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MIÚDOS I PUNHOS ERGUIDOS E LUVAS CALCADAS PATRÍCIA CARVALHO TEXTO PAULO PIMENTA FOTOGRAFIA A Federação Portuguesa de Boxe diz que dez anos era "impensável" ter crianças a praticar a modalidade. Hoje são cada vez mais os miúdos que calçam luvas e passam horas a treinar desportos de combate. Fazem bem?

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MIÚDOSI PUNHOS

ERGUIDOS

E LUVAS

CALCADAS

PATRÍCIA CARVALHO TEXTO

PAULO PIMENTA FOTOGRAFIA

A Federação Portuguesa de Boxe diz que há dez anos era "impensável" tercrianças a praticar a modalidade. Hoje são cada vez mais os miúdos quecalçam luvas e passam horas a treinar desportos de combate. Fazem bem?

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X" "S. s temas do álbum Brothers in' \ Arms, dos Dire Straits, já foramsubstituídos há uns bons minu-tos pelo som demasiado alto debatidas musicais a fazer lembraras barracas de festas populares,quando Ricardo "Golden Boy"Rodrigues e Ricardo "Pretty

k I Boy" Silva sobem para o ringuev^ S da Arena de Matosinhos. O pri-

meiro, de calções negros e brancos, ocupao canto vermelho. O segundo, com calçõespretos e laranja, dirige-se para o azul. Os res-

pectivos treinadores dão as últimas indica-ções e os dois preparam-se para o "combate"."Golden Boy" tem 12 anos e é a sua estreia noringue. "Pretty Boy" dá-lhe pelo pescoço, mas

já tem experiência e dá bastante trabalho aoadversário.

Há alguns anos seria "impensável" ter crian-

ças a praticar boxe, quanto mais a participa-rem em combates, explica à 2o presidente da

Federação Portuguesa de Boxe (FPB), EugênioPinheiro. Mas hoje, em todo o país, há "entre

250 a 300" miúdos a treinar a modalidade emginásios, aponta. Alguns, como os dois Ricar-dos que, há algumas semanas, se defrontaramem Matosinhos, sobem ao ringue e colhemaplausos de familiares, amigos e da audiên-cia que está ali para assistir aos combates "a

sério", ocupando grande parte dos lugaresdisponíveis nas duas bancadas.

Porque o bailado de toca e foge, com algunssocos à mistura, absorvidos, em grande par-te, pelos capacetes de protecção, que os dois

rapazes desenham ao longo de três assaltoscom um minuto cada, não é um verdadeirocombate. Chamam-lhe "demonstração" ou"exibição". É uma forma de mostrarem o queaprenderam. A diferença para um combatereal é que não há pontuação, vencedores nemvencidos, e não é permitida qualquer acçãomais violenta no ringue.

Dois dias antes da demonstração, no ginásioÁgua Viva, em Matosinhos, Ricardo "Golden

Boy" Rodrigues pára uns minutos o treinopara explicar como está a lidar com a batalha

que se aproxima. "Estou nervoso. Soube no

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início de Março que ia combater, agora estoumais nervoso. O outro miúdo é mais rápido,mas eu tenho mais força, porque ele é maisbaixo", diz. Chegou ali como muitas outrascrianças chegam a outros ginásios - espica-çado por um amigo que começara a treinarboxe. O entusiasmo do amigo esmoreceu e

não ficou no Água Viva mais de um mês, masRicardo gostou e percebeu que tinha jeito.Agora, o pai leva-o cinco dias por semana deVila Nova de Gaia até Matosinhos, para trei-nar. Além do boxe, começou também a prati-car kick-boxing "para fortalecer os músculos",mas continua a gostar mais da modalidadeolímpica a que chamam "a nobre arte".

Em casa, Ricardo tem de lidar com o entu-siasmo do pai e do irmão mais velho e coma leve oposição da mãe, Manuela. Ela nãoproibiu o filho de treinar boxe, mas é contraa sua participação em combates, mesmo quelhes chamem outra coisa. Dois dias antes da

apresentação do rapaz, na Arena, jurava quenão ia assistir ao filho a socar e ser socado poroutra criança, dentro de um ringue. Mas, nopróprio dia, não resistiu a ver toda a famíliae amigos de Ricardo precipitarem-se paraMatosinhos e acabou por se sentar tambémnas bancadas. Ainda que sob protesto. "Soucontra isto. Acho que não tem idade. Nisto,eu e o meu marido não concordamos. Mas ele

gosta de boxe e acho que temos de o apoiar.Ele gosta muito disto", diz.

