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PPSA, A ESTATAL ENDÓGENA DO PRÉ-SAL: CINCO CONTROVÉRSIAS E
UM QUADRO GERAL1
José Vicente Santos de Mendonça2
Alex Vasconcellos Prisco3
Artigo publicado na Revista de Direito Público da Economia – RDPE 39
(julho/setembro 2012)
Resumo: O artigo, após problematizar o encaixe da Pré-Sal Petróleo S.A.
dentro da tradição brasileira de estudo das empresas estatais, apresenta cinco
polêmicas envolvendo a empresa. Questiona-se os limites de sua atuação vis-
à-vis o interesse público, os limites de seu poder de controle nos consórcios do
pré-sal, sua pretensa irresponsabilidade absoluta, seu papel diante da União e
se exerce função empresarial ou regulatória. Ao final, são propostos alguns
guias para a resolução de possíveis conflitos de atribuições com outras
entidades atuantes no setor petrolífero.
Palavras-chave: Pré-sal. Pré-Sal Petróleo S.A. Regulação petrolífera. Estatais.
Título em inglês: PPSA, the public-owned enterprise of the pre-salt area: five
pressing issues and a general table of functions.
1 Partes deste texto representam versão ampliada da palestra proferida pelo primeiro autor no I
Seminário Brasileiro do Pré-Sal, que ocorreu em Brasília, em 2010, sob a chancela da Advocacia-Geral da União, do Ministério de Minas e Energia e da Universidade de Brasília. Alguns trechos do item III foram elaborados após sua participação no II Seminário Brasileiro do Pré-Sal. O primeiro autor agradece o convite para participação nos eventos aos colegas de advocacia pública Fabriccio Steindorfer e Walter Baere e ao colega de docência superior Gustavo Kaercher Loureiro.
2 Doutor em Direito Público (UERJ). Professor permanente de Direito Regulatório do Programa
de Pós-Graduação em Direito (mestrado e doutorado) da Universidade Gama Filho (RJ). Procurador do Estado e advogado no Rio de Janeiro ([email protected]).
3 Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento (UCAM). Professor contratado de regulação
da indústria do petróleo na Pós-Graduação (lato sensu) em Direito da Energia, Petróleo e Gás da AVM Faculdades Integradas, conveniada à UCAM. Advogado no Rio de Janeiro ([email protected]).
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Abstract: This paper tries to tune in the newly-created Pré-Sal Petróleo S.A.
with brazilian established tradiction of public-owned enterprises. After that, the
study focus on five arising issues concerning Pré-Sal Petróleo S.A.: its limits of
operation; its power amongst joint-ventures that will be created to operate E&P
on pre-salt areas; its civil liability; its relationship to Federal Government; and if
it is just an enterprise or if it has some regulatory power. The article also
proposes some guidelines intended to prevent positive conflict of functions
concerning players in the oil and gas field.
Keywords: Pre-salt. Pré-Salt Petróleo S.A. Oil and gas regulation. Public
enterprises.
SUMÁRIO: I. Introdução. II. Por que a PPSA é uma estatal? Por que a PPSA é
uma empresa pública? III. PPSA, a estatal endógena do pré-sal. IV. Cinco
controvérsias a respeito da entidade. IV.1 - A PPSA e o lucro. O sentido da
busca do interesse público pela PPSA. IV.2 - Poder de controle da PPSA: o
que é e como perder o medo. IV.3 - Gestão irresponsável: será mesmo que a
PPSA não responde por nada? IV.4 - A PPSA e a União: escritório da União ou
empresa pública? IV.5 - PPSA: empresa pública reguladora? V. Interação entre
PPSA, Petrobras, ANP, CNPE e MME: alguns pontos a respeito de possíveis
conflitos. Quadro geral de atribuições típicas. VI. Síntese objetiva.
I - Introdução
Depois de mais de mais de dez anos com quadro legislativo estável - a
Lei do Petróleo é de 1997 -, o Direito do Petróleo no Brasil nunca mais será o
mesmo. A detecção de inéditas perspectivas de produção na área geológica do
pré-sal, tornada pública em 2007, motivou a criação de novo marco regulatório
para a área.
Em função disso, até agora, introduziu-se, por intermédio de leis
federais, um modelo contratual - o contrato de partilha de produção, para a
exploração e produção nas localidades; um fundo, a ser constituído com
recursos federais originários do aproveitamento econômico das áreas do pré-
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sal, destinado a objetivos sociais (o Fundo Social); a autorização para a criação
de estatal, denominada “Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e
Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA)”, incumbida de gerir tanto os
contratos de partilha quanto os contratos da União para a comercialização de
petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos.4
Este texto não se ocupa nem da partilha de produção nem do Fundo
Social. Seu objeto é a PPSA, e, de modo específico, as cinco grandes
polêmicas até agora levantadas a respeito de sua atuação. Também
analisaremos possíveis interações entre a PPSA e outras entidades, públicas
ou privadas, atuantes na área do petróleo.
Em termos estruturais, o artigo se divide, afora esta introdução, numa
discussão a respeito da escolha da natureza de estatal e da forma de empresa
pública para a PPSA e do que isso revela a respeito das opções políticas aí
influentes (item II). Logo após, apresenta-se novidade: a existência de estatais
endógenas - empresas públicas e economias mistas que, longe de intervirem
concorrencialmente na economia, operarem monopólio ou prestarem serviços
públicos, atuam prestando serviços para a Administração (item III). A PPSA
seria exemplo de estatal endógena. O próximo item (IV) trata de algumas das
principais controvérsias já levantadas a respeito da empresa. O item V comenta
possíveis controvérsias entre os atores atuantes na dinâmica da exploração do
pré-sal e traz quadro indicativo das atribuições típicas das entidades. O item VI
enumera as propostas do estudo na forma de enunciados.
II - Por que a PPSA é uma estatal? Por que a PPSA é uma empresa
pública?
Antes de encaminharmos respostas às perguntas do título, façamos dois
questionamentos preliminares.
4 Até o momento (julho de 2012), o marco regulatório do pré-sal compõe-se de três leis federais
aprovadas em 2010. A lei federal n. 12.276, de 30 de junho, trata da chamada cessão onerosa: a União cedeu onerosamente à Petrobras o direito à pesquisa e lavra em áreas do pré-sal não concedidas. A lei federal n. 12.304, de 2 de agosto, autorizou o Poder Executivo federal a criar a PPSA. Por sua vez, a lei federal n. 12.351, de 22 de dezembro de 2010, além de criar o Fundo Social, estabeleceu o regime contratual da partilha de produção.
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(i) Por que são criadas empresas públicas e sociedades de economia
mista - "estatais" - no lugar de órgãos, autarquias, fundações?
(ii) Por que se escolhe a forma empresa pública, ou a forma sociedade
de economia mista, ao momento de se autorizar a criação de entidade
empresarial da Administração Pública Indireta?
Para a (i) primeira pergunta, há duas respostas. Constitui-se estatal
porque só por intermédio da criação de empresa é que se poderá concorrer,
em igualdade de condições, com as empresas privadas. Trata-se da hipótese
da intervenção concorrencial do Estado na economia (art. 173, caput, CRFB-
88). Uma autarquia, porque não possui bens penhoráveis, inscreve seus
devedores em dívida ativa, e também porque precisa contratar bens e serviços
por meio de licitações, conta com vantagens e desvantagens em relação às
empresas privadas não pertencentes à Administração. Assim, o mais justo, e a
única circunstância constitucionalmente admissível5, é que sejam constituídas
como empresas privadas, tão iguais quanto possível às suas concorrentes.
Trata-se, então, da constituição de estatais graças ao dever de isonomia
concorrencial.
No entanto, desde muito tempo tal razão revela apenas parte das
motivações na criação destas entidades. Há tempos, constituem-se estatais
que não concorrem com empresas privadas, mas prestam serviços públicos à
população6. A doutrina tradicional estabeleceu distinção entre o regime jurídico
das estatais "prestadoras de serviços públicos" e das estatais "concorrenciais",
e a diferença reside na intensidade das regras de Direito Público aplicáveis às
5 Art. 173, par. 1º, CRFB-88 - A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da
sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (...) II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários (...). Par. 2º - As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado. (Destaque acrescentado.)
6 É preciso lembrar que, no modelo clássico, não existe estímulo à concorrência entre
prestadoras de serviços públicos. Ou os serviços públicos são tidos como monopólios naturais, ou a concorrência em sua prestação é vista como indesejável e arriscada.
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primeiras (maior) e às segundas (menor, no limite do indispensável à
preservação de certos propósitos de accountability).
