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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Isabel Marinangelo
O Direito Penal na Tutela da Ordem Econômica
MESTRADO EM DIREITO
São Paulo
2015
1
Isabel Marinangelo
O Direito Penal na Tutela da Ordem Econômica
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação do Prof. Doutor Gustavo Octaviano Diniz Junqueira.
São Paulo
2015
2
Banca Examinadora
3
Ao meu amado marido, Alexandre, pelo
carinho, companheirismo e apoio
incondicional que me concede desde
que passou a fazer parte da minha vida.
4
AGRADECIMENTOS
Ao professor Gustavo Octaviano Diniz Junqueira, agradeço pelos
ensinamentos compartilhados e pela atenciosa e precisa orientação.
Ao professor Oswaldo Henrique Duek Marques, pelas lições fundamentais
à realização deste trabalho e pela amizade demonstrada.
À minha mãe, agradeço pela generosidade e incentivo que muito me
auxiliou para a conclusão deste trabalho.
5
RESUMO
MARINANGELO, Isabel. O Direito Penal na Tutela da Ordem Econômica.
2015. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo, 2015.
O presente trabalho versa sobre o papel do Direito Penal na tutela da Ordem
Econômica, abordando algumas das principais discussões e questionamentos
sobre a matéria. Para tanto, com o uso da já vasta bibliografia existente sobre o
tema, o estudo abarca: (i) a necessidade da adequada tutela penal da Ordem
Econômica para a atualidade, considerando os eventos históricos que
demonstraram o quão nocivas à sociedade podem ser condutas humanas
prejudiciais a este bem jurídico; (ii) a compatibilidade da existência de bens
jurídicos transindividuais com o ordenamento jurídico brasileiro, sob a ótica da
Teoria do Bem Jurídico; e (iii) a compatibilidade da tutela penal da Ordem
Econômica com os preceitos do Estado Democrático de Direito, refletindo sobre
a adequação das formas já utilizadas com esse desiderato, em especial, os
crimes de perigo abstrato. Este trabalho objetiva, assim, auxiliar de alguma forma
as discussões que têm sido travadas acerca do tema proposto, muito em voga
atualmente, por todas as repercussões e consequências que geram para o
mundo moderno.
Palavras chave: Direito Penal. Direito Penal Econômico. Ordem Econômica.
Bem jurídico. Bem jurídico transindividual. Teoria do Bem Jurídico.
6
ABSTRACT
MARINANGELO, Isabel. The Criminal Law in the Protection of the Economic
Order. 2015. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Pontifícia
Universidade Católica, São Paulo, 2015.
This paper deals with the role of the Criminal Law in the protection of the
Economic Order, addressing some of the key discussions and questions on the
subject. Therefore, using the literature about the topic, which already is vast, this
study analyzes: (i) the actual need for appropriate criminal protection of the
Economic Order, considering the historical events that demonstrated how human
activities against this juridical good could be harmful to society ; (ii) the
compatibility of the existence of transindividual rights with the Brazilian legal
order, from the perspective of the Doctrine of the Protection of Legal Goods; (iii)
the compatibility of the criminal protection of the Economic Order with the
precepts of Democratic State of law, reflecting on the adequacy of the procedures
already used with this aim, in particular, the crime of abstract danger. Therefore,
this study aims at assisting the discussions that have been held on the proposed
theme, which is currently very popular, due to the repercussions and
consequences it generates in the modern world.
Key-Words: Criminal Law. Economic Criminal Law. Economic Order. Juridical
goods. Transindividual rights. Doctrine of the Protection of Legal Goods.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9
CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS ................................................................... 14
1 BREVE HISTÓRICO DAS CONSTITUIÇÕES ........................................... 14
1.1 Surgimento das constituições: constituição liberal ............................... 14
1.2 Primeira evolução: constituição social ................................................. 17
1.3 Tendência e configuração atual ........................................................... 19
2 HISTÓRICO DA ORDEM ECONÔMICA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS............................................................................................... 23
2.1 Constituição do Império ....................................................................... 24
2.2 A Primeira República ........................................................................... 27
2.3 Constituição de 1934: a primeira constituição brasileira a disciplinar a ordem econômica ...................................................................................... 31
2.4 Constituição de 1937 ........................................................................... 33
2.5 Constituição Federal de 1946 .............................................................. 37
2.6 Constituição Federal de 1967 .............................................................. 41
2.7 Constituição Federal de 1988 .............................................................. 44
2.7.1 Constituição econômica de 1988 ................................................... 46
2.7.2 Princípios embasadores da ordem econômica vigente ................. 49
3 SOCIEDADE DE RISCO ............................................................................ 53
CAPÍTULO II – DIREITO PENAL NA TUTELA DA ORDEM ECONÔMICA: UMA APROXIMAÇÃO À TEORIA DO BEM JURIDICO.................................. 68
1 CONCEITO DE DIREITO PENAL ECONÔMICO ....................................... 68
2 TEORIA DO BEM JURÍDICO ..................................................................... 72
2.1 Conceito e evolução ............................................................................ 72
2.2 Princípios instrumentalizadores do bem jurídico .................................. 79
2.3 Proteção de bens jurídicos transindividuais ......................................... 82
3 CRIMES DE PERIGO ABSTRATO ............................................................ 95
8
3.1 Delitos preparatórios ou de preparação ............................................. 101
3.2 Delitos cumulativos (ou de cumulação) ............................................. 103
3.3 Delitos de ação concretamente perigosa (ou de perigosidade concreta) ................................................................................................................. 106
CAPÍTULO III – ORDEM ECONÔMICA COMO BEM JURÍDICO-PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ....................................................... 108
1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................................................. 108
2 DIREITO PENAL ECONÔMICO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ..................................................................................................... 112
3 PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE .............................................................. 117
3.1 Normas penais em branco ................................................................. 118
3.2 Tipo penal aberto e a gestão temerária ............................................. 120
4 PRINCÍPIO DA LESIVIDADE ................................................................... 124
4.1 Princípio da Lesividade e crime de gestão temerária ........................ 129
5 PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E SUBSIDIARIEDADE ........... 131
5.1 Princípio da intervenção mínima, princípio da subsidiariedade e gestão
temerária .................................................................................................. 134
6 PRINCÍPIO DA FRAGMENTARIEDADE ................................................. 135
6.1 Princípio da Fragmentariedade e gestão temerária ........................... 136
7 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE ................................................ 137
7.1 Princípio da Proporcionalidade e crime de gestão temerária ............. 138
7.2 Proibição de Proteção Deficiente ....................................................... 139
CONCLUSÃO ................................................................................................ 140
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 145
9
INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 disciplinou as
diretrizes a serem adotadas pela Ordem Econômica brasileira, seguindo o
exemplo das constituições que a precederam desde 1934, que inaugurou o tema
(a exemplo de ordenamentos estrangeiros) após vários acontecimentos
históricos terem demonstrado a relevância de um regramento das atividades
econômicas realizadas pelos particulares.
Atualmente, constata-se que o texto constitucional se afasta de uma
ideologia de cunho eminentemente liberal, permitindo a intervenção estatal na
economia de diversas formas; dentre elas, podemos mencionar, no âmbito do
Direito Administrativo, (i) a exploração direta de atividade econômica pelo
Estado; (ii) a regulamentação, a normatização e a fiscalização de atividades
econômicas pela Administração Pública, utilizando-se de seu poder de polícia e
(iii) os incentivos fiscais concedidos à iniciativa privada.
Esses sistemas de controle, entretanto, nem sempre têm se mostrado
suficientes para tutelar os valores previstos na Constituição, razão pela qual o
Direito Penal tem sido cada vez mais chamado para fazer frente às condutas
consideradas de maior lesividade à ordem econômica e financeira nacional.
O presente trabalho se presta justamente à análise do uso do Direito Penal
para a proteção dos bens jurídicos relativos à Ordem Econômica. Pretendemos
ponderar, no presente estudo, com base em ideias de inúmeros juristas que já
escreveram sobre o assunto, se o Direito Penal é um meio idôneo – legítimo e
eficaz – para o manejo dessas espécies de ataques a valores constitucionais.
Para o estudo proposto, considerando que o Direito Penal tem por
finalidade a proteção dos bens jurídicos mais caros à sociedade, bem como que
estes estão previstos na Constituição Federal, começaremos o trabalho
10
abordando, no Capítulo 1, um histórico acerca do início da contemplação da
Ordem Econômica nas constituições.
A partir dessa síntese, passaremos a realizar, nesse mesmo Capítulo, uma
análise histórica do surgimento e do desenvolvimento da ideia de crime
econômico, focando nossa atenção ao aparecimento e ao desenvolvimento
dessa modalidade penal na sociedade de risco em que vivemos atualmente.
Exploraremos, ainda nessa parte do trabalho, brevemente, algumas das
peculiaridades da sociedade de risco que alteram as características dos crimes
nela perpetrados, principalmente no que tange às vítimas atingidas pela conduta.
Com efeito, a sociedade de risco sucedeu a sociedade industrial, gerando
imensas transformações no estilo de vida da sociedade e dando início a uma
nova espécie de capitalismo, bastante diverso do que o antecedeu.
Essas modificações sociais e político-econômicas geraram para a
sociedade ameaças bastante diversas das que se conheciam anteriormente. Os
riscos deixaram de ser individuais para se tornarem transindividuais e passaram
a ter uma potencialidade lesiva que pode ultrapassar as fronteiras dos Estados.
