidas pela lei antiga e estas pela nova regra
normativa. O objeto do direito intertemporal consiste em determinar qual
será a lei aplicável às situações pendentes, isto é, iniciadas no pretérito e
que ainda geram efeitos no presente.
O tema, embora remoto e, inclusive, encontrando raízes no direito
natural, ainda provoca acalorados debates doutrinários, máxime em nossa
República, a considerar as inúmeras normas editadas diariamente pelas
autoridades representativas do Estado.
13
É por essa constância na atividade legiferante e, por conseguinte,
ao inevitável entrechoque de diplomas legislativos sobre as mais variadas
situações fáticas, que o assunto não pode ser descurado do intérprete, pena
de se estabelecer verdadeira insegurança jurídica em tempos que reclamam
sua aplicação.
Nesta obra, não temos a pretensão de inovar a matéria,
considerando a existência, embora escassa, de judiciosos trabalhos
doutrinários já formulados a respeito, mas pretendemos, uma vez
sobremaneira técnica, trazer à baila as considerações que verdadeiramente
importam à compreensão do tema.
Para tanto, de um lado, compreenderemos os conceitos de
retroatividade, eficácia imediata e ultratividade da lei, sobre os quais os
jurisconsultos ainda dissentem. De outro, não menos imperativa será
assimilarmos, com base no sistema pátrio, a definição de direito adquirido e
os principais elementos que o compõem. Crítico da doutrina subjetiva
capitaneada por Gabba, Paul Roubier (1960) afirma que a noção de direito
adquirido é perceptível a todos, ninguém ignorando, por exemplo, que um
contrato se aperfeiçoe pelo acordo de vontades e que a herança se adquira
pela morte do de cujus.1 O conceito, porém, que pode resultar óbvio em
algumas hipóteses, em outras não o é, tanto que há muito se observa em
prestigiados doutrinadores grande e justificada preocupação em dissecar o
significado da expressão “direito adquirido” e sua distinção entre as meras
expectativas de direito.
Malgrado este intento não tenha acarretado, de fato, a solução
segura às agruras suscitadas pelo fenômeno da intertemporalidade jurídica,
não tendo, apesar das inúmeras propostas doutrinárias destinadas a este
fim, a ciência do direito intertemporal ainda logrado estabelecer um
1 ROUBIER, Paul. Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2ª ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960, p. 107.
14
consenso nesta definição, nem por isso devemos desprezar tal esforço de
que se lançaram os jurisconsultos.
Nesse passo, Mauro de Medeiros Keller (1989) obtempera que
não é em razão das dificuldades em se precisar um fenômeno que se o
abandona. Do contrário, em ciências naturais, pelo simples fato de não se
poder definir, por exemplo, o que é a vida, deveriam os biólogos negar-se a
dizer que tal ou qual é ser vivo. A noção de direito adquirido não é uniforme,
adverte, porque não é estanque: admite certa evolução, fruto do estudo, do
exame mais detido das situações sobre as quais incide, do aprimoramento
técnico.2
O próprio apego dos tribunais brasileiros à noção de direito
adquirido, mesmo diante das modificações legislativas verificadas ao longo
de nossa história e através das quais foram sentidas as influências da
doutrina objetiva de Roubier (1960), confirma a importância deste estudo.
Sendo assim, faz-se imprescindível depreendermos a definição de
direito adquirido, bem como os modos pelos quais as leis arrojam sua
eficácia no tempo, a fim de que seja possível nos aprofundarmos no ramo da
ciência em comento.
Nesse sentido, no decorrer deste estudo serão delineados
aspectos gerais atinentes à matéria, aplicáveis a todos os ramos do direito,
disciplinados nos arts. 5º, XXXVI, da Constituição Federal e 6º da Lei de
Introdução ao Código Civil3, procedendo-se seqüencialmente à investigação
2 KELLER, Mauro de Medeiros. Pontes de Miranda e os fundamentos do princípio da
irretroatividade das leis. Revista de Direito Civil, nº 50, 1989, p. 73. O referido autor procura rebater as críticas aduzidas por Pontes de Miranda contra a teoria subjetiva (dos direitos adquiridos). 3 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código
Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p 10. O autor enfatiza que: “Na opinião de Venzi, invocada por Eduardo Espínola (4), o alcance da lei de Introdução é vasto. Não se cinge ao Código Civil, a despeito de vir a ele anexado, mas protrai seus efeitos a todos os códigos e todas disposições legislativas, seja qual for a natureza, pública ou privada, uma vez que a razão de sua
15
dos desdobramentos do instituto quanto ao direito processual civil,
abordando as diversas teorias propostas pelos processualistas destinadas a
sistematizar o modo de incidência da lei processual tempo.
Cuidaremos de atrair a atenção do intérprete ao perigo que
representa a particularização do instituto. De fato, a adoção pura e simples
de determinada teoria aplicável à solução dos conflitos temporais das leis
processuais, a exemplo do sistema do isolamento dos atos processuais, não
pode implicar na negação da própria regra geral disciplinadora do direito
intertemporal. Sobre o assunto, Roubier apud Vicente Ráo (2005) já alertava
que:
(...) seja qual for a relação especialmente contemplada
sempre será preferível procurar-se a solução dos conflitos
nos princípios gerais que dominam o problema em seu
conjunto, atendendo-se a que a exposição particularizada
das conseqüências desses princípios não é suscetível de
proporcionar ao intérprete nenhum esclarecimento
suplementar: ao contrário, o caráter das disposições
legislativas o levaria a crer na inexistência de princípios
gerais, de tal arte que o hiatus verificado entre uma regra
particular e outra, se assim fosse, não poderia ser
preenchido com o reportar-se o intérprete ao espírito da lei.4
Nesta medida, exemplos serão expostos com vistas a ilustrar
como o enclausuramento de matérias especializadas pode conduzir a
conclusões equivocadas, dissociadas dos princípios gerais, nos quais, não
colocação adjeta ao código civil deve-se pura e simplesmente a ser este código considerado, dentre os demais, como a legislação mais importante”. 4 ROUBIER, Paul. Travaux de la commission de reforme du Code Civil (1948-1949), p. 263 e s., apud RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 396.
16
raro, se encontrarão as soluções das questões intertemporais mais
complexas.5
O perigo que se anuncia não deverá, entretanto, acanhar o
intérprete no estudo das variantes peculiaridades que cercam o direito
intertemporal processual. Deveras, o enfrentamento do tema requer mais do
que o simples exame dos comandos normativos insculpidos na Constituição
e na Lei de Introdução, tal a complexidade do processo no seio do qual
inúmeras particularidades podem exsugir.
Desse modo, se as regras gerais de direito intertemporal deverão
nortear o intérprete quanto à fixação dos limites relativos à eficácia da nova
lei processual aos atos processuais em curso, não menos imprescindível
será o aprofundamento em peculiaridades do tema na seara processual civil.
Ao cabo deste ensaio, verificaremos que o direito intertemporal,
malgrado considerado um dos campos mais intrincados da ciência jurídica6,
não é assunto inacessível ao entendimento dos operadores do direito, não
obstante a dificuldade apresentada na solução prática das variadas espécies
de conflitos ocorrentes no plano fático.
A problemática do tema não prescinde, antes, da exposição de
certos pressupostos e conceitos fundamentais do Direito, tais como os de lei,
direito intertemporal e eficácia da lei, sem os quais não teremos a exata
compreensão do assunto ora proposto.
5 Antônio Jeová Santos (2004) alerta que: “Por vezes, é no óbvio que está a solução do caso que tanto agasta o cultor do Direito. Para achar o óbvio, já que o Direito não é ciência destinada a ‘inventores’, é imprescindível o estudo sistemático e acurado, de par com uma certa dose de coragem para emitir assertivas sobre temas candentes e cheios de artifícios enganadores como são aqueles ligados ao Direito Intertemporal”. In: SANTOS, Antonio Jeová. Direito intertemporal e o novo Código Civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 13. 6 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 8.
17
1. A SOCIEDADE, O DIREITO E A LEI
1.1. Sociedade e Direito
A fim de delimitar o campo de nosso estudo, no decorrer deste
item, verificaremos a questão da relação existente entre sociedade e direito,
para, em seguida, definirmos o conceito de lei.
É de Aristóteles apud José Afonso da Silva (1964), adepto da
origem natural da sociedade, a afirmação de que o homem é um animal
social, isto é, “o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e
outros animais que vivem juntos”7, o que nos demonstra a necessidade que
há de os seres humanos se relacionarem entre si.
Vicente Ráo (2005) discorre, nessa linha, dizendo que a atividade
do homem se exterioriza através de suas relações com seus semelhantes ou
de sua ação sobre os bens da vida, corpóreos ou não, que lhe proporcionam
meios de sobrevivência e desenvolvimento. O homem sempre se manifesta
por meio dessas relações e ações, sendo-lhe de sua natureza, assim, a
coexistência social.8
Pactua do mesmo entendimento Miguel Reale (1991) no sentido
de que o homem é um “animal político” ou um “ser social”, mas adverte que
não deve haver equívoco de pensarmos que estamos situados na sociedade
como peças sobre um tabuleiro, quando na realidade “somos a sociedade”,
ou a “sociedade é em nós”.9 Essa é a posição mais aceita, embora haja
defensores que acreditam que a sociedade originou-se de um acordo de
vontade entre seus integrantes e não de um impulso natural do homem.
7 POLITIQUE, p. 6, apud SILVA, José Afonso da. Princípios do processo de formação das leis no
direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 3. 8 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 51. 9 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 691.
18
Quanto ao direito10, é predominante o entendimento de que haja
despontado com o surgimento da própria organização social do homem, ou
seja, ubi societas ibi jus (não há sociedade sem direito).
Seria, porém, de indagarmos a razão pela qual o direito
pressupõe as relações dos seres humanos entre si. Porque o direito é um
sistema que por objetivo disciplinar as próprias condições de existência entre
os indivíduos dentro da sociedade na qual se inserem.
Com efeito, é para proteger a personalidade destes e disciplinar
suas atividades dentro do todo social de que fazem parte que o direito
procura estabelecer, entre os homens, uma proporção tendente a criar e a
manter a harmonia na sociedade.11
Noutro falar, o objeto do direito é disciplinar a sociedade; busca
harmonizar as relações intersubjetivas, a fim de ensejar a máxima realização
dos valores humanos com o mínimo de sacrifício e desgaste.12 O direito,
portanto, tem por condão regular a sociedade e o escopo de promover a
harmonia dos vários interesses humanos que nela se manifestam.13
Aliás, a sociedade tanto é condição do direito que este tem por
nota essencial a noção de bilateralidade atributiva, conceituada como a
“relação objetiva que, ligando entre si dois ou mais seres, lhes confere e
10 Como observa Miguel Reale (1991), o direito, nascido concomitante ao viver do homem em sociedade, foi vivido inicialmente “como um fato, e, ao mesmo tempo, como um fado a que o homem atribuía a força inexorável e misteriosa dos enlaces cósmicos, talvez inspirado inicialmente, como sugere Cassirer, pela visão dos astros, cuja ‘ordem’ terá sido a primeira a ser arrancada do caos das impressões, dos desejos e das vontades arbitrárias”. REALE, Miguel. Filosofia do direito. Op. cit., p. 500. 11 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 53. 12 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 20-23. 13 Miguel Reale (1991), após afirmar que o direito se refere “ao homem enquanto ser que, agindo em sociedade, assume dadas posições perante os demais homens, suscetíveis de gerar pretensões recíprocas ou pelo menos correlatas”, sintetiza: “(...) podemos, em suma, reconhecer que, onde quer que exista Direito, há uma ação positiva ou omissão (ação negativa) do homem, algo de redutível ou de relacionável a uma modalidade de ação”. REALE, Miguel. Filosofia do direito. Op. cit., p. 377.
19
garante, de maneira recíproca ou não, pretensões e competências”14, isto é,
o direito é bilateral ao ligar dois ou mais seres15 e atributivo, na medida em
que não se limita a obrigar, mas também faculta, atribuindo-lhes pretensões
e exigibilidades.
1.2. O Direito Como Objeto Cultural
Uma vez nascido das relações sociais, a fim de promover a
evolução da sociedade, o direito deve ser impregnado de valores (justiça,
certeza e progresso social) que lhe conferem seu verdadeiro sentido, do
mesmo modo que, segundo José Afonso da Silva (1964), “o valor do belo é
que dá essência à estátua, à escultura, à música e aos demais objetos
culturais artísticos”.16
O direito tutela certos valores que considera importantes e busca
impedir determinados atos, reputados negativos. Falamos no justo e no
injusto, no lícito e no ilícito, no legal e no ilegal, no permitido e no proibido.
Os valores representam, assim, o mundo do dever ser, as normas ideais que
orientam o homem a assumir posições no curso de sua vivência e ao longo
dos fatos que o cercam, aptas a conduzi-lo ao seu progresso espiritual. Todo
valor implica uma tomada de posição do homem, uma atitude positiva ou
negativa, da qual resulta a noção de dever (se algo vale, deve ser, se não
vale, não deve ser). Os valores não são, assim, simples objetos ideais que o
homem projeta como definitivo; ao revés, são algo que a experiência
humana vivencia e realiza no plano da História.17
14 REALE, Miguel. Filosofia do direito. Op. cit., p. 672 e 692. 15 Quando falamos em bilateralidade não devemos confundir com simples liame contratual entre os sujeitos, em que vigora entre eles reciprocidade. As relações também podem ser do tipo institucional. O direito é bilateral, porque é entrelaçante, demarcando posições socialmente relevantes dos sujeitos. Bilateralidade tem sentido, pois, de alteridade. 16 SILVA, José Afonso da. Princípios do processo de formação das leis no direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 7. 17 REALE, Miguel. Filosofia do direito. Op. cit., p. 509-510 e 539 e 561.
20
Em vista de determinados valores perseguidos pelo direito é que
o agir humano recebe certa qualificação jurídica. O direito, assim como todo
objeto cultural18, se integra de três elementos fundamentais: matéria (fato,
conduta), valor e forma (norma).
Dizemos, então, que a norma representa a expressão de valores
concretizados em virtude da ocorrência dos fatos histórico-sociais, sendo
esses três elementos essenciais à vida do direito, que tem, portanto, uma
estrutura tridimensional, contando com um elemento normativo disciplinador
dos comportamentos humanos, pressupondo um fato, referido a certos
valores. Entretanto, não é qualquer norma que podemos classificar como
jurídica. A norma de direito, para ser considerada como tal, deve ser dotada
de certos pressupostos, que serão a seguir estudados.
1.3. A Lei Jurídica
Em sua acepção mais extensa, Montesquieu apud André Franco
Montoro (1994) nos ensina que as leis consistem nas relações necessárias
que derivam da natureza das coisas.19 Leis existem em todas as relações
havidas na natureza; são regidos por leis os homens, os animais, as plantas,
a gravidade, a física, a economia, a sociologia, a moral, o direito etc.
18 James Goldschmidt (1944, p. 18 e s.) apud José Afonso da Silva (1964) esclarece o que é cultura: “El derecho es un producto de la cultura. Se entiende por cultura el complexo de las obras humanas que se relacionan con valores, es decir, que están destinadas a crear valores y a valorarse ellas mismas. El derecho tiende a realizar el valor ético de la justicia y se somete, por consiguiente, a una valoración desde el punto de vista de ésta”. In: SILVA, José Afonso da. Princípios do processo de formação das
leis no direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 7. Na definição de Miguel Reale (1991), “cultura, no fundo, não é outra coisa senão o conjunto das posições do espírito, e de suas projeções, em face da natureza e da vida (...)”.REALE, Miguel. Filosofia do direito. Op. cit., p. 556. 19 MONTESQUIEU apud MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 22ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 318-320.
21
Nesse conceito amplíssimo se inserem as leis físicas (ou naturais)
e as leis humanas (éticas, morais).20 As leis físicas se referem ao mundo
físico, sujeito a um determinismo rigoroso, enquanto as leis humanas dizem
respeito ao campo da atividade humana, na qual sobreleva o
comportamento livre e consciente do homem.
Distinguindo as duas espécies de leis, Goffredo Telles Júnior
(1966) anota que os movimentos, de que as leis são fórmulas, podem ser
movimentos livres, como os do comportamento voluntário do homem, ou não
livres, como os do comportamento da matéria inconsciente; os primeiros
consistem nos movimentos do mundo ético (mundo originado pela
inteligência humana) e, os segundos, nos movimentos do mundo físico
(mundo da natureza).21
De fato, os seres do mundo físico realizam de maneira automática
e inconsciente as leis de sua natureza: a pedra cai, a árvore cresce, os rios
correm, sem a existência de qualquer elemento volitivo, ao passo que na
atividade humana destaca-se o comportamento livre e consciente do
homem.22
A lei humana, a seu turno, subdivide-se em lei moral em sentido
estrito e lei jurídica (ou norma jurídica). É tradicional a asserção segundo a
qual as normas morais distinguem-se das jurídicas, porque aquelas se
referem ao aspecto interno (motivos ou intenções) do comportamento,
enquanto estas não se preocupam com o elemento psíquico ou volitivo do
agente.
20 As leis físicas e as leis humanas referem-se ao mundo “real”. No plano “ideal” ou formal podemos falar em leis matemáticas, lógicas ou estritamente formais. 21 TELLES JUNIOR, Goffredo. Filosofia do direito. 2º tomo. São Paulo: Max Limonad, 1966, p. 277. 22 Não devemos negar, porém, a existência de uma lei maior, uma ordem universal, a reger tanto as relações físicas quanto humanas. O universo, desde a primeira causa até o último fim, desde o infinito até o máximo dos seres, tudo quanto existe ou pode existir, é efeito de um Pensamento (Ibidem, p. 317).
22
Tal distinção é obscura, pois olvida da constante preocupação do
direito com as intenções do agir humano, qual no campo penal, em que se
separam os crimes dolosos dos culposos com implicações na
reprovabilidade da conduta, e no direito civil, no qual nas declarações de
vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao
sentido literal da linguagem (Código Civil, art. 112).
Em verdade, precisa Tercio Sampaio Ferraz Junior (2001) que a
diferença importante reside em que, enquanto a norma jurídica:
“(...) admite a separação entre a ação motivada e o motivo
da ação, o preceito moral sempre os considera
solidariamente. Isto é, o direito pode punir o ato
independentemente dos motivos – por exemplo, nos casos
de responsabilidade objetiva – mas isto não ocorre com a
moral, para a qual a motivação e ação motivada são
inseparáveis”.23
Ademais, as sanções morais, advindas da consciência, “nunca
são conteúdo de seus preceitos, ao passo que as normas jurídicas são
caracterizadas por prescreverem expressamente suas sanções”.24
Carlos Roberto Gonçalves (2002) acresce, ainda, que apesar de
as normas jurídicas e morais terem em comum a circunstância de
constituírem normas de comportamento, divergem essencialmente por dois
aspectos: primeiro, pela sanção, que no direito é imposta pelo poder público
com o fito de constranger os indivíduos à observância da norma e na moral
somente pela consciência do homem traduzida pelo remorso, pelo
arrependimento; segundo, pelo campo de ação, mais amplo na moral, sendo
23 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 352-353. 24 Ibidem, p. 352-353.
23
célebre a comparação de Bentham que utilizou-se de dois círculos
concêntricos, dos quais a circunferência representativa da moral é maior.25
Posta a dissimilitude entre o direito e a moral, ao perquirirmos se
a moralidade, em sua estrita concepção, constitui requisito de existência da
norma jurídica, a resposta é negativa. Isso porque, a justiça representa um
valor a conferir sentido ao direito sendo, como tal, seu princípio regulativo,
mas não constitutivo, donde, embora o direito imoral seja destituído de
sentido, isto não quer dizer que ele não exista concretamente.
A imoralidade priva de sentido a norma jurídica, mas não a torna
inválida. O que constitui o direito e que lhe confere realidade é o
estabelecimento de relações hierárquicas de autoridade/sujeito. Nesse
sentido, o direito deve ser compreendido como uma organização de relações
de poder. Seu princípio regulativo, que lhe confere sentido, é a justiça,
enquanto que seu princípio constitutivo é a impositividade autoritária.26
De fato, embora seja a justiça o fim último do direito, isto é, seja o
direito uma experiência bem ou malsucedida de justiça, o que qualifica a
norma como jurídica é a interferência do poder, que opta, influenciado pelo
mundo da vida cotidiana, entre as diversas normas possíveis, àquela que lhe
25 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil – parte geral. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 3-4. 26 Mas será que a norma jurídica pode ser dotada de qualquer conteúdo ou relato? Positivistas como Kelsen afirmam que os conteúdos são neutros, nem jurídicos nem antijurídicos, sendo o bastante, para a juridicidade da norma, a relação institucionalizada de autoridade/sujeito. Já os jusnaturalistas reclamam que o direito positivo deve respeitar os ditames da natureza humana, que seria o elemento material da norma, sem o qual jurídica não seria. De fato, como anota Tercio Sampaio, a norma não pode ter um relato qualquer e os limites desse relato cabem à ideologia. Se os valores, como a justiça, por si sós, são abstratos e relativos, as ideologias lhes conferem um mínimo de concretude, por serem rígidas e limitadas. A justiça pode ser liberal, comunista, fascista etc., incumbindo à ideologia fazer com que se opte, por exemplo, pela justiça contra a ordem ou pela ordem contra a liberdade, pela dignidade contra a vida. Assim, apenas pode constituir o conteúdo ou relato da norma jurídica o que pode ser generalizado socialmente, por força da ideologia predominante em dada comunidade. Dessa forma, “na cultura ocidental de base cristã, conteúdos normativos que desrespeitem o valor da pessoa humana (direitos fundamentais) serão rechaçados, como seria o caso da norma que admitisse a tortura como forma de obtenção de confissão para efeitos de processo de julgamento”. Não devemos olvidar, ainda, que a dicotomia direito natural (direito à vida, à saúde, à liberdade etc.) e positivo encontra-se, atualmente, enfraquecida, pela própria positivação na Constituição do direito natural. Ibidem, p. 111-112, 167-170 e 353.
24
parecer adequada naquele momento histórico. Dizemos, então, que a norma
jurídica representa o momento conclusivo em que o fato passa pelo crivo do
poder, o qual, num ato de preferência de valores, escolhe a regra a ser
editada.27
Outra característica importante do direito, inexistente no mundo
estritamente moral, consiste na coercibilidade ou potencial coerção. Já se
consignou ser elemento essencial do direito a idéia de atributividade, através
da qual, aduz James Goldschmidt (2004), “se constituem direitos”.28 Ora, se
o direito, além de impor a uma parte o cumprimento da obrigação, atribui à
outra o direito de exigir esse cumprimento, daí resulta a idéia de
coercibilidade, ou seja, caso determinado preceito de conduta não seja
espontaneamente cumprido, uma das conseqüências será a possibilidade de
exigibilidade forçada em razão da regra infringida.
Pode-se definir, assim, coercibilidade, potencial coerção ou
possibilidade de coação, corolário da atributividade, como a possibilidade de
invocação de força em razão do descumprimento espontâneo da norma de
direito. Em outro dizer, coercibilidade é a coação em estado potencial,
latente. A norma jurídica se denota obrigatória, assim, não somente no
campo da consciência, mas em razão da possível invocação do uso da
força.
27 É o que nos ensina Miguel Reale (1991), para quem “Direito e Poder são termos inseparáveis”, seja este “estatal, costumeiro, jurisdicional ou negocial”. Sobre a questão da justiça, diz: “Dois extremos aqui devem ser evitados. De um lado põem-se aqueles que pretendem, a todo transe, atingir um conceito de Direito livre de qualquer nota axiológica, projetando a idéia de Justiça fora do processo de juridicidade positiva (Stammler e Del Vecchio); e, de outro, situam-se aqueles que identificam positividade jurídica e justiça, indivíduo e sociedade (Hegel, Gentile, Binder)”. In: REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 560-561 e 700. 28 Assevera o doutrinador: “Esta qualidade particular [caráter atributivo] do direito deriva, assim, da idéia de justiça, segundo a qual a cada um tem que se atribuir o que é seu (suum cuique), como de origem histórica de comportamento entre violência e consciência” In: GOLDSCHMIDT, James. Princípios gerais do processo civil. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2004, p. 40.
25
Dessa forma, se todas as leis humanas são, de certa maneira,
obrigatórias ou imperativas, ao imporem determinado comportamento,
apenas a norma de direito será atributiva, característica da qual a
coercibilidade é conseqüência.29
Contudo, sob a influência dos primeiros escritos de Kelsen, alguns
autores negam à norma jurídica a noção de regra imperativa de conduta.
Aludem que, por exemplo, os códigos penais nada mais fazem do que
descrever uma certa conduta como delituosa e imputar uma sanção a tal
conduta, inexistindo os ditos imperativos (“não matar”, “não roubar”). Esses
imperativos seriam algo anterior ao nascimento da lei.
Referidos autores argumentam a existência de um juízo hipotético
ou condicional (se isto ocorrer, então deverá ocorrer aquilo; se houver crime,
segue a pena; se A não votou, deve ser-lhe aplicada uma multa) e não
imperativo (faça isto, não faça aquilo) na norma jurídica.
Outros, como Carlos Cóssio apud Arnaldo Vasconcelos (2002),
igualmente adotam a tese da não-imperatividade, mas ao fundamento de
que as normas têm a estrutura de um juízo disjuntivo: dada certa conduta
deve ser a prestação ou dada conduta contrária deve ser a sanção (se A é
eleitor, deve votar, ou, se não votar, deve ser multado).30
29 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 22ª ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1994, p. 307. Sintetiza, por sua vez, Miguel Reale: “o Direito é coercível, porque é exigível, e é exigível porque é bilateral atributivo”. REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 692. 30 Na arguta observação de Tercio Sampaio Ferraz Júnior (1980), “do ponto de vista lógico-formal implicação (se... então) e disjunção (ou... ou), são conectivos redutíveis um ao outro, sendo, na verdade, a mesma coisa dizer que ‘se o comportamento C ocorre, então segue a sanção S’, e ‘ou o comportamento C não ocorre ou segue-se a sanção S’. Numa linguagem simbólica: C ⇒ S = não C ou S”. In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1980, p. 60.
26
A partir da segunda edição de sua obra Teoria pura do direito31,
Kelsen (1987), porém, passou a estabelecer a distinção entre a norma
jurídica e o seu enunciado. Antes, diferenciou norma jurídica e proposição
jurídica, caracterizando aquela como uma função da autoridade criadora do
direito e esta como uma função da ciência jurídica. A norma jurídica, editada
por um ato de vontade pela autoridade competente, prescreve a sanção
àqueles que infringem-na, ao passo que a proposição jurídica (juízo
hipotético ou condicional), provida da doutrina por um ato de conhecimento,
descreve a norma, dizendo que, dada a conduta inscrita na lei, deve incidir a
sanção nela estipulada. Enquanto o jurista dita proposições jurídicas (juízos
hipotéticos que afirmam que deverão sobrevir certas conseqüências no caso
de se verificarem certas condições previstas no ordenamento), somente as
autoridades constituídas estabelecem normas de direito.
Kelsen apud Fábio Ulhoa Coelho (2000) segue pontificando que
tanto a autoridade quanto o doutrinador externam a norma e a proposição
através de um enunciado. Com efeito, enquanto o legislador, no art. 121 do
Código Penal, enuncia que o homicídio deve ser punido com reclusão de
seis a vinte anos (norma jurídica), os professores enunciam que o homicídio
deve ser punido com reclusão de seis a vinte anos (proposição jurídica).32
De acordo com a teoria kelseniana, o enunciado ou a forma de
exteriorização da norma não é primordial; o que importa, deveras, é o seu
sentido. Assim é que, em si mesma considerada, a norma sempre tem o
sentido de uma disposição imperativa (“não matar”, “não roubar”, “faça isto”,
“não faça aquilo”), ainda que não o seja seu enunciado.
31 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 78-83. 32 In: COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 26.
27
Os que repudiam a existência de um imperativo, ordem ou
prescrição na norma jurídica, confundem a norma em si com o seu
enunciado.33 Sobre o assunto, James Goldschmidt (2004) explica:
A teoria dos imperativos é corrente e não se rejeita
recorrendo a alguma das objeções que contra ela se
fizeram. As normas que por si mesmas não contêm um
imperativo, como as definições ou as normas derrogatórias,
carecem de independência. Os preceitos de caráter
permissivo ou concessivo podem sempre se reduzir à
afirmação ou à negação de um imperativo. Quem pretender
refutar a teoria dos imperativos invocando a estrutura de
muitas normas estará confundindo conteúdo e forma.34
De outra parte, se o direito é coercível, surge, então, o problema
da sanção. A doutrina não é uníssona se esta é elemento necessário da
estrutura da norma jurídica. Kelsen apud Fábio Ulhoa Coelho (2000)
responde a isso de modo afirmativo, ou seja, para o positivista, toda norma
jurídica compreende-se como a imposição de uma sanção à conduta nela
prevista, proibindo determinado comportamento. As normas no bojo das
quais não há previsão específica de sanção (exemplo: normas permissivas,
revogatórias, de competência ou meramente conceituais) sempre se ligam
intrinsecamente a outras de cunho sancionatório. Daí a distinção entre
normas dependentes (as que têm sanção em outra norma) e autônomas (as
que prevêem, nelas mesmas, a sanção). Segundo a teoria kelseniana, as
33 Do atributo relativo à imperatividade da norma jurídica advém a chamada função ordenadora do direito, segundo a qual o direito, pelo aspecto sociológico, é uma forma de controle social, na medida em que impõe modelos culturais, ideais coletivos e valores que persegue, para a superação das antinomias, das tensões e dos conflitos que lhe são próprios. In: CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 19. 34 GOLDSCHMIDT, James. Princípios gerais do processo civil. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2004, p. 39.
28
normas jurídicas não são tão-somente imperativos, mas imperativos
sancionadores.35
Contemporaneamente, todavia, predomina o entendimento
segundo o qual a sanção não é componente imprescindível da norma
jurídica. É bem verdade que, ao contrário da lei física ou natural em cujo
bojo inexiste sanção, pois as conseqüências por ela previstas decorrem
diretamente do fato, não se pode compreender as leis morais e jurídicas
desprovidas de sanção.36 A circunstância de serem sancionáveis não implica
dizer, contudo, que todas as suas normas, especificamente as jurídicas, são
dotadas de sanção. É o que salienta Norberto Bobbio (2006), para quem a
sanção é encontrada no ordenamento jurídico como um todo, mas não
necessariamente em cada norma jurídica.37
Além disso, há normas cuja violação não acarreta nem a nulidade
do ato nem qualquer outra penalidade. São as chamadas leis imperfeitas
(leges imperfecatae), de que são exemplos as seguintes disposições
programáticas previstas na Constituição Federal, in verbis:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e
da família, será promovida e incentivada com a colaboração
da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho.
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos
direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e
35 In: COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 35. 36 Miguel Reale, op. cit., p. 257. 37 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2006, p. 27-31. Ainda, no sentido do expendido, Luis Antonio Rizzatto Nunes (2003) disserta que a doutrina reconhece a existência de normas jurídicas sem sanção, de que são exemplos as definições de consumidor e fornecedor constantes da legislação consumerista. In: NUNES, Luis Antonio Rizzato. Manual de introdução ao
estudo do direito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 189.
29
apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.
Superada a distinção entre as leis jurídicas e as demais leis
humanas, diz-se que a lei jurídica pode ser empregada: (a) em sentido
amplíssimo, que compreende todas as normas jurídicas, escritas e não
escritas, (b) em sentido menos amplo, referente às normas escritas oriundas
tanto do Poder Legislativo quanto do Executivo, e (c) em sentido estrito e
próprio, indicando a elaborada apenas pelo Poder Legislativo, a caracterizar
o sentido puramente técnico de lei, da lei propriamente dita, distinguindo-a
dos decretos, regulamentos, portarias, instruções, medidas provisórias e
outras normas emanadas do Poder Público.
Porque dirigido à solução específica acerca do conflito temporal
de leis processuais, interessa ao desiderato deste trabalho o conceito de lei
jurídica stricto sensu, ou seja, o preceito jurídico escrito emanado do Poder
Legislativo38, conquanto o conflito intertemporal a esse campo não se
restrinja exclusivamente.39
Alertamos o leitor, porém, que no decorrer da obra utilizaremos
indistintamente os termos lei e norma como sinônimos de lei em sentido
38 De acordo com José Afonso da Silva (1964), a lei é definida, por alguns doutrinadores, considerando seu aspecto formal e, por outros, tendo em vista seu lado material. Pelo denominado conceito formal, a lei é concebida pelo modo de sua elaboração, de sorte a somente se considerar ato de legislação, em sentido estrito, o originado do órgão a que a Constituição confere competência típica para fazer leis. Para outros, tais como Emile Bouvier e Gaston Jéze, a lei deve ser definida segundo a função exercida e características das quais é dotada. Esse é o conceito material, para o qual lei significa o preceito jurídico, dotado de generalidade, obrigatoriedade, permanência. In: SILVA, José Afonso da. Princípios do processo de formação das leis no direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 15-16. 39 De fato, os atos normativos infralegais emanados do Poder Público, tais como os regulamentos, as instruções, os atos normativos e as decisões dos órgãos administrativos, submetem-se a iguais considerações referentes aos conflitos de leis no tempo. In: BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 51. Deste entendimento comunga José Eduardo Martins Cardozo (1995), ao se expressar nestes termos: “Assim, se entendermos que integram o ordenamento normativo do Estado as denominadas ‘normas jurídicas individuais’ (contratos, sentenças, atos administrativos ‘stricto sensu’ etc.), o fenômeno da intertemporalidade também se fará presente”. In: CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 38.
30
estrito. Outros atos jurídicos lato sensu, considerados pela ciência do direito
como normas (v.g., os negócios jurídicos), não serão abordados neste
estudo, exceto quando necessários ou pertencentes à seara processual.
2. DIREITO TRANSITÓRIO E DIREITO INTERTEMPORAL
Wilson de Souza Campos Batalha (1980) nos ensina que, para o
direito, o tempo é dividido em pedaços, cortando uma realidade duradoura,
que insta. A temporalidade jurídica não é um fluxo contínuo, não se revela
num desenrolar-se, uma vez que a dinâmica social impõe mudanças
constantes no mundo normativo. A realidade flui, enquanto as normas
nascem, vivem e morrem. Em virtude dos “cortes numa realidade que dura,
essas divisões numa vida social que flui e insta constituiriam flagrante
injustiça, ou constituiriam justiça a gerar inseguranças, surgiu, no seio do
conceito jurídico do tempo, a idéia da intertemporalidade”40.
Da noção de temporalidade advém a concepção de
intertemporalidade jurídica, entendida como o fenômeno decorrente da
sucessão de normas no tempo. A intertemporalidade jurídica, essa “situação
tipificada quando um norma sucede a outra no campo temporal”41, pode ser
apreendida tanto no plano exclusivo das normas, quanto na interação do
campo normativo com o dos fatos.
40 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 15. 41 CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 33.
31
No âmbito restrito do plano normativo, no qual se estudam os
institutos relativos às épocas de nascimento e morte das normas jurídicas,
não se cogita conflitos de leis. Não se indaga a respeito da primazia de
determinada norma à realidade de certa situação fática, porque, repita-se,
está-se ainda no plano privativamente abstrato das normas. Os problemas,
por ora, gravitam em torno da data em que a norma inicia sua vigência,
quando se tem-na por revogada, se a revogação é no todo (ab-rogação) ou
em parte (derrogação), a possibilidade de repristinação e outras questões
similares.
O legislador, antevendo justamente a possibilidade de conflito,
não raro edita as denominadas disposições transitórias, instituindo um
terceiro regime ou regime de transição, intermédio entre o velho e o novo
regramento. É o chamado direito transitório, destinado a perdurar
temporariamente até que se passe inteiramente do direito antigo ao novo.
Portanto, no exame estritamente normativo, a intertemporalidade
jurídica, decorrente da sucessão temporal de um regime a outro e, quiçá,
presente uma disciplina jurídica intermediária, não implica qualquer conflito
de leis. É o campo da intertemporalidade não-conflitual.
Porém, ao nos deslocarmos do plano normativo ao campo factual,
transpondo a abstração das normas à concretude dos fatos, apreciando de
maneira conjugada as searas normativa e fática, passamos a afigurar
possível o conflito de normas (duas ou mais concorrendo para reger fatos,
relações ou situações), ocasião em que reclama-se, então, a aplicação dos
princípios e normas atinentes ao direito intertemporal. Aqui o intérprete
deverá apurar se, à determinada realidade empírica, incidirá o direito velho
ou o novo, sendo que para tanto fará uso de normas e princípios, tais como
a retroatividade e irretroatividade das leis. Nesse caso, “encontramos o
32
conflito de leis no tempo, a ser solucionado pela doutrina e pela
jurisprudência, o Direito Intertemporal, a intertemporalidade conflitual”.42
Resumidamente, enquanto o direito transitório, manifestado no
plano do movimento normativo, evita, o direito intertemporal43, resultante da
apreciação conjunta das normas aos fatos, resolve o conflito. Ao encontro do
desse entendimento, Maria Helena Diniz (2005) define o seguinte:
(a) as disposições transitórias (...) são elaboradas pelo
legislador, no próprio texto normativo, para conciliar a nova
norma com as relações já definidas pela anterior. São
disposições de vigência temporária, com o objetivo de
resolver em evitar os conflitos ou lesões que emergem da
nova lei em confronto com a antiga;
42 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 16. 43 Controverte-se a doutrina a respeito da expressão que representa com justeza o direito disciplinador do alcance de duas normas que se seguem reciprocamente no tempo. Propõem-se denominações como: Teoria dos Direitos Adquiridos, Teoria da Retroatividade das Leis, Direito Transitório, Conflito de Leis no Tempo e Direito Intertemporal. Endossada por Ferdinand Lassalle apud Carlos Maximiliano (1955), a expressão Teoria dos Direitos Adquiridos deve ser repelida, segundo alguns, porque implica uma tomada de posição em favor de certa corrente doutrinária. Já a denominação Direito Transitório é criticada por alguns doutrinadores, por sugerir a idéia de que as normas solucionadoras do conflito são em si mesmas, como induz a própria expressão, transitórias, passageiras, sabido que existem regras e princípios permanentes a respeito da matéria. A censura a fazer-se sobre referida expressão advém, ainda, da circunstância de que o Direito Transitório destina-se a evitar o conflito de leis no tempo e não a solucioná-lo, como o faz o Direito Intertemporal. Ambos institutos tratam do entretempo jurídico, mas o Direito Transitório insere-se no campo intertemporalidade não-conflitual, ao passo que da intertemporalidade conflitual cuida o Direito Intertemporal. Por outro lado, razão assiste a Roubier (1960) ao condenar complemente as denominações Teoria da Retroatividade das Leis e Teoria da Irretroatividade das Leis, porquanto denotam apenas uma parte do problema. Adotada por Fr. Affolter em 1897 (Geschichte des
intertemporalen privatrechts, Leipzig, 1902, apud Paul Roubier, 1960, p. 4), e preferida pela maioria dos autores brasileiros, tais como Carlos Maximiliano (1955) e Campos Batalha (1980), Direito Intertemporal é a denominação que expressa com exatidão o conjunto de regras jurídicas disciplinadoras do conflito de leis no tempo. A expressão Conflito de Leis no Tempo, uma das quais faz uso Paul Roubier (1960), também encontra receptividade na doutrina brasileira, a exemplo de José Eduardo Martins Cardozo (1995). Como o objeto de estudo, porém, não é o conflito em si, mas as regras que o solucionam, quer parecer mais adequada a denominação Direito Intertemporal. A distinção entre intertemporalidade e Direito Intertemporal é observada por José Eduardo Martins Cardozo (1995) da seguinte forma: “a ‘intertemporalidade’ não é ‘conjunto de soluções’. É apenas um fenômeno que se insere dentro da temporalidade jurídica, e que suscita uma série de problemas e questões passíveis de serem solucionados pelo Direito Intertemporal. Este sim nos fornece um ‘conjunto de soluções’”. In: CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 33.
33
(b) o dos princípios da retroatividade e da irretroatividade
das normas, construções doutrinárias para solucionar
conflitos entre a norma mais recente e as relações jurídicas
definidas sob a égide da norma anterior, na ausência de
norma transitória.44
O primeiro tem como exemplos recentes, no direito positivo pátrio,
os arts. 2.028 a 2.046 do novo Código Civil, os quais compõem o
denominado “Livro Complementar – Das Disposições Finais e Transitórias”,
enquanto que do segundo se ocupam o art. 6º da Lei de Introdução ao
Código Civil e o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.
Contudo, apesar de verificarmos o conflito intertemporal tão-
somente, ao ingressarmos no plano ontológico, imprescindível se faz, antes,
a compreensão acerca da temporalidade abstrata das normas, vale
dizermos, a respeito da vigência, revogação e demais institutos afins.
44 DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução do código civil brasileiro interpretada. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 36-37. A regra, porém, segundo a qual os princípios e normas norteadores do direito intertemporal são aplicáveis somente em caso de lacuna ou inexistência de disposições transitórias não é absoluta. Deveras, nem sempre as disposições de caráter temporário arredam essa possibilidade. Ressalva Carlos Maximiliano (1955) que as disposições transitórias prevalecem até mesmo quando contrárias à teoria verdadeira sobre a aplicação da lei no tempo, “salvo em sendo constitucional o princípio da irretroatividade e havendo antinomia entre o mesmo e as referidas Disposições”. In: MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 14. No direito brasileiro, as disposições transitórias editadas em lei ordinária não poderão retroagir no sentido de ofender o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Aqui o critério de solução da antinomia anunciada é natureza hierárquica (“lex superior derogat legi inferiori”), baseada na superioridade de uma fonte de produção jurídica sobre outra. Segundo os ensinamentos de Maria Helena Diniz (2005), em um conflito de normas de níveis diversos, a de nível mais alto, qualquer que seja a ordem cronológica, terá preferência sobre a de nível mais baixo. Para Hans Kelsen apud Maria Helena Diniz (2005), porém, não há, em normas de diferentes escalões, conflito, porque a norma inferior tem seu fundamento de validade na superior, de forma que só será válida a norma inferior se estiver em harmonia com a do escalão superior. In: DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução do código civil brasileiro interpretada. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 34. Quanto às disposições constitucionais transitórias, ver-se-á adiante, no tópico referente ao poder constituinte derivado.
