possenti, sírio. o que significa “o sentido depende da enunciação”

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O QUE SIGNIFICA "O SENTIDO DEPENDE DA ENUNCIAÇÃO"? SíRto Poss ENTI 1. O PROBLEMA A questão que aqui será brevemente discutida provém de fontes diver- sas, e tem a ver, crucialmente, com várias rediscussões da noção de sen- tido literal (também dito imanente), em decorrência, ao que parece, de dois fatos fundamentais: os sentidos indiretos ou implícitos, descritos basicamente pelas diversas pragmáticas, e os sentidos resultantes de in- terpretações (macro-atos de fala, sentidos "ocultos"), que são objeto ba- sicamente das hermenêuticas e de outras teorias da interpretação, nome- adamente as que têm vínculos com a psicanálise e com a ideologia, para não mencionar a cabala e derivativos. De uma certa forma, a questão opõe (ao invés de somar, em qualquer sentido desta palavra) a superfície lingüística, textual, supostamente una e transparente - para alguns, um código - a algum tipo de "sub-texto", cuja existência não seria casual, mas constante e constitutiva. Em suma: a questão emerge da posição segundo a qual o sentido não está no texto (nas sentenças, nas palavras) e portanto não é descoberto pela análise lingüística deste material. Ou está escondido e tem que ser desvendado por outros e variados procedi- mentos, ou, ainda mais radicalmente, é atribuído ao texto pelos leitores 1 Qualquer exemplo coletado em Ducrot ou em Grice pode exemplificar o primeiro caso. Assim, se alguém diz "São 12 horas", não se saberá o que isso quer dizer a não ser considerada a enunciação. O sentido poderia ser, alternativamente, 'está na hora do almoço' , 'Maria, ponha a mesa', 1. Se os textos não têm sentidos, se são os leitores que atribuem sentidos aos textos, de onde vieram os sentidos que os leitores atribuem aos textos? 187 '

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Page 1: POSSENTI, Sírio. O Que Significa “O Sentido Depende Da Enunciação”

O QUE SIGNIFICA "O SENTIDO DEPENDE DA ENUNCIAÇÃO"?

SíRto PossENTI

1. O PROBLEMA

A questão que aqui será brevemente discutida provém de fontes diver­sas, e tem a ver, crucialmente, com várias rediscussões da noção de sen­tido literal (também dito imanente), em decorrência, ao que parece, de dois fatos fundamentais: os sentidos indiretos ou implícitos, descritos basicamente pelas diversas pragmáticas, e os sentidos resultantes de in­terpretações (macro-atos de fala, sentidos "ocultos"), que são objeto ba­sicamente das hermenêuticas e de outras teorias da interpretação, nome­adamente as que têm vínculos com a psicanálise e com a ideologia, para não mencionar a cabala e derivativos. De uma certa forma, a questão opõe (ao invés de somar, em qualquer sentido desta palavra) a superfície lingüística, textual, supostamente una e transparente - para alguns, um código - a algum tipo de "sub-texto", cuja existência não seria casual, mas constante e constitutiva. Em suma: a questão emerge da posição segundo a qual o sentido não está no texto (nas sentenças, nas palavras) e portanto não é descoberto pela análise lingüística deste material. Ou está escondido e tem que ser desvendado por outros e variados procedi­mentos, ou, ainda mais radicalmente, é atribuído ao texto pelos leitores 1•

Qualquer exemplo coletado em Ducrot ou em Grice pode exemplificar o primeiro caso. Assim, se alguém diz "São 12 horas", não se saberá o que isso quer dizer a não ser considerada a enunciação. O sentido poderia ser, alternativamente, 'está na hora do almoço' , 'Maria, ponha a mesa',

1. Se os textos não têm sentidos, se são os leitores que atribuem sentidos aos textos, de onde vieram os sentidos que os leitores atribuem aos textos?

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'

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' tenho que ir trabalhar ', 'estamos atrasados' , etc. Piadas podem exemplificar o segundo caso, tão breve quanto claramente. Qualquer pi­ada de português poderia ser lida como tendo sempre o sentido 'o portu­guês é burro' , não importando qual seja seu texto concreto e o tópico ou o tema do texto concreto. A tese fica ainda mais forte se decidimos con­siderar os fatores mais ou menos obscuros que levam os brasileiros a tratar assim exatamente os portugueses.

Parece ser mais ou menos claro que uma das implicações destas posi­ções, especialmente da adesão a ambas, é que seria inevitável perguntar a que nos referimos quando usamos a palavra "sentido".