Daí a perplexidade: se estatais prestadoras de serviços públicos não
estão vocacionadas à concorrência, por que elas são, afinal, estatais, e não
órgãos públicos ou autarquias? Nada em suas funções exigiria a roupagem de
Direito Privado. Como explicar?
Simples: o regime privado das estatais também é adotado como
estratégia para se fugir às amarras do regime de Direito Público. Os controles
tradicionais da Administração Pública são, por vezes, asfixiantes. Daí, opta-se
pela adoção da forma privada como estratégia para evitar sua incidência,
assegurando a esses organismos do Estado maior flexibilidade de ação.7
Esse segundo propósito tem a ver com o primeiro - é também porque se
evita o controle clássico que as estatais concorrenciais podem aspirar à
isonomia em relação às empresas privadas -, mas ambos são independentes.
A dificuldade desse propósito é que, por vezes, pretende-se afastar as
exigências administrativas com a finalidade de não se submeter a qualquer
controle, e, como reação, há entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que
fazem retornar às estatais muitas das amarras do regime público. Ou seja: em
alguns casos, o propósito se desvirtua em finalidade não-republicana, e, diante
disso, as entidades controladoras buscam torná-lo inócuo. Por vezes, portanto,
percorre-se legítima viagem redonda, em que se foge de um controle apenas
para encontrá-lo dali a dois passos.
7 LAMY FILHO, Alfredo. O Estado Empresário. In DIREITO, Carlos Alberto Menezes (org.).
Estudos em Homenagem ao Prof. Caio Tácito. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 44. No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso: “A opção legal pela personalidade de direito privado de entes econômicos estatais é um recurso técnico de repúdio aos sistemas tradicionais da administração pública, de forma a propiciar-lhes agilidade funcional, elidindo o formalismo da administração pública direta.” (BARROSO, Luís Roberto. Regime jurídico das empresas estatais. In: Revista de Direito Administrativo. Vol. 242. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 86). Ainda, MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO, Fábio Medina; SOUTO, Marcos Juruena Villela (Orgs.). Direito Administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 577-578.
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Dito isso, voltemos nossos olhos à PPSA. Indaga-se: o exercício de seu
objeto social - a gestão dos contratos de partilha de produção e dos contratos
de comercialização de petróleo e gás da parte que cabe à União8 - existe num
ambiente de concorrência? Certamente não9. Assim, não foi por essa razão
que se criou a PPSA como estatal. Resta a segunda razão.
De fato: ela foi criada como estatal porque se imaginou que o figurino
privado poderia incrementar sua eficiência, principalmente ao permitir que
escapasse à plena incidência das constrições do regime jurídico-administrativo
típico.
Num exemplo: estatais não-dependentes, como a PPSA provavelmente
o será10, não estão submetidas ao teto remuneratório do serviço público.11
Portanto, a PPSA poderá atrair dirigentes com pacotes remuneratórios
competitivos, e apresentar alguma resistência de seu pessoal concursado
diante de propostas da iniciativa privada. Se a PPSA fosse autarquia12, nada
8 Art. 2º, caput, da lei federal nº 12.304/2010.
9 As atividades econômicas de gestão dos contratos de partilha e de comercialização do
petróleo pertencente à União estão inseridas num espaço fechado à iniciativa privada, cabendo à PPSA explorar esses mercados com exclusividade. Na verdade, tem-se que tanto a gestão contratual da partilha como a comercialização da parte do óleo da União são submercados da indústria do petróleo, derivações de segmentos da cadeia econômica petrolífera que estão monopolizados pela CFRB-88 (art. 177). Nesse monopólio, como se sabe, é facultado à União, mediante lei, contratar a realização de tais atividades petrolíferas com empresas privadas ou estatais, podendo ainda atribuir ou não a elas exclusividade no desempenho das empresas (art. 177, § 1º, CRFB-88).
10 Especula-se que a PPSA terá estrutura física e de pessoal enxuta, o que tornará reduzidas
suas despesas de custeio, ao passo que seus ingressos pecuniários são praticamente certos, à luz da venda do óleo da parte da União. De um lado, custos baixos; de outro, segurança nos recebimentos. É boa a aposta de que teremos uma estatal não-dependente de aportes do orçamento federal.
11 Art. 37, par. 9º da CRFB-88.
12 A ideia de “autarquização” da PPSA chegou a ser cogitada durante o processo legislativo
que autorizou sua criação. A Emenda nº 1 de 2010/CCJ ao PLC nº 309, de 2009, de autoria do senador Pedro Simon (PMDB-RS), tencionava transformar a PPSA numa “autarquia especial”, sob a justificativa de que a referida empresa não se consubstanciaria num “empreendimento executivo de ação”, ou seja, não desempenharia “atividade fim” de prospecção, exploração, distribuição ou comercialização de petróleo e seus derivados; tampouco seria uma “operadora dos resultados destas atividades citadas dentro do mercado mobiliário”. Sua principal característica como entidade pública seria a de uma “empresa típica de representação, análise, regulação e gestão dos contratos entre o Poder Público e empresas públicas e privadas, notadamente com a preferência pela estatal Petrobras S.A., que, efetivamente, fará as
7
disso ocorreria: a entidade estaria inexoravelmente limitada ao teto do serviço
público federal.
É claro que tal insubmissão não poderá ser absoluta, tanto mais que a
razão da criação da PPSA como estatal não é ontológica (ela não depende da
forma privada para exercer suas funções, tal como o depende, por exemplo, a
Petrobras; seu ambiente de atuação não é, em grande parte, inerentemente
concorrencial), mas é, na verdade, uma comodidade operacional.
Há, ainda, a outra pergunta. (ii) Por que a forma de empresa pública?
Por que não a forma de sociedade de economia mista?
Durante algum tempo se pensou que havia critério jurídico para tal
escolha. Partindo-se de bipartição de atividades que está, como vimos, ela
própria superada, dizia-se que as economias mistas, à conta da participação do
capital privado, deveriam ser constituídas, preferencialmente, para o exercício
da intervenção direta concorrencial; as empresas públicas, para a prestação de
serviços públicos.13
Hoje, tal referência está ultrapassada. Não há critério jurídico para a
escolha. A distinção é política.14 O propósito de maior intensidade da
intervenção do Estado justifica a constituição de empresa pública; a
necessidade ou o interesse do aporte de capital privado, e/ou o interesse em
menores graus de intervenção estatal, levam à criação de sociedade de
economia mista.
Logo, a opção pela forma jurídica de empresa pública da PPSA afirma
que o Estado brasileiro, por seu Executivo e Legislativo federais, identificaram
atividades fins - executivas e econômicas de exploração do pré-sal”. (Disponível em: www.senado.gov.br/. Acesso em: 24/01/2012).
13 PAIVA, Alfredo de Almeida. As sociedades de economia mista e as empresas públicas como
instrumentos jurídicos a serviço do Estado. In: Revista de Direito Administrativo. Seleção histórica. Rio de Janeiro: Renovar, 1991. p. 307-320, aqui, p. 319
14 “Fica a critério do ente criador a forma de que se revestirá a criatura, uma vez que inexistem regras a respeito.” MUNIZ, Alvaro A. Caminha. A empresa pública no Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas S.A., 1972. p. 24-25.
8
a necessidade de maior intervenção pública na gestão dos contratos de partilha
e na comercialização do óleo da União.15 Afirma, também, que para o
desempenho de tais atividades não foi reputado necessário ou interessante o
ingresso de recursos privados.
III - PPSA, a estatal endógena do pré-sal
Retomemos o mito fundador do estudo das estatais no Brasil. Diz ele o
seguinte: há duas espécies delas, as que concorrem na iniciativa privada e as
que prestam serviços públicos. As características de seu regime jurídico
mudariam a partir daí. Embora esta classificação possua utilidade, ela
simplifica em excesso.
Os problemas são de duas ordens: (a) não importa, à identificação do
regime jurídico, a categorização estanque da empresa, mas a atividade que ela
esteja de fato exercendo naquele momento; (b) não existem apenas duas
espécies de estatais.
(a) O que interessa é a atividade desempenhada pela empresa. O
regime jurídico se procura a partir da atividade desempenhada em dado
momento, e não a partir de enquadramento idealizado como “prestadora de
serviço público” ou como “atuante na intervenção econômica direta.”