Um bom exemplo do que se expõe está na crise que veio a público, em
2007: iniciada nos Estados Unidos da América em função de uma bolha no
mercado imobiliário (decorrente de falhas no sistema de créditos hipotecários),
rapidamente se espalhou por diversos outros países, gerando desemprego e
desespero para milhares de pessoas, em diversas regiões do globo.
Esse trágico evento histórico evidenciou, por um lado, a insuficiência do
sistema de controle das atividades econômicas estadunidenses e, por outro, a
gravidade e a proporção que falhas como essas podem gerar para uma
sociedade globalizada.
Esse primeiro Capítulo terá, portanto, não apenas a função de esclarecer e
elucidar como se deu o desenvolvimento da disciplina econômica no
11
ordenamento jurídico, mas, também, o escopo de demonstrar a gravidade dos
danos causados pela falta de regulamentação e controle adequado das
atividades dos particulares no âmbito econômico, servindo de pano de fundo e
corroboração para os argumentos tecidos nos capítulos subsequentes.
Apresentado esse quadro, passaremos a analisar, no Capítulo 2, o papel
do Direito Penal nesse cenário, focando nossa atenção na tentativa de responder
às seguintes perguntas: (i) a ordem econômica pode ser considerada um bem
jurídico merecedor e apto a ser tutelado pelo Direito Penal brasileiro, nos moldes
como hoje ele se encontra estruturado?; (ii) à luz das bases principiológicas do
Direito Penal atual, são legítimas as formas já adotadas por esse ramo do Direito,
na tentativa de proteger os bens jurídicos em questão?
As respostas a essas perguntas serão lastreadas, em um primeiro
momento, no estudo da Teoria do Bem Jurídico e dos princípios que norteiam a
elaboração de tipos penais materialmente constitucionais, como, por exemplo, o
Princípio da Subsidiariedade, da Fragmentariedade e do Direito Penal Mínimo.
Será realizada, para esse fim, no bojo do Capítulo 2, uma pesquisa sobre
o desenvolvimento do conceito de bem jurídico, com a finalidade de avaliar se
os atuais tipos penais que tutelam a ordem econômica são adequados e
legítimos no Estado Democrático de Direito em que vivemos.
Ainda nesse contexto, pretendemos demonstrar nossa visão – com base
na doutrina atual – sobre o polêmico crime de perigo abstrato, muito utilizado
para a tutela dos bens jurídicos concernentes à ordem econômica, em razão da
natureza coletiva que possuem.
Com efeito, os crimes de perigo abstrato, ao contrário dos crimes de perigo
concreto, dispensam a demonstração da potencialidade lesiva da conduta, ou
seja, o risco a que o autor submete o bem jurídico tutelado é presumido, fato que
é criticado por muitos juristas. Por outro lado, muitos defendem essa espécie de
tipificação para os delitos econômicos, sustentando que não haveria outro meio
12
suficientemente hábil para tutelar condutas de consequências tão amplas e, no
mais das vezes, indeterminadas.
Após essa análise, e ainda com foco nas questões acima elencadas,
pretendemos tecer, no Capítulo 3, considerações acerca da adequação dos tipos
penais que tutelam a Ordem Econômica ao Estado Democrático de Direito em
que vivemos. Para tanto, pretendemos examinar quais características devem ser
observadas na tipificação dessas espécies de delitos para que sejam
respeitados os direitos e as garantias individuais asseguradas por essa
modalidade de Estado, utilizando o crime de gestão fraudulenta para realizar
uma experimentação prática do que for abordado teoricamente.
Realizadas todas essas análises, encerraremos o trabalho com a
apresentação de uma Conclusão acerca do tema proposto, reunindo as
principais ideias trazidas ao longo do texto e respondendo as questões que nos
levaram a discorrer sobre o assunto.
Consideramos a matéria apresentada de elevada relevância para a
sociedade atual, que se apresenta como uma sociedade de risco, cada vez mais
ameaçada por condutas que fogem dos padrões conhecidos pelo Direito Penal
tradicional, principalmente por afetar um número indeterminado de pessoas.
A globalização a que assistimos atualmente, por sua vez, faz com que
danos causados à economia de determinado país afetem, não só as pessoas ali
residentes, como também outras partes do globo, o que revela a imensa
lesividade que os crimes econômicos possuem. Esse fato, aliado à dificuldade
que o Direito Penal tradicional tem experimentado para fazer frente a condutas
dessa natureza, torna de extrema importância a reflexão sobre o tema.
Para a realização do trabalho, valemo-nos da vasta bibliografia existente
sobre a matéria, tanto no Brasil como no exterior.
13
Com essa pesquisa, pretendemos auxiliar de alguma forma as discussões
que têm sido travadas acerca do tema proposto, muito em voga atualmente, por
todas as repercussões e consequências que geram para o mundo moderno.
14
CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
1 BREVE HISTÓRICO DAS CONSTITUIÇÕES
1.1 Surgimento das constituições: constituição liberal
A ideia de um regramento que contivesse os princípios básicos a serem
seguidos pelo Estado surgiu pela primeira vez em 1215, na Inglaterra. O
documento, denominado Magna Charta Libertatum, elencava alguns direitos
fundamentais dos cidadãos e previa mecanismos para sua garantia. Dentre eles,
o habeas corpus e o devido processo legal.1
Não obstante a existência desse documento, apenas a partir da primeira
metade do século XVII é que a Inglaterra inicia um período de desenvolvimento
do Estado Constitucional, marcado pelo incremento da “consciência jurídica e da
compreensão teórica das condições constitucionais da liberdade”.2
Esse desenvolvimento seguiu um modelo liberal, em razão do crescente
poder econômico da classe média da época, formada pela burguesia e por parte
da aristocracia fundiária. Não por outra razão, Maria Luiza Schäfer Streck explica
que o Estado Constitucional surgiu como um Estado Liberal, nos seguintes
termos:
O Estado Constitucional surge primeiramente como Estado Liberal, fundamentado em valores burgueses de liberdade que buscavam a limitação do poder político tanto pela sua divisão interna como pela redução de funções perante a sociedade. Esse modelo estava alicerçado em ideais que procuravam obter a superação do caos medieval e da primeira fase do Estado que superou a forma medieval:
o absolutismo.3
1 CERQUEIRA, Marcelo. A constituição na história: origem e reforma: da Revolução Inglesa de 1640 à crise do Leste Europeu. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006. 2 Idem, p. 54. 3 STRECK, Maria Luiza Schäfer. Direito Penal e Constituição – A Face Oculta da Proteção dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Livraria do Advogado, 2009, p. 28.
15
Limitar, controlar e dividir o poder era a base central da teoria política
liberal - a partir do Estado Liberal, o poder passa a ser dividido e limitado por
outros órgãos do Estado, como assembleias e tribunais.
Essa fase corresponde à primeira dimensão dos direitos fundamentais,
denominados direitos civis e políticos (Direito de Liberdade), que abrangem,
além de algumas garantias processuais, o direito à vida, à liberdade, à
propriedade, à igualdade formal e o direito de participação política. São
chamados de direitos negativos porque pretendiam a abstenção do Estado.
Em seu aspecto econômico, o liberalismo busca a independência da
economia de qualquer interferência do Estado, com a valorização ampla da
defesa da livre concorrência e da lei da oferta e da procura como mecanismo de
regulação do mercado, conforme bem ensina Paulo Bonavides:
O Estado Liberal, produto acabado do liberalismo e sua ideologia, teve assim uma infância coroada das esperanças de que vinha mesmo para libertar. Os dogmas eram claros e precisos: na ordem econômica, a livre empresa, a livre iniciativa; o laisser faire, laisser passer, a livre troca, a livre competição; na ordem política, o homem-razão, o homem-governante, o homem-cidadão, o homem-sujeito, em substituição do sub-homem ou subser, que fora genericamente aquele súdito e servo
das épocas da monarquia e do feudalismo.4
Justamente por essa razão, embora se pudesse observar nas constituições
da época normas de repercussão econômica, não havia nelas uma disciplina
sistemática da atividade econômica5. As preocupações principais dessas Cartas
constitucionais giravam em torno da garantia das liberdades individuais, o que,
de acordo com a crença da época, seria obtida principalmente por meio da
limitação do poder do Estado6.
4 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 92. 5 FILHO. Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 376. 6 As regras constitucionais atinentes à matéria na vigência do liberalismo se atinham a questões voltadas à garantia do desenvolvimento do capitalismo, tais como o direito à propriedade privada e a liberdade de trabalho indústria e comércio. Como exemplo de documentos do período que traziam essas regras, podemos mencionar o artigo 17, da Constituição Francesa de 1791 e artigo 179, XX, da Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824.
16
Pode-se afirmar, diante do exposto, que a ideia de Constituição
considerada no século XVIII como necessária e suficiente à proteção dos
interesses dos cidadãos descurava do elemento econômico, acreditando-se que
era apenas com a limitação e a estruturação do poder que se obteria a efetiva
proteção das liberdades individuais.7
O Direito Penal desse período naturalmente seguiu a mesma linha.
