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MERLIN, Bella. “Where’s the spirit gone?” The complexities of translation and the nuances of terminology in An Actor’s Work and an actor’s work. Stanislavski Studies 1, February, 2012. Traduzido para fins didáticos por Laédio José Martins. Jan. 2015. Disponível em: http://stanislavskistudies.org/issues/issue-1/wheres-the-spirit-gone-the-complexities- of-translation-and-the-nuances-of-terminology-in-an-actors-work-and-an-actors-work/ “[Pra] Onde foi o espírito?” As complexidades de tradução e as nuances da terminologia em O Trabalho do Ator e o trabalho do ator Bella Merlin Pano de fundo A primavera de 2008 viu a tão esperada publicação de O Trabalho do Ator [An Actor’s Work], de Stanislávski descrito na sobrecapa [dust-jacket] como “uma tradução contemporânea de Jean Benedetti de A Preparação do Ator [An Actor Prepares] e A Construção da Personagem [Building a Character]”. 1 Alguns meses antes da sua aparição pública, foi-me enviada uma versão não corrigida do editor [uncorrected publisher’s draft], a fim de [que eu] escrevesse um ensaio de lançamento para o site da [Editora] Routledge. 2 Quando mais tarde eu vim a ler a versão final publicada, fiquei intrigada ao descobrir que foram feitas alterações posteriores, o que tornou partes do meu ensaio agora obsoletas. Por exemplo, eu tinha dado muita [importância] ao fato de que (na versão não corrigida), a divisão entre os dois anos do programa de treinamento de Tortsov Ano Um (Vivência) e Ano Dois (Rascunhos e Fragmentos, Uma Reconstrução) vinha antes do Capítulo 9: “Memória Emotiva”. No meu ensaio, portanto, eu t inha destacado o fato de que os exercícios sobre a memória emotiva só foram introduzidos depois de um ano inteiro de aprendizado sobre Imaginação, Liberação Muscular, e Pedaços/Partes [Acontecimentos] [Bits] e Tarefas. Em outras palavras, o trabalho com as emoções 1 Stanislávski, C. S. (2008) (trad. Benedetti, J.), O Trabalho do Ator [An Actor’s Work], Abingdon: Routledge. 2 http://cw.routledge.com/textbooks/stanislavski/downloads/bella-article.pdf. [Tradução publicada em https://www.academia.edu/7222163/O_Trabalho_do_Ator_est%C3%A1_Finalmente_Terminado_- _Bella_Merlin. N.T.]

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Page 1: Pra Onde Foi o Espirito - As Complexidades de Traducao e as Nuances Da Terminologia... - Copia

MERLIN, Bella. “Where’s the spirit gone?” The complexities of translation and the nuances of terminology in An Actor’s Work and an actor’s work. Stanislavski Studies 1, February, 2012. Traduzido para fins didáticos por Laédio José Martins. Jan. 2015. Disponível em: http://stanislavskistudies.org/issues/issue-1/wheres-the-spirit-gone-the-complexities-of-translation-and-the-nuances-of-terminology-in-an-actors-work-and-an-actors-work/

“[Pra] Onde foi o espírito?” As complexidades de tradução e as

nuances da terminologia em O Trabalho do Ator e o trabalho do

ator

Bella Merlin

Pano de fundo

A primavera de 2008 viu a tão esperada publicação de O Trabalho do Ator [An

Actor’s Work], de Stanislávski – descrito na sobrecapa [dust-jacket] como “uma

tradução contemporânea de Jean Benedetti de A Preparação do Ator [An Actor

Prepares] e A Construção da Personagem [Building a Character]”.1 Alguns meses

antes da sua aparição pública, foi-me enviada uma versão não corrigida do editor

[uncorrected publisher’s draft], a fim de [que eu] escrevesse um ensaio de

lançamento para o site da [Editora] Routledge.2 Quando mais tarde eu vim a ler a

versão final publicada, fiquei intrigada ao descobrir que foram feitas alterações

posteriores, o que tornou partes do meu ensaio agora obsoletas. Por exemplo, eu

tinha dado muita [importância] ao fato de que (na versão não corrigida), a divisão

entre os dois anos do programa de treinamento de Tortsov – Ano Um (Vivência) e

Ano Dois (Rascunhos e Fragmentos, Uma Reconstrução) – vinha antes do Capítulo

9: “Memória Emotiva”. No meu ensaio, portanto, eu tinha destacado o fato de que os

exercícios sobre a memória emotiva só foram introduzidos depois de um ano inteiro

de aprendizado sobre Imaginação, Liberação Muscular, e Pedaços/Partes

[Acontecimentos] [Bits] e Tarefas. Em outras palavras, o trabalho com as emoções

1 Stanislávski, C. S. (2008) (trad. Benedetti, J.), O Trabalho do Ator [An Actor’s Work], Abingdon:

Routledge. 2 http://cw.routledge.com/textbooks/stanislavski/downloads/bella-article.pdf.

[Tradução publicada em https://www.academia.edu/7222163/O_Trabalho_do_Ator_est%C3%A1_Finalmente_Terminado_-_Bella_Merlin. N.T.]

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era uma atividade sofisticada a qual requeria fundamento em outras técnicas

criativas [imaginative], físicas e analíticas antes que pudessem ser seguramente

direcionadas/controladas [addressed].

Na versão final publicada, no entanto, o Ano Um (ainda chamado Vivências)

incorporou todos os dezesseis capítulos de A Preparação do Ator [An Actor

Prepares], incluindo “Memória Emotiva”, e o Ano Dois (agora chamado de

Encarnação/Personificação [Embodiment]) conta com todos os capítulos de A

Construção da Personagem [Building a Character]. Esta nova divisão tornou meu

argumento sobre a colocação/disposição/localização [placement] da Memória

Emotiva não só redundante, mas aparentemente errado.

Além disso, notei que o Capítulo 12 no rascunho não corrigido foi intitulado

“Propulsores Psicológicos Internos” [‘Psychological Inner Drives’] (em A Preparação

do Ator, estes são as “Forças Motivadoras Internas” [‘Inner Motive Forces’]),

enquanto que na publicação final, eles são chamados de “Psicológicos Propulsores

Internos” [‘Inner Psychological Drives’]. Comecei a me perguntar quais as nuances

eram [por causa] da troca da ordem dos adjetivos. Na verdade, retornei a O

Trabalho do Ator com renovado interesse nas nuances de toda a tradução.

Este interesse renovado foi inflamado em uma conferência focada na nova

tradução, organizada pela [Editora] Routledge no Teatro Barbacã de Londres

[London’s Barbican Theatre] em agosto de 2008. [Entre] os oradores [estavam]

incluídos Jean Benedetti, Declan Donnellan, Mike Alfreds, Phillip B. Zarrilli, eu

mesma e a consultora de Benedetti para a Língua Russa em O Trabalho do Ator [An

Actor’s Work], Katya Kamotskaia. Kamotskaia tinha sido uma de minhas

“orientadoras/mestras” [‘masters’] de atuação no Instituto Estadual de

Cinematografia de Moscou [Moscow’s State Institute of Cinematography] no início

[da década] de 1990, e já tínhamos trabalhado juntas em diversas ocasiões depois

[disso]. Quando Talia Rodgers, a Editora Chefe [Senior Editor] da Routledge, se

aproximou de mim alguns anos antes [had first approached me a couple of years

earlier] para recomendar alguém como Consultor de Língua Russa para Benedetti,

Kamotskaia foi a primeira escolha. Ela não só é uma falante nativa da [Língua]

Russa, mas também uma excelente instrutora de atuação [acting coach] e uma atriz

extremamente sensível. Habilidades em ambas, [na] língua e [em] atuação pareciam

necessárias para a tarefa à frente, a qual de fato provou ser assustadora.

Uma das questões que me impressionou [had struck me] em minha leitura

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inicial da nova tradução foi como raramente as palavras “espírito”, “espiritualidade”

ou “alma” eram encontradas, uma vez que as versões originais de A Preparação do

Ator [An Actor Prepares] e A Construção da Personagem [Building a Character]

incluem as palavras mais de 130 vezes. Eu estava ciente da história da censura

soviética da escrita de Stanislávski, que esta era uma questão complicada, e que

mesmo a única referência à energia prana em A Preparação do Ator [An Actor

Prepares] fora removida de sua edição Russa de1938. (Mais sobre isso abaixo).

Fiquei ainda mais curiosa sobre a ausência espiritual na tradução contemporânea de

O Trabalho do Ator [An Actor’s Work]. Eu fugazmente levantei esta questão em um

painel com Kamotskaia na Conferência Barbacã, ocasião na qual ela fez alusão à

troca de “espírito” ou “alma” por “mente” em vários pontos ao longo da tradução.

Fiquei um pouco assombrada por essa descoberta, e quando – em 2010 –

Kamotskaia e eu trabalhamos juntas sobre A Gaivota [The Seagull] na U[niversidade

da] C[alifórnia,] Davis, eu cavei um pouco mais fundo...

Neste artigo, detalho minhas próprias respostas às escolhas de tradução

feitas em O Trabalho do Ator [An Actor’s Work], a publicação que acredito seja um

feito fantástico e uma grande contribuição aos estudos de Stanislávski e à

comunidade da atuação em geral. Agradeço sinceramente [wholeheartedly] a Jean

Benedetti e Talia Rodgers pelo seu compromisso por esta vasta realização. Ela,

contudo, me fez pensar sobre a necessidade e o valor da terminologia para os

atores, e as nuances de encontrar as palavras certas. A primeira metade deste

artigo contrasta algumas das escolhas feitas na tradução de A Preparação do Ator

[An Actor Prepares] com aquelas de O Trabalho do Ator [An Actor’s Work],

levantando questões que eu pessoalmente acho úteis e que também acho

provocativas. Uma vez que abordei alguns deles no meu ensaio de 2008, aqui eu

reavalio a terminologia à luz das decisões e descobertas feitas ao longo dos últimos

três anos. A segunda metade do artigo se concentra em alguns detalhes sobre as

implicações (como eu as vejo) de desviar a presença de “espírito” ou “alma” em O

Trabalho do Ator [An Actor’s Work], dado que o livro é sem dúvida um dos mais

significativos guias de treinamento de ator na história do teatro. Minha própria

provocação é: “Será que Stanislávski foi censurado ainda mais no século XXI pela

troca de ‘espírito’ por ‘mente’?”

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(Por que) precisamos [uma] terminologia?

[Os] músicos a têm. [As] bailarinas a têm. [Os] analistas de computador a

têm. Os neurocientistas estão em um processo contínuo de inventá-la conforme eles

expandem seus conhecimentos sobre os grandes mistérios do cérebro. E o trabalho

que fazemos como atores também é um grande mistério – dissecando nossa própria

humanidade, reestruturando-a na hora de contar [uma] infinidade de histórias, e

partilhando aquela humanidade reestruturada [de modo] novo [newly restructured

humanity] numa arena pública. Não ajuda, portanto, na sondagem do misterioso, ter

alguns pontos de ancoragem para garantir que estamos todos (mais ou menos [kind

of]) falando a mesma coisa? Este foi sem dúvida o ponto de partida para

Stanislávski. Apenas dois anos depois de fundar o Teatro de Arte de Moscou em

1897, ele percebeu que seus atores precisavam de uma “gramática”. Ao longo dos

próximos anos, ele tentou elaborar uma, e então em 1906 na Finlândia ele passou

um tempo intensivo debruçado sobre [pouring over] livros de psicologia e de filosofia

buscando termos apropriados, dos quais “memória afetiva” (emprestado de Ribot)

tornou-se um dos mais proeminentes. Ele não queria um jargão complicado, mas

termos simples e, uma vez encontrados, ele não necessariamente insistia em uma

definição exata desses termos.3 Na verdade, ele mesmo fez contínuas adaptações,

tais como a adoção de obraz (que significa imagem/figura, para se referir ao

personagem ou papel), e a troca de “memória afetiva” para “memória emotiva” (em

resposta à pressão materialista Soviética).