Manuela não é a única a pensar assim. NoÁgua Viva, de Matosinhos, no ginásio LisboaFutebol Clube, junto ao antigo Casal Vento-so, ou no Health Club dos Pinhais da Foz, noPorto, onde os miúdos calçam luvas parapraticar kick-boxing, ouve-se repetidamen-te a senha: "O meu pai apoia, a minha mãenão gosta muito, sobretudo dos combates".A violência associada a estes desportos aindalevanta muitos obstáculos à prática destasmodalidades por crianças e jovens. A questãoé: faz sentido?

>v or cá não se tem prestado muitaatenção aos riscos ou benefíciosassociados à prática de boxe ou ki-

ck-boxing por crianças a partir dosoito ou dez anos, mas em paísesy como Estados Unidos, Canadá ouInglaterra as associações médicastêm tomado posições claramentecontra a prática de boxe por pesso-as tão novas. A American Academy

of Pediatrics e a Canadian Pediatric Societyemitiram recentemente uma posição pública

na qual defendem: "O boxe não é um despor-to apropriado para crianças." Os especialistas

defendem que a protecção de cabeça usada

pelos jovens não é suficiente, mantendo-seo risco de concussões ou traumas oculares."Recomendamos que os jovens participemem desportos em que o objectivo principalnão seja golpes deliberados na cabeça", diza informação.

Paula Fonseca, presidente da secção deMedicina do Adolescente da Sociedade Por-

tuguesa de Pediatria, teve de pensar a sérionas consequências de prática de boxe por pes-soas mais novas quando, há algum tempo,lhe apareceu uma jovem obesa de 16 anosa pedir conselho. "Ela está num programanutricional e de actividade física e recusavaqualquer outra actividade que não o boxe.Recomendei-lhe que experimentasse outramodalidade, mas ainda não sei qual será a

resposta dela", explica a médica.Como a SPP não tem qualquer directriz so-

bre a prática de boxe, Paula Fonseca teve de

se informar e dar a sua opinião médica - quevai ao encontro da dos seus colegas norte-americanos e canadianos. "É consensual quenão é recomendada a prática de boxe nestasidades, porque existem efectivamente mui-tos riscos: traumatismos oculares ou faciais e

consequências a longo prazo que são conhe-cidas", defende, numa referência aos casosde problemas neurológicos que, não poucasvezes, acabam por afectar a vida de boxeurs

profissionais. A especialista diz que a práticada modalidade na sua vertente exclusiva detreino, sem contacto, "não acarretaria gran-des problemas", mas acredita que tal não émuito viável, porque mais tarde ou mais cedo,os miúdos vão querer usar os punhos numadversário.

No Health Club Pinhais da Foz, o treinadorNuno Terroia deparou-se com essa exigênciahá algum tempo, por parte dos alunos mais

jovens que praticam kung-fu, kick-boxing esanda (boxe chinês). O ginásio está situadonuma zona considerada chique da cidadedo Porto e alguns dos alunos de Terroia en-vergam os uniformes dos colégios privadosque frequentam. Ali, admite o professor, osalunos são todos de famílias mais abastadase muito longe da imagem que muitas vezes éassociada à prática de modalidades como o

kick-boxing. "O kick-boxing ainda tem umaimagem muito ligada a arruaceiros, mas nãoé verdade. As artes marciais são boas paraos miúdos porque eles vão-se conhecendo,ganham força, aprendem a controlar a dor eficam com uma noção dos limites, algo quehoje não é fácil", diz.

Quando abriu a sua aula no Health ClubPinhais da Foz, o antigo campeão nacional emundial de sanda fez saber que estava dispo-

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nível para receber miúdos de alguns bairrosproblemáticos próximos, como o Aleixo oua Pasteleira, sem qualquer custo. "Ninguémapareceu", diz. A barreira invisível que separao bairro social do ginásio "bem" falou maisforte. Nuno ficou apenas com os rapazes e

raparigas que chegam ali a conselho dos pais(porque querem que eles aprendam a defen-

der-se) ou de psicólogos, que "aconselham a

prática destas modalidades para crianças comalgum grau de hiperactividade, fobias ou me-dos", graças à elevada concentração exigida eà confiança que conseguem interiorizar coma prática da modalidade, explica.