Chamado por muitos doutrinadores de “liberal-burguês”8, esse importante ramo
do Direito se preocupava em proteger os direitos individuais conquistados e
valorizados pela burguesia, como a vida, a liberdade e a propriedade, ou seja,
preocupava-se com bens jurídicos essencialmente individuais9. A este respeito,
especificamente sobre o Direito Penal Econômico, Fábio André Guaragni afirma:
Como se verifica, a experiência histórica do século XIX, no sentido de consagrar as liberdades individuais frente ao poder do estado, contendo-o, não dava espaço para um direito penal econômico, tutor de um interesse meta-individual. À época, os direitos individuais, ditos “de primeira geração”, estavam sendo solidificados, sendo tratados com primazia pelos vários ramos do ordenamento jurídico. Particularmente, o patrimônio, enquanto bem jurídico caro às classes burguesas, constituídas solidamente pela vivencia da economia capitalista e liberal, apresenta-se como cerne das preocupações tanto
do direito penal como do direito civil.10
Com o tempo, entretanto, o absenteísmo estatal proposto pelo liberalismo
acabou por impedir que grande parte da sociedade tivesse acesso, de fato, aos
direitos fundamentais que lhe eram constitucionalmente garantidos.
A situação se agravou com o advento da Revolução Industrial, tendo em
vista que a absoluta igualdade de todos perante a lei possibilitou que os
detentores dos meios de produção submetessem a classe operária a condições
desumanas e degradantes. Ficou claro que a igualdade formal propagada pelo
Estado Liberal gerava inegável desigualdade substancial.
7 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 375. 8 GUARAGNI, Fábio André. A origem do direito penal econômico: razões históricas. In: LUIZ ANTONIO CÂMARA (Coord). Crimes contra a ordem econômica e tutela dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 147. 9 Idem, p. 148. 10 Idem, p. 147.
17
1.2 Primeira evolução: constituição social
As primeiras constituições a tratar sobre economia foram a Constituição do
México de 31 de janeiro 1917 e, com maior expressividade, a Constituição alemã
de Weimar, de 11 de agosto de 1919. O documento de origem alemã disciplinava
de forma sistemática as linhas gerais da ordem econômica, em seção intitulada
Da vida econômica e serviu de inspiração para diversas constituições europeias
(como a espanhola de 1931) e para a Constituição brasileira de 1934.
A colocação de elementos relativos à ordem econômica nas constituições
sociais é facilmente explicada pela mudança de raciocínio da época, em especial
após 1929, quando foi exposta a fragilidade de um sistema econômico sem o
controle adequado e os graves prejuízos sociais acarretados por essa falta. Nos
períodos subsequentes à crise a seguir comentada, fala-se em Estado do Bem-
Estar Social ou Welfare State para designar a nova postura estatal, voltada à
promoção do bem-estar social e de diversos direitos coletivos.
O principal marco histórico para essa mudança de paradigmas, conforme
mencionado, foi a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque ocorrida em 1929.
A crise gerada pelo evento assumiu proporções catastróficas, assolando grande
parte dos países capitalistas – se não todos. As causas principais do colapso
foram a facilidade da compra de ações pela população e a falta de controle
estatal sobre as operações envolvendo esses papéis. A situação é bem
explicada na reportagem abaixo, que reconstitui o momento aqui tratado:
Nos últimos anos, o fenomenal desempenho das ações parecia desafiar o adágio de que tudo que sobe deve descer. Há pouco mais de um mês, em 3 de setembro, o índice de ações industriais publicados pelo diário The New York Times atingia seu ápice histórico, com 452 pontos. Em 1925, o mesmo indicador registrava 159 tentos. A facilidade da compra de ações seduziu milhares de investidores, que colocavam todo o dinheiro que tinham, e especialmente o que não tinham, em pedaços de papéis certificados. Comprar ações "na margem" pagando uma pequeníssima parcela do valor e tomando o restante emprestado do corretor ou do banco era, até dias atrás, prática absolutamente comum e aparentemente segura. Afinal, como as ações não paravam de se valorizar, bastava vendê-las, quitar o débito com o credor e embolsar o lucro. A euforia era infinita.
18
Por trás dela, entretanto, escondia-se uma realidade para a qual os otimistas faziam vista grossa. Enquanto os preços das ações subiam, disparavam também os empréstimos dos corretores e, no final do verão americano, o montante chegara a sete bilhões de dólares, tornando a especulação a grande alavanca desse crescimento. Não havia, assim, segurança ou liquidez nessa enxurrada de capital que desembarcava em Nova York. Mas a aparência firme do mercado fazia dissipar qualquer preocupação com os empréstimos, e a especulação encontrava campo aberto e convidativo para se alastrar e aumentar
ainda mais o valor das ações.11
O evento revelou as debilidades do liberalismo econômico e a
grandiosidade das consequências que uma crise nesse setor poderia gerar para
a sociedade, muitas vezes por longo período. A respeito das consequências da
crise, Fernando Herren Aguillar leciona:
Com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, praticamente todos os países foram afetados durante os anos que se seguiram. O liberalismo econômico recebia o seu mais forte golpe. Escorados na ideia de que a liberdade de iniciativa, a mão invisível e as leis de mercado regulariam satisfatoriamente a economia, os países capitalistas ocidentais se viram da noite para o dia com enormes dificuldades para restabelecer a normalidade de produção e do
comércio.12
Para conter o caos que se alastrava à época e com o intuito de proteger a
sociedade do crescente desemprego e miséria, os Estados passaram a intervir
diretamente na economia. Nos Estados Unidos, uma série de medidas
interventivas, denominadas New Deal foram adotadas pelo então presidente,
Franklin Delano Roosevelt, visando ao aumento das ofertas de emprego e à
organização da economia.13
Outrossim, diante da necessidade de combater a crise, bem como das
limitações que o sistema liberal vigente à época impunha, muitos Estados
passaram a adotar regimes autoritários – quase sempre com amplo apoio
popular –, para possibilitar medidas que propiciassem a intervenção na
economia de forma mais célere. Para melhor ilustrar esse movimento, vale
transcrever como Fernando Herren Aguillar sintetiza a situação daquela época:
11http:www//veja.abril.com.br/historia/crash-bolsa-nova-york/especial-quebrou-panico-acoes-wall-street.shtml 12 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p.44-45. 13 Idem, p. 45.
19
Em síntese, a formação da consciência nacional representa o ápice do nacionalismo, que encontrou nas crises econômicas a via rápida para sua transformação em ideologia autoritária. Os movimentos de direita souberam vislumbrar nas debilidades da democracia e da economia
liberal o campo propício para a propagação de ideais fascistas.14
Para a proteção das medidas econômicas adotadas, os Estados
autoritários passaram a se utilizar do Direito Penal, alterando profundamente a
sua feição individualista. É nesse período que surge o Direito Penal Econômico,
como bem explica Fábio André Guaragni:
Surgia a partir destes marcos históricos, o “direito penal econômico”, enquanto campo jurídico-penal destinado à tutela do bem jurídico meta-individual “ordem econômica”. A “ordem econômica”, neste contexto, era definida como intervenção do estado na economia. Tal concepção do bem jurídico “ordem econômica”, conquanto meta-individual, deixou patente a pretensão do direito penal econômico de proteger, a partir da constituição de um novo campo de criminalização primária, não os interesses das pessoas integrantes da sociedade, mas sim – e sobretudo – os interesses do próprio Estado, enquanto gestor
da economia.15
Como se vê, em 1929, a falta de controle estatal sobre as atividades
econômicas e a total liberdade até então concedida aos particulares para agirem
nessa área acarretaram uma drástica alteração na vida de milhares de pessoas,
em várias áreas do globo. Mais do que isso, possibilitaram a ascensão de
regimes autoritários que se mantiveram no governo por muitos anos e
influenciaram sobremaneira a história de inúmeros países.
1.3 Tendência e configuração atual
O final da Segunda Guerra Mundial foi marco de novas e significativas
mudanças, que perduram, em grande parte, até os dias atuais. Diversos
14 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 46.
15 GUARAGNI, Fábio André. A origem do direito penal econômico: razões históricas. In: LUIZ ANTONIO CÂMARA (Coord). Crimes contra a ordem econômica e tutela dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 151.
20
governos autoritários criados e mantidos até então passaram a se mostrar
inviáveis no novo cenário que se apresentava, fruto da vitória dos países
democráticos.
Por outro lado, a ideologia liberalista que prevaleceu no período anterior
gerou o fenômeno denominado globalização, que se caracteriza por um
aprofundamento do intercâmbio de informações, bens, capital e mercadoria
entre os diversos países do globo, bem como “pelo abandono (terceirização e
privatização) crescente do Estado em relação às funções que desempenhava,
aos poucos canalizada para a iniciativa privada e para as forças do mercado”.16
Sem dúvida, o fenômeno da globalização possibilitou uma série de avanços
tecnológicos importantes, gerando reflexos benéficos à grande parte da
população, em especial no que tange à saúde. A expectativa de vida aumentou
significativamente nos últimos anos, acompanhada de uma grande melhora na
qualidade de vida daqueles que atingem idades mais avançadas.
Evidentemente, esses avanços não seriam possíveis sem o intenso e rápido
intercâmbio de informações entre países, que permite que uma descoberta
chegue, quase que imediatamente, ao conhecimento de milhares de pessoas,
principalmente por meio da internet.
Não obstante esses e outros inegáveis benefícios gerados pela
globalização, certo é que o fenômeno contribuiu imensamente para o aumento e
para a diversificação da criminalidade, em grande parte em razão do abandono
do Estado Social, como bem explicam Paulo Afonso Brum Vaz e Ranier de
Souza Medina:
Tem-se pois, que os reflexos da globalização – a latere de algumas benesses – proporcionaram relevante contribuição para o aumento da criminalidade. Duas vertentes devem ser consideradas. A primeira, relacionada intimamente com o abandono ou desmonte do Estado Social, gerando o desemprego, o empobrecimento e o aumento da miséria, que impulsionam às práticas criminais tradicionais (...). A segunda, diz respeito a outra modalidade de delinquência, a econômica, que se beneficia da abertura das economias, da redução
16 VAZ, Paulo Afonso Brum; MEDINA, Ranier Souza. Direito Penal Econômico e Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Conceito Editorial, 2012, p. 30.