É importante para nós, enquanto atores, diretores e professores lembrar [da]

atitude fluida de Stanislávski [em relação] à terminologia. Afinal de contas, não

somos historiadores no pretérito [past-tense historians], somos contadores de

histórias [no] presente [present-tense storytellers]. Nossa principal preocupação é o

incitamento/a provocação da imaginação [prompting of the imagination]: então, se

“objetivo” ativa [ignites] uma pessoa, mas “tarefa” outra – se “ação” estimula um ator,

mas “intenção” outro – isso é bom, não é? Não importa se Stanislávski disse uma

coisa, Vártangov outra, Michael Chekhov outra, Mamet, Meisner, Strasberg, ou Adler

outra? Não é mais importante encontrar em cada situação aquela a qual irá nos

ajudar a energizar a nós mesmos, dinamizar outros, e fazer mágica para nossos

3 Whyman, R. (2008), O Sistema de Atuação de Stanislávski [The Stanislavsky System of Acting],

Cambridge: Gráfica da Universidade Cambridge, p. 264

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públicos? Quer seja o desejo de Kazan por uma “linguagem comum” ou a

necessidade de Clurman por um “vocabulário de trabalho”, nós só precisamos de

algum tipo de referências de mapeamento. Não precisamos? Uma vez que a

terminologia nos processos de atuação pode legitimamente ser fluida, as questões

que envolvem a tradução tornaram-se um tanto pegajosas [stickier]. Como assinalou

Sharon M. Carnicke, [a] “Tradução linguística sempre envolve simultânea tradução

cultural, que, na maioria das vezes, transforma as ideias em híbridos”. (Carnicke

(2009), 63) Não precisamos olhar mais do que os títulos dos capítulos da tradução

de Elizabeth Reynolds Hapgood de 1936 de A Preparação do Ator [An Actor

Prepares] e da tradução do século XXI de Benedetti de O Trabalho do Ator [An

Actor’s Work] para ver os sinais dessa hibridização:

Hapgood Benedetti

1 O Primeiro Teste Amadorismo

2 Quando a Atuação é uma Arte O Palco como Arte

3 Ação Ação, “Se”. “Circunstâncias Dadas”

4 Imaginação Imaginação

5 Concentração e Atenção Concentração da Atenção

6 Relaxamento dos Músculos Liberação Muscular

7 Unidades e Objetivos Pedaços/Partes [Acontecimentos]

[Bits] e Tarefas

8 Fé e Senso de Verdade Crença e Senso de Verdade

9 Memória Emotiva Memória Emotiva

10 Comunhão Comunicação

11 Adaptação A adaptação do Ator & outros

elementos, qualidades, atitudes e

dons [gifts]

12 Forças Motivadoras Internas [Inner

Motive Forces]

Psicológicos Propulsores Internos

[Inner Psychological Drives]

13 A Linha Ininterrupta/Inquebrantável

[Unbroken Line]

Psicológicos propulsores internos em

ação

14 O Estado Criativo Interior O estado criativo interno do ator

15 O Superobjetivo A Supertarefa, Ação Transversal

[Throughaction]

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16 No Limiar do Subconsciente O subconsciente & o Estado Criativo

do ator

Até mesmo o primeiro capítulo, agora chamado de “Amadorismo”, provoca

certas questões, uma vez que a palavra que aparece no original russo é

“Diletantismo”, que é bem diferente. O próprio Stanislávski começou como um

amador e foi muito simpatizante para com aqueles que eram “amantes” do ofício da

atuação [craft of acting], mesmo onde não era envolvido nenhum pagamento (ou

seja, amador). Para ele, ser um amador e ser um diletante implica [em] perspectivas

radicalmente diferentes.

As palavras e as nuances são importantes, como veremos muito

particularmente com “mente” e “espírito”. Nesta primeira metade do artigo, irei

dedicar (embora brevemente) a atenção a alguns dos termos, os quais eu achei

particularmente impactantes sobre atuação e ensino.

Concentração e atenção

A noção de concentração no treinamento do ator é complexa. A palavra

Russa vnimanie – “atenção” – foi traduzida por Hapgood como “concentração da

atenção”. Como eu sei das várias discussões nas quais eu estive envolvida durante

o processo da nova tradução, elas levantaram algumas questões com Benedetti e

Kamotskaia. Uma vez que (como eu entendi na época) seu viés [de Benedetti e

Kamotskaia] era no sentido de “Concentração” como o título do capítulo, o dela [de

Hapgood] era no sentido de “Atenção”: um acordo de compromisso envolvendo

ambas as palavras foi por fim usado. Alguns profissionais [practitioners] preferem

“concentração” (por exemplo, [o] “círculo de concentração” de Joseph Chaikin).

Outros são muito flexíveis em sua terminologia: Lee Strasberg na verdade escreve

que, [a] “concentração é a chave para o que tinha sido vagamente pensado como

‘imaginação’.” 4 Outros dispensam “concentração” por completo: David Mamet afirma

que “atuação não tem nada a ver com concentração”, então “Escolha algo

legitimamente interessante para fazer e [a] concentração não é um problema.

4 Strasberg, L. (1989), Um sonho de Paixão: O desenvolvimento do Método [A Dream of Passion: The

Development of the Method], Nova York: Methuen, p. 131

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Escolha algo menos do que interessante e [a] concentração é impossível.”5

De fato, o ponto [de vista] de Mamet é muito prático, e liga-se com ideias de

cem anos antes. Em seu livro Os Princípios da Psicologia [The Principles of

Psychology] (1890), William James (com cujo trabalho Stanislávski estava

familiarizado) escreve:

Minha vivência [experience] é o que eu concordo em presenciar [attend to]... Todo mundo sabe o que é atenção. É a tomada de posse pela mente, de forma clara e viva, de um dentre o que parecem vários objetos simultaneamente possíveis ou trens de pensamento... Isso implica o abandono de algumas coisas, a fim de lidar eficazmente com as outras.6

Dado que o capítulo sobre “Concentração e Atenção” aparece na primeira

metade de O Trabalho do Ator, chamada “Vivência” (veja abaixo), a definição de

James parece particularmente útil. Adotando ideias que ressoam claramente com

James, Stanislávski (como traduzido por Benedetti) afirma, “o ator precisa um objeto

no qual focar [to focus] sua atenção”. (Stanislávski (2008), 91) Esta sentença fornece

em minha opinião um termo altamente simples e acessível [user-friendly] – “foco”

[focus] – que eu me pego escrevendo/cunhando [coining] cada vez mais, ao invés de

“concentração” ou “atenção”. Minha decisão de ser flexível com esta parte da

terminologia se conecta [interlocks] com o meu interesse na convincente

reinterpretação de Declan Donnellan de “concentração”: o “alvo” [‘target’]. O alvo é

“um tipo de objeto, direto ou indireto, uma coisa específica vista ou sentida, e, até

certo grau, necessária... o alvo é a única fonte de toda a energia prática para o

ator.”7 Sua fascinação com o alvo leva a atitude de Donnellan em direção à

“concentração”, a qual essencialmente concorda com Mamet:

[a] concentração destrói [a] atenção. Você não pode prestar atenção em algo e se concentrar nele, ao mesmo tempo... [A] atenção é sobre o alvo; [a] concentração é sobre mim. (Donnellan (2005), 28)

Uma vez que um alvo é algo sobre o que se focar a fim de atingi-lo, acho que

5 Mamet, D. (1998), Verdadeiro e Falso: Heresia e Senso Comum para Atuação [True and False:

Heresy and Common Sense for the Acting], Nova York: Faber & Faber, pp. 93, 95 6 Citado em Kandell, E. R. (2006), Em Busca da Memória: O Surgimento da Nova Ciência da Mente

[In Search of Memory: The Emergence of the New Science of the Mind]. New York: W.W. Norton & Companhia, p. 311, ênfase minha. 7 Donnellan, D. (2005), O ator e o Alvo [The Actor and the Target], Londres: Nick Hern Livros, pp. 18,

21

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minha terminologia no estúdio facilmente desliza entre “atenção a um parceiro ou

objeto” e “foco no alvo”.

Pedaço/Parte/Porção/Trecho [Acontecimentos] [Bits] e Tarefas

Voltando nossa atenção – ou foco – às “tarefas” ao invés dos alvos [targets], a

terminologia na nova tradução consolida o que foi crescente [creeping] na prática da

atuação por alguns anos: a troca de “unidades e objetivos” por

“pedaços/partes/porções/trechos [acontecimentos] [bits] e tarefas”. A discussão de

“pedaço/parte/porção/trecho [acontecimento]” [‘bit’] (kusok), em oposição a “unidade”

na verdade remonta à [década de] 1930 na América [do Norte], quando o termo

“unidade” foi introduzido pela primeira vez. Agora eu uso consistentemente

“partículas de ação” [‘bits of action’] na análise do texto [script], e referem-se às

“unidades” somente para aglutinar o que os pares já devem saber agora com o

termo adotado (ou seja, “pedaços/partes/porções/trechos [acontecimentos]” [‘bits’]).

“Tarefa” é um pouco diferente, e eu ainda estou tentando determinar qual

termo ativa [ignites] minha própria imaginação mais efetivamente. O termo original

de Stanislávski – zadacha – alude a um problema aritmético infantil [a child’s

arithmetical problem] que requer uma solução: essencialmente, não há nenhuma

conotação psicológica.

Dito isso, os conflitos inerentes entre os personagens numa cena dramática –

o que, a menos que estejamos ensaiando por treino [Proof], estão suscetíveis de

serem um pouco mais do que texturizados problemas matemáticos –

inevitavelmente adicionam um componente psicológico.

Provavelmente, uma das ferramentas mais multi-nomeadas no conjunto [kit],

a palavra “tarefas” é frequentemente intercambiável pelos termos “querer”8,

“desejos”, “intenções”, “metas” [‘goals’] e “necessidades”. Por um longo tempo, eu fui

uma defensora de “querer”: esta fora a palavra sobre a qual eu tinha perdido meus

dentes de leite da atuação na universidade, na [década] de 1980. No entanto, nos

últimos anos, eu estive intrigada por “desejos” e, certamente, este termo ressoa para

Kamotskaia:

8 “’Eu quero’ foi um dispositivo do sistema por um longo tempo, e a tarefa e o acontecimento [bit],

eram os componentes que o definiam. O desejo era o condutor do sentimento”. Remez citado em Whyman (2008), p. 101

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Eu uso “desejo” porque eu penso que é uma palavra maior, e eu penso que cada pessoa vai encontrar “necessidade” ou “tarefa” ou “objetivo” ou “querer” ou “intenção” nesta única palavra, “desejo” – porque para algumas pessoas ela será muito materialista, para algumas pessoas, ela será muito espiritual.9

Estou compelida pelo argumento de Kamotskaia, uma vez que também acho que

“necessidade” pode ser útil para elevar a temperatura numa cena, particularmente

com os estudantes recém começando a aprender sobre os objetivos. Vártangov foi

um defensor de “necessidade”, [e] o seu uso [do termo] tinha duas etapas.

Primeiro de tudo, o ator reconhece a necessidade das palavras e ações do

personagem definidas numa cena e então descreve essas necessidades na terceira

pessoa. Na segunda etapa, o ator encontra sua/seu próprio senso de necessidade

das palavras e ações dadas e sente-as na primeira pessoa. Como disse Vártangov:

“Eu quero que eles sintam que o que seus personagens precisam eles também

precisam inerentemente.”10 Este senso de posse da necessidade pode novamente

ampliar [raise] utilmente os apoios/suportes/estacas [the stakes] para os estudantes

quando eles estiverem começando a aprender sobre o que incorporar da situação e

escolhas do personagem.