Atualmente é comum encontrar estatais que prestam serviços públicos e atuam
concorrencialmente. A separação nunca foi estanque16, mas a freqüência de
15
O marco regulatório do pré-sal representa o "retorno do pêndulo", que oscila entre maiores e menores graus de intervenção do Estado na economia, à posição próxima ao Estado. Trata-se de decisão política que não implica, em si mesma, qualquer grau de inconstitucionalidade. Para a expressão entre aspas, cf. TÁCITO, Caio. O retorno do pêndulo: serviço público e empresa privada. O exemplo brasileiro. Temas de Direito Público (estudos e pareceres), 1º volume. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 721-733.
16 Afirmando que a classificação entre estatais que atuam na intervenção econômica em sentido estrito e as que prestam serviço público toma por base tipos ideais (na terminologia weberiana), e que dificilmente encontraremos empresa que desempenhe exclusivamente uma dessas duas atividades, v. GRAU, Eros Roberto. Lucratividade e função social nas empresas sob controle do Estado. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Vol. 55. São Paulo: Revista dos Tribunais, julho/setembro de 1984. p. 35-59, aqui p. 47.
9
situações híbridas parece convidar à superação da dicotomia.17 Contudo, a
dicotomia precisa ser superada ainda por outra razão.
(b) Não se pode limitar as funções das estatais a duas finalidades. Pode-
se afirmar que há estatais que desempenham funções públicas. Tais funções
dizem respeito, por exemplo, a atividades administrativas e burocráticas. É dizer:
as estatais, além de intervir diretamente na economia e de prestar serviços
públicos, também podem exercer atividades administrativas e prestar serviços ao
Estado.
A propósito dessa terceira espécie-tipo de estatal, leia-se os dois trechos a
seguir:
Adicionalmente aos processos de privatização, outra relevante alteração no papel das empresas estatais vem sendo verificada ultimamente. Tal alteração concerne à constante e crescente utilização da forma societária para a constituição de entidades exercentes de funções públicas, anteriormente exercidas exclusivamente por órgãos da Administração direta ou por autarquias.
18
Rigorosamente, seria possível (e necessário) reconhecer uma terceira espécie de entidade. Seria aquela composta por sujeitos cuja função consiste em prestar apoio à Administração Pública. Nesse caso, a entidade não atua no mercado nem presta serviços fora do âmbito estatal, mas dá suporte à atividades administrativas. Nessa categoria poderiam ser incluídas as entidades encarregadas de processamento de dados, impressão e planejamento e assim por diante.
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A PPSA é dessas estatais. É empresa que presta apoio à Administração
Direta - vai gerir os contratos de partilha e de comercialização de óleo para a
União. Não concorre num mercado aberto a entes privados nem presta
serviços públicos à população. É uma estatal endógena. A compreensão de
seu regime jurídico deve partir daí. Administrar contratos firmados pela União é
atividade usualmente atribuída à administração direta. Escolheu-se a forma de
empresa pública na busca das liberdades do regime privado. Na condição de
17
JUSTEN FILHO, Marçal. O regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre “serviço público” e “atividade econômica”. In: Revista de Direito do Estado. Vol. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. pp. 119-135, aqui, p. 135.
18 SCHIRATO, Vítor Rhein. Novas anotações sobre as empresas estatais. In: Revista de Direito
Administrativo. Vol. 239. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 210. O destaque foi acrescentado.
19 JUSTEN FILHO, Marçal. O regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre “serviço
público” e “atividade econômica”. In: Revista de Direito do Estado. Vol. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. pp. 119-135, aqui, p. 124. Destaque acrescentado.
10
gestora exclusiva, está próxima ao exercício de poderes públicos - mas não
presta serviço público. É empresa privada, o que a remete à busca do lucro20 e
à assunção de risco - mas, por determinação legal, não explora, produz ou
comercializa; ou seja: está proibida de exercer as atividades econômicas que,
na indústria do petróleo, mais tipicamente representam lucro e risco.21-22 É
empresa privada que, tal qual escritório de advocacia contratado por município
que não disponha de advogados, possui a missão (legal) de "defender os
interesses da União", aqui, no caso, nos comitês operacionais dos consórcios
formados para a exploração do pré-sal. É, para este assunto, a única
representante - privada - do mais importante ente público do país.23 Ao mesmo
tempo, exerce atividades realmente típicas de empresas privadas, tais como a
avaliação de projetos e o monitoramento de custos.
IV - Cinco controvérsias a respeito da entidade
Dito isso, passemos em revista cinco pontos que representam
perplexidades que cercam a figura da PPSA, estatal atípica de regime
incomum. É bem verdade que as estatais, no Brasil, nunca seguiram caminhos
retilíneos24, mas a PPSA representa ponto fora de uma curva já acidentada.
20
Art. 2º da Lei federal n. 6.404/76: Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes. V., ainda, art. 966 do Código Civil de 2002.
21 Art. 2º, parágrafo único, da lei federal n. 12.304/2010: A PPSA não será responsável pela execução, direta ou indireta, das atividades de exploração, desenvolvimento, produção e comercialização de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos.
22 Segundo a dicção legal, a PPSA apenas celebra, em nome da União, e administra o contrato
de comercialização do óleo-proveito desta, a ser celebrado possivelmente com a Petrobras (conforme dispensa de licitação contida no art. 45, par. único, da lei federal n. 12.351/2010). Quer dizer: a PPSA celebra e fiscaliza, mas quem exerce a atividade econômica, que neste caso é a venda do óleo, é a Petrobras.
23 Art. 4o Compete à PPSA: (...) b) defender os interesses da União nos comitês operacionais
(...).
24 “Na verdade, a empresa pública (lato sensu) não é fruto de uma idealização racional e jurídica da doutrina. Ela é produto das necessidades políticas e econômicas, e ainda, de outro lado, resultado, pura e simplesmente, da prática administrativa (em grande parte empírica) relativa ao Estado contemporâneo.” MUKAI, Toshio. O Direito Administrativo e os regimes jurídicos das empresas estatais. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 155.
11
IV.1 - A PPSA e o lucro. O sentido da busca do interesse público pela
PPSA
A PPSA persegue o interesse público secundário, não o interesse
primário.25 Trata-se de estatal voltada ao lucro.26 Seu objeto social imediato,
estabelecido em lei, é o de realizar a gestão dos contratos de partilha e de
comercialização de petróleo da parte da União27; seu propósito econômico (ou
objeto social mediato) é o de maximizar o óleo-lucro da União (na partilha, a
remuneração dos contratados, via apropriação do óleo, só é feita após a
recuperação dos custos das empresas contratadas, também por apropriação
do hidrocarboneto); já sua finalidade político-administrativa é a de
desconcentrar poder das mãos da Petrobras mercê da criação de ator de
equilíbrio nas relações institucionais públicas da indústria do petróleo.
É a partir deste pano de fundo que devem decorrer as propostas
interpretativas relativas à PPSA. O que a PPSA não pode fazer é ir contra o
interesse público primário, mas não há nada, na lei ou no sentido de sua
criação, que a obrigue a perseguir o interesse da coletividade a despeito de
seu interesse patrimonial. Por exemplo: ela não está juridicamente obrigada a
apoiar plano de exploração que seja ambientalmente mais adequado, em
desfavor de seu interesse patrimonial, se houver plano ambientalmente correto
25
Dos anos noventa em diante, a partir de Santi Romano, e, depois, Renato Alessi, forte na popularização feita por Celso Antônio Bandeira de Mello via Alessi, houve entre nós a disseminação de lição doutrinária que diferencia o interesse público em primário, interesse do Poder Público na realização de objetivos de interesse público não arrecadatório, e secundário, interesse arrecadatório dos entes e órgãos públicos.
26 Aqui, algumas observações devem ser feitas. Assim como se diz da atividade financeira do
Estado – não é um fim em si mesmo –, também a busca do lucro, pelas estatais, é instrumental. Existe não para “enriquecer” o Estado, mas para gerar recursos que serão investidos no desempenho de suas atividades. Se a busca de lucro é instrumental em abstrato, ela o é, ainda mais, se analisada com base no que fazem as estatais: ou intervêm concorrencialmente na economia, porque a isso foram levadas por circunstância de interesse público ou de segurança nacional – e, aí, o propósito é muito mais realizar esse interesse público ou contribuir para essa segurança do que gerar recursos ao Estado –, ou prestam serviços públicos, e, como é natural, a busca é pela concretização dos objetivos atingíveis por essa prestação (integração nacional, oferecimento de utilidades essenciais à população, satisfação de direitos fundamentais etc.) Nesse sentido, ARAÚJO, Edmir Netto. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 197.