34
3. PLANOS DE EXISTÊNCIA, VIGÊNCIA, VALIDADE E
EFICÁCIA DA LEI
3.1. A Relevância dos Conceitos
Na ciência do direito, inexiste uniformidade doutrinária sobre os
conceitos de existência, vigência, validade e eficácia das leis. É improvável
encontrar-se imune a críticas qualquer tentativa na qual se proponha traçar
de modo concludente tais definições, porque se adentra em campo
tormentoso de penosa resolução.
De fato, a pretensão de se estabelecer noções dogmáticas
absolutas ou inflexíveis sobre tais esferas normativas inexoravelmente
implicará o aparecimento de antinomias insolúveis, pois podem ocorrer
situações aparentemente excêntricas, as quais, em verdade, apenas
revelam a dinâmica peculiar dos fenômenos jurídicos.45 Não obstante, é
sempre valiosa a intenção dos doutos que se enveredaram em tal
45 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Existência, vigência, validade, eficácia e efetividade das normas jurídicas. Ciência Jurídica, v. 49, 1993, p. 27-46.
35
empreitada, porquanto a redução das divergências não encontra outro
caminho senão o enfrentamento do tema.
Sem embargo das reais controvérsias acerca da matéria em
comento, é pertinente nesta seara a observação de Sampaio Dória apud
Luís Roberto Barroso (2006) de que “os homens dissentem mais em virtude
da equivocidade da linguagem que usem, do que pelas concepções que
tenham das realidades em si”.46
O estudo dos conceitos de que ora cuidamos não pode prescindir,
contudo, de breve síntese acerca do modo pelo qual as leis ingressam no
sistema jurídico, ou seja, do denominado processo de legislativo, que abaixo
se fará em linhas gerais, conferindo-se maior ênfase, porque relevantes ao
presente trabalho, aos aspectos relativos à promulgação e publicação das
leis.
3.2. Processo Legislativo
Entendida em sentido estrito e próprio, como regra de direito
geral, abstrata e permanente, proclamada pela vontade da autoridade
competente e expressa em fórmula escrita, a lei somente é considerada
como tal após seu respectivo projeto passar por um processo legislativo,
previsto constitucionalmente e composto das seguintes fases: introdutória
(referente à iniciativa da proposta), constitutiva (iniciando-se com a
deliberação nas comissões e plenário até a sanção ou veto) e a
complementar (pertinente à promulgação e publicação da lei).47
46 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 79. 47 Por ser amplo e completo, far-se-á breve escorço sobre o procedimento de elaboração de uma lei ordinária, não sendo proveitoso ao desenvolvimento deste trabalho a explanação específica atinente ao processo de formação de leis de natureza diversa.
36
Iniciativa é a faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão
para apresentar projetos de lei ao Legislativo. Apresentado o projeto, advém
a chamada fase constitutiva, composta cronologicamente das deliberações
parlamentar e executiva. Na parlamentar, o projeto é encaminhado à Casa
Legislativa Iniciadora, na qual, submetido à Comissão de Constituição e
Justiça e às Comissões Temáticas pertinentes, recebe um parecer e segue
para votação48. O projeto é, então, remetido ao plenário da Casa respectiva,
quando será discutido e votado. Rejeitado, ocorrerá seu arquivamento.
Aprovado o projeto de lei pela Casa iniciadora, seguirá para a outra, a qual
exercerá o papel de Revisora, em que, igualmente, é analisado pelas
Comissões, discutido e votado.
Finda a deliberação parlamentar, tem início a deliberação
executiva, na qual o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional é
submetido à análise pelo Presidente da República, a quem compete a
sanção ou o veto. O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de
trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo o ser rejeitado pelo voto
da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto (CF,
art. 66, § 4º).
Sancionado o projeto pelo Presidente da República ou derrubado
o veto pelo Congresso Nacional, opera-se a conversão do projeto em lei,
sendo, após, encaminhado à promulgação, sobrevindo a derradeira fase
complementar. No dizer de Alexandre de Moraes (2001), promulgar:
(...) é atestar que a ordem jurídica foi inovada, declarando
que uma lei existe e, em conseqüência, deverá ser
cumprida. Assim, a promulgação incide sobre um ato
perfeito e acabado, ou seja, sobre a própria lei, constituindo-
48 Admite-se também seja o projeto votado na própria comissão temática pela qual tramita, podendo o resultado ser questionado perante o plenário através de recurso de 1/10 dos membros da Casa (CF, art. 58, 2º, I).
37
se mera atestação da existência da lei e promulgação de
sua executoriedade.49
Como o art. 3º da Lei de Introdução disciplina que ninguém se
escusa de cumprir a lei, afirmando que não a conhece, à promulgação deve
seguir-se a publicação, através da qual leva-se ao conhecimento do povo,
destinatários da norma, a inovação no ordenamento jurídico, com o objetivo
de impedir a alegação de ignorância da lei.
Três teorias procuram justificar a sobredita regra: a da presunção,
a da ficção e a da necessidade social. A primeira presume que a lei, uma
vez publicada, torna-se conhecida de todos. A segunda pressupõe que a lei
publicada passa a ser conhecida por todos. As duas são criticadas por se
estribarem em inverdades. A mais aceita é a teoria da necessidade social,
segundo a qual a lei é obrigatória, devendo ser cumprida, não por
conhecimento presumido ou ficto, mas para garantir a convivência social e a
eficácia do ordenamento jurídico, que ficaria comprometido caso a alegação
de ignorância admitisse acolhida.50
Quem promulga deve determinar a publicação da lei em jornal
oficial. Exemplificando a distinção temporal entre promulgação e publicação,
citamos a Lei nº 8.069 (Estatuto da Criança e Adolescente). Ela foi
promulgada em 13.07.1990 e publicada em 16.07.1990 (DOU, seção I, p.
13.563).
Uma vez publicada, a lei entrará em vigor, no silêncio do texto,
quarenta e cinco dias em todo o País e nos Estados estrangeiros três meses
depois de publicada (LICC, art. 1º).51 A este intervalo de tempo entre a data
da publicação da lei e sua vigência dá-se o nome de vacatio legis. A
49 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 525. 50 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil – parte geral. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 20-21. 51 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. Op. cit., p. 526.
38
obrigatoriedade da lei inicia-se com a vigência da norma, marco a partir do
qual passa a ser exigível o seu cumprimento.
3.3. Existência Jurídica
Feito breve resumo do processo legislativo, de indagarmos qual o
significado e em que momento se afigura a existência jurídica da norma de
direito. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2006), já era de Pontes
de Miranda a assertiva de que a promulgação “constitui mera atestação da
existência da lei”.52 Efeito lógico deste ensinamento é de que a lei foi, antes,
criada, isto é, a promulgação certifica algo já existente.
É por ocasião, então, da sanção ou da rejeição do veto que o
projeto torna-se lei, configurando-se o nascimento da norma, tanto que
encerra a fase constitutiva do processo legislativo. A redação do art. 66, §
7º, da Constituição Federal, ao mencionar lei como o ato a ser promulgado,
é harmoniosa com o entendimento ora sufragado, que encontra vozes na
maioria dos doutrinadores pátrios, dentre os quais José Afonso da Silva
(1998)53, Michel Temer (2000)54, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2006)55,
Celso Ribeiro Bastos (1996)56, entre outros. Em sentido contrário, para quem
a promulgação é o ato que transforma o projeto em lei, temos a opinião de
Nelson de Souza Sampaio apud Alexandre de Moraes (2001).57
Porém, o nascimento da norma, ao término da fase constitutiva,
implica sua existência meramente sob o aspecto substancial, sem que ainda
52 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 201. 53 Segundo o referido autor, a promulgação e a publicação da lei “não configuram atos de natureza legislativa. Rigorosamente, não integram o processo legislativo. Promulga-se e publica-se a lei, que já existe desde a sanção ou veto rejeitado. É errado falar em promulgação de projeto de lei”. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 526. 54 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 142. 55 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional.Op. cit., p. 195. 56 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional positivo. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 336. 57 In: MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 525.
39
seja possível cogitarmos de qualquer inovação no mundo jurídico. Isso
porque, para a existência jurídica da norma, vale dizermos, a sua
incorporação ao ordenamento jurídico, imprescindível a promulgação
respectiva. Como explica Celso Ribeiro Bastos (1996), entenda-se existir a
lei com a sanção ou derrubada do veto ou só com a promulgação:
(...) todos, porém, concordam num ponto: é através da
promulgação que a lei passa a existir no mundo jurídico e
está apta a produzir efeitos. A promulgação importa na
presunção de que o mundo jurídico foi inovado por uma lei
válida executória e obrigatória.58
Importa ao operador de direito a consideração da ocasião em que
se denota a existência jurídica da norma, momento a partir do qual ela passa
a adquirir relevância ao fazer parte do corpo do direito brasileiro, o que se
verifica, repita-se, com a promulgação.
Pelo discorrido, podemos afirmar que por existência jurídica
entende-se a integração da norma ao ordenamento jurídico, o que surge
com a promulgação e cessa com a revogação.
Exige-se, ainda, a fim de que se tenha por existente a norma de
direito, que haja emanado de fonte produtora admitida como tal pelo próprio
ordenamento; se o centro criador não é aceito como fonte de direito diz-se
ser a norma inexistente. É um vício tanto gravíssimo que a norma nem
sequer chega a entrar no sistema.59 Da mesma forma que a sentença
(norma jurídica individual) proferida por quem não ostenta a qualidade de
juiz é considerada inexistente, também o será a lei jurídica stricto sensu que
não provenha do Poder Legislativo, ou, nas palavras de Luis Roberto
58 O tema, contudo, não é de todo pacífico. Assim é que Miguel Maria de Serpa Lopes, ao tratar da sanção, discorre que “por força desse ato de aquiescência, a lei recebe sopro vital, começa a ter existência jurídica”. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de
Introdução ao Código Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 40. 59 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 213.
40
Barroso (2006), é inexistente a lei que não seja “resultado de aprovação da
Casa Legislativa, por ausente a manifestação de vontade apta a fazê-la
ingressar no mundo jurídico”.60
3.4. Validade
O enfoque sobre a validade das normas jurídicas assume
diversas e complexas abordagens doutrinárias descabendo-nos, no estreito
âmbito deste trabalho, apreciá-las na sua inteireza. Mas por reputarmos de
especial importância, mencionaremos as visões de alguns jurisconsultos que
se dedicaram ao assunto.
Na investigação sobre a validade, Kelsen (1987) vê o
ordenamento como uma estrutura hierarquizada. Afirma que a validade de
uma norma repousa em outra superior, cuja validade encontra-se
determinada por outra e assim sucessivamente, até que se chegue à
Constituição. O direito positivo evidencia-se por uma estrutura normativa
escalonada na qual a Constituição detém suprema hierarquia. No ápice da
pirâmide jurídica situam-se, pois, as normas constitucionais, a conferirem
validade a todas as demais manifestações normativas do Estado.61
60 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 80. 61 Kelsen (1987), equipara as idéias de existência, validade e vigência, posição, hoje, difícil de se sustentar: “Com a palavra vigência designamos a existência específica da norma (...) Podemos exprimir a vigência (validade) de uma norma dizendo que certa coisa deve ou não deve ser, deve ou não ser feita”. Outra visão kelseniana atualmente questionável refere-se à eficácia como condição de validade. Anota que, sem um mínimo de eficácia, a norma não pode ser válida. Confira-se: “Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente). Um mínimo de eficácia (como sói dizer-se) é condição de sua vigência”. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 10-16. Também é de se registrar o posicionamento de Alf Ross, para quem a validade da norma encontra-se condicionada à sua aplicação pelos Tribunais. Com relação às normas recém-promulgadas, ainda não aplicadas, Ross observa que a validade é analisada pela probabilidade de aplicação pelo julgador. Contra a concepção de Ross objeta Kelsen, ao afirmar que à ciência do direito cabe precisar se uma norma vale ou não vale e não que vale em certo grau de probabilidade In: FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 177-178. A colocação de Ross, ao encarar a validade coma a probabilidade de aplicação, deixou de abordar questões diferenciais entre validade, vigência e eficácia.
41
Já Tercio Sampaio Ferraz Junior (2001) recorre a uma explicação
de validade pragmática, área da semiótica que cuida dos efeitos
comportamentais da comunicação, isto é, das relações entre a linguagem e
seus usuários. As normas são entendidas como uma forma de comunicação
e, como tal, ocorre em dois níveis: o relato, que diz respeito à mensagem
transmitida pelo conteúdo da norma (v.g., não podem casar os ascendentes
com os descendentes, Código Civil, art. 1521, I) e, concomitantemente, o
cometimento (ordem), que corresponde a uma mensagem sobre como o
relato da norma deve ser entendido (proibido o casamento de ascendentes
com descendentes).
Tercio Sampaio Ferraz Junior (2001) prossegue discorrendo que
a norma jurídica será valida se o seu cometimento ou ordem, que expressa
uma relação de autoridade, encontrar-se imune contra eventuais reações do
destinatário, através do relato de outra norma. No exemplo supracitado, o
editor da norma, no relato, diz “não podem casar os ascendentes com os
descendentes” porque o cometimento dessa norma (está proibido esse
casamento, isto é uma ordem, obedeçam) está imunizado contra qualquer
reação pelo relato de uma outra norma (no caso, a do art. 22, I, da CF, que
preceitua a competência privativa da União para legislar sobre direito civil).
Validade exprime uma relação de imunização, entre o cometimento de uma
norma e o relato de outra que a imuniza.62
Assim, para o referido autor, a norma (imunizada) será válida se a
imunizante lhe garante a relação de comunicação autoridade/sujeito,
imunizando o emissor (legislador, juiz, administrador etc.) contra
posicionamentos de indiferença, descrédito, reação, em suma, contra
desconfirmação pelo sujeito (destinatário). Em outras palavras, a lei será
62 Teoria da norma jurídica, p. 3-7, 48, 97, 105-108, 113 e s., apud DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Existência, vigência, validade, eficácia e efetividade das normas jurídicas. Ciência Jurídica, v. 49, 1993, p. 37-44.
42
válida quando a relação de autoridade por ela estabelecida encontrar-se
assegurada pelo conteúdo de uma lei que lhe é mais abrangente que
aquela.
Outro ponto em que se contrastam as opiniões diz respeito à lei
última, aquela a conferir validade às demais pertencentes ao sistema
jurídico. Nesse aspecto, sobre a indagação da validade da própria
Constituição, Kelsen apud Fábio Ulhoa Coelho (2000) criou a chamada
norma hipotética fundamental, fundamento último de validade das normas
jurídicas. De acordo com o positivista, tal norma evita uma regressão
hierárquica ao infinito, enclausurando o sistema jurídico. A norma hipotética
fundamental é uma norma não posta, mas suposta; devendo-se pressupor,
em um ordenamento jurídico, a existência de uma norma que imponha a
observância da Constituição e das demais normas por ela fundamentadas. A
norma fundamental não é, assim, positiva, mas hipotética, prescrevendo a
obediência à Constituição.63
Tercio Sampaio Ferraz Júnior (2001) igualmente partilha da
existência de uma norma fundamental, afirmando que, na relação de
imunização, na qual a norma imunizante é imunizada por outra e esta por
outra regressivamente, restará um ponto em que se chegará em uma norma
que é só imunizante. Para ele, todavia, a norma apenas imunizante,
fundamental ou norma-origem, é sempre uma norma posta e não suposta. É
uma norma efetiva, existente como tal e dotada de imperatividade. E as
regras responsáveis por sua força impositiva são regras estruturais do
sistema ou regras de calibração.64
63 Em sua obra póstuma, porém, Kelsen revê o caráter hipotético da norma fundamental. Diz tratar-se de uma ficção: contraria a realidade, porque não corresponde a nenhum ato concreto de vontade, não existindo enquanto norma e se contradiz internamente, pois descreve a outorga de um poder supremo, partindo de uma autoridade ainda superior. Conclui que a ficção, todavia, apesar de suas contradições, é instrumento do saber limitado. In: COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 28-29. 64 Exemplo, para Tercio Sampaio Ferreira Júnior (2001), de norma fundamental foi a criada pelo Tribunal de Nuremberg, em cujo Estatuto (art. 6, c) se tipificou o genocídio como crime contra a humanidade, o que permitiu a responsabilização dos criminosos nazistas, já que, até então, inexistia
43
Difícil, realmente, é sustentar a existência de uma norma
fundamental pressuposta, como o fez Kelsen, que procurou abstrair o direito
dos valores que ditaram sua existência. O direito não pode ser
compreendido sem a análise dos valores (ou regras de calibração) que o
iluminaram ao longo da história. São eles que movem o homem à edição das
leis integrantes de um ordenamento, de sorte que a validação de uma
norma-origem não passa ao largo desses valores que justificaram sua
elaboração.65
Expostas duas respeitáveis posições a respeito da validade das
normas, importa adentrarmos, em verdade, considerando a espécie
normativa em cujo âmbito cinge-se esta obra, no conceito de validade em
sentido constitucional.
Nesse passo, entende-se que a validade de uma lei jurídica em
sentido estrito pressupõe a sua existência jurídica, advinda da
promulgação66, bem como a pertinência material e formal com a
Constituição.
regra a criminalizar o genocídio. E para escapar do princípio nullum crimen nulla poena sine lege (não há crime nem pena sem prévia lei) e possibilitar a previsão do genocídio no Estatuto, invocou o Tribunal a existência de certas exigências fundamentais de vida na sociedade internacional que implicariam a responsabilidade individual dos mencionados criminosos. Essa regra, exigências fundamentais de vida na sociedade internacional, é uma regra de calibração que conferiu imperatividade à norma-origem constante do art. 6, c, do Estatuto. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 186-187. 65 Ao citar Radbruch, Miguel Reale (1991) diz o seguinte: “o jurista, por exemplo, que fundasse a validade de uma norma tão-somente em critérios técnico-formais, jamais poderia negar com bom fundamento a validez dos imperativos baixados por paranóico que por acaso viesse a ser rei” REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 522. 66 A validade da norma é iniciada pela promulgação, por ser o momento em que adquire existência jurídica. Nesse sentido esclarece Wilson de Souza Campos Batalha (1980, p. 23), “mercê da promulgação atribui-se ao texto validade como lei no plano do ordenamento jurídico”. Por fim, conforme Carlos Alberto Bittar Filho (1992), a publicação não é requisito intrínseco de existência da lei. BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Da existência, validade, vigência e eficácia da lei no sistema
brasileiro atual. V. 683. Revista dos Tribunais, 1992, p. 33.
44
De fato, a lei há de estar conforme as prescrições constitucionais.
Como averbam Gomes Canotilho e Vital Moreira apud Carraza (1991): “A
principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste
em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu
crivo, de modo a eliminar as normas que se não conformem com ela”.67
A Constituição, bem de ver, estabelece condições formais e
materiais de validade das leis. São os chamados requisitos formais e
materiais de constitucionalidade das leis, empregados pela doutrina
constitucionalista. Os primeiros se referem à observância das normas
constitucionais de processo legislativo e os últimos à verificação substancial
da compatibilidade do objeto da lei com a Lei Maior.68
Diz-se inconstitucionalidade formal ou nomodinâmica se o vício
está na produção da norma, no processo de elaboração;
inconstitucionalidade material ou nomoestática se o vício refere-se ao
conteúdo da norma69, ou, ainda, vício de forma ou de conteúdo,
respectivamente.70
Portanto, em tema de validade das leis jurídicas em sentido
estrito, leis que desrespeitam formal ou substancialmente a Constituição são
inválidas ou inconstitucionais.71
3.5. Vigência
67 CARRAZA, Roque Antonio. ICMS. 3ª ed. São Paulo : Malheiros, 1997, p. 22. 68 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 559-560. 69 CHIMENTI, Ricardo Cunha. Apontamentos de direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Paloma, 2001, p. 162. 70 Tercio Sampaio Ferraz Junior (2001), disserta que são tidas como condições formais de validade da lei a observância das normas de competência (ex.: só o Congresso produz normas federais, só o Presidente as sanciona, etc.) e de determinação do momento (ex.: a Constituição não pode ser emendada durante o estado de sítio, art. 60, § 1º, etc.). Por sua vez, a observância da matéria compreende a validade material. FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 194. 71 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 55.
45
Alguns doutrinadores definem vigência como o período de
disponibilidade da lei, ou seja, com “o tempo em que ela atua”.72 Outros,
igualmente autorizados, encontram no conceito de vigência correspondência
com a denominada validade técnico-formal da norma de direito, a pressupor
o preenchimento das condições formais e materiais previstas para sua
produção.73
O conceito de vigência parece designar algo diverso dessas
respeitáveis posições, porém. No intento de atingir o grau satisfatório do
significado do instituto, adverte Hugo de Brito Machado (2003) que devemos
examinar a realidade do que acontece no sistema jurídico, isto é, temos de
conhecer o fato que ela designa para verificar se a designação é
adequada.74
Aqueles que encontram no conceito de vigência o período de
disponibilidade da lei parecem confundir a vigência com sua duração.75 Por
outro lado, uma lei cujo conteúdo e forma encontra amparo na Constituição
é, de fato, válida do ponto de vista técnico-jurídico. Mas não podemos dizê-
la, por si só, vigente, porque a vigência depende de norma que a estabeleça,
norma que pode ser veiculada pela própria lei. Já vimos anteriormente que,
salvo disposição em contrário, a lei entra em vigor quarenta e cinco dias em
todo o País e nos Estados estrangeiros três meses depois de publicada
(LICC, art. 1º). Eis a regra: ou a lei contém norma a dispor o momento em
que passa a viger ou aplica-se a norma do art. 1º da Lei de Introdução. A lei
pode, pois, ser válida e não necessariamente vigente, se depender da
72 BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Da existência, validade, vigência e eficácia da lei no sistema
brasileiro atual. V. 683. Revista dos Tribunais, 1992, p. 32. 73 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 228. 74 MACHADO. Hugo de Brito. Vigência e eficácia da lei. Revista Forense, v. 313, 1991, p. 46. 75 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 93.
46
verificação de vacância76, também chamada de cláusula de vigência77,
determinadora do momento em que a lei passa a vigorar.
Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Junior (1997) indicam
a existência de três critérios para a fixação da cláusula de vigência da lei, a
saber: (a) o estabelecimento de dia certo para a entrada em vigor, do que é
exemplo o Código de Processo Civil (Lei nº 5.869, de 11.01.1973) que
passou a vigorar em 1º de janeiro de 1974 (art. 1.220); (b) a fixação de data
levando-se em consideração o dia da publicação da lei (imediatamente ou a
partir de certo prazo); e (c) a fixação da vigência com base em outro
acontecimento.78
Por outro lado, a validade não é condição da vigência. De fato, a
lei pode contrariar o conteúdo da Constituição e, não obstante, ser vigente,
porque foi posta a incidir, pelo órgão competente segundo o sistema
jurídico.79
Vigência significa, portanto, aptidão para incidir, vale dizer, para
dar significação jurídica aos fatos. Para produzir efeitos jurídicos no plano
abstrato. Lei vigente pode incidir e, assim, dar a seu suporte fático um
significado jurídico. Se a lei é vigente e ocorre a situação nela prevista como
hipótese de incidência, inevitavelmente incide. A incidência é automática,
explica Hugo de Brito Machado (2003)80, acrescentando que a “incidência
não produz nenhum efeito no plano fático ou plano do ser”.81
76 DAL COL, Helder Martinez. Classificação das normas jurídicas e sua análise nos planos da
validade, existência e eficácia. Jurid Publicações Eletrônicas, doutrina nº 567, s/d. 77 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 53. 78 NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson. Código de processo civil comentado e
legislação processual civil extravagante em vigor. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 1.076. (Nota ao art. 1.220). 79 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 93. 80 Ibidem, p. 94. 81 MACHADO, Hugo de Brito. Vigência e eficácia da lei. Revista Forense, v. 313, 1991, p. 47.
47
Afigura-se possível, do exposto, divisar os momentos iniciais de
existência jurídica e vigência da lei. A lei passará a existir no mundo jurídico
pela promulgação e a viger, caso silencie a respeito, após o período de
vacatio legis. Existência jurídica e vigência, portanto, não se confundem. A
vigência pressupõe não só a existência jurídica da norma como também o
esgotamento da fase complementar do processo legislativo, exaurido, ainda,
o período de vacatio legis.
Depreendido o conceito em tela, cabe perquirirmos o momento no
qual patenteia-se o termo final de vigência da norma. Preceitua o art. 2º da
Lei de Introdução do Código Civil, in verbis: “Art. 2º. Não se destinando à
vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”.
As leis, em regra, têm vigência até serem modificadas ou revogadas por
outras leis.82
A revogação da lei se considera havida no exato instante em que
a lei revogatória se torna obrigatória, isto é, com o início da vigência da lei
nova estabelece-se o limite divisório de sucessão das mesmas. Contundente
a observação, a respeito, de Oscar Tenório apud Wilson de Souza Campos
Batalha (1980), segundo a qual a revogação “de uma lei não é data da
82 “Os conceitos de derrogação ou ab-rogação somente se aplicam a normas de igual hierarquia e não a normas de planos diferentes”, sustenta Wilson de Souza Campos Batalha (1980, p. 25). A nosso ver, porém, assiste razão à Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 96), ao afirmar que a revogação por incompatibilidade (a revogação pode decorrer: de expressa disposição na lei nova, da vigência de norma incompatível e da regência integral pela lei nova) pode acontecer pela superveniência de lei do mesmo grau hierárquico, portadora de disposição diferente da contida na lei velha, ou pela não-recepção desta em Constituição posterior a ela. No mesmo sentido, Carlos Alberto Bittar Filho (1992, p. 32) diz que devemos trazer à baila uma importante questão: “a lei incompatível com a Constituição deve ser declarada inconstitucional ou apenas considerada como revogada? Se a lei é posterior à Constituição, há inconstitucionalidade. Se é anterior, há revogação, por causa do princípio da continuidade das leis, segundo o qual a lei é revogada por outra hierarquicamente igual ou superior”. De toda sorte, entenda-se existir revogação ou não, não há divergência quanto ao fato de que a superveniência de norma constitucional incompatível com lei infraconstitucional então vigente retira a validade desta. De outro turno, é importante não confundirmos o fenômeno da revogação por não-recepção, verificáveis entre disposições de diferentes níveis hierárquicos (lei e Constituição), com o fato de que, como esclarece Carlos Maximiliano (1955, p. 27), haver possibilidade de conflito de leis no tempo somente entre duas normas positivas que se achem em pé de igualdade, ou seja, do mesmo nível hierárquico, não havendo que se cogitar, por exemplo, em conflito entre lei e regulamento.
48
promulgação ou publicação da lei que a revoga, mas a data em que a lei
revogatória se torna obrigatória”.83
A fixação temporal da sucessão das leis, revogatória e revogada,
é de grande valia para a compreensão da distinção entre os fatos passados,
pendentes e futuros, considerando que ao direito intertemporal interessa o
exame das situações pendentes.
3.6. Eficácia
A eficácia refere-se à geração de efeitos jurídicos, potenciais ou
efetivos, no plano dos fatos. É considerada, respectivamente, em dois
sentidos: eficácia jurídica e eficácia social.
De acordo com Tercio Sampaio Ferraz Júnior (1980), eficácia
significa “ter a norma possibilidade de ser aplicada, de exercer seus efeitos,
porque as condições para isto exigidas estão cumpridas”.84 Tal representa o
significado de eficácia jurídica, para a qual não se demonstra exigível que a
norma produza os efeitos que lhe são previstos, mas apenas que estejam
latentes, isto é, aptos a serem desencadeados.
A seu turno, a eficácia social, comumente chamada de efetividade
da norma, advém da circunstância de a lei ser efetivamente obedecida ou 83 In: BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito Intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 33. Dissentimos de Roque Antonio Carrazza (1998, p. 212), para quem a prioridade de uma lei acerca de outra no tempo é determinada pela data da promulgação. A existência jurídica da norma pela promulgação não induz outro efeito senão atestar a inovação do ordenamento. A revogação prende-se ao conceito de vigência e não ao de existência jurídica. Ao encontro de nossa posição, Maria Helena Diniz (2005, p. 67) afirma: “Com a entrada em vigor da nova norma, a lei revogada não mais poderá pertencer ao ordenamento jurídico, perdendo sua vigência, mas a revogação poderá não eliminar sua eficácia, pois poderá suceder que seus efeitos permaneçam”. O mesmo é dito, em outras palavras, por Cândido Rangel Dinarmarco (2004, p. 95), para quem a lei processual torna-se vigente no momento em que ela própria indicar (p.ex., no dia da publicação ou tantos dias após esta) ou, à falta dessa indicação, quarenta e cinco dias após publicada na imprensa oficial (LICC, art. 1º). Até que chegue o dia assim estabelecido, a lei promulgada e publicada não produz efeito algum, seja quanto aos fatos pretéritos, seja em relação aos que nesse período ocorrerem. Ela é, até então, uma lei vacante e não vigente. 84 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1980, p. 58.
49
aplicada.85 A norma pode ser eficaz porque é espontaneamente observada
pelos destinatários ou porque é aplicada.86 A aplicação depende de ato da
autoridade competente, como do juiz que decide a lide, do administrador que
elabora o lançamento etc.
A eficácia respeita, assim, à possibilidade de aplicação, efetiva ou
potencial, da norma jurídica no campo fático.
85 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 65. 86 MACHADO, Hugo de Brito. Vigência e eficácia da lei. Revista Forense, v. 313, 1991, p. 47.
50
Tênue a distinção entre vigência e eficácia jurídica. Na primeira,
perquire-se se, no plano abstrato, a norma tem aptidão para incidir, ou seja,
para provocar a incidência normativa. Já na segunda verifica-se, no plano
fático87, se a norma tem possibilidade de ser aplicada aos casos concretos.
Em suma, a vigência pertence ao plano do dever ser e a eficácia ao plano do
ser.
Demais disso, vigência é qualidade que não admite gradação. A
lei está ou não vigente. Ao contrário, existem leis mais ou menos eficazes,
dependendo da potencial ou efetiva observância ou aplicação.88
Uma lei pode ser vigente, com capacidade abstrata para cumprir
seus objetivos, mas não ser dotada de eficácia. Será ineficaz, por exemplo,
a lei que determinar que entrará em vigência imediatamente, mas ainda
dependente de regulamentação (ineficácia sintática). É o caso de uma
norma determinar ser garantido o acesso a todos os cidadãos aos cargos
públicos, quando forem preenchidos os requisitos estabelecidos em lei. A
norma é vigente, mas tem a eficácia condicionada à lei que irá estabelecer
os requisitos exigidos. Também é ineficaz a lei que é inadequada à realidade
que almeja disciplinar, como a que impõe o uso de aparelho inexistente no
mercado.89
A recíproca também é verdadeira. A eficácia não pressupõe a
vigência, de sorte que uma norma pode ser eficaz, aplicando-se a
conseqüências futuras, a despeito de não mais vigente. Por exemplo, apesar
de sua revogação, a lei pode continuar eficaz e, portanto, aplicável a
determinadas relações jurídicas protegidas pelo ato jurídico perfeito, pelo
direito adquirido ou pela coisa julgada (Constituição Federal, art. 5º, XXXVI;
87 “A eficácia da lei pode ser vista como a medida de sua real aplicação no campo dos fatos”. DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Existência, vigência, validade, eficácia e efetividade das normas
jurídicas. Ciência Jurídica, vl. 49, 1993, p. 45. 88 MACHADO, Hugo de Brito. Vigência e eficácia da lei.Op. cit., p. 47. 89 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1980, p. 58.
51
Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6º).90 É a chamada pós-atividade ou
ultratividade da lei antiga.91
Outro exemplo de que a eficácia pode prescindir da vigência
refere-se aos casos da lei cuja vigência cessou, mas continua aplicável a
situações constituídas ao seu tempo, como o lançamento, que se reporta à
data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então
vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada (Código
Tributário Nacional, art. 144, “caput”) e as leis de vigência temporária (leis
excepcionais ou temporárias), aplicáveis aos fatos praticados durante a sua
vigência, mesmo depois da auto-revogação (Código Penal, art. 3º). Também
são chamadas de leis pós-ativas, mas impropriamente, pois a ultratividade
alude à aplicação da lei a fatos novos, ocorridos após a sua revogação. A
regência pela lei sobre fatos verificados durante o tempo em que
permaneceu em vigor é mero resultado da incidência normativa, ocorrida no
período de vigência. A propósito, salienta Hugo de Brito Machado (2003):
A lei, mesmo modificada ou revogada, pode ser aplicada
aos fatos ocorridos antes de sua revogação ou modificação,
pois continuam existindo tais fatos com o sentido jurídico
resultante da incidência da norma revogada, ou modificada.
90 Para Maria Helena Diniz (2005, p. 50), é o vigor normativo - e não a eficácia - que possibilita a aplicação da norma revogada (não vigente) ao fato albergado pelo ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada. A nosso sentir, vigor e vigência são expressões sinônimas, tanto que o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657, de 04.09.1942) estabelece, in verbis: “Art. 1 - Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada. Parágrafo primeiro - Nos Estados estrangeiros, a obrigatoriedade da lei brasileira, quando admitida, se inicia três meses depois de oficialmente publicada. Parágrafo segundo - A vigência das leis, que os Governos Estaduais elaborem por autorização do Governo Federal, depende da aprovação deste e começa no prazo que a legislação estadual fixar. Parágrafo terceiro - Se, antes de entrar a lei em vigor, ocorrer nova publicação de seu texto, destinada à correção, o prazo deste artigo e dos parágrafos anteriores começará a correr da nova publicação. Parágrafo quarto - As correções a texto de lei já em vigor consideram-se lei nova”. No sentido de que vigência e vigor são sinônimos, expressa Paulo Barros de Carvalho(1999, p. 60-61): “A vigência também não se confunde com a eficácia. Uma norma pode estar em vigor e não ser eficaz, como ser eficaz sem estar vigorando”. 91 Alguns autores falam, ainda, em sobrevivência da lei antiga, o que tecnicamente não nos afigura correto, porque, nas hipóteses enunciadas, a lei não existe mais, já tendo cessado a vigência (e a validade) pela revogação.
52
Em outras palavras, sobrevivem os efeitos jurídicos de sua
incidência, que se deu, automaticamente, sobre os fatos
ocorridos durante sua vigência, ou até anteriormente a
esta.92
Assim, a lei poderá ser aplicada pela autoridade competente ou
obedecida (eficaz), mesmo depois de sua revogação.
3.7. Eficácia/vigência e Direito Intertemporal
Expostas as distinções necessárias entre os planos de existência,
validade, vigência e eficácia da lei, bem de ver a importância dos institutos
da vigência e eficácia ao estudo do direito intertemporal, porquanto ao
intérprete incumbirá verificar a norma cujos efeitos se aplicarão à
determinada situação jurídica (caso concreto), se a lei sucessora (vigente)
ou a sucedida (revogada). Não por outra razão Limongi França (1998) é
incisivo ao afirmar:
(...) a técnica própria do Direito Intertemporal está ligada à
hermenêutica e à interpretação; entretanto, diz respeito,
sobretudo, à APLICAÇÃO das normas fundamentais do
sistema aos casos concretos, à face dos quais cumpre
saber se se aplica a lei nova ou a pretérita.93
92 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 94. Fernando Noronha (2005) igualmente discorda da existência de pós-atividade nesses casos, falando em prospectividade da lei. NORONHA, Fernando. Indispensável reequacionamento das questões
fundamentais de direito intertemporal. Revista dos Tribunais, v. 837, 2005, p. 62-63. 93 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 300.
53
Da mesma forma, ressalta Helane Cabral que a questão da
aplicabilidade das normas jurídicas está “intimamente ligada à sua
eficácia”.94
Portanto, definido pelo intérprete, à luz do marco inicial de
vigência da lei sucessora, se o fato que se lhe apresenta é pretérito,
pendente ou futuro, incumbir-lhe-á, em seguida, perquirir a respeito da
norma cuja eficácia lançará efeitos a essa situação empírica.95
94CABRAL, Helane C. M. Validade, vigência, eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais
programáticas. A & C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, nº 3, s/d., p. 132. A eficácia da norma pode ser no tempo, objeto do direito intertemporal, quanto no espaço, regulado pelo direito internacional privado, como ensina Arnold Wald (1995, p. 91-108): “há assim, certo paralelismo entre o direito intertemporal, que resolve os conflitos de lei no tempo, e o Direito Internacional Privado, que resolve os conflitos de lei no espaço, podendo haver conflito entre normas de dois Estados soberanos ou mesmo dentro de um mesmo Estado soberano, entre diversos sistemas jurídicos”. Concluindo, a possibilidade de duas normas regularem a mesma situação jurídica pode implicar o conflito de leis no espaço ou no tempo. No espaço, se as normas positivas procederem de fontes diversas, vale dizer, de diferentes Estados soberanos, caso em que o conflito é objeto de estudo pelo Direito Internacional. No tempo, se o fenômeno for a sucessão dessas leis, surgindo o conflito entre o antigo e o novo regramento, assunto de que trata o Direito Intertemporal. 95 Na mesma linha, Cândido Rangel Dinamarco (2004) diz o seguinte: “O direito processual intertemporal tem por objeto, como se vê, a determinação dos momentos de início e fim da vigência da lei processual e também a regência da eficácia da lei velha ou da nova em relação aos processos pendentes e aos já extintos no momento de vigência desta”. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 95.
54
4. O PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS
4.1. Breve Sinopse Histórica do Princípio da Irretroatividade
A história evolutiva do direito intertemporal revela o desabrochar
do princípio da irretroatividade das leis em todos os povos cultos, cada qual
em seu tempo. Paulatinamente o natural sentimento humano de respeito ao
passado alçou reconhecimento legislativo nos países em geral, de que forma
que sociedade hodierna não tergiversa em contemplar o princípio em foco
como regra nos diversos sistemas jurídicos em vigor.
O estudo do instituto ao longo dos anos “revela sempre a
preocupação do problema da irretroatividade das leis, que parte, assim, de
uma intuição racional, de uma necessidade de garantia, aspiração que
constitui o seu próprio fundamento”.96 Assim é que Carlos Maximiliano
(1955) tem-no como verdadeiro “filho do progresso”, revelando, no seu
entender e com razão, “retrógrados” os que se insurgem contra ele.97
Sobre o assunto, segundo Lomanaco apud Vicente Ráo (2005):
(...) o princípio da irretroatividade das leis é tão antigo
quanto a própria civilização. Mesmo não querendo recorrer
aos monumentos legislativos, sempre o encontraremos
reconhecido por todos os povos, em todos os tempos,
Platão, no Teeteto, atribuiu-o a Sócrates. Cícero, em uma de
suas orações In Verrem, disse expressamente: ‘De jure civili
si quis novi quid instituit, is omnia quae ante facta sunt, rata
esse patitur’. Maquiavel escreveu em o Príncipe: ‘A lei não
96 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código
Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 236. 97 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 16.
55
deve resolver as coisas passadas, mas prover as futuras’.
Nas fontes, encontramos uma Constituição do Imperador
Teodósio, do ano 400 (L. 7, Cod., de legibus et
constitutionibus Principium), que começou por estas
palavras: “Leges et constitutiones futuris certum este dare
formam negotiis”.98
De fato, as primeiras manifestações do princípio da
irretroatividade logo despontaram em nossa história, malgrado a maioria dos
ordenamentos jurídicos das antigas civilizações propugnasse a
retroatividade das leis como regra.99
4.1.1. O direito hindu
Na Índia, editadas no século XIII a.C., as Leis de Manu operavam
com retroatividade, inclusive em matéria penal. Refere Limongi França
(1998) que em tais normas se enxerga caráter irretroativo, especificamente
pelo disposto na regra nº 16 do L. VII, segundo a qual o soberano deve
considerar “o lugar e o tempo, os meios de punir e os preceitos da lei”.100
Porém, como observa Antonio Jeová Santos (2004), nada está a indicar
nesta regra qualquer vedação à retroatividade.101
98 In: RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 389. 99 Para Gaetano Pace apud José Eduardo Martins Cardozo (1995), antigamente, antes fase da retroatividade como regra, a história do direito intertemporal foi marcada pela chamada fase negativa, referindo-se à época dos primitivos ordenamentos jurídicos, constituídos de caráter teocrático ou consuetudinário, nos quais não existia conflito de leis. Os ordenamentos teocráticos, em virtude da inspiração divina de suas normas, caracterizavam-se como sistemas fechados, imunes a alterações substanciais. Nos consuetudinários, pela natural lentidão com que os costumes se arraigavam na sociedade, o problema da intertemporalidade jurídica também inexistia. In: CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 45. Acolha-se ou não esta tese, importa registrar que ela em nada conflita quanto à circunstância de estarem o princípio da irretroatividade e do respeito ao direito adquirido fundados no direito natural: a necessidade humana, sempre presente, de obediência ao passado somente precisou se externada, em atos normativos, quando a sociedade demonstrou imprescindível. 100 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 10-11. 101 SANTOS, Antonio Jeová. Direito intertemporal e o novo código civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 21.