A justaposição entre a noção de “quereres” e “necessidades”, como exposto

por vários profissionais [practitioners], lança mais luz sobre como escolher nossa

terminologia na sala de ensaio. Aqui estão três percepções de profissionais

[practitioners]: Em termos de refinamento das motivações do personagem, Robert

Benedetti assinala que:

podemos não querer sempre o que precisamos: você pode querer se tornar um grande dançarino, mas você realmente não quer passar quatro horas por dia se exercitando na barra; você o faz porque você precisa fazer.11

Além disso, “nós geralmente sabemos o que queremos, mas podemos estar

sem consciência de nossas necessidades.” (Benedetti (1997), 86)

9 Entrevista com Katya Kamotskaia, Davis, Califórnia, Março de 2010.

10 Vártangov, E. (1982) (Org. Vendrovskaia, L.D. & Kaptereva, G.P., trad. Bradbury, D.), Eugueny

Vártangov [Evgeny Vakhtangov] , Moscou, p. 46 11

Benedetti, R. (1997), O Ator em [seu] Trabalho [The Actor at Work], 7ª edição, E. U: Allyn & Bacon, p. 86

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Mudando a perspectiva dos quereres interiores do personagem para os

modos pelos quais os objetos externos ou “alvos” afetam nossos sentimentos,

Declan Donnellan afirma:

[A] “Necessidade” deixa claro que o alvo tem algo sem o qual não podemos obter [has something that we cannot do without], ao passo que [o] ‘querer’ pode implicar que podemos começar e parar de querer com um esforço concentrado da vontade. [O] “Querer” eu posso abrir e fechar como uma torneira, [a] “necessidade” me liga e desliga à sua vontade [turns me on and off at its will]. [A] “Necessidade” nos lembra mais utilmente que não controlamos nossos sentimentos. (Donnellan (2005), 62)

Reforçando [Enhancing] uma interação profunda e focada com nossos

parceiros no palco, Michael Shurtleff provoca:

A maioria dos atores não precisam o bastante de seus parceiros. Solicite mais [deles] [Need the most]. Mais amor. Mais resposta, mais crença, mais tudo o que você quiser.12

À medida que alternamos [juggle] essas várias definições de quereres,

necessidades e desejos – tanto em relação às motivações do personagem e em

relação à interação dos atores – uma coisa se torna clara. Uma vez que algumas

dessas outras palavras podem inclinar-se para sentimentos e motivações

psicológicas, a palavra “tarefa” implica ação direta: “O que eu tenho que fazer para

resolver este conflito com este parceiro [partner] e conseguir o que quero desta

situação?” Isso também pode ser útil com atores que tendem [veer] muito

profundamente ao âmbito [realm] psicológico e emocional: pode reverter a tendência

introspectiva e reorientá-lo ao parceiro externo [refocus it on the external partner].

Todas as palavras, no entanto, têm valor e eu prontamente as uso todas nos

ensaios ou salas de aula, dependendo com quem e com que material que eu esteja

trabalhando. Mais uma vez, estou fluindo com minha terminologia em resposta aos

atores envolvidos e aos personagens sendo corporificados [embodied].

12

Shurtleff , M. (1978), Teste [de Elenco]: Tudo que o Ator Precisa Saber para Conseguir o Papel [Audition: Everything an Actor Needs to Know to Get the Part], Nova York: Walker & Cia, p. 179

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Supertarefa

Inevitavelmente, se objetivo se torna “tarefa”, superobjetivo se torna

“supertarefa”. Honestamente, esta tem sido uma das ferramentas de Stanislávski

com a qual eu não tenho exatamente lutado [struggled], mas que certamente não

tenho em primeiro plano (cf. A Completa Caixa de Ferramentas de Stanislávski [The

Complete Stanislavsky Toolkit], pp.219-226).13 Minha preocupação é que ela possa

ser potencialmente (mal) utilizada para facilitar [smooth out] um personagem, uma

vez que o ator se esforça para forjar cada cena, cada ação, cada palavra em um

todo unificado, consistente. Prefiro deixar o público reconstituir conjuntamente o

personagem [to piece the character togheter], apresentando-lhes aos vários

comportamentos em resposta a diferentes situações (como, aliás, eu descobri

interpretando [playing] Masha em A Gaivota: cf Além de Stanislávski [Beyond

Stanislavsky], pp.230-9).14 Além disso – como o próprio Stanislávski ressaltou –

muitas vezes você não sabe a supertarefa de um texto [script] ou [de] um

personagem até que tenha performado a peça várias vezes diante de um público.

Portanto, nem sempre é útil para estimular/incentivar [encourage] os atores – ou a si

mesmo – identificar a supertarefa na sala de ensaios.

Tudo o que disse, meus pensamentos sobre este termo estão começando a

mudar. Primeiro de tudo, existem ideias úteis para serem adquiridas a partir da

inspiração original de Stanislávski para esta ferramenta: o ‘prego’ de Gogol. O prego

é o tema constante dos pensamentos de uma pessoa, sua preocupação principal,

que fica como um prego em sua cabeça.15 A sensação de algo batendo dentro da

cabeça de alguém, uma obsessão contínua, uma preocupação persistente, eu acho

muito imaginativamente suculenta. Eu já posso começar a me sentir outra vez

envolvida [re-engaging] com a supertarefa.

Em segundo lugar, estou começando a ver a utilidade de aliar a supertarefa

do personagem com a sua autoimagem [self-image] ou visão de mundo [world view].

Esta é uma ideia articulada por Levin e Levin, relativa aos eventos e conflitos que

13

Merlin, B. (2007), A Completa Caixa de Ferramentas de Stanislávski [The Complete Stanislavsky Toolkit], Londres: Livros Nick Hern. 14

Merlin, B. (2001), Além de Stanislávski: A Abordagem Psicofísica do Treinamento do Ator [Beyond Stanislavsky: The Psycho-Physical Approach to Actor Training], Londres: Livros Nick Hern. 15

Citado em Whyman (2008) p. 100 das “Notas sobre como interpretar O Inspetor Geral” [‘Notes on how to act The Inspector General’] (1846) publicadas na Coletânea das Obras Completas [Polnoe Sobranie Sochinenii], vol. 4 (Leningrado, AN SSR, 1951), pp. 112-3

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compõem um drama:

Em cada conflito distinto o personagem tenta influenciar o ponto de vista de seu oponente, a fim de ser aceito do jeito que ele deseja. Ao mesmo tempo, cada um desses conflitos contribui para a autoimagem do personagem, a qual ele está construindo ao longo de toda a peça. Claramente, esta autoimagem é o que Stanislávski chamou de “superobjetivo” [ou “supertarefa”].16

O que eu gosto sobre esta interpretação da supertarefa é que ela trabalha

simultaneamente em duas direções diferentes: introspectivamente em direção à

noção de si [mesmo] do ator [towards the actor’s sense of self], e externamente em

direção aos seus parceiros [partners] sobre o palco. Digamos que a minha

autoimagem é que eu quero ser visto como um grande ator. Eu tenho esta sensação

dentro do meu corpo e eu a pinto na minha imaginação: ou seja, eu crio o estado

interior (ou sentimento) de mim mesmo como um grande ator. Em minhas interações

com os outros, quero garantir que eles também tenham um senso de minha

grandeza como ator – como eu me visto, falo, me comporto, os assuntos [topics] de

nossas conversas, etc. Portanto, minha autoimagem se torna altamente ativa. Ela

implica imprimir sobre os outros o modo como eu vejo o mundo – minha visão do

mundo – para que eles vejam o mundo através dos meus olhos. Neste caso, eles

veem o mundo como (Eu quero que eles acreditem) um grande ator o vê. Se a

supertarefa é vista desse jeito, como promovida por Levin e Levin, não é uma

questão (como, talvez um tanto ingenuamente, eu a via anteriormente) de o ator

diagnosticar todas as cenas e as escolhas do personagem, e desse diagnóstico

formar um ser consistente. (Afinal de contas, como diz a frase [one-sentence

chapter] de Shurtleff no capítulo Coerência [Consistency] em seu incisivo livro Teste

[de Elenco] [Audition]: “[A] coerência [Consistency] é a morte da boa atuação.”)

(Shurtleff (1979), 104) Em vez disso, esta interpretação da supertarefa se torna

muito cordial, fundamentada, não analítica.: “Como eu quero que o mundo me veja,

é que eu tenho que fazer para infectar as pessoas com a minha visão de mundo?”

Esse processo é muito dinâmico, como em todas as situações, nossa visão de

mundo vai sendo desafiada, ameaçada, enfraquecida [undermined], assim como

16

Levin & Levin (2002), O Stanislávski Secreto [The Stanislavsky Secret], Colorado Springs: Meriwether Editores, pp. 64-5, minha ênfase.

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aprovada, celebrada, imitada. Assim, a ação da peça torna-se a soma de todas

essas escolhas.

Ofereço esta investigação [examination] de “supertarefa” para continuar a

ilustração de quão fluida a terminologia pode ser. Vinte e cinco anos em minha

carreira de atriz profissional [professional acting career], 13 anos lecionando

[teaching], e ainda estou tentando imaginar [figuring out] como os termos e

ferramentas de Stanislávski podem funcionar [work] para mim e para os meus

alunos. Sim, de fato – mesmo enquanto escrevo isso, estou começando a ficar

animada [excited] pelo dinamismo da “supertarefa” de um jeito que eu não tinha

experimentado antes. A gramática de Stanislávski pode ser verdadeiramente

envolvente, tornando-se parte da exploração contínua de um praticante de seu

ofício.

Lógica e sequência

E isso segue no próximo termo para o qual Benedetti oferece uma nova

tradução: a velha “lógica e coerência” é agora substituída por “lógica e sequência”.

Esta adaptação também me atrai/envolve [engages me] enormemente. Uma vez que

entendi e de fato frequentemente usei “coerência”, senti que as conotações deste

termo – como supertarefa – poderiam potencialmente resolver/corrigir [iron out]

todas as questões, peculiaridades e idiossincrasias de um personagem que fazem

dele humano e imprevisível.

Stanislávski originalmente cunhou o termo a partir de A Lógica do

Sentimentos [La Logique des Sentiments] (1905), de Ribot, no qual Ribot valida a

lógica dos sentimentos bem como a lógica da razão.17 “Sequência” ao invés de

“coerência” também incorpora as teorias do reflexo de Pavlov, na qual “o

comportamento é visto como uma série de respostas reflexas a estímulos, como

uma cadeia psicofísica na qual um reflexo desdobra outro e então outro.”18

[A] Sequência é, portanto, importante para a construção de nosso senso de

crença naquilo que estamos fazendo no palco. Como Stanislávski artística e

humoristicamente ilustrou em vários pontos em O Trabalho do Ator [An Actor’s

17

Citado em Whyman (2008), p. 93, a partir de Ribot, T. (1905), A Lógica dos Sentimentos. [La Logique des Sentiments], Paris: Felix Alcon, pp. viii-ix 18

Blair, R. (2008), O Ator, Imagem e Ação: Atuação e Neurociência Cognitiva [The Actor, Image and Action: Acting and Cognitive Neuroscience], Londres: Routledge, p. 36

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Work], achamos difícil coagir nossa imaginação em reinos narrativos que

simplesmente não fazem sentido. Eu tenho uma “meditação guiada” em mp3, a qual

me leva até uma colina, junto ao mar, a um edifício com uma porta grande e um

terraço, e através de várias salas e santuários. Toda vez que eu ouço ao mp3,

qualquer facilidade meditativa é fraturada pelo fato de que parece haver etapas

faltando entre as diferentes peças da geografia e [da] arquitetura. Eu não posso

acreditar que eu consegui ir de um lugar para outro, porque o guia nem o descreveu

nem me deu tempo suficiente para preencher as lacunas imaginativas. Não há

nenhuma sequência lógica na qual eu possa acreditar, e assim todo o processo se

torna absurdamente estressante! Minha mente racional gasta todo o tempo da

meditação desafiando meus poderes de imaginação com: “Então, como você

chegou lá? Voando? Atravessando as paredes? Teletransportada [teleport]?”

A insistência intuitiva de Stanislávski sobre [a] “lógica e sequência” é também

endossada cientificamente, como utilmente ilustra a explicação de Damásio do

processo encadeado do movimento em nossos corpos a partir da emoção ao

sentimento consciente: No começo – quase inconscientemente – nosso organismo

percebe um objeto interno ou externo (ou seja, alguns relances [flashes] em nossa

mente [head] ou vemos uma pessoa real entrando na sala). Esta percepção então

produz uma emoção automatizada em vários lugares em nossos cérebros. Isto

então leva a um sentimento de que a emoção, a qual finalmente leva o nosso

organismo conscientemente a conhecer [knowing] o sentimento. Em outras palavras,

entendemos [we realise] que estamos nos sentindo felizes, tristes, confusos,

animados [excited], como resultado final de uma reação em cadeia que começou

com nossa percepção da memória interna ou da pessoa externa.19 Do objeto à

atividade neural à sensação de conhecer. Nos termos da neurociência, nossa

experiência de vida é a somatória de um processo sequencial de atividade

bioquímica: da percepção inconsciente para a experiência consciente. Novamente a

tradução de Benedetti da terminologia de Stanislávski é empolgante [exciting] à luz

da evolução do nosso entendimento científico.

A razão pela qual “coerência” não é uma tradução tão boa é que o nosso

19

Damásio (1999), O Sentimento Daquilo que Acontece: Corpo e Emoção no Fazer da Consciência [The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the Making of Consciousness], Nova York: Harcourt, p. 291. [No Brasil, publicado no ano 2000 pela Companhia das Letras, com tradução de Laura Teixeira Motta com o título “O Mistério da Consciência: Do corpo e das Emoções ao Conhecimento de Si”. N.T.]