2. OS PASSOS

A tese que quero defender aqui é que a interpretação corrente (mais encontrável talvez nos corredores e nos cafés - lugares em que se sedimentam mentalidades e filiações -do que nos livros) do enunciado "o sentido depende da enunciação" não faz sentido nenhum. Além disso, esta interpretação é gêmea da afirmação de que o sujeito é a fonte do sentido. Ela só é possível e relativamente consistente em decorrência de uma concepção específica: a enunciação concebida como um ato indivi­dual. Mas defenderei também a hipótese de que faz muito sentido outra interpretação do "mesmo" enunciado, e essa outra interpretação faz sen­tido exatamente por considerar outra concepção de enunciação, que não a toma como um ato individual, mas sim como um acontecimento histó­rico, por um lado, e regrado, por outro.

Previamente, quero mostrar que a primeira interpretação, associada even­tualmente a Benveniste, é a ele atribuída de forma injusta- ou, como prefi­ro dizer, como efeito de má leitura ou de leitura errada. O fato de que haja leituras erradas - o adjetivo não se opõe a múltiplas, históricas,justificadas, explicáveis, mutáveis, institucionais, produzidas pelos leitores, etc - não decorre necessariamente de má fé ou de incapacidade intelectual , no senti­do corrente dessas expressões. Pode decorrer - estou disposto a admitir -daquilo que Maingueneau (1984) chama de interincompreensão constitutiva. O que quer dizer: dado um espaço disctirsivo específico ( digamos: o relati­vo à questão da "fonte do sentido"), cada um dos discursos que ocupam esse espaço vê necessariamente o(s) outro(s) sob a figura do simulacro, ou seja, não o compreende nunca como o compreendem os que o enunciam ou aderem a ele. Uma das conseqüências é que as polêmicas se tornam freqüentemente estéreis, pelo menos em relação à sua presumida função principal, porque ninguém convence ninguém, ninguém se faz compreen­der por ninguém. As polêmicas acabam tendo como única função interes-

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s~n~e dar corpo aos discursos; caso contrário, eles se reduziriam a meia <luzia ~e enunciados. Sem entrar em detalhes, fico com a hipótese de que uAma_ le1tura errada não decorre necessariamente de má fé ou de incompe­tencia. _Quanto aos desdobramentos, aqui falta espaço - e competência agora srm - para discuti-los. '

~rimeiro, quereria mostrar, pois, como se opera para fazer com que 0 sentid? c?rrente da expressão "o sentido depende da enunciação" possa ser atnbmdo a Be°:veniste ( ou, mais adequadamente, ao discurso que ele representa). O~ seJa, tentarei deixar claro como se pode ver um simula­cro de ~envemste nos textos de Benveniste, quando lido de certa posição e ~tra~es de uma seleção interessada de textos. Trata-se de um roteiro da ma le1tur~ que freqüent~mente se faz de textos desse autor. Para isso, c~meço c1tan?o um conjunto de passagens que poderiam induzir àquela le1~ura. Depois, vou mostrar que de Benveniste poderíamos tirar outra coisa, fa~er dele outra leitura, talvez até inaceitável, mas não aquela.

De~01s de percorrer textos de Benveniste, tentarei mostrar como a inter­p~etaçao coi:rente e banal do enunciado "o sentido depende da enunciação" ~ao faz se~tido em um texto importante de Pêcheux e Fuchs, por um certo tipo de razao, ne~ e°:_ Bakhti~ / Voloshinov, por razões de outro tipo. , E~bora faça c1taçoes relativamente numerosas, o leitor não encontra­

ra aqm nenhuma argumentação erudita, mas apenas, como gosto de dizer ~ de fazer, u~. apelo à logiquinha. Sem querer recuperar alguma semân­t1~a ,~ompo~1cional, vale a pena redizer o óbvio: que o sentido da expres­sao o sentid_o depende da enunciação" não escapa ao fato de que varia conforme v~e~ o~ sentidos ~e "sentido", de "depende" e de "enunciação". O ~ue ~qui mais mteressa e chamar a atenção para duas concepções mmto d1f~r_ente! de "~nunciação", em primeiro lugar, e, em segundo, para uma quahf1caçao_de depende" (e através dela, de todo o enunciado). De f~to , quando se diz que o sentido depende da enunciação, uma das posi­çoes que se quer defender pode ser uma posição que exclui totalmente qualqu~r noção de sentido literal, "convencionalmente" associado a enti­dades_ lm_g~'ísticas, ~e ~orma que .º enunciado "o sentido depende da enu~ciaçao acaba sigmficando (lei da exaustividade?) 'o sentido depen­de so/totalmente da enunciação'.