56
4.1.2. O direito chinês
À semelhança da Índia, a compilação dos Tsings, promulgada na
China pela dinastia Mandchu no século XVII, estendia ao passado o império
da lei nova, tanto em matéria civil quanto penal. Nela, se disciplinava que:
(...) todas as leis, caracterizadas como tais e destinadas a
serem fundamentais, terão efeito e total eficácia a partir do
dia da publicação e, toda transação será adjudicada de
acordo com as leis mais recentes, ainda que tal transação
tenha sido entabulada antes da promulgação dessas leis.102
Somente com a Proclamação da República, em 1912, veio
expresso, em novos códigos editados a partir de então, o princípio da
irretroatividade.103
4.1.3. O direito grego
Deu-se no direito grego o despertar da idéia da irretroatividade,
segundo Ferdinand Lassalle apud Carlos Maximiliano (1955)104, o que se
deve aos ensinamentos de Platão (427 a 347 a.C.), em passagem do
102 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 11-12. 103 Ibidem, p. 12. 104 In: MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 17. No que denomina de fase embrionária, Limongi França (1998, p. 9-10), também enxerga manifestações do direito adquirido nos Códigos de Hamurabi e Bocchoris. Para o civilista brasileiro, no Direito Egípcio, o Código de Bocchoris forneceu uma das primeiras manifestações de preservação do direito adquirido. Na tentativa de neutralizar a interferência da regras religiosas sobre as regras jurídicas, esse diploma suprimiu o juramento como causa de extinção das obrigações civis, no qual o devedor que, até então, se sentia extorquido, fazia um juramento aos deuses e livrava-se da obrigação contraída. A partir do Código, o devedor deveria rezar uma oração solene, estando impedido de apelar aos deuses. Com isso, se preservava o “Direito Adquirido do credor”. Por sua vez, o Código de Hamurabi, editado na civilização mesopotâmica e que vigorou de 2123 a 2081 a.C., apesar de seu escopo em suprimir o caráter patrimonial de utilização das terras, no art. 40 garantia o direito de venda do campo, do pomar ou da casa. Todavia, compartilhamos dos argumentos de José Eduardo Martins Cardozo (1995, p. 61), segundo o qual os Códigos de Bocchoris e Hamurabi não demonstram efetivo conhecimento do povo acerca do fenômeno de sucessão de leis no tempo. Haveria, quando muito, mera sucessão de normas no tempo. Não há, de fato, em tais codificações indícios de conhecimento sobre a necessidade de preservação do passado.
57
“Teeteto”, do qual José Eduardo Martins Cardozo (1995) extrai o seguinte
excerto:
Há uma coisa que é mais fácil toda gente pôr-se de acordo:
‘a questão sobre a classe universal a que pertence o útil.
Ora, ela estende-se ao tempo que há de vir, porque, ao
legislarmos, fazemo-lo com a idéia de que nossas leis serão
úteis no tempo futuro e o nome de futuro é o que melhor
convém a esta utilidade’ (...) Mas a legislação e a utilidade
não têm elas por objeto o futuro?105
O trecho transcrito denota, à evidência, o conhecimento do povo
grego sobre o fenômeno de sucessão das leis no tempo e o principal, qual
seja, a idéia de inviolabilidade do passado, do qual o princípio da
irretroatividade e o respeito ao direito adquirido são manifestações.
Ferdinand Lassalle apud Carlos Maximiliano (1955) também
demonstra a consciência do povo grego sobre a impossibilidade de leis
projetarem-se ao passado em episódio ocorrido no arcontado de Euclides,
no qual uma lei teria sido em parte revogada em virtude dos efeitos
retroativos que nela se apresentavam.106
4.1.4. O direito romano
O direito romano engloba todas as normas que regeram a
sociedade romana durante treze séculos, desde 764 a.C. até 565 d.C., com
a morte do imperador Justiniano.
105 CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 64-65. 106 In: MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 17. Ainda, segundo Maximiliano (1955), aplicava-se a referida norma às pessoas nascidas antes de sua promulgação, exagero este que foi eliminado.
58
Superado o período da Realeza (754 a 510 a.C.), sob o regime da
República (510 a.C. a 27 d.C.) aportou como marco histórico fundamental de
Roma a Lei das XII Tábuas (451 a.C.), diploma que, não obstante, silenciou
a respeito do princípio da irretroatividade.107
A condenação à retroatividade somente despertou com as
Verrinas de Cícero (106 a 43 a.C.), em que o orador, em censura ao pretor
Verres por haver este firmado edito de efeito retroativo, proclamou: “No
tocante do Direito Civil, se alguém estabeleceu algo de novo, julgaria ter
destruído tudo o que fora feito antes?”.
Seqüencialmente, exemplos notáveis de alusão à irretroatividade
aportaram com as Regras Teodosianas. A Primeira Regra Teodosiana,
baixada por Teodósio I, no ano 393 d.C., fez consignar: “Todas as normas
não fazem calúnia aos fatos passados, mas regulamentam apenas os
futuros”.
Já sob a égide de Teodósio II, editou-se a Segunda Regra
Teodosiana (440 d.C.), na qual se afirmava: “É norma assentada a de que
as leis e Constituições regulam os negócios futuros e não atingem os fatos
passados, a não ser que tenham feito referência expressa, quer ao passado,
quer aos negócios pendentes”. Resumindo, a lei, em regra, aplicava-se aos
fatos futuros e apenas excepcionalmente, desde que expressamente, aos
fatos passados e pendentes. Arguta a observação de Wilson de Souza
Campos Batalha (1980) de que a “fórmula de Theodosius foi além da estrita
107 ROUBIER, Paul. Lei droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2ª ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960, p. 30. De acordo com o jurisconsulto francês: “On ne trouve pas de décision intéressante, pour le droit transitorie, ni dans la loi des XII Tables, ni même dans les lois postérieures de la République romanie”. Limongi França (1998, p. 14), porém, enxerga a manifestação do direito intertemporal na Lei das XII Tábuas, em cujo corpo continha os dizeres: “aquilo que o povo decidiu por último, seja o direito em vigor”. Em verdade, referido trecho somente demonstra o conhecimento do povo acerca do fenômeno de sucessão das leis no tempo, inexistindo qualquer referência à noção de irretroatividade.
59
regra da irretroatividade, ou seja, criou obstáculo ao efeito imediato da lei
sobre as situações em curso”.108
Justiniano, ao ascender ao trono em 527 d.C., manteve os
princípios basilares da Segunda Regra Teodosiana, como se extrai da
Novela 22, Cap. 1: “Duas disposições preliminares precedem esta lei.
Primeiramente, as Constituições sancionadas por nossos antecessores
devem valer cada qual de acordo com seu tempo sem interferência da
presente lei: serão válidas e respeitadas nos casos respectivos, e os seus
efeitos se regularão pelas leis já promulgadas, e em nada pela presente”.
4.1.5. O direito canônico
Informa Gabba apud Limongi França (1998) que o direito
canônico repetiu o princípio geral do direito romano da não-retroatividade
das leis, sem acrescentar-lhe algo de essencial.109 De fato, a Decretal110 de
Gregório Magno (590 a 604), I, 2, 2, acolheu as idéias originais constantes
da Primeira Regra Teodosiana, o mesmo ocorrendo com a de Gregório IX
(1227 a 1241), I, 2, 13, em relação à Segunda Regra Teodosiana.111
No dizer de Limongi França (1998), a marca fundamental do
direito canônico se verifica quando o jurista Bendito Gaetani assumiu o
papado como Bonifácio VIII (1294 a 1303), em que pela primeira vez ao
108 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 61. 109 In: FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 27. 110 As Decretais, que gozavam de força normativa, representavam resposta do Papa acerca das diretas consultas que se lhe formulavam a respeito de alguma questão relativa à disciplina monástica, ao matrimônio, à penitência etc. TUCCI, José Rogério Cruz; AZEVEDO, Luiz Carlos de. Lições de processo civil canônico (história e direito vigente). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 29. 111 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 27-28.
60
longo da história utilizou-se da expressão jus acquisitum (direito
adquirido).112
4.1.6. Da Revolução Francesa aos dias atuais
Galgando em passos largos no tempo, despontou no campo
doutrinário do século XVIII a concepção jusnaturalista do princípio da
irretroatividade, a exemplo da obra Les Lois Civiles dans leur Ordre Naturel
do francês Domat, datada de 1756.113 A negação à retroatividade passou a
encontrar fundamento no direito natural, idéia sobremaneira propagada com
o advento da Revolução Francesa (1789), que universalizou o princípio da
irretroatividade das leis.
Na seara legislativa, a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão114, promulgada pela Assembléia Constituinte Francesa de 27 de
agosto de 1789, consagrou no art. 14 a irretroatividade em matéria penal.
Anos após, a Constituição de 5 fructidor ano III estendeu ao campo civil o
princípio em comento.115
Não obstante a universalização do princípio, a irretroatividade das
leis figura, atualmente, como preceito constitucional em poucos países
civilizados, a exemplo da Constituição dos Estados Unidos da América de
1787, art. 1º, seção 5ª, verbis: “O Congresso não poderá editar nenhuma lei
112 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. Op. cit., p. 28. Ainda, em 1296, Bonifácio VIII nomeou a comissão encarregada de “rever a legislação vigente e elaborar uma nova coleção com as decretais dos Papas que sucederam a Gregório IX” (Tucci e Azevedo, 2001, p. 57). 113 ROUBIER, Paul. Lei droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2ª ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960, p. 69. 114 Ao comentar sobre a Declaração de 1789, José Afonso da Silva (1998) anota que sua “visão universal dos direitos do homem constituiu uma de suas características marcantes, assinalada com o significado de seu mundialismo”. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 165. 115 Sobre o assinto assevera Roubier (1960, p. 71-72): “L’Assemblée, instruite par l’expérience, vota plus tard um texte qui interdisait l’effet rétroactif aussi bien em matièrie civile qu’en matièrie pénale; l’articule 14 de la Déclaration des droits inscrite em tête de la Constitution du 5 fructidior an III, ést em effet ainsi conçu: ‘Aucune loi, ni criminelle, ni civile, ne peut avoir d’effet rétroactif’”.
61
com efeito retroativo”; aos Estados também se aplica a mesma proibição
através da seção 10. Já a Constituição brasileira proscreve a violação ao
direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI).
De fato, na maioria dos ordenamentos jurídicos da atualidade a
irretroatividade expressa-se em texto de lei ordinária, através do
estabelecimento de regras gerais. Ora se veda literalmente a retroatividade,
ora se protege o direito adquirido, ora ambos. São exemplos: (a) art. 2º do
Código Civil Francês: “La loi ne dispose que pour l’avenir; elle n’a point
d’effet rétroactif”; (b) art. 2º do Código Civil Italiano de 1942: “La legge non
dispone che per l’avvenire: essa non ha effeito retroattivo”; (c) art. 3º do
Código Civil de 1869 da Argentina: “Las leyes disponen para lo futuro; no
tienen efecto retroactivo, ni pueden alterar los derechos ya adquiridos”; e (d)
art. 8º do Código Civil Português de 1867: “A lei não tem efeito retroativo.
Excetua-se a lei interpretativa, a qual é aplicada retroativamente, salvo se
dessa aplicação resultar ofensa de direito adquirido”.
Há, ainda, algumas codificações que estabelecem regras
específicas de aplicação do direito intertemporal a assuntos determinados,
como o Código Civil Alemão (arts. 153 a 218).116
4.1.7. O Princípio da irretroatividade no direito brasileiro
Dois anos após a proclamação da independência, apartando-se
da maioria das legislações alienígenas em que se propugnava a
irretroatividade das leis apenas no corpo de leis ordinárias, o Brasil, ao lado
das Constituições dos Estados Unidos (1787), de “5 fructidor do ano III” da
França (1795) e da Noruega (1814), instituiu o aludido princípio em âmbito
constitucional.
116 É o que informam Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho (1999, p. 234-237). ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
62
Assim disciplinou a Constituição Imperial de 1824, em seu art.
179, II e III, in verbis: “Nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública.
A sua disposição não terá efeito retroativo”.
A legislação infraconstitucional que se seguiu igualmente
proscrevia a retroatividade, a exemplo do afamado Regulamento nº 737, de
1850, que no art. 742 consignou-se:
As causas comerciais intentadas depois da execução do
Código, mas provenientes de títulos ou contratos anteriores
à execução do mesmo Código, serão regulados, quanto à
forma de processo pelas disposições deste Regulamento; e
quanto à matéria, serão decididas pela legislação que
anteriormente regia.
A Constituição Republicana de 1891, no art. 11, não alterou o
quadro vigente ao preceituar, nestes termos: “É vedado aos Estados como à
União: (...) IV. Prescrever leis retroativas”.
Embora as Constituições de 1824 e 1891 vedassem de forma
expressa a possibilidade de retroação da lei, a doutrina negava o caráter
absoluto do princípio encerrado em preceito constitucional.
Assim é que Rui Barbosa afirmava que não seria o retroagir da lei,
todo e qualquer retroagir, a retroatividade pela retroatividade, o que se quer
obstar; mas o retroagir lesivamente, isto é, a retroatividade atentatória dos
direitos adquiridos.117 Em idêntica linha de raciocínio, o civilista Reynaldo
Porchat (1909) afirmou:
117 In: FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 118.
63
Quando, ao executar-se uma lei nova qualquer, depara-se
um direito adquirido que possa ser lesado, a lei não tem
aplicação ao caso, porque a retroatividade seria injusta.
Quando não se encontra um direito adquirido, aplica-se a lei,
mesmo retroativamente, porque a retroatividade é justa.118
Inovação no cenário infraconstitucional deu-se em 1º de janeiro
de 1916, com a entrada em vigor do Código Civil Brasileiro e sua Lei de
Introdução119, marcada pela notória influência do anteprojeto de Código Civil
de Coelho Rodrigues.120
Acompanhando a orientação doutrinária de que o verdadeiro
limite à retroação das leis consistia unicamente no respeito aos direitos
adquiridos, dispôs o art 3º da Lei de Introdução, in verbis:
Art. 3º. A lei não prejudicará, em caso algum, o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito, ou a coisa julgada. § 1º -
Consideram-se adquiridos, assim os direitos que seu titular,
ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo
começo de exercício tenha termo prefixado, ou condição
preestabelecida, inalterável ao arbítrio de outrem. § 2º -
Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei
vigente ao tempo em que se efetuou. § 3º - Chama-se coisa
julgada, ou caso julgado, a decisão judicial, de que já não
caiba recurso.
118 PORCHAT, Reynaldo. Da retroactividade das leis civis. São Paulo: Duprat & Comp., 1909, p. 118. 119 A denominação conferida por Maria Helena Diniz (2005), qual seja Lei de Introdução às Leis, à LICC é induvidosamente mais adequada para exprimir esse diploma que não é parte integrante do Código Civil, mas uma lei preliminar aplicável a todo o ordenamento jurídico nacional. Constitui um superdireito, um direito coordenador de direito. Não rege as relações da vida, mas as normas. DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução do código civil brasileiro interpretada. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 3-4. 120 In: FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 139-140.
64
Erigindo à categoria de preceito constitucional o caput da Lei de
Introdução, a Constituição de 1934 alterou a fórmula genérica de proibição à
retroatividade e estabeleceu no art. 113, § 3º, que “a lei não prejudicará o
direito adquirido, o ato jurídico e a coisa julgada”.
Ao argumento do ditadorial governo da época no sentido de que
não deveria constituir obstáculo ao legislador, a Magna Carta de 1937
silenciou a respeito do problema da intertemporalidade conflitual, não
fazendo qualquer referência ao respeito aos direitos adquiridos ou ao
princípio da irretroatividade das leis, o qual subsistiu apenas no campo
penal.
Em vigor, somente a Lei de Introdução ao Código Civil, o que
permitiu ao legislador ordinário maior liberdade à promulgação de leis
retroativas, desde que o fizesse de modo expresso.
Essa omissão constitucional propiciou, de fato, a edição de leis
manifestamente ofensivas a direitos adquiridos, a exemplo do Decreto-lei
1907, de 26 de dezembro de 1939 que, atingindo as sucessões abertas
antes de sua entrada em vigor, reduziu a sucessão testamentária do sexto
ao segundo grau, na tentativa do Estado de apropriar-se de grandiosa
herança de determinada família do Rio de Janeiro. O episódio ficou
conhecido como o caso Deleuze.
Abandonando a fiel tradição de estabelecer em preceito a garantia
aos direitos adquiridos, em 4 de setembro de 1942, a Lei de Introdução de
1916 veio a ser revogada pelo Decreto nº 4.637, quando a nova Lei de
Introdução passou a regular a matéria, nestes termos: “Art. 6º. A lei em vigor
terá efeito imediato e geral. Não atingirá, entretanto, salvo disposição em
contrário, as situações jurídicas definitivamente constituídas e a execução do
ato jurídico perfeito”.
65
A grande infelicidade do legislador ordinário foi, sem dúvida,
admitir expressamente a possibilidade ofensa às situações constituídas,
através da expressão “salvo disposição em contrário”, criando verdadeira
insegurança nas relações jurídicas. A reforma digna de louvor foi, por outro
lado, a introdução do “efeito imediato”, denotando o legislador a consciência
da diferença deste com o efeito retroativo. O efeito imediato passou, então, a
ser a regra, sendo a retroatividade exceção.
Salvo no tocante à previsão relativa ao “efeito imediato e geral”
que permaneceu em vigor, as demais modificações perpetradas pela Lei de
Introdução perduraram por apenas quatro anos, porquanto, readquirindo o
tema cunho constitucional, não foram recepcionadas pela Magna Carta de
18 de setembro de 1946, que no art. 141, § 3º, literalmente repetiu o teor art.
113, § 3º, da Constituição de 1934, retomando o hábito brasileiro de
proteção ao direito adquirido, in verbis: “A lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Harmonizando-se com o texto constitucional e compatibilizando a
regra de respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada
com a noção de efeito imediato, a Lei nº 3.238, de 1º de setembro de 1957,
alterou o art. 6º da Lei de Introdução, conferindo-lhe a seguinte redação:
Art. 6º. A Lei em vigor terá efeito imediato e geral,
respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a
coisa julgada. § 1º - Reputa-se ato jurídico perfeito o já
consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se
efetuou. § 2º - Consideram-se adquiridos assim os direitos
que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como
aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixado, ou
condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. §
3º - Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão
judicial de que já não caiba recurso.
66
Subseqüentemente, decorrente do golpe militar de 31 de março
de 1964, editou-se nova Constituição em 24 de janeiro de 1967, que não
produziu qualquer inovação para o direito intertemporal, ao repetir, em seu
art. 150, § 3º, o teor dos textos constitucionais de 1934 e 1946, nestes
modos: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a
coisa julgada”.
Igualmente, nada foi modificado pela Emenda Constitucional nº 1,
de 17 de outubro de 1969, a qual reproduziu o conteúdo das Cartas de 1934,
1946 e 1967, cujo teor do art. 153, § 3º, se transcreve: “A lei não prejudicará
o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Da mesma forma, a vigente Lei Fundamental, datada de 05 de
outubro de 1988, disciplina o assunto no art. 5º, XXXVI: “a lei não
prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. O
texto inspira-se, como se observa, nas Cartas Magnas de 1934, 1946, 1967
e na Emenda Constitucional nº 1 de 1969. Apesar das controvérsias
doutrinárias emanadas de algumas disposições121, o Código Civil de 2002
não alterou o cenário brasileiro respeitante aos regramentos gerais do direito
intertemporal, apenas instituindo regras transitórias.
121 Acirrada divergência relacionada ao tema em foco gira em torno do art. 2.035 onde: “A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, mas seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução”. Respeitado o entendimento daqueles que pensam o contrário, tais como Mário Luiz Delgado (2004, p. 82-90), parece clara a violação ao art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, inclusive para a própria teoria preconizada por Roubier (1960, p. 74-84), que ressalva a ultratividade da lei velha em tema de contratos privados.
67
5. AS PRINCIPAIS CONSTRUÇÕES DOUTRINÁRIAS SOBRE
O DIREITO INTERTEMPORAL
Posta a história evolutiva do princípio da irretroatividade das leis,
a escorreita compreensão do direito intertemporal igualmente não prescinde
da exposição e entendimento acerca do que escreveram os doutos que se
debruçaram sobre o tema.
Inúmeras obras científicas destinadas à solução do fenômeno da
intertemporalidade jurídica foram publicadas, principalmente a partir do
século XIX, marcado pelo notável avanço doutrinário na seara em comento.
Dentre partidários da doutrina do direito adquirido, igualmente nomeada de
doutrina clássica, destacam-se autores como Merlin, Blondeau, Mailhet de
Chassat, Chabot de Lailler, Demolombe, Théodosiadès, Baudry-
Lacantinerie, Josserand, Savatier, na França; Windscheid, Dernburg,
Savigny, Lamele, Lassalle, Von Tuhr, no direito germânico; no direito
italiano, Faredo, Gianturco, Lomanaco, Pacifici-Mazzoni, Venzi, Faggella e,
sobretudo, Gabba, considerado o maior representante desta doutrina.
Como opositores da doutrina clássica, sobressaem as figuras do
italiano Chironi, adepto da teoria dos fatos realizados, o alemão Affolter, com
sua teoria da exclusividade e o francês Roubier, que sedimentou a teoria da
situação jurídica e figurou como o criador da mais notável obra a condenar a
doutrina clássica.
A generalidade dos autores prefere resumir em duas as diversas
correntes doutrinárias que estão a sistematizar o complexo campo do direito
intertemporal. De um lado, a doutrina subjetiva ou clássica, a apreciar os
efeitos produzidos pela lei em relação aos sujeitos, ou seja, gravita em torno
da concepção de direito adquirido. De outro, a doutrina objetiva, a
considerar, não as conseqüências jurídicas que se produzem relativamente
68
aos sujeitos, mas o efeito da lei em geral ou a ação desenvolvida sobre os
fatos, o que abrangeria todas as demais concepções que não partem do
conceito de direito adquirido.
Ressaltemos, porém, como destaca José Eduardo Martins
Cardozo (1995), haver muito mais a idéia de predomínio de um direito sobre
o outro do que propriamente a exclusão recíproca, para fins de classificação
das correntes doutrinárias.122 A interpenetração é deveras inevitável, tanto
que entre as teorias subjetiva e objetiva há um campo comum, consistente
no princípio da não-retroatividade das leis e no respeito do que subjetivistas
denominam direito adquirido e os objetivistas como fatos acabados e
situações jurídicas, sendo “nominal” a diferença em “muitíssimas aplicações
práticas”.123
Igualmente, Carlos Maximiliano (1955) é peremptório no sentido
de que “na prática, o dissídio se reduz a proporções mínimas. Assim resulta,
porque, em verdade, o respeito pelas situações jurídicas definitivamente
constituídas importa em abstenção de aplicar os textos retroativamente”. O
referido autor aduz na seqüência que:
Cumpre assinalar, sem demora, que as expressões
adotadas pelas várias escolas de Direito Intertemporal
(teoria dos direitos adquiridos; da retroatividade das leis; dos
fatos jurídicos perfeitos, completados, consumados; das
situações jurídicas definitivamente constituídas) colimaram,
apenas, a precisão da linguagem; na essência, as várias
correntes se equivalem, tanto que as divergências
suscitadas na aplicação dos princípios basilares não se
ligam às diferenças de doutrina fundamental. Mais
dissentem, por exemplo, Faggella e Gabba, do que este a 122 CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 110-111. 123 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 303-304.
69
Roubier. Na verdade, quem atenta contra situação jurídica
definitiva, posterga direito adquirido, atribui ao texto recente
efeito retroativo.124
Ao encontro dessa orientação, temos Caio Mário da Silva Pereira
(1992), assim se expressando:
(...) as teorias subjetivistas e objetivistas não diferem
fundamentalmente nos resultados. Examinemos o princípio
da não-retroatividade partindo da noção de direito adquirido,
ou aplique-mo-lo em decorrência da situação jurídica
definitivamente constituída; em suas linhas gerais os efeitos
são os mesmos, pois uma disposição que tem eficácia
retrooperante, igualmente a ostenta na ofensa ao direito
adquirido ou no atentado à situação jurídica.125
Neste trabalho, nos propomos a discorrer somente as principais
correntes doutrinárias a respeito do tema e que, de algum modo, exerceram
influência no direito brasileiro, das quais avultam as figuras de Gabba e
Roubier.
5.1. Savigny
Na obra Sistema de Direito Romano Atual126, o doutrinador
alemão Savigny abordou o tema em debate que, no seu ensinar, se resolve
por meio de duas regras fundamentais: (a) as leis novas não têm efeito
retroativo; (b) as leis novas não devem atingir os direitos adquiridos.
124 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 9 e 13. 125 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 1. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 113. 126 In: LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao código
civil. Op. cit., p. 264-267.
70
Quanto à primeira regra, Savigny nega qualquer ação da lei nova
sobre os efeitos, anteriores ou posteriores, dos fatos passados, isto é, não
admite nem mesmo o efeito imediato da lei. No tocante à segunda, o
doutrinador estabelece a diferença entre direito adquirido e expectativa de
direito. Por direitos adquiridos entendem-se as relações jurídicas de uma
pessoa determinada, ao passo que a expectativa estaria fundada em lei
anterior, mas destruída pela nova lei, como no caso de alguém herdar ab
instestato de outrem, que só venha a falecer sob o império da nova lei que
exclui a qualidade daquele de herdeiro.
As duas fórmulas, porém, explica Savigny, somente se aplicam às
leis relativas à aquisição dos direitos, isto é, àquelas que estabelecem um
vínculo que liga um direito a um indivíduo, através do qual este se torna
titular de um direito.
Para outra categoria de leis, referente à existência dos direitos, a
regra é a retroatividade. Nesta segunda espécie de leis, se incluem as que
reconhecem uma instituição em geral, antes de se cogitar de sua aplicação a
um indivíduo. Subdividem-se em: (a) leis concernentes à existência ou à
inexistência de um instituto jurídico (v.g., quando se reconheceu a
escravidão e depois se fez sua abolição, quando foram extintas as relações
nascidas sob a égide da lei anterior); (b) leis relativas ao modo de existência
de um instituto (isto é, suas transformações, como uma lei que retira a
reivindicatória como forma de proteção à propriedade, limitando-na às ações
possessórias).
Conclui Savigny, todavia, que, malgrado sejam irretroativas as leis
que tratam da aquisição dos direitos e retroativas as de existência dos
direitos, ambas podem estar submetidas a princípios intertemporais diversos
desde que o determine expressamente o legislador.
71
Duras críticas foram endereçadas pelos doutos à concepção de
Savigny, notadamente pela dificuldade prática de se alinhar a diferença entre
uma e outra categoria de leis, em especial quando se cogita da modificação
de um instituto de direito. É o que inferem Eduardo Espínola e Eduardo
Espínola Filho (1943): “Embora se tenha reconhecido à doutrina de Savigny
valor científico, censura-lhe a insegurança do critério, por não haver, na
generalidade dos casos, uma separação nítida entre as duas categorias”.127
5.2. Gabba
Em seu tratado Teoria della Retroattività delle Leggi128, que aos
olhos de Miguel Maria de Serpa Lopes (1943) “sobrepujou todos os autores
que o precederam na matéria”129, Gabba assentou sua teoria no preceito
fundamental de que o limite da retroatividade das leis é o respeito aos
direitos adquiridos.
Após diferenciar os direitos consumados, onde a retroatividade
seria impossível, dos direitos adquiridos, ou seja, que ainda não foram
efetuados ou consumados, passou à conceituação de direito adquirido, que
no seu entender significa todo o direito que:
(a) é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo, em
virtude da lei do tempo em que o fato veio realizar, assim
como o momento de fazê-lo valer não se tenha apresentado
antes da vigência de uma nova lei relativa ao mesmo, e que
(b) nos termos da lei sob cujo império aconteceu o fato de
127 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo, 1943, p. 311. 128 In: LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código
Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 269-275. 129 Ibidem, p. 269.
72
que se originou, passa a fazer parte imediatamente do
patrimônio de quem o adquiriu.130
A partir dessa definição, Gabba passou a dissecar os diversos
elementos que compõe-na: o conceito de direito, o direito como elemento do
patrimônio e os fatos aquisitivos.
No tocante ao primeiro, aduziu que a concreta existência de um
direito pressupõe: (a) a ocorrência de um fato, do qual ou em virtude do qual
admite-se seja oriundo o direito; (b) a existência de uma lei, que daquele fato
faça provir o direito”. Segundo o autor, não devemos admitir nenhum direito
concreto, que não tenha fundamento em uma lei ou norma jurídica vigente
ao tempo em que o direito se produz, isto é, que não provenha de um fato ao
qual uma norma jurídica positiva, do tempo em que o fato se verifica, atribuía
tal virtude.
Quanto ao aspecto referente ao direito como elemento do
patrimônio, afirmava não bastar que o direito seja concreto, isto é, verificado
relativamente ao indivíduo em virtude de um fato idôneo, sendo
indispensável que se tenha tornado elemento do patrimônio individual.
Esclareceu que os direitos concretos e adquiridos são apenas aqueles que,
dentro das balizas do poder assegurado pelas leis referentes a pessoas e
coisas, se dirigem a um determinado e vantajoso efeito e surgem nos
indivíduos ou em virtude da humana operosidade ou por virtude direita da
130 Citando as palavras de Giobanni Lomonaco, Wilson de Souza Campos Batalha (1980) discorre sobre as inúmeras definições já existentes na literatura jurídica acerca do direito adquirido: “são adquiridos os direitos que se tornaram propriedade daquele que os exerce e, portanto, deles pode gozar e dispor pelo modo mais absoluto” (Meyer); “são adquiridos os direitos nascidos de fatos postos a ser, por modo perfeito, antes da nova lei, mas cujos efeitos ainda não consumaram” (Reinhard); “são as conseqüências de fatos realizados sob o império da lei antiga” (Demolombe); “são os direitos que, tendo sua possibilidade abstrata na lei, se uniram a um sujeito e receberam, ao mesmo tempo, uma determinação concreta em virtude de algum fato idôneo pela lei para produzir tal resultado” (Christiansen); “adquirido é todo direito fundado em um fato jurídico verificado, mas que ainda não se fez valer”. BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 106-107.
73
própria lei, em seguida a fatos e circunstâncias e segundo modos e
condições preestabelecidos por ela.
Prosseguiu afirmando que nem todos os direitos podem ser
chamados de adquiridos, porque não integram o patrimônio do indivíduo,
representando apenas mera possibilidade de direitos individuais. Seriam
direitos anteriores a toda e qualquer operosidade, tais os direitos referentes
a simples circunstâncias físico-naturais, como a menoridade. As leis
elementares ou fundamentais (leis que regulam o estado e a condição
pessoal do indivíduo) são de aplicação imediata, não se podendo conceber
direitos adquiridos senão quanto aos positivos efeitos que já haviam sido
realizados.
Ainda, para Gabba, os direitos integrantes do patrimônio somente
podem ser adquiridos se constituírem uma verdadeira utilidade ao indivíduo,
seja por concernir à privada individualidade, seja por se identificarem à
própria dignidade da pessoa humana. Por essa razão, excluiu da noção de
direitos adquiridos a matéria relativa ao direito público, propugnando pela
aplicação imediata todas as leis novas desse gênero.
Segundo Carlos Maximiliano (1955), em seus ensinamentos
Gabba assumiu que: “O direito que se relaciona, de modo direito e precípuo,
com o interesse público ou político, aplica-se imediatamente, modifica-se e
muda ao sabor das leis”.131
Por fim, quanto aos fatos aquisitivos, após argumentar que devem
consistir em uma modalidade daquela situação em que cada um se encontre
pelo simples fato de ser homem e que é necessário que determinada seja a
pessoa contra a qual o direito seja afirmado, Gabba passou a traçar os
requisitos essenciais dos fatos aquisitivos, a saber: (a) que sejam realizados
131 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 43.
74
por inteiro; (b) que sejam realizados em tempo idôneo, posteriormente ou
contemporaneamente à lei em que o direito se produz; (c) que aquele que
deste pretende utilizar-se tenha capacidade prescrita em lei; e (d) que
tenham sido observadas as formalidades legais, sob pena de nulidade.
Críticas não tardaram à doutrina dos direitos adquiridos, do qual
Gabba tornou-se o maior expoente, a começar pela própria expressão
direitos adquiridos, que Wilson de Souza Campos Batalha (1980) tem por
“vaga, fugidia”.132 Miguel Maria de Serpa Lopes (1943) vislumbra como uma
teoria em que “existe uma porcentagem de verdade, mas que é inadmissível
como um remédio integral, como uma classificação segura para todos os
casos de eficácia da lei no tempo”.133
Na voz de Vicente Ráo (2005), “dela se disse, justificadamente,
que sua definição do direito adquirido, restringindo-se aos direitos
patrimoniais, exclui sem razão os demais direitos, públicos ou privados, não
suscetíveis de apreciação econômica”.134
Não obstante a incapacidade de solucionar satisfatoriamente
todos os conflitos de leis no tempo, numerosos autores e legislações
modernas não deixam de basear-se constantemente em elementos da
doutrina ora em comento, propugnando expressamente a necessidade de
respeito aos direitos adquiridos.
No direito pátrio, influência do professor da Universidade de Pisa
é incontestável. Adeptos de sua teoria no Brasil não faltam, tais como
Reinaldo Porchat, Paulo de Lacerda e Limongi França. No âmbito legislativo,
revolvendo a evolução do direito intertemporal, se deduz que a expressão e 132 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 118. 133 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código
Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 279. 134 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 399.
75
o conceito de direitos adquiridos encontram-se verdadeiramente
incorporados à nossa história, que apenas em raros momentos deixou-lhes
de fazer menção.
Nesse sentido, assinala Wilson de Souza Campos Batalha (1980)
que:
(...) a doutrina do respeito ao direito adquirido como
fundamento da teoria da irretroatividade das leis foi muito
prestigiada, principalmente tal como Gabba a formulou. A
Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro apartou-se
dessa teoria, procurando aproximar-se dos doutrinamentos
de Roubier135, mas a Constituição Federal de 1946 volveu
os passos para trás, retornando ao ponto de vista da antiga
Lei de Introdução ao Código Civil (...) As Constituições
posteriores mantiveram a mesma diretriz”.136
5.3. Chironi
Opositor da doutrina dos direitos adquiridos, o italiano Chironi137
parte da concepção de que a lei nova, a partir de sua entrada em vigor,
regula todos os atos subordinados às suas normas, não disciplinando,
porém, os atos constituídos, perfeitos e acabados sob a égide da lei anterior
135 Refere-se o autor à redação da Lei de Introdução imposta em 4 de setembro de 1942, pelo Decreto nº 4.637. 136 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 112. A doutrina subjetiva apresenta a diferença entre direito adquirido, expectativa de direito e faculdades. Segundo Reinaldo Porchat (1909), expectativa de direito é “a mesma esperança de um direito que, pela ordem natural das coisas, e de acordo com a legislação existente, entrará provavelmente para o patrimônio de um indivíduo, quando se realize um acontecimento previsto”. A expectativa “se verifica toda vez que um direito desponta, porém lhe falta algum requisito para se completar”, do que é exemplo a sucessão quando existe apenas o testamento, faltando ainda advir o óbito do disponente, diz Carlos Maximiliano (1955, p. 45-46), que acrescenta: “Cumpre, outrossim, distinguir entre expectativas e faculdades que, originando-se de lei ou de fato do homem, se ligam à precedente direito adquirido; granjeado o direito, adquiridas ficam as faculdades oriundas do mesmo. Assim, a lei nova não pode sujeitar a novas condições, bem como suprimir faculdade abstrata inerente a certo direito adquirido; admite-se uma e outra atuação da norma recente, no tocante a expectativas”. 137 In: LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código
Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 279-280.
76
nem os efeitos já produzidos pelo texto primitivo, salvo se o legislador tiver
ordenado expressamente a retroatividade da lei nova.
Considera fato acabado aquele constituído definitivamente
relativamente ao ordenamento jurídico vigente, que lhe regulou inteiramente
a existência, ou seja, quando levado a efeito dá lugar à ação para sustentar
a sua existência ou nulidade, compreendendo todos os termos essenciais
que a lei ou as partes atribuírem à sua existência.
5.4. Affolter
Affolter138 pressupõe a existência de duas regras de direito
intertemporal: a primeira, anterior, segundo a qual os fatos e relações
jurídicas são regidos pela lei sob cujo império nasceram, ainda que
sobrevenha a revogação da norma (a eficácia da lei antiga prossegue, a
despeito de não mais vigorar); a segunda, posterior, permite que a nova lei
venha, preenchidas certas condições, excluir a aplicação da lei anterior, o
que ocorrerá se o sentimento jurídico ou a razão do legislador se tornarem
contrárias à norma antiga, que deixará de ser eficaz.
O jurisconsulto alemão propõe a substituição do termo
“retroatividade” por “exclusividade”, de modo que, no silêncio do legislador, o
novo ordenamento não exclui a aplicação do texto primitivo; a exclusão se
dá em quatro graus: (a) simples, quando a lei nova atinge apenas os novos
efeitos das relações anteriores; (b) agravada, se as conseqüências
anteriores são atingidas pela nova lei; (c) radical, quando as conseqüências
dos fatos anteriores são tratadas como se a lei nova já existisse ao tempo de
sua formação; e (d) restritiva, caso o novo texto afete as causae judicatae e
os negotia finita.
138 In: FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 58-59.
77
Assim, à lei nova incumbe, salvo disposição em contrário,
respeitar as relações jurídicas pendentes em todos os seus efeitos, inclusive
futuros.
5.5. Duguit e Jéze
No intento de superar as dificuldades encerradas pela doutrina do
direito adquirido, além das já mencionadas, novas concepções surgiram
como resposta à necessidade de se manterem invioladas certas situações
jurídicas constituídas na vigência da lei anterior.
Assim é que os franceses Léon Duguit e Gaston Jéze139 iniciam a
distinção entre situações jurídicas subjetivas e situações jurídicas objetivas.
Segundo Duguit, as situações jurídicas individuais ou subjetivas, derivadas
de manifestações individuais de vontade, não podem ser atingidas pela lei
nova, ao passo que as situações jurídicas objetivas, derivadas diretamente
da lei, ainda quando nasçam em seguida a um ato de vontade, seguem
todas as transformações da lei e uma lei nova modificará uma situação legal
nascida anteriormente sem que com isso produza efeito retroativo.
Ao seu turno, são apontadas por Jéze quatro diferenças entre as
duas espécies de situações, a saber: (a) a situação jurídica legal é geral,
impessoal (como por exemplo, a situação do proprietário, do marido etc); já
a situação jurídica individual é caracterizada por uma manifestação de
vontade especial (exemplo: adquire-se certo bem por determinado preço; se
é legatário de tal quantia); (b) a situação jurídica legal é permanente, de
forma que o poder jurídico que dela deriva pode exercido indefinidamente;
ao revés, a situação jurídica individual é temporária (exemplo: o adquirente
libera-se da obrigação ao pagar o preço; o vendedor quando entrega a
coisa); (c) a situação jurídica legal é modificável pela lei, ao contrário das
139 In: ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1.Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1943, p. 315.
78
situações individuais cujo conteúdo não pode ser modificado pela lei, pois
esta só trata de fórmulas abstratas e gerais; e (d) a situação jurídica legal é
insuscetível de renúncia (v.g., não se pode renunciar ao se casar ou ao ser
proprietário); a situação jurídica individual é renunciável (o titular de um
crédito, por exemplo, pode renunciar a exigir do devedor).
A doutrina não deixa de parecer interessante à primeira vista,
mas, como argumentam Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho (1943):
Nos pontos extremos, a distinção será simples; mas, não
raro, surge a dúvida se a situação, determinada por um ato
jurídico, tem esse ato como causa ou origem, ou se não
passa de uma condição de aplicação da lei. E isso,
principalmente, quando se considere que os efeitos dos atos
jurídicos resultam sempre, ainda que algumas vezes
indiretamente, do reconhecimento da lei.140
5.6. Roubier
Igualmente crítico da doutrina do direito adquirido, entendendo
que não confere solução exata ao problema da intertemporalidade,
sobreveio a doutrina das situações jurídicas de Roubier, aqui exposta de
modo resumido, encartada nas obras Les Conflits de Lois Dans Le Temps,
publicada em 1929, posteriormente apresentada em 1960 sob o título Le
Droit Transitoire.
Destaca Limongi França (1998) que, dentre os escritores
franceses que condenaram a doutrina dos direitos adquiridos, a obra de
Roubier “é mais erudita de quantas se escreveram nesse diapasão, como
ainda foi aquela que, tendo sedimentado em termos claros a noção de
140 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. Op. cit., p. 318.
79
situação jurídica, exerceu maior influência na generalidade dos escritores
franceses como estrangeiros”.141
O jurista francês inicia pela distinção entre efeito retroativo e efeito
imediato da lei, estabelecendo, para tanto, três categorias de fatos: (a) facta
praeterita, (b) facta pendentia e (c) facta futura. O efeito retroativo, proibido
(somente admissível se o legislador o faz de modo expresso), representa a
aplicação da lei ao passado e o efeito imediato, que é a regra, ao presente.
Se a lei pretende se aplicar aos fatos realizados (facta praeterita),
ela é retroativa. Em relação às situações em curso (facta pendentia), cumpre
separar as partes anteriores à nova lei, sobre as quais a lei não incide pena
de retroatividade, e as posteriores, para as quais se aplicará a nova
legislação em razão de seu efeito imediato. Por fim, quanto aos fatos futuros
(facta futura), inexiste risco de retroatividade. 142
Paul Roubier (1960) detalha sua teoria baseando-se na noção de
situação jurídica, que ao seu ver seria mais ampla às concepções de direito
adquirido e relações jurídicas. À primeira seria superior, porque se aplica às
situações como a do menor, do interdito e do pródigo; à segunda, pois não
envolveria apenas relação direta entre duas pessoas.143
Referido autor também afirma que o ciclo de desenvolvimento de
uma situação jurídica compreende duas fases: (a) dinâmica, referente à
constituição (ou extinção) da situação jurídica, e (b) estática, relativa aos
efeitos da situação já constituída.
141 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 60. 142 ROUBIER, Paul. Lei droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2ª ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960, p. 177. 143 Ibidem, p. 181.
80
Tratando-se de disciplinar a constituição (ou extinção) da situação
jurídica, a lei nova não pode, pena de retroatividade, atingir fatos anteriores
que determinaram a constituição (ou extinção) da situação jurídica.