27 V. incisos I e II, do art. 4º, da lei federal n. 12.304/2010.
12
e lucrativo. Dizendo de outro modo: não é por integrar a Administração Indireta
que ela estará obrigada a suportar externalidades sociais. Poderá ser
politicamente direcionada a tanto, mas os argumentos que a tanto a conduzirão
não serão jurídicos.
Não há qualquer vedação jurídica a que as estatais, sejam prestadoras
de serviço público ou intervenientes na economia em exercício concorrencial
ou monopolístico, obtenham lucro – a rigor, é seu dever que sejam eficientes e
lucrativas, podendo apenas excepcionalmente atuar de modo deficitário. No
caso das que atuam concorrencialmente, imaginá-las operando sem pretender
lucrar significaria, até, violação às regras de defesa da concorrência.28
A PPSA deve buscar o lucro - e esse lucro vem por intermédio da
maximização do óleo-proveito que cabe à União, vindo daí também a maior
parte da remuneração da estatal, consubstanciada por importâncias calculadas
sobre o resultado da produção de petróleo e gás (art. 7º, par. único, da lei
federal nº. 12.304/2010).
Não se desconhece, por outro lado, que, ao zelar pelos interesses
financeiros do Estado, a PPSA estará também atendendo a interesses públicos
primários. Afinal, as políticas públicas dependem de recursos para serem
executadas. Mas é bom ter em mente que essa é questão que não diz respeito
diretamente à PPSA. Mesmo porque já está previsto no marco regulatório a
criação de organismo específico, o Fundo Social, que utilizará os valores
arrecadados com a exploração do pré-sal para financiar programas
governamentais destinados ao desenvolvimento da educação, cultura, ciência,
tecnologia e sustentabilidade ambiental e ao combate à pobreza.
28
GRAU, Eros Roberto. Lucratividade e função social nas empresas sob controle do Estado. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Vol. 55. São Paulo: Revista dos Tribunais, julho/setembro de 1984. p. 35-59, especialmente p. 53 et seq. Outro tratamento teórico interessante para o assunto é o que distingue entre o resultado da estatal – que é e deve ser o lucro – e a causa determinante de sua criação, o interesse público. CRETELLA JÚNIOR, José. Empresa pública. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1973. p. 227.
13
A conciliação entre o dever-possibilidade de se buscar o lucro e a
circunstância de tal lucro ser instrumental vem pelo respeito não-submisso ao
interesse primário.
A PPSA não atua realizando diretamente direitos fundamentais, mas
gerando dinheiro capaz de realizá-los. Conclusão: em relação à atuação da
PPSA, o interesse público primário possui efeito jurídico de bloqueio, mas não
efeito jurídico de comando.
IV.2 - Poder de controle da PPSA: o que é e como perder o medo
O que significa "gestão de contratos" pela PPSA? Duas coisas: comando
do empreendimento; fiscalização de custos e de execução. No quadro da lei nº.
12.351/2010, a PPSA possui virtual domínio dos projetos exploratórios. Deverá,
por exemplo, avaliar técnica e economicamente os planos de exploração e
desenvolvimento e poderá até estabelecer o ritmo de produção29, tudo em
função do voto (de qualidade e de mais da metade dos representantes do
Comitê Operacional) e do veto. Além disso, a estatal fiscalizará, tal como
usualmente se dá numa empresa privada, os custos e a execução dos projetos
de que participar.30
O ponto polêmico reside em como será formatada a governança dos
empreendimentos. Qual a garantia que a operadora e as demais contratadas
possuirão ao ingressam num empreendimento econômico de risco cuja gestão,
em boa parte, não lhes pertence? Se já é delicado investir alto na atividade
exploratória (sobretudo numa província desafiante como a do pré-sal), imagine-
se fazer isso sem que se tenha o controle do projeto, que ficará em grande
parte concentrado nas mãos de uma nova entidade estatal.
29
Em entrevista concedida ao Jornal Valor Econômico, em 3 de setembro de 2009, afirmou a então ministra Dilma Roussef, hoje Presidente da República: “A diferença entre concessão e partilha é que, na concessão, eu não acesso a renda petrolífera, a não ser com imposto e participação especial e, ao fazê-lo, não controlo minha produção; na partilha, acesso o grosso da renda petrolífera e, ao fazê-lo, controlo o ritmo de produção e posso utilizar isso para fazer uma política de alianças internacionais, considerando o papel geopolítico do petróleo”.
30 Não se trata, contudo, de poder de polícia, porque não há possibilidade legal de a PPSA
aplicar penalidades administrativas.
14
Com efeito, a questão do poder de veto e do voto de qualidade tem sido
fonte de perplexidade. Isso porque a disponibilidade dessas prerrogativas em
favor da PPSA tem aptidão para torná-la administradora plenipotenciária dos
empreendimentos, deixando a seu alvedrio a tomada das principais decisões
no âmbito do comitê operacional.
No entanto, passados alguns anos da publicação das propostas, surgem
indícios de que a PPSA talvez não tenha toda essa capacidade de comando
dos projetos. Há sinais de que a União, num esforço de autocontenção,
modulará contratualmente o uso do veto e do voto de qualidade, de maneira a
amenizar os poderes da PPSA na gestão dos projetos.
Essa possibilidade consta do próprio art. 25 da lei federal n.
12.351/2010, expresso ao estabelecer que o poder de veto e o voto de
qualidade deverão ser exercidos “conforme previsto no contrato de partilha de
produção”. Segundo já se cogita, o sistema legal permitiria que o poder de
controle da estatal fosse limitável pela via contratual. Com isso, seria possível
às partes convencionarem que a deliberação de certas matérias elencadas nas
leis de regência fossem excepcionadas do alcance das prerrogativas do veto e
do voto de qualidade. Assim, o contrato poderia disciplinar que a aprovação de
tal ou qual assunto legalmente previsto se fizesse por quorum especial, ou
mediante exigência de unanimidade das empresas consorciadas.
Restam ainda estratégias práticas juridicamente admissíveis de
atenuação do poder de controle da PPSA e de prevenção de riscos pela
assunção de decisões de outrem. Por exemplo: registrar em ata
posicionamentos contrários; exigir justificativa técnica consistente como pré-
condição à tomada de decisões; fechar acordos de votação; insistir na
transparência de dados; alertar sobre a responsabilidade dos administradores
pelo erro ou má administração. Tais procedimentos podem parecer saídos de
algum saco de maldades, mas são, em muitos casos, uma tábua de salvação.
Importa lembrar, contudo, que essas possibilidades jurídicas e
estratégias táticas buscam apenas atenuar o poder de influência monológica da
15
PPSA nas decisões dos projetos. Eliminá-lo seria juridicamente impossível
dentro do atual marco regulatório. Isso significa que mesmo que o contrato de
partilha venha de fato a restringir o exercício do veto e do voto de qualidade,
contemplando-os somente para a decisão de pontos específicos, ainda assim
sobrará espaço para que a estatal detenha papel efetivo na administração dos
empreendimentos. Ou seja: a PPSA poderá até não ter o controle dos projetos,
mas certamente deterá alto nível de ingerência sobre eles.
É inegável, porém, que a limitação do direito ao veto e ao voto de
qualidade implica renúncia de parcela do poder estatal em prol de maior
consensualismo com a iniciativa privada. Apesar disso, não se acredita que a
Administração Pública dará aos particulares a mesma liberdade que vigora no
sistema de concessão da Lei do Petróleo. Se fosse para ser desse modo, não
seria preciso reformular o modelo de regulação. No entanto, há quem pense
que o fato de a lei ter prestigiado uma atuação administrativa mais concertada
– ao deixar muitos aspectos da governança do empreendimento para o
disciplinamento contratual – redundaria, na verdade, no fortalecimento da
posição jurídica das contratadas frente ao Estado. Isso se daria pela maior
possibilidade jurídica de revisão ou contestação judicial das cláusulas do
contrato de partilha, diferentemente do que ocorre no sistema de concessão da
Lei do Petróleo, onde a maior parte das regras está prevista em lei, gerando
assim “maior força vinculante”31. A ver.
IV.3 - Gestão irresponsável: será mesmo que a PPSA não responde por
nada?
Aspecto intrigante do regime jurídico da PPSA é a circunstância de que,
a despeito de ser, na lei e na prática, a gestora da partilha, ela está legalmente
blindada contra qualquer risco. A blindagem consta do art. 8º, § 2º, da lei
federal n. 12.351/2010. O dispositivo prescreve que a estatal “não assumirá os
31
GOMES, Carlos Jaques Vieira, et alii. Avaliação da Proposta para o Marco Regulatório do Pré-sal. Out. 2009. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/conleg/textos_discussao.htm.>, p. 29. Acesso: 15/11/2009.