3. LENDO UM CERTO BENVENISTE

Vejamos, pois, em primeiro lugar, como certas passagens de Benveniste (1974) podem l~va: a pensar que esse autor proporia que o sentido de­p~nde_da, ~nunc1açao e, por tabela, que o sujeito é a fonte do sentido. C1tare1 vanas passagens.

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a. A enunciação é um colocar em funcionamento a língua por um ato

individual de utilização (p. 82) b. Este é o ato do locutor que mobiliza a língua por sua conta (p. 82) e. Depois da enunciação, a língua é efetuada em uma instânc_ia de

discurso, que emana de um locutor, forma sonora que atinge o ouvmte e suscita outra enunciação de volta (pp. 82-3) . .

d. Enquanto realização individual, a enunciação pode se defimr, em relação à língua, como um processo de apropriação (p. 83)

e. O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala.( ... ) A presença do locutor em sua enunciação faz com q~e ca~a instância de discurso constitua um centro de referência interno. Esta situaçao vai se manifestar por um jogo de formas específicas cuja f~çã~ é de colocar o locutor em relação constante e necessária com s?a en~c~açao (p. 83)

f. Uma terceira série ... é constituída pelo paradigma mterro .. . das formas temporais, que se determinam em relação a EGD_, c:ntro da enunciação ... [A temyoralidade] é produzida ... na e ~ela enunciaç~o ... (P; 84)

g. E preciso então distinguir as entidades que tem na l~ng_ua s~u es~a­tuto pleno e permanente daquelas que, emanand? d~ enu~ciaçao, nao ~xis­tem senão na "rede de indivíduos" que a enunciaçao ena e em relaçao ao

"aqui-agora" do locutor (p. 86) . Todas essas passagens poderiam significar ( e têm sido propagadas

como tais _ como disse, mais nos corredores e nos bares do que nos livros, mas eventualmente, também nesses) que o sujeito é a fonte do sentido e/ou que este depende da enunciação. Mas penso que se po~e mostrar que esta interpretação não é necessária e, talvez, nem seJa possível. Meu argumento consiste em mostrar que, em outros t~xt~s de Benveniste minha tese fica confirmada com a clareza do me10 dia

dos dias de sol.

4. LENDO MAIS BENVENISTE

Vejam-se, para tant?, essas afirmações de B~nveniste (1967). As várias afirmações selec10nadas do texto em questao mos_tram que, p~ra esse autor o sentido está preso às formas da língua, digamos assim, isto é, par~ ele, o sentido está na língua, e não na en~~cia9ãº;, O que certamente se pode discutir, isso sim, é se a palavra _sentido. tem o mesmo sentido aqui e na afirmação notoriamente antiben~emsteana "o sujeito é a fonte do sentido". O sentido, para Benvemste, _com? ficará claro, tem a ver com a natureza semióti,ca das línguas,_ isto e, com, os signos enquanto entidades da líng~a. E urna outra c~is~, um outro aspecto da significação (que Benvemste chama de sernantica, e

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que tem a ver com a referência) que, para ele, releva da enunciação, como se pode ver nas citações abaixo.

a .... o sentido é a noção implicada pelo termo mesmo da língua corno conjunto de procedimentos de comunicação identicamente compreendi­dos por um conjunto de locutores (p. 222)2.

b. É necessário de início compreender tudo o que implica em relação às noções de que nos ocupamos aqui - a noção de sentido e a noção de forma - a doutrina saussureana do signo.( ... ) Dizer que a língua é feita de signos é dizer antes de tudo que o signo é a unidade semiótica (p. 224).

e. Há para a língua duas maneiras de ser língua no sentido e na forma. Acabamos de defmir uma delas: A língua corno SEMIÓTICA; é necessário justificar a segunda, a que chamamos de língua como semântica. ( ... ) A noção de semântica nos introduz no domínio da língua em emprego e em ação; vemos desta vez na língua sua função de mediadora entre o homem e o homem, entre o homem e o mundo, entre o espírito e as coisas, transmi­tindo a informação, comunicando a experiência, impondo a adesão, susci­tando a resposta, implorando, constrangendo ... (p. 229)