O professor, que também leva o kung-fu e osanda ao CLIP - Colégio Luso-Intemacionaldo Porto (uma escola privada), diz que há dife-

renças entre treinar crianças mais desfavore-cidas e outras mais endinheiradas. "Acima de

tudo, há uma diferença na atitude. Os miúdosde estatuto social mais baixo treinam comuma vontade maior de se afirmar. Aos outrosé mais difícil incutir a noção que têm de sesacrificar para obter um objectivo. No CLIP,eles pura e simplesmente não percebiam porque tinham de fazer um exercício mais rápidoou de forma mais incisiva", diz.

Na sua aula, onde há tantos rapazes comoraparigas, essa falta de esforço parece não ca-ber. De luvas nas mãos, batendo em aparelhoscom os punhos ou os pés, saltitando sempre,mudando de posição constantemente com os

colegas, os alunos suam e arquejam. Mariana,15 anos, treina há seis, e apesar de ter sidoa mãe a incentivá-la a experimentar a aulade Terroia, esta já não achou grande piadaquando soube que a filha iria combater numtorneio de kick-boxing. A rapariga de cabelos

compridos e negros perdeu com a adversáriaespanhola e a memória desse combate não é

das melhores. "Foi difícil combater e o factode ter perdido é algo que não quero sentiroutra vez. Esforço-me mais para não correr o

risco de perder de novo e também para podermelhorar", diz.

A dificuldade em lidar com a derro-/\ ta éum dos motivos pelos quais/\ Eugênio Pinheiro defende que

/ \ ninguém deveria participar em/ \ combates "a sério", pelo menos/ \ no boxe, antes dos 16 anos. "Ne-/ \ nhum jovem tem formação emo-/ \ cional que lhe permita suportar/ \ a tensão do combate antes dessa/ \ idade. Não é saudável. Às crian-

ças, recomendo que treinem com cuidado,com atenção. Não se pode pôr muito espíritode competição nos mais novos, até porque,embora da mesma idade, nem todos têm o

mesmo nível de desenvolvimento e perder umcombate pode ser traumático", defende.

Dito isto, o presidente da FPB não concordacom o tom das recomendações médicas so-bre a prática de boxe por crianças. Defendeque o boxe de que falam os norte-america-nos não é o mesmo que se pratica na Europa,muito mais preocupado com o bem-estar e

protecção do atleta, diz, e acrescenta que,em França, o boxe já foi mesmo incluído nasmodalidades do desporto escolar. "Na Euro-

pa, o boxe é mais tocar do que castigar, qua-se como uma esgrima. É claro que pancadasna cabeça são sempre pancadas na cabeça,mas no futebol, uma bola molhada, que vema grande velocidade e bate mal na cabeça, é

pior do que um soco", argumenta.O neurologista pediátrico José Carlos Fer-

reira diz que não pode refutar este argumen-A Arena deMatosinhos é "oúnico espaço dopaís legalizadopelo Institutodo DesportoPortuguês paraa promoçãode eventosde desportosde combate",assegura CésarMoreira, que gereo ginásio ÁguaViva e tambémcriou a Arena. À

esquerda, combatede kick-boxingentre Portugal eEspanha. À direita,treino de boxe.No plano anterior,Alberto Biro,aluno romeno dotreinador PauloSeco, do LisboaFutebol Clubeto. "É verdade, um traumatismo causado poruma bola com força pode ser muitíssimo mais

grave que um soco, mas isso é um acidente

enquanto a natureza do boxe é a de desferir

golpes na cabeça", argumenta. O especialistaressalva que não tem dados que lhe permitamdefender uma idade mínima para a prática deboxe ou kick-boxing e até admite que "em Por-

tugal, estas modalidades não acarretem riscos

nenhuns, pelos cuidados com que são feitas",mas ressalva: "O que sabemos é que há umasérie de profissionais que têm sequelas deuma vida inteira a praticar boxe e que com o

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cérebro das crianças há o maior risco de umpequeno traumatismo se tornar preocupante.O factor essencial é a forma como esses trei-nos e demonstrações são feitos, sendo certo

que uma modalidade que envolve pancadasrepetidas na cabeça pode, com certeza, serprejudicial".