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comportamento não é necessariamente nem coerente ou consistente ao olhar

exterior [to the outside eye]. Se “A” diz: “Meu Deus, você está linda hoje”, eu poderia

ficar encantada com seu elogio, e ainda, se “B” me diz exatamente a mesma coisa,

eu poderia ficar irritada com sua impertinência. Enquanto que o comportamento

pode parecer inconsistente ou incoerente para mim, ele é inevitavelmente lógico em

termos do fluxo de informações entre meus neurônios, ou entre eu e meu ambiente,

ou entre as minhas emoções e meus sentimentos, entre os processos inconscientes

e a experiência consciente. Uma vez que nosso corpo-mente [bodybrains] foi

analisado como lógico e sequencial, faz todo o sentido para o nosso vocabulário de

atuação espelhar esse aumento do entendimento.

Vivência

E de uma forma agradavelmente lógica e sequencial, isto leva-nos a um

termo de Stanislávski o qual tem atraído [has garnered] um interesse crescente nos

últimos anos: perezivanie ou ‘vivência’ [‘experiencing’]. Eu a menciono agora, porque

a nova tradução de Benedetti esclarece o fato de que o Primeiro Ano do programa

de Tortsov intitula-se ‘Vivência’, um fato que não é necessariamente assim claro em

A Preparação do Ator [An Actor Prepares]. O Sistema Stanislávski de Atuação [The

Stanislavsky System of Acting] (2008), de Rose Whyman (que usa extensivamente

suas próprias traduções dos três manuais de atuação de Stanislávski – O Trabalho

do Ator Sobre Si Mesmo: [O Trabalho Sobre Si Mesmo] no Processo Criador das

Vivências [The Actor’s Work on Him/Herself in the Creative Process of Experiencing],

O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo: [O Trabalho Sobre Si Mesmo] no Processo

Criador da Encarnação [The Actor’s Work on Him/Herself in the Creative Process of

Incarnation], e O Trabalho do Ator Sobre o Papel [An Actor’s Work on a Role]) é

extremamente útil nesta discussão, começando com sua citação do primeiro desses

manuais: vivência é a “noção de si sobre o palco como na vida” [‘sense of self on

stage as in life’].20 Como Benedetti aponta em sua introdução a O Trabalho do Ator

[An Actor’s Work], uma das dificuldades reside no fato de que a palavra Russa

perezivanie tem sido comumente (mal) traduzida como “identificação emocional”, o

20

Citado em Whyman (2008), p. 254 a partir de sua própria tradução de O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo: [O Trabalho Sobre Si Mesmo] no Processo Criador das Vivências [The Actor’s Work on Him/Herself in the Creative Process of Experiencing], pp. 231-2

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que é bem diferente de “noção de si sobre o palco como na vida.”21

Stanislávski realmente cunhou a ideia a partir do ensaio de Tolstoi, “O que é

Arte?”:

Arte é aquela atividade humana que consiste em um homem conscientemente transmitir aos outros, por certos sinais externos, os sentimentos que ele tem vivenciado, e nos outros sendo infectados por esses sentimentos e também vivenciando-os.22

Claramente influenciado pela abordagem espiritual própria de Tolstoi para [a]

arte e [a] vida, Stanislávski diz haver descrito o ato de “vivenciar [experiencing] o

papel” como “o despertar artístico das... sensações espirituais e corporais e fazendo-

o com a ajuda da repetição.”23 Três coisas aqui: (i) [a] vivência é artística: ou seja, é

mais do que só ser você mesmo no palco; (ii) ela envolve [o] corpo e [o] espírito:

veja discussão abaixo; e (iii) ela requer repetição. Este último ponto é

particularmente importante. Ao longo de A Preparação do Ator [An Actor Prepares],

há referências ao Treinamento e Prática [de Exercícios] [Training and Drill], sem

qualquer explicação sobre o que seja isso. Na tradução de Benedetti de O Trabalho

do Ator [An Actor’s Work], no entanto, isso é absolutamente esclarecido: num

Apêndice intitulado ‘Treinamento e Prática [de Exercícios]’ [‘Training and Drill’]

descobrimos que muitos dos exercícios criados em sala de aula pelo diretor Tortsov

eram, então, repetidos muitas vezes com o seu assistente Rachmanov,

frequentemente sobre o palco sem a intimidade da “quarta parede” da sala de aula.

Deste modo a “Vivência” era treinada.

A ideia de que [a] “vivência” pode ser treinada é importante lembrar, uma vez

que, muito frequentemente, um mistério paira em torno do “tornar-se o papel”

[‘becoming the role’] ou vivenciar um papel [experiencing a part]. Ainda para

Stanislávski, isso envolve habilidades aprimoradas [honed skills], das quais o ponto

de partida é a liberação muscular. Stanislávski está convencido de que sem [a]

liberdade do corpo, [a] “vivência” não pode ser... bem vivenciada. O fato de que o

ioga tornou-se um de seus principais meios de acessar a liberação muscular

21

Introdução de Benedetti a Stanislávski (2008), p. xxi 22

Citado em Whyman (2008), p. 49 a partir de Tolstoy, L. (trad. Pevear, R. & Volokhonsky, L.) (1995), O que é Arte? [What is Art?], Londres: Penguin [Putnam], pp. 39-40 (ênfase no Original) 23

Citado em Whyman (2008), p.50 a partir de Radishcheva, O. A. (1999), A Respeito da História do Teatro [Istoriia Teatral’nych Otnoshenii] (1909-17), Moscou: Artista Encenador [Artist Rezhisser Teatre], p. 14

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também é importante à luz do argumento abaixo relativo [regarding] [ao] “espírito”.

Pessoalmente, estou na facção de Sharon Carnicke [Sharon Carnicke’s

camp], acreditando que “vivenciar” um papel tem tanto mais a ver com [is as much

about] implicitamente reconhecer a presença do público ou da câmera, do que com

[as it is about] qualquer identificação emocional com o papel. Se acreditarmos na

declaração de Benedetti de que “identificação emocional” é uma má tradução de

“vivência” [experiencing] e se seguirmos a contínua insistência de Stanislávski sobre

e [na] exploração da “dupla consciência” [dual consciousness], então é claro que

“uma noção de si sobre o palco como na vida” tem tanto mais a ver com a noção de

alguém do ambiente [is as much about one’s sense of environment] do que [as

about] a absorção nas tarefas do personagem. Assim como na vida podemos estar

envolvidos numa acalorada discussão em um restaurante, enquanto continuamos

conscientes do garçom ou dos convidados na mesa vizinha, assim também sobre o

palco. Nós podemos não olhar para o vizinho ou o garçom, mas nosso “vivenciar” da

acalorada discussão carrega consigo a marca da nossa consciência periférica [da

presença] deles.

Na verdade, uma total falta de consciência estaria à beira da sociopatia:

precisamos de um “noção de si na vida como sobre o palco”.

Curiosamente, o próprio Stanislávski rebelou-se contra a forma como [a]

“vivência” [‘experiencing’] estava sendo interpretada enquanto ele ainda estava vivo

[during his lifetime]:

Na escola de Khaliutina em Mchedlov’s os estudantes vivenciam por

vivenciar [the students experience for the sake of experiencing]. Eles se banham em vivência – há pausas de dois minutos, e depois da pausa no silêncio, a pausa abafada é indistintamente excluída [there are pauses for two minutes, and then a quietly and indistinctly thrown-out muffled pause]. Isso é terrível.

Consequentemente – a partir deste ano – 1912 – não vou ensinar a vivência, mas ação, ou seja, cumprir uma tarefa.24

Novas e contínuas investigações [sobre a] [into] “vivência” por profissionais

[practitioners] e escritores, incluindo Sharon Carnicke e John Gillett são importantes,

não só para manter a discussão da terminologia atualizada mas também para

garantir a saúde mental dos atores. Pode muito bem ser que o aumento de nosso

24

Citado em Whyman (2008), p. 58 a partir de Vinogradskaia, Crônicas [Letopis], vol. 2, p. 318

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entendimento neurocientífico da memória, [da] imaginação e [da] experiência de

[tempo] presente/do aqui-agora [present-tense experience] irá ajudar com uma

redefinição e implementação deste termo.

Comunicação

Inerente à natureza holística da “vivência” está a escuta dinâmica. E para mim

[a] escuta dinâmica está inextricavelmente ligada com “comunhão”. Embora eu

reconheça que haja conotações místicas [mystical overtones] que potencialmente

turvam o termo “Comunhão” (A Preparação do Ator [An Actor Prepares]), não estou

totalmente satisfeita com a alternativa “Comunicação” (O Trabalho do Ator [An

Actor’s Work]). Eu entendo que seja uma tradução legitimada da [palavra] Russa

obshchenie, embora as questões culturais novamente entram em jogo, uma vez que

a palavra Russa também sugere “comunhão”, “partilha”, “interação”, “relação”, “estar

em contato”. (Carnicke (2009), 215) No nosso mundo [de] alta tecnologia [hi-tech],

[da] alta velocidade [hi-speed] das comunicações globais e [dos] Estudos da

Comunicação, há indiscutivelmente algo muito científico em “comunicação” para

acomodar as nuances de ambos, o diálogo verbal e [o] não verbal, aos quais

Stanislávski estava claramente se referindo.

Voltemos por um momento à ideia de supertarefa enquanto visão de mundo e

a natureza do conflito, o qual é, afinal, o alicerce sobre o qual todo o drama está

embasado. O conflito surge quando outras pessoas não veem o mundo como nós:

se o fizessem, não haveria conflito, logo nenhum drama [ergo no drama]. Portanto,

investimos energia e ações para apresentar a elas o mundo de modo que possam

vir a partilhar nossa visão de mundo; se isso não funcionar, tentamos diminuir a

relevância de sua própria visão de mundo enquanto que elas se agarram a ela

tenazmente. Através das complexidades [intricacies] de nosso relacionamento com

elas, Stanislávski nos incita a: “Decida-se firmemente fazer seu parceiro pensar e

sentir exatamente como você, faça-o ver que você está vendo através de seus

olhos, ouvindo através de seus ouvidos.”25 Gostaria de sugerir que isto requer nossa

profunda e complexa comunhão com os nossos parceiros, para os quais nossas

ações são uma expressão de nossa visão de mundo. Eu entendo que Benedetti

25

Citado em Levin & Levin (2002), p. 1, a partir de Stanislávski, vol. 4, p. 342

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queria uma tradução contemporânea, mas de certo modo “comunicação” provoca

imagens de iPhones, satélites, velozes conexões de internet, os quais por toda sua

velocidade – paradoxalmente – diminuem a escuta dinâmica. Será que a palavra

“comunicação” reúne totalmente em nossas imaginações os aspectos [de]

entrelaçamento [the interweaving aspects] necessários para a interação dinâmica?

Psicológicos propulsores internos [Inner psychological drives]

Entre esses aspectos [de] entrelaçamento estão nossos pensamentos,

sentimentos e ações. Aqui vamos abordar o que (há alguns anos) tem sido uma de

minhas ferramentas favoritas no “sistema” de Stanislávski, mas à qual com o meu

crescente, apesar de hesitante, entendimento da neurociência contemporânea estou

começando a achar um pouco complicada. Nomeadas em A Preparação do Ator [An

Actor Prepares], “forças motivadoras internas” [‘inner motive forces’], este é outro

termo que indiscutivelmente veio do interesse de Stanislávski na filosofia de

Tolstoi.26

Na cópia não corrigida de O Trabalho do Ator [An Actor’s Work], eles são

chamados de “propulsores psicológicos internos” [‘psychological inner drives’], [com]

os adjetivos trocados de lugar para “psicológicos propulsores internos” [‘inner

psychological drives’] na publicação de 2008. Estes três propulsores [drives] são

mente [mind] (que fornece nossa análise e entendimento), nossos sentimentos

[feelings] (que promovem uma relação apaixonada e prazerosa [zestful] com os

personagens que criamos) e nossa vontade [will] (que controla nossos impulsos

criativos).27 [A] análise de Whyman do (que ela traduz como) os “três motivadores da

vida psíquica” é novamente muito útil, ilustrando que Stanislávski colocou-os em

algum lugar entre os “elementos internos da alma” e a “encarnação externa do

26

Citado em Lloyd, B. (2006), ‘Stanislávski, Espiritualidade, e o problema do Ator Ferido’ [‘Stanislavsky, Spirituality, and the Problem of the Wounded Actor’], Trimestral Novo Teatro, [Nº] 22: 01 de Fevereiro de 2006, p. 73: ‘Toda a atividade humana é acionada [actuated] por três causas motivadoras [motive causes]: sentimento, razão e sugestão... Sob condições normais de vida, todas as três forças motivadoras [motive forces] participam em influenciar o comportamento de uma pessoa.’ O que é Religião, De que Consiste sua Essência? (1902), a partir de Uma Confissão e Outros Escritos Religiosos [A Confession and Other Religious Writings], trad. Kentish, J. (1987), Nova York: Penguin Putnam, p. 92 27

Carnicke, S. M. in Hodge, A. (org.) (2010), Treinamento do Ator [Actor Training], Abingdon: Routledge, p. 22

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papel”.28 Como afirmo no ensaio online [da] Routledge,29 eu gosto da mudança na

terminologia e prontamente adotei o novo termo “psicológicos propulsores internos”

em minha própria prática. Embora eles sejam a interação entre todos os três

propulsores [drives] que são indiscutivelmente os mais importantes, eu os desloquei

resumidamente para cá por uma questão de discussão.