d. Ora, a expressão semântica por excelência é a frase. ( ... ) Não se trata mais, desta vez, do significado do signo, mas do que se pode chamar de intencionado, do que o locutor quer dizer, da atualização lingüística de seu pensamento. Do semiótica ao semântico há uma mudança radical de pers-pectiva ...... a semiótica se caracteriza corno urna propriedade da língua; a semântica resulta da atividade do locutor que coloca a língua em ação. ( ... ) ... a frase, expressão do semântico, não é senão particular (pp. 229 - 30)

e. A frase é então cada vez um acontecimento diferente; ela não existe senão no instante em que é proferida e se apaga neste instante; é um acontecimento que desaparece ... Ela não pode ... comportar empre­go; ao contrário, as palavras que estão dispostas na cadeia e cujo sen­tido resulta precisamente da maneira em que são combinadas não têm senão empregos. O sentido de urna palavra consistirá na sua capacida­de de ser integrante de um sintagma particular e de preencher urna fun­ção proposicional. O que se chama de polissemia não é senão a sorna institucionalizada ... destes valores contextuais, sempre instantâneos, aptos a se enriquecer e a desaparecer, em resumo, sem permanência, sem valor constante (pp. 231 - 32)

5. BENVENISTE É ISSO

Também em Benveniste (1974 ), mas mais claramente em Benveniste (1969), pode-se ver que, para a perspectiva deste autor, se alguma coisa 2. Isso deixa claro que o sentido não vem dos sujeitos.

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depende da enunciação, esta não é o sentido, mas a referência. Vejamos uma passagem de Benveniste (1974):

a .... na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor. A refe­rência é parte integrante da enunciação. (p. 82)

De Benveniste (1969), não transcreverei trechos, como tenho feito até aqui, pela simples razão de que isso seria praticamente impossível, dado que, das páginas 64 a 67, teria que transcrever praticamente tudo. Assim, prefiro fazer um resumo desta longa passagem, deixando ao leitor a tare­fa de verificar se faço uma leitura adequada ... Diz Beneveniste que a língua combina dois modos de sgnificância, que denomina de semiótico e de semântico. O primeiro designa o modo de significação próprio do signo lingüístico, que o constitui como unidade. Ou seja, a questão única que o signo suscita para ser reconhecido é sua existência, e esta se decide por sim ou não. O que isso significa (adiantando a solução) é que o signo tem sentido ou valor, mas não referência. Assim, todo o estudo semiótico consistirá em identificar as unidades, em descrever suas marcas distinti­vas e em descobrir os critérios cada vez mais sutis da distintividade (grifos do autor). "Tomado em si mesmo, um signo é puramente idêntico a si mesmo, pura alteridade em relação a qualquer outro, base significante da língua, material necessário para a enunciação. Existe quando é reconhe­cido como significante pelo conjunto dos membros da comunidade lin­güística, e evoca para cada um, grosso modo, as mesmas associações e as mesmas oposições" (p. 65). [Creio ser impossível interpretar o que Benveniste diz aqui sobre o signo como significando que o sentido depen­de da enunciação. Ao contrário, isso significa simplesmente que o senti­do depende da língua, ou melhor, de um sistema do qual é parte]. E Benveniste continua, caracterizando agora o semântico. Com esse modo, diz ele, entramos no modo de significância que é engendrada pelo discurso (fica imediatamente claro ao leitor que o que depende da enunciação é o modo de significância semântico, que, como se viu e se verá, tem a ver com referência, não com sentido). A questão, agora, é a da produção de mensagens, que não se reduz à sucessão de unidades, já que esta não produz sentido; "é o sentido ( o "intencionado"), que se realiza e se divide em signos: havendo algo que o locutor quer dizer, esse intencionado se realizaria em signos. [Esta passagem, especialmente por causa da pala­vra "intencionado", serviria evidentemente aos que fazem coincidir in­tenção e sentido (o sentido é a intenção do falante), mas creio que seria

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~orçado (s~ria um simulacro do discurso de Benveniste) atribuir esta rnt~rpre~aça? ao texto de Benveniste. Diria que esta passagem lembra ~a~s o crrcmto do fala de Saussure do que os implícitos ou os atos de fala n~drretos ... que estariam, a depender da teoria, relacionados com a inten­çao dos falantes. No tal ~ircuito, Saussure imagina uma relação Se/Sona mente do locutor, relaçao que se materializaria finalmente numa cadeia ~alada: Portanto, não parece necessário imaginar que O sentido seja a mtençao do,fal~nte, mas ~°1: ef~it? da relação Se/So, que, no que se refere ao lo~utor, e att~a, mas nao md1v1dual... Assim, parece possível manter a relaçao do sentido com a língua, ou seja, o sentido seria o "convencio­nal':, o sistemático, o estrutural, quiçá o literal...].