Eugênio Pinheiro não quer que restem dú-vidas sobre a sua opinião: "Concordo com oboxe como prática, desenvolvendo os exer-cícios - fazer saco, sombra, saltar à corda -em que se pode avaliar tecnicamente comoos miúdos fazem estas coisas. Pôr crianças à

porrada, não." E pede que não diabolizem oboxe porque, diz: "Ele também pode ter umafunção social. Há muita gente que se hoje é

alguma coisa na vida ao boxe o deve."A psicóloga clínica Sofia Nunes da Silva, do

Hospital de Santa Maria, em Lisboa, confes-

sa que tem sobretudo dúvidas sobre os be-nefícios e malefícios da prática de boxe oukick-boxing por parte de crianças e jovens."Há poucos estudos sobre isto e, se calhar,estamos numa altura em que começa a surgira necessidade de os fazer. Como não temosexperiência nesta matéria, temos de olharpara isto quase caso a caso e não generalizar",defende. Mas não tem dúvidas em apresen-tar reservas à prática destas modalidades nas

crianças entre os seis e os dez anos. "Sei quelhes é ensinado que o que fazem no ginásionão se pode fazer no exterior, mas não sei setodos os miúdos têm a maturidade suficiente

para, em determinadas situações do seu dia-a-dia, como conflitos na escola, conseguirem

ter esse autocontrolo", diz.Já no caso dos adolescentes, a situação é

diferente. A psicóloga recorda que, há poucotempo, um rapaz de 14 anos, tímido e commuitos problemas de afirmação, manifestoua vontade de praticar kick-boxing. "Achei que,neste caso, praticar uma modalidade que lhe

permitia dar uns socos poderia fazer senti-do, mas o pai teve medo da modalidade, do

que a sua representação de agressividade eautodefesa pudessem fazer ao filho. É óbvio

que temos de analisar caso a caso, mas neste

parecia-me razoável", explica.Mas sobram muitas dúvidas à psicóloga clí-

nica sobre a prática destes desportos pelascamadas mais jovens. Diz não entender muitobem como é que a prática de boxe pode aju-dar miúdos de bairros sociais "já rodeadosde tanta agressividade", por exemplo. Paulo

Seco, o rosto do ginásio Lisboa Futebol Clu-

be, poderia contar-lhe a sua história para a

ajudar a entender, já que não tem dúvidas emafirmar que o boxe lhe salvou a vida. "Nas-cido e criado num bairro de droga, o boxesalvou-me de tudo, de todos os vícios", diz.Do prédio onde está instalado o ginásio temvista para as colinas onde há apenas uns anosse estendia aquele que era o mais conhecidobairro de tráfico e consumo de droga da ca-

pital e também a sua casa, o Casal Ventoso."Vi todos os meus amigos de infância irempresos, morrerem devido à droga. Tudo o queé negativo", explica.

Insiste que o que o salvou foi ter descober-to o boxe, aos 12 anos, através de um amigo.

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A disciplina e exigência da modalidade quepraticou como atleta, arrecadando váriostítulos, e a que hoje continua ligado comotreinador, mantiveram-no de cabeça limpa.Quando chegou a hora de retribuir, tomouconta do Lisboa, o pequeno e velho ginásiofrequentado por estrelas da música e da tele-visão e também pelos putos dos três bairrossociais envolventes - Cabrinha, Liberdade eBela Flor -, onde todos têm a chave e que jáesteve uma noite toda com a porta escanca-rada (Paulo esqueceu-se de a fechar) sem quesofresse qualquer dano.

Ao final da tarde, enquanto alguns adultos

já batem nos sacos da única sala do ginásio,começam a chegar as crianças. Paulo pren-de um cesto de basquetebol sem rede, quealguém deitara ao lixo, no muro em frenteà porta do ginásio e incentiva os primeiros achegar a jogarem, enquanto esperam peloscolegas. Ali, muitos dos mais novos vêm evão. Alguns experimentaram o boxe duranteuns meses, desistiram e voltaram. Outros gos-tam verdadeiramente da modalidade. Comoo João Marcelo, de 11 anos, que treina há trêse a quem o treinador chama, na brincadeira,de Ricky Hatton, porque o rapaz, diz, se pa-rece "na agressividade" com o boxeur inglêsjá reformado.