Igualmente, fatos que não determinaram a constituição (ou extinção) de uma
situação jurídica pela lei vigorante ao tempo em que produzidos não podem
ser considerados pela lei nova aptos a fazê-lo.144
Cuidando-se de fixar os efeitos da situação jurídica, seria
retroativa a lei que atingisse os efeitos produzidos sob a égide da lei antiga;
em princípio, a lei nova aplica-se aos efeitos produzidos após sua entrada
em vigor, em razão do efeito imediato.145
Segue propugnando que, em certas matérias, nenhum efeito
(retroativo ou imediato) se aplica, como nos contratos anteriormente
constituídos, caso em que ocorre a sobrevivência da lei antiga.146
À semelhança da teoria de Gabba, a prestigiada doutrina das
situações jurídicas de Roubier não ficou estreme de dúvidas e críticas.
Wilson de Souza Campos Batalha (1980) assinala a possibilidade de
acarretar “graves inconvenientes de insegurança jurídica” na sua aplicação
prática.147
144 Ibidem, p. 182. 145 Ibidem, p. 183. Galeno Lacerda (1974), apoiando-se nas lições de Roubier, afirmou corretamente, por ocasião da entrada em vigor do CPC de 1973, o qual introduziu nova causa de extinção do processo sem julgamento do mérito (quando o processo ficar parado por mais de um ano por negligência das partes), que não poderia ser computado na contagem do prazo de paralisação período de tempo transcorrido sob a lei antiga, que não previa tal causa de extinção. LACERDA, Galeno. O
novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 30. 146 Wilson de Souza Campos Batalha (1980) discorre sobre o pensamento do doutrinador francês: “Paul Roubier firmava o princípio da aplicação imediata da lei: as leis novas que determinam os efeitos das situações jurídicas não-contratuais aplicam-se imediatamente às situações jurídicas criadas antes da sua entrada em vigor, ao passo que, em regra, as leis anteriores continuam a reger os efeitos dos contratos em curso”. BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 190. 147 Ibidem, p. 157.
81
Rebatendo a argumentação de Roubier quanto às imprecisões da
idéia de direito adquirido, Limongi França (1998) prega que “a noção de
situação jurídica é ainda mais fluida”.148
A despeito disso, tida por “admiravelmente arquitetada” para
Wilson de Souza Campos Batalha (1980)149, elogios não são economizados
à teoria de Roubier pelos tratadistas brasileiros.
Sobre o assunto, referem Eduardo Espínola e Eduardo Espínola
Filho (1943) que “a teoria de Roubier fornece preciosos subsídios para a
solução, muitas vezes delicada e cheia de sutilezas, dos conflitos legislativos
no tempo. Demonstram-no, de modo geral, as minuciosas considerações, a
que acabamos de nos referir”.150 A jurisprudência, inclusive do Supremo
Tribunal Federal151, também não deixa de alicerçar suas decisões nos
ensinamentos do doutrinador francês.
148 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 66. 149 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 190. 150 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/Freitas Bastos, 1943, p. 333-334. 151 “Recurso Extraordinário nº 219.434-0 - Distrito Federal - Primeira Turma Relator: Min. Moreira Alves - Recorrente: Caixa Econômica Federal – CEF Advogados: Hamilton Vieira Pinto e outros - Recorridos: Paulo Mourão Monteiro e outros - Advogados: Alcino Guedes Da Silva e outros - Advogados: Alde da Costa Santos Junior - Engenheiros Credenciados. Reconhecimento de relação de emprego. Alegação de acumulação vedada constitucionalmente. - A relação de emprego em causa foi reconhecida como existente antes do advento da Constituição de 1988, e, portanto, quando a Carta Magna anterior não exigia concurso público para o ingresso em emprego em empresa pública ou sociedade de economia mista, o que não fere o disposto no artigo 37, “caput” e inciso II, da atual Constituição, porque, se é certo que a Carta Magna tem aplicação imediata, e, portanto, e retroativa em grau mínimo (daí dizer-se que não há direito adquirido contra a Constituição), também é certo que, salvo quando ela expressamente o declara, não atinge ela, para desconstitui-los, fatos ocorridos no passado, como salienta Roubier ("Les Conflits de Lois dans le Temps", II, nº 122, p. 471, Recueil Sirey, Paris, 1933) ao observar que, "se, por exemplo, uma lei muda as condições do recrutamento de certas funções públicas, essa lei não terá efeito em face dos funcionários já nomeados, mas terá efeito imediato para todas as nomeações ulteriores". - Nesse sentido, já decidiu esta Primeira Turma, ao acentuar, no AGRRE 230.248, "ao tempo em que reconhecido o vínculo trabalhista entre as partes (fevereiro de 1982) as empresas públicas não se submetiam a regra constitucional do concurso publico". - Somente com relação a dois dos reclamantes não reconheceu o acórdão recorrido a ocorrência de acumulação de empregos vedada constitucionalmente, e isso porque, em última análise, não a teve como comprovada, não sendo cabível o recurso extraordinário para reexame de prova (súmula 271). Recurso extraordinário não conhecido” (RTJ nº 183). Conveniente, ainda, trazer à colação voto do mesmo Ministro Moreira Alves proferido na ADIn 493/0 - DF, julgada pelo Pleno do
82
Majoritariamente a doutrina acolhe, ainda, a concepção de
Roubier segundo a qual a noção de situação jurídica ultrapassa a dos
direitos adquiridos, compreendendo até o quadro dos direitos
condicionais152, embora, repita-se, os resultados a que chegam as teorias se
equivalem na maioria dos casos.153
Assim como Gabba, Roubier exerceu inequívoca influência na
legislação pátria, tanto que a redação da Lei de Introdução de 1916,
emanada em 4 de setembro de 1942 do Decreto nº 4.637, aludiu às
expressões “efeito imediato” e “situações jurídicas”, certo que a primeira
consta da atual redação da aludida norma.
STF em 25 de junho de 1992, ementa de acórdão publicada no DJ de 04.09.1992, p. 14.089, do seguinte teor: “'Aliás, no Brasil, sendo o princípio do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada de natureza constitucional, sem qualquer exceção a qualquer espécie de legislação ordinária, não tem sentido a afirmação de muitos - apegados ao direito de países em que o preceito é de origem meramente legal - de que as leis de ordem pública se aplicam de imediato alcançando os efeitos futuros do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, e isso porque, se alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo modificação na causa, o que é vedado constitucionalmente'... Roubier (ob. cit. nº 83, págs. 417 e segs.) - um dos clássicos da teoria do direito intertemporal - a critica veementemente. Depois de afirmar que 'essa teoria da retroatividade das leis de ordem pública, sob a forma por que se queira apresentar, deve ser pura e simplesmente rejeitada' (...), dá, para isso, três razões, das quais a primeira, que é a principal, é esta: 'A idéia de ordem pública não pode ser posta em oposição ao princípio da não-retroatividade da lei, pelo motivo decisivo de que, numa ordem jurídica fundada na lei, a não-retroatividade das leis é ela mesma uma das colunas de ordem pública. ... A lei retroativa é, em princípio, contrária à ordem pública; e, se excepcionalmente o legislador pode comunicar a uma lei a retroatividade, não conviria imaginar que, com isso, ele fortalece a ordem pública; ao contrário, é um fermento de anarquia que ele introduz na sociedade, razão por que não deve ser usada a retroatividade senão com a mais extrema reserva. (...)'. Se essas palavras são candentes de verdade em países aonde o princípio da irretroatividade é meramente legal, não o serão nos em que este princípio está inserto na Constituição, entre as garantias fundamentais?”. 152 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo : Freitas Bastos, 1943, p. 362. BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 191. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 305. 153 É de Carlos Maximiliano (1955): “Uma sobreleva à outra, quanto à propriedade das expressões; porém, na prática, o dissídio se reduz proporções mínimas”. MAXIMILIANO, Carlos. Direito
intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 9.
83
6. RETROATIVIDADE, EFICÁCIA IMEDIATA E
ULTRATIVIDADE
6.1. Retroatividade e Eficácia Imediata
A retrooperância da lei é fenômeno ocorrente em qualquer campo
do direito (penal, civil, processual etc.). Urge, então, estabelecermos um
conceito único, aplicável a qualquer ramo da ciência jurídica, o que, porém,
não induz igualdade de tratamento no tocante à sua admissibilidade.
De fato, a conceituação de retroatividade não se confunde com a
verificação das hipóteses nas quais ela se afigura permitida pelo
ordenamento jurídico. Assim, em nada pode interferir no desvendar do
conceito, que é universal, o fato de, por exemplo, retroagir a lei penal para
beneficiar o réu (Constituição Federal, art. 5º, XL) ou, ainda, não ser lícito à
lei prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada
(Constituição Federal, art. 5º, XXXVI). Tais casos referem-se à
admissibilidade e não à definição do que se tenha por retroatividade.
Posta essa premissa, passamos à conceituação do instituto, não
sem antes registrar o dissenso doutrinário havido em torno do tema. Já
afirmamos ser objeto do direito intertemporal a regulação das situações
pendentes, iniciadas no pretérito e que continuam a gerar efeitos no
presente. A controvérsia doutrinária encontra-se justamente nos efeitos
futuros, ainda não verificados, do ato precedente. Alguns entendem que há
retroatividade se a lei atinge tais efeitos, enquanto outros afirmam que tal é
resultado do mero efeito imediato da lei.
Silvio Rodrigues (2005), por exemplo, é adepto da primeira
corrente, asseverando que “o problema se apresenta quando fatos, nascidos
sob o regime de uma lei, procedem em trânsito até serem apanhados por
84
uma lei nova, que revoga a anterior. E a questão fundamental é a de saber
se a lei nova pode retroagir apanhando os efeitos daqueles fatos”, dizendo
ser “retroativa a lei que procura alcançar os efeitos” dos mesmos.154
Tal posição é inspirada nos ensinamentos de Gabba, que afirma
ser justa a retroatividade quando não se depara, na sua aplicação, qualquer
ofensa ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada; e
injusta, quando ocorre esta afronta.155
Os doutos que partilham dessa mesma posição apresentam,
ainda, distinção entre graus de retroatividade: máxima, média ou mínima.
Segundo José Carlos de Matos Peixoto (1960), dá-se:
(...) a retroatividade máxima, também chamada restitutória,
quando a lei nova abrange a coisa julgada (sentença
irrecorrível) ou os fatos jurídicos consumados. Está, nesse
caso, por exemplo, a lei canônica que aboliu a usura e
obrigava o credor solvável a restituir ao devedor, aos seus
herdeiros ou, na falta destes, aos pobres os juros já
recebidos. Também o era a lei francesa de 12 brumário do
ano II (3 nov. 1793), que admitia os filhos naturais à
sucessão paterna e materna, em igualdade de condições
com os filhos legítimos, desde 14 de julho de 1789, data em
que, segundo as idéias revolucionárias da época, “les droits
de la nature ont repris leur empire”. A retroatividade operava
radicalmente no passado até a data referida, refazendo
mesmo as partilhas definitivamente julgadas. A
retroatividade é média, quando a lei nova atinge os direitos
exigíveis, mas não realizados antes de sua vigência.
Exemplo: uma lei que diminuísse a taxa de juros e se
aplicasse aos já vencidos, mas não pagos. Enfim, a
154 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. v. 1. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 26-28. 155 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. v. 1. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 31-32.
85
retroatividade é mínima (também chamada temperada ou
mitigada), quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos
fatos anteriores, verificados após a data em que a Lei entra
em vigor. Tal é a Constituição de Justiniano que limitou a
6% em geral, após a sua vigência, a taxa de juros dos
contratos anteriores. No mesmo caso está o Dec. 22.626, de
7 de abril de 1993 (Lei de Usura), que reduziu a 12% em
geral as taxas dos juros vencidos após a data de sua
obrigatoriedade.156
Em todos esses casos, esclarece Washington de Barros Monteiro
(1997) que a “retroatividade é injusta, porque com ela se verifica lesão,
maior ou menor, a diretos individuais”.157
Não nos parece seja essa a posição tecnicamente mais
adequada, “data venia”. Para a teoria geral do direito, retroagir significa “ter
ação sobre o que já foi feito ou sobre o passado”.158 É a atividade da lei para
trás, ou seja, a lei nova invade período de tempo anterior ao momento de
sua entrada em vigor, modificando a realidade jurídica então existente, da
qual adveio ou não direito adquirido.
Roubier (1960) foi quem nos ofereceu a escorreita distinção entre
efeitos retroativo e imediato da lei, afirmando que se a lei pretende se aplicar
aos fatos realizados (facta praeterita), ela é retroativa; em relação às
situações em curso (facta pendentia), cumpre separar as partes anteriores,
sobre as quais a lei nova não incide pena de retroatividade, e as posteriores,
nas quais incidirá a legislação atual em razão de seu efeito imediato. Por fim,
156 PEIXOTO, José Carlos de Matos. Curso de direito romano. 4ª ed. Rio de Janeiro: Haddad, 1960, p. 231-232. 157 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Op. cit., p. 32. 158 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. v. 4. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 200.
86
quanto aos fatos futuros (facta futura), diz não haver retroatividade
possível.159
Ora, fica claro, assim, que por efeito imediato entende-se a
aplicação da lei aos fatos futuros e às partes posteriores dos fatos
pendentes, inexistindo, nesta segunda hipótese, qualquer projeção da lei
sobre o pretérito.
Em relação aos graus de retroatividade, propostos pela primeira
corrente, Arnold Wald (1995) ressalta acertadamente que “a retroatividade
mínima”, que implica sujeitar à nova norma conseqüências posteriores de
atos jurídicos praticados na vigência da lei anterior, se “confunde com o
efeito imediato da lei”.160
Portanto, o atingir da lei nova sobre tudo quanto ocorra a partir do
momento em que entra em vigor, inclusive sobre efeitos não aperfeiçoados
de atos precedentes, é mera expressão da eficácia imediata da lei.
Tal conclusão não significa, de modo algum, que possa a lei nova
emanar eficácia sobre todos os efeitos futuros dos atos ou fatos passados,
questão a envolver a admissibilidade da retrooperância ou não da lei. Isso
porque, não poderá a lei nova projetar eficácia imediata sobre os efeitos não
produzidos de um direito adquirido, por força do que dispõe a Constituição
Federal.
Assim o é porque, dizem Eduardo Espínola e Eduardo Espínola
Filho (1943), segundo “Gabba, com apoio de autores e da jurisprudência, na
Itália, temos esta orientação: todas as conseqüências do direito adquirido
devem-se considerar-se, também, direitos adquiridos, quando sejam
159 ROUBIER, Paul. Lei droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2ª ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960, p. 177. 160 WALD, Arnold. Curso de direito civil brasileiro. Introdução e Parte Geral. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 91-108.
87
verdadeiras e próprias conseqüências daquele direito”.161 Na mesma linha,
são as palavras de Carlos Maximiliano (1955):
A teoria clássica subordina os efeitos de um direito ao
império da lei sob o qual o mesmo foi adquirido, isto é, ao
domínio da norma vigorante na data em que se efetuou o
ato ou fato originador do direito referido. Trata-se de efeitos
legais do direito principal, isto é, já previstos pela norma
anterior, ou inseparáveis do direito referido e, participantes
da mesma natureza; não de efeitos ocasionais, não
previsíveis nem previstos, ou que possam derivar de fatos
eventuais.162
Portanto, o efeito imediato, que é a regra, caracteriza-se pela
aplicabilidade da lei, no exato momento em que passa a vigorar, às
situações jurídicas futuras e aos efeitos que se produzirem a partir de então
das situações nascidas no pretérito163; haverá indevida eficácia imediata (e
não retroatividade), porém, se aplicada aos efeitos futuros decorrentes de
uma situação jurídica definitivamente constituída no passado e da qual tenha
se originado um direito adquirido. As conseqüências não produzidas, então,
do direito adquirido (expressão na qual se inserem o ato jurídico perfeito e
coisa julgada, como se verá) são resguardadas da incidência da lei nova.
6.2. Pós-Atividade ou Ultratividade da Lei Velha
Pós-atividade ou ultratividade significa a aplicação da lei para
além do seu período de vigência, isto é, a lei revogada continua eficaz de
forma a aplicar-se aos efeitos futuros de um ato passado, isto é, produzidos
sob o império de uma nova lei. Por tal modo de projeção da lei no tempo
161 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo : Freitas Bastos, 1943, p. 358-359. 162 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 34. 163 A máxima tempus regit actum resulta da regra do efeito imediato das leis.
88
serão excluídos tanto os efeitos retroativos quanto os imediatos da lei nova,
a qual se tem por inaplicável, na hipótese, aos efeitos jurídicos de fatos
anteriores à sua entrada em vigor.
É verificável de dois casos: primeiro, quando o ordenamento
jurídico estabelece regras gerais de intangibilidade de situações jurídicas
constituídas no passado, à maneira do art. 5º, XXXVI, da Constituição da
República; segundo, quando a lei nova cria regramento específico para
tratamento de determinada matéria originada no pretérito, a exemplo do art.
192 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que regulou recuperação
judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária,
ao dispor no caput, in verbis: “Art. 192. Esta Lei não se aplica aos processos
de falência ou de concordata ajuizados anteriormente ao início de sua
vigência, que serão concluídos nos termos do Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de
junho de 1945”.164
Nem sempre, pois, a ultratividade é conseqüência da preservação
das situações jurídicas definitivamente constituídas no passado (v.g,
contratos privados), podendo sê-la, em algumas hipóteses, de decisão
legislativa por meio da qual se afigura conveniente o protraimento do
alcance da lei nova no tempo.
A pós-atividade, nesta segunda hipótese, pertence, a rigor, ao
campo do direito transitório, inexistindo propriamente conflito normativo no
tempo, porque estabelecida por determinada lei através das suas
disposições transitórias, nas quais o legislador entende por bem preservar a
eficácia do diploma revogado de modo a evitar a insegurança jurídica que
poderia advir caso a lei nova silenciasse a respeito, vale dizer, evita-se o
164 A existência da ultratividade é acolhida de há muito pelo direito brasileiro, ao contrário do que, “data venia”, sustenta Limongi França (1998), segundo o qual o instituto nada tem a ver com o nosso sistema vigente. Outro exemplo de ultratividade por opção do legislador foi disciplinado no art. 76 da Lei 8.245, de 18.10.91 (Lei de Locações), nestes termos: “Não se aplicam as disposições desta lei aos processos em curso”.
89
surgimento de dúvidas a respeito da aplicabilidade ou não do novel comando
legislativo ao fato pendente.
90
7. FUNDAMENTOS DO PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE E
DO RESPEITO AO DIREITO ADQUIRIDO
Acertadamente diz Limongi França (1998) que os princípios da
irretroatividade das leis e da observância ao direito adquirido resultam de
“uma imposição da própria natureza das coisas”, registrando que na doutrina
do século XVIII já despontava esta concepção jusnaturalista, de que foi
destaque a obra Les lois civiles dans leur ordre naturel de Domat, datada de
1756.165
Vicente Ráo (2005), valendo-se dos ensinamentos de Portalis e
Lomonaco, igualmente assevera que a inviolabilidade do passado é princípio
que encontra fundamento na própria natureza do ser humano.166 Sem
dissentir, Miguel Maria de Serpa Lopes (1943) defende a idéia de que a
irretroatividade da lei parte de uma concepção natural, de um sentimento
profundo das necessidades humanas, sendo, por isso, indubitável que aos
romanos não haja escapado essa percepção, a despeito de inexistirem, nas
primeiras leis, dispositivos reguladores da matéria.167
Também para Lassalle apud Reynaldo Porchat (1909) o
“verdadeiro fundamento do respeito aos direitos adquiridos está, pois, na
inviolabilidade da personalidade humana, e na inseparabilidade do conceito
do direito e do de uma pessoa que pensa e quer viver livremente”.168
Entendimento contrário é sustentado por José Eduardo Martins
Cardozo (1995), para quem as regras de direito intertemporal não são
165 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 6-7 e 37. 166 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 389. 167 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 235. 168 In: PORCHAT, Reynaldo. Da retroactividade das leis civis. São Paulo: Duprat & Comp., 1909, p. 34.
91
ditadas por uma razão natural, nem resultantes da luta pela justiça, mas sim
“produtos da história humana, das suas contradições, das suas
necessidades econômicas e sociais, sempre postas ao longo de um
contínuo processo de transformação”.169
O referido autor justifica seu posicionamento com a importante
constatação de que os dois grandes períodos de notável evolução do direito
intertemporal (séculos II a.C. e XIX) ocorreram em momentos históricos de
transformações econômico-sociais, nos quais a expansão das relações
comerciais adquiriu uma expressão até então inexistente, o que exigiu a
criação de regramentos com o fim de garantir previsibilidade aos negócios
jurídicos que se avolumaram e se tornaram mais complexos. O primeiro
período emerge da antiga Roma do século II a.C., em que o
desenvolvimento do comércio foi fruto de um processo de conquistas
militares, ao passo que o segundo período, século XIX, coincide ruptura da
velha ordem feudal e a consolidação do capitalismo, no qual o comércio e o
liberalismo se destacaram nessa nova realidade.
A bem da verdade, porém, a historicidade das regras de direito
intertemporal não rechaça a fundamentação estribada no direito natural, com
o devido respeito daqueles que pensam de modo diverso. O direito natural
não representa, enfatiza Miguel Reale (1991):
Nada de abstrato ou abstraído do processo histórico, pois é
por ocasião deste que se nos revela como condição
transcendental de possibilidade da vida do Direito. No fundo,
equivale ao conjunto das condições transcendental-
axiológicas que tornam a experiência jurídica possível.170
169 CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 99. 170 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 591.
92
As opiniões, portanto, se conciliam, pois inexiste
incompatibilidade, como se poderia supor, entre processo histórico e direito
natural. Lícito afirmar que as normas irretroativas e as que resguardaram
direitos adquiridos foram editadas ao longo da história porque os homens
sentiram a necessidade de externarem, em especial em períodos de grande
desenvolvimento das relações comerciais, o sentimento natural de
inviolabilidade ao passado e não por suportarem conviver com
imprevisibilidades e constantes ameaças de invasão aos bens legitimamente
conquistados.
Sobre o assunto, Alexandre de Moraes (1998), examinando as
diversas teorias que procuram explicar a base dos direitos humanos
fundamentais, entre os quais se insere o art. 5º, XXXVI, da Lei Maior,
reconhece a influência direito natural, ao afirmar:
(...) as teorias se completam, devendo coexistir, pois
somente a partir da formação de uma consciência social
(teoria de Perelman), baseada principalmente em valores
fixados na crença de uma ordem superior, universal e
imutável (teoria jusnaturalista) é que o legislador ou os
tribunais (esses principalmente nos países anglo-saxões)
encontram substrato político e social para reconhecerem a
existência de determinados direitos humanos fundamentais
como integrantes do ordenamento jurídico (teoria
positivista). O caminho inverso também é verdadeiro, pois o
legislador ou os tribunais necessitam fundamentar o
reconhecimento ou a própria criação de novos direitos
humanos a partir de uma evolução de consciência social,
baseada em fatores sociais, econômicos, políticos e
religiosos.171
171 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Altas, 1998, p. 35.
93
Intangíveis, pois, o pretérito e os direitos conquistados através
dos tempos, que escapam ao império da lei nova, por necessidade do
homem, que deve ter preservada a sua dignidade.
Poderia soar supérflua firmarmos a proposição de que a
irretroatividade e o respeito ao direito adquirido fundam-se no direito natural.
Afinal, hodiernamente, encontra-se enfraquecida dicotomia direito
natural/direito positivo, em razão da própria positivação dos direitos naturais.
É o que leciona Tercio Sampaio Ferraz Junior (2001), no sentido
de que uma das razões do enfraquecimento da dualidade pode ser
localizada na promulgação constitucional dos direitos fundamentais; “essa
promulgação, o estabelecimento do direito natural na forma de normas
postas na Constituição, de algum modo ‘positivou-o’”. E, depois, a
proliferação dos direitos fundamentais, a princípio, conjunto de supremos
direitos individuais e, posteriormente, de direitos sociais, políticos,
econômicos aos quais se acrescem hoje direitos ecológicos, direitos
especiais das crianças, das mulheres etc., provocou progressivamente sua
trivialização.172
Ressaltemos, contudo, que nem todos os direitos naturais
encontram-se formalmente plasmados na Constituição, como é o caso, na
maioria dos ordenamentos jurídicos, dos princípios da irretroatividade das
leis e do respeito ao direito adquirido.
Portanto, a premissa ora estabelecida é deveras relevante para
firmarmos a idéia de que a irretroatividade e a observância ao direito
adquirido devem ser consideradas como regras nos ordenamentos em geral,
ainda que o legislador não faça expressa menção a esse respeito.
172 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 168.
94
Mas é de perquirirmos: por qual razão os princípios em foco
encontram alicerce na natureza do ser humano? Porque o homem precisa
de estabilidade e previsibilidade nas relações jurídicas travada com seus
semelhantes, o que se traduz no sinônimo de segurança, palavra
representativa do valor informativo da proibição à retroprojeção das leis e do
respeito ao direito adquirido.
Preciosos, nesse passo, são os ensinamentos de Miguel Reale
(1991), no sentido de que, embora não sejam imutáveis:
(...) o normal é que as regras jurídicas se destinem a durar,
satisfazendo um dos princípios basilares da vida jurídica que
é o da economia das formas. Os juristas somos, por sinal,
muitas vezes acusados de certo conservantismo, pelo
apego às leis prudentemente elaboradas, em torno das
quais já se constituiu todo um sistema de critérios éticos e
de categorias lógicas, aliando-se o fino lavor da doutrina à
diuturna experiência jurisdicional. As transformações
bruscas, assim como as mudanças incessantes não se
compadecem com o sentido ideal do Direito, que é o da
harmonia da justiça com a certeza e segurança.173
Aliás, o valor segurança, ordem ou certeza, é indissociável do
Direito, da própria experiência jurídica, sendo vivificado desde os filósofos
gregos e os jurisconsultos romanos até nossos dias.174 É, em outro tom,
elemento constitutivo do Estado de Direito, nas esclarecedoras lições de
José Joaquim Gomes Canotilho (1991), cuja transcrição se faz imperativa
como pressuposto necessário à compreensão do tema:
Partindo da idéia de que o homem necessita de uma certa
segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e
173 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 562-563. 174 Ibidem, p. 595.
95
responsavelmente a sua vida, desde cedo se considerou
como elementos constitutivos do Estado de direito os dois
princípios seguintes: o princípio da segurança jurídica e o
princípio da confiança do cidadão.175
Segundo o mencionado autor:
Os princípios da proteção da confiança e de segurança
jurídica podem formular-se assim: o cidadão deve poder
confiar em que aos actos ou às decisões públicas incidentes
sobre os seus direitos, posições e relações, praticados de
acordo com as normas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos
duradouros, previstos ou calculados com base nessas
mesmas normas. Estes princípios apontam basicamente
para: (a) a proibição de leis retroactivas; (b) a
inalterabilidade do caso julgado, (c) a tendencial
irrevogabilidade de actos administrativos constitutivos de
direitos.176
Com a lei retrooperante, que representa para Lassalle apud
Carlos Maximiliano (1955) “a negação de toda a juridicidade”177, aniquila o
Estado a certeza que outrora ele próprio alimentara no homem, de viver
confiando nas leis vigentes ao tempo da consolidação das situações que
constituíra, além de descumprir sua função primordial consistente em “criar
condições que assegurem ao homem, em sociedade, evoluir, material e
espiritualmente, o que se dá através do desenvolvimento e da manutenção
dos direitos fundamentais”.178
175 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 375-378. 176 Ibidem, p. 375-378. 177 In: MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 24. 178 BRAGA, Sidney da Silva. Iniciativa probatória do juiz no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 11.
96
Assim, por necessidade inerente à condição humana, o direito
veda, em regra, a edição de leis retroativas e lesivas a direitos adquiridos,
com vistas a proporcionar segurança e certeza nas relações jurídicas.179
179 José Eduardo Martins Cardozo (1995, p. 102) comenta que “os autores não têm logrado chegar a um consenso, embora nem sempre tornem explícitas estas divergências” quanto ao fundamento das regras de direito intertemporal, pois parte da doutrina tem-no na inviolabilidade da pessoa humana e outro segmento cogita da idéia de segurança jurídica. Com a devida vênia, inexiste divergência doutrinária. A segurança é apenas conseqüência da necessidade de inviolabilidade à pessoa humana.
97
8. A INTERPRETAÇÃO DO TEXTO CONSTITUCIONAL
8.1. A Relativização do Princípio da Irretroatividade das Leis
Uma vez assentado que a irretroatividade deve ser a regra nos
ordenamentos jurídicos em cujos Estados sejam qualificados como de
Direito180, tal qual nossa República, não podemos agasalhar a posição
difundida por respeitável doutrinada no sentido de que o art. 5º, XXXVI, da
Constituição Federal tenha adotado o princípio da “retroatividade limitada”,
ou seja, desde que respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a
coisa julgada a “lei nova pode e deve retroagir”, sendo que “a retroatividade
é a regra e a irretroatividade a exceção”, em relação às leis civis.181
Superada tal questão, cumpre verificar se a irretroatividade no
sistema jurídico brasileiro é diretriz constante da Lei Maior ou se, ao revés,
tem status de lei ordinária. O debate não é meramente acadêmico, como se
poderia sugerir. Não o é, porém, pelo recorrente argumento doutrinário de
que o consectário lógico deste regramento no plano constitucional
constituiria em que o princípio da irretroatividade vincularia não somente o
intérprete, mas igualmente o legislador, a quem não seria lícito editar leis
cujos efeitos se projetem ao passado.
Ora, sendo regra inata ao Estado de Direito e fundada no direito
natural, temos que, esteja disciplinado em lei constitucional ou em lei
ordinária, a irretroatividade vinculará o juiz, a autoridade administrativa e o
legislador, permanecendo sempre como princípio científico do direito,
180 Sobre o conceito de Estado de Direito e Estado Democrático de Direito, discorre José Afonso da Silva na obra Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 116-126. 181 Tais são os dizeres, com os quais não se pactua, utilizados por Mário Luiz Delgado na obra Problemas de direito intertemporal no código civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 30-38. Também para Silvio Rodrigues (2005) teríamos adotado o princípio da retroatividade da lei nova. RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. v. 1. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 29). Exemplo de lei que deve retroagir é encontrada apenas no campo penal, quando benéfica ao réu: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (Constituição Federal, art. 5º, XL).
98
“princípio orientador de legisladores e juízes”.182 Ainda que o princípio em
foco figurasse apenas em “lei comum e, pois, dirigindo-se formalmente
apenas ao juiz, nem por isso se suponha possa o legislador revolver o
passado e conferir, arbitrariamente, efeito retroativo a quaisquer normas
jurídicas. Violaria, se o fizesse, um ditame de direito natural”.183 De fato,
“embora não inscrito no código básico a irretroatividade é um princípio
fundamental de Direito; constitui ‘um preceito, para o legislador; uma
obrigação, para o juiz; uma garantia, para os cidadãos’”.184
Na realidade, a séria conseqüência prática está em que, figurando
o princípio na Constituição, qualquer reforma legislativa de cunho
retrooperante somente será considerada constitucional se encontrar guarida
em outro princípio também constitucional, de maior primazia, que justifique o
efeito pretérito, como o é o princípio da dignidade da pessoa humana. Do
contrário, não sendo inserido como norma constitucional, ao legislador
deferir-se-á maior liberdade, podendo promulgar normas retroativas desde
que sem arbitrariedade. Resumindo, o problema será de grau de vinculação
do legislador, maior no primeiro caso e menor no segundo.
Seria, de outra banda, de questionarmos: se a irretroatividade
encontra-se ínsita na idéia de Estado de Direito, não seria, por si só,
princípio constitucional? Aqui precisamos rememorar a essencial distinção
entre Constituição em sentido substancial e em sentido formal.
Em sentido substancial, Constituição significa o complexo de
normas e princípios fundamentais, escritos ou não, que estrutura e organiza
o Estado, ou seja, é:
182 João Franzen de Lima apud FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 189. 183 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 394. 184 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 50.
99
(...) o conjunto de normas estruturais de uma dada
sociedade política. Pode-se, segundo esta acepção, saber
se uma dada norma jurídica é constitucional ou não,
examinando-se tão-somente o seu objeto. Se regular um
aspecto fundamental da comunidade política, indispensável
à sua concepção ou à sua permanência, se se tratar da
distribuição do poder dentro da sociedade, se versar, enfim,
algo que, alterado, abalaria as próprias vigas mestras do
ente político, será constitucional.185
Já em sentido formal, completa Celso Ribeiro Bastos (1996), a
Constituição é definida como o:
(...) conjunto de normas legislativas que se distinguem das
não-constitucionais em razão de serem produzidas por um
processo legislativo mais dificultoso, vale dizer, um processo
formativo mais árduo e mais solene. Assim, convém
observar que poderão verificar-se normas constitucionais
apenas sob o aspecto formal. Isto ocorre em todos aqueles
casos em que determinadas regras jurídicas, de natureza
não substancialmente constitucional, tenham sido inseridas
na Constituição em sentido formal.186
Sob o ângulo substancial, como integrante da estrutura do
Estado, pois decorrente da noção de segurança jurídica, é inarredável a
asserção de que o princípio da irretroatividade é de natureza constitucional.
Já a sua verificação como disposição formalmente constitucional
depende, à evidência, do exame da Constituição de cada Estado, bastando
investigar a existência ou não de dispositivo proibitivo da retroprojeção das
leis. Esta é a constatação que verdadeiramente importa ao intérprete,
185 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional positivo. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 40-41. 186 Ibidem, 40-42.
100
porque a uma lei retroativa somente poderá impor-se a eiva de
inconstitucionalidade se o princípio da irretroatividade figurar como preceito
formal na Constituição.187
No direito brasileiro, as Constituições de 1824 e 1891, como já
afirmamos, consagraram expressamente a regra da irretroatividade. Já as
Constituições de 1934 – silente a de 1937 -, 1946, 1967 e 1988 não
proibiram literalmente a retroatividade, mas apenas a ofensa ao direito
adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada.
Diante desse quadro, os autores se dividem. Majoritariamente se
sustenta que o princípio da irretroatividade das leis é previsto de modo
formal na Constituição. Assim leciona Limongi França (1998):
Com as Constituições de 1934, 1967 e 1988, embora
diversa tenha sido a fórmula adotada no preceito sobre a
matéria, sustentamos que o seu conteúdo continua o
mesmo. Os dispositivos dessas Leis Magnas, em suma,
vieram atender à regra implicitamente já contida nas de
1824 e 1891, qual seja a de que as leis não têm efeito
retroativo em princípio, podendo entretanto tê-lo, por
disposição expressa, se não ofenderem Direito Adquirido.188
Adiante, o autor finaliza seu pensar no sentido de que ser “de
caráter constitucional o princípio da irretroatividade das leis”.189
187 É bem por isso o enfatizar de José Joaquim Gomes Canotilho (1991, p. 381) de que “a simples qualificação de uma lei como retroativa nada diz acerca de sua legitimidade ou ilegitimidade constitucional”, salvo, é claro, repita-se, se a regra da irretroatividade vier a ser inserida formalmente na Constituição. Sobre o assunto, com propriedade registra José Eduardo Martins Cardozo (1995, p. 308) que se o legislador “optar pela fixação de uma regra, constitucional formal, estará, neste ponto, estabelecendo uma plena correspondência entre o que é juridicamente substancial e formal. Se não o fizer estará deixando de coadunar as duas situações, no que, aliás, ao menos no âmbito da estrita técnica jurídica, não haverá inconveniente algum”. 188 FRANÇA, Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 192. 189 Ibidem, p. 192 e 295.
101
Esta também é a opinião de Maria Helena Diniz (2005), ao afirmar
que:
A irretroatividade das leis é um princípio constitucional,
apesar de não ser absoluto, já que nas normas poderão
retroagir, desde que não ofendam o ato jurídico perfeito, o
direito adquirido e a coisa julgada. O direito adquirido, o ato
jurídico perfeito e a coisa julgada marcam a segurança e a
certeza das relações que, na sociedade, os indivíduos, por
um imperativo da própria convivência social, estabelecem, e
que seriam mera ficção.190
De outro lado, alguns doutrinadores entendem não se encontrar o
princípio em foco disciplinado na Constituição de 1988. Segundo José
Eduardo Martins Cardozo (1995):
A atual Constituição brasileira, a exemplo das Constituições
brasileiras de 1934, 1946 e 1967, não consagra o princípio
da irretroatividade ou da retroatividade das leis. Ela limita-
se, no seu art. 5º, XXXVI, a estabelecer o princípio do
respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à
coisa julgada.191
A nosso ver, não consta da atual Lei Maior o aludido princípio.
Isso porque, como salienta Cardozo, da mesma forma que é possível existir
uma lei retroativa que não ofenda o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal
(bastando que não prejudique direitos adquiridos, atos jurídicos perfeitos e a
coisa julgada), é possível existir uma lei não retroativa que ofenda este
dispositivo constitucional, o que ocorrerá quando a lei nova pretender atingir,
190 DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução do código civil brasileiro interpretada. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 202. 191 CARDOZO, José Eduardo Martins. Da retroatividade da lei. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 337.
102
com efeitos imediatos e futuros, tais realidades resguardadas pela
Constituição Federal, desrespeitando, desta forma, a imperativa ultratividade
da lei velha.192
É o entendimento nos afigura exato, considerando a distinção já
lançada neste trabalho entre efeitos retroativo e imediato da lei, certo que à
lei nova veda-se a produção de efeito imediato em relação aos efeitos atuais
das situações definitivamente constituídas no passado.
Forçoso convir, pois, que a regra constitucional da irretroatividade
das leis civis (materiais ou processuais) pode ser excepcionada pelo
legislador infraconstitucional, desde que, sem arbitrariedade, o faça de modo
expresso e sejam resguardados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a
coisa julgada.
Contraditória poderia soar, mas não o é, a idéia de que ao
legislador ordinário é admissível a promulgação de leis retroativas e,
simultaneamente, comungar-se da tese de que a irretroatividade deriva do
direito natural e do princípio da segurança jurídica, um dos pilares da
concepção do Direito.
Embora a história nem sempre assim se revele e apresente
contradições manifestas, ambos valores (relativos) contidos na concepção
de Direito, segurança jurídica e justiça devem caminhar conjuntamente e em
harmonia, de modo que a exigência do primeiro de mantença das árduas
conquistas sociais e a do segundo de constante modificação da realidade
existente sejam compatibilizadas, tudo a permitir o progresso da
humanidade.
192 Ibidem, p. 326.
103
É Hauriou, citado por Miguel Reale (1991)193, quem demonstra a
problemática da correlação entre a justiça e a ordem, intimamente ligadas,
mas em conflito latente, por requerer o ideal de justiça o sentido de
insatisfação renovadora da realidade em vigor. Uma ordem estabelecida
representará sempre certa porção de justiça, mas também se encontra em
conflito potencial com uma nova dose de justiça ainda não alcançada. Em
suas palavras, remata Reale (1991):
A História do Direito revela-nos um ideal constante de
adequação entre a ordem normativa e as múltiplas e
cambiantes circunstâncias espaço-temporais, uma
experiência dominada ao mesmo tempo pela dinamicidade
do justo e pela estabilidade reclamada pela certeza e
segurança.194
Nesse diapasão, assenta José Joaquim Gomes Canotilho (1991)
que:
(...) uma absoluta proibição da retroactividade das leis
impediria o legislador de realizar novas exigências de justiça
e de concretizar as idéias de ordenação social,
positivamente plasmadas nas Constituição; daí a orientação
normativo-constitucional, segundo a qual uma lei retroactiva
é apenas, mas sempre, inconstitucional, quando uma norma
ou princípio constitucional (expresso ou implícito) conduzir a
este resultado.195
Compreendemos, desta feita, o motivo pelo qual a maior parte do
direito alienígena, especialmente o europeu, confere tratamento
infraconstitucional ao tema em foco, dado que a inserção, em âmbito
193 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 524-529. 194 Ibidem, p. 572. 195 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 379.
104
constitucional, do princípio da irretroatividade traria dificuldades penosas de
progresso social.
Mas é plenamente justificável a norma do art. 5º, XXXVI, da Carta
Magna, pois o direito adquirido (como se verá) é princípio que somente deve
ser preterido em condições excepcionais. Além disso, nossa história sempre
foi marcada por freqüentes arbitrariedades e abusos de poder de nossos
representantes, os quais, não raro, violam direitos adquiridos (não
necessariamente por leis retroativas) em nome de uma suposta exigência
social, como se a lei nova fosse sempre melhor e mais avançada. É “a fome
desmedida, pantagruélica até, de vulnerar direitos adquiridos em nome de
uma suposta política econômica faria o gáudio de Presidentes da República
que se vergam ao capital estrangeiro”.196
Sintetizando, exigências de justiça podem impelir o legislador
ordinário a editar leis retrooperantes, que somente serão inconstitucionais se
malferidos normas ou princípios formalmente contidos na Constituição, tal
qual o art. 5º, XXXVI. E sendo a irretroatividade da lei nova a regra, qualquer
tentativa do legislador de lançar, em caráter excepcional e com as limitações
já expostas, efeitos pretéritos requer disposição expressa, embora sem a
exigência de palavras sacramentais.
O exame do princípio da irretroatividade traz à baila, ainda, dois
questionamentos sobre o tema. O primeiro consiste em saber se o legislador
constitucional também figura como destinatário da norma do art. 5º, XXXVI.
O segundo, se o dispositivo alberga as leis de ordem pública. O exame das
características e das peculiaridades das regras que cuidam da
intertemporalidade conflitual no direito pátrio revela a resposta positiva a
ambas indagações, o que veremos a seguir.
196 SANTOS, Antonio Jeová. Direito intertemporal e o novo código civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 55.
105
8.2. O Poder Constituinte Derivado
O inciso XXXVI do art. 5º da Constituição figura entre as cláusulas
pétreas, constantes do art. 60, § 4º, vale dizer, o princípio do respeito ao
direito adquirido trata-se de direito individual, que não pode ser objeto de
emenda constitucional tendente a sua alteração ou abolição, donde a ilação
de que o poder constituinte reformador se verga ao princípio em foco.