E na conti_nuação deste mesmo texto que fica mais claro a que se refere _Benvemste quando trata do modo semântico de significância. Pode­~e entao ler que o semântico "toma necessariamente a seu encargo O con­Ju_nto dos referentes, enquanto ~u~ o semiótico é, por princípio, separado e mdependente de toda a referencia. A ordem semântica se identifica ao mundo?~ enunciação e ao ~niverso _do discurso" (pp. 65-6). Não pode haver_duv_1da de que se podena resmrur Benveniste no que se refere a esta questao ~1z~ndo que, para ele, o sentido releva da língua, e O que releva da enuncia~ao (portanto, da intenção do falante, no sentido característico da pragmática) é a referência.

?e alguém duvidar da justeza deste resumo e desta interpretação, po­den~ recorrer ao texto que está sendo comentado, no qual se pode ler, em segmda, q_ue s_e trata de duas ordens distintas de noções e de dois univer­sos ~?~ce1tuai_s e que isso pode ainda ser mostrado pelo fato de que

0 se~1?t1co (o signo) tem que ser apenas reconhecido, enquanto que

O se­

mant1co tem que ser compreendido, o que envia a duas faculdades dife­re~tes: ~ de ~erceber a identidade entre o anterior e o atual e a de perceber a s1gmf1caçao de uma enunciação nova (p. 66).

Co~o se pode_ ver, para Benveniste, a questão pode mesmo ser resumida da seg~mte manerra: o sentido depende da língua, o que significa, entre ou­tras c01sas, que a organização do sentido depende da estrutura de cada lín­gua. ~ qu: depende ~a enu?ciação, para este autor, é a referência, a seman~çao, a colocaçao dos signos numa determinada relação com O mundo.

. Cre10 que se ~ode su°1:a~iar o que foi dito acima da seguinte manei­ra. para Benvemste, o su1e1to não tem nada a ver com o sentido, que decorre apenas da orgamzação da língua, e, portanto, 0 sentido não pode depender da enunciação. O que pode depender da enunciação_ e ?e~ende, _e, portanto, para ,Benven~ste: pode até estar fortemente ligado as mtençoes do locutor - e a referencia que um signo terá se e quando empregado por um locutor numa instância de discurso - o que vale

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tanto para os dêiticos quanto para os outros itens lexicais, evidente­

mente.

6. BREVEMENTE, A ENUNCIAÇÃO NA ANÁLISE DO DISCURSO

Para a análise do discurso, o problema da posição de Benveniste em relação ao sentido e à enunciação não consiste em urna~ surosta ori~em do sentido no próprio sujeito nem em uma suposta dependenc1a do sentido em relação à enunciação. Como vimos, para Benveniste, o sentido releva da língua. O que releva da enunciação é a referência, e o problema quanto_a ela é mais o suposto consenso do que qualquer outro. O problema ~a teona de Benveniste é sua concepção de vida social, na qual o consenso impera­ria, e não a luta de classes, ou algum sucedâneo. Portanto, é o próprio conceito de enunciação que merece ser posto em questão, bem como mere­ce que seja posto em questão seu conceito de signo, nitidamente saussureano.

Por isso, vale a pena considerar, mesmo que brevemente, uma con­cepção diversa de enunciação, a apresentada em um parágrafo d~ Pêcheux e Fuchs (1975). Para esses autores, a enunciação não é mais um ato individual, embora esteja ligado, evidentemente, a um sujeito. Vejamos como se pode entender o que se encontra nesse texto relativamente longo, e na verdade prévio ao que mais interessa aqui:

Se definimos a enunciação como a relação sempre necessariamen­te presente do sujeito enunciador com o seu enunciado, então a~are~e claramente, no próprio nível da língua, uma nova forma de 1lusao segundo a qual o sujeito se encontra na fonte do sentido ou se identi­fica à fonte do sentido: o discurso do sujeito se organiza por referên­cia (direta, divergente) , ou ausência de referência, ~ situação ?e enunciação ( o "eu-aqui-agora" do locutor) que ele expenmenta subje­tivamente como tantas origens quantos são os eixos de referenciação (eixos das pessoas, dos tempos, das localizações). Toda atividade de linguagem necessita da estabilidade destes pontos de ancoragem para o sujeito; se esta estabilidade falha, há um abalo na própria estrutura do sujeito e na atividade de linguagem (p. 174).