16
riscos e não responderá pelos custos e investimentos referentes às atividades
de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das
instalações de exploração e produção decorrentes dos contratos de partilha de
produção”. Todos esses riscos ficarão a cargo da Petrobras e das demais
consorciadas (art. 20, § 3º).
Ora, sabendo-se que a gestão de contratos exercida pela PPSA
implicará sua aptidão em participar da tomada das principais decisões
empresariais dos projetos - e de muito possivelmente vir lucrar com isso -, o
que se tem aqui é associação incomum entre gestão e irresponsabilidade e
ônus e bônus. Mesmo que o poder de veto e o voto de qualidade venham a ter
seu uso restringido pelo contrato, ainda soa estranho pretender isentar a PPSA
dos riscos inerentes às atividades petrolíferas, dado que sempre haverá
alguma ingerência da estatal sobre as estratégias dos projetos.
O modelo não parece juridicamente adequado. Claro que não se
desconhece que a lei, assim como o contrato, pode estabelecer entre as partes
- ainda que de forma desigual - o compartilhamento dos riscos de atividades
desenvolvidas conjuntamente. Mas fica a pergunta: será que desenho tão
desequilibrado se mostra apropriado à atração dos enormes investimentos
privados necessários ao bom desenvolvimento das operações nas áreas do
pré-sal?
Note-se também a inconsistência performativa da lei de criação da
PPSA, quando fala que a estatal deve se submeter ao regime jurídico próprio
das empresas privadas (art. 3º, da lei federal n. 12.304/2010), mas diz que ela
não assume risco por uma atividade econômica da qual é gestora.
Apesar tudo isso, há quem pense que esse arranjo de divisão de riscos
não teria nada de anormal. Para quem acredita nisso, o Estado já cumpre com
sua parte no negócio ao colocar à disposição da iniciativa privada a exploração
econômica das imensas reservas de óleo e gás do pré-sal, bens esses
pertencentes à União, na forma do art. 20, IX, da CRFB-88. Caberia, pois, aos
17
particulares interessados explorarem economicamente essas jazidas por sua
conta e risco.
Respeitamos a posição, mas com ela não concordamos. Estaria tudo
bem se a União, anuindo com que seus recursos minerais sejam prospectados
por empresas privadas, apenas se limitasse a participar financeiramente dos
resultados e regulasse a atividade com base em critérios técnicos (tal como
ocorre no regime da Lei do Petróleo). Em tal situação, como o Estado não
interfere muito na condução dos projetos, nada mais justo do que os entes
privados tomem para si todo o risco da atividade. Até porque, na concessão, o
petróleo e gás passam a ser automaticamente de propriedade do
concessionário. No entanto, tudo muda de figura quando o Estado, além de
beneficiário das rendas petrolíferas e agente regulador, passa a ser empresário
(por meio de empresa pública), com poderes de influência direta sobre os
projetos e detendo exclusivamente a propriedade dos hidrocarbonetos. Nesse
caso, que é o do marco regulatório do pré-sal, reputamos irrazoável direcionar
a totalidade dos riscos da atividade para as consorciadas, deixando a PPSA de
fora de qualquer responsabilização pelos seus atos de gestão, na qualidade de
destacada integrante do comitê operacional do consórcio.32
32
Há aqueles que defendem o modelo brasileiro de partilha, sob a alegação de que seria igual ao norueguês, onde também existe empresa de capital inteiramente estatal, a Petoro AS, com papel institucional similar ao exercido pela PPSA. Ocorre que, segundo consta de estudo encomendado pelo BNDES, a Petoro é simplesmente “responsável pelo gerenciamento da Participação Financeira Direta do Estado (State’s Direct Financial Interest – SDFI)”. Suas principais atribuições são: “(i) gerenciar o SDFI nas parcerias; (ii) monitorar a venda, pela Statoil, do petróleo produzido referente à parcela da SDFI, conforme especificado nas instruções de comercialização entregues àquela empresa; e (iii) supervisionar o gerenciamento e contabilidade do SDFI.” (Relatório I - Regimes Jurídico-Regulatórios e Contratuais de E&P de Petróleo e Gás Natural. Estudo de alternativas regulatórias, institucionais e financeiras para a exploração e produção de petróleo e gás natural e para o desenvolvimento industrial da cadeia produtiva de petróleo e gás no Brasil Disponível em: www.bndes.gov.br. Acesso em: 03/04/2011). Excepcionalmente, nas hipóteses em que os projetos se revelem muito lucrativos, o Estado norueguês, por intermédio da Petoro, “participa como um sócio não operador comum, realizado aporte de capital e se sujeitando aos riscos da atividade” (BALERONI, Rafael Batista; PEDROSO JR., Jorge Antonio. Pré-Sal: Desafios e uma Proposta de Regulação. In: RIBEIRO, Marilda de Sá Rosado (Coord.). Novos Rumos do Direito do Petróleo. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, pp. 169 e 170). Tal não ocorre em nosso modelo de partilha. A única semelhança da PPSA com a Petoro reside nas funções de monitoramento contábil das operações e de agente comercializador. De resto, tudo é diferente, já que a PPSA tem, em caráter permanente, a gestão do empreendimento, e, ao contrário da Petoro, não investe na atividade nem assume qualquer risco associado às operações.
18
Essa questão avulta quando se pensa na responsabilidade civil pelos
danos causados ao meio ambiente33. A pergunta é: sendo a PPSA uma
autêntica empreendedora, seria juridicamente possível a lei escudá-la com
cláusula geral de isenção pelos grandes riscos ambientais ínsitos às atividades
de exploração e produção de petróleo? Como conciliar esse objetivo legal com
o art. 225 da CRFB-88, que, preocupado em dar efetividade ao direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, é expresso em
responsabilizar aquele que explora atividade empresarial degradadora da
natureza?
Diante desse quadro normativo constitucional, talvez fique difícil
sustentar a higidez do dispositivo de lei que preconiza total irresponsabilidade
civil da PPSA, a qual, repita-se, congrega um plexo de competências voltadas
ao gerenciamento direto dos projetos do pré-sal, deles se beneficiando
economicamente.
Seja como for, a responsabilidade civil da PPSA é questão que terá de
ser resolvida na prática. Ainda que a lei afirme que a estatal não assume
qualquer risco - seja interna corporis, no consórcio, quer externa corporis,
perante terceiros -, serão provavelmente os tribunais, debruçados sobre os
casos, que definirão o sentido e alcance da pretensão normativa de
incolumidade da nova estatal.
IV.4 - A PPSA e a União: escritório da União ou empresa pública?
A PPSA é mandatária da União? Qual o sentido da representação
instituída pela lei?34 Trata-se de questão importante, que está ligada à
33
Sobre o tema, desenvolver em: PRISCO, Alex Vasconcellos. Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA): Gestão, Risco e Responsabilidade Civil Ambiental. Dissertação (Mestrado) – UCAM, Mestrado em Direito, 2011.
34 O art. 21 da lei federal n. 12.351/2010 informa que a PPSA “integrará o consórcio como
representante dos interesses da União no contrato de partilha de produção”. O art. 4º da lei federal n. 12.304/2010, alíneas “a” e “b”, transmite a mesma ideia, ao dispor que competirá à estatal “representar a União nos consórcios formados para a execução dos contratos de partilha de produção”, bem como “defender os interesses da União nos comitês operacionais”.
19
autonomia da estatal frente aos órgãos de supervisão, bem como à sua
responsabilidade pelos atos que pratica.
Carlos Ari Sundfeld afirmou que a PPSA seria verdadeiro escritório de
representação da União. Ressaltou que a estatal não disporia de autonomia
para atuar como gestora dos contratos, sendo a União a única “titular da
posição contratual”35. Fábio Ulhoa Coelho, por sua vez, enxerga a PPSA como
agente da vontade da União e, no tocante à natureza jurídica desse mandato,
entende que a lei teria estabelecido uma delegação sui generis, mistura de
representação legal com consensual36. Parte da doutrina, portanto, com base
no texto da lei, enxerga autêntica relação de representação, pela qual a PPSA
agiria em nome da União e em conformidade com seus desígnios, sem ser
tocada pelos efeitos jurídicos dos atos praticados no âmbito do consórcio e do
comitê operacional.