Sobre o tema, é incisivo o comentário de Alexandre de Moraes
(1998) ao discorrer sobre:
(...) a impossibilidade de alegar-se direito adquirido em face
de norma constitucional originária, salvo se a própria nova
Constituição o consagra. O mesmo não ocorre em relação
às normas constitucionais derivadas, nascentes de emendas
constitucionais, cujo processo legislativo deve respeitar,
entre outras, as chamadas limitações materiais expressas,
conhecidas como cláusulas pétreas. Entre elas, a previsão
do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal (direitos e
garantias individuais), especificamente, o art. 5º, XXXVI
(direito adquirido).197
A moderna doutrina constitucional, de fato, encampa o
entendimento ora sufragado, senão vejamos:
“Não cabe invocação de direito adquirido em face do Poder
Constituinte Originário, conforme demonstra o art. 17 das
Disposições Transitórias da atual CF.198 Quanto ao Poder
Constituinte Derivado (poder de emenda constitucional), há
197 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Altas, 1998, p. 202. 198 “Art. 17. Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título”.
106
de observar que o inciso XXXVI, ora analisado, está
inserido entre as cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV, da CF),
cláusulas que não estão sujeitas às emendas
constitucionais. Cremos, portanto, que a emenda
constitucional não pode excluir ou modificar o direito
adquirido. Nesse sentido: “Cláusula pétrea de respeito ao
direito adquirido. Invulnerabilidade pela superveniência de
emenda, provinda do poder constituinte derivado” (2ª Câm.
de Dir. Priv., ED 74.591-5 – São Paulo, rel. Alves
Bevilacqua, j. 17-8-1999)”.199
São contundentes, ainda, as lições de Caio Mário da Silva Pereira
(1992) no sentido de que, se é a própria Constituição que protege o direito
adquirido, “seria uma contradição consigo mesma se assentasse para todo o
ordenamento jurídico a idéia do respeito às situações jurídicas constituídas,
e simultaneamente atentasse contra esse conceito”.200
Aliado ao fato de cuidar-se de cláusula pétrea ou limitação
material expressa ou explícita, ou, ainda, núcleo imodificável, resta-nos
ressaltar a natureza analítica da Constituição Federal que, ao contrário das 199 CHIMENTI, Ricardo Cunha; CAPEZ, Fernando; ROSA, Márcio Fernando Elias; SANTOS, Marisa Ferreira. Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 79-80. Também é de se registrar a seguinte observação de Galeno Lacerda (1974, p. 69), lançada a respeito do direito adquirido à interposição de recurso, ainda que diante da superveniência de norma constitucional: “Explicado o conceito de ‘dia da sentença’, resulta, desde logo, que os recursos interpostos pela lei antiga, e ainda não julgados, deverão sê-lo, consoante as regras desta, embora abolidos ou modificados pelo novo Código. A este respeito, não prevalece o argumento de autoridade, oriundo de inaceitável precedente criado pelo Supremo Tribunal Federal, quando da supressão do recurso ordinário em mandado de segurança e dos embargos infringentes perante aquela Corte. Como é notório, decidiu-se, então, pelo voto da maioria, não conhecer dos recursos já interpostos e legitimamente processados, salvo as hipóteses de conversão dos recursos ordinários em extraordinários, e dos embargos infringentes em embargos de divergência, se ocorridos, no caso, os pressupostos e restritos do recurso objeto da conversão, o que significa que a imensa maioria dos recursos pendentes foi sumariamente arquivada. Serviu de amparo a tal orientação o falso argumento de que a eliminação dos recursos decorrera de preceito com eficácia constitucional. Esqueceu-se, então, que o respeito aos direitos adquiridos constitui dogma mais alto, também de ordem constitucional, que deve iluminar, acima de quaisquer considerações, os eventos específicos de direito transitório, como os decorrentes da supressão de recursos”. Fica registrado, de todo modo, que o direito adquirido somente representa óbice à norma constitucional de natureza derivada e não originária, salvo se a nova Constituição o consagre. 200 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 1. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 117.
107
Constituições sintéticas, não versa somente sobre matérias atinentes aos
princípios e normas gerais de organização e limitação dos poderes do
Estado, mas disciplina tudo quanto se entenda relevante à formação,
destinação e funcionamento do Estado.
Embora se exija procedimento mais rigoroso para sua alteração, a
extensa gama de assuntos disciplinados na Lei Maior faz o legislador editar
com freqüência inúmeras emendas destinadas à modificação do texto
constitucional. Ora, essa dinâmica na atividade legiferante derivada não se
compadece com a estabilidade jurídica esperada pelos cidadãos nas
relações jurídicas de que é participante. Melhor seria que assuntos não
estritamente relacionados à organização e limitação dos poderes do Estado
ficassem reservados à seara infraconstitucional, o que, sem dúvida,
representaria uma forma de se evitar eventuais violações aos direitos
assegurados no art. 5º, XXXVI, da Lei Maior.
8.3. Leis de Ordem Pública
Ao apontar as normas que considera de ordem pública, o jurista
argentino Raymundo M. Salvat apud Wilson de Souza Campos Batalha
(1980) exemplifica:
(a) todas as leis que constituem o direito público de um país
são de ordem pública (tais como as leis que estabelecem a
organização constitucional e administrativa, quer no campo
político, quer no econômico-financeiro); (b) entre as leis que
constituem o direito privado, há grande número que tem
caráter de ordem pública, tais como: (1º) as leis que fixam o
estado e a capacidade das pessoas; (2º) as leis que
organizam a família (matrimônio, poder marital, pátrio poder,
condição dos filhos naturais, filiação etc); (3º) as leis que
estabelecem o regime de bens, particularmente dos bens
108
imóveis (sua natureza, direitos de que são suscetíveis, sua
aquisição e transmissão etc).201
De um modo geral, são consideradas, portanto, leis de ordem
pública as pertencentes ao ramo do direito público (direito constitucional,
administrativo, processual, penal, do trabalho e internacional) e as leis
cogentes, de observância obrigatória, inseridas no âmbito do direito privado,
composto pelos direitos civil e comercial (v.g, normas que estatuem sobre o
casamento, vocação hereditária etc).202
Fiquemos, por ora, com esta noção, malgrado nem todas as
normas de direito público sejam efetivamente de ordem pública, como se
verá na segunda parte desta dissertação.
Difundiram-se em parte da doutrina e da jurisprudência duas
equívocas concepções a respeito dessas leis nas quais prepondera o
interesse público.
A primeira concebe as normas de pública como de aplicabilidade
imediata, atingindo as situações pendentes; na realidade, todas as leis, de
ordem pública ou não, são dotadas de efeito imediato, mercê do caput do
art. 6º da Lei de Introdução (“A Lei em vigor terá efeito imediato”),
alcançando de pronto os fatos em curso, salvo quando presentes situações
201 In: BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 129. 202 MONTEIRO, Washington de Barros Monteiro. Curso de Direito Civil. 35ª ed. São Paulo : Saraiva, 1997, vol. 1, p. 9-11. ). A classificação entre normas de ordem pública e normas de outra natureza não é, porém, imune de incertezas e objeções, considerando que na própria divisão entre direito público e privado há uma zona cinzenta nas fronteiras que os separam. Essa obscuridade não passou despercebida por Wilson de Souza Campos Batalha (1980, p. 121-122), ao comentar a doutrina, da qual Simoncelli é partidário, que propugna a retroatividade das normas públicas e a irretroatividade das normas privadas: “É óbvio que essa doutrina encontraria infindáveis dificuldades de aplicação, uma vez que se baseia em conceitos fugidios e oscilantes. A própria distinção entre direito público e direito privado não pode ser, através dos séculos, fixada em categorias estanques, uma vez que até hoje persistem os debates em torno do assunto, havendo mesmo autores que negam a possibilidade de uma distinção nítida a respeito. Na realidade, cada vez mais se apagam e diluem os traços separadores do direito público e do direito privado, notadamente em face do fenômeno atualmente conhecido pela denominação de publicização do direito privado”. É a crescente intervenção estatal na ordem privada.
109
protegidas constitucionalmente (direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa
julgada).
A segunda adota a tese da inexistência de direito adquirido contra
leis de ordem pública. Expressam, nesse sentido, Eduardo Espínola e
Eduardo Espínola Filho (1943) que “se aos interesses privados é permitido
tirar proveito do estado, da coisa pública, como está regulado, não podem
tais interesses assumir, em tempo algum, a importância de direitos
adquiridos, ou reclamar a garantia que a lei confere a tais direitos”.203
Precisamos reconhecer, porém, a impropriedade do fundamento
que se baseia essa respeitável posição. A Constituição Federal, ao vedar a
infração ao direito adquirido, não distingue entre leis de ordem pública e leis
de outra natureza, de modo que não é dado ao intérprete fazê-lo. Admitir-se
tal possibilidade seria praticamente fazer letra morta do texto constitucional,
pois a maioria das leis que compõem um ordenamento jurídico é de ordem
pública. Sendo expresso o texto constitucional, não há espaço para outra
interpretação.
Em decisão proferida nos autos do RE 201.176-2-RS, sob a
relatoria do Ministro Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federal acolheu a
tese de submissão das leis de ordem pública aos ditames inscritos no art. 5º,
XXXVI, da Lei Maior, nestes termos:
A possibilidade de intervenção do Estado no domínio
econômico não exonera o Poder Público do dever jurídico
de respeitar os postulados que emergem do ordenamento
constitucional brasileiro. Razões de Estado – que muitas
vezes configuram fundamentos políticos destinados a
justificar, pragmaticamente, ‘ex parte princips’, a inaceitável
203 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. 3ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo : Freitas Bastos, 1943, p. 372.
110
adoção de medidas de caráter normativo – não podem ser
invocadas para viabilizar o descumprimento da própria
Constituição. As normas de ordem pública – que também se
sujeitam à cláusula inscrita no art. 5º, XXXVI, da Carta
Política (RTJ 143/724) – não podem frustrar a plena eficácia
da ordem constitucional, comprometendo-a em sua
integridade e desrespeitando-se a sua autoridade.204
Em outras oportunidades, o Supremo Tribunal Federal também se
manifestou no mesmo sentido, conforme se infere do voto proferido pelo
Ministro Costa Leite nos autos do Resp 38.518-0-SP, RT 715/277, verbis:
(...) nem mesmo lei de ordem pública pode prejudicar o
direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. (...)
A Constituição, recorde-se, não proíbe que a lei tenha
efeitos retroativos, desde que não prejudique o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, que
restam assegurados sem que a norma constitucional abra
exceção às chamadas leis de ordem pública. Aliás, curioso é
observar que nenhuma lei é mais marcadamente de ordem
pública que a de natureza penal e, no entanto, a lei penal é
aquela tratada com maior rigor pela Constituição que impõe,
como regra, sua irretroatividade, ‘salvo para beneficiar o réu’
(art. 5º, XL).205
Esta, a nosso ver, é a melhor diretriz interpretativa do sistema
brasileiro, que insere em texto constitucional a proscrição à edição de leis
que desrespeitem os direitos adquiridos. Com isso, contudo, não se
pretende afirmar a impossibilidade de retroação da lei de ordem pública, a
qual, como qualquer outra lei, poderá ter cunho retrooperante, desde que
seja expressa, sejam observadas as situações já consolidadas no tempo
204 JSTF-Lex 223/249-250. 205 NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. O código de defesa do consumidor e sua interpretação
jurisprudencial. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 319-321.
111
com seus respectivos efeitos (direito adquirido, ato jurídico perfeito e a coisa
julgada) e presente interesse social a justificá-la. A única diferença que pode
ser apontada é que, na prática, serão as leis de ordem pública que
normalmente terão eficácia retroativa, pois, em princípio, não se justifica a
adoção desse efeito às normas de cunho dispositivo.
8.4. O Caráter Relativo do Princípio do Respeito ao Direito Adquirido206
Além de não ser absoluto o princípio da irretroatividade das leis,
que não consta do nosso texto constitucional, também não o é do respeito
ao direito adquirido. Porém, a violação a este segundo princípio somente se
justifica em circunstâncias absolutamente excepcionais.
O art. 5º, XXXVI, da Lei Maior encontra-se inserido no Capítulo I
(Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), que, por sua vez, está
contido no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais). Trata-se,
assim, o princípio do respeito ao direito adquirido de direito fundamental do
homem.
Segundo José Afonso da Silva (1998), várias são as
denominações empregadas para designar esta categoria de direitos:
“direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais,
direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e
direitos fundamentais do homem”.207
Adota-se aqui a expressão direitos fundamentais do homem que,
no entender do sobredito autor, é a mais adequada, pois:
206 Sendo o ato jurídico perfeito e a coisa julgada fontes geradoras da aquisição de direitos e integrantes, pois, do conceito de direito adquirido (o que se verá adiante), neste tópico se mencionará apenas esta última expressão, inclusive para facilitar a compreensão da matéria. 207 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 179.
112
(...) além de referir-se a princípios que resumem a
concepção do mundo e informam a ideologia política de
cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no
nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições
que ele concretiza em garantias de uma convivência digna,
livre e igual de todas as pessoas.208
Por sua vez, Alexandre de Moraes (1998) define direitos humanos
fundamentais como o:
(...) conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser
humano que tem por finalidade básica o respeito a sua
dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do
poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de
vida e o desenvolvimento da personalidade humana.209
É, pois, a dignidade da pessoa humana o valor máximo sobre o
qual se assentam todos os direitos fundamentais do homem. Nesse sentido,
enfatiza José Afonso da Silva (1998) que esse é:
(...) um valor supremo que atrai o conceito de todos os
direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.
‘Concebido como referência constitucional unificadora de
todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho
e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana
obriga a uma densificação valorativa, que tenha em conta o
seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma
qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-
se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos
pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos
pessoais, ou invocá-la para construir teoria do núcleo da
personalidade individual, ignorando-a quando se trate de 208 Ibidem., p. 182. 209 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Altas, 1998, p. 39.
113
garantir bases da existência humana’. Daí decorre que a
ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos
existência digna (art. 170), a ordem social visará a
realização da justiça social (art. 193), a educação, o
desenvolvimento da pessoa e o seu preparo ao exercício da
cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados
formais, mas como indicadores do conteúdo normativo
eficaz da dignidade da pessoa humana.210
Fruto das aspirações da população mundial contra as malogradas
experiências das guerras mundiais e a existência de regimes totalitários, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela Assembléia
Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948 e assinada pelo
Brasil na mesma data, reconhece a dignidade como inerente a todos os
membros da família humana e como fundamento da liberdade, da justiça e
da paz no mundo. Não por outra razão é considerada fundamento da
República Federativa do Brasil (Constituição Federal, art. 1º, III).211
Lícito sustentarmos, assim, a existência de um princípio superior,
a viga mestra da Constituição, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa
humana212, do qual o princípio do respeito ao direito adquirido é corolário.
Daí a manifesta constatação acerca do caráter relativo deste último, pois,
210 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 109. 211 “O eixo em torno do qual se desenvolve a história dos direitos humanos é a idéia de que os homens são essencialmente iguais, em sua comum dignidade de pessoas, isto é, como os únicos seres capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza”. COMPARATO, Fábio Konder. Direitos humanos:
legislação e jurisprudência. v. 1. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, 2000. (Direitos Humanos no Brasil: o passado e o futuro, p. 33-41). 212 José Joaquim Gomes Canotilho (1991, p. 367) é expresso nesse sentido: “Pela análise dos direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados, deduz-se que a raiz antropológica se reconduz ao homem como pessoa, como cidadão, como trabalhador e como administrado”. Vicente Greco Filho (2003, p. 15-16) avança ao afirmar que “todas as consagrações constitucionais dos direitos individuais supõem a existência de alguns direitos básicos da pessoa humana, os quais pairam, inclusive, acima do Estado, porquanto este tem como um de seus fins principais a garantia desses direitos”, acrescendo, ainda, que “o valor da pessoa humana antecede o próprio direito positivo, condiciona-o e dá-lhe razão de existir”.
114
caso conflite com o próprio princípio em que se baseia, jamais poderá ser
aplicado.213
De fato, a absoluta proscrição à violação a direitos adquiridos
pode conduzir a situações inaceitáveis, nas quais a própria dignidade
humana se verá ameaçada, impedindo o Estado-legislador de promover o
progresso moral e espiritual da humanidade, pois, afinal, sem proteção à
dignidade humana não há justiça.
Exemplo histórico de norma que, apesar de violar direito
adquirido, esteve consentânea com o princípio da dignidade da pessoa
humana foi a Lei Áurea (1888) que, ao abolir a escravidão, violou os direitos
adquiridos214 dos proprietários. Nesse caso, a ofensa a tais direitos se
demonstrou plenamente justificável em virtude da supremacia do princípio
da dignidade da pessoa humana.
Concluindo, uma lei ofensiva a direitos adquiridos será, em
princípio, inconstitucional, por malferir o teor do art. 5º, XXXVI, da Lei Maior,
salvo se interpretação contrária decorrer do valor dignidade da pessoa
humana.215
213 Acrescentemos que os direitos constitucionais não são ilimitados, encontrando seus limites nos demais direitos previstos na Constituição (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas), de sorte que, em caso de conflitos entre eles, deve o intérprete harmonizar os bens jurídicos em conflito, de modo a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros (princípio da concordância prática ou da harmonização). 214 Concordamos com Fernando Noronha (2005, p. 70) quando afirma que “tanto a Lei Áurea atingiu direitos adquiridos, que durante anos o movimento abolicionista havia sido entravado pela questão da indenização a que teriam direito os proprietários cujo Estado não tinha condições de satisfazer”. 215 Mais ou menos coincidente com a nossa é a posição de Fernando Noronha (2005, p. 78), ao dizer que “a regra do art. 5º, XXXVI, da Constituição há de ser aplicada sempre que não houver outros princípios constitucionais que devam prevalecer sobre os da segurança jurídica e da tutela da confiança (como é o caso do princípio da dignidade da pessoa humana)”.
115
9. O CONCEITO DE DIREITO ADQUIRIDO, QUE
COMPREENDE O ATO JURÍDICO PERFEITO E A COISA
JULGADA
A vigente Lei de Introdução do Código Civil, Decreto-Lei nº 4.657,
de 4 de setembro de 1942, alterado pela Lei nº 3.238, de 1º de agosto de
1957, estabelece, respectivamente, as definições de ato jurídico perfeito,
direito adquirido e coisa julgada:
Art. 6º. A Lei em vigor terá efeito imediato e geral,
respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a
coisa julgada.
§ 1º - Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado
segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.
§ 2º - Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu
titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo
começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição
preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.
§ 3º - Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão
judicial de que já não caiba recurso.
À luz deste conceito legal, extraímos a ilação que direito adquirido
é aquele em condições de exercício (“direitos que o seu titular, ou alguém,
por ele, possa exercer”), isto é, definitivamente incorporado ao patrimônio e
à personalidade de seu titular.
A limitação traçada por Gabba, que teria excluído da noção de
direito adquirido os direitos não apreciáveis economicamente, não vigora no
sistema brasileiro, para o qual requer-se apenas sejam passíveis de
exercício.
116
O próprio Reynaldo Porchat (1909), notório defensor da teoria
subjetiva, já havia proposto acrescentar ao conceito de Gabba a seguinte
expressão: “ou constitui o adquirente na posse de um estado civil
definitivo”216, em clara referência aos aspectos não-materiais ínsitos na idéia
de direito adquirido.
Limongi França (1998) encampou tal crítica, propondo a extensão
da patrimonialidade aludida por Gabba, advertindo, ainda, acerca da
possibilidade de emanarem direitos diretamente da lei, através do seguinte
conceito que formula de direito adquirido: “É a conseqüência de uma lei, por
via direta ou por intermédio de um fato idôneo; conseqüência que, tendo
passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer
antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto”.217
A exigência, outrossim, de que seu titular (ou representante218)
encontre-se apto a exercê-lo delineia o limite entre o direito adquirido e a
expectativa de direito, ou seja, entre o direito incorporado ao
patrimônio/personalidade do sujeito e a simples esperança ou possibilidade
de sua aquisição, a depender da ocorrência de um evento futuro. No
primeiro, a incidência normativa da lei antiga se verifica plenamente219 pela
configuração de todo o suporte fático, o que não ocorre no segundo caso.
Por outro lado, se o direito adquirido é aquele em que o titular
pode exercê-lo, urge analisarmos a problemática referente aos direitos
sujeitos a termo ou a condição, que não podem ser exercidos enquanto não
implementados o termo e condição, respectivamente.
216 PORCHAT, Reynaldo. Da retroactividade das leis civis. São Paulo: Duprat & Comp., 1909, p. 15. 217 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 216. 218 Seria dispensável a referência da lei à figura do representante, que não se circunscreve ao direito intertemporal. 219 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 247.
117
Discute-se, propriamente, a respeito do termo inicial (ou
suspensivo) e da condição suspensiva, pois o termo final e a condição
resolutiva não oferecem maiores dificuldades. A lei os considera adquiridos
(“como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição
preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”), donde advém a inevitável
indagação: como são adquiridos se ainda não lhes é facultado o respectivo
exercício?
Quanto ao termo, cláusula que subordina os efeitos do ato a um
acontecimento futuro e certo, o art. 131 do Código Civil soluciona o dilema
ao disciplinar que o termo inicial “suspende o exercício, mas não a aquisição
do direito”.
A propósito, Maria Helena Diniz (1998) esclarece que o “termo
inicial não suspende a aquisição do direito, que surge imediatamente, mas
só se torna exercitável com a superveniência do termo”220, que certamente
advirá. Assim, a despeito de sobrestado o exercício, o termo inicial não
obsta a que o direito se considere desde logo adquirido, já incorporado ao
patrimônio e à personalidade de seu titular. Incerteza doutrinária não há, à
luz dessas considerações, de se considerarem adquiridos os direitos
subordinados a termo.
Já no tocante à condição suspensiva, cláusula a protelar a
eficácia do ato a um acontecimento futuro e incerto, a dúvida acerca da
efetiva existência de direito adquirido poderia ser suscitada, pois o Código
Civil prevê que “subordinando-se a eficácia do ato à condição suspensiva,
enquanto esta não se verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa”
(art. 125), ou seja, perante o Diploma Civil, “pendente a condição suspensiva
220 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 138.
118
não se terá adquirido o direito, mas expectativa de direito ou direito
eventual”.221
Nesse aspecto, demonstra-se evidente a contradição entre o
referido dispositivo e o art. 6º da Lei de Introdução, que considera adquirido
o direito condicional. O impasse resolve-se com a interpretação de que a Lei
de Introdução equiparou, somente para fins de direito intertemporal, a
condição suspensiva ao termo inicial, considerando adquirido o direito
dependente de condição inalterável ao arbítrio de outrem.222
Nas palavras de Clovis Bevilaqua (1956):
Acham-se no patrimônio os direitos que podem ser
exercidos, como, ainda, os dependentes de prazo ou de
condição preestabelecida, não alterável a arbítrio de outrem.
Trata-se aqui de termo e de condição suspensivos que
retardam o exercício do direito. Quanto ao prazo, é princípio
corrente que ele pressupõe a aquisição do direito e apenas
lhe demora o exercício. A condição suspensiva torna o
direito apenas esperado, mas ainda não realizado. Todavia,
com o seu advento, o direito se supõe ter existido, desde o
momento em que se deu o fato que o criou. Por isso, a lei o
protege, ainda nessa fase meramente possível, e é de
justiça que assim seja, porque embora dependente de um
acontecimento futuro e incerto, o direito condicional já é um
221 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. Op. cit., p. 135. 222 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo : Freitas Bastos, 1943, p. 353-354.
119
bem jurídico, tem valor econômico e social, constitui
elemento de patrimônio do titular.223
Portanto, uma vez assimilado serem adquiridos os direitos
exercitáveis, a termo ou condicionais, cumpre examinarmos os conceitos de
ato jurídico perfeito e coisa julgada.
O § 3º do art. 6º da Lei de Introdução reputa ato jurídico perfeito
“o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”. O
legislador, bem se observa, confere especial relevância à formação do ato,
que se concebe perfeito desde que devidamente aperfeiçoado. Vejamos,
então, quais atos podem ser enquadrados nesta definição.
A doutrina civilista classifica os fatos jurídicos em sentido amplo
em fatos naturais (fatos jurídicos em sentido estrito, ordinários ou
extraordinários) e fatos humanos (atos jurídicos em sentido amplo); aqueles
decorrem da natureza e estes da atividade humana. Os fatos humanos ou
atos jurídicos em sentido amplo dividem-se em lícitos ou ilícitos; os primeiros
subdividem-se em ato jurídico em sentido estrito (ou meramente lícito),
negócio jurídico e ato-fato jurídico. Nos dois primeiros, exige-se uma
manifestação de vontade, com a diferença de que no ato jurídico em sentido
estrito o efeito da manifestação de vontade está predeterminado na lei (v.g.,
notificação que constitui em mora o devedor), ao passo que no negócio
jurídico (v.g., contrato de compra e venda) a vontade objetiva um fim
determinado, permitido em lei. Já no ato-fato jurídico a vontade é irrelevante,
223 BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1956, p. 76. O tema externa-se com as seguintes palavras de Mauro de Medeiros Keller (1989): “Com relação às condições, é inegável que o direito se adquire desde o ato em que se constitui o negócio. A partir daí, a parte contra quem o direito se adquire nada mais poderá fazer para impedir a sua eficácia. O implemento da condição representa, tão-somente, o termo inicial da eficácia daquilo que se pactuou . O art. 118 do CC deve ser interpretado como se declarasse que antes do implemento da condição o direito não se adquire completamente, com todos os elementos integrantes, i.e., faculdades, ações, prazos de duração, exceções, etc”. KELLER, Mauro de Medeiros. Pontes de Miranda e os fundamentos do princípio da irretroatividade das leis. Revista de Direito Civil, nº 50, 1989, p. 73.
120
apenas se considerando o efeito do ato (v.g., o louco torna-se proprietário
pelo encontro do tesouro).224
De acordo com os ensinamentos de Pontes de Miranda (1971), na
categoria de ato jurídico perfeito se incluem o ato jurídico em sentido estrito
e o negócio jurídico, embora as demais categorias não se encontrem ao
desabrigo da lei. Expressa que ato jurídico perfeito é:
(...) negócio jurídico, ou ato jurídico strictu sensu; portanto,
assim as declarações unilaterais de vontade como os
negócios jurídicos bilaterais, assim os negócios jurídicos
com as reclamações, interpelações, a fixação de prazo para
a aceitação de doação, as cominações, a constituição de
domicílio, as notificações, o reconhecimento para
interromper a prescrição ou sua eficácia (atos jurídicos
strictu sensu). Os atos-fatos jurídicos têm, de regra
simultâneas, a existência e eficácia (especificação,
descobrimento de tesouro, composição de obra científica, ou
artística ou literária). Não são atos jurídicos, no sentido do
art. 153, § 3º, mas tais atos-fatos produzem direitos, ao
entrarem no mundo jurídico, e a 1ª parte do art. 153, § 3º,
protege-os contra a lei nova. Dá-se o mesmo, no seu tanto,
com os fatos-jurídicos strictu sensu.225
Claro está que o ato jurídico perfeito é apenas uma forma através
da qual originam-se direitos adquiridos, que não decorrem exclusivamente
daquele. Nesse aspecto, Limongi França (1998) aduz que os “fatos jurídicos
de que não participa a vontade humana, os quase-delitos, assim como a
224 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil – parte geral. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 98-102. 225 Comentários à Constituição de 1967. Tomo V. 2ª ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1971, p. 102.
121
própria lei, por via imediata, são outras causas eficientes do Direito
Adquirido”.226
Por outro lado, a coisa julgada é definida pela Lei de Introdução
como a “decisão judicial de que já não caiba recurso”. Espancando a
hesitação doutrinária havida em torno do tema, lecionam Rosa Maria de
Andrade Nery e Nelson Nery Junior (2006) que o dispositivo em foco não
protege a coisa julgada formal, ou seja, a inimpugnabilidade da sentença no
processo em que proferida e que se verifica nas hipóteses do art. 267 do
Código de Processo Civil, mas apenas a coisa julgada material, esta:
(...) entendida como a qualidade que torna imutável e
indiscutível o comando que emerge da parte dispositiva da
sentença de mérito não mais sujeita a recurso ordinário e
extraordinário (CPC 467; LICC 6º, § 3º) nem à remessa
necessária do CPC 475 (STF 423; Barbosa Moreira, Temas
3º, 107). A coisa julgada formal (rectius: preclusão) não é
objeto da garantia constitucional sob comentário (v. Nery-
Nery, CPC Comentado, coment. CPC 467).227
Vale registrar, a respeito, que a ação rescisória não ofende o
preceito constitucional de inviolabilidade à coisa julgada. A Constituição veda
a superveniência de novo regramento legal que retroaja e altere, de algum
modo, o comando constante do dispositivo da sentença de mérito, mas não
226 FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 221. 227 ANDRADE NERY, Rosa Maria de; NERY JUNIOR, Nelson. Constituição Federal comentada e
legislação constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 133. A definitividade é, aliás, apontada pela doutrina como uma das características da jurisdição, ou seja, somente os atos jurisdicionais são suscetíveis de se tornar imutáveis, não podendo ser revistos ou modificados. Coisa julgada é imutabilidade dos efeitos da sentença, em virtude da qual nem as partes podem propor novamente a mesma demanda em juízo, nem o Judiciário pode voltar a decidir a respeito, nem o próprio legislador pode emitir preceitos que contrariem o que já ficou definitivamente julgado. No Estado de Direito só os atos jurisdicionais podem chegar a esse ponto de imutabilidade, não sucedendo o mesmo com os administrativos e legislativos.
122
obsta a propositura de ação impugnativa destinada a desconstituir a
sentença eivada dos vícios aludidos no art. 485 do Código de Processo Civil.
A coisa julgada material, à maneira do ato jurídico perfeito, é
modo de geração de direitos adquiridos. Poder-se-ia objetar quanto às
sentenças declaratórias negativas ou mesmo de improcedência,
argumentando-se que estas não promovem a aquisição de direitos, de forma
que seria justificável a opção legislativa de se proteger expressamente o
referido instituto ao lado do direito adquirido.
Não devemos esquecer, todavia, que a proteção à retroatividade
é dispensada à coisa julgada e não à sentença propriamente dita, que com
aquela não se confunde. De fato, o que se resguarda é a qualidade que
torna imutável a sentença de mérito, independentemente de sua natureza
(declaratória, constitutiva ou condenatória) ou, ainda, do não-acolhimento da
pretensão. Como assinala Limongi França (1998):
(...) a res judicata já está protegida pelo respeito ao Direito
Adquirido, não porque este seja um efeito dela, mas por
força de um fundamento muito mais forte, qual seja o de
que, uma vez que se não atingem as conseqüências dos
fatos passados, com maior razão cumpre deixar intactas as
relações jurídicas já estabelecidas de maneira definitiva.228
Desse modo, lícito afirmarmos que a coisa julgada – e não da
sentença, repita-se – é causa geradora de direito adquirido, isto é, do direito
à sua manutenção e respeito.
Ora, se tanto o ato jurídico perfeito quanto a coisa julgada estão
contidos na noção de direito adquirido, prescindível seria a menção expressa
228 Ibidem, p. 223.
123
pelo legislador a respeito desses institutos, conclusão esta, de resto, seguida
pela expressiva maioria dos doutrinadores brasileiros.
Assim já afirmava João Luís Alves apud Limongi França (1998)
que na “noção de direito adquirido se compreende a irretroatividade, em
relação ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, pois, aquele e esta, têm por
objeto direitos, cuja aquisição se verifica pela perfeição do ato jurídico
perfeito e da coisa julgada”.229
André Franco Montoro (1994) não discrepa, nos dizendo que:
“Como se vê, o ‘ato jurídico perfeito’ e a ‘coisa julgada’ são, a rigor, dois
casos especiais de direitos adquiridos; e, por isso, são geralmente
estudados pela doutrina sob essa última denominação”.230
Registremos, ainda, as posições de Wilson de Souza Campos
Batalha (1980), para quem o “ato jurídico perfeito (...) é um dos possíveis
elementos criadores de direitos adquiridos” e que a “referência à coisa
julgada (...) é totalmente desnecessária”231, e de outros tantos
doutrinadores.232
229 Ibidem., p. 219. 230 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 22ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 396. 231 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 195 e 197. 232 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentário teórico e prático da Lei de Introdução ao Código
Civil. v. 1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Editora, 1943, p. 332. DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução do código civil brasileiro interpretada. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 187 e 198. WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 288. Poderíamos avançar um pouco mais, como o faz Limongi França (1998, p. 222), para afirmar que a coisa julgada está inserida não só na idéia de direito adquirido, mas na própria noção de ato jurídico perfeito, um ato de natureza jurisdicional. A perfeição desse ato seria adquirida, insistamos, não pela prolação da sentença – que, obviamente, é passível recurso, donde não se pode cogitar de ato perfeito -, mas quando surgida a qualidade que a torna imutável e insusceptível de ulterior alteração legislativa e jurisdicional, salvo é claro, neste último caso, através da ação rescisória. De outro turno, a noção de que o ato jurídico perfeito insere-se na concepção de direito adquirido reforça o entendimento de que os efeitos do ato jurídico perfeito são invioláveis pela lei nova.
124
PARTE II
DIREITO INTERTEMPORAL PROCESSUAL CIVIL
125
10. POSIÇÃO E OBJETO DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL
10.1. Posição do Direito Processual Civil
O direito processual é ramo do direito público233, porque alude à
função jurisdicional do Estado, que é uma atividade tipicamente pública e
exercida por funcionários estatais.
Os órgãos do Poder Judiciário que decidem os conflitos são os
juízes e tribunais, chamados de órgãos principais. No desempenho da
função jurisdicional, tais órgãos recebem a colaboração de órgãos
secundários, denominados de auxiliares da justiça (escrivão, oficiais de
justiça, distribuidor, partidor, contador, peritos, intérprete etc.) que agem, não
em nome próprio, mas como órgãos do Estado.
A jurisdição, objeto de regulamentação pelo direito processual, é a
função soberana do Estado consistente em administrar a justiça. Através
desta o Estado se substitui234 à atividade das partes para, imparcialmente,
buscar a pacificação do conflito que as envolve, mediante a atuação da
vontade do direito objetivo, desempenhando tal função sempre através do
processo.235
233 “Dúvida alguma pode levantar-se no sentido de que o processo é um instrumento público e que o Direito Processual Civil – apesar de respeito devido às partes e ao princípio dispositivo – está inserido nos quadros do Direito Público”. ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 89. 234 Exercendo a jurisdição, o Estado substitui, com uma atividade sua, as atividades daqueles que estão envolvidos no conflito trazido à apreciação. Nenhuma das partes pode dizer definitivamente se a razão está com ela própria ou com a outra; nem pode, salvo em casos excepcionais, quem tem uma pretensão, invadir a esfera jurídica alheia para satisfazer-se. A única atividade permitida pela lei quando surge o conflito é a do Estado que substitui a das partes. 235 A finalidade pacificadora da jurisdição a distingue das demais funções do Estado (legislação e administração). A doutrina aponta três escopos do processo, por meio do qual é exercida a jurisdição: escopo social (pacificação social e educação dos jurisdicionados); escopo político (preservação da liberdade, do ordenamento jurídico e participação dos cidadãos nos destinos da nação); e escopo jurídico (atuação da vontade concreta do direito). Outras diferenças existem entre as funções do Estado. Enquanto a função legislativa preceitua normas gerais de conduta (generalidade), as funções administrativa e jurisdicional têm por objeto aplicação do direito no caso concreto (concretude), mas a
126
Os interesses são tutelados pelas regras do direito material
(direito civil, comercial, administrativo etc.), que regulam direitos e
obrigações de uns para com os outros, quer sejam pessoas físicas ou
jurídicas, de direito privado ou público.236
A jurisdição237 consiste exatamente em fazer atuar a lei material
que regula os conflitos intersubjetivos, o que é feito por meio do processo,
ou seja, o direito processual compreende as atividades a serem
desenvolvidas pelo Estado-juiz e pelas partes, a fim de que se faça atuar o
direito material ao caso concreto.
Direito processual é, assim, o complexo de normas que regem o
exercício da jurisdição pelo Estado-juiz, da ação pelo demandante e da
função administrativa é primária (espontânea), enquanto função jurisdicional é secundária (inerte, provocada – caráter substitutivo da jurisdição). A jurisdição é tida como “longa manus” da legislação, porque assegura a prevalência do direito objetivo no país. Por outro lado, na relação entre poderes Executivo e Judiciário, há dois sistemas: (a) francês ou do contencioso administrativo, caracterizado pela separação absoluta dos poderes, onde o Poder Judiciário não julga questões em que Estado é parte; o próprio Poder Executivo julga tais questões através de órgãos chamados de contenciosos administrativos, com força de definitividade; (b) anglo-saxão ou da jurisdição única, em que o Poder Judiciário pode examinar legalidade dos atos administrativos (adotado pelo Brasil). 236 Àqueles a quem se dirigem as regras do direito objetivo estão interligados por uma relação jurídica (nexo que une dois ou mais sujeitos, com atribuição de deveres e obrigações) Ex. credor e devedor, cônjuges etc. Se o fato se enquadrar na norma (subsunção), a regra abstrata gera uma regra concreta (criando-se direitos e obrigações entre os sujeitos da relação jurídica). 237 Além da definitividade, do cunho substitutivo e do escopo da atuação do direito, a doutrina ressalta outras características da jurisdição: lide e inércia. A existência de uma lide (ou crise de direito material, como vem se pronunciando parte da doutrina) é característica, pois é a existência do conflito de interesses que está a exigir a intervenção do Judiciário, que substitui a atividade dos sujeitos em conflito. Outra característica da jurisdição decorre do fato de que os órgãos jurisdicionais são inertes (provocados). O exercício espontâneo da atividade jurisdicional acabaria sendo contraproducente, pois a finalidade que informa toda a atividade jurídica do Estado é a pacificação social e isso viria a gerar conflitos e discórdias, lançando desavenças onde elas não existiam. Além disso, a experiência mostra que, quando o próprio juiz toma a iniciativa do processo, ele se liga psicologicamente à idéia que dificilmente teria condições para julgar imparcialmente. Por isso, fica geralmente a critério do próprio interessado a provocação do Estado-juiz ao exercício da função jurisdicional. Assim, é sempre uma insatisfação que motiva a instauração do processo. O titular de uma pretensão vem a juízo pedir a prolação de um provimento que, eliminando a resistência, satisfaça a sua pretensão e com isso elimine o estado de insatisfação; e com isso vence a inércia a que estão obrigados os órgãos jurisdicionais. CPC, art. 2º. Art. 2 - Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais. Em casos raros e específicos, a lei institui certas exceções à regra da inércia dos órgãos jurisdicionais. Ex. abertura de inventário. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 134-136.
127
defesa pelo demandado. O direito material, por sua vez, consiste no
conjunto de normas que disciplinam as relações do homem com os bens da
vida, bens estes que podem ser materiais (móveis e imóveis) e imateriais
(v.g., honra, liberdade etc).238
Afirma-se, então, que o direito processual é um instrumento a
serviço do direito material: todos os seus institutos principais (jurisdição,
ação, defesa e processo) são concebidos pela necessidade de se preservar
a autoridade do direito material. O processo, regulado pelo direito
processual, não encerra, portanto, um fim em si mesmo, tratando-se de um
direito-meio, no sentido de que é por seu intermédio que se consegue o
almejado bem da vida. É um meio para se perseguir um fim239, donde advém
a concepção de instrumentalidade.240
Portanto, malgrado nem sempre clara a linha divisória, de um lado
está o direito substancial a regular as situações da vida fazendo-se atuar
através do processo nas situações de crise e, de outro, o direito processual,
entendido como o conjunto de normas e princípios que disciplinam o
processo. Como esclarece Enrico Tullio Liebman (1984), a ordem jurídica:
(...) constitui-se de dois sistemas de normas, distintos e
coordenados, que se integram e se completam
reciprocamente: o das relações jurídicas substanciais,
representadas pelos direitos e pelas correspondentes
obrigações, segundo as várias situações em que as pessoas
venham a se encontrar, e o do processo, que fornece os
238 Segundo Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 36), além dos bens corpóreos e incorpóreos, as pessoas também podem ser objeto de uma relação jurídica, p. ex., quando se trata de sobre elas exercer o poder familiar ou a guarda. 239 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 104. 240 Em outras palavras, “o direito processual simplesmente carece de função sem o direito substancial, enquanto esse, determinante das bases primárias da convivência, se faz valer e se justifica, em condições normais, independentemente do processo, somente dele necessitando se valer nas situações de crise”. PESSOA, Fábio Guidi Tabosa. Elementos para uma teoria do direito intertemporal no
processo civil. São Paulo: USP, 2004, p. 155. (Tese de Doutorado).
128
meios jurídicos para tutelar os direitos e atuar o seu
sistema”.241
Dessa distinção resulta a autonomia do direito processual, que,
portanto, é ramo autônomo da ciência do direito.
A propósito, formaram-se duas teorias sobre o ordenamento
jurídico. A teoria dualista entende que ordenamento jurídico cinde-se em
direito material e direito processual, cabendo ao primeiro ditar as regras
abstratas a fim de torná-las, automaticamente, regras concretas quando o
fato se enquadrar naquelas normas abstratas, independentemente do
processo e do juiz, isto é, o processo não contribui para a formação das
regras concretas, não criando direitos e obrigações. Harmoniza-se com a
visão de Chiovenda no sentido de que o escopo do processo consiste na
atuação da vontade concreta do direito.
Já a teoria unitária propugna a inexistência de nítida cisão entre
direito material e direito processual. O processo participa da criação de
direitos e obrigações, os quais só nascem com a sentença. Ajusta-se com a
noção carneluttiana de jurisdição como a justa composição da lide.
A primeira é teoria aceita atualmente, pois, como ressalta Cândido
Rangel Dinamarco (2004), os defensores da teoria unitária jamais
conseguiram demonstrar:
(...) o acerto da premissa fundamental da tese proposta, que
seria a suposta inaptidão do sistema jurídico-substancial a
gerar concretos direitos, obrigações e relações jurídicas. A
realidade da vida mostra que direitos e obrigações nascem,
desenvolvem-se, modificam-se e extinguem-se, na grande
241 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. v. 1. Tradução Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 148.