Mente ou “central do pensamento” [‘thought center’]

Minha própria formação Russa no início [da década de] 1990 se refere a esta

central como “pensamento” [‘thought’] (my'sl) ao invés de “mente” (um), e em minhas

discussões escritas e práticas [acerca] dos psicológicos propulsores internos [inner

psychological drives], “pensamento” [‘thought’] é a palavra que eu sempre usei.

(Observe o uso de “mente” neste contexto, conforme eu analiso isso mais abaixo, na

discussão de “espírito”.) Há dois aspectos muito específicos para “mente” ou “central

do pensamento”: razão [reason] e imaginação. Estes dois aspectos interagem muito

intricadamente, conduzindo prontamente aos “sentimentos” e [à] “vontade” (ou

ações) – os outros dois “psicológicos propulsores internos” [‘inner psychological

drives’]. Por isso eu ofereço um retrato [snapshot] dos aspectos neurocientíficos da

razão e da imaginação para construir uma imagem mais clara da interação entre

todos os três psicológicos propulsores internos [inner psychological drives].

Uma vez que uma das ferramentas mais úteis no kit de ferramentas [toolkit]

de Stanislávski são [os] “momentos de decisão”, acho a definição de Damásio de

razão [reason] particularmente útil para o treinamento do ator porque, para ele, o

propósito do raciocínio é decidir. Em um momento de decisão, você seleciona uma

opção responsiva, ou seja, você escolhe uma ação não verbal, uma palavra, uma

frase, ou alguma combinação destas, de entre as muitas possibilidades de escolha

disponíveis para você em qualquer dado momento numa determinada situação.30

Idealmente, a opção responsiva que você escolher será a única que conduz

28

Whyman (2008), p. 92, a partir do diagrama de Stanislávski “A Planta da Vivência” [‘The Plan of Experiencing’], O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo no Processo Criador da Encarnação [An Actor’s Work on Him/Herself in the Creative Process of Incarnation], (trad. Whyman, R.) pp. 308-11 29

http://cw.routledge.com/textbooks/stanislavski/downloads/bella-article.pdf 30

Damásio, A. (1994), O Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano [Descartes’ Error: Emotion, Reason and the Human Brain], Nova York: Penguin [Putnam], p. 165 [Pg. 70 na tradução para a Língua Portuguesa de Dora Vicente e Georgina Segurado, disponível em https://docs.google.com/file/d/0B6e_-vNLSHPlMDkwM2M0MTktYzlkNS00MTQ2LTg3YzUtNWQ1YzFlMzZjMmU3/edit?hl=pt_PT&pli=1.

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ao desenlace/resultado [outcome] mais favorável para sua sobrevivência e bem-

estar. A fim de selecionar esta opção responsiva, você tem que aplicar seu processo

de raciocínio, e:

que envolve considerar [holding] um grande número de fatos em sua mente, registrando os resultados das ações hipotéticas e comparando-os com os objetivos intermediários e finais, todos os quais requerem um método, algum tipo de plano de jogo entre vários que você ensaiou em incontáveis ocasiões no passado31. (Damásio (1994), 165)

O cérebro está aqui completamente envolvido em algum prodígio [miracle],

tanto quanto no momento do raciocínio, ele considera todos esses fatos, e pesa os

custos e os benefícios das ações hipotéticas, e alinha-as com o seu plano de jogo

global. Eu diria que ter até mesmo alguma pequena consciência da atividade

cerebral ajuda o ator a entender a importância dos “momentos de decisão” sobre o

palco.

Conquanto [while] eu nunca defenderia uma performance interminável cheia

de pausas [an interminably pausy performance], a diferença fundamental entre uma

performance convincente [compelling performance] e uma prosaica [pedestrian] é

frequentemente o valor dado pelos atores aos “momentos de decisão” de seus

personagens. Demasiada valoração conduz a pensamentos pesados, fraturados

[weighty, fractured thoughts]. Muito pouca valoração conduz [a] ações formais, não

críveis no palco.

O segundo aspecto da “mente” ou “central do pensamento” é a imaginação, e

de novo é útil ouvir a voz científica de Damásio. Uma vez que as bases neurais do

conhecimento, raciocínio e tomada de decisões são dependentes das [dependent

on] imagens formadas nos nossos cérebros, e que a formação das imagens é outro

processo altamente complexo:

[as] imagens sobre as quais raciocinamos (imagens de objetos específicos, ações e esquemas relacionais; de palavras, as quais ajudam a traduzir estas últimas em forma de linguagem), não só devem estar “em foco” – algo conseguido pela atenção – mas deve ser também “realizado ativamente na mente” – algo conseguido pelo trabalho da memória de alta

31

Na tradução de Dora Vicente e Georgina Segurado, lê-se: “e isso implica ter em mente uma grande quantidade de fatos e de resultados correspondentes a ações hipotéticas e confrontá-los com os objetivos intermédios e finais, requerendo todos eles um método, uma espécie de plano de jogo escolhido entre os diversos planos que ensaiamos no passado em inúmeras ocasiões.” P. 70. N.T.

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ordem [high-order working memory]32. (Damásio (1994), 84)

Em outras palavras, toda a nossa operação mental como seres humanos

depende de três componentes muito significativos em nosso kit de ferramentas do

ator – atenção (foco), memória, mas acima de tudo imaginação. Toda a nossa

interação com o mundo depende da nossa formação mental de imagens. Não

admira que um dos principais sustentáculos de quase todo programa de treinamento

do ator seja a exercitação e o desenvolvimento da imaginação. Você poderia quase

dizer, a atividade cerebral – ou seja, nossas estratégias de sobrevivência – é nossa

imaginação.

Como resultado, os sentimentos que são despertados em nossos corpos

estão intimamente ligados à interação das imagens e dos processos de raciocínio de

nossas mentes; esses sentimentos são extremamente importantes porque eles

então provocam em nós ações específicas [provoke us into specific courses of

action].

Sentimento ou “central da emoção” [‘emotion-centre’]

A escolha de Stanislávski da palavra (chuvstvo) acomoda no idioma Russo

ambos, sentimento e emoção, embora em neurociência contemporânea estas são

duas coisas bastante específicas.

Sentimentos, nas palavras teatralmente orientadas de Damásio, são “o

resultado de um arranjo fisiológico muito curioso que transformou o cérebro no

público cativo do corpo.”33 (Damásio (1994), xix) Porque o cérebro é o público cativo

32

Na tradução para a Língua Portuguesa de Dora Vicente e Georgina Segurado, lê-se: “O que sucede quando os marcadores-somáticos, manifesta ou veladamente, cumprem sua tarefa influenciadora? O que sucede no nosso cérebro para que as imagens sobre as quais raciocinamos sejam suspensas durante os intervalos de tempo necessários? A fim de respondermos a essas questões, temos de voltar a um problema esboçado no início do capítulo. Aquilo que domina o panorama mental quando se é confrontado com uma decisão é a ampla e variada apresentação dos conhecimentos sobre a situação que está sendo gerada. As imagens correspondentes a uma infinidade de opções de ação e possíveis resultados, também infinitos, são ativadas e constantemente trazidas para o centro da atenção. Também o componente linguístico dessas entidades e cenas, as palavras e as frases que relatam o que nossa mente vê e ouve, se encontra presente, competindo pelo centro das atenções. Esse processo baseia-se numa criação contínua de entidades e acontecimentos, do qual resulta uma justaposição muito variada de imagens consentâneas com o conhecimento previamente categorizado”. P. 81. N.T. 33

Na tradução de Dora Vicente e Georgina Segurado, lê-se: “São o resultado de uma curiosa organização fisiológica que transformou o cérebro no público cativo das atividades teatrais do corpo”. P. 07. N. T.

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do corpo, [os] “sentimentos têm uma palavra a dizer [have a say] sobre como o resto

do cérebro e [a] cognição fazem [go about] o seu trabalho”34. (Damásio (1994), 159-

160) Em outras palavras, o impacto dos sentimentos é altamente significativo em

todo o modus operandi dos nossos pensamentos e ações. Na verdade, a sensação

é a fusão do corpo e do cérebro, pois é [as it is] “a percepção de certo estado do

corpo, juntamente com a percepção de certo modo de pensar.” (Damásio (1999), 86)

Assim, os sentimentos envolvem nossa percepção do estado em que estamos em

um dado momento.

[As] emoções, por outro lado, neurologicamente precedem esta percepção,

uma vez que envolvem verdadeiras mudanças físicas no corpo, as quais – quando

percebidas pela pessoa que as experimenta – tornam-se sentimentos. Usando outra

imagem teatral [actorly], Damásio profere: “[As] emoções representam no teatro do

corpo. [Os] sentimentos representam no teatro da mente.” (Damásio (1999), 28)

Neuroscientificamente nosso sentimento das emoções desempenha [play] um papel

muito importante na nossa sobrevivência, permitindo-nos, nas palavras de Damásio,

agir inteligentemente sem ter que pensar inteligentemente: (Damásio (1994), xi) “o

aspecto definidor dos nossos sentimentos emocionais é a leitura consciente dos

nossos estados corporais conforme modificados pelas emoções; é por isso que os

sentimentos podem servir como indicadores [barometer] da gestão da vida”.35

[As] emoções e [os] sentimentos estão, portanto, distinta e intrinsecamente

interligados. É evidente que Stanislávski estava certamente [na direção] de alguma

coisa quando revela seu próprio movimento fluido entre os dois, escrevendo: “é

necessário para mim dar um nome à memória principal sobre a qual quase toda

nossa arte está baseada. Eu chamei a isso de memória emocional, ou seja, aquela

memória do sentimento.”36 Se houver qualquer problema com a fluidez de

Stanislávski entre os dois, é que o princípio subjacente de “memória emotiva”

[‘emotion memory’] não é necessariamente nossa memória da real sensação

fisiológica de lágrimas, sorrisos, franzir [a testa], etc., conforme muitos profissionais

interpretaram, mas sim uma memória dos sentimentos provocados pela situação

emocional, incluindo memórias de estímulos sensoriais. Talvez devêssemos

34

Na tradução de Dora Vicente e Georgina Segurado, lê-se: “eles têm sempre uma palavra a dizer sobre o modo de funcionamento do resto do cérebro e da cognição.” P. 67. N.T. 35

Damásio, A. (2010), [O] Si Vem à Mente: Construindo a Consciência do Cérebro [Self Comes to Mind: Constructing the Conscious Brain], Nova York: Pantheon, p. 56 36

Citado por Whyman (2008) pp. 75-6, a partir de Stanislávski, C. Obras completas, Volume 9, p. 665.

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reescrever a terminologia para “a memória dos sentimentos emocionais”.

Vontade ou “central da ação”

Porque o corpo está naturalmente [innately] envolvido na vivência das

emoções, fica claro ver como e porque Stanislávski vinculou [linked] chuvstvo

(sentimento) e volia (vontade) como “forças motrizes” ou “propulsores psicológicos”.