A maior parte dos miúdos chegam/\ arrastados pela curiosidade de/\ um amigo que está a experi-/ \ mentar usar as luvas de boxe ou/ \ encaminhados pelos pais. Para/ \ perderem peso. Para deixarem/ A de ser "demasiado sensíveis" e/ \ ganharem alguma força. De cara-/ \ cóis loiros, faces rosadas e olhos/ \ azuis, Fabiana de nove anos pare-ce ter um sorriso permanentemente colado aorosto. Explica que está ali "há um mês, paraemagrecer". Desde então, perdeu um quilo,entre saltar à corda, correr ou bater nos sacos.

Sempre a rir, diz que entre as suas preferên-cias está "pôr as ligaduras" que protegem as

mãos, antes de colocar as luvas. Durante a au-la, participa distraidamente, sempre a sorrir,

e não está entre os miúdos que respondemà pergunta do treinador: "Quem quer fazerluvas?"

A pergunta é o mote para avançar para pe-quenos combates. Com os dentes e a cabeçaprotegidos, luvas bem apertadas, os miúdosenfrentam-se, sempre sob o olhar atento dotreinador que exige "calma" ou apela "mais

devagar", quando alguma sequência de socos

se torna mais enérgica. O conselho é mais ve-zes repetido quando Bianca, 11 anos (treina

quase há quatro), e Márcia, de 14 (pratica há

dois), se defrontam. As duas são "bravas",descreve Paulo Seco sorridente, mas aparen-temente apenas nos momentos intensos datroca de socos. Mal o "assalto" termina con-versam amigavelmente num canto, enquantoo treinador pergunta, amiúde, ora a uma, oraa outra: "Estás bem, estás bem?"

Bianca diz que gosta do boxe e que todosos miúdos que gostem de o praticar devemfazê-10. Garante que se sente protegida, como capacete, sempre que enfrenta um colega,e que o que lhe faz mal é obrigarem-na a estar

A participanteespanhola nocombate dekick-boxingquedecorreu na Arenade Matosinhos.À direita, em cima:indicações deuma mãe duranteo treino para umcombate (RicardoRodrigues, com as

ligaduras, à frente).Em baixo, combatedekick-boxinglonge do ginásio de Paulo. "Há dias estive de

castigo, a minha mãe tirou-me do boxe. Ema-greci, andava mal e ela deixou-me voltar",explica. Diz que a modalidade lhe garantiu"mais respeito na escola", apesar de saber

que não deve combater fora do ringue e semluvas. "O Paulo [Seco] disse que era proibidoandar à porrada e fazer boxe. Explicou que lá

fora, como não temos protecção, era muitoperigoso", diz.

Márcia é uma fã de desporto. Além do boxe,já experimentou kick-boxing (mas não gostoutanto) e pratica futebol. Diz que o acompanha-mento que tem no ginásio Lisboa a ajudoua lidar com o divórcio dos pais e encontraoutras qualidades na prática da modalidade:"Quando estamos irritados, é bom. Descarre-

gamos energias, aprendemos novas práticas,ficamos mais atentos, melhoramos a alimen-

tação..." Vindo da porta ao lado, o presidentedo projecto Alkantara - Associação de Lutacontra a Exclusão Social, que trabalha nostrês bairros sociais da zona, espreita o treinoe elogia o trabalho de Paulo Seco. "A popula-ção daqui tem uma grande vantagem por tero Paulo Seco, porque lhes oferece o desporto.É muito interessado na divulgação do boxe edo kick-boxing e está sempre a oferecer-se

para fazer demonstrações nas escolas, é mui-to proactivo." O treinador também ajudou aidentificar "uma série de casos" que depois

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foram acompanhados pelo projecto.

m Matosinhos, César Moreira,que gere o Água Viva há dez anose criou a Arena na mesma altura("o único espaço do país legali-zado pelo Instituto do DesportoPortuguês para a promoção deeventos de desportos de comba-te", explica), também insiste nocarácter de "acção social" que oboxe pode desempenhar.