129
maioria, sem qualquer interferência judicial e sem a
intercessão de qualquer outro meio de pacificação ou
composição.242
Em razão dessa autonomia, refuta a doutrina o ultrapassado
qualificativo de direito adjetivo ao direito processual, que não estabelece
relação de dependência para com o direito substancial, muito embora seja
seu instrumento243, repudiando a ciência processual igualmente a idéia de
processo como contrato ou quase contrato.
Deve-se a Oskar von Bülow, em seu livro A teoria das exceções
dilatórias e os pressupostos processuais, publicada na Alemanha em 1868,
o início da sistematização doutrinária que distinguiu o direito material
controvertido e o processo, revelando que entre as partes e o juiz havia uma
relação jurídica, de direito público, diversa da relação substancial discutida.
A teoria da relação jurídica processual foi contestada pela teoria do processo
como situação jurídica, de James Goldschmidt (2004), que vê no direito
meras chances. Em suas palavras:
Os nexos jurídicos dos indivíduos que se constituem
correlativamente são expectativas de uma sentença
favorável ou perspectivas de uma sentença desfavorável (...)
a incerteza é consubstancial às relações processuais, posto
que a sentença judicial nunca se pode prever com
segurança.244
242
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, vol. 1, p. 133. 243 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, vol. 1, p. 6. 244 Ibidem, p. 44-50.
130
Esta última teoria é rejeitada pela maioria dos processualistas,
informa Vicente Greco Filho (2003)245, porque não explica o processo
propriamente dito, mas os efeitos por ele provocados na relação de direito
material, na qual, sim, pesa o estado de incerteza.
Recentemente, surgiu na Itália o pensamento de Elio Fazzalari
apud Cintra, Grinover e Dinamarco (2004)246 repudiando a inserção da
relação jurídica processual no conceito de processo, afirmando que o
processo é representado pelo procedimento em contraditório. Em verdade,
com aduzem os referidos autores, a presença da relação jurídica processual
é projeção do contraditório, inexistindo qualquer incompatibilidade entre
essas duas facetas da mesma realidade, daí porque é “lícito dizer, pois, que
o processo é o procedimento realizado mediante o desenvolvimento da
relação entre os sujeitos, presente o contraditório”.247
Por outro lado, a natureza de direito público do direito processual,
no bojo do qual sempre se desenvolverá a atividade pública relativa ao
exercício jurisdição, não implica dizer que suas normas sejam
necessariamente cogentes ou de ordem pública.248 Cogentes, assinala
Cândido Rangel Dinamarco (2004):
(...) são todas as normas (processuais ou substanciais)
referentes a relações que transcendam a esfera de
interesses dos sujeitos privados, disciplinando relações que
os envolvam mas fazendo-o com atenção ao interesse da
sociedade como um todo, ou ao interesse público. Existem
245 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 1, p. 36. 246 In: CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 285. 247 Ibidem, p. 285. 248 Corretamente tomam como sinônimas as expressões “cogentes” e “de ordem públicas” Arruda Alvim (1996, p. 103) e Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 69).
131
normas processuais de ordem pública e outras, também
processuais, que não o são.249
De fato, as normas processuais podem ser cogentes (de ordem
pública) ou dispositivas. Aquelas são de observância obrigatória, não
podendo as partes convencionar de modo diverso, como o prazo de recurso.
Estas são obrigatórias apenas se as partes não convencionarem de modo
diverso, ou seja, são derrogáveis pela vontade das partes. Por exemplo, o
Código permite a eleição de foro pelas partes, afastando aplicação das
regras que versam sobre a competência relativa (Código de Processo Civil,
art. 111)250, bem como a convenção a respeito da distribuição do ônus da
prova, desde que não recaia sobre direito indisponível ou torne
excessivamente dificultoso o exercício do direito da parte (art. 333, parágrafo
único). Citemos, ainda, a norma que permite a suspensão do processo por
acordo das partes (art. 265, II), assim também a que se refere ao adiamento,
por uma única vez, da audiência de instrução e julgamento (art. 453, I), a
afastar a regra do art. 262 que trata do impulso oficial.
A diferença está no grau de imperatividade, sendo cogentes as
normas com imperatividade absoluta, sem qualquer margem de liberdade
para as partes disporem de modo diverso, enquanto dispositivas as de
imperatividade relativa, cujos preceitos são passíveis de modificação pelos
litigantes.
10.2. Objeto do Direito Processual Civil
249 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, vol. 1, p. 69. 250 A reforma operada pela Lei 11.280, de 16.02.2006, através do parágrafo único do art. 112 (“A nulidade de cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, pode ser declarada de ofício pelo juiz, que declinará de competência para o juízo competente”) não criou nova hipótese de incompetência absoluta; a incompetência continua a ser relativa, prorrogando-se caso o juiz não decline de ofício antes da resposta do réu ou este não oponha exceção declinatória, conforme art. 114. WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves
comentários à nova sistemática processual civil 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 17-22. SANTOS, Ernane Fidélis dos. As reformas de 2005 e 2006 do código de processo civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 179).
132
Verificado que a norma processual, quer a cogente quer a
dispositiva, representa expressão do exercício da função jurisdicional,
pertencendo aos quadros do direito público, impende apreender a amplitude
da matéria regulada por essas normas.
Humberto Theodoro Júnior (1998) especifica como objeto das leis
processuais: (a) regras de organização estática da jurisdição, como a
distribuição de atribuições entre os componentes dos órgãos judiciários,
horário de funcionamento dos serviços forenses251, competência de juízes
etc.; (b) regras sobre a forma e a dinâmica do exercício da ação em juízo
(procedimento); e (c) normas e princípios gerais ou específicos da função
jurisdicional e do exercício do direito de ação, como as condições e
pressupostos processuais, a definição dos ônus e faculdades das partes no
processo, meios e ônus de prova permitidos, meios de harmonizar o direito
processual com outras normas jurídicas estranhas ao Código, e de
solucionar conflitos intertemporais de normas.252
Moacyr Amaral Santos (2004), a seu turno, desdobra as leis
processuais em: (a) leis que regulam a formação dos órgãos jurisdicionais
(leis de organização judiciária); (b) leis que tratam da capacidade das partes
quanto à realização de atos processuais; e (c) leis caracteristicamente
processuais: as que regem as formas de atuação da lei, os direitos e
deveres dos órgãos jurisdicionais e das partes no processo, a forma e os
efeitos dos atos processuais; são as leis que disciplinam os atos
251 Concordamos com Fabio Guidi Tabosa Pessoa (2004, p. 106) no sentido de que o horário de funcionamento dos serviços forenses é puramente de natureza exclusivamente administrativa, não podendo ser qualificada de processual a lei a discipliná-lo. Diferentes são as leis que tratam do tempo e horário dos atos processuais, estas sim de cunho processual. 252 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, vol. 1, p. 21.
133
processuais, a relação jurídica que se estabelece no processo e bem assim
o procedimento, que é a exteriorização respectiva.253
Arruda Alvim (1996), por derradeiro, classifica as normas
processuais em: (a) normas processuais stricto sensu, relacionadas ao
processo em si, regulando o processo contencioso, as atividades das partes,
o reflexo dessas atividades nas próprias partes e eventualmente sobre
terceiros, o órgão jurisdicional e sua atividade, bem como a atividade dos
auxiliares da justiça; (b) normas processuais estritamente procedimentais,
reguladoras da forma do procedimento, também aplicáveis à jurisdição
voluntária; e (c) normas processuais lato sensu, disciplinadoras da
organização judiciária de cada um dos Estados.254
No tocante às normas de organização judiciária, precisamos ter
cautela, pois algumas normas versam assuntos relativos à administração do
Poder Judiciário, não podendo, pois, receber o qualificativo de
processuais255; são, ao reverso, consideradas de direito processual as
normas editadas pela Assembléia Legislativa que disciplinem a competência
dos órgãos jurisdicionais e as regras sobre ação direta de
inconstitucionalidade estadual.256
Compreende-se, portanto, no objeto das leis processuais, as
normas reguladoras do processo como tal, ou seja, tudo quanto diga
respeito à relação jurídica processual e ao procedimento, e as normas
253 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, vol. 1, p. 25. 254 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, vol.1, p. 105-117. 255 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, vol. 1, p. 68. 256 ANDRADE NERY, Rosa Maria de; NERY JUNIOR, Nelson. Constituição Federal comentada e
legislação constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 199.
134
disciplinadoras da organização judiciária no que versam sobre matérias de
direito processual. 257
Extraímos da lição dos processualistas, ainda, que não só as
normas de caráter substancial traçam regras de comportamento ou de
conduta, ou seja, as leis processuais não dispõem apenas sobre a técnica
do processo, estabelecendo também direitos e deveres dos sujeitos
evolvidos no processo. São processuais, assim, as leis reguladoras dos
direitos e deveres dos órgãos jurisdicionais e das partes no processo, quais
os preceitos éticos de lealdade, boa-fé, urbanidade e veracidade.258
257 Porém, para fins de competência legislativa, a Constituição Federal distingue normas processuais de normas procedimentais, ao preceituar a competência exclusiva da União para editar normas de direito processual (art. 22, I) e competência concorrente da União e Estados para legislarem sobre procedimentos em matéria processual (24, XI). Essa distinção operada pelo texto constitucional aparta-se do moderno conceito de processo, do qual fazem parte procedimento e relação jurídica processual. Não obstante, partindo-se do pressuposto de que inexistem palavras inúteis na Magna Carta, deve-se considerar que, “na ordem jurídica brasileira, podem existir normas puramente procedimentais ao lado de normas processuais stricto sensu”, enfatiza Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 67). Esclarecendo, então, as normas procedimentais que poderiam ser editadas pelos Poderes Legislativos Estaduais, esclarece Arruda Alvim (1996, p. 119): “Para se identificar, com alguma nitidez, o traço divisório entre as normas procedimentais e processuais é necessário que se levem em conta, fundamentalmente, dois parâmetros: (1º) a estreita conexão que têm certas regras de processo com o direito material v.g., regras atinentes à legitimidade, à capacidade, às provas, o que por si só, afasta a possibilidade de os Estados-federados legislarem acerca dessas matérias, que consistem, pois, em normas processuais e não procedimentais. (2º) o princípio segundo o qual todos são iguais perante a lei, pelo que as normas procedimentais não podem gerar direitos diferentes, v.g., no Acre e em Santa Catarina. A nosso ver, de acordo com estas balizas, normas procedimentais não gerais seriam as que estabelecessem novas formas de citação ou de intimação, normas respeitantes a cartas precatórias, a cartas de ordem, etc”. Por outro lado, os Regimentos Internos dos Tribunais são normas administrativas que disciplinam o funcionamento interna corporis dos órgãos do Tribunal respectivo, de forma que não podem dispor sobre direito processual estrito. É o que ensinam Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson Nery Júnior (2006, p. 199). As normas regimentais não são consideradas leis processuais em sentido estrito, porque editadas sem a interferência do Poder Legislativo, embora não se descarte a possibilidade de eventual conflito intertemporal entre antigas e novas disposições regimentais. Leis, define Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 73), “são os textos normativos elaborados segundo as competências e o processo legislativo definidos na Constituição e nas leis pertinentes, sempre com a participação do Poder Legislativo”. 258 Conveniente observarmos que o caráter processual de uma norma não se extrai pelo fato de serem aplicadas pelo magistrado, posto que ele também faz atuar o direito material, inclusive de modo superveniente (cf. art. 462 do CPC, com as limitações constantes da Constituição e da Lei de Introdução); resulta, em verdade, da idéia de cuidar do processo em si, da “vida do processo”, como diz Cândido Rangel Dinarmaco (2004, p. 65-66 e 68), acrescentando que o “objeto da norma processual abrange as situações de todos esses três sujeitos [juiz, autor e réu] e de suas condutas coordenadas ao objetivo final de pacificação. Nisso as normas processuais diferem as de direito material, as quais regem diretamente a atribuição de bens e determinação de condutas das pessoas em suas relações na vida em comum”.
135
Precisamos ter em mente, nesse aspecto, que uma conduta da
parte praticada em desobediência a um dever processual caracteriza-se
como conduta processual (e não de direito material), tais como as ações
exercidas pelas partes em transgressão ao dever de lealdade e boa-fé. O
ato da parte (Código de Processo Civil, art. 158) que, por exemplo, altera a
verdade dos fatos (art. 17, II) é ato processual; também o é o ato do
executado que intimado, não indica ao juiz, em cinco dias, quais são e onde
se encontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores (art.
600, IV, com a redação dada pela Lei nº 11.382, de 06.12.2006).
Ora, resulta, então, que se o dever é processual e a subseqüente
conduta é igualmente instrumental, segue a mesma natureza as normas no
bojo das quais se estabelecem medidas de coerção e punição,
eventualmente impostas pelo magistrado. Importa apreendermos que o
direito intertemporal processual não se reserva somente aos atos do juiz,
mas igualmente aos atos das partes. E a respeito destas normas
(processuais) de caráter penitencial, vigora o princípio da irretroatividade das
sanções processuais agravadas ou inovadas, as quais não incidem sobre
atos (processuais) anteriormente praticados.259
259 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 59. Observamos, inclusive, que o autor na página mencionada, ao comentar os arts. 16 e s. do Código de 1973, denomina o tópico de “Sanções Processuais”, de modo a evidenciar a natureza formal por nós afirmada. Outrossim, sobre a impossibilidade de cominação à parte da multa prevista no parágrafo único do art. 14 do Código de Processo aos atos (processuais) praticados antes da lei que a instituíra (Lei nº 10.358, de 27.12.2001), discorre Cândido Rangel Dinamarco (2002) na obra intitulada A reforma da reforma, p. 71-72. Já a multa diária a que alude o § 4º do art. 461, imposta para forçar o réu a cumprir obrigação de fazer ou não fazer, é aplicável aos deveres constituídos ou violados antes da instauração do processo (Eduardo Talamini 2001, em Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer, p. 36-41), porque esses atos constituídos ou violados são atos materiais (e não instrumentais), ao passo que a multa diária é de cunho processual, de modo que há não vinculação entre eles quanto ao direito intertemporal. Por sua vez, a despeito de respeitáveis entendimentos em contrário, entendemos que a multa prevista no art. 475-J somente é exigível depois de transcorrido o prazo de quinze dias para seu pagamento, contados da intimação do devedor na pessoa de seu advogado; cremos, também, e aqui discordando de abalizados trabalhos doutrinários, que esta intimação não se perfaz com o despacho “cumpra-se” ou outro similar, mas com despacho específico para esse fim, proferido após o credor requerer o cumprimento de sentença apresentando memorial do cálculo atualizado; esta nos afigura a posição mais segura, pois o devedor terá conhecimento do valor exato a ser pago, além de decorrer da própria exegese legal (art. 475-B) a exigir o requerimento do credor para o início do cumprimento de sentença “na forma do art. 475-J”, que trata justamente da multa. Nesse sentido, o recente julgado oriundo do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
136
Por fim, devemos ressaltar a importância do exame desse
conteúdo, em vista do qual a lei qualificar-se-á como processual
independentemente de encontrar-se inserida neste ou naquele Código260 ou
Agravo de Instrumento nº 1.081.610-00/1, rel. Des. Neves Amorim, j. 12/12/06. Acresce, ainda, que a cominação da multa de ofício, com o conseqüente aumento do valor do débito, pode, inclusive, inibir eventual composição amigável entre as partes, que não raro firmam acordos extrajudiciais somente a após prolação de sentença e o respectivo do trânsito em julgado; o credor é, pois, quem deverá dizer se prefere a intervenção judicial (intimando-se o devedor para pagamento da dívida sob pena de multa) ou não, para o recebimento de seu crédito. Quanto à questão de direito intertemporal relativa à aludida multa, partindo-se do pressuposto da necessária antecedência de requerimento do credor, ela será passível de ser imposta desde que esse requerimento tenha ocorrido sob a égide da nova lei ou, a contrario sensu, a ação de execução iniciada antes a vigência da Lei nº 11.232, de 22.12.2005, deve seguir o texto primitivo (Humberto Theodoro Júnior, 2006, p. 124-125). Isso porque, é princípio pacífico de direito intertemporal de que prossegue a ação iniciada antes da lei que a aboliu (Carlos Maximiliano, 1955, p. 30), pois é direito adquirido do demandante ao processamento da ação já proposta. Nada obsta, porém, se ainda não houve citação do devedor para em 24 horas pagar o débito ou nomear bens à penhora, que o credor desista da ação de execução iniciada segundo os ditames da lei antiga e, simultaneamente, requeira o cumprimento de sentença nos termos da lei nova. É uma sistemática que não viola qualquer princípio de direito intertemporal e permite a aplicação do moderno texto legal. Mais ou menos no mesmo sentido discorre Paulo Afonso de Souza Sant’Anna (2006, p. 178): “(...) se a execução foi proposta na vigência do sistema revogado, mas ainda não houve citação do devedor, poderá o credor requerer o recolhimento do mandado (citação por meio de oficial de justiça) ou a não expedição da carta registrada (citação pelo correio), bem como o desentranhamento da petição inicial. Deverá, ainda, requerer a intimação do devedor para que cumpra a sentença na forma do novo sistema”. Porém, se já efetuada a citação do executado sob o velho regime, nem por isso serão cabíveis os embargos do devedor, salvo se o executado fora intimado da penhora na vigência da lei antiga. Caso intimado da penhora sob império da Lei nº 11.232, de 22.12.2005, deverá oferecer impugnação (art. 475-L); se, na hipótese, o devedor opôs embargos, deverá o juiz receber como impugnação. 260 Não nos parece acertado o entendimento de Fábio Guidi Tabosa Pessoa (2004, p. 143) ao vislumbrar flagrante cunho processual nos arts. 231 e 232 do Código Civil. Os dispositivos em questão estabelecem a presunção ficta de paternidade àquele que se recusa a submeter-se ao exame pericial destinado a esse fim (Ricardo Fiúza, 2003, Novo Código Civil comentado, p. 223-224), sendo certo que presunção legal é assunto reservado ao direito substancial, pois se encontra diretamente relacionada com a admissibilidade e o valor de determinada prova (vasta doutrina é apontada por Wilson de Souza Campos Batalha, 1980, em Direito intertemporal, p. 562-568); desimportante o fato de a recusa ocorrer durante o curso do processo para a correta qualificação da norma. A isso se acrescem as palavras de Chiovenda (1969, p. 94): “De igual natureza são as normas que encerram praesumtiones iuris: conquanto relativas ao ônus da prova (art. 1.352, Código Civil), não têm natureza processual, pois que não tendem a manter a igualdade das partes com repartir entre elas, de modo geral, o ônus da prova segundo o princípio da normalidade, da maior facilidade da prova (...); senão que – embora inspiradas, quase sempre, no que acontece comumente – estabelecem que fatos devem, em determinadas relações jurídicas, tratar-se como constitutivos, ou impeditivos, ou extintivos do direito, com o fim, não tanto de conformar à verdade a convicção do juiz, quanto de facilitar certas condições jurídicas (de filho, de proprietário, de possuidor, de credor...). Pertencem, por conseguinte, ao direito substancial”.
137
em certa legislação extravagante261, anotando-se, outrossim, que nem todas
as normas constantes do Código de Processo Civil são processuais.262
261 Do que são exemplos o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Falências, no bojo dos quais existem disposições de natureza material e processual. 262 É o caso da responsabilidade patrimonial (art. 591), matéria puramente substancial, conclusão igualmente válida para os casos de impenhorabilidade de bens (art. 649).
138
11. SÍNTESE HISTÓRICA DO DIREITO BRASILEIRO NO
INTERTEMPORAL PROCESSUAL
O primeiro diploma genuinamente brasileiro a tratar de processo
foi o Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850, que, por força do
disposto no seu art. 27, se aplicava unicamente às causas comerciais. O art.
742 previa, in verbis:
As causas comerciais intentadas depois da execução do
Código, mas provenientes de títulos ou contratos anteriores
à execução do mesmo Código, serão regulados, quanto à
forma de processo pelas disposições deste Regulamento; e
quanto à matéria, serão decididas pela legislação que
anteriormente regia.
Tal disposição já denotava o perfeito conhecimento do legislador
acerca da diversidade, no tempo, de aplicação do princípio tempus regit
actum no direito material e no direito processual.
Às causas civis se aplicavam, ainda, as Ordenações Filipinas, o
que ocorreu até 16 de setembro de 1890, quando sobreveio o Decreto nº
763, que prescreveu a incidência do Regulamento nº 737 às causas cíveis
em geral, com algumas exceções.
Com o advento da Constituição de 1891 e a atribuição aos
Estados de competência legislativa em matéria processual, códigos
estaduais foram editados a partir de então.
Assim é que os Códigos de Processo de Minas Gerais e
Pernambuco previram nos arts. 1º das disposições transitórias e 1.503,
respectivamente, a sua aplicação às causas pendentes, sem prejuízo dos
139
atos consumados, regendo-se, todavia, os recursos pela lei em vigor ao
tempo da prolação da sentença recorrida.263
De se destacar, ainda, o Código de Processo Civil do então
Distrito Federal, ao tratar detidamente da problemática do direito transitório
nos arts. 1.196 a 1.199. Preceituou referido diploma a imediata aplicação
aos feitos em curso, respeitando-se os atos já praticados sob a égide da lei
anterior. Quanto aos recursos, dispôs:
Depois de entrar em vigor o Código, não serão permitidos
outros recursos senão os que ele admite, e por ele se
deverão regular a sua interposição, forma do processo e
julgamento, sem prejuízo dos que tenham sido interpostos e
dos respectivos termos já processados de acordo com a lei
anterior.264
A partir de 1934, com a promulgação de nova Constituição, que
novamente centralizou a competência para legislar sobre direito processual
na União, tornou-se necessária a preparação de um novo Código, o que se
deu em 1939.
Nesse passo, o art. 1.047 do Código de Processo Civil de 1939,
ao disciplinar transitoriamente a matéria, firmou a regra da aplicação de sua
imediata, salvo quanto aos processos em que iniciada a instrução em
audiência, os quais seriam processados e julgados em primeiro grau pela lei
anterior, exceto no tocante às nulidades processuais (§ 1º). E, não obstante
processadas e julgadas tais ações em primeiro grau de jurisdição de acordo
com a lei anterior, relativamente aos recursos preceituou a admissibilidade, o
263 Ao prever o regramento do recurso pela lei do tempo em que proferida a sentença, os legisladores aproximaram-se do sistema das fases processuais, isto é, toda a fase recursal (cabimento e processamento) foi regulada por uma única lei, aquela vigorante quando prolatada a decisão. 264 Não foi de boa técnica, inclusive apartando-se dos postulados da segurança jurídica e previsibilidade, deixar legislador de regular o cabimento do recurso pela lei vigente ao tempo que prolatada a decisão, ignorando o direito adquirido de recorrer.
140
processamento e julgamento pelo novo diploma, com exceção dos já
interpostos, os quais seriam processados e julgados segundo a lei anterior
(§ 2º).265
Finalmente, em 1973 veio a lume o vigente Código de Processo
Civil, traçando duas regras de direito transitório. A primeira, inserta no art.
1.211, acompanhou a tradição brasileira de aplicação imediata da lei
processual aos feitos pendentes e, a segunda, descrita no art. 1.217,
ressalvou a manutenção dos recursos regulados em leis especiais e as
respectivas disposições procedimentais constantes do Código de 1939, até a
publicação de lei destinada a adaptá-los ao novo Código.
Exposta sucintamente as principais disposições processuais civis
editadas ao longo da história brasileira, é bem de constatar a omissão
legislativa quanto ao estabelecimento de regras específicas de direito
intertemporal aplicáveis exclusivamente ao campo processual civil. Todos os
artigos supramencionados situam-se na seara do direito transitório, vale
dizer, foram criados com o único propósito de regular a fase de transição
havida entre os velhos e os novos diploma legais, nos quais foram inseridos.
Nem mesmo no art. 1.211 do atual Código podemos encontrar
uma regra de direito intertemporal processual, cuidando-se de simples
disposição transitória ao reger a incidência no tempo tão-somente do próprio
Código de Processo Civil, quando de sua entrada em vigor.
265 Sem fazer distinção, no tocante à aplicação da lei nova, entre cabimento e procedimento do recurso, o Código de 1939 relacionou-se com o sistema das fases processuais. A previsão do §1º também se harmoniza com esse sistema. Por outro lado, contornando a atecnia do legislador, que expressamente regulou a vigência pela lei anterior apenas dos recursos já interpostos, olvidando mais uma vez do direito de recorrer já constituído, temos o parecer de Luís de M. S. Machado Guimarães (1942, p. 711-713) no sentido de que a admissibilidade dos recursos, ainda que não interpostos quando da entrada em vigor do novo Código, seriam regulados pela lei anterior se anteriormente houvesse sido proferida a decisão recorrível; propugnou o autor não só a admissibilidade pela lei vigente ao tempo da sentença, mas também o processamento do recurso, inclinando-se pelo sistema das fases processuais.
141
A única regra específica a cuidar da intertemporalidade jurídica
conflitual aplicável ao processo civil como um todo266 é a constante do art.
87 do Código de Processo Civil, na parte em que preceitua a irrelevância,
em se tratando de competência, de superveniente modificação do estado de
direito após a propositura da ação (rectius: edição lei nova), salvo quando
suprimir o órgão judiciário ou alterar a competência absoluta.
Há autores, como Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini
Grinover e Cândido Rangel Dinarmarco (2004)267, que vislumbram no art. 2º
do Código de Processo Penal (“a lei processual penal aplicar-se-á desde
logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei
anterior”), um princípio geral de direito intertemporal que se aplica, como
preceito de superdireito, também ao processo civil.
É indiscutível ser, de fato, o art. 2º do Código de Processo Penal
regra de superdireito, porque tem por objeto a disciplina de outras leis. Tal
consideração, porém, não autoriza a ilação de que se aplica ao campo
processual civil. Nem a circunstância de vigorar o princípio tempus regit
actum tanto no processo penal268 quanto no processo civil é passível de
levar a essa conclusão, porquanto se trata de princípio derivado das próprias
regras gerais de direito intertemporal, que, por isso, seria aplicável ao
processo penal ainda que inexistente o sobredito artigo.
A bem da verdade, as leis processuais penais não têm qualquer
incidência subsidiária no direito processual civil, de modo que, à falta de
preceitos específicos, é na Constituição Federal e na Lei de Introdução que
266 O art. 1º do Código de Processo Civil estabelece que ele regerá o exercício da jurisdição em todo o território nacional, de sorte que, salvo disposições em sentido contrário, contidas leis processuais extravagantes, também a estas se aplica o Código de Processo. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p 76. 267 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 97-99. 268 MIRABETE, Julio Fabrini. Código de processo penal interpretado. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 78-79.
142
devem ser extraídos os princípios gerais de direito intertemporal processual
civil.
143
12. O DIREITO INTERTEMPORAL E O PROCESSO CIVIL
12.1. Regras Gerais de Direito Intertemporal e o Processo Civil
Investigada a submissão da lei processual aos ditames dos arts.
5º, XXXVI, da Constituição Federal e 6º da Lei de Introdução ao Código Civil,
regras gerais de direito intertemporal, é de considerarmos superado o
entendimento outrora sufragado no sentido de que as especificidades em
sede de direito processual consistiam na aplicação imediata da norma
processual ou mesmo na sua eficácia retrooperante.
Não é recente essa concepção distorcida a respeito da matéria.
Segundo informam os doutos, o doutrinador medieval Fellinus Maria
Sandaeus269, na obra Commentaria in quinque libros Decretalium, publicada
em 1567, após assentar o princípio geral de que a lei não invade fatos
pretéritos, apresentou dez exceções, duas das quais relacionadas ao tema
processual, vale dizer, se concernentes: (a) ao modo de ordenar as causas
em juízo; e (b) lei que cria ou suprime uma exceção, pois se trata de matéria
processual.270
No sistema brasileiro não foi diferente. Já se mencionou a
influência do anteprojeto de Coelho Rodrigues para a feitura Lei de
Introdução e do Código Civil de 1916. Mas outros anteprojetos foram
apresentados destinados a essa finalidade. O de Nabuco de Araújo previa,
no art “caput” do art. 7º, que as leis não têm efeito retroativo, salvo as leis do
processo civil (§4º).271
269 De acordo com Roubier, Fellinus viveu de 1444 a 1503. ROUBIER, Paul. Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2ª ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960, p. 48. 270 Para Limongi França (1998), “a síntese de Felinus Sandaeus constitui o primeiro grande marco na evolução do Direito Medieval desde Justiniano (527-565)”. In: FRANÇA, R. Limongi. A
irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 29-31. 271 In: FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 139-140.
144
O anteprojeto de Felício dos Santos seguiu a mesma linha de
orientação, ao prever no art. 7º, “caput”, que a lei não pode ser aplicada
retroativamente, com ofensa a direitos legitimamente adquiridos, estando
fora dessa compreensão as leis de processo (art. 8º, § 4º).272
A jurisprudência pátria também se inclinava pela existência de
peculiaridades nas leis processuais, prescrevendo a retroação das leis de
ordem pública, como processuais (Corte de Ap., 18-7-1924, Revista de
Direito, - LXXVI/568, 30-1-1923 – LXIX/538).273
A premissa de que partem tais ilações é, decerto, equivocada,
porque, repita-se, toda e qualquer lei detém a capacidade de atingir, em
regra, as situações pendentes, das quais o processo é exemplo.
Ressaltemos, ainda, que em muitos casos nos quais se cogitava de
retroatividade não haveria mais do que simples efeito imediato da lei
processual.
A suposta existência de imediatidade ou retrooperância da lei
processual como fator diferenciador de outras leis pode ser atribuída, em
vários casos, pela circunstância de que, no mais das vezes, um direito
adquirido de natureza material se configura em momento anterior a um
direito adquirido processual.
Exemplificando, é regra de direito intertemporal que um contrato
rege-se pela lei vigorante ao tempo de sua formação, inclusive no tocante
aos efeitos futuros, impedindo o julgador de decidir a lide com base em lei
posterior de cunho material vigente no momento da prolação da sentença;
contudo, uma lei processual posterior ao aperfeiçoamento desse mesmo
contrato será, em princípio, aplicada ao processo em curso. Tanto a lei
material quanto a processual são dotadas de eficácia imediata, com a única
272 Ibidem. 273 Ibidem.
145
condição de que respeitem os direitos adquiridos - dos quais os atos são
espécies - e suas conseqüências próprias ulteriores.
Noutro falar, Humberto Theodoro Júnior (1998) explica que “a lei
que se aplica em questões processuais é a que vigora no momento da
prática do ato formal, e não a do tempo em que o ato material se deu”.274
Em suma, às normas processuais e àquelas outras prevalece, em
princípio, a regra tempus regit actum, mas o ato a ser considerado pelo
direito processual é o ato processual e não o ato substancial. A regra é a
mesma, apenas variando no tempo a formação de um e outro ato.275
Atualmente, a confusão não se encontra totalmente dissipada,
quiçá pelo teor da regra transitória a que alude o art. 1.211 do Código de
Processo Civil, nestes termos: “Art. 1.211. Este Código regerá o processo
civil em todo o território brasileiro. Ao entrar em vigor, suas disposições
aplicar-se-ão desde logo aos processos pendentes”.
Leitura apressada do referido dispositivo legal poderia conduzir o
intérprete, salienta Nelson Nery Junior (2004):
(...) à falsa idéia de que a aplicação imediata da lei nova aos
feitos pendentes seria irrestrita. É verdade que a lei
processual nova rege sempre para o futuro, mas se deve
274 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 22ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, vol. 1, p. 22. 275 A diferença entre o ato material e o ato formal também é sentida na área penal, como observou o Superior Tribunal de Justiça (RSTJ 73/53): “O princípio da exigência de anterioridade da lei em relação ao crime não se estende às normas de processo e de execução, em relação às quais vigora a regra da anterioridade da lei frente ao ato processual, não ao fato criminoso. Mas, aplicando-se a norma processual nova aos processos em curso, ‘sem prejuízo dos atos realizados sob a vigência da lei anterior’ (art. 2º do CPP), não poderia o acórdão em exame cassar liberdade provisória regularmente concedida a acusado de estupro, na vigência de lei anterior, pelo só argumento da vedação superveniente, contida na lei de crimes hediondos (art. 22, II, da Lei nº 8.072/90). Hábeas Corpus deferido para conceder-se ao paciente liberdade provisória, nos termos do art. 310, parágrafo único, do CPP” (MIRABETE, Julio Fabrini. Código de processo penal interpretado. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 79).
146
observar, no particular, o que determina a garantia
constitucional fundamental do respeito ao direito adquirido e
ao ato jurídico perfeito (CF 5º XXXVI). Assim, os atos
processuais já praticados sob a égide da lei antiga
caracterizam-se como atos jurídicos processuais perfeitos,
estando protegidos pela mencionada regra constitucional,
não podendo ser atingidos pela lei nova.276
A corroborar o sobredito e escorreito entendimento, temos a
observação de Wellington Moreira Pimentel (1975), nos seguintes termos:
Neste particular, no que se respeita a sua eficácia temporal,
a lei do processo em nada difere de qualquer outra norma.
Atua para o futuro. (...) Daí resulta que a lei processual nova
regulará os atos ainda não praticados, respeitando,
entretanto, os que já tiverem sido segundo a disciplina
emprestada pela lei anterior. Ora, se assim é, não há que se
falar em retroatividade da lei processual, a menos que, por
equívoco, se suponha existência de direito adquirido a
determinada forma procedimental (disposição seqüencial
dos atos que consubstanciam o fenômeno processual) ou,
também erroneamente, se veja a relação processual sem a
sua exata conformação, mas como se fora uma relação
instantânea, ou estática, ou formada por um bloco
monolítico de atos e atividades (sistemas da unidade
processual), o que não é acolhido pela melhor doutrina.277
Por outro lado, corolário das regras gerais de direito intertemporal,
a lei nova de cunho processual deve respeitar não só os atos processuais
aperfeiçoados sob a vigência da lei antiga, mas igualmente os efeitos
276 NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 492-493. 277 PIMENTEL, Wellington Moreira. Questões de direito intertemporal diante do código de processo
civil. v. 251. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1975, p. 127.
147
(desses atos) a produzir a partir da entrada em vigor do novo diploma legal,
isto é, a aplicação imediata da lei nova incide apenas sobre atos realizados
após a sua entrada em vigor, resguardando-se tanto os efeitos produzidos
quanto os atuais (ainda não produzidos) dos atos passados.
A respeito, Chiovenda (1969) é incisivo no sentido de que a lei
processual nova deve respeitar os atos consumados sob a lei antiga;
“significa isso que mesmo os efeitos processuais ainda não verificados do
ato ou fato já consumados permanecem regulados pela lei antiga, sem que a
lei nova se diga, em verdade, retroativa”.278
De igual teor é a lição de Moacyr Amaral Santos (2004), para
quem a lei processual não tem efeito retroativo, isto é, ela é inaplicável a
atos passados, regulados por lei anterior, os quais permanecem com os
efeitos produzidos ou a produzir. A lei nova atinge o processo em curso no
ponto em que este se encontrar, sendo resguardada a inteira eficácia dos
atos processuais até então praticados. Somente os atos posteriores à lei
nova que se regularão conforme os preceitos desta.279
Francesco Carnelutti (1940) segue a mesma linha ao dizer ser de
rigor estabelecer nitidamente:
(...) la relación entre el hecho efectuado bajo el dominio de
la ley anterior, y el efecto o efectos jurídicos de cuya
producción se discuta. Todos los efectos que la norma
jurídica atribuye a un hecho efectuado bajo su dominio, y
únicamente ellos, subsisten pese al cambio de la propia ley
(...).280
278 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de J. Guimarães Menegale. v.1. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 87-94. 279 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 31. 280 CARNELUTTI, Francesco. Sistema de derecho procesal civil. Traducción de Niceto Alcalá-Zamora Y Castillo y Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Uteha Argentina, 1940, p. 109. José
148
A propósito dos efeitos novos dos atos processuais passados,
importa ressaltarmos que, ao contrário do que poderíamos supor, tanto a
doutrina objetiva quanto a doutrina subjetiva encampam a orientação de
proteção a esses efeitos ainda não consumados.281
Em abono à concepção ora defendida, de rememorar que o
jurídico perfeito é uma das formas de gerar um direito adquirido e que, em
regra, os efeitos do direito adquirido são inatingíveis pela lei nova.
Entretanto, ao tratar do assunto, Paul Roubier (1960) faz a
distinção entre atos da parte e atos do juiz: no primeiro caso, à semelhança
das situações jurídicas de direito privado, aplicar-se-ia a lei vigente ao tempo
em que produzido o ato; no segundo, ocorre a incidência imediata da lei,
sendo a retroatividade só aparente.282
Essa diversidade de tratamento entre atos das partes e atos do
juiz para fins de aplicação da lei no tempo, ressalvado melhor entendimento,
não encontra guarida no direito brasileiro, ante o que dispõem a Carta
Magna e a Lei de Introdução, que não fazem essa distinção. Wilson de
Souza Campos Batalha (1980), ao que parece, não acolhe a lição de Paul
Roubier (1960) afirmando que: “Cada momento processual é regulado pela
sua lei, isto é, pela lei vigente ao tempo em que se praticaram os atos que Frederico Marques (2001, p. 83) também é expresso nesse sentido, ao afirmar: “Em se tratando de atos processuais cujos feitos se produzem sob a vigência da lex novas, não incidirá esta, no tocante a esses efeitos, desde que a lex prius preveja que conseqüências devem resultar do ato praticado sob sua vigência”. Wellington Moreira Pimentel (1975, p. 132), também disserta: “Os efeitos já produzidos pelo ato praticado segundo a lei que ao tempo vigia bem como os efeitos pendentes por aquele se regerão, e, por isso, subsistirão diante da revogação da lei sob cuja égide se formaram”. 281 É o que informa Wilson de Souza Campos Batalha (1980, p. 557-558), ao citar os subjetivistas Merlin, Dalloz e Gabba, e o objetivista Coviello, que é expresso quanto à intangibilidade dos efeitos novos dos atos processuais antigos. 282 Diz o doutrinador francês: “Il résulte de là que le droit transitoire procédural este commandé par la distinction capitale de lois qui gouvernent l’activité du juge et des lois qui gouvernent l´activité des parties; les premières saisissent l’activité du juge à tout moment du procès; elles ont ainsi une apparence de rétroactivité, mais ce n’est qu’une fausse apparence, une pseudo-rétroactivitè; quant aux secondes, elles ont sur les situations juridiques procédurales exactement la même portée d’application que les lois de droit privé sur les situations juridiques de droit prive” (Roubier, 1960, p. 546).
149
deveriam ter sido praticados. E esta solução alberga não somente os atos
das partes como também os atos do juízo”.283 Carlos Maximiliano (1955)
também não faz tal diferenciação284, nem Eduardo Espínola e Eduardo
Espínola Filho (1943).285
É de se reconhecer, contudo, que nem sempre é tarefa fácil
identificar o que representa efeito (produzido ou a produzir) do ato
processual e o que se caracteriza como outro ato processual e não simples
efeito do ato antecedente.
De todo modo, exemplificando como efeito, vejamos a questão da
remição de bens. O vigente Código de Processo Civil, ao entrar em vigor,
suprimiu o direito de o devedor remir o bem penhorado286, limitando a
respectiva legitimação ao cônjuge, ao descendente e ao ascendente (art.
787). Como o direito à remição é conseqüência (efeito) da arrematação ou
do requerimento de adjudicação, se alguns destes atos tiverem sido
realizados sob o império do Código revogado, ao devedor continuaria aberta
a possibilidade de remição mesmo na vigência do novo Diploma
Processual.287
Os arts. 787 a 789 do Código, que tratavam da remição de bens,
foram revogados pela Lei nº 11.382, de 06.12.2006, a qual, apesar de
extinguir o direito à remição em caso de arrematação, conferiu ao cônjuge,
283 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito intertemporal. Op. cit, p. 561. 284 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 263. 285 ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo : Freitas Bastos, 1943, p. 486-487. 286 Não devemos confundir remição de bem com remição da execução e com remissão da dívida. A segunda é ato do devedor, que paga o débito, mais juros, custas e honorários. Já a terceira é o perdão da dívida, concedida pelo credor ao devedor. 287 Nossa posição coincide parcialmente com a de Galeno Lacerda (1974, p. 45-46), para quem o direito de o devedor remir o bem penhora subsistiria desde que havida a arrematação ou a adjudicação antes da vigência do Código de Processo Civil de 1973. Para nós, como o que gerava direito à remição não era propriamente a adjudicação, mas o requerimento de adjudicação, nos posicionamos no sentido de que o direito sobreviveria desde que tenha ocorrido a arrematação ou o pedido pelo executado de adjudicação sob o império da lei velha.
150
descendentes e ascendentes do executado a possibilidade de adjudicação
dos bens penhorados (art. 685-A, § 2º). Pela mesma linha de raciocínio, com
relação às arrematações realizadas antes do advento da nova lei, subsiste o
direito aos parentes do executado de remir o bem penhorado.
Outro exemplo de efeito de ato processual realizado no passado
diz respeito à questão da penhora. A constrição, além de individualizar o
patrimônio do devedor e gerar direito de preferência ao credor288, tinha o
efeito de permitir o oferecimento de embargos à execução fundada em
sentença (Código de Processo Civil, antiga redação do art. 741),
substituídos pela possibilidade de impugnação (art. 475-L, com a redação
dada pela Lei nº 11.382, de 06.12.2007).289 Ora, se a penhora aperfeiçoou-
se antes da edição na nova lei, nos parece que teria o executado o direito de
opor os embargos respectivos, por força do mencionado efeito resultante da
penhora.