Outra vez, tomando uma definição neurocientífica:

[O] comportamento impulsionado pela vontade [Will-driven behaviour]... permite a você exercer uma escolha consciente sobre uma situação para trabalhar em seu próprio interesse. [O] comportamento impulsionado pela vontade [Will-driven behaviour] é a meta direcionada e produtiva; ele ajuda a alcançar as metas que você definiu para a sua vida.37

Aqui vemos uma definição científica diretamente subordinada a uma [tying in

with] das ferramentas-chave no sistema de Stanislávski – zadacha – a qual, como

vimos, pode ser traduzida como “objetivo” ou “tarefa” [task], para não falar dos

quereres, necessidades e desejos, todos os quais nos motivam a dirigir a nossa

vontade conscientemente orientada (ou seja, ações) na direção [towards] [de]

nossas metas almejadas [focused goals]. Eu estava curiosa por mencionar [note] –

com relação [with regard] a esta terminologia – que meu professor [master] [de]

Movimento Cênico [Movement Scenic], Vladimir Ananyev, trocou seu próprio uso da

[palavra] volia (“vontade”) para deistvo (“ação”) entre 1993 (quando comecei a

treinar com ele em Moscou) e 1996 (quando primeiramente o convidei para [vir a]o

Reino Unido como professor particular [tutor]). Uma razão para isso pode ter sido a

expansão do diálogo Russo com a América [do Norte] nos anos imediatamente

seguintes ao colapso da Cortina de Ferro, e da imensa infiltração de “filmes de ação”

os quais implicitamente tornam [rendered] o termo “ação” mais imediato e talvez

mais sedutor [more sexy] do que “vontade”. Por alguns anos depois da minha

exposição à mudança de Ananyev na terminologia, eu também usei “ação” quando

me referi em várias publicações às três forças motrizes interiores. Só agora,

conforme eu começo a entender mais detalhadamente [acerca] da neurociência, da

volição e da bioquímica da tomada de decisão [decision-making], que me encontro

37

Amen, D. G. (2005), Fazendo Ótimo um Bom Cérebro [Making a Good Brain Great], Nova York: Editora Três Rios [Three Rivers Press], p. 8

Page 25: Pra Onde Foi o Espirito - As Complexidades de Traducao e as Nuances Da Terminologia... - Copia

mudando de volta para “vontade”.

Na verdade, estou começando a questionar minha implementação e ensino

dos psicológicos propulsores internos como um todo. Tenho sabido há algum tempo

que o deslocamento temporário, mas aparentemente necessário, de cada uma das

três vertentes [strands] para estudá-los e ensiná-los foi um tanto insatisfatório. Minha

intenção é investir tempo na sala de ensaio e [no] estúdio pesquisando outros meios

e exercícios para permitir a exploração simultânea de todos os três e a provocação

espontânea de sua interdependência. Certamente, a compartimentação do

pensamento, [do] sentimento e [da] vontade se torna cada vez mais problemática

com mais investigações sobre o “corpo-mente” [‘bodymind’] ou a interdependência

mente-corpo [brainbody] da atividade neuronal.

Eu certamente prevejo algumas evoluções do “sistema” de Stanislávski nos

próximos anos também neste domínio, como aliás, intuo que seja o caso com [as

palavras] “alma” e “espírito”.

Alma, espírito e espiritualidade

E assim, alcanço o [ponto] crucial desta exploração da significância da

terminologia e da tradução. Em algum momento durante suas consultas, eu estive

de acordo entre Benedetti e Kamotskaia que as referências a “espírito” ou “alma”

encontradas em A Preparação do Ator [An Actor Prepares] poderiam ser

apropriadamente traduzidas por palavras incluindo “mente”, “psicologia” e “conteúdo

interior”. Em parte, isso foi para evitar alusões ou [a] ideologia que, de uma

perspectiva do falante do Inglês, pode parecer muito religiosa. E aqui nós

imediatamente corremos para a questão da tradução linguística versus tradução

cultural, e quando eu sondei Kamotskaia sobre esta escolha, a resposta dela me

chamou atenção para estas questões culturais. Conforme ela colocou:

Podemos descrever o que é [a] “‘alma”? “Mente” é mais ou menos claro. Mas o que é a alma? Algumas pessoas não usam esta palavra afinal. Algumas pessoas dizem que ela não existe. E se existe para uma pessoa, ela não necessariamente tem que explicá-la. E se ela não existe para uma pessoa, então de modo algum você encontrará a palavra certa... Jean [Benedetti] disse... se você diz “mente”, é o que os Russos querem

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dizer com “alma”.38

Certamente, o dicionário Russo inclui em sua tradução de “mente” as palavras

dusha (também traduzível como “alma”) e dukh (também traduzível como “espírito”),

então há legitimada justificativa linguística nas escolhas de Benedetti. No entanto, o

que emergiu na minha entrevista com Kamotskaia foi que há certas nuances sutis

entre a língua Russa e os equivalentes em Inglês, que teria sido quase impossível

para alguém que não seja um falante nativo do Inglês realmente compreender. E

mesmo assim, haveria dificuldades.

Primeiro de tudo, há uma normalidade cultural bastante específica na Rússia

para a palavra “alma”: uma vez que nós raramente usamos a expressão [phrase] “a

alma Britânica” ou “a alma Francesa” ou “a alma italiana”, parece justo dizer que a

noção de “alma Russa” tenha quase se tornado um clichê. Este trecho [extract] da

nossa entrevista ilustra a articulação das diferenças culturais de Kamotskaia:

BM: O que você entende por “alma”?

KK: Se você pegar os diferentes aspectos psicológicos do pensamento, [do]

sentimento, [do] querer [willing] fazer algo sobre uma situação, e você está usando

os termos conscientemente – como em: “Agora eu estou pensando em algo, e agora

eu estou sentindo alguma coisa, e agora eu estou fazendo algo sobre isso”, eu diria

que isso não é necessariamente a “alma” a trabalhar. Mas às vezes, quando você

tem realmente clareza sobre o significado de uma peça, todos os aspectos se

juntam em um nível superior, como se eles naturalmente se interconectassem e

intuitivamente o levassem para o próximo nível de entendimento. Eu gostaria de

sugerir que isto é quando os Russos diriam este foi o trabalho da “alma” ou [d]o

“espírito”. Nós provavelmente estamos falando [de] quando o consciente se

transforma em trabalho subconsciente.

Na língua Russa, você descreveria alguém como uma pessoa muito espiritual

se ela lê muito, acho muito ler poesia por diversão – não porque ela tenha que

recitá-la [perform it] ou que esteja procurando uma citação ou isto seja parte de seu

trabalho. Ela simplesmente abre o livro de poesia e o lê. E isso faz algo por sua

alma, porque ela funciona num nível subconsciente. Este é o onde em Russo se

38

Entrevista com Kamotskaia, Davis, Califórnia, Março de 2010.

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pode usar a palavra “alma” ou “espírito”.

BM: Como você pode explicar “espírito” ou “alma”, na sala de aula?

KK: [O] espírito trabalha na alma – como se a alma fosse o jarro e o espírito

estivesse dentro. Como um gênio numa garrafa. A alma é a garrafa, e o espírito é o

gênio. É simples.

BM: Quando você fala assim, eu diria que “mente” é algo muito diferente;

KK: Mas [a] “mente” toma parte nisso. Porque quando você lê poesia, sua mente lê

as palavras.

BM: Então você diria que quando a mente, os sentimentos e a vontade estão todos

trabalhando juntos sincronicamente, se pode ter um senso/uma noção [a sense] do

espírito?

KK: Essa é apenas minha descrição pessoal, e eu não sei como ela [it] funciona...

Stanislávski usa a alma num nível muito simples, porque enquanto Russos nós

usamos esta palavra em nossa vida cotidiana. Não é uma palavra religiosa. Não foi

a religião que produziu a ideia de alma; [a] religião usou essa palavra a fim de

conectar-se com algo. Em Russo, nós prontamente falamos da alma do ser humano.

BM: No entanto, o que me surpreendeu quando eu comecei a olhar para mais livros

[Norte-]Americanos sobre atuação, foi que eu comecei a ver a palavra “espiritual”

com muito mais frequência do que eu tinha tido conhecimento com os livros

Britânicos. Desde que me mudei para os Estados Unidos, eu fui surpreendida com o

quanto ela é falada aqui e, mesmo em sala de aula, “espiritual” não é uma palavra

ou conceito problemático. Como instrutores/treinadores/preparadores de atores

[actor trainers], o que estamos fazendo realmente é tentar fazer utilizável numa sala

de aula com pessoas um tanto inexperientes algo que tem um

domínio/território/reino potencialmente maior que ela [a potentially bigger realm to it].

E é aí que a terminologia fica complicada, porque de certa forma você precisa dela

para dar o pontapé inicial [a] um processo [to kickstart a process]. E ao mesmo

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tempo, a terminologia pode ser mais uma prisão do que uma libertação.39

Ao ouvir a percepção fascinante [fascinating insights] de Kamotskaia na

terminologia, encontrei-me perturbada pela substituição em O Trabalho do Ator [An

Actor’s Work] de conceitos espirituais pelos mentais ou psicológicos por duas razões

principais [key reasons]: (a) o ethos do “sistema” de Stanislávski é, com igual ênfase,

sobre o físico e o espiritual; portanto, reduzir o último foi fazer um desserviço ao

alicerce fundamental [fundamental underpinning]; (b) As filosofias de Stanislávski já

haviam sofrido sob a faca da censura soviética, e eu estava desconfortável com o

pensamento de que no século XXI Bretão [twenty-first-century Britain], poderíamos

ter aumentado as camadas de censura [added to the strata of censorship]. Para

resolver estas questões, esta seção se divide em três subseções:

1. Uma visão geral das dimensões espiritual/física do sistema de atuação de

Stanislávski;

2. Uma visão geral da censura dos componentes espirituais através das

várias publicações, desencadeadas tanto pelo próprio Stanislávski e [também

pel]as autoridades;

3. Uma comparação de trechos de A Preparação do Ator [An Actor Prepares]

e o recém-traduzido O Trabalho do Ator [An Actor’s Work], para conseguir

uma sensação de qual é o impacto das adaptações.

As dimensões espiritual/física do sistema de atuação de Stanislávski

A maioria das análises do “sistema” de Stanislávski ilustram que ele

considerava o corpo, [a] mente e [o] espírito sendo parte de uma entidade

psicofísica. Conforme ele escreveu em A Construção da Personagem [Building a

Character] – ou ao menos como traduziu Hapgood – “A criação da vida física é

metade do trabalho sobre o papel porque, como nós, um papel tem duas naturezas,

[a] física e [a] espiritual.”40 Então novamente em A Criação do Papel [Creating a

Role]: “[A] ação cênica é o movimento da alma para o corpo... do interno para o

39

Entrevista com Kamotskaia, Davis, Califórnia, Março de 2010. 40

Stanislávski, C. (1949) (trad. Hapgood, E. R.), A Construção da Personagem [Building a Character], Nova York: Livraria das Artes Teatrais [Theatre Arts Bookshop], pp. 218-36, ênfase no original.

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externo, daquilo que o ator sente para a sua forma física.”41 E de novo, desta vez de

um tradutor diferente, David Magarshack: “Sentimento-pensamento-palavra, a

imagem espiritual do pensamento, sempre deve conter a marca [the stamp] da

verdade.”42 Quando em 1936 Stanislávski empenhou suas ideias para a ampla

publicação de Minha Vida na Arte [My Life in Art], ele escreveu a seu filho, Igor: “A

linha física pode existir sem a espiritual? Não.”43

Se dermos um passo atrás para um tempo antes de Stanislávski, para avaliar

o clima filosófico no qual ele foi capaz de cultivar suas ideias, de novo o livro de

Whyman fornece algumas perspectivas úteis [useful insights]. Ela faz alusão à obra

de Friedrich Wilhelm von Schelling (1775-1854), que fundou uma escola de filosofia

romântica intitulada “Filosofia [da] Natureza” [‘Nature Philosophy’], sendo sua

afirmação “[A] natureza é o Espírito visível, [o] Espírito é a Natureza visível.”44 Quer

Stanislávski soubesse ou não disso diretamente, ele certamente conhecia [a]

Psicologia de Tikhon Faddeev (1913). Tendo em mente que a palavra Grega

“psique” significa “alma” ou “respiração” [‘breath’], não é de estranhar que Faddeev

aludiu à alma em sua conferência [negotiation] de psicologia: “todos estudam

constantemente sua própria alma... todos são em certa medida um psicólogo.”45

Parece que não há [There seems to be no] conotação religiosa a essas referências,

mas sim a científica e, certamente, a filosófica. E assim, surge a imagem de uma

atmosfera na qual [o] espírito, [a] alma, [o] si foram capacitados a serem aspectos

impactantes e inescapáveis do “sistema”, para não mencionar sua relevância para o

trabalho dos atores de Stanislávski, incluindo Vártangov, que em 1910 estava

desenvolvendo uma estética denominada “naturalismo espiritual”.