21
das distâncias, das comunicações instantâneas, das facilidades e liberdades de transito de pessoas e capitais, do incremento das formas de pagamento e da nova revolução tecnológica, que possibilita a criação de ferramentas tecnológicas que se colocam a serviço da
moderna criminalidade.17
O fenômeno da globalização é considerado, também, a principal
personagem para a caracterização da sociedade de risco, em que hoje vivemos.
Com efeito, o termo cunhado por Ulrich Beck, refere-se a uma realidade de
produção de “riscos e potenciais de auto ameaça numa medida até então
desconhecida”18. Guilherme Guedes Raposo sintetiza a situação da seguinte
maneira:
Todas essas transformações ocorridas no século XX trouxeram um novo modelo de sociedade no qual a produção de riscos pela atividade humana afeta a ordem social, econômica, política e, principalmente, o meio ambiente de todos os países, e cujo controle escapa
progressivamente aos órgãos oficiais dos Estados.19
Embora pretendamos explorar melhor essa questão mais adiante, vale
mencionar desde já que uma das características mais relevantes da sociedade
de risco é a causação de danos que afetam pessoas indeterminadas e/ou
indetermináveis, muitas vezes em diversos países.
Um dos exemplos mais atuais de disseminação mundial de resultados de
condutas nocivas ao redor do globo foi o ocorrido no ano de 2007, nos Estados
Unidos da América. O problema girou em torno das chamadas hipotecas
subprime, inicialmente criadas para possibilitar que famílias americanas de
menor renda pudessem adquirir um imóvel:
Ao contrário das hipotecas prime, concedidas a tomadores que dão a entrada tradicional e comprovam os seus rendimentos, as hipotecas subprime correspondem àqueles casos em que, ao adquirir um imóvel
17 VAZ, Paulo Afonso Brum; MEDINA, Ranier Souza. Direito Penal Econômico e Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Conceito Editorial, 2012, p. 30. 18 BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 23. 19 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Nuria Fabris Editora, 2011, p. 136.
22
através do crédito hipotecário, o comprador-devedor não é capaz de
dar qualquer entrada e/ou não têm renda comprovada.20
Por meio desse mecanismo, o comprador adquiria o crédito necessário
para a aquisição do imóvel com a hipoteca subprime e, posteriormente, poderia
migrar para o mercado prime, escapando das elevadas taxas de juros aplicadas
para compensar os riscos inerente às menores garantias. Cláudio Gontijo bem
explica esse procedimento:
A ideia desses instrumentos de crédito era conceder um espaço de tempo que seria utilizado pelo comprador para compor ou recompor seu cadastro de forma a migrar para o mercado prime. O incentivo para fazê-lo era dado pela expressiva diferença entre a taxa de juros nos dois mercados, a qual condicionava a diferença entre a taxa de juros paga durante o período inicial de dois a três anos – a teaser rate – e a taxa ajustada, uma vez tendo sido vencido esse período sem que o comprador mudasse de status. Caso não houvesse a migração para o mercado prime, o comprador estaria sujeito às elevadas taxas do mercado subprime, cujo diferencial seria mais do que suficiente para cobrir os riscos mais elevados. E num contexto de boom habitacional, a qualidade do crédito importava pouco, pois “se o comprador não pudesse mesmo efetuar os pagamentos devidos durante o período de teaser rates, o prestamista poderia tomar posse da residência, vendê-la rapidamente no mercado aquecido e recuperar qualquer perda
devido à apreciação dos preços”.21
Em 2006, entretanto, começou um processo de queda dos preços dos
imóveis, provavelmente em razão do excesso de oferta, resultante dos elevados
valores anteriormente praticados.22 Com tal movimento de queda, começou a
derrocada de todo o sistema, já que muitos mutuários dependiam da valorização
de seus imóveis para migrar para o sistema prime e obter menor taxa de juros.23
Sem conseguir essa transição e sem conseguir arcar com o pagamento da dívida
com as elevadas taxas do sistema subprime, a inadimplência passou a se elevar
vertiginosamente. Além dessas ocorrências, a queda dos preços afastou
20 GONTIJO, Cláudio. Raízes da crise financeira dos derivativos subprime. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2008. p. 17. http://www.web.face.ufmg.br/cedeplar/site/pesquisas/td/TD%20342.pdf 21 Idem, p. 19. 22 Idem, p. 17. 23 Idem, p. 24.
23
também os especuladores do mercado habitacional24, o que agravou ainda mais
o problema.
A gravidade da situação veio à tona em 2007, quando empresas e
instituições financeiras que operavam com subprimes e derivados começaram a
falir ou a entrar em sérias dificuldades financeiras, acarretando uma enorme
queda nas Bolsas de Valores americanas.
Em razão da já mencionada globalização e da interligação entre diversos
países, a crise rapidamente se espalhou, gerando desemprego e desespero para
milhares de pessoas, em diversas regiões do globo, revelando por um lado, a
insuficiência do sistema de controle das atividades econômicas estadunidenses
e, por outro, a gravidade e a proporção que falhas como essas podem gerar para
uma sociedade globalizada.
2 HISTÓRICO DA ORDEM ECONÔMICA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
Tendo em vista que o presente trabalho é dirigido à realidade do
ordenamento jurídico brasileiro, julgamos importante relatar como se deu o
desenvolvimento da ordem econômica, bem como sua constitucionalização, no
país.
Antes de adentrar na matéria propriamente dita, entretanto, cumpre
esclarecer que a história do Direito Econômico no Brasil é bastante ligada e
influenciada pelas tendências externas, mesmo aquelas provenientes de países
que com ele pouco possuem semelhança, como bem explica Fernando Herren
Aguillar:
As políticas econômicas veiculadas pelo direito são muito particularizadas em cada país. Países com diferenças estruturais muito grandes reclamam políticas econômicas igualmente distintas. A
24GONTIJO, Cláudio. Raízes da crise financeira dos derivativos subprime. Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2008. p. 24. Obtido do site: http://www.web.face.ufmg.br/cedeplar/site/pesquisas/td/TD%20342.pdf
24
história do Direito Econômico brasileiro, contudo, nem sempre se distancia daquela que se desenvolve nos países centrais da economia capitalista. Temos tradição cultural de bem receber a influência desses países, com alguns anos de defasagem. Políticas adotadas em países desenvolvidos logo chegam ao Brasil, com algumas adaptações, mas
com consequências muito diversas. 25
Feitas tais considerações, passaremos a analisar o desenvolvimento da
ordem econômica no Brasil, a partir da Independência. A escolha pela data de
início da análise se deve ao fato de o país ter seguido as regras portuguesas
durante todo o Período Colonial, e não por falta de atividade econômica na
época. Iniciaremos, portanto, com o histórico a partir da Independência em razão
de o foco do presente trabalho se alicerçar na normatização da economia no
Brasil.
2.1 Constituição do Império
Após a proclamação da Independência do Brasil, em 7 de setembro de
1822, D. Pedro I, seguindo a tendência constitucionalista que fervilhava em
diversos países da Europa, convocou uma Assembleia Constituinte para redigir
a primeira Carta constitucional brasileira. Os caminhos inovadores inicialmente
adotados por esta Constituinte, entretanto, não agradaram o monarca, que
acabou por dissolvê-la, convocando uma nova constituinte composta por
pessoas com ideias mais conservadoras. Foi o resultado do trabalho dessa
segunda assembleia que Dom Pedro I outorgou, em 25 de março de 1824, como
a primeira Carta constitucional brasileira, denominada Constituição Política do
Império do Brasil. 26
Apesar de manter o absolutismo, essa Constituição se abeberou das
ideias liberalistas da época, tendo como principal influência a Constituição
francesa de 1814. Com efeito, além de se abster de regular a ordem econômica,
característica típica das constituições liberais, essa Carta continha algumas
25 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 71. 26 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
25
disposições que eliminavam qualquer dúvida a respeito de sua opção ideológica;
dentre elas, vale mencionar: (i) o artigo 179, inciso XXII27, que garante o direito
à propriedade, e (ii) o artigo 179, inciso XXIV28, que pode ser considerado como
a primeira manifestação constitucional da livre iniciativa29.
No que tange ao modelo regulatório da economia, o período foi marcado
pela concepção patrimonialista de Estado, que já vinha vigorando desde a Época
Colonial e que se estendeu até o início do Segundo Reinado.30 Os Estados
patrimonialistas têm, como característica marcante, a confusão do patrimônio e
estrutura particular do governante com o patrimônio e estrutura pública (do
Estado), acabando por gerar uma espécie de apropriação do Estado pelo
governo. Esse modelo prevaleceu na maioria dos países, durante todo o Período
Absolutista.
Apesar de prevalecer à época as concepções liberais e patrimonialistas,
fato é que a Constituição de 1824 previu em seu bojo algumas disposições de
cunho social, conforme explicam Paulo Bonavides e Paes de Andrade:
A seguir, a Constituição outorgada, ao contrário do silencio e omissão dos republicanos de 1891, enunciava o princípio, segundo o qual, “a Constituição também garante os socorros públicos”, ao mesmo passo que declarava a instrução primária gratuita a todos os cidadãos; regras, portanto, de constitucionalismo social, tão peculiares às conquistas do
nosso século.31
A Constituição do Império foi a Carta constitucional de mais longa vigência
no Brasil, revogada apenas por ocasião da Proclamação da República, em 15
de novembro de 1889. Já no Segundo Reinado, entretanto, houve uma
importante alteração na economia brasileira. Em 1831, com a abdicação de D.