O fato de que a origem do sentido no sujeito seja uma ilusão não significa, no discurso desses autores, que se trate de um equívoco a ser remediado, mas de uma característica constitutiva; tanto que, se a hipótese da ancoragem falha, o sujeito se abala, como se pode verificar bastante facilmente no caso de afásicos. De passagem, vale a pena registrar que seria obviamente interes­sante que mais analistas de discurso considerassem tais dados, vulgarmente

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postos em ques~o p~lo fato de que são obtidos em interlocuções efetivas ( o que para alguns lillplica que se esteja atuando necessariamente sob o manto da etnometod?~ogia) e raramente por psicanalistas (o que faz pensar aos pobr~~ ~e espmto que se trata, então, necessaiiamente, de alguma posição c?gmtivist~ ~obre e_ empobrecedora, como se, ao contrário de o ponto de vista const1turr o objeto, este fosse definido pelo instrumento, um modesto gravador). Mas vamos ao texto de Pêcheux e Fuchs:

... Diremos que os processos de enunciação consistem em uma série de determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que tem por característica colocar o "dito" e em conseqüên~ia rejeitar o "não-dito". A enunciação equivale pois a co­locar fronterras entre o que é "selecionado" e tomado preciso aos pou­c~s _(através do que se constitui o "universo de discurso"), e o que é reJe1tado. Desse modo se acha, pois, desenhado num espaço vazio o campo de "tudo o que teria sido possível ao sujeito dizer (mas que não diz)" ou o campo de , 'tudo a que se opõe o que o sujeito disse". Esta zona do rejeitado pode estar mais ou menos próxima da consciência e há_q~es~õe~ do interlocutor - visando a fazer, por exemplo, com que o suJe1to md1que com precisão "o que ele queria dizer" - que o fazem reformular as fronteiras e re-investigar esta zona (p. 176).

. É necessário_ f~zer alguns cometários a este texto, pelo menos para evitar que ele seJa mterpretado como dizendo apenas o óbvio. De fato, ao ler ~ue colocar o dito implica rejeitar o não dito, pode alguém achar que e~ta lendo ~ma declaração do Conselheiro Acácio, já que, diria ele, quem diz uma c01sa então não diz outra. Ocorre que o Conselheiro estaria equi­vocado ,_ duplame?te equivocado, aliás. Equivoca-se ao achar óbvio que quem diz uma coisa não diz outra porque "pensa" que se trata de coisas como a óbvia regra segundo a qual se se começa uma frase com "o" então não se começa com "este", isto é, se digo "o", rejeito "este". Ma; n~o é dessa rejeição que se trata, e sim de outra, de estirpe completamente diversa, que pode ser exemplificada assim: se digo que os sem-terra ocu­param _uma fazenda, rejeito que eles a tenham invadido, ou seja, para um certo discurso, e conseqüentemente, para um certo sujeito, não é possível dizer _"inv_a?ir", e para outro, "ocupar". Não se trata de uma seleção paradigmattca, mas de uma relação com uma posição discuriva. Mas o Conselheiro _Acácio pod_eria esta_; enganado ainda em outro sentido, pen­sando en~nc1ar uma obviedade. E que, muito mais freqüentemente do que ele podena pens~, pode-se ~izer_ mais de uma coisa ao mesmo tempo. Mais de um sentido, o que e mais comum, mas também mais de uma

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frase/oração/sentença, como o atestam trocadilhos e piadas, entre outros exemplos. Aliás , é quase sempre o que se faz , como bem o explicam as

teorias sobre polifonia/heterogeneidade. O segundo ponto desse texto que merece comentário é o que se refere ao