Por fim, anotemos que a concepção de inexistência de
diversidade de tratamento das normas processuais no tocante ao fenômeno
da intertemporalidade jurídica conflitual torna-se mais evidente pela
circunstância de encontrar-se firmada, atualmente, a autonomia do direito
processual290 e do processo291 e, por conseguinte, da relação jurídica
288 A Lei nº 11.382, de 06.12.2007, ao dar nova redação ao art. 698 do Código de Processo Civil, tornou expressa a prática de se cientificar o credor com penhora anteriormente averbada de ação execução movida por outrem, sem o que não se defere a adjudicação ou alienação do bem do executado. 289 Por outro lado, se a lei nova cria certo efeito, até então inexistente, a um ato processual, esse efeito não prevalece para os atos aperfeiçoados sob a vigência da lei revogada. Por exemplo, o Código de Processo Civil de 1973 criou o direito de preferência do credor sobre o bem penhorado (art. 612). Tal preferência (efeito) não pode ser atribuída a penhoras realizadas antes da entrada em vigor do Código, sob pena de retroatividade e de ferir direitos de outros credores (Galeno Lacerda, 1974, p. 61). 290 A autonomia do direito processual não significa isolamento, mas corpo unitário dentro de um conjunto regido por leis próprias que regulam o exercício da função jurisdicional. O direito processual é autônomo nesse sentido, como corpo de princípios e leis dentro de um sistema maior, a ciência do direito, da qual é um de seus ramos. Liga-se aos demais ramos sob os mais variados aspectos: (a) no direito constitucional, o direito processual irá encontrar diretrizes de sua estrutura e função. Na Constituição Federal se esboçam os princípios fundamentais do processo, tais como o da igualdade das partes (art. 5º), o da inafastabilidade do controle jurisdicional, pelo qual toda e qualquer lesão de direitos é suscetível de apreciação pelos órgãos judiciários (art. 5º, XXXV), o do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV), o da imparcialidade do juiz (art. 5º, XXXVII e LIII) etc.; (b) das ligações
151
processual292, inconfundível com a relação de direito material, de forma a
divergirem, inclusive no tempo, os direitos que daquela e desta emergem.
com o direito processual penal refere-se ao fato de ambos serem ramos do mesmo direito, o direito processual (institutos básicos se aplica a ambos), o que levou a doutrina a criar uma teoria geral do processo voltada ao estudo dos princípios comuns a ambos os ramos; (c) com o direito penal se relaciona, porque alguns ilícitos processuais caracterizam também ilícito penal, a exemplo dos delitos de falso testemunho, falsa perícia e coação no curso do processo; e (d) com o direito privado (civil e comercial), pois os conflitos de interesses regulados pelo direito privado se resolvem pelo processo civil. (SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 19-20). 291 A autonomia do processo traz a idéia de autonomia do direito de ação. A ação é definida como o direito subjetivo público, abstrato e autônomo, a um provimento jurisdicional de mérito. Direito porque contrapõe-se ao dever do Estado de prestar a função jurisdicional. É subjetivo porque o direito é exercido contra o Estado, que tem o dever de resolver os litígios. É público por referir-se a uma atividade pública do Estado, qual seja, a atividade jurisdicional. É autônomo porque se distingue do direito material alegado pela parte. É abstrato, pois independe da existência efetiva do direito material invocado pela parte. Teorias sobre ação: (a) teoria civilista (imanentista ou clássica): por esta teoria, que vigorou desde o direito romano até o século passado, a ação era considerada uma qualidade do direito material da parte. Entendia-se que não poderia haver direito sem ação, nem ação sem direito (Código Civil de 1916, art. 75). Não se diferenciava a ação do direito; (b) teoria autônoma: após a célebre polêmica entre os romanistas Windscheid e Muther, passou-se a considerar a ação diferente do direito material lesado. A ação é um direito autônomo em relação ao direito material. Seriam realidades distintas a ação e o direito material. A partir desta nova visão da ação, tida como direito autônomo, formaram-se duas correntes, ambas fundadas na autonomia: b. 1) teoria autônoma e concreta: para esta teoria, embora a ação seja um direito diverso do direito material lesado, o direito de ação existe somente quando também exista concretamente o próprio direito material. A ação seria, então, o direito a um provimento favorável; b .2) teoria autônoma e abstrata: o direito de ação, além de diverso do direito material, independe da existência deste. Mesmo quando a sentença julga improcedente o pedido do autor, não deixa de ter havido ação. A sentença pode ser favorável ou desfavorável e ação terá, mesmo assim, existido. É suficiente, para ter havido ação, que o autor invoque um direito material abstratamente protegido pelo ordenamento jurídico, ainda que, concretamente, o juiz diga que ele não tem razão (não tem o direito que invoca). Esta última é teoria dominante. 292 A relação jurídica processual difere da relação jurídica de direito material. Esta envolve os titulares dos interesses em conflito, como credor e devedor; cônjuges etc. Aquela é estabelecida no bojo no processo e tem como sujeitos o demandante, o demandado e o juiz. O juiz é um dos sujeitos e comanda a atividade processual, distinguindo-se das partes por ser imparcial. Na relação jurídica processual há: (a) poderes: poder é a atividade permitida pelo direito que possibilita a interferência na esfera jurídica de alheia. Ex. juiz tem o poder de determinar o comparecimento de testemunhas; (b) faculdades: faculdade é atividade permitida pelo direito que não atinge a esfera alheia. Ex. faculdade de perguntas pelas partes; (c) sujeições: impossibilidade de evitar conduta alheia. Ex. sentença; (d) deveres: dever é a exigência de uma conduta. Ex. dever de comparecimento às testemunhas intimadas; dever do juiz de despachar a inicial; (e) ônus: faculdade cujo exercício é necessário para a realização de um interesse; o seu não exercício acarreta uma posição desfavorável da parte no processo. Ex. ônus da prova. Predomina a tese de que a configuração da relação jurídica é triangular (haveria relação entre demandante e Estado, demandado e Estado, demandante e demandado), mas para alguns é apenas angular (inexistiria relação direta entre demandante e demandado). É tranqüilo, porém, o entendimento de que a configuração é sempre tríplice (Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, 2004, p. 287). Para nós, a relação jurídica afigura-se triangular, havendo, em alguns casos, relação direita entre autor e réu. É a hipótese, por exemplo, das convenções realizadas entre as partes (sobre ônus da prova, foro de eleição, suspensão do processo, adiamento de audiência), do dever de lealdade e boa-fé etc.
152
12.2. O Efeito Imediato e as Normas Dispositivas
Ao levar em consideração o interesse direto das partes, é de
perquirirmos a existência de tratamento diferenciado às normas processuais
dispositivas no que tange à aplicação das regras de direito intertemporal, já
que eventual acordo entre os litigantes poderia obstar a incidência imediata
da lei nova processual também de cunho dispositivo.
Suponhamos a celebração dos seguintes negócios jurídicos
processuais: determinada convenção acerca do ônus da prova e a
sobrevinda de lei nova, igualmente dispositiva, modificadora dos critérios de
distribuição desse ônus, ou, ainda, a eleição de foro e posterior alteração
legislativa, advinda entre esse pacto e o ajuizamento da demanda,
modificando as normas de competência relativa.293 Nesse caso, impedindo-
se eficácia imediata da lei nova, está-se criando regramento diferenciado
quanto à aplicação no tempo das leis processuais dispositivas? A resposta é
positiva.
Sobre o assunto, Arruda Alvim (1996) precisa o conceito de
norma processual dispositiva ou facultativa ao afirmar ser aquela que incide
à falta de manifestação volitiva das partes em sentido contrário à norma ou
cuja aplicabilidade pode ser afastada caso as partes se manifestarem nesse
sentido, isto é, a vontade das partes pode afastar a incidência da norma
dispositiva, que incidirá se não tiver sido estipulado diferentemente.294
293 A doutrina dominante também confere a natureza de negócio jurídico processual ao compromisso arbitral, ao “fechar as portas à jurisdição estatal”. (NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 77). 294 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, vol. 1, p. 103.
153
Ora, se às partes295 permite-se a não-aplicação da própria norma
processual dispositiva vigente quando da celebração da convenção, é
inarredável a ilação de que o pacto privado de cunho processual296
sobrepõe-se também sobre ulteriores leis dispositivas que disciplinem
diversamente a respeito do assunto.
Portanto, a lei nova de cunho dispositivo poderia deixar de aplicar-
se imediatamente ao feito em curso em razão de ajuste anteriormente
celebrado entre as partes.
A questão torna-se particularmente intrincada ao pensarmos na
superveniência da lei cogente que simplesmente proíba ou restrinja a
convenção nos moldes em que ajustada, o que será objeto de
considerações adiante.
12.3. Direitos Adquiridos Processuais
A despeito de a jurisprudência ter apresentado, no passado, certa
vacilação297, atualmente dúvida não há quanto à possibilidade de existirem
direitos adquiridos processuais.298
É o que se infere do contido no art. 158 do Código de Processo
Civil, ao dispor que os “atos das partes, consistentes em declarações
unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição,
295 Ensina James Goldschmidt (2004, p. 58) que o direito processual dispositivo diz respeito somente às partes e não ao juiz. “É falso falar também em Direito processual dispositivo quando a lei conceder livre-arbítrio ao juiz”. 296 Tanto convenção sobre a distribuição do ônus da prova quanto o foro de eleição revestem-se, como já dito, de caráter processual, sendo verdadeiros negócios jurídicos processuais, devendo, assim, ser examinados à luz do direito processual intertemporal, abstraindo-se das questões de direito material. 297 Decidiu-se equivocadamente, no que respeita à inexistência de direito adquirido processual, no v. acórdão prolatado nos autos do AI nº 328.598-8/00, 3ª Câmara, Rel. Juiz Oswaldo Breviglieri, j. em 10.09.91, RT 675/161. 298 James Goldschmidt (2004, p. 53-64) dedicou, inclusive, um capítulo inteiro (Capítulo V) de sua obra Princípios Gerais do Processo Civil para escrever sobre os “direitos processuais”, que a seu ver se “encontram em uma relação causal com um ato processual”.
154
a modificação ou extinção de direitos processuais”, acrescendo que a
aquisição de direitos também pode derivar diretamente da lei ou de ato do
juiz.
Bem por isso, Galeno Lacerda (1974) sustenta que existem
direitos adquiridos à defesa, à prova, ao recurso, da mesma forma que há
quanto ao estado, à posse e ao domínio, argumentando com acerto que “os
direitos subjetivos processuais se configuram no âmbito do direito público e,
por isto, sofrem o condicionamento resultante do grau de indisponibilidade
dos valores sobre os quais incidem”.299
Embora, mercê de mandamento constitucional, a lei nova, seja de
ordem pública ou não, deva respeitar os direitos processuais adquiridos, a
grande dificuldade do intérprete será verificar as situações nas quais esses
direitos se configuram, dado que, de fato, a indisponibilidade do bem jurídico
protegido pela norma pode afastar a possibilidade de se invocar qualquer
direito constituído.
É o caso, por exemplo, da diferenciação, em tema de direito
intertemporal, entre competência absoluta e competência relativa: vigora o
princípio de que não existe direito adquirido em matéria de competência
absoluta (Código de Processo Civil, art. 87).300
299 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 13. 300 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (1997, p. 382) esclarecem o teor desse dispositivo: “A regra da perpetuatio jurisdictionis somente se aplica às hipóteses de competência relativa. Em se tratando de competência absoluta (material e hierárquica), a regra não se aplica (Arruda Alvim, Man., I, 109, 205). Alterada, v.g., a competência da vara de registros públicos para julgar usucapião, as ações dessa natureza que estiverem tramitando em vara cível terão de ser remetidas àquele outro juízo, porque a competência ratione materiae – critério utilizado pela matéria usucapião – é absoluta”. Por outro lado, inexiste direito adquirido, ainda que derivado de ajuste anterior, ao processamento da causa perante determinado órgão judiciário, suprimido pela lei nova.
155
Já as alterações atinentes às regras de competência relativa não
se sobrepõem aos direitos adquiridos derivados de pactos processuais
aperfeiçoados anteriormente entre as partes.
Sobre essa questão, Galeno Lacerda (1974) é esclarecedor no
sentido de que não pode a lei nova, sem ofensa a direito adquirido, alterar,
para os processos em curso, a disciplina já consolidada da competência
relativa, salvo se opuser, contra esta, regra de competência absoluta.301
De todo modo, a par da complexidade na constatação de direitos
adquiridos, é de ficar definitivamente assentado que direitos dessa natureza
se configuram no âmbito do direito processual civil.
12.4. O Efeito Imediato e os Institutos de Natureza Mista
A existência de institutos jurídicos híbridos, compostos por
normas substanciais e processuais, é apontada por Cândido Rangel
Dinamarco (2004), para quem seria o campo do denominado direito
processual material, caracterizado pela:
301 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Op. cit., p. 18. Importa ressaltar, de outra banda, que a declaração de nulidade de cláusula de eleição de foro em contrato de adesão (alterações provocadas nos art. 112 e 114 do CPC pela Lei nº 11.280, de 16.02.2006, conforme última nota de rodapé ao item 10.1.), com a respectiva remessa dos autos ao foro do domicílio do réu, é passível de ser decretada pelo juiz mesmo em casos de foro eleito antes da referida lei. Objetar-se-á que haveria direito adquirido do fornecedor ao processamento da causa perante o foro eleito anteriormente, porque se está diante de hipótese de incompetência relativa. Ocorre que a espécie não cuida de declaração de ofício de incompetência relativa, mas declaração de ofício de nulidade de cláusula contratual abusiva, sendo a remessa dos autos ao foro do domicílio do réu mera conseqüência. Todavia, seja nos processos futuros ou pendentes, a remessa dos autos ao foro do domicílio do réu somente não poderá ser feita pelo magistrado após a resposta do requerido, pois se prorroga a competência, ante o disposto no art. 114. Não concordamos, com a devida vênia, com o entendimento de Maurício José Nogueira no (2006, p. 133) no sentido de que, entrando “em vigor o parágrafo único do art. 112 do Código de Processo Civil, havendo, na espécie, a nulidade de cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, poderá o juiz, em qualquer momento processual, declarar a presente eiva processual, determinando, pois, a remessa dos autos para o juízo do domicílio do réu”. Permitir-se ao juiz que, em qualquer momento processual, determine a remessa respectiva é contrariar frontalmente o teor do art. 114 do Código, que prevê a prorrogação da competência. Conforme anotam Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, a nulidade da cláusula de eleição de foro somente poderá ser reconhecida de ofício pelo juiz “enquanto o réu não apresentar sua resposta” ou, em outras palavras, “não poderá ser feito pelo juiz após o término do prazo para a apresentação de exceção, pelo réu” (2006, p. 22 e 24).
156
(...) convergência de normas substanciais e processuais a
disciplinar os institutos, em si mesmo processuais, que
preenchem as faixas de estrangulamento existentes entre os
dois planos do ordenamento jurídico. Ele é, pois, o conjunto
de normas e princípios de direito material e de direito
processual disciplinadores de institutos processuais que
diretamente se relacionam com o direito à tutela jurisdicional
(ação, competência, fontes e ônus da prova, coisa julgada
material, responsabilidade patrimonial).302
No dizer do referido autor, haveria entre os direitos material e
processual “momentos de intersecção”303, não se encontrando em
compartimentos estanques os dois planos do ordenamento jurídico. E para
institutos processuais dessa natureza, que se configuram fora do processo e
dizem respeito diretamente à vida das pessoas, inclina-se doutrinador para a
existência de tratamento diferenciado quanto às regras de direito
intertemporal, expressando-se nestes termos:
A aplicação da lei nova que elimine ou restrinja
insuportavelmente a efetividade de situações criadas por
essas normas bifrontes transgrediria as garantias de
preservação contidas na Constituição e na lei, porque seria
capaz de comprometer fatalmente o direito de acesso à
justiça em casos concretos – e, conseqüentemente, de
cancelar direitos propriamente substanciais dos litigantes.
Seria ilegítimo transgredir situações pré-processuais ou
mesmo extraprocessuais como essas aqui consideradas, as
quais configuram verdadeiros direitos adquiridos e, como
tais, estão imunizadas à eficácia da lei nova por força da
garantia constitucional da irretroatividade das leis (Const.,
302 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, vol. 1, p. 46. 303 Ibidem, mesma página.
157
art. 5º, inc. XXXVI). Atingir o próprio direito de ação, impor
ao sujeito novas competências ou privá-lo dos meios antes
postos à sua disposição para a obtenção da tutela
jurisdicional (provas, bens), teria o efeito de suprimir direitos
adquiridos. Nesses casos, a lei velha continua eficaz apesar
de no momento de sua vigência inexistir processo algum
pendente e ato processual algum a ser preservado (...).304
Moacyr Amaral Santos (2004), a seu turno, alude à existência de
normas processuais substancias, as quais, diferentemente das normas
processuais puras, atribuem aos sujeitos direitos e obrigações, aduzindo
que:
Muito embora a maioria das normas processuais seja de
natureza instrumental, a doutrina distingue muitas dentre
delas as que se revestem das características das leis
substanciais, porquanto, como estas, atribuem direitos ou
criam obrigações. Típicas leis processuais substanciais são,
entre outras, as que concedem as ações correspondentes
(ex.: o titular de uma letra câmbio vencida tem ação
executiva contra o devedor); as que instituem os tribunais,
regulando-lhes as funções; as que disciplinam a
condenação das custas; as que impõem o dever do
testemunho.305
Vejamos, porém, que em nenhum momento Moacyr Amaral
Santos (2004) nega a qualidade processual da norma simplesmente por ela
criar determinado dever e/ou obrigação. Seguindo os ensinamentos deste
autor, seria legítimo citarmos, ainda, como exemplo de norma processual
material, a que institui o dever dos litigantes de procederem com lealdade e
boa-fé (Código de Processo Civil, art. 14, II), norma que, apesar de instituir
304 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Op. cit., p. 101-102. 305 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 25.
158
um dever, não se priva da característica de lei processual, pois encontra-se
direcionada àqueles que participam do processo.
Também é interessante observarmos que Cândido Rangel
Dinamarco (2004) apóia-se no chamado direito justicial material, empregado
no passado por James Goldschmidt (2004)306, para abrandar “os
radicalismos autonomistas” do processo e para que se possa chegar ao que
denomina “exame bifocal de alguns institutos”, quando o referido direito
justicial material, nas palavras de Hernando Devis Echandía (2002), consiste
em uma noção “ambigua, equívoca, que no tiene un fundamento jurídico real
y que debe ser rechazada” porquanto “el pretendido derecho justicial
material no es más que um efecto del derecho material, en cuanto este
otorga a los titulares de los derechos subjetivos materiales la facultad de
ejercitarlo frente a terceros”.307
Dinamarco (2004), ainda, no sustentar de sua respeitável tese,
cita o escólio de Giuseppe Chiovenda, segundo o qual é “preciso evitar a
crença de que a lei processual seja sinônimo de lei formal”. O doutrinador
italiano, porém, não parece conferir em tais palavras o sentido pretendido
por Dinamarco, senão vejamos. Afirma Chiovenda (1969) ser mister:
(...) fugir à suposição de que as leis processuais sejam
equivalentes de leis formais. A norma que faculta a ação
não é, por certo, formal, porquanto garante um bem da vida,
que, todavia, não se poderia conseguir fora do processo;
mas é processual, visto fundar-se na existência do processo
e dela originar-se. Na base de todo complexo de normas
reguladoras de uma figura processual (...) encontra-se,
expressa ou implícita, uma norma (processual) que confere
306 A propósito do direito justicial material, discorre GOLDSCHIMIDT, James. Princípios gerais do processo civil (teoria geral do processo). Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2004. 307 ECHANDÍA, Hernando Devis. Teoria general de la prueba judicial. 5ª ed. Tomos I e II. Bogotá: Temis, 2002, p.40-41.
159
as ações correspondentes (...) Há, pois, um direito
processual substancial e formal.308
A exemplo de Amaral Santos (2004), observamos que Chiovenda
(1969) também não está a refutar a qualidade processual da norma que
conceda à parte determinada ação, mas, ao contrário, a reafirma e, além
disso, apenas discorre que tal comando normativo é apto à produção de
bens da vida.
De todo modo, razão assiste a Dinamarco (2004) quando alude a
certas categorias jurídicas permeadas tanto por normas de direito material
quanto de direito processual. A prova é exemplo clássico de instituto de
natureza híbrida, circunstância reconhecida em 1931 por Carnelutti (2000)
no prólogo ao volume sexto das Lezioni di dir. proc. civ., como nos informa
Giacomo P. Augenti309 A prova é regulada, pois, de acordo também com o
sustentar de João Batista Lopes (2002), por ambos os ramos que compõem
o ordenamento jurídico.310
Nessa esteira, anota Moacyr Amaral Santos (1983) que ao direto
civil cabe a determinação das provas, a indicação de seu valor jurídico e as
condições de sua admissibilidade, enquanto ao direito processual incumbe
estabelecer o modo de constituir a prova e de produzi-la em juízo.
Exemplifica normas de conteúdo material: verificar como se prova o
casamento ou o domínio, quando se indaga o efeito jurídico de um contrato
não registrado perante terceiros, se é admissível a prova testemunhal de
308 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de J. Guimarães Menegale. v.1. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 73. 309 No apêndice de Giacomo P. Augenti vem expresso o pensamento de Canelutti acerca desse caráter híbrido ao rever seu conceito inicial de que o instituto da prova fosse puramente processual: “(...) basta ‘esta reflexión para excluir que las pruebas operen sólo en el proceso y que, por tanto,
constituyan exclusivamente una institución procesal. Si al comienzo de mis estudios creí que fuese así,
éste es uno de los puntos acerca de los cuales hace tiempo que debí cambiar de opinión’”. (CARNELUTTI, Francesco. La prueba civil. Apéndice de Giacomo P. Augenti. Tradução para o espanhol de Niceto Alcalá-Zamora y Castillo. 2ª ed. Buenos Aires: Depalma, 2000, p. 213). 310 LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 29.
160
contratos de valor superior a determinado patamar, se um filho pode depor
contra o pai. Por sua vez, são exemplos de normas processuais: quando se
questiona como se tomam os depoimentos das testemunhas, quando se
deve oferecer a prova de domínio, quais as solenidades necessárias à
confissão.311
Todavia, embora devamos reconhecer-lhes a existência, não
parece razoável admitirmos aos institutos dessa natureza o pretendido
tratamento diferenciado em relação à disciplina intertemporal. Cogitar de
aplicar a lei processual vigente ao tempo do fato litigioso em vez daquela
vigorante quando da prática do ato processual (da parte ou do juiz) significa
caminhar na contramão das regras gerais de direito intertemporal.
Examinemos, então, as categorias citadas por Dinamarco (2004):
ação, competência, prova, coisa julgada material e responsabilidade
patrimonial, a começar pela prova.
É inconcebível, na visão de Dinamarco (2004), privar a parte dos
meios probatórios antes postos à sua disposição ou a alteração de regras
sobre o ônus da prova, motivo pelo qual propõe tratamento diverso em
relação à intertemporalidade jurídica.312
Todavia, é bastante que consideremos, como tem considerado a
doutrina majoritária, que os meios de prova inserem-se nos quadrantes do
direito material (e não do direito processual) que a dificuldade desaparece,
pois, em obediência às regras gerais de direito intertemporal, aplica-se a lei
(substantiva) vigente ao tempo fato litigioso.
311 SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e no comercial. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 42-44. 312 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 99-102.
161
Assim é que Bento de Faria (1934), em atenção a essa natureza
substantiva, conclui que a lei vigente ao tempo da realização do fato jurídico
é que há de disciplinar os meios de prova e guardar a sua força.313. Na
mesma linha Mattirolo apud Amaral Santos (1983), para quem o direito de
fornecer esta ou aquela prova, as condições pelas quais uma determinada
prova é admitida em juízo314, o valor, ou seja, a força da mesma, depende
exclusivamente da lei vigente ao tempo em que teve lugar o fato que se trata
de provar. Por outro lado, a forma pela qual a prova deve ser fornecida em
juízo depende da lei em vigor ao tempo em que a mesma deve ser
produzida315; por exemplo, incide a lei (processual) hodierna ao meio de
prova produzido sob sua égide que discipline a capacidade das testemunhas
e qualidades que as tornem suspeitas.316
Não incide, pois, lei posterior ao fato que suprima ou restrinja um
meio de prova antes permitido, ao contrário daquela que o amplie.317 Não se
tolera a aplicação de norma que, v.g., suprima a prova testemunhal e exija
prova escrita às relações anteriormente constituídas.318
Dinamarco (2004), é bem de ver, oferece acertada conclusão
quanto à questão relativa aos meios de prova, embora parta de uma
premissa que nos afigura obscura ao olvidar da natureza substancial da
legislação que está a disciplina-los.
313 FARIA, Bento de. Aplicação e retroatividade da lei. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Filho, 1934, p. 36. 314 Donde se percebe que a qualificação de uma regra como material ou processual independe do fato de supor uma atuação do magistrado, o qual lida com normas de ambas as naturezas. Assim, tanto as normas substanciais quanto as processuais podem ter seus efeitos condicionados a uma manifestação judicial no bojo do processo. 315 SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e no comercial. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 45-46. 316 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 282. 317 A lei (substancial) que amplia os meios de prova aplica-se desde logo (Bento de Faria, 1934, p. 39). Anotam Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho (1943, p. 488), apoiados em Faggella, a inexistência de dissenso doutrinário sobre a aplicação imediata da nova lei ampliadora dos meios de prova. 318 In: SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e no comercial. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 45.
162
No tocante ao ônus da prova, igualmente não há necessidade de
recorrermos a qualquer regramento especial quanto aos princípios de direito
intertemporal. Matéria de cunho eminentemente processual que é319, não se
há de supor, bem por isso, a aplicabilidade da lei vigorante à época do fato
material.320
É bem verdade, entretanto, que tal conclusão não retira a
complexidade da matéria, bastando ver o debate travado em 1976 no Curso
de Especialização em Direito Processual, coordenado por Arruda Alvim, o
qual, acompanhando a posição de Gian Antonio Micheli, entendeu que o
ônus da prova é determinado pela lei vigente à época da sentença; teses
opostas foram sustentadas por Antônio Cezar Peluso e Clito Fornaciari
Júnior, o primeiro afirmando prevalecer a lei vigente ao tempo do
deferimento das provas e o segundo quando da propositura da ação.321
Tratando-se de regra de julgamento e aplicável somente em
casos de insuficiência ou inexistência de prova, nos afigura correto o
entendimento de Arruda Alvim (1976), mas, de todo modo, o que deve ser
afastado, a nosso sentir, é o pretendido caráter substancial das normas
sobre ônus da prova. 322
319 É o que ensina João Batista Lopes (2002, p. 29): “Já o direito processual procura disciplinar a forma de colheita das provas, o momento e o lugar de sua produção, as regras sobre o ônus da prova, os poderes do juiz na produção da prova etc.”. 320 Da mesma forma como sugere Dinamarco (2004), Campos Batalha (1980, p. 562) entende que o ônus da prova rege-se pela lei vigente ao tempo em que se realizou o fato ou ato jurídico, com o que, repita-se, não concordamos, com a devida vênia. 321 ALVIM, Arruda; MICHELI, Gian Antônio; FORNACIARI JÚNIOR, Clito; PELUSO, Antônio Cezar. O ônus da prova e o direito intertemporal. Revista de Processo, nº 4, 1976, p. 227-230. 322 No sentido de incidir a lei (processual) nova sobre o onus probandi, sem, porém, adentrarem em detalhes quanto ao momento próprio de aplicação, WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 302. Outrossim, coerentemente com o que se sustentou em relação à competência absoluta, cujas regras novas sobrepõem-se sobre anterior foro de eleição objeto de ajuste entre as partes, entendemos que a convenção em torno do ônus da prova não prevalece diante de ulterior norma cogente que, de alguma forma, proíba ou restrinja a avença nos moldes em que pactuada. O que se observa, nesse diapasão, é uma tendência de que de as normas processuais de natureza cogente prevaleçam contra convenções processuais anteriores, que têm por base leis dispositivas, assumindo os negócios processuais privados uma feição diversa dos contratos
163
Não devemos confundir a modificação legal das regras sobre o
ônus da prova com a inversão judicial prevista no Código de Defesa do
Consumidor, se verossímil a alegação ou hipossuficiente o consumidor (art.
6º, VIII). Referido dispositivo da legislação consumerista em nada tangencia
com as regras de direito intertemporal, circunscrevendo-se tão-somente à
possibilidade de inversão pelo próprio magistrado.323
Portanto, embora se reconheça a dificuldade, como adverte
Moacyr Amaral Santos (1983)324, em se encontrar a precisa linha divisória
entre direito material e direito substancial quanto ao instituto da prova, atinar
se determinada norma é cunho material ou processual, independentemente
do Código em que inserida, é a solução para a justa aplicação da lei nova no
tempo.325
Quanto à responsabilidade patrimonial, argumenta Dinarmarco
(2004) a impossibilidade de a lei nova:
(...) excluir a responsabilidade de algum bem pelas
obrigações do dono; sua imposição aos casos onde já
houvesse um ato jurídico perfeito ou direito adquirido
atentaria contra a estabilidade destes. Mas a jurisprudência
vem afirmando a aplicação imediata da lei que instituiu o
chamado bem de família (lei n. 8.009, de 29.3.90), ficando a
firmados no âmbito do direito material. Como já registramos, é de Galeno Lacerda (1974) a afirmação de que os direitos subjetivos processuais se configuram na seara do direito público e, por isso, subordinam-se aos valores indisponíveis sobre os quais incidem. Portanto, assim como não há direito adquirido processual contra regra de competência absoluta, também inexiste em face de norma cogente a disciplinar a distribuição do ônus da prova. 323 Sandra Aparecida Sá dos Santos (2002) resume as três teorias acerca do momento próprio para o ato judicial que determina a inversão, quais sejam, no despacho judicial, na decisão saneadora e na sentença. (SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova como garantia
constitucional do devido processo legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 81-86). 324 SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e no comercial. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 42-44. 325 Resume João Batista Lopes (2002) que “saber se determinada norma é de caráter material ou processual tem repercussão direta no campo do direito intertemporal” (LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 29).
164
casa residencial a salvo da expropriação executiva ainda em
relação a obrigações anteriores à vigência.326
Malgrado legítima a crítica lançada pelo sobredito autor e, de
resto, pela maioria da doutrina contra o entendimento sumulado do Superior
Tribunal de Justiça (Súmula nº 205), mais uma vez desnecessário deslocar-
se para o campo do direito processual material para a correta solução da
questão intertemporal suscitada.
A mesma conclusão exarada quanto às provas é igualmente
válida para o instituto da responsabilidade patrimonial, com a diferença de
que este é inteiramente regulado por normas de direito material, não
apresentando verdadeira natureza híbrida. Responsabilidade e obrigação
caminham lado a lado no âmbito do direito substancial, representando a
primeira conseqüência (sanção) pelo descumprimento da segunda,
inexistindo cunho processual nas normas que as disciplinam.
Considerando esse aspeto puramente substancial característico
das normas disciplinadoras da responsabilidade patrimonial, infere-se o
equívoco da jurisprudência da Corte Superior ao subtrair da
responsabilidade bem de devedor existente quando contraída a obrigação,
sem outro apto a garantir a higidez de seu patrimônio.
Em voto vencido a respeito da aplicabilidade da Lei nº 8.009, de
29.03.1990, o Ministro Marco Aurélio, amparando-se em acórdão oriundo do
extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil, deixou assentado o caráter material
da matéria, entendimento escorreito em nosso sentir.327
326 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 99. 327 O relato parcial deste RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 179.768 – PR encontra-se na seção de Anexos, no final deste trabalho.
165
Por outro lado, quanto à ação, além da impossibilidade de se
“atingir o próprio direito de ação”, acresce Dinamarco (2004) que:
(...) não pode a lei nova retirar a proteção jurisdicional antes
outorgada à determinada pretensão, excluindo ou
comprometendo radicalmente a possibilidade do exame
desta de modo a tornar impossível ou particularmente difícil
a tutela antes prometida. É até tolerável a retirada de uma
tutela específica, desde que outras vias suficientes
subsistam, como no caso de a lei nova extinguir
determinado título executivo extrajudicial antes do exercício
da ação executiva: resultando ao titular do eventual direito
alguma outra via processual a percorrer (no caso, processo
de conhecimento ou monitório), isso basta para legitimar a
aplicação da lei nova. Inexiste direito adquirido, nessa
óptica, a determinada espécie de tutela jurisdicional ou a
determinada categoria de ação. Não se admite a aplicação
imediata da lei processual nova, p. ex., caso ela venha a
criar novas impossibilidades jurídicas (v.g, para impedir que
qualquer dívida de jogo tivesse apreciação jurisdicional e
não somente aquelas contidas na previsão do art. 814 do
Código Civil)”. 328
Finaliza Dinamarco (2004) ser vedado ao legislador, também, a
edição de lei que venha a “eliminar a legitimidade de propor determinada
demanda”. 329
Nesse aspecto, é preciso, antes, diferenciarmos o que
doutrinariamente se intitula de direito constitucional de ação e direito
processual de ação. O primeiro vem inserto no art. 5º, XXXV, da
Constituição, nestes termos: “a lei não excluirá da apreciação do Poder
328 Ibidem, p. 103. 329 Ibidem, p. 99.
166
Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Direito constitucional de ação ou
direito de demanda significa, então, o direito a todos de acesso ao Poder
Judiciário, que se obriga a oferecer uma resposta ao autor. A parte exercita
esse direito com o simples ingresso de uma ação. É um direito
incondicionado, ou seja, que não depende da existência de condições para
se exercê-lo. Mesmo quando o juiz deixa de apreciar o mérito por ausência
de uma das condições da ação, houve exercício do direito constitucional de
ação, pois houve acesso ao Poder Judiciário.
No salientar de Enrico Tullio Liebman (1984), esse “poder de agir
em juízo”, “garantia constitucionalmente instituída”, “pertence à categoria dos
direitos cívicos; ele é absolutamente genérico e indeterminado, inexaurível e
inconsumível, não se ligando a qualquer situação concreta”.330
Já o direito processual de ação significa algo mais. Conceitua-se
como o direito subjetivo público, abstrato e autônomo, a um provimento
jurisdicional de mérito.331 É um direito condicionado, ou seja, que depende
para sua existência das seguintes condições: legitimidade de parte,
possibilidade jurídica e interesse de agir. 332
330 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. v. 1. Tradução Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 150. 331 Direito porque contrapõe-se ao dever do Estado de prestar a tutela jurisdicional. É subjetivo porque o direito é exercido contra o Estado, que tem o dever de resolver os litígios. É público por referir-se a uma atividade pública do Estado, qual seja, a atividade jurisdicional. É autônomo porque se distingue do direito material alegado pela parte. É abstrato, pois independe da existência efetiva do direito material invocado pela parte. 332 Para que se possa exigir do juiz a emissão de um provimento jurisdicional de mérito (analisando o pedido do autor), é preciso que estejam presentes determinadas condições, chamadas condições da ação, que são: (a) possibilidade jurídica; (b) interesse de agir; e (c) legitimidade de parte. Possibilidade jurídica do pedido é a inexistência de vedação em abstrato no ordenamento jurídico ao pedido formulado pelo autor na petição inicial. Não será possível sequer examinar o pedido do autor. Exemplo da impossibilidade jurídica do pedido (ou melhor, da causa de pedir): cobrança de dívida de jogo. Interesse de agir: a provocação da tutela jurisdicional deve ser útil para solucionar o conflito alegado pelo autor. Haverá utilidade se a prestação jurisdicional for necessária e adequada. Pela necessidade, compete ao autor demonstrar que sua pretensão somente será satisfeita pelo réu com a interferência do Poder Judiciário. Pela adequação, entende-se que o provimento jurisdicional solicitado deve ser apto a corrigir o mal de que se lamenta o autor. Legitimidade de parte: a relação jurídica de direito material é a existente entre os titulares dos interesses em conflito. Ex. credor e devedor; cônjuges. Em regra, somente os titulares dos interesses em conflito têm legitimidade para figurar como autor e réu da ação. Em outras palavras, em regra, são partes legítimas, ativa (autor) e
167
Isso não significa dizer, porém, que existam dois direitos de ação,
um constitucional e um processual. O direito de ação é sempre processual,
porquanto é por meio do processo que ele se exerce. O que há é a garantia
constitucional genérica do direito de ação, contudo, o seu exercício é sempre
processual.333
Posta a diferenciação, fica claro, prescindindo adentrarmos até
mesmo nas regras de direito intertemporal, que a superveniência de lei nova
que venha a malferir o direito constitucional de ação será induvidosamente
inconstitucional por violar o art. 5º, XXXV, da Carta Magna.334
No tocante ao direito processual de ação, a questão torna-se mais
complexa; no entanto, mais uma vez, a exemplo das provas, resolve-se pelo
caráter da norma editada. É que, a despeito da correta e tradicional
denominação - direito processual de ação (uma vez que o direito de ação é
sempre processual) -, não se vislumbra natureza processual nas normas em
que se apega Dinarmarco (2004), referentes à legitimidade de parte e à
possibilidade jurídica do pedido.
É evidente o caráter processual de uma lei que, por exemplo,
permita ao juiz a extinção do processo sem resolução do mérito se existente
vedação em abstrato no ordenamento jurídico para o fim pretendido pelo
autor, se houver ilegitimidade de parte ou falta de interesse de agir, como
passivamente (réu), os titulares da relação jurídica de direito material. É a chamada legitimidade ordinária. A legitimação ativa caberá ao titular do interesse afirmado na pretensão e a passiva ao titular do interesse que opõe resistência à pretensão. Em casos excepcionais, quando expressamente autorizado por lei, é possível alguém ser parte legítima apesar de não ser o titular da relação de direito material. É a chamada legitimidade extraordinária, na qual a lei autoriza que uma pessoa ingresse em juízo, em nome próprio, na defesa de direito alheio. 333 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 76. 334 Embora o destinatário principal da norma seja o legislador, ela atinge a todos, ou seja, não pode o legislador e ninguém mais impedir que o cidadão vá a juízo deduzir uma pretensão.
168
dispõem os arts. 267, VI e 295, II, III e parágrafo único, III, do Código de
Processo, porque aludem diretamente ao exercício da função jurisdicional.
O mesmo não sucede, porém, com as normas que determinam
quem é parte legítima e se a pretensão que se formula é ou não proibida
abstratamente na ordem jurídica brasileira.
No primeiro caso, Vicente Greco Filho (2003) é contundente ao
afirmar que, apesar de a legitimidade ser examinada no processo e ser uma
das condições da ação, a regra é de que as normas definidoras da parte
legítima estão no plano do direito material, porque é ele que define as
relações jurídicas entre os sujeitos de direito, determinando quais os
respectivos titulares.335
No segundo caso, respeitante à impossibilidade jurídica do pedido
– sempre conjugado com a causa de pedir336 -, também se analisa o tema
puramente sob a ótica substancial, na esteira do pensamento exposto por
Fábio Guidi Tabosa Pessoa (2004).337
Exemplo clássico em que tal natureza material pode ser ilustrada
consta do disposto no art. 814 do Código Civil a vedar a cobrança de dívida
oriunda de jogo ou de aposta, proibição que já constava do Código de 1916
(art. 1.477). Outro exemplo, agora bem mais recente e que vem oferecendo
tormentosa discussão no seio da doutrina, diz com o teor do art.1.639, §2º,
do atual Diploma Civil, que preceitua, in verbis: “É admissível a alteração do
335 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 1, p. 79. 336 Quanto a essa condição da ação, lecionam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (1997, p. 532): “Deve entender-se o termo ‘pedido’ não em seu sentido estrito de mérito, pretensão, mas conjugado com a causa de pedir. Assim, embora o pedido de cobrança, estritamente considerado, seja admissível pela lei brasileira, não o será se tiver como causa pretendi dívida de jogo”. 337 Afirma o autor nestes termos: “(...) o problema da impossibilidade jurídica do pedido, como já dissemos neste trabalho, deve ser examinado pela ótica substancial, não processual”. (PESSOA, Fábio Guidi Tabosa. Elementos para uma teoria do direito intertemporal no processo civil. São Paulo : USP, 2004, p. 169 – Tese de Doutorado).
169
regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de
ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e
ressalvados os direitos de terceiros”.
Enquanto Antonio Jeová Santos (2004) enxerga traço processual
na sobredita norma porque está a exigir autorização judicial para a
modificação do regime de bens338, Freddie Didier Júnior (2004) nela não
vislumbra esse caráter.339 De nossa parte, a razão está com Freddie Didier
Júnior (2004), não havendo conotação processual no § 2º do art. 1.639 do
Código Civil. Isso porque, a lei criou nova possibilidade jurídica do pedido
antes inexistente e, coerentemente com o que acima consignamos, tem
cunho material, sendo certo que a simples exigência de autorização judicial
para a alteração do regime de bens não transmuda a natureza da norma de
material em processual. O cerne do problema deve ser visto com a seguinte
indagação: o ordenamento deixou de vedar a formulação de certa
pretensão? A resposta, qualquer que seja, insere-se no âmbito do direito
material. É o mesmo que se sobreviesse norma permitindo a cobrança de
dívida de jogo ou aposta: circunscreve-se a questão na seara do direito
substancial.
O debate se aclara com o exemplo do divórcio, introduzido no
Brasil pela Emenda Constitucional nº 9, de 28.06.1977, que deu nova
redação ao § 1º do art. 175 da Constituição de 1969 (com a superveniente
regulamentação pela Lei nº 6.515, de 16.12.1977), permitindo-se, por
sentença, a dissolução do vínculo matrimonial. Recentemente, o divórcio
passou a prescindir de autorização judicial, por simples escritura pública, se
inexistirem filhos menores ou incapazes.340 Indagamos então: terá qualidade
substancial a norma que permite o divórcio sem intervenção judicial e
338 SANTOS, Antonio Jeová. Direito intertemporal e o novo código civil. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 165-176. 339 DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo código civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 107. 340 Art. 1.124-A do Código de Processo Civil, com redação dada pela Lei nº 11.441, de 04.01.2007.
170
processual a norma que a exige? A resposta não pode ser outra: é negativa.
Não tem cunho processual a regra jurídica que admite o divórcio, seja por
sentença, seja por escritura pública.