27 Art. 179. XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação. 28 Art. 179. XXIV. Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser prohibido, uma vez que não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos. 29 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 91. 30 Idem, p. 74. 31BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 132.
26
Pedro I, a regulação eminentemente patrimonialista passou a ceder espaço a
uma regulação mais desconcentrada32, ou seja, com maior liberdade para a
iniciativa privada, característica consentânea com o liberalismo vigente à
época.33
Não obstante tais observações sobre o liberalismo que de fato vigia à época
e servia como ideologia constitucional, contraditoriamente, é possível verificar
nesse período diversas medidas interventivas governamentais de grande
relevância para a economia, como bem explica Fernando Herren Aguilllar:
Em 1844, por exemplo, foi instituída a Tarifa Alves Branco, medida protecionista alfandegária adotada em represália à elevação da taxa sobre o preço do açúcar brasileiro pela Inglaterra. A medida representou um dos primeiros impulsos oficiais de incentivo à industrialização do país. É possível dizer que uma indústria privada floresceu precisamente a partir desse impulso protecionista
alfandegário.34
Ainda nesse período, mais especificamente no ano 1850, entra em vigor o
antigo Código Comercial, Lei nº 556 (hoje quase integralmente revogada), que
regulava “a prática dos atos de comércio e a constituição de sociedades,
consistindo em indispensável medida de incentivo ao desenvolvimento da
atividade produtiva comercial.”35
A vida econômica fervilhava no Brasil e, muito embora não houvesse
previsão constitucional sobre a Ordem Econômica, “o Direito Econômico surge
aqui com muita clareza, organizando as estruturas de mercado indispensáveis
ao bom desenvolvimento das atividades econômicas.”36
Vale ressaltar que, apesar do caráter liberal da Constituição do Império,
não havia questionamentos sobre a legitimidade das medidas estatais
interventivas, provavelmente porque se entendia as questões econômicas como
32 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006. 33 Idem. 34 Idem, p. 93. 35 Idem, p. 95. 36 Idem.
27
atinentes ao âmbito político, ou seja, as questões de cunho econômico eram
vistas de forma apartada das questões legais e constitucionais, razão pela qual
não houve no período produção legislativa incriminando as condutas que
atentassem contra a economia37.
2.2 A Primeira República
Após longo período de enfraquecimento da Monarquia, em 15 de novembro
de 1889, foi proclamada a República. Daniel Sarmento sintetiza a situação da
época da seguinte maneira:
A queda da monarquia, em novembro de 1889, não foi nenhuma surpresa. As bases de sustentação do regime monárquico estavam profundamente desgastadas após a “questão religiosa”, a “questão militar” e a emancipação dos escravos em indenização aos ex-proprietários. O movimento republicano vinha ganhando corpo no país, desde o começo da década de 1870. Ademais, Pedro II estava muito envelhecido, e a opinião pública tinha ojeriza ao seu genro estrangeiro,
o Conde D´Eu, visto como possível futuro governante.38
Destituído o imperador, a família real foi exilada para a Europa e, no próprio
dia 15 de novembro, foi instituído um governo republicano provisório, tendo como
presidente da República e chefe do Governo o Marechal Deodoro da Fonseca.39
O Ministro da Fazenda desse governo foi Rui Barbosa, que, com planos de
incentivar a industrialização no país, adotou inúmeras medidas econômicas,
dentre elas, a facilitação de formação de Sociedades Anônimas – “que foram
instrumento de captação de recursos e que permitiam a multiplicação de
indústrias variadas no país” 40 –, a autorização de emissão de notas bancárias,
como moeda legal por bancos privados e o aumento do imposto de importação.41
Embora tais medidas tenham sido aptas a provocar um aumento na produção
37 http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/leis-do-imperio-1 38 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 18. 39 Idem, p. 19. 40 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 104. 41 Idem.
28
nacional, teve inúmeros problemas decorrentes de falta de regulamentação
apropriada.42
Este Governo Provisório vigorou até 24 de fevereiro de 1891, quando foi
promulgada a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, bastante
parecida com a Constituição Provisória que a precedeu. Assim, seguindo o
modelo da constituição norte-americana, essa Constituição Federal adotou a
ideologia liberal43 e alterou radicalmente a estrutura então existente no país.
Dentre as principais mudanças instituídas pela nova Constituição, vale
mencionar a adoção do sistema federativo de Estado; a adoção do
presidencialismo; a separação do Estado e Igreja; a abolição da pena de morte;
a criação do habeas corpus; e a extinção dos privilégios de berço, foros de
nobreza e “ordens honoríficas”.44
Assim como a Constituição do Império, a Constituição de 1891 não tratou
da ordem econômica, seguindo as características liberais prevalentes à época.
Entretanto, previu uma série de direitos individuais, como bem explica Paulo
Bonavides e Paes de Andrade:
Apesar de não tratar da ordem econômica e social, a primeira Constituição republicana nos ministrou uma declaração de direitos “concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade”, que, além de instituir a inviolabilidade de domicílio, a liberdade de
expressão, deu-nos por igual o princípio do habeas corpus.45
Não obstante a omissão no que tange à ordem econômica, essa
Constituição incentivou a imigração visando solucionar o problema de mão de
obra que se apresentava desde o esvaziamento da política escravista. A respeito
42 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006. 43 De acordo com Paulo Bonavides e Paes de Andrade, “de um ponto de vista ideológico, a Primeira República foi o coroamento do liberalismo no Brasil.” BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 249. 44 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 251. 45 Idem, p. 253.
29
do assunto, devemos nos valer novamente das lições de Fernando Herren
Aguillar:
Após o esvaziamento da política escravista, com a Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Abolição, em 1888, o ponto fundamental para o impulso econômico de que o país necessitava se encontrava na solução do problema da mão-de-obra. E a solução encontrada foi a política de
incentivo à imigração.46
Apesar das medidas interventivas na economia adotada pelo governo da
época e aqui mencionadas, fato é que, refletindo a ideologia liberal vigente,
predominou no período a ampla liberdade de iniciativa. Com efeito, nos
ambientes fabris, era maciça a exploração da classe operária; os produtos não
tinham controle de qualidade e não havia normas regulando a concorrência, o
que favorecia a organização de monopólios.47
Em 1926 foi efetivada uma reforma constitucional, inserindo no texto o
poder do Congresso de legislar sobre o comércio e autorizar limitações a ele em
prol do bem público. Esta foi a primeira previsão constitucional tratando da
intervenção na economia. 48 Até então “a questão se restringia ao ponto de vista
do acerto científico-prático das medidas”.49
Outro avanço na matéria se deu em 1896, com a expedição do Decreto
nº 2.406. Para tentar fazer frente às diversas crises econômicas que assolavam
o país, o documento proibiu a emissão de notas bancárias por bancos privados
(que cometiam diversos abusos se valendo dessa possibilidade), atribuindo tal
faculdade apenas à União.
Posteriormente, no ano de 1920, em meio a um cenário de crise e de
endividamento externo, foi editado o Decreto nº 4.182, que instituiu uma
fiscalização sobre as operações bancárias, para coibir o jogo sobre o câmbio e
46 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 106. 47 Idem. 48 Idem. 49 Idem.
30
assegurar que fossem realizadas apenas as operações legítimas.50 As
penalidades impostas pela norma eram eminentemente administrativas, de
forma que não se pode afirmar que ela já cuida da introdução do Direito Penal
Econômico no Brasil.51
Outro marco importante na história econômica do país ocorreu em 1930,
com a chamada Revolução de 30, que culminou na vitória do grupo político
denominado Aliança Liberal. Esse movimento permitiu que Getúlio Vargas
assumisse o poder, pondo fim à “República Velha”,52 sendo de grande
importância para o surgimento do Estado Social. Paulo Bonavides e Paes de
Andrade chegam a afirmar que “os liberais de 30 abriram caminho ao
constitucionalismo do Estado Social.”53 Com efeito, muito embora tenha
suspendido diversas garantias constitucionais, dissolvido o Congresso Nacional
e adotado outras medidas antidemocráticas em diversas áreas, Vargas foi
instituidor de diversos avanços no âmbito social, editando diversas normas de
proteção ao trabalhador urbano e estabelecendo o voto secreto.
As medidas de cunho social adotadas por Getúlio Vargas estavam em
consonância com o que ocorria em outras partes do globo, que já questionavam
a conveniência do absenteísmo estatal, conforme explica Daniel Sarmento:
À época, o ambiente constitucional externo era de crise da democracia liberal. Nos Estados Unidos, o modelo do absenteísmo estatal estava sendo abandonado, com as políticas intervencionistas do Presidente Roosevelt, conhecidas como o New Deal. Na Europa, a crise era ainda mais profunda, pois a própria democracia estava em perigo, assediada
por autoritarismos e totalitarismos de diversos matizes.54
No âmbito econômico, assumiram destaques as medidas interventivas
adotadas para socorrer o setor cafeeiro, profundamente atingido pela crise
50 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 113. 51 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/1901-1929/L4182.htm 52 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 263. 53 Idem. 54 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 28.