Então como é que chegamos a uma situação onde pode haver qualquer

exclusão [expurging] de algo tão significativo como o “espiritual” do “sistema”?

A censura dos componentes espirituais

41

Stanislávski, C. (1961) (trad. Hapgood, E. R.), A Criação do Papel [Creating a Role], Nova York: Livros das Artes Teatrais [Theatre Arts Books], pp.55,49 42

Stanislávski, C. (1967) (trad. Magarshack, D. M.), Sobre a Arte do Palco [On the Art of the Stage], Londres: Faber and Faber, p.116 43

Citado em Whyman (2008), p. 63 a partir das Obras Completas de Stanislávski [Stanislavsky’s Collected Works], Vol. 9, p.665 44

Citado em Whyman (2008), p. 3 a partir de Ellenberger, H. F. (1970), A Descoberta do Inconsciente: A História e Evolução da Psiquiatria Dinâmica [The Discovery of the Unconscious: The History and Evolution of Dynamic Psychiatry], Nova York: Livros Básicos [Basic Books], p. 202 45

Citado em Whyman (2008) p. 9, a partir de Faddeev, T. (1913), Pedagogia Escolar [Shkhol’naia Pedagogika], Moscou: Gráfica de Articulação do Distrito Militar de Moscou [Tipografia Sutaba Moskovskog voennogo okruga], p. 4

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Em seu livro sobre improvisação, Jogo Livre [Free Play] (1990), Stephen

Nachmanovitch afirma que a criatividade “é inerentemente um mistério. Ela não

pode ser totalmente expressa em palavras, porque diz respeito [it concerns] aos

profundos níveis pré-verbais do espírito.”46 Uma das razões para que poucos atores

falem, muito menos escrevam sobre o seu processo, é sem dúvida seu medo de

dissipar o mistério de sua própria intuição, impulso, e espontaneidade. E ainda

assim tal mistério não foi permitido no materialismo da Rússia Soviética. Em 1931,

Stanislávski sabia dos perigos: “A palavra ‘espírito’ é nociva/prejudicial [harmful].

Proponha outra coisa ao invés [dela] e eu irei aceitá-la” (conforme N. Afigenongenov

registrou-o dizendo).47 Uma década antes, o estado tinha sublinhado a importância

do mundo material sobre o mundo espiritual. Ainda assim Stanislávski persistiu em

defender seu uso de “alma” e “subconsciente” para o Comitê Central do Partido

Comunista até 1936, apenas dois anos antes de sua morte, tendo mantido ao longo

de sua vida que o propósito da arte era a criação da vida do espírito humano. No

fundo do seu coração, ele sabia que por todas as mudanças superficiais na

terminologia, ele não poderia mudar mais profundamente o conceito em si [he could

not change the deeper concept itself].

O maior problema foi seu uso e referência ao prana, a palavra Hindu para

energia que Stanislávski adquiriu a partir de seu estudo e prática do yoga, muito do

qual foi adquirido com sua leitura de Hatha Yoga: ou a Filosofia Iogue do Bem-estar

Físico [Hatha Yoga: or The Yogi Philosophy of Physical WellBeing] (1904 ) e Raja

Yoga: ou a Filosofia Iogue do Desenvolvimento Mental [Raja Yoga: or the Yogi

Philosophy of Mental Development] (1906) de Ramacharaka. [O] Prana – ou Força

Vital – foi descrito por Ramacharaka como:

um princípio universal, aquele princípio que é a essência de todo o movimento, força ou energia, se manifesta na gravitação, na eletricidade, na revolução dos planetas e em todas as formas de vida, desde a mais elevada à mais inferior.48

R. Andrew White argumenta que Stanislávski usou o termo prana para

46

Nachmanovitch, S. (1990), Jogo Livre: Improvisação na Vida e na Arte [Free Play: Improvisation in Life and Art], Nova York: Tarcher/Penguin, p. 12 47

Citado em Whyman (2008), p. 75 a partir de Vinogradskaia, Crônicas [Letopis], vol. 4, pp. 159-60 48

Citado em Whyman (2008), p. 82, a partir de Ramacharaka (1917), Hatha Yoga, Londres: N. L. Fowler, p. 158

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esclarecer sua acepção de “auto comunicação” [‘selfcommunication’]

(samoobshchenie ou “noção de si” [‘sense of self’]), afirmando que ele o via como

um mensageiro unificador entre a mente e as emoções do ator.49 Afastando-se da

divisão de emoções e mente, e nos fornecendo uma definição contemporânea a qual

acomoda a sincronia do corpo e do cérebro no monismo corpo-mente agora

reconhecido, Phillip B. Zarrilli descreve “a circulação interna do vento/energia/força

vital” através do corpo como prana ou prana vayu (Índia), qui (China) e ki (Japão). O

corpo-mente interior “está totalmente mapeado como o corpo sutil do yoga onde a

respiração ou força vital viaja ao longo dos canais (Nadi) e ativa [as] rodas (chakras)

ao longo da linha da coluna vertebral.”50

Além de vincular isso à própria referência de Stanislávski aos chakras (“Eu

aprendi que havia outro centro além do centro do sistema nervoso no cérebro, um

localizado perto do coração – o plexo solar. Tentei conseguir que estes dois centros

falassem um com o outro”) (Stanislávski (2008), 233) Eu inclui a citação de Zarrilli

por seu amálgama de mente e corpo: este monismo impulsiona indiscutivelmente no

âmbito científico as noções de prana que o regime Soviético achou tão difícil de

engolir [found so difficult to stomach]. A única menção de prana encontrada em A

Preparação do Ator [An Actor Prepares] foi suprimida na versão Russa de 1938 de O

Trabalho do Ator [An Actor’s Work], a qual é claro foi a matéria-prima para O

Trabalho do Ator [An Actor’s Work] em Língua Inglesa de Benedetti. Assim a única

menção do prana foi deletada do original por força das sensibilidades Soviéticas, e

eu diria que o ajustamento da miríade de menções de “alma” e “espírito” na tradução

de 2008 se aproxima perigosamente do outro estrato de censura, embora menos

insidioso [comes dangerously close to a further, albeit less insidious, stratum of

censorship]. Será que o público leitor de língua Inglesa iria realmente achar a noção

de “espírito” muito religiosa? Em uma época em que muitas pessoas – tanto no

Reino Unido como nos EUA – praticam yoga e meditação sem necessariamente ver

qualquer conotação religiosa? Será que o fato de que dusha [alma] e dukh [espírito]

podem também ser encontradas sob [a definição de] um no dicionário Russo

realmente justifica a hibridização cultural bem como a tradução linguística?

49

White, R. A. (2006), ‘Stanislávski e Ramacharaka: a influência do Yoga e da Virada do Século do Ocultismo sobre o Sistema’ [‘Stanislavsky and Ramacharaka: the Influence of Yoga and Turn-of-the-Century Occultism on the System’], Investigação Teatral [Theatre Survey] 47:1, Maio de 2006, p. 81 50

Zarrilli, PB (2004), ‘Em busca de um Modelo Fenomenológico dos Modos da Encarnação da Vivência do Ator’ [‘Toward a Phenomenological Model of the Actor’s Embodied Modes of Experience’], Periódico do Teatro [Theatre Journal] 56, Gráfica da Universidade John Hopkins, p. 662

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Conforme expõe Benjamin Lloyd:

Por que a espiritualidade foi extirpada da transmissão do trabalho de Stanislávski, quando tantas outras coisas que vieram dele moldaram o treinamento do ator ocidental?... Há uma tremenda vontade [tremendous urge] na nossa era moderna por remover o misterioso, o espiritual, o inexplicável do estudo da atuação. (Lloyd (2006), 74)

Em seu lugar [Instead], estamos dando “mente” como uma das principais

alternativas. Como o pai da frenologia, Franz Joseph Gall no final dos anos 1700

defendeu que o cérebro era o órgão da alma.

Garantido que avançamos um pouco [Granted we’ve moved on somewhat]

nos últimos 250 anos e, agora, tendo uma mente

significa que um organismo forma representações neurais as quais podem se tornar imagens, serem manipuladas num processo chamado pensamento, e eventualmente, influenciar o comportamento ajudando a prever o futuro, planejar adequadamente, e escolher a próxima ação.51 (Damásio (1994), 90)

No entanto, Damásio também sustenta que: “Da minha perspectiva, é só que

alma e espírito, com toda a sua dignidade e escala humana, são agora estados

complexos e únicos de um organismo.”52 (Damásio (1994), 252) Ele mesmo incita-

nos [urge us] a “tirar o espírito do seu pedestal de lugar nenhum e colocá-lo em

algum lugar, enquanto preserva sua dignidade e importância; reconhecer suas

origens humildes e vulnerabilidade, e ainda assim invocar sua orientação.”53.

(Damásio (1994), 252) [Se] os cientistas podem “localizar” a alma, então porque não

os artistas? [Se] os cientistas podem recorrer à dignidade e importância do espírito,

então porque não os atores? Conforme lamenta Carnicke, “[a] censura sangrou as

palavras [de Stanislávski] de sua complexidade espiritual e artística”, (Carnicke

51

Na pg. 41 da tradução de Dora Vicente e Georgina Segurado lê-se: “[o fato de um dado organismo possuir uma mente] significa que ele forma representações neurais que se podem tornar imagens manipuláveis num processo chamado pensamento, o qual acaba por influenciar o comportamento em virtude do auxílio que confere em termos de previsão do futuro, de planejamento desse de acordo com essa previsão e da escolha da próxima ação.” N.T. 52

Na pg. 101 da tradução de Dora Vicente e Georgina Segurado lê-se: “Do meu ponto de vista, o que se passa é que a alma e o espírito, em toda a sua dignidade e dimensão humana, são os estados complexos e únicos de um organismo.” 53

Na pg. 101 da tradução de Dora Vicente e Georgina Segurado lê-se: “tirar o espírito do seu pedestal em algum lugar não localizável e colocá-lo num lugar bem mais exato, preservando ao mesmo tempo sua dignidade e sua importância; reconhecer sua origem humilde e sua vulnerabilidade e ainda assim continuar a recorrer à sua orientação e conselho.”

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(2009), 97) e, agora, como uma comunidade que deve (como seria de esperar)

conhecer e desejar melhor, parece que estamos fazendo o mesmo.

Em muitos aspectos, minha questão com as escolhas na tradução em O

Trabalho do Ator [An Actor’s Work] não são tanto a edição em si [per se] de “espírito”

e “alma”, como em geral a tradução faz de fato exatamente o que se buscou – um

toque mais contemporâneo [as in general the translation does in fact have exactly

what was sought – a more contemporary feel]. Estou mais preocupada pela

mudança na atmosfera geral da escrita e, logo, [d]o alicerce [underpinning] do

treinamento. Ofereço abaixo uma comparação da tradução de certas frases, de

Hapgood à esquerda, e da nova tradução de Benedetti à direita. Eu incluí frases de

similaridade, bem como de diferença. Repito: Eu penso que algumas das

adaptações realmente são melhorias significativas, mas note o efeito bola de neve

da alteração global no tom:

Tradução de Hapgood de A

Preparação do Ator (1936)

Tradução de Benedetti de O

Trabalho do Ator (2008)

p.12: “Na alma de um ser humano há

certos elementos que são objeto da

consciência e [da] vontade.”

p.17: “Certos aspectos da psique

humana obedecem à mente

consciente e [à] vontade.”

p.37: “A essência da arte não está em

suas formas externas, mas em seu

conteúdo espiritual.”

p.40: “O valor da arte pode ser

definido pelo seu conteúdo espiritual.”

p.41: “Quando você está escolhendo

alguma parte [bit] da ação, deixe [os]

sentimentos e [o] conteúdo espiritual

de lado/sozinhos [alone].”

p.43: “Portanto, ao escolher uma

ação, deixe seus sentimentos de

lado/sozinhos [alone].”

p.52: “O material se torna parte de

nós, espiritualmente, até mesmo

fisicamente.”

p. 54: “Tornamo-nos ligados a ele,

vivemos psicológica e fisicamente.”

p.97: “a vida espiritual de seu papel” p.121: “a vida psicológica normal de

um papel”

p. 158: “o tipo mais próximo de

vínculo direto [direct bond] entre

nossas naturezas física e espiritual”

p. 190: “uma ligação próxima, direta,

[a close, direct link] entre as naturezas

física e espiritual de nossos corpos e

Page 34: Pra Onde Foi o Espirito - As Complexidades de Traducao e as Nuances Da Terminologia... - Copia

nossas mentes”

p. 167: “O que você sente, seja

espiritual ou mentalmente...”

p. 199: “o que você sente mental ou

fisicamente...”

p. 174: “A sua alma por sua vez se

tornará mais receptiva...”

p.207: “Então seu coração irá

responder com energia renovada...”

p. 176: “a alma da pessoa que ele

retrata”

p. 209: “A vida do personagem que

ele está retratando”

p. 178: “a alma da pessoa que ele

retrata”

p. 210: “o personagem”

p.180: “Quando a produção externa

de uma peça está intimamente

relacionada à vida espiritual dos

atores, ela frequentemente adquire

mais importância sobre o palco do

que na vida real.”

p. 212: “Quando eles se relacionam

com os sentimentos internos dos

personagens, eles se tornam muito

mais significativos do que na vida

real.”

p.195: “mesmo que brevemente,

constitui um momento de convívio

espiritual [spiritual intercourse]”

p.231: “Breves momentos do ser [of

beig] em comunicação”

p.196: “O olho é o espelho da alma. O

olho vago é o espelho da alma vazia.