fato de a enunciação consistir em uma série de determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco. Trata-se agora de explicitar outro aspecto desse processo que se faz aos poucos: colocar fron­teiras entre o que é "selecionado" e o que não é selecionado não é apenas excluir o não dito, mesmo que o seja no sentido menos vulgar aqui explicitado, mas consiste, principalmente, em assinalar essa "seleção" de alguma forma (de fato, de várias formas) . Aqui mesmo, neste pequeno trecho de Pêcheux e Fuchs, o processo não é apenas exposto, apresentado, descrito, mas é claramente praticado, pois o que ocorre aqui é também um processo de enunciação. Trata-se, neste trecho, ao mesmo tempo, de dizer o que é a enunciação e de excluir o que ela não pode ser (para esta posição). Em boa parte, isso só se sabe por comparação direta com outros discursos sobre o tema, mas, em parte, isso se pode verificar aqui mesmo, analisando alguns indícios. Vejam-se as palavras e expressões entre aspas que ocor­rem no texto: "dito", "não-dito", "selecionado" , "tudo o que teria sido pos­sível ao sujejuito dizer (mas que não diz)", "tudo o que se opõe ao que o sujeito disse" , "rejeitado", "o que ele queria dizer" . Trata-se de expressões que pertencem a outros discursos (os que tomam o sujeito como sendo tipicamente um sujeito que controla seu discurso, que diz tudo e apenas o que quer) , mas que são assinaladas pelas aspas exatamente para que tal duplo pertencimento fique claro, ou seja, para que se descubra nelas um outro sentido, por um lado, e a fronteira entre o discurso que se está enun­ciando e os outros que lhe são opostos e que são, portanto, rejeitados. Mais do que isso: para evitar que a expressão "colocar o dito e rejeitar o não­dito" seja compreendida como a retomada de um discurso corrente (as escolhas impostas pela natureza paradigmática da língua, etc), segue-se a ela uma paráfrase, a saber: "a enunciação equivale, pois, a colocar frontei­ras entre o que é "selecionado" e tomado preciso aos poucos ... ". Ora, esta última seqüência nada mais é que uma forma de tomar preciso aos poucos o que vem sendo enunciado - de tomar preciso o que significa "selecionar o dito e rejeitar o não-dito" no discurso de Pêcheux e Fuchs. E a manobra continua: "deste modo se acha, pois, desenhado o campo de ... " . O leitor curioso e atento verificará que, efetivamente, uma coisa puxa outra, e que o sentido - o discurso - se constrói de fato por esse processo de enunciação (como defende, aliás, a sua maneira, a análise da conversação, em alguns exelentes trabalhos sobre a chamada repetição, que supostamente caracte­rizaria apenas esta modalidade lingüística).

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Perguntar-se-á talvez o que isso tudo tem a ver com o tema deste texto. Trata-se de mostrar que há um discurso no qual faz sentido dizer que o sentido depende da enunciação, porque aqui se mostra, nesta outra concepção de enunciação - enunciação como um processo que, sabe-se ~g~r~, tem tu~o a v~r com o interdiscurso - que ela não é um processo 1~di;1?ual ou ~ntenc1~nal (pelo menos, não só), mas um processo que é h1stonco e social. Assun, neste outro sentido de enunciação, o sentido só P?de depende_r da enunciação, ou seja, da colocação em relação de enun­ciados entre s1, em relação de paráfrase, por exemplo, de forma a demar­c~r, de alg~ma forma, mas de maneira nunca estanque, o que as expres­soes enunc1~d:s "quere~ dizer" e, portanto, o que elas não significam, nesta e~un~iaç~o, ne~te discur_so específico que se enuncia desta posição e nesta mstan~ia-1?-lem do mais, a enunciação é mais freqüentemente do que se possa tmagmar, enunciação do já dito.

7. NOTINHAS SOBRE BAKHTIN E A ENUNCIAÇÃO

No_ capítulo "Tema e significação na língua" está, creio, a doutrina de Bakhtm sobre a questão - embora talvez não em todos os seus detalhes. Acrescente-se que Q autor utiliza uma terminologia específica, o que pode provocar sust~s,, ~orque o texto começa com uma afirrnação aparente­mente contrad1tona com o que seria de esperar que fosse a doutrina de Bakhtin. Vejamos:

Um sentido definido e único, uma significação unitária, é uma propri­edade que pertence à enunciação como um todo. Vamos chamar o sentido da enunciação completa de seu tema. O tema dever ser único. Caso con­trário, _nã~ t~ríamos nenhuma base para definir a enunciação. O tema da e~unc~aça,o e, na verdade, assim como a própria enunciação, individual e ~ao reiteravel. Ele se apresenta como a expressão de uma situação histó­º:\~oncreta que ~eu o~gem à enunciação. A enunciação: "Que horas s~_o. tem um sentido diferente cada vez que é usada e também, conse­qu:nte~~n~e, na nossa terminologia, um outro tema, que depende da situ­açao his~onca concreta (histórica, numa escala microscópica) em que é pronunciada e da qual constitui na verdade um elemento (128).

_ ~ texto continua, acrescentando - como era de se esperar- que a enunciação nao e composta apenas de elementos lingüísticos, mas de todos os da situa­ção. Várias passagens do texto poderiam deixar o leitor aturdido (a não ser que ele foss~ ~artidário do s~?tido individualmente produzido), especialmen­te o comentano ao exemplo que horas são?". Se Bakhtin/Voloshinov afirma

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que o enunciado tem um sentido diferente a cada vez, poder-se-ia pen_sar que o autor defende que o sentido depende da enunciação, no sentido banvemsteano.