31
econômica de 1929, já mencionada no presente trabalho. A queda na exportação
desse produto levou a uma redução das reservas de moeda estrangeira no país
e, consequentemente, a uma redução da importação, o que acabou por estimular
a industrialização nacional.55
Em 7 de abril de 1933, foi publicado o Decreto nº 22.626, que entre outras
disposições, tipificou o chamado “delito de usura”, fixando-lhe pena de prisão por
seis meses a um ano e multa de cinco a cinquenta contos de réis. Aos
reincidentes, a pena seria aplicada em dobro e considerava-se coautor o
interveniente e os representantes da pessoa jurídica eventualmente envolvida.56
A tipificação do delito de usura, a nosso ver, pode ser considerada como
um início da regulação de crimes econômicos no Brasil, o que é bastante curioso
tendo em vista que a Constituição vigente à época não tratava da Ordem
Econômica.
2.3 Constituição de 1934: a primeira constituição brasileira a disciplinar a ordem
econômica
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho
de 1934, sofreu influência da Constituição de Weimar, de 1919, e foi um marco
por inaugurar o constitucionalismo social no país - instituindo alguns princípios
do “Welfare State” - e introduzir a disciplina da ordem econômica na Carta
Constitucional. Daniel Sarmento, sobre esse documento, leciona:
55 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 114. 56 Decreto nº 22.626/33: Art. 13. É considerado delito de usura, toda a simulação ou prática tendente a ocultar a verdadeira taxa do juro ou a fraudar os dispositivos desta lei, para o fim de sujeitar o devedor a maiores prestações ou encargos, além dos estabelecidos no respectivo título ou instrumento. Penas - prisão por (6) seis meses a (1) um ano e multas de cinco contos a cinqüenta contos de reis. No caso de reincidência, tais penas serão elevadas ao dobro. Parágrafo único. Serão responsáveis como co-autores o agente e o intermediário, e, em se tratando de pessoa jurídica, os que tiverem qualidade para representá-la.
32
A Constituição de 1934 inaugurou o constitucionalismo social no Brasil. Rompendo com o modelo liberal anterior, ela incorporou uma série de temas que não eram objeto de atenção das constituições pretéritas, voltando-se à disciplina da ordem econômica, das relações de trabalho,
da família, da educação e da cultura.57
Fernando Herren Aguillar, por sua vez, explica que o dispositivo que já se
encontrava na Constituição anterior “após a reforma de 1926, e que previa o
poder do Estado de estabelecer limitações ao comércio, em caso de exigência
do bem público, foi ampliado na nova Constituição. Seu art. 5, XIX, ‘i’, atribuía à
União (e não mais ao Congresso) o poder de legislar sobre o comércio exterior
e interestadual e instituições de crédito; câmbio e transferência de valores para
fora do país; normas gerais sobre o trabalho, a produção e o consumo, podendo
estabelecer limitações exigidas pelo bem público.”58
O Título IV, que tratava da Ordem Econômica e Social era inaugurado pelo
art. 115, uma paráfrase do art. 151 da Constituição de Weimar59, que relativiza
a liberdade de inciativa, condicionando-a ao cumprimento de objetivos de
natureza social.60
Segundo Paulo Bonavides61, entretanto, a preocupação social contida
nessa Constituição não é aferível apenas pela introdução do título destinado à
disciplina da ordem econômica e social, mas, também, pela introdução de
disposições acerca da família, educação e cultura. Esses novos assuntos
tratados demonstram a alteração de ideologia, decorrente da adoção de uma
democracia social.
Ainda no título destinado ao tratamento da Ordem Econômica, a
Constituição Federal de 1934 foi bastante inovadora, ao dispor, em seu art. 121,
sobre diversos direitos trabalhistas, tais como salário mínimo (§1º, b), jornada
57 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 31. 58 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 116. 59 Idem. 60 Idem, p. 117. 61 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 322.
33
máxima de trabalho (§1º, c), repouso semanal (§1º, e) e férias anuais
remuneradas (§1º, f).
2.4 Constituição de 1937
A Constituição de 1934 vigeu até o advento do Estado Novo, iniciado com
a outorga da Constituição dos Estado Unidos do Brasil de 1937, em 10 de
novembro daquele ano. A redação da Carta constitucional de 1937 - apelidada
de “A Polaca”, por ter recebido forte influência da Constituição da Polônia de
1935 - foi atribuída a Francisco Campos, Ministro da Justiça de Getúlio Vargas,
adepto de ideologia bastante autoritária. 62
Durante toda a vigência do Estado Novo, apesar de ter sido mantida a
divisão dos três Poderes, o Presidente assumiu posição de “autoridade suprema
do Estado”, conforme disposto no artigo 73 daquele texto constitucional. O
documento previa, ainda, a existência de um Estado federativo, pondo em
prática, entretanto, uma administração eminentemente unitária. Tais
características levaram Daniel Sarmento63 a afirmar que a Constituição de 1937
teve pouca importância prática, porquanto a maior parte das instituições de que
tratou jamais foram colocadas em prática. A mesma opinião é exposta por
Washington Peluso Albino de Souza, que sustenta que a maior parte dos
dispositivos dessa Constituição não foi colocada em prática.64
Importante destacar, ainda, que nesse período foram criadas uma série de
empresas estatais, dentre elas a Vale do Rio Doce, em 1942, e a Companhia
Siderúrgica Nacional em 194165. É dessa época também o Código Penal
62 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Economica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 109. 63 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 43. 64 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Op. cit., p. 109. 65 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 116.
34
(Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) e de Processo Penal (Decreto-
lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941).
Outra característica marcante do Estado Novo foi a forte intervenção estatal
na economia, admitida pela própria Constituição, que tratava da Ordem
Econômica nos artigos art. 135 a 15566. Como bem salienta a respeito do
assunto Fernando Herren Aguillar:
O Estado Novo consagra o modelo de concentração regulatória levado a extremos. Cristaliza-se com espantosa rapidez entre as elites empresariais e intelectuais do país a ideia de que o Estado deve intervir sobre a economia, seja para afastar a ameaça ainda reverberante da crise de 1929, seja para erguer barreiras alfandegárias tidas por
indispensáveis para a consolidação da incipiente indústria nacional.67
Com efeito, a concentração de poderes nas mãos do Estado passou a ser
vista como algo necessário para conter as consequências ainda sentidas da crise
de 1929 e para atender aos novos anseios sociais, que não mais se contentavam
com o mero respeito às liberdades negativas.68 Essas características, fruto da
reação aos estados liberais que predominaram durante o século XIX,
possibilitaram o surgimento do Direito Penal Econômico, como explica Fábio
André Guaragni:
O direito penal econômico, enquanto ramo destinado à tutela da ordem econômica, apresentou condições históricas de surgimento somente a
66 Dentre os vários dispositivos da Constituição de 1937 que legitimam a intervenção estatal na economia, vale destacar os seguintes: Art. 135 - Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representados pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata e imediata, revestindo a forma do controle, do estimulo ou da gestão direta. Art. 136 - O trabalho é um dever social. O trabalho intelectual, técnico e manual tem direito a proteção e solicitude especiais do Estado. A todos é garantido o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto e este, como meio de subsistência do indivíduo, constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa. Art. 141 - A lei fomentará a economia popular, assegurando-lhe garantias especiais. Os crimes contra a economia popular são equiparados aos crimes contra o Estado, devendo a lei cominar-lhes penas graves e prescrever-lhes processos e julgamentos adequados à sua pronta e segura punição. 67 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 118. 68 Idem, p. 120.
35
partir do começo do século XX, com a constituição de estados fortes, de cariz totalitário, caracterizados pela forte intervenção na economia, seja regrando e patrulhando a atividade produtiva e distributiva de bens e serviços levada a efeito pela iniciativa privada (estados de direita), seja substituindo o capitalista e assumindo as funções próprias do ciclo econômico relativas à produção e distribuição de bens e serviços ao
consumo.69
A relação entre o momento histórico e o surgimento do Direito Penal
Econômico é bastante lógico, porquanto, conforme mencionado anteriormente,
o bem jurídico “Ordem Econômica” nasceu com o significado de intervenção do
Estado na economia. Diante disso, só fez sentido a criação do Direito Penal
Econômico quando se tornou relevante proteger a intervenção estatal na
economia com o ramo do Direito que apresenta as sanções mais severas.
Neste cenário, surge o Decreto-lei nº 869, de 18 de novembro de 1938,
definindo, nos termos de seu preâmbulo, “os crimes contra a economia popular
sua guarda e seu emprego”. Foi este o primeiro texto normativo brasileiro a
regular questões atinentes à liberdade de concorrência70.