Portanto, exija – ou não – determinada regra normativa a
anuência judicial para a satisfação de certa pretensão, a problemática
deverá ser analisada no restrito âmbito do direito material. Esse equívoco,
passível de acarretar graves conseqüências no plano intertemporal, de se
supor processual uma norma que simplesmente remeta ou pressuponha
uma atividade do magistrado, não passou despercebido por Fábio Guidi
Tabosa Pessoa (2004), ao discorrer:
(...) ser absolutamente irrelevante, para a definição da
natureza substancial ou processual de uma regra, o fato de
depender sua atuação da atividade judicial, ou mesmo de se
manifestarem seus efeitos, naturalmente, no ambiente
processual. O direito processual não rege as situações
substanciais, mas o juiz sim, atuando ele a um só tempo os
dois planos jurídicos e não podendo por isso ter seus atos
analisados apenas sub a perspectiva instrumental.341
Concluindo, a lei a estabelecer legitimidade de parte e vedação ao
exame de determinado pedido ou causa de pedir deve ser apreciada à
exclusiva luz do direito substancial, com base no qual soluciona-se eventual
questão de direito intertemporal surgida, sem necessidade de qualquer
tratamento peculiar nessa matéria.342
341 PESSOA, Fábio Guidi Tabosa. Elementos para uma teoria do direito intertemporal no processo civil. São Paulo: USP, 2004, p. 155. (Tese de Doutorado). 342 Nesses limites se devem compreender as palavras de Carlos Maximiliano (1955, p. 30-31), que com apoio em Gabba, assevera: “Ação judicial para fazer valer um direito já adquirido, constitui, por sua vez, direito adquirido (o direito de acionar); porquanto semelhantes remédios processuais enumeram-se entre as conseqüências do direito adquirido; não são faculdades das leis, nem a estas se equiparam. Impõe-se, entretanto, o requisito de ser de índole privada o objeto da ação. Cumpre evitar a desastrosa confusão entre ações judiciais e atos processuais: estes se regem pela norma recente e alinham-se entre os assuntos de Direito Adjetivo ou Formal; aquelas se incluem na esfera do Direito Substantivo ou Material”.
171
O tema, embora de direito material, nem por isso, todavia, deixa
de se tornar complexo. Suponhamos a inexistência de vedação no sistema
pátrio para a cobrança de dívida de jogo (contrato de jogo). Nesse caso,
caberia ao juiz examinar a pretensão a fim de julgá-la procedente ou
improcedente. Mas e se a ação ainda não tivesse sido ajuizada e após esse
mesmo contrato sobreviesse uma lei vedando a cobrança? Deve o juiz
examinar o pedido posteriormente formulado? A resposta é positiva, pois, a
nosso ver, à época da contratação a lei permitia, ou seja, formou-se em
favor do autor verdadeiro direito adquirido a que a pretensão, estribada no
contrato privado, fosse conhecida pelo magistrado. As regras processuais
que determinam a extinção do processo sem resolução do mérito não
podem ser aplicadas neste caso, pois o direito processual não deve
sacrificar um direito adquirido material (aquele que tem por objetivo servir a
este e não o contrário). A mesma solução, outrossim, não poder dar-se, por
exemplo, caso sobreviesse após o casamento lei suprimindo o divórcio, o
qual, segundo a melhor doutrina, não a natureza jurídica de um contrato
privado, não havendo, pois, direito adquirido invocável. Neste caso, é de
permitir ao juiz a extinção do processo sem resolução do mérito tenha a
impossibilidade jurídica se manifestado antes ou após a propositura da ação.
É o que nos ensina Fiore apud Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho
(1943):
Suponhamos que a lei nova tenha modificado as regras para
promover a dissolução do casamento mediante o divórcio;
em semelhante caso, cumpre admitir que, se a ação
judiciária tiver sido iniciada, como meio para tal fim, no
império da lei que a autorizava, não poderá prosseguir
depois de promulgada a lei nova.343
343 In: ESPÍNOLA, Eduardo; ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro comentada. v. 1. Rio de Janeiro/São Paulo : Freitas Bastos, 1943, p. 485.
172
Igualmente, Silvio Rodrigues (2005) afirma que “a lei que veda o
divórcio, ou que o permite, deve, fora de dúvida, ter aplicação imediata”.344
Sobre esse tema, porque a tanto autoriza a legislação processual,
o Superior Tribunal de Justiça, analisando um pedido de habilitação de
crédito em processo de falência, decidiu que:
A extinção do processo com fundamento em impossibilidade
jurídica do pedido não obsta a que o autor venha
posteriormente a renová-lo em juízo, nos moldes
preconizados pelo art. 268 do CPC, sendo de assinalar-se, a
titulo de justificativa, que uma determinada pretensão pode,
em certo momento, não encontrar respaldo no ordenamento
jurídico e o mesmo não se verificar após o transcurso de
certo tempo, em virtude de alterações legislativas ou da
própria evolução do entendimento jurisprudencial.345
Não cremos, porém, seja esta a melhor solução em casos de
negócios jurídicos de caráter privado, pois configuram atos jurídicos
perfeitos, como no exemplo já citado de dívida de jogo, sendo possível
sustentar a existência de direito adquirido do devedor no sentido de que a
dívida não fosse cobrada em juízo (é o mesmo raciocínio no caso de a
cobrança ser permitida à época da contratação, hipótese na qual haveria
direito adquirido em favor do credor); entendimento contrário poderia causar
surpresas aos contratantes, o que seria incompatível com o ideal do Direito.
Por fim, ainda no que tange ao direito processual de ação, temos
a questão relativa à retirada de uma tutela específica, qual no caso de uma
lei nova que suprima determinado título antes do exercício da ação
executiva, tema a se refletir na condição de ação referente ao interesse
processual. 344 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. v. 1. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 28. 345 RSTJ 73/199.
173
Devemos admitir aqui, de fato, a existência de um direito
processual substancial, como o faz Moacyr Amaral Santos (2004), já que
está a norma a conceder determinando direito à parte ao dar origem a
determinada ação. Também não merece reparo o resultado alcançado por
Dinamarco (2004) no sentido de regular-se a categoria de ação (ação
monitória, ação executiva etc.) pela lei vigente ao tempo em proposta a
demanda, o que vai ao encontro da moderna e tranqüila doutrina a propósito
do tema.346 Sucede que essa escorreita interpretação é obtida abstraindo-se
da necessidade de tratamento intertemporal diferenciado, sendo suficiente a
compreensão de que a lei que cria (ou retira) uma espécie de ação,
malgrado institua (ou exclua) um direito, é tipicamente processual e, como
tal, tem incidência imediata independentemente do tempo no qual foi
constituída a obrigação.
Por outro lado, Dinamarco (2004) faz referência ao instituto da
coisa julgada, insurgindo-se contra eventual (a) ampliação de prazo recursal
depois de já passada em julgado a sentença de mérito e (b) aumento de
prazo para a propositura de ação rescisória quando já extinto o prazo ditado
pela lei velha.347
Para se chegar a essa correta ilação, que também encontra apoio
no restante da doutrina348, basta a aplicação do princípio da irretroatividade,
a vedar à lei nova instrumental a transgressão de situações processuais
definitivamente constituídas, sendo dispensável recorrer-se ao campo do
direito processual material.
346 Humberto Theodoro Júnior (1998, p. 22); Moacyr Amaral Santos (2004, p. 33). 347 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, vol. 1, p. 102-103. 348 Galeno Lacerda (1974, p. 91) resume a incontroversa posição doutrinária sobre o tema: “Claro está que os prazos já terminados sob a lei antiga não podem, em hipótese alguma, ser reabertos. O efeito já se produziu sob aquela lei. O problema de direito transitório só se apresenta, é claro, quanto à incidência da lei nova sobre prazos que ainda não acabaram”.
174
Por derradeiro, sobre a competência, sustenta o mencionado
autor que as garantias constitucionais do juiz natural vedam expressamente
a imposição de tribunais de exceção, criados após o fato, bem como tornam
irrelevantes as novas competências fixadas posteriormente, sempre que isso
reduza a possibilidade de defesa.349 Ora, todos esses princípios são
eminentemente processuais e de ordem constitucional, de modo que lei
ordinária que os afete será inconstitucional e inaplicável ao processo,
resolvendo-se a problemática sem adentrar na seara substancial e
prescindido-se de eventual equacionamento especial no plano da
intertemporalidade jurídica.
12.5. O Efeito Imediato e os Princípios Processuais
Princípios são definidos como a verdade básica imutável de uma
ciência, funcionando como pilares fundamentais da construção de todo o
estudo doutrinário, sendo diretrizes que iluminam a compreensão das
normas.
A doutrina divide os princípios do direito processual civil em
princípios fundamentais (ou gerais) e princípios informativos do processo. Os
informativos são, no dizer de Nelson Nery Junior (2002), “considerados
axiomas, pois prescindem de demonstração. Não se baseiam em outros
critérios que não os estritamente técnicos e lógicos, não possuindo
praticamente nenhum conteúdo ideológico”.350 São universais e não
antagônicos entre si.351
349 Ibidem, p. 102. 350 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 30. 351 São eles: (a) princípio lógico: o processo deve ser lógico em sua estrutura, devendo, por ex., a petição inicial preceder a contestação; (b) princípio jurídico: o processo deve seguir as regras preestabelecidas pelo ordenamento jurídico; (c) princípio político: as regras de ordem política devem ser seguidas no processo, como a que determina ao juiz o dever de sentenciar, ainda que haja lacuna na lei (Código de Processo Civil, art. 126), pois do contrário não estaria garantido o direito de acesso ao judiciário; (d) princípio econômico: com o mínimo de atividade desenvolvida deve se obter o
175
Já os fundamentais são aqueles “sobre os quais o sistema jurídico
pode fazer opção, considerando aspectos políticos e ideológicos. Por essa
razão, admitem que em contrário se oponham outros, de conteúdo diverso,
dependendo do alvedrio do sistema que os está adotando”.352 São dotados
de cunho ideológico e comportam, assim, princípios antagônicos entre si.353
Dentre os fundamentais, sobreleva destacarmos os princípios do
devido processo legal354, da igualdade ou isonomia355, do contraditório e da
máximo de rendimento, sempre respeitando os direitos das partes e as regras procedimentais (ex.: arts. 125, II, e 154). 352 Ibidem, mesma página. 353 Ex.: no processo penal vigora a regra da indisponibilidade, ao passo que no processo civil vige a disponibilidade; a verdade formal prevalece no processo civil, enquanto a verdade real domina o processo penal. Alguns princípios gerais têm aplicação idêntica no processo civil e no processo penal. 354 Art. 5º, LIV, da Constituição: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. O devido processo legal pressupõe: (a) a elaboração da lei em conformidade com a Constituição e com o princípio da razoabilidade. É o chamado devido processo legal em sentido
material ou substantivo. Somente respeitará o devido processo legal a lei que não entrar em confronto com a Constituição. Além disso, toda lei que não for razoável é contrária ao direito e deve ser controlada pelo Poder Judiciário; (b) a aplicação judicial da lei, garantindo aos litigantes o direito a um processo respeitando-se as suas formas, tornando efetiva a possibilidade de acesso à justiça, de deduzir pretensão e defender-se amplamente. É o chamado devido processo legal em sentido
processual. O princípio em comento é gênero do qual os demais princípios constitucionais do processo são espécies: princípio do juiz natural, princípio da igualdade, princípio do contraditório, princípio da ampla defesa, princípio da publicidade, princípio da motivação etc. 355 Art. 5º, “caput”: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. A igualdade perante a lei é pressuposto para a afirmação da igualdade perante o juiz (igualdade processual ou formal). Dessa norma surge, portanto, o princípio da igualdade processual ou formal, ou seja, as partes devem merecer tratamento igualitário no processo, para que tenham as mesmas oportunidades em juízo. O Código de Processo Civil, no art. 125, I, estabelece ser dever do juiz “assegurar às partes igualdade de tratamento”. A igualdade processual ou formal (tratamento igualitário no processo) não é suficiente, contudo, para eliminar a desigualdade econômica das partes. Por isso, do conceito primitivo de igualdade (igualdade processual formal) passou-se ao conceito de igualdade substancial ou real, ou seja, o tratamento igualitário deve ser dado apenas aos realmente iguais, dando-se tratamento desigual às partes que estiverem em situação de desigualdade. Portanto, o princípio da igualdade, hoje, significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades. É igualdade real ou substancial. Exemplos de aplicação do princípio da igualdade real ou substancial: prioridade às causas de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos (Lei 10.741/2003), com a justificativa de que os idosos têm menor expectativa de vida; o Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, I) considera o consumidor como parte mais fraca na relação de consumo. Há, portanto, uma situação de desigualdade real entre o consumidor e o fornecedor. Por isso, o CDC prevê mecanismos para corrigir essa desigualdade, como a inversão do ônus da prova, tido como direito básico do consumidor (art. 6ª, VIII).
176
ampla defesa356, os quais podem eventualmente postergar a imediata
aplicação da nova lei processual.
Tomemos exemplificativamente a questão suscitada por Galeno
Lacerda (1974) quanto ao fato de haver o vigente Código Processo Civil
eliminado o sistema de louvados das partes, adotando o critério consistente
na nomeação de um único perito oficial, com a designação de assistentes
técnicos pelas partes. Orienta o processualista de que essa salutar
modificação (art. 421) somente pode ser concebível, aos feitos em
tramitação, se ainda não ocorrido o compromisso prestado por qualquer
perito das partes, caso em que eles seriam considerados pelo juiz como
assistentes técnicos, ressalvando a hipótese de o perito da outra parte já
estar compromissado, o que tornaria inconversível o sistema de perícia do
velho Código.357
Ora, fosse aplicarmos friamente a regra de eficácia imediata da lei
no caso em tela, mesmo se o perito de uma parte já estivesse
compromissado quando da entrada em vigor do Código, o da outra (ainda
não compromissado) haveria de ser considerado, ex vi do art. 421 do
356 Princípio do contraditório: ciência bilateral dos atos processuais, somando-se à possibilidade de contrariá-los. Decorre desse princípio a necessidade de que se dê ciência a cada litigante dos atos praticados no processo. Somente conhecendo esses atos poderão as partes exercitar o contraditório, ou seja, só assim se dará a ambas a possibilidade de expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir no convencimento do juiz. A ciência dos atos processuais é dada através da citação e da intimação. Citação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém da instauração de um processo, chamando-o a participar da relação processual (Código de Processo Civil, art. 213). Intimação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém dos atos do processo, para que se faça ou deixe de fazer alguma coisa (art. 234). O contraditório é constituído, portanto, de dois elementos: informação +
possibilidade de reação. O contraditório não admite exceções: mesmo nos casos de urgência, em que o juiz concede determinada medida liminar sem ouvir a parte contrária, o réu será informado e terá possibilidade de oferecer reação posteriormente no processo, inclusive com direito a recurso contra a medida liminar concedida sem sua participação. É o chamado contraditório diferido, porque postergado no tempo. Nossa jurisprudência tem reconhecido a violação ao princípio do contraditório nos julgamentos fundados em documentos sobre os quais não foi dada chance de manifestação à parte vencida. O contraditório é a exteriorização da ampla defesa, ou seja, o contraditório possibilita a ampla defesa. A violação a este princípio está ligada ao conceito de cerceamento de defesa, consistente na prolação de uma decisão prematura, sem que tenha sido facultada à parte a utilização de todos os meios e recursos previstos em lei para a defesa de seus direitos. 357 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 51.
177
Código, assistente técnico. Daí adviria, porém, manifesta desigualdade:
perito para uma parte e assistente técnico para a outra. A solução alvitrada
pelo doutrinador lastreou-se, à evidência, no princípio da isonomia.358
12.6. As Teorias da Unidade, das Fases Processuais e do Isolamento
dos Atos Processuais
Em doutrina359, são apontados três sistemas destinados à
aplicação da lei nova processual aos feitos pendentes.
Primeiro, o sistema da unidade, segundo o qual o processo é
considerado um conjunto de atos inseparáveis uns dos outros. É um corpo
uno, uma unidade, de forma a somente poder ser regulado, do início ao fim,
por uma única lei, ou a nova ou a revogada, impondo-se, porém, que a
regência se faça pela lei velha evitando-se indevida retroação, pois se regido
pela lei nova, com a conseqüente anulação dos atos já realizados, haveria
inequívoca retroatividade.
Em segundo lugar, temos o sistema das fases processuais, a
supor no desenvolver do processo a existência de fases autônomas e
independentes umas das outras (postulatória, ordinatória, instrutória,
decisória e recursal), cada qual compreendendo um complexo de atos
inseparáveis entre si. Aqui há unidade em cada fase processual e não no
processo como um todo, sendo cada fase regida por uma única lei, com a
observação de que, para impedir a pecha da retroatividade, a
superveniência de lei nova não incide na fase já iniciada.
358 E também no necessário encadeamento lógico dos atos praticados no bojo do processo. 359 FERREIRA, Pinto. Direitos processuais adquiridos. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. ano XIII, nºs 13-14. Rio de Janeiro, 1998, p. 189-193; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 32; e CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 96-99.
178
Divergindo apenas quanto à denominação, Chiovenda (1969),
após citar a possibilidade de se “ou aplicar a lei antiga até a conclusão do
processo (solução sugerida pela intenção de evitar perturbações e
complicações); ou aplicar a nova aos atos sucessivos (aplicação rigorosa da
autonomia da relação processual)”, indica a solução intermediária
consistente na divisão da causa em “períodos”, aplicando-se a lei antiga até
o perfazimento do período então iniciado360, o que, à evidência, corresponde
ao sistema das fases processuais.
Por derradeiro, citemos o sistema do isolamento dos atos
processuais, através do qual a lei nova atinge o processo em curso,
respeitando os atos processuais já realizados (e seus efeitos), aplicando-se
aos que houverem de realizar-se. Cada lei rege os atos praticados sob seu
império: tempus regit actum.
Ora fundamentando no art. 1.211 do Código de Processo Civil361,
ora no art. 2º do Código de Processo Penal362, a doutrina aponta pela
adoção, no Brasil, do sistema do isolamento dos atos processuais.
Já registramos, no entanto, que o art. 1.211 não passa de uma
disposição transitória, cuja finalidade única foi a de disciplinar a aplicação do
Código do Processo de Civil de 1973, quando de sua entrada em vigor, aos
feitos pendentes, enquanto o art. 2º do Código de Processo Penal é
inaplicável subsidiariamente ao processo civil.
Precisamos verificar, pois, a espécie de sistema adotado no
direito brasileiro à luz das regras constantes na Constituição Federal e na Lei
de Introdução, que são as verdadeiras normas gerais de direito 360 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de J. Guimarães Menegale. v.1. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 95. 361 PIMENTEL, Wellington Moreira. Questões de direito intertemporal diante do código de processo
civil. v. 251. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1975, p.32. 362 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 96-99.
179
intertemporal. Assim é que aquela, no art. 5º, XXXVI, manda respeitar o
direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, enquanto esta, no
art. 6º, preceitua o efeito imediato e geral das leis, resguardando-se os
institutos já mencionados pela Lei Maior.
Em razão dos sobreditos dispositivos, que expressamente limitam
a imediatidade da lei à obediência ao ato jurídico perfeito, infere-se que a lei
processual tem aplicação imediata, condicionada ao respeito ao ato jurídico
processual perfeito formalizado no processo em curso. Daí então, embora
por premissa diversa, demonstra-se escorreita a lição da doutrina a
recomendar o acolhimento do sistema do isolamento dos atos processuais
no ordenamento jurídico pátrio.363
É preciso do intérprete, porém, cautela no aplicar da teoria
respectiva. Seria equivocado imaginarmos, por exemplo, que o magistrado
deixe de proferir sentença, prolatando ao revés decisão interlocutória364, em
embargos à execução em curso quando da entrada em vigor da Lei nº
11.232, de 22.12.2005, simplesmente porque esta legislação teria suprimido
a referida modalidade de ação, substituindo-a pela impugnação prevista no
art. 475, J, § 1º, do Código de Processo. É que, como já consignado
anteriormente, é princípio tranqüilo de direito intertemporal de que prossegue
a ação iniciada antes da lei que a aboliu.
Ademais, a conclusão acerca da adoção da teoria do isolamento
não significa arredar, de modo absoluto, a possibilidade de aplicação dos
363 José Olympio de Castro Filho (1976, p. 261) entende haver sido adotado no Brasil o sistema da unidade processual, pois, por força do art. 1.211 do Código de Processo Civil que determinou a aplicação do novo Código aos processos pendentes, os feitos em curso seriam integralmente regulados pela nova lei. Afirma que o critério do legislador de 1973 teria diferido do Código de 1939, em que se previu a aplicação em alguns casos da lei velha, nos arts. 1.047 e 1.048. Com esse entendimento não concordamos, pois do art. 1.211 não se infere, de modo algum, o acolhimento do critério da unidade processual: ao preceituar que se aplica aos processos pendentes não significa dizer que incide sobre todos os atos dos processos pendentes. Ademais, o sistema da unidade processual pela aplicação do novo Código implicaria indevida retroatividade, já que resultaria na ineficácia dos atos processuais perfeitos já realizados no processo. 364 Embora, hoje, a sentença seja conceituada pelo seu conteúdo e não mais pelos efeitos que produz.
180
demais sistemas. O sistema unidade processual pode, conforme já
consignado na parte geral deste trabalho, ser objeto de opção legislativa
através da edição de norma transitória, da qual é exemplo o art. 76 da Lei nº
8.245, de 18.10.91 (Lei de Locações), que preceituou: “Não se aplicam as
disposições desta lei aos processos em curso”.
De outro turno, sem adentrar nas dificuldades apontadas por José
Carlos Barbosa Moreira (1997) atinentes à exata separação temporal entre
elas365, o sistema das fases processuais também pode eventualmente ser
aplicado pelo intérprete, mesmo à falta de disposição transitória expressa na
qual se resguarde a pós-atividade da lei vigente ao tempo iniciada a fase em
curso. É que, na lição de Carnelutti (1940), o processo é:
(...) una serie o una cadena de actos, realizados por la parte
o por el juez, coordinados todos en un momento dado por la
legislación en una relación de medio a fin, para conseguir el
resultado último, que es el juzgamiento (il giudicato) o la
satisfacción del acreedor. Teóricamente es posible que (...)
el jurista señale en la serie de esos actos líneas de
separación, en el sentido de que un acto posterior no deba
reconocerse como efecto jurídico de un acto precedente, es
decir, que su coordinación práctica no surja en manera
alguna con la intensidad de una causalidad jurídica. Es, por
tanto, teóricamente posible que sobre estas líneas de
separactión actue, durante el curso del proceso mismo, el
cambio de la ley procesal y que el régimen del proceso se
365 Segundo José Carlos Barbosa Moreira (1997), a caracterização de cada fase processual se liga antes à idéia de predominância que à exclusividade, de forma que haverá, assim, uma fase predominantemente postulatória, uma predominantemente instrutória etc. Não são, pois, compartimentos estanques: a produção de provas, por exemplo, inicia-se desde a fase postulatória e mesmo após o encerramento desta podem praticar-se, eventualmente, atos assemelhados à demanda ou à defesa. Demais disso, as fronteiras entre elas nem sempre são muito claras; a nitidez da diferenciação entre as fases varia em sentido contrário ao do grau de concentração do procedimento. Quanto mais concentrado seja este, mais se esvaziam as linhas divisórias entre as fases. É mais fácil, por exemplo, discernir uma divisão em fases no procedimento ordinário do que no sumário (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Novo processo civil brasileiro, 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 5).
181
modifique así durante su proprio desenvolvimiento. Pero la
coordinación práctica subsiste; y de ella puede surgir el
inconveniente de una desconexión o de una desorientación
del proceso cuando durante su curso intervenga una ley
modificadora, especialmente cuando actos estabelecidos
por la ley posterior no encuentren conveniente preparación
en los actos precedentes efectuados bajo el régimen de la
ley anterior. Este es el motivo práctico por el que las
reformas mayores en la legislación procesal van
normalmente acompañadas de disposiciones transitorias,
que si no adoptan por completo la medida excesiva de
aplicar la ley antigua hasta el término del proceso pendiente,
moderan, sin embargo, casi siempre la rígida aplicación del
principio arriba enunciado, estableciendo, por un lado, que
determinados grupos de actos, o secciones, o períodos del
proceso continúen siendo regulados por la ley precedente,
aun cuando según el rigor de los principios, les sea aplicable
la ley nueva, y por otro, disponiendo formas especiales para
la coordinación de los actos afectuados según la tramitación
(rito) precedente, con los actos a realizar según la
tramitación posterior.366
Desse modo, de forma a evitar o comprometimento do necessário
encadeamento lógico, seqüencial e causal dos atos processuais, o
intérprete, por vezes, se verá na obrigatoriedade de postergar a aplicação
imediata da lei processual ao processo em curso, ainda que diante da
ausência de disposição transitória a respeito.
Poderíamos objetar que ao intérprete não seria lícito tal proceder,
uma vez que o efeito imediato da lei deriva de norma legal (Lei de Introdução
ao Código Civil, art. 6º). Ocorre que a eficácia imediata da lei não pode
desfigurar ou inutilizar os atos já consumados no processo, dos quais 366 CARNELUTTI, Francesco. Sistema de derecho procesal civil. Traducción de Niceto Alcalá-Zamora Y Castillo y Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Uteha Argentina, 1940, p. 110.
182
dependem os posteriores. Caso o fizesse, seria retroativa por violação à
norma superior que impõe a obediência aos atos jurídicos processuais
perfeitos (Constituição Federal, art. 5º, XXXVI).
A título ilustrativo, vejamos a questão outrora suscitada pela
doutrina quanto à aplicação imediata do Código de Processo Civil de 1973
aos feitos pendentes no tocante ao procedimento sumaríssimo (hoje
sumário), reintroduzido, à época, pelo Código. Nesse caso, Wellington
Moreira Pimentel (1975) ponderou que:
(...) dada a amplitude dos critérios para a admissibilidade do
procedimento sumaríssimo, este, ao entrar em vigor o novo
Código, a 1º de janeiro de 1974, apanhará em curso ações
de ritos diversos, do ordinário aos especiais do velho
Código, em momentos ou em fases processuais que,
raramente ou nunca, se compatibilizarão com o novo
procedimento a ser obedecido em primeiro grau de
jurisdição, a menos que se trate de ação em fase
embrionária de processamento, isto é, onde a citação não
haja, ainda, sido efetuada (....). Relegar tudo o que foi feito,
por amor à regra da lei nova, seria ferir a regra
constitucional, que veda a aplicação retroativa da lei.367
Outro não foi o entendimento de Galeno Lacerda (1974) a
respeito da impossibilidade de conversão do novo procedimento
sumaríssimo nos feitos em andamento se “a citação tiver ocorrido na
vigência da lei antiga”.368
A ultratividade da fase processual iniciada, portanto, pode
decorrer de interpretação pelo aplicador do direito e não necessariamente
367 PIMENTEL, Wellington Moreira. Questões de direito intertemporal diante do código de processo
civil. v. 251. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1975, p. 131. 368 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 43.
183
por razões de política legislativa. Importa ressaltarmos, porém, que a pós-
atividade por força da hermenêutica somente ocorrerá se imprescindível à
harmonização dos atos praticados no curso do processo, pois, do contrário,
prevalece o critério do isolamento dos atos processuais.
É possível, ainda, avançar mais nas conclusões exaradas acerca
desses modos ou sistemas de aplicação da lei nova ao processo em curso.
Isso porque, nem sempre será preciso, para manter a concatenação lógica
dos atos processuais, que o intérprete resguarde a ultratividade da fase
processual, mas apenas de determinados “grupos de atos” inseridos no
interior da fase em andamento.
A construção doutrinária, quiçá a mais perceptível, a demonstrar a
pós-atividade, não de uma fase processual, mas de lapsos temporais
inferiores, vem do direito intertemporal recursal.
Assinala Nelson Nery Junior (2002), citando o francês Roubier,
que “a lei vigente no dia em que foi proferido o julgamento é a que determina
o cabimento do recurso; e a lei vigente no dia em que foi efetivamente
interposto o recurso é que regula o seu procedimento”.369 Em outras
palavras, apesar de revogadas, a lei em vigor no dia da sentença rege o
cabimento do recurso e a vigente quando da interposição disciplina o seu
processamento. Ambas são, portanto, pós-ativas, aplicáveis mesmo após a
revogação. Este irrepreensível ensinamento doutrinário, que se aproxima, na
medida do possível, da teoria do isolamento dos atos processuais ao permitir
a dual incidência legislativa nova na fase recursal (na qual podem ser
praticados vários atos processuais) e que se afasta, porque desnecessário,
369 NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 563-565. Em sentido parecido discorre Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 100): “se à publicação da sentença sobrevier lei suprimindo o recurso cabível contra ela, continua o vencido com o direito de recorrer (arts. 499 e 513), muito embora o modo de recorrer possa ser legitimamente regido por lei nova (requisitos da petição e das razões, modo e momento de fazer o preparo etc.)”.
184
do sistema das fases processuais ao não propugnar a singela aplicação de
uma única lei, não é, porém, de aceitação geral entre os doutos. 370
Exemplifique-se, ainda, com a hipótese de uma audiência de
instrução e julgamento iniciar-se em certo dia, concluindo-se em outro e a
superveniência, nesse interregno, de lei processual nova, estabelecendo
comando normativo diverso na sistemática das audiências, incompatível com
os atos praticados inicialmente. Decerto que as novas regras seriam
inaplicáveis à audiência marcada em continuação, sob pena de malferir o
encadeamento causal dos atos processuais.371
370 Defendendo que a lei do recurso é o que determinada a lei que deve incidir, tanto no tocante ao cabimento quanto ao processamento, temos Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina (2006, p. 287-300), os quais levantam a seguinte objeção quanto à posição de que compartilhamos: se a lei nova, ao entrar em vigor entre o dia do julgamento e o da interposição do recurso, suprimir o recurso então existente, não haverá procedimento. Mas a solução é dada pelos próprios autores no sentido de que, neste caso excepcional, se o recurso for extinto pela nova lei, aplicam-se as normas atinentes ao recurso com o procedimento que tinha à época da decisão. Por outro lado, Dinamarco (2002, p. 280) reporta-se a interessante questão suscitada por Pedro da Silva Dinamarco sobre a intertemporalidade jurídica envolvendo os embargos declaratórios e os infringentes: “Se o acórdão suscetível de embargos infringentes foi publicado na vigência da lei velha e uma das partes opôs embargos declaratórios a ele, a superveniência da lei restritiva da admissibilidade daqueles não se aplica ao caso, sob pena de retroatividade ilegítima, porque os embargos infringentes terão sempre por alvo o acórdão aclarado e só em segundo plano o aclarador; o direito de opô-los será, como sempre, regido pela lei do tempo da publicação do acórdão e não pela lei nova”. 371 Carlos Eduardo Ferraz de Mattos Barroso (1999, p. 6-7) lembra a hipótese do art. 414, § 1º, do Código de Processo Civil, o qual limita ao número de três as testemunhas destinadas à prova do fato controvertido. Suponha-se uma audiência designada em continuação para a oitiva de uma terceira testemunha de defesa, ausente quando da primeira data, sobre o único fato controvertido existente nos autos. Lei processual superveniente que venha a entrar em vigor nesse interregno, proibindo a oitiva de mais de duas testemunhas por cada fato controverso, não terá aplicabilidade no caso, permanecendo aplicável a lei anterior. Outro exemplo, agora fornecido por Nelton dos Santos (Coord. Antonio Carlos Marcato, 2004, p. 1382 e 2074), diz respeito à edição de lei nova que altere a ordem de colheita das provas, inaplicável à audiência designada em prosseguimento. Por outro lado, para o referido autor, o fato de ser uma e contínua a audiência de instrução, debate e julgamento (art. 455) impede, por si só, a incidência das novas regras na audiência designada em continuação. A nosso ver, com devido respeito, a circunstância de ser uma a audiência não implica dizer que nela pratica-se apenas um ato processual; ao revés, podem ser realizados vários atos processuais dentro de uma única audiência. A audiência é sempre uma, única (não são várias audiências), mas isso não impede no seu bojo o aperfeiçoamento de inúmeros atos processuais. Vejamos, por exemplo, a Lei nº 11.187, de 19.10.2005, que obrigou a interposição oral do agravo retido das decisões proferidas nas audiências de instrução e julgamento. Lei desse teor, mesmo se editada no interregno mencionado, se aplicaria à audiência designada posteriormente em continuação, o que obrigaria a parte, contra uma decisão proferida nessa segunda data, a interpor o agravo na forma oral e não escrita. Aqui não haveria qualquer desarmonia entre os atos praticados no processo.
185
Não é por outra razão que Wellington Moreira Pimentel (1975), ao
criar seu esboço de sistematização sobre a incidência do Código de
Processo Civil de 1973 aos processos em andamento, propôs duas regras
que merecem destaque, quais sejam: (a) para a aplicação da lei nova aos
atos que serão praticados após a sua vigência, é necessária a sua
compatibilização com os anteriores, de forma a não quebrar o nexo que os
vincula e (b) se o ato não praticado for mera seqüência de outro praticado
segundo a lei anterior, aquele a esta se sujeitará.372
Portanto, entre as teorias do isolamento e das fases processuais,
que não devem ser consideradas inflexíveis e estanques, viável o
reconhecimento de uma solução intermédia, desde que suficiente à
observância de logicidade entre os atos processuais, isto é, os atos ainda
não realizados e considerados imediata conseqüência de outros
anteriormente praticados no processo submetem-se à velha e ultrativa
legislação, diante da presente e inquestionável conexão existente em
eles.373
372 PIMENTEL, Wellington Moreira. Questões de direito intertemporal diante do código de processo
civil. v. 251. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1975, p. 132. 373 Este é o ensinar de Carlos Maximiliano (1955) que, com apoio em Gabba, afirma: “Atos processuais que são imediata e natural conseqüência de outros já realizados, constituem direito adquirido em virtude de conexão; regem-se pelos preceitos contemporâneos dos atos anteriores”. (MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1955, p. 271).
186
CONCLUSÃO
Analisadas as regras gerais constantes da Constituição Federal e
da Lei de Introdução do Código Civil e a respectiva aplicabilidade no âmbito
do processo civil, é possível inferirmos a inexistência de tratamento
intertemporal diferenciado no tema a que nos propomos no presente
trabalho.
É justamente, pois, nos sobreditos comandos imperativos de que
o intérprete deverá valer-se para solucionar as diversas questões jurídicas
surgidas, decorrentes da sucessão de duas leis processuais no tempo.
Não obstante inexistir propriamente tratamento diverso, não há
como negarmos, porém, a ocorrência de peculiaridades intertemporais na
seara processual, diante da complexidade do processo e das múltiplas e
variantes situações jurídicas assumidas pelos que dele participam durante o
seu curso.
Bem por isso, se, de um lado, as normas gerais são
imprescindíveis à exata compreensão do instituto, de outro, a efetiva solução
do fenômeno não dispensa o conhecimento de certas particularidades, tais
como as referentes às leis dispositivas, aos princípios processuais, aos
sistemas da unidade, das fases processuais e do isolamento dos atos
processuais (este último aplicável, em regra), à necessária compatibilidade
entre os atos processuais conexos (o que pode afastar a plena incidência da
teoria do isolamento), sem embargo de outras tantas peculiaridades, quais
as questões relativas às ações em andamento extintas pela lei nova, ao
cabimento e processamento dos recursos, e aos negócios jurídicos
processuais a denotarem uma feição diversa daquela presente nos pactos
privados de direito substancial.
187
Não pretendemos, deveras, fazer crer que o fenômeno da
intertemporalidade seja suficiente e seguramente resolvido à luz dos
instrumentos normativos e construções doutrinárias desenvolvidas para tal
mister, em torno das quais se debatem os conceitos de direito adquirido e
situação jurídica. Em nenhum ramo do direito a ciência logrou atingir este
intento e o direito processual civil certamente não representa exceção à
regra.
De todo modo, a solução desejável de determinado conflito de leis
instrumentais no tempo pressupõe o entendimento do que propugnam os
doutos que se debruçaram sobre o tema em comento, não devendo o
intérprete, ainda, olvidar da máxima da Filosofia no sentido que o Direito
repugna as transformações bruscas, a gerarem descompasso entre a
harmonia da justiça e a certeza almejada, ensinamento indubitavelmente
válido ao processo civil cuja efetividade, no que respeita ao aplicar da lei
nova aos feitos pendentes, não prescinde do equilíbrio entre os valores
celeridade e segurança.
188
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ANEXOS
RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 179.768-PR – Tribunal Pleno
Relator Ministro Carlos Velloso
Recorrente: Banco do Estado do Paraná S/A
Recorridos: Deciola Ribeiro Costa e outro
Brasília, 28 de junho de 1996, Fonte: RTJ nº 176/919-936.
O objetivo maior dos preceitos - de preservar as situações devidamente
constituídas - salta aos olhos. Daí, em acórdão merecedor de encômios, o
Relator do Agravo de Instrumento nº 497.395-7, Juiz Donaldo Amele (sic),
do 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, haver ressaltado que o direito à
conservação do patrimônio - garantia comum dos credores - é de natureza
material, embora se efetive normalmente por meio do processo, mesmo
porque no campo da efetividade o direito material é dependente do
processual. A seguir, deixou assentado que essa garantia não pode ser
diminuída, quer pela lei, quer pelo devedor, a ponto de prejudicar a
satisfação do direito assim assegurado, e se traduz realmente, na conduta
do devedor, em um limite da disponibilidade de bens deste, revestindo-se,
pois, consoante esclarece Yussef Said Cahali, de características de uma
obrigação negativa, no que faz surgir uma verdadeira imprópria obrigação
para o devedor - de não alterar a solidez de seu patrimônio, destinado que é
à satisfação de seus credores. (...) Por tais razões, e enaltecendo mais uma
vez o precedente mencionado, do Tribunal de Alçada Civil do Estado de São
Paulo, que, em homenagem ao ilustre magistrado e professor de Direito
Processual Civil, ora transcrevo, concluo pela inaplicabilidade da Lei nº
8.009, de 1990, às execuções concernentes a débitos formalizados antes da
respectiva vigência. Eis o inteiro teor daquele percuciente voto:
201
‘(...) De qualquer forma, todavia, essa lei está vigendo, impondo-se a sua
observância e, conseqüentemente, a solução das questões desta
emergentes. Acentue-se desde logo ter o diploma legal em tela natureza
material, a despeito de alguns seus dispositivos disciplinarem matéria
processual. O bem de família é, indisputavelmente, instituto de direito
material e a Lei nº 8.009/90 veio alterar o seu atual regramento explicitado
nos artigos 70 a 73 do Código Civil. (...) Contudo, in casu, não se cogita de
impenhorabilidade decorrente de lei processual, como se assentou supra. A
impenhorabilidade a que aludem os artigos 1º e s da Lei nº 8.009/90 resulta
de direito material, na medida em que esta, além de instituir, na prática, o
bem de família legal, expressamente excluiu da responsabilidade patrimonial
os bens nela elencados. (...) O direito à conservação do patrimônio do
devedor, garantia comum dos credores, é de natureza material, embora se
efetive normalmente através do processo, mesmo porque, no plano da
efetividade, o direito material é dependente do processual (cfr. Andrea Proto
Pisani, Breve premessa a un corso sulla giustizia civile (Introduzione) in:
Appunti sulla giustizia civile, Bari Cacucci Editore, 1982, pp. 8 e segs.). Essa
garantia não pode ser diminuída, quer pela lei, quer pelo devedor, a ponto de
prejudicar a satisfação do direito assim assegurado, e se traduz,
relativamente à conduta do devedor, em um limite da disponibilidade de
bens deste, revestindo-se, pois, consoante esclarece Yussef Said Cahali,
invocando o magistério de Cico, de "características de uma obrigação,
negativa, no que faz surgir uma verdadeira e própria obrigação para o
devedor, de não alterar a solidez de seu patrimônio, destinado que é à
satisfação de seus credores" (cfr. Fraude contra Credores, S. Paulo, RT.
1989. p. 39). (...) Assim sendo, resta examinar se tal direito pode ser
suprimido por lei de efeitos retroativos. Como foi acentuado supra, o artigo
591 do CPC enseja à lei ordinária restringir a responsabilidade do devedor, o
que indubitavelmente poderá ocorrer prospectivamente, entretanto não
poderá atingir elementos constantes do patrimônio do devedor, que dele não
poderiam voluntariamente ser retirados sem infringir o direito do credor à
conservação desse patrimônio em nível suficiente para a satisfação de seu
202
direito. Isto porque o credor adquiriu direito a essa conservação, aquisição
essa que dispensa o exercício para se corporificar. Aliás, em regra, sendo o
exercício do direito forma de sua consumação, não haveria porque fazer
coincidir a aquisição necessariamente com a sua extinção. (...) Nessa
conformidade, é de se concluir que a Lei nº 8.009/90, a despeito de sua
redação ensejar diversa interpretação, somente pode ser prospectiva. Assim
sendo, não vulnerará direitos adquiridos, seja através da penhora ou da
citação, como sustentam respeitáveis posicionamentos, hábeis a tornar
ineficazes os atos de alienação ou oneração de bens em detrimento do
credor, seja mediante o surgimento de obrigação do devedor de manter o
seu patrimônio em nível adequado para responder pelo débito contraído. Isto
porque, com a configuração do débito, emerge direito do credor à
conservação. Portanto, para que a impenhorabilidade prevista nessa mesma
Lei nº 8.009/90 pudesse atuar nos processos que derivem de obrigações
pecuniárias do devedor, contraídas antes do advento desse diploma legal,
mister se faria que este não apenas comprovasse estarem os bens
penhorados encartados entre os previstos no artigo 1º dessa mesma lei,
como também que existem outros bens penhoráveis, hábeis a responder
pelo crédito existente. Assim, em verdade, não se tornaria insubsistente,
simplesmente, a penhora já realizada, mas se substituiria o seu objeto,
mantendo-se, destarte, a prelação dela resultante. (...) O cancelamento da
penhora, considerando-se a exegese emprestada ao aludido artigo 6º, far-
se-ia somente mediante substituição do bem penhorado, como supra
explicitado, sem o que emerge evidenciada a impossibilidade de atuar o
comando dessa norma, por colisão com o texto constitucional’.