Mas, para sossego do leitor que tem outra posição e gostaria de estar acompanhado de Bakhtin, a continuação é consoladora:

Entretanto, se nos limitássemos ao caráter não reiterável e histori­camente único de cada enunciação, estaríamos sendo medíocres dialéticos. Além do tema ... a enunciação é dotada de uma significa­ção. Por significação, ( ... ) entendemos os elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos .... O tema de uma enunciação é na essência irredutível à análise. A significação da enunciação, ao contrário, pode ser analisada em um conjunto de significações ligadas aos elementos lingüísticos que a compõem. O tema da enunciação "Que horas são?", tomado em ligação indissolúvel com a situação histórica concreta, não pode ser segmentado. A signi­ficação da enunciação "Que horas são?" é idêntica em todas as ins­tâncias históricas em que é pronunciada; ela se compõe das significa­ções de todas as palavras que fazem parte dela, das formas de suas relações morfológicas e sintáticas, da entoação interrogativa, etc.( ... ) ... A significação é um aparato técnico para a realização do tema .. . ( ... ) O tema deve apoiar-se sobre sobre uma certa estabilidade da sig­nificação; caso contrário, ele perderia seu elo com o que precede e o segue, ou seja, ele perderia, em suma, o seu sentido (129).

A divisão que Bakhtin estabelece entre tema e significação, embora não corresponda às categorias propostas por Benveniste (semiótica e semânti­ca), não deixa de lembrar este duplo modo de funcionamento da língua, sendo um mais estável e outro mais dependente das circunstâncias.

A proposta de Bakhtin não significa que uma palavra tenha sempre um só sentido, e que as variações dependam da enunciação, como se a enunciação acrescentasse camadas a um núcleo fixo. O que caracteriza especificamente a concepção de Bakhtin é a heterogeneidade, os múlti­plos sentidos, mesmo no domínio da palavra:

... se um complexo sonoro qualquer comportasse uma única signi­ficação inerte e imutável, então esse complexo não seria uma palavra, não seria um signo, mas apenas um sinal. A multiplicidade das signi­ficações é o índice que faz de uma palavra uma palavra (130).

Esta é talvez a mais flagrante diferença entre uma concepção como a de Bakhtin, lastreada na história das enunciações relacionadas a diferen-

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tes discursos - que produz a multiplicidade de sentidos em decorrência da multiplicidade de enunciações - e uma concepção saussureana como a de Benveniste, que leva a esperar em princípio que cada signo tenha um só valor, em função de sua posição num sistema.

Não pode haver dúvida de que a concepção visualizada em Pêcheux e Fuchs é mais compatível com a de Bakhtin do que com a de Benveniste. Se, para a análise do discurso francesa, a paráfrase pode ser a matriz do senti­do, é porque enunciações concretas (históricas) põem em relação de equi­valência expressões diferentes. O inverso, que as mesmas expressões pos­sam ter sentidos diferentes, por pertencerem a discursos diferentes, toma-se ainda mais evidente. E estes talvez sejam os casos em que mais facilmente se pode aceitar que o sentido depende da enunciação: a) quando expressões que "em língua" teriam sentido diferente têm a mesma interpretação num discurso; b) quando, inversamente, uma expressão da qual se poderia di­zer que tem o sentido que tem (x em português quer dizer y), tem no entan­to, um outro, por pertencer caracteristicamente a um certo discurso - quer dizer, por estar submetida a determinadas regras enunciativas.

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BENVENISTE, E. (1967). Forma e sentido na linguagem. ln: Problemas de lingüística geral II. Campinas, Pontes. 1989. pp. 220 - 242.

--------· (1969). Semiologia da língua. Problemas de lingüísti­ca geral II. Campinas, Pontes. 1989. pp. 43 - 67.

--------· (1974). O aparelho formal da enunciação. Problemas de lingüística geral//. Campinas, Pontes. 1989. pp. 81 - 90.

MAINGUENEAU, D. (1984). Geneses du discours . Bruxelles, Pierre Mardaga Editeur.

PÊCHEUX, M. e FUCHS, C. (1975). A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas. ln: Gadet, F. e Hak, T. Por uma aná­lise automática do discurso; uma introdução à obra de Miclhel Pêcheux . Campinas, Editora da Unicamp. 1990. pp. 163-252.

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