Discordamos. Pensamos que a representação da União pela PPSA não
pode ser equiparada à representação do Código Civil (art. 115 e segs.) ou,
mesmo, a um mandato comum, nos moldes do previsto no art. 653, primeira
parte, do Código. Acreditamos que, na configuração ideal do marco regulatório
de exploração do pré-sal, a PPSA não recebeu poderes da União para, em
nome desta e em estrito atendimento às suas determinações, “praticar atos ou
administrar interesses”, com repercussões jurídicas apenas em relação à
pessoa do representado. Afinal, se fosse para a nova empresa ser mera
representante legal ou mandatária da Administração Direta, fazendo apenas
cumprir as orientações que lhe fossem determinadas pela União e sem sofrer
as respectivas consequências, a PPSA sequer precisaria ser criada. Não seria
necessário despender recursos públicos na constituição de ente personalizado.
A gestão dos contratos poderia, com mais economicidade, ficar internalizada
35
Conferência intitulada “O Arranjo Institucional do Pré-sal: CNPE, MME, ANP e Pré-Sal Petróleo”, realizada em 12/05/2011.
36 Conferência intitulada “A Pré-Sal Petróleo S.A.”, realizada em 12/05/2011.
20
no MME, ou, ainda, ser outorgada à autarquia reguladora, ideia que, inclusive,
conta com adeptos37.
No pior dos cenários, amesquinhar o papel da PPSA, encarando-a como
subalterna mandatária da União, pode abrir caminho para seu loteamento
político e retirada de sua capacidade de atuação. Dotada de patrimônio próprio
e com - espera-se - aptidão para gerir os empreendimentos, a PPSA tem de
assumir as consequências de sua administração. Essa é a única conclusão
possível diante da criação de uma pessoa jurídica, isto é, de um sujeito de
direito38.
Sendo fruto de descentralização administrativa, a PPSA não pode
prescindir de real delegação de poderes, o que pressupõe a atribuição de
algum grau de autonomia à estatal. Se assim não for, a capacidade de gestão
que lhe foi dada pela lei não poderá ser exercitada adequadamente. Isso quer
dizer que o raio de ação da PPSA junto à arena consorcial há de ser
primordialmente desenvolvido segundo as circunstâncias da vida associativa e
em consonância com as variadas especificidades da atividade, sem dever de
obediência cega aos desejos da União, a quem, todavia, ficará reservada a
37
Nessa linha, Carlos Jaques Vieira e outros escrevem que: “No que diz respeito ao controle dos custos, reconhecemos que é provável que a presença da Petro-Sal no comitê operacional reduza a possibilidade de o consórcio inflar custos. Mas, se o objetivo é fiscalizar, (...) poderia ser mais eficiente manter a presença de fiscais da ANP nesses conselhos. Noutra passagem do estudo, afirmam que “as atribuições da Petro-Sal poderiam ser exercidas por um departamento do Ministério de Minas e Energia”. Ao justificar a posição, asseveram que a “criação de uma estatal abre mais espaço para negociações políticas e empreguismo no setor público”. (GOMES, Carlos Jaques Vieira et alii. Avaliação da Proposta para o Marco Regulatório do Pré-sal: <http://www.senado.gov.br/conleg/textos_discussao.htm.>, p. 45). Igualmente, Daniel Almeida de Oliveira cogita que se poderia “concluir pela desnecessidade” de criação da nova empresa pública, uma vez que “a auditagem das contas do operador” “poderia ser feita por autarquia ou órgão da Administração Direta, com o auxílio de empresas contábeis especializadas ou com a formação de equipe de servidores públicos de excelência”. (OLIVEIRA, Daniel Almeida de. O novo marco regulatório das atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural no Brasil. O caso pré-sal. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2399, 25 jan. 2010. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/14243>)
38 “A existência de um sujeito de direito produz efeitos de diferenciação e de autonomia. Cada
sujeito de direito diferencia-se dos demais e é juridicamente autônomo, inclusive para o fim de participação em relações jurídicas”. (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 92).
21
orientação geral da política empresarial da estatal (a ser efetivada por
intermédio do conselho de administração da companhia).
Dessa forma, os atos praticados pela PPSA na seara dos consórcios e
do comitê operacional, embora tenham por fim a defesa dos interesses da
União, devem ser imediatamente praticados em nome da própria estatal e a
seu benefício, contando ela com margem de independência na gestão dos
contratos de partilha e devendo assumir os efeitos jurídicos decorrentes da
posição de parte no consórcio. Assim, por exemplo, caso uma sociedade
integrante do consórcio infrinja diretiva emanada do comitê operacional e lese
algum interesse econômico ao qual incumba à PPSA defender, a estatal, como
consorciada, deverá tomar as providências necessárias para recomposição dos
danos, podendo inclusive ajuizar, em nome próprio, ação de indenização. O
inverso também procede, ou seja, se uma deliberação for tomada com a
influência decisiva da PPSA (v.g., pelo uso do voto de qualidade) e vier a
causar prejuízos injustificados em outra consorciada, será a empresa pública a
responsável direta pela reparação dos danos (podendo a União, no entanto,
responder subsidiariamente pelos débitos da PPSA, se esta se tornar
insolvente).
Portanto, diferentemente do que poderia parecer a uma leitura simples
da lei, não há que se vislumbrar propriamente uma “representação” da União
pela PPSA no campo dos consórcios e do comitê operacional. A relação
jurídica entre elas não se enquadra nos figurinos civilistas da representação ou
do mandato. As funções exercidas pela PPSA nos consórcios, apesar de se
realizarem finalisticamente em favor da União, são imediatamente feitas em
nome e no interesse da própria estatal, a quem deve ser concedida liberdade
de atuação e capacidade para contrair, por si mesma, direitos e obrigações na
esfera associativa dos projetos.
Em outras palavras, a PPSA age em nome próprio, ainda que à conta da
União. Ao invés de os atos praticados pela estatal produzirem efeitos na esfera
jurídica da União, como mandante, produzem-nos diretamente na esfera da
22
empresa pública, que assim deve ser havida como parte, e não como simples
mandatária. Não há, pois, mandato nem representação no sentido do Direito
Civil, mas uma espécie de prestação de serviços legalmente estatuída entre
duas entidades autônomas do Estado. Volta-se, então, ao exposto no item III: a
PPSA é estatal endógena de apoio à Administração Direta.
IV.5 - PPSA: empresa pública reguladora?
No regime da Lei do Petróleo, costuma-se dizer que a agência
reguladora é a gestora dos contratos de concessão, pois o art. 21 afirma caber
à ANP a administração dos direitos exploratórios. No marco regulatório do pré-
sal, por sua vez, ficou estabelecido que a PPSA é quem deverá exercer a
“gestão dos contratos de partilha de produção”, mais ou menos como a Lei do
Petróleo faz com a ANP em relação às concessões. Para confundir ainda mais
o cenário, o art. 63 da lei federal n. 12.351/2010 estipula que, enquanto não for
criada a PPSA, “suas competências serão exercidas pela União, por intermédio
da ANP”. Há ainda, como se especificará logo mais, certas funções conferidas
à PPSA que alguns entendem como típicas de regulação pública. Por conta de
tudo isso veio à tona mais uma polêmica, desta feita respeitante à natureza
jurídica das atividades desempenhadas pela estatal: seriam elas regulatórias
ou empresariais?
A noção de regulação possui núcleo conceitual bem definido. Maria
Sylvia Zanella Di Pietro apresenta algumas de suas características: (i) o
estabelecimento de normas de conduta; (ii) o controle da atividade privada pelo
Estado, que equivale à idéia de polícia administrativa (com competências para
fiscalizar e aplicar sanções); e (iii) a persecução de finalidade pública - a de
estabelecer o funcionamento equilibrado do mercado.39 Caso se prefira os
documentos internacionais, pode-se buscar o Glossário de Economia Industrial
e Direito da Concorrência divulgado pela OCDE: regulação “consiste na
39
DI PIETRO, Maria Sylvia. Limites da Função Reguladora das Agências diante do Princípio da Legalidade. In: DI PIETRO, Maria Sylvia. (Org.). Direito Regulatório: temas polêmicos. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 21.
23
imposição de regras emitidas pelos poderes públicos, incluindo sanções, com a
finalidade específica de modificar o comportamento dos agentes económicos
no sector privado”40.
Carlos Roberto Siqueira Castro reconhece que, embora a PPSA realize
o monitoramento e a auditoria das operações, a ela não foi atribuído poder
sancionatório, de maneira que exerce “funções meramente empresariais”41.