Após tipificar cada um dos crimes ali previstos, prevendo, inclusive,
circunstâncias agravantes, o Decreto-lei nº 869/38, em seu art. 6º, dispõe que
“os crimes definidos nesta lei são inafiançáveis e serão processados e julgados
pelo Tribunal de Segurança Nacional. Neles não haverá suspensão da pena nem
livramento condicional”. A ideia de atribuir a este tribunal especial a competência
para julgar crimes econômicos era conceder a tais fatos delituosos maior rigor e
celeridade nos julgamentos, evitando que ficassem “apenas no papel as
intenções intervencionistas do Governo”.71
Importante notar que os crimes previstos pelo Decreto-lei nº 869/38 já se
referiam a vítimas indeterminadas, alterando assim a característica
69 GUARAGNI, Fábio André. A origem do direito penal econômico: razões históricas. In: LUIZ ANTONIO CÂMARA (Coord). Crimes contra a ordem econômica e tutela dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 151. 70 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 127. 71 BALZ, Christiano Celmer. O Tribunal de Segurança Nacional: Aspectos legais e doutrinários de um tribunal da Era Vargas (1936-1945). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2009. Fonte: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/92317/269346.pdf?sequence=1
36
marcantemente individualista da época anterior. A ideia era proteger o coletivo,
a sociedade, em detrimento de interesses individuais. A respeito, vale destacar
as lições de Nelson Hungria:
Mesmo o tribunal de exceção (Tribunal de Segurança Nacional) a que é confiada, na espécie, a aplicação da justiça penal, deve ter uma escrupulosa atenção na exegese da lei, para que não tome a nuvem por Juno, isto é, para que jamais identifique como crime contra a economia popular uma atividade favorável ao bem comum, embora, prima facie, não se afigure real. O que se torna imprescindível é que, de par com a correspondência objetiva entre o fato concreto e o prefigurado na lei, se reconheça o propósito de arbitrária, indevida ou ilícita locupletação, em prejuízo da bolsa do povo ou de um extenso número de pessoas. O decreto n. 869 declara guerra aos gananciosos, aos dardanários, os profiteurs e burlões, e não aos que sabem acomodar seu próprio interesse com os do público e não desconhecem que direito algum pode ser exercido em contraste com o princípio da
solidariedade social.72
Como é possível notar das lições de Nelson Hungria, a ideia era a de
resguardar a função social das atividades econômicas, seguindo a tendência de
atribuir maior valor ao bem estar e interesses coletivos.
O governo de Getúlio Vargas ficou bastante fragilizado com o fim da
Segunda Guerra Mundial e a queda dos regimes autoritários na Europa.
Outrossim, o apoio concedido pelo Brasil ao Grupo dos Aliados na busca pela
redemocratização tornou extremamente contraditória a manutenção no país de
um regime ditatorial. Nesse contexto, visando apaziguar a crescente opinião
contrária a seu governo, Vargas altera a Constituição, afrouxando alguns
aspectos mais autoritários de seu governo. Entretanto, tais medidas não foram
suficientes para amainar o descontentamento da oposição e, em 29 de outubro
de 1945, os militares, por meio de um golpe de Estado, depõem o Presidente
Vargas. Em 1946, assume a presidência Eurico Gaspar Dutra, eleito por votação
regular, que realizou uma flexibilização na característica intervencionista
72 HUNGRIA, Nelson. Dos crimes contra a economia popular e das vendas a prestações com reserva de domínio. Rio de Janeiro: Jacinto, 1939, p. 17-18.
37
2.5 Constituição Federal de 1946
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, promulgada no dia
18 de setembro daquele ano, redemocratizou o país, extinguindo os traços
autoritários da Constituição anterior.
No que tange aos direitos individuais, manteve-se o padrão criado com a
Constituição de 1934, estabelecendo-se a previsão de liberdade de culto e a
liberdade de pensamento. O federalismo foi restaurado e um sistema rígido de
separação de poderes foi estabelecido. Além disso, o Poder Legislativo foi
estruturado de forma bicameral, com Câmara dos Deputados e Senado Federal
e manteve-se o presidencialismo. Foi estabelecido o sufrágio universal direto e
secreto e o voto passou a ser obrigatório para homens e mulheres
alfabetizados.73
Em relação à ordem econômica, a tentativa foi conciliar aspectos liberais
e democráticos com o Estado Social. O contexto histórico era de combate ao
autoritarismo que vigorava na época anterior, tanto na Europa, como no Brasil.
A esse respeito, leciona Fernando Herren Aguillar:
A Constituição de 1934 foi elaborada no rescaldo da crise de 1929, revelando uma certa ojeriza ao liberalismo econômico, apesar das críticas exageradas de Francisco Campos e Vargas. Já a Constituição de 1946 foi concebida em ambiente de saturação totalitária, após oito anos de ditadura. A vitória aliada na Europa, derrotando o fascismo e o nazismo, trouxe ventos de liberdade para o país. Restabeleceu-se o pluripartidarismo. Naquele contexto, em que o repúdio ao Estado Novo adquiria força política, repudiava-se também a ideia do intervencionismo que a ele estava associada. A Constituição de 1946 foi, portanto, fortemente influenciada pelos princípios do liberalismo
político e econômico.74
A tentativa de conciliação, entretanto, é bem clara no artigo 145 dessa
Constituição, por nele estar preceituado que “a ordem econômica deve ser
organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de
73 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 51. 74 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 131.
38
iniciativa com a valorização do trabalho humano”. Corrobora esse entendimento
a redação prevista no artigo 146, que autorizava a intervenção estatal e o
monopólio de indústria ou atividade, ressalvando em seguida que “a intervenção
terá por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais
assegurados nesta Constituição”.
Sob a vigência dessa Constituição, Eurico Gaspar Dutra governa até
1950, sem maiores incidentes. Comparando o seu mandato com o de seu
antecessor, pode-se afirmar que o governo de Dutra foi marcado por uma
postura mais liberalista, com a abertura do país às importações.75
Em 1950 Getúlio Vargas é eleito Presidente, retomando seus projetos
voltados aos direitos dos trabalhadores, ao nacionalismo e ao intervencionismo
econômico.
Em 26 de dezembro de 1951 é editada a Lei nº 1.521 que, nos termos do
seu preâmbulo, “altera dispositivos da legislação vigente sobre crimes contra a
economia popular”. Tal lei trata de infrações de inquestionável natureza penal
econômica, como bem explica Heleno Cláudio Fragoso:
Um direito penal econômico é, portanto, o que se refere a fatos que lesam ou expõem a perigo uma determinada ordem econômica. São claramente crimes econômicos, em nosso sistema de direito, algumas das infrações penais previstas no art. 3.º da lei de economia popular (Lei n.º 1.521, de 1951): destruição de matérias-primas ou produtos com o fim de determinar a alta de preços; ações destinadas a impedir a competição; participação em consórcios ou conglomerados para impedir ou dificultar a concorrência, visando aumentar lucros; açambarcamento de matérias-primas ou produtos, para provocar alta dos preços; dumping ou venda de mercadorias abaixo do custo, para
liquidar a concorrência.76
Nesse segundo governo de Getúlio Vargas, várias foram as providências
no setor econômico que marcaram o desenvolvimento posterior do país77, tais
75 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 130. 76 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Direito Penal Econômico e Direito Penal dos Negócios. p.2. http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/11344-11344-1-PB.pdf 77 LIMA, Heitor Ferreira. História político-econômica e industrial do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970, p. 381.
39
como a criação da Petrobrás (Lei nº 2004, de 1953, e Decreto nº 35.308, de
1954), da Comissão de Desenvolvimento Industrial e do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico – BNDE (Lei nº 1628, de 1952)78. As medidas
sociais implementadas na mesma época, entretanto, desagradaram
imensamente as Forças Armadas e a burguesia, que começaram a pressionar o
governo, gerando uma forte ameaça de golpe militar.
Diante da crescente pressão para renunciar, Getúlio Vargas comete o
suicídio em 24 de agosto de 1954. Após o fim de seu governo, os três presidentes
que se seguiram – Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart –
acompanharam a ideia varguista de intervir na economia para conter crises e
estimular a industrialização no país79.
Em 1962 foi editada a Lei nº 4.131, que restringiu a remessa de lucros ao
exterior80, disciplinando, ainda, que os valores e depósitos bancários não
declarados na forma da lei seriam considerados ilegais, podendo ser objeto de
processo criminal.81 Posteriormente, nesse mesmo ano, entrou em vigor a Lei nº
4.137/62, objetivando regular e reprimir o abuso do poder econômico, nos termos
do seu preambulo. No art. 6º dessa lei, foi apresentada uma definição de
empresa e, em seu parágrafo único, ficou definido quem seria responsabilizado
civil e criminalmente por abuso de poder econômico.82
78 LIMA, Heitor Ferreira. História político-econômica e industrial do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970, p. 370-380. 79 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006. 80 Idem, p. 141. 81 Assim dispunha o art. 18 da Lei nº 4.131/62: “Art. 18. A inobservância do preceito do artigo anterior importará em que os valores e depósitos bancários no exterior sejam considerados produto de enriquecimento ilícito e como tais objeto de processo criminal, para que sejam restituídos ou compensados com bens ou valores existentes no Brasil, os quais poderão ser seqüestrados pela Fazenda Pública, na medida em que sejam suficientes para tanto.” O dispositivo se referia ao art. 17 dessa mesma lei, que possuía a seguinte redação: “Art. 17. As pessoas físicas e jurídicas, domiciliadas ou com sede no Brasil, ficam obrigadas a declarar à Superintendência da Moeda e do Crédito, na forma que for estabelecida pelo respectivo Conselho, os bens e valores que possuírem no exterior, inclusive depósitos bancários, excetuados, no caso de estrangeiros, os que possuíam ao entrar no Brasil.” 82 “Art. 6º Considera-se empresa toda organização de natureza civil ou mercantil destinada à, exploração por pessoa física ou jurídica de qualquer atividade com fins lucrativos.” “Parágrafo único. As pessoas físicas, os diretores e gerentes das pessoas jurídicas que possuam empresas serão civil e criminalmente responsáveis pelos abusos do poder econômico, por elas praticados.”