Diz que quando aceitou o convite de Coo-

perativa Água Viva para dinamizar o ginásiovazio do bairro e decidiu dedicá-lo exclusiva-mente a desportos de combate lhe chamaram"maluco", mas não se importou e tratou de

começar a trabalhar para destruir a imagemmenos simpática associada ao boxe. Fez umprotocolo com ajunta de Freguesia de Mato-sinhos, no qual se oferecia para receber 30crianças e jovens, entre os 8 e os 16 anos, dasescolas locais, durante três meses. Queria as

crianças rebeldes, os que levavam o medo à

escola, "que batiam na professora" e gera-vam sobressaltos. Garante que, antes de umamudança política na junta ter posto fim aoprotocolo, tinha "98% de taxa de sucesso".

Que os miúdos que passaram pelo Água Vivase disciplinaram e "ainda hoje são uns senho-res". 0 segredo? O esforço a que um deportoindividual como o boxe obriga, mas também aatitude do treinador, diz sem falsas modéstias."Não há bons ou maus atletas, eles apenasreflectem o treinador que têm, o que lhes étransmitido. Sou muito disciplinador, trato os

meus atletas como um filho. É preciso dar ereceber na mesma proporção, explicar quenão vai ser fácil. Sou quase um ditador, masamigo deles ao mesmo tempo", diz.

É deste equilíbrio frágil que os miúdos mais

problemáticos podem beneficiar, defendemos treinadores. Nos desportos de combatedescarregam energia, aprendem a ser maisfortes e ágeis. São obrigados a desenvolverconfiança e responsabilidades porque, numfrente a frente com o adversário dependemapenas de si próprios. "Se se magoarem oucaírem não vale a pena chorar pelos pais, por-que eles é que têm de resolver a situação",frisa Nuno Terroia. Os seus alunos, se usaremalguma das técnicas aprendidas na aula forada sala, sem ser em caso de emergência, são

expulsos.Tal como César, Paulo Seco diz que tem "50

filhos dentro do ginásio", tantos quantos osatletas que por lá passam. Nas paredes, há

folhas A 4impressas com os "princípios" damodalidade - honestidade, orgulho, missão- e os seus "valores" - realização pessoal,felicidade. Paulo, César e Nuno dizem quenão se limitam a formar atletas. "Formamoshomens", dizem.

orge Mota, director do Centro de

Investigação em Actividade Física,Saúde e Lazer (CIAFEL) da Facul-dade de Desporto da Universidadedo Porto já fez vários estudos sobre

as crianças e a prática desportiva,I mas admite que nunca se debru-

çou sobre a influência que os des-l J portos de combate, como o boxe

> / ou o kick-boxing, pode ter nos maisnovos. Defende que "a prática desportiva emgeral é um elemento de socialização muitoimportante do ponto de vista integrador"e admite "algumas vantagens" para estesdesportos quando se fala em crianças com"um certo nível de agressividade intrínsecaou hiperactividade". Mas franze o sobrolhoà participação em combates. Não estudou a

questão, não quer emitir opiniões sobre algotão específico.

Eugênio Pinheiro vai no sentido oposto.Avisa mesmo que está prestes a emitir "umaposição muito pessoal", que não deve serconfundida com o cargo que desempenha."Todo o atleta que começa muito cedo acabamuito cedo. Qualquer criança que escolheuma modalidade antes dos 12 anos está a fa-zê-lo ao gosto dos pais, não ao seu. Por isso,acho que até aos 12 anos os miúdos devemexperimentar tudo, para verem qual a suavocação", diz.

A tensão notória no corpo de Manuelanão desaparece totalmente quando o filhotermina a sua primeira exibição. No ringue,o árbitro ergue os braços dos dois adversá-rios, indicando que ambos são vencedores.De medalha ao peito, "Golden Boy" trepapela bancada e vai sentar-se junto da família,para assistir aos combates que, naquela tar-de de domingo, levaram ao Arena atletas daGaliza e de vários clubes de Portugal (alémdo Água Viva, andam por ali homens e mu-lheres com os casacos do Porto, do Boavista,de Braga, dos Unidos da 5é...). No dia seguin-te, quando chegar ao ginásio, há-de receberuma salva de palmas de todos os colegas. Éessa a tradição. "Fazemo-lo a todos os atletas,independentemente do resultado, porquerepresentaram a equipa e transmitiram osnossos valores", diz César, no ginásio bemequipado de Matosinhos. Sorrateiramente,

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aponta para o pequeno ringue num dos can-tos da sala onde um miúdo solitário desferemurros enluvados contra o ar. Tem 12 anos,

começou a treinar há pouco. "Tem poten-cial", sorri o treinador.

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