Em sentido intermediário, ou seja, procurando conciliar funções
empresariais e de regulação, Alexandre Santos de Aragão assevera que,
embora a PPSA seja empresa pública, ela não deixa de exercer certo papel
regulatório, uma vez que sua missão consiste em realizar uma “regulação
endógena”42. Nessa espécie de atuação o Estado, sob as vestes de
“empresário”, regula a atividade “por dentro”, na qualidade de “sócio”, tendo
assim maior acesso às informações operacionais do consórcio e, por
conseguinte, mais eficácia regulatória sobre as atividades desenvolvidas
societariamente.
Já para Humberto Quintas e Luiz Cezar Quitans, algumas das funções
atribuídas à PPSA possuem natureza regulatória, razão pela qual, inclusive,
poderiam criar conflito de competência com a ANP. Nessa acepção, os autores
citam as competências da estatal para avaliar tecnicamente os planos de
exploração, desenvolvimento e produção, bem como a verificação do
40
Apud AVELÃS NUNES, António José. Do estado regulador ao estado garantidor. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 9, nº. 34, abr./jun. 2011, p. 47, nota de rodapé nº. 1.
41 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer jurídico dado à Associação Brasileira de
Agências de Regulação – ABAR acerca dos projetos de lei apresentados pelo Governo Federal para mudança do regime de exploração e produção de hidrocarbonetos na área do pré-sal e zonas estratégicas, 2009. Disponível em: <http://www.abar.org.br/biblioteca/decisoesPareceresJuridicos/>. Acesso em: 10/05/2010.
42 Informação verbal colhida durante o II Seminário Brasileiro do Pré-Sal, na conferência
intitulada: “O Comitê Operacional no Contrato de Partilha”, realizada em 13/05/2011.
24
cumprimento, pelos contratados, da política de comercialização de petróleo e
gás43 (art. 4º, I, “c” e II, “b”, da lei federal n. 12.304/2010).
A seu turno, Gustavo Binenbojm assevera que a atividade prescrita na
letra “f”, do art. 4º, da lei federal n. 12.304/2010, que atribui à PPSA o dever de
fornecer à ANP as informações necessárias às funções regulatórias da
agência, seria indicativo de que a empresa estatal deteria papel fiscalizatório
típico de regulação44.
De nossa parte, encampamos a opinião de que as funções acometidas à
PPSA possuem, em princípio, caráter empresarial, pouco importando o fato de
a estatal exercer atividades de avaliação técnica ou de índole fiscalizatória.
Afinal, esses misteres não são de competência exclusiva de órgãos ou
entidades do Estado quando de seu relacionamento com a iniciativa privada,
sendo igualmente desempenhados por particulares nas relações intersubjetivas
mantidas entre si, sem que haja, aí, qualquer antijuridicidade. Basta citar o
exemplo do contrato privado de franquia. Em tal ajuste, o franqueador, além de
analisar tecnicamente o plano de negócios do franqueado, tem ainda poderes
para exercer ampla fiscalização, que inclui desde a verificação da regularidade
dos padrões de layout dos estabelecimentos, até o controle administrativo das
finanças da parte franqueada, mediante investigação de suas vendas e
faturamento45.
Além disso, reforça a ideia de empresarialidade dos atos da PPSA a
circunstância de que a lei não outorgou poder de polícia à empresa, atributo
invariavelmente presente nos organismos estatais de regulação setorial.
Ademais, a PPSA não possui competência legal para editar normas de
43
QUINTAS, Humberto; e QUITANS, Luiz Cezar P. A História do Petróleo: no Brasil e no Mundo. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2009, p. 110.
44 Opinião colhida no II Seminário Brasileiro do Pré-Sal, na conferência “A Disciplina
Constitucional do Petróleo”, realizada em 11/05/2011.
45 Tamanha invasividade se justifica porque, no mais das vezes, as receitas do franqueador
são calculadas com base em percentual dos lucros obtidos pelo franqueado.
25
disciplinamento do setor, tampouco intenta buscar o equilíbrio do mercado,
funções típicas da regulação pública.
Em relação à questão de a ANP vir eventualmente a desempenhar as
atividades da PPSA enquanto esta não for instituída (art. 63, Lei nº
12.351/2010), tal não induz à conclusão de que a estatal atuaria como entidade
reguladora. Antes de tudo, pensamos que a norma dificilmente terá aplicação,
na crença de que, quando os contratos de partilha forem celebrados, a PPSA já
estará constituída e em funcionamento. Ao incluir essa disposição, o legislador
quis evitar um vácuo institucional, assegurando a presença do Estado e a
defesa de seus interesses no âmbito dos consórcios. Trata-se de disposição
excepcional, cuja inserção se justifica pelo risco da ocorrência de situação
igualmente atípica, mas que, por si só, não autoriza conclusões fundantes
sobre a natureza de substituta e substituída.
Portanto, tem-se que a PPSA foi municiada com vasto feixe de
atribuições de natureza empresarial, que lhe franqueiam não só a prática de
atos de monitoramento e auditagem do contrato de partilha (“fiscalização
privada”, carente de poder de polícia sancionatório), mas, sobretudo, a aptidão
para exercer intenso determinismo estatal na gestão dos empreendimentos
petrolíferos.
V - Interação entre PPSA, Petrobras, ANP, CNPE e MME: alguns pontos a
respeito de possíveis conflitos. Quadro geral de atribuições típicas
O último item deste artigo vai se debruçar sobre as interações entre
PPSA, ANP, e demais órgãos e entidades associados à indústria do petróleo -
contratadas, Petrobras, Ministério de Minas e Energia e Conselho Nacional de
Política Energética.
Não é realista imaginar que inexistirão conflitos de atribuições. A
proposta é rascunhar alguns aspectos e propostas para a resolução de tais
conflitos, além de apresentar um quadro geral de atribuições típicas.
26
Aspecto importante: há núcleos conceituais de sentido definidos para
cada órgão ou entidade. Assim, falando de duas entidades em que se
conjectura possíveis conflitos, caberia à PPSA a administração do interesse
privado da União; à ANP, a regulação do monopólio do petróleo. Alguns
investem na diferenciação entre Estado e Governo, comum no Direito
Administrativo: enquanto a ANP restaria associada ao aspecto Estado - a
entidade operaria com visão de longo prazo e norteada pela preocupação com
estoques, boas práticas da indústria e questões ambientais -, a PPSA,
associada ao Governo (e, acrescentamos, antes disso ao ente federativo
"União"), funcionaria com visão privada e negocial – ela exerceria a fiscalização
das operações de E&P voltada para a maximização dos lucros da União.46
Claro que falar só isso é ficar no terreno das generalidades - mas, por abstratas
que sejam, tais noções já indicam caminhos para a resolução de conflitos.
Dúvida interessante: a PPSA estará submetida à regulação da ANP? A
resposta é afirmativa. A PPSA é agente regulado, não ente regulador. Por
importante que seja, não é por isso que há de ultrapassar o controle da ANP. O
argumento de que a PPSA é representante da União não afasta o controle da
ANP. A Petrobras é controlada pela União e é regulada pela ANP. A própria
União é controlada pelo TCU, pelo MPF, pelo Judiciário e, internamente, pela
CGU. Não há motivos - jurídicos ou práticos - para que não ocorra controle da
ANP em relação às atividades da PPSA relacionadas diretamente aos objetivos
macro do setor do petróleo.
De resto, a Lei do Petróleo, em seu art. 8, VII, informa que caberá à ANP
"fiscalizar diretamente" (...) "as atividades integrantes da indústria do petróleo,
do gás natural e dos biocombustíveis". Como a PPSA desenvolve atividade que
integra a indústria do petróleo, há de se submeter à entidade reguladora.
Evidente que a regulação da ANP não deve se imiscuir com aspectos
propriamente negociais ou estratégicos da PPSA: não fixa nem controla preço
46
OLIVEIRA, Daniel Almeida de. O novo marco regulatório das atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural no Brasil. O caso pré-sal. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2399, 25 jan. 2010. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/14243>.
27
de venda; não opina sobre planos de investimento; não interfere com objetivos
de longo prazo da empresa. Mas pode, por exemplo, corrigir conduta da PPSA,
que, como controladora dos comitês operacionais da partilha, mostre-se
contrária a alguma boa prática da indústria internacional.
Outro ponto de conflito potencial: uma das principais atribuições da
PPSA será fiscalizar as contas do operador - a Petrobras -, a qual, antes de
dividir o óleo, deverá ser ressarcida do custo da exploração. Na prática, isso
significa que a PPSA deverá ingressar em livros contábeis e relatórios
operacionais da Petrobras, a qual, como toda empresa - e como empresa
privada que maneja interesses públicos estratégicos -, vive sob certa cultura de
sigilo.