É importante que os olhos de um ator,

seu olhar [his look], reflita o profundo

conteúdo interior de sua alma. Assim,

ele deve construir seus recursos

internos para corresponder à vida da

alma humana em seu papel. Todo o

tempo que ele estiver sobre o palco,

ele deverá estar compartilhando

esses recursos espirituais com os

outros atores na peça.”

p. 231: “Os olhos são o espelho da

alma. E os olhos vazios são o espelho

de uma alma vazia. É importante que

os olhos de um ator, seu olhar [his

gaze], sua olhada [his glance], reflita o

tamanho, a profundidade de sua

mente criativa. Assim, ele precisa ter

armazenado considerável conteúdo

profundo do interior da mente, as

experiências que são similares às da

‘vida do espírito humano’ do papel, o

qual ele vai precisar para se

comunicar com os outros atores. Ele

deve compartilhar esse conteúdo com

o seu parceiro o tempo todo que ele

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estiver sobre o palco.”

p. 199: “Você nunca colocou para fora

suas antenas emocionais para sentir

a alma de outra pessoa?”

p. 234: “Você não sente sempre a

mente de outra pessoa, a sonda com

seus sentimentos?”

p. 200: “Se você não estivesse

dirigindo sua atenção para o nariz de

Famusov ou [suas] mãos, que eu

tinha transformado por um método

técnico, mas ao espírito interno

[within], você teria descoberto que ele

não mudou. Eu não posso expulsar a

minha alma de meu corpo e contratar

outra para substituí-la. Você deve ter

falhado ao entrar em comunicação

com esse espírito vivo.”

pp. 234-5: “Se você não estivesse em

comunicação com o nariz de

Famusov, nem com suas mãos, que

eu alterei como parte do personagem

que eu criei, mas com a minha mente,

de modo que a mente ainda estava lá

dentro de mim. Eu não posso

conduzi-la para fora, não posso

contratar outra de outra pessoa. Quer

dizer que você errou desta vez e

esteve em comunicação não com a

mente, mas com algo mais? O que

era?”

p. 204: “O público constitui para nós a

acústica espiritual.”

p.238: “O público cria, por assim

dizer, uma acústica psicológica.”

p. 205: “atos invisíveis de comunhão

spiritual”

p. 239: “ações invisíveis,

comunicação mental”

p. 211: “Até este ponto tínhamos

tratado com processo da comunhão

externa, física, visível... Mas há outro

aspecto importante o qual é interior,

invisível e espiritual.”

245: “Até agora tínhamos tratado com

o processo de comunicação corporal

externo, visível... Mas há outro, do

tipo mais importante: comunicação

mental, interna, invisível.”

243: “Isso nos traz temporariamente

para o final do nosso estudo dos

elementos internos... necessários

para se chegar ao acertado estado

espiritual interior.”

p. 272: “Esta lista conclui nosso longo

estudo dos Elementos internos – as

aptidões, talentos e dons artísticos

que precisamos para nosso trabalho

criativo.”

p.252: “você usaria todas as suas

forças internas para sentir a alma do

p. 283: “cada um de vocês, de uma

forma ou de outra, iria tentar entrar no

Page 36: Pra Onde Foi o Espirito - As Complexidades de Traducao e as Nuances Da Terminologia... - Copia

papel” cérebro, no coração, nos quereres do

papel”

p.268: “Agora você sabe o significado

do estado criativo interior, vamos

olhar para a alma do ator na hora em

que o estado está sendo formado.”

p. 302: “Você já sabe o que é o estado

criativo, e como ele é feito dos

propulsores internos individuais e de

nossos Elementos.”

p. 269: “riquezas espirituais” p. 304: “tesouros incalculáveis

(Elementos psicológicos)”

Enfatizo [I stress] que é a atmosfera geral que mais me intriga, mais do que a

substituição de “conteúdo interior” por “conteúdo espiritual”, ou “psicologicamente”

por “espiritualmente”, ou “coração” por “alma”, ou “personagem” por “alma de uma

pessoa”, algumas das quais eu acho que ressoam de forma mais prática e imediata

para um ator do século XXI. Dito isto, minha própria predileção pela prática e

investigação da Análise Ativa (iniciada por Stanislávski e desenvolvida por Maria

Knebel) conscientemente permite o treinamento e [a] integração holística do corpo,

[da] imaginação, [da] mente, [das] emoções e [do] espírito.

Será que ‘agarramos’ [‘grasped’] uma nova ferramenta?

Na minha própria prática, o modo no qual eu “treino” o espírito é através do

foco sobre a escuta dinâmica, [a] comunhão e uma ferramenta maravilhosa no kit de

Stanislávski: “garra” [‘grasp’]. Conforme já observei em outro lugar,

GARRA (GRASP) é um termo incorporado no Capítulo 10 de A Preparação do Ator [An Actor Prepares], intitulado “Comunhão”, e eu li o livro nove vezes antes de realmente ter notado o termo, quanto mais ter compreendido plenamente o seu impacto e aplicabilidade como ferramenta. (Merlin (2007), 208)

Na verdade, foi só através de uma leitura muito de perto de A Preparação do

Ator [An Actor Prepares] em 2002, me preparando para escrever Constantin

Stanislávski (da série Profissionais da Performance Routledge [Routledge

Performance Practitioners series]) que o termo me saltou da página. E então eu não

podia acreditar que ele não tinha me provocado uma resposta antes, porque é um

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grande/ótimo pequeno termo [it’s such a great little term]. Stanislávski o utiliza para

ampliar a qualidade de comunhão entre dois atores:

“Eu deveria expressá-lo por uma comparação. É como um pedaço de ferro sendo puxado por um ímã... Se você puder estabelecer uma cadeia longa e coerente de tais sentimentos que ela eventualmente se tornará tão poderosa que você terá alcançado o que chamamos de garra. Então sua emissão [giving out] e absorção serão muito mais forte, mais agudas e mais palpáveis.”54

A ideia de os atores “terem-se cada um na garra do outro” parece ser uma

imagem muito tangível para acessar a ideia bastante esotérica de “comunhão” ou

“radiação”, e eu a tenho usado no meu ensino e prática desde 2002. Portanto, este

foi outro termo sobre o qual eu sondei Kamotskaia, porque a tradução Benedetti usa

a palavra “aperto” [‘grip’]:

“se você usar uma longa linha de vivências e sentimentos que estão em sequência lógica e estão interconectadas, então a ligação será reforçada e irá crescer e finalmente desenvolver o grau de força o qual chamamos de aperto de ferro [iron grip] e que torna o processo de emissão e absorção [receiving] dos raios mais forte, mais nítido e mais concreto.”

“Que tipo de aperto de ferro é esse?” Perguntaram os estudantes com interesse.

“O tipo que um bulldog tem em seus dentes”, explicou Tortsov. “E nós temos que ter um aperto de ferro sobre o palco [an iron grip on the stage], nos olhos, nos ouvidos, em todos os cinco sentidos.” (Stanislávski (2008), 251)

Para ser honesta, eu não gosto dessa tradução. A palavra Russa usada por

Stanislávski neste contexto é khvatka, que pode ser traduzida como “aperto” ou

“compreensão”, e eu interroguei Kamotskaia do por que ela e Benedetti terem ido

para “aperto” de ferro [iron ‘grip’], o qual me parece implicar algo muito mais tenso e

muito menos mágico do que “garra”. Sua resposta foi que a palavra khvatka em

russo é uma palavra tão mundana, que a noção de um ou outro “aperto” ou “garra”

não tem ressonância específica [particular resonance] para o ouvido Russo. Mesmo

com seus muitos anos de treinamento e prática embasados em Stanislávski, ela

nunca tinha dado a ideia de khvatka muito pensada, e nem parece que o tinham

[feito] seus próprios professores ou Benedetti. “Você descobriu uma nova

54

Stanislávski (1936), A Preparação do Ator [An Actor Prepares], Nova York: Artes Teatrais [Theatre Arts], p. 217.

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ferramenta”, brincou ela [she teased], divertindo-se [amused] com o meu entusiasmo

ardente por “garra” [‘grasp’]. Certamente eu nunca tinha visto referência a “aperto”

[‘grasp’] em qualquer dos livros que eu li sobre Stanislávski ao longo dos anos,

sejam eles de Vártangov, Chekhov, Moore, Magarshack, Benedetti, Carnicke, ou

quem quer que seja, embora eu tenha posteriormente visto referências nos anos

mais recentes de ambos, [tanto de] Whyman [bem como de] Gillette.

Esta é ainda outra ilustração da fluidez da terminologia. Sobre a menção

mundana de algo que ocupa menos de uma página em A Preparação do Ator [An

Actor Prepares], eu alegremente fundamentei [founded] a completude do meu

entendimento da escuta dinâmica e [da] Análise Ativa, alheia ao fato de que em

Russo ela era apenas uma coisa mundana. Dada a riqueza e complexidade da nova

tradução, não tenho nenhuma dúvida de que outros encontrarão pequenas pepitas

das quais construir grandes tesouros de entendimento e prática.

E finalmente

A coisa importante, acredito, é que as abordagens ao treinamento do ator

permanecem fluidas, especialmente porque nosso entendimento do comportamento

humano é continuamente aprimorado pela ciência. A tradução do Russo para [o]

Inglês – como vimos – é tanto linguística quanto cultural. Sempre há incoerências,

como a tradução de Hapgood de deistvie (ação) como “intensidade interior”, a qual –

conforme aponta Carnicke – coloca ênfase indevida sobre o trabalho emocional do

ator ao invés de [colocá-la na] ação direta, pragmática. (Carnicke (2009), 92) Meu

próprio entendimento de “ação” está atualmente mudando: ao considerar a ação

como tendo três aspectos – físico, interior e verbal – agora estou mais inclinada em

direção à crença de Stanislávski de que a transmissão do pensamento (ou seja, as

palavras) é ação, e ele mesmo atravessou anos [ceased over the years] para

diferenciar entre ação física e [ação] verbal. (Levin & Levin (2002), 14) Eu ainda

estou trabalhando nisso, conforme eu aprendo mais sobre a neurociência do

pensamento, [do] fazer e [da] memória: Posso sentir minhas próprias placas

tectônicas terminológicas se deslocando sem descanso até que eu tenha mais

conhecimento teórico e [mais] exploração prática. Da mesma forma com tarefa, meta

[goal], objetivo, desejo, necessidade, querer, alvo. É necessário mais tempo na sala

de ensaio, [na] sala de aula e [na] arena de atuação [performance arena] para

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encontrar – através do próprio corpo-mente – o que funciona, o que ressoa, o que

dá a partida [ignites] na imaginação. Nós precisamos, enquanto formadores de

atores [actor-trainers], simplesmente encontrar o que comunica de forma mais eficaz

aos estudantes que aprendem seu ofício, e enquanto atores, o que funciona mais

eficazmente para o público [que está] recebendo a história.