Aliás, é de se ver que há conflito intrínseco (que pode ou não se
manifestar em concreto) entre Petrobras e PPSA devido à natureza
empresarial de ambas. Por definição, a finalidade de uma empresa é gerar
lucro. A Petrobras possui interesse em maximizar seus lucros. A PPSA possui
interesse em maximizar o lucro da União (que em parte será seu também). A
PPSA fiscalizará a Petrobras. Há ponto de tensão nessa dinâmica entre estatal
que é controlada pela União - mas com forte participação de particulares -, e
outra que, para muitos e relevantes efeitos, é a União, e fiscaliza a primeira.
Duas são nossas propostas para a solução de conflitos. A primeira
sugestão, relativa ao lugar de resolução das controvérsias: prefere a Câmara
de Conciliação da Advocacia Geral da União ao Judiciário. Há parecer do
Advogado-Geral da União informando que a Câmara da AGU também serve
para conciliações em que a Petrobras seja interessada. É reflexo da tendência
geral à desjudicialização. O Judiciário é caro e lento, mas, antes disso, é
estimulador da polarização de opiniões. Demandante e demandado se
percebem como adversários em busca de vitória, e não como construtores de
decisão ganha-ganha. Trata-se de circunstância a ser evitada, sobretudo entre
órgãos e entidades públicas ou controladas pela União.
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Segunda sugestão: em casos de dúvida jurídica insuperável relativa a
conflito positivo de atribuições, pelo menos nesse período inicial propõe-se
uma espécie de teste da competência institucional. Será provisoriamente
competente quem possa melhor desempenhar o papel. Em outras palavras:
nesse período de dúvida, adquire a capacidade de fazer quem
comprovadamente faz melhor. Em certo sentido, é a solução provisória já
prenunciada pela lei da PPSA: caso a nova estatal não exista ao tempo da
celebração dos primeiros contratos de partilha, será competente a ANP.
Apresentamos, a seguir, no esforço de sanar dúvidas iniciais, um quadro
geral de atribuições típicas de cada órgão ou entidade.
Entidade CNPE MME ANP PPSA Petrobras Contratadas
Fundamento da
atuação
Política e/ou
técnica de alta
relevância.
Política e/ou
técnica de alta
relevância.
Técnica Econômica Empresarial. Empresarial
Espécie de
atuação
Delimitação de
atuação. Validação
geral.
Orientação
política. Validação
geral.
Decisões técnicas de
média e baixa
relevância. Decisões
técnicas de alta
relevância (sob
reserva política do
MME e do CNPE)
Gestão da partilha e da
comercialização do óleo
da União. Defesa do
interesse econômico da
União: fiscalização da
composição do óleo-
custo a ser ressarcido à
operadora
Exploração,
desenvolvimento e
produção de
petróleo e gás
natural
Participação
financeira. Divisão
do risco e do
proveito
econômico
Interesse
Interesse público
primário. Interesse
político
Interesse público
primário. Interesse
político
Interesse público
primário
Interesse público
secundário da União
Interesse público
secundário da
União e interesse
privado
(acionistas)
Interesse público
estratégico
Interesse privado
VI - Síntese objetiva
Ao final deste trabalho, é possível anotar o seguinte.
1. O Direito do Petróleo, mercê de descobertas na camada do pré-sal,
nunca mais será o mesmo. Introduziu-se um modelo contratual - a partilha de
produção -, um fundo social para os recursos da União, e autorizou-se a
criação de empresa pública federal, a Pré-Sal Petróleo S.A., destinada a gerir
os contratos de partilha a serem firmados.
2. Estatais são criadas por duas razões: ou para a garantia da igualdade de
competição em relação às empresas privadas com as quais competem no livre
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mercado; ou como estratégia de fuga de amarras trazidas pelo regime de
Direito Público. Como a PPSA não exercerá seu objeto empresarial num
ambiente de concorrência, ela foi criada como estatal pelo segundo motivo.
Não há critérios jurídicos que guiem a escolha pela forma sociedade de
economia mista ou empresa pública; a PPSA é uma empresa pública porque o
Estado, por seu Executivo e Legislativo federal, identificou a necessidade de
maior intervenção pública nos contratos de partilha e de comercialização do
óleo da União, além de não haver reputado como necessário ou interessante o
aporte de recursos privados nessa empreitada.
3. Estatais não devem ser classificadas como "interventivas na economia"
ou "prestadoras de serviços públicos", senão que o regime jurídico de sua
atuação deve se dar de acordo com a intervenção específica do momento.
Atualmente, percebe-se que as estatais desenvolvem mais do que as duas
funções clássicas; há, mesmo, estatais endógenas, cuja atuação se dá
prestando serviços à Administração Pública. A PPSA é o mais recente e
destacado exemplo de estatal endógena.
4. A PPSA persegue o interesse público secundário. Ela não pode ir contra
o interesse primário, mas não deve ser tida como veículo preferencial de sua
realização. Isto é: em relação à atuação da PPSA, o interesse público primário
possui efeito jurídico de bloqueio, mas não efeito jurídico de comando.
5. Há insegurança a respeito do poder de controle da PPSA sobre o
contrato de partilha. Seus poderes legais de veto e de voto podem torná-la
administradora plenipotenciária dos empreendimentos. Cogita-se da redução
de tais riscos seja pela via contratual - o contrato de partilha condicionaria o
exercício de seus poderes -, seja pela adoção de estratégias táticas de
atenuação do poder de controle da estatal.
6. Embora o art. 8o, par. 2o, da lei federal n. 12.351/2010 pretenda garantir
imunidade à PPSA pelos riscos inerentes às atividades petrolíferas, tal
circunstância não se mostra compatível seja com a Constituição da República,
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seja com o regime geral de responsabilidade civil (onde inexiste o binômio
gestão-irresponsabilidade).
7. A PPSA não é mandatária da União, nos moldes do Direito Civil,
tampouco escritório de representação dos interesses federais. É empresa
pública, que, embora controlada e vinculada à União, deve possuir suficiente
autonomia para fazer jus à sua personalidade jurídica. A PPSA age em nome
próprio, ainda que à conta da União. Entre ela e a União há uma espécie de
prestação de serviços legalmente estatuída.
8. A PPSA não exerce função regulatória, mas atividade empresarial. Não
possui capacidade normogenética, de disciplinamento do equilíbrio do
mercado, tampouco exerce poder de polícia, sendo-lhe defeso aplicar
penalidades. A circunstância de a ANP poder vir a exercer suas funções caso
ela ainda não esteja constituída à época da execução dos primeiros contratos
de partilha demonstra mais a necessidade de solução anti-vácuo institucional
do que suposta fungibilidade entre as entidades. As funções empresariais da
PPSA, contudo, são relevantes, e demonstram a intensidade da intervenção da
União na gestão do contrato de partilha de produção.
9. Não é realista imaginar que inexistirão conflitos de atribuições entre
PPSA, ANP, Petrobras e contratadas. Alguns pontos podem ser destacados
desde logo: há núcleos conceituais de sentido definidos para cada órgão ou
entidade. Assim, à ANP cabe a defesa do interesse regulatório do Estado, na
defesa do melhor interesse público; à PPSA, a busca pela maximização de
lucros do ente federativo União. Daí que a PPSA, também por força de lei (art.
8o, VII, da Lei do Petróleo), submete-se à regulação da ANP, cuja intensidade
não deve chegar ao controle de decisões estratégicas ou empresariais. Há
conflito potencial entre PPSA e Petrobras graças à natureza empresarial de
ambas - elas buscam a maximização de lucros, o que as pode situar em
posições não-convergentes -, e porque a PPSA deverá fiscalizar contas e
operações da Petrobras, com o viés, novamente, da maximização dos lucros
da União.
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10. Neste momento inicial, pode-se pensar em dois standards para o
tratamento de conflitos. O primeiro deles diz respeito ao lugar em que serão
tratados: deve-se buscar solvê-los na Câmara de Conciliação da AGU, e não
junto ao Judiciário, cujas características fomentam posições adversariais. A
segunda sugestão, espécie de teste de competência institucional, afirma que,
caso haja dúvida jurídica a respeito da solução de conflito positivo de
atribuições, será provisoriamente competente quem possa melhor
desempenhar, em concreto, a função em análise. Mostra-se interesse, ainda,
analisar as atribuições típicas de cada ator institucional - o que se apresentou
sob a forma de um quadro -, como forma de primeira orientação para a solução
das futuras controvérsias.
Rio de Janeiro, julho de 2012.