40
Em 1964 os militares, por meio de um golpe militar sem confronto armado,
assumem o poder. Em 09 de abril de 1964, é editado o Ato Institucional nº 1,
que, nos termos de seu preâmbulo, dispunha “sobre a manutenção da
Constituição Federal de 1946 e as Constituições Estaduais e respectivas
Emendas, com as modificações introduzidas pelo Poder Constituinte originário
da revolução vitoriosa”. Ainda de acordo com o documento, a Constituição de
1946 seria modificada apenas “na parte relativa aos poderes do Presidente da
República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a
ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar
o bolsão comunista, cuja purulência já havia se infiltrado não só na cúpula do
governo como em suas dependências administrativas.” De acordo com Daniel
Sarmento, entretanto, o texto do AI-1 não buscava fundamento de validade na
Constituição de 1946:
Era apenas por uma concessão dos militares, protagonista da tal “revolução vitoriosa”, que a Constituição continuaria a valer naquilo que
não contrastasse com o Ato Institucional editado.83
No aspecto econômico, entretanto, a vigência do regime militar não
significou grandes modificações, como bem explica Fernando Herren Aguillar:
O período pós 1964 não marca ruptura com as tendências dos períodos que o precederam, em matéria de regulação da economia. Foi um período de enorme envolvimento do Estado nas atividades econômicas, sobretudo pela atuação como empresário. Foi também o período em que se deu o chamado ‘Milagre Econômico’ brasileiro, de intenso crescimento econômico em prazo curto, porém tendo por consequência aumentar ainda mais o abismo social entre ricos e
pobres no país.84
O Ato Institucional nº 1 instala no Brasil um governo extremamente
autoritário. Desde a vigência do AI-1 até a promulgação da Constituição Federal
de 1967, três outros Atos Institucionais foram editados e diversas alterações à
Constituição vigente foram realizadas. O último dos Atos Institucionais
83 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 58. 84 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 145.
41
decretados foi o AI-4, que convocava a Assembleia Constituinte incumbida de
elaborar a Constituição Federal de 1967.
2.6 Constituição Federal de 1967
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 seguia a
ideologia do grupo moderado dos militares, impondo alguns limites para o
exercício do poder. Não obstante tais limitações, o documento determinou a
redução da autonomia dos Estados-membros, criou mecanismos que
possibilitavam a supremacia do Presidente em relação ao Legislativo e ao
Judiciário e previu eleições indiretas.
A Ordem Econômica foi disciplinada nos artigos 158 a 166 e, de acordo
com o artigo 158, tinha por fim a realização da justiça social, com base nos
princípios da liberdade de iniciativa (inciso I); a valorização do trabalho como
condição da dignidade humana (inciso II); a função social da propriedade (inciso
III); a harmonia e solidariedade entre os fatores de produção (inciso IV); e a
repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos
mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário de lucros (inciso
V). É prevista, ainda, nesse texto constitucional, a possibilidade de intervenção
do Estado no domínio econômico “quando indispensável por motivos de
segurança nacional, ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido
com eficiência no regime de competição e de liberdade de iniciativa,
assegurados os direitos e garantias individuais.”85
Embora tenha sido mantida a possibilidade de intervenção estatal na
economia, algo que se assemelhava à Constituição de 1937, as justificativas
governamentais não mais se lastreavam na busca de interesses sociais, como
bem explica Fernando Herren Aguillar:
Mas, contrariamente ao regime ditatorial da era Vargas, de inspiração fascista e com fortes pendores populistas, a Carta de 1967 parecia pouco interessada em atribuir direitos sociais como justificativa para a
85 Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Art. 157, §8º.
42
ação estatal na economia. Ao contrário, durante a implementação das políticas públicas que caracterizaram o “milagre econômico” brasileiro, a liberdade de movimentação do Estado na economia foi utilizada com frequência para o fim de achatar salários e postergar benefícios
sociais.86
A explicação para essas diferentes justificativas para o intervencionismo
estatal recai na conjuntura histórica que se apresentou nos dois períodos. Getúlio
Vargas assumiu o poder em um contexto de crise econômica, que demandava
uma reação ao liberalismo. Por sua vez, “o governo militar de 1964 se
apresentou como defensor do capitalismo em face de supostas ameaças de
socialização da economia brasileira. Dessa forma, por mais paradoxal que possa
parecer, seria contraditório que o regime militar impusesse uma política
intervencionista que não se destinasse a assegurar à inciativa privada um
espaço significativo no quadro econômico do país”.87
Em agosto de 1969 uma junta militar assume o poder e publica a Emenda
Constitucional nº 1 – por muitos considerada uma nova constituição –,
promovendo uma série de alterações na Constituição Federal de 1967. Tal
documento, embora tenha retrocedido no que tange às garantias fundamentais
(reflexo da natureza autoritária do governo da época), não significou grandes
alterações no que tange à ordem econômica do país e, por tal razão, não será
explorada nesse momento. Cumpre ressaltar, entretanto, tendo em vista os
objetivos do presente trabalho, que na década de 1980 houve uma grande
aplicação do art. 2, VI, da Lei nº 1.521/51 (Lei dos Crimes contra a Economia
Popular), como forma de incrementar a efetividade das determinações de
congelamento de preço. A respeito, vale registrar:
O art. 2º, VI, da Lei nº. 1.521/51 (Lei dos Crimes contra a Economia Popular e contra a Saúde Pública), que vigorou de fevereiro de 1952 a dezembro de 1991, definia como crime a conduta do comerciante que vendia ou expunha à venda produto acima do preço definido em tabela oficial (“tabela de congelamento de preços”). Tal dispositivo, que vigorou por quase quarenta anos, permaneceu, durante muito tempo, inaplicável, salvo em algumas épocas, como na década de 1980, durante o período de ‘congelamento’ de preços decorrentes do “Plano Cruzado”. Nesse ínterim, o tipo penal em questão tornou-se aplicável; assim, vários comerciantes flagrados vendendo produtos acima do
86 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 150. 87 Idem, p. 151.
43
preço oficial foram investigados e processados criminalmente; superado o período de tabelamento oficial, os processos já instaurados continuaram em andamento, uma vez que, a norma não fora
revogada.88
A importância da medida naquele momento histórico, bem como a razão
para o uso do Direito Penal para coibir o descumprimento das normas sobre o
congelamento de preço fica bastante claro quando analisamos o cenário da
época:
A transição do regime militar para a democracia foi marcada no Brasil pela luta contra a inflação. Na realidade, pode-se dizer que a inflação foi o grande problema econômico do país durante o século XX. A perenização do regime inflacionário perversamente se consolidou com o sistema de indexação criado para atenuar seus malefícios. Os agentes econômicos se antecipavam no aumento de preços futuro, tornando a inflação insuscetível de contenção. Segundo dados do IBGE, entre o Encilhamento (final do século XIX) e meados da década de 1990, o país viveu três surtos inflacionários: entre 1921 e 1925 (16,9% ao ano), na II Guerra Mundial (14,1% ao ano) e entre 1956 e 1967 (41,2% ao ano). Após 1964, até o início dos anos 1970, a inflação permaneceu em uma média de 20% ao ano. Com as crises do petróleo, em meados da década de 1970, a inflação acelerou para 40% ao ano ao final da década e 100% ao ano no início da década de 1980, causando enormes distorções ao funcionamento geral da economia
brasileira.89
Como se pode aferir dos trechos acima colacionados, foi no momento mais
crítico de inflação e crise econômica que o Direito Penal (ramo com penalidades
e consequências mais severas do Direito) passou a ser aplicado com maior
frequência. Tal fato revela a tendência (que será melhor explorada a seguir) de
se recorrer ao Direito Penal quando os demais ramos do Direito se mostram
insuficientes para conter determinada situação maléfica à sociedade. Embora tal
medida guarde relação com o Princípio da Intervenção Mínima, é importante
avaliar se os mecanismos de que dispõe o Direito Penal podem ser utilizados
legitimamente para as situações econômicas. Esta questão será explorada nos
próximos capítulos do trabalho.
O governo ditatorial perdurou até 1985. Entretanto, durante seu período de
vigência foi se desgastando, gradualmente, com as reivindicações da sociedade
88 ESTEFAM, André. Direito Penal: volume 1. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 135. 89 AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2006, p. 160.
44
que clamava pelo restabelecimento das liberdades individuais. Foi com o
advento do governo de Ernesto Geisel, iniciado em 1974, que efetivamente se
iniciou a abertura política, embora em ritmo bastante lento.
Em 1984 a economia brasileira se encontrava extremamente deteriorada,
com altos índices de inflação. Nesse mesmo ano, o Colégio Eleitoral elegeu
Tancredo Neves para Presidente - o que para muitos historiadores significou um
marco do fim da Ditadura. Antes de assumir a Presidência, entretanto, Tancredo
adoeceu (faleceu um mês depois), possibilitando que o seu vice, José Sarney
assumisse o governo do país. Foi no governo de José Sarney que foi elaborada
e promulgada a Constituição Federal de 1988, até hoje em vigor.
2.7 Constituição Federal de 1988
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que até hoje
vigora no país, foi promulgada em 5 de outubro daquele ano. O documento
instaura no Brasil um Estado Democrático e Social de Direito, revelando, assim,
uma “íntima e indissociável vinculação entre os direitos fundamentais e as
noções de Constituição e Estado de Direito”, conforme ensina o jurista Ingo
Wolfgang Sarlet90.
Justamente por essa razão, a Constituição brasileira de 1988 colocou os
direitos fundamentais em posição topográfica de destaque, o que, ainda segundo
Ingo Sarlet, “além de traduzir maior rigor lógico, na medida em que os direitos
fundamentais constituem parâmetro hermenêutico e valores superiores de toda
a ordem constitucional e jurídica, também vai ao encontro da melhor tradição do
constitucionalismo na esfera dos direitos fundamentais.”91
Com efeito, nos Estados Democráticos de Direito, o Direito deve ser
instrumento apto a garantir os direitos fundamentais – estes entendidos como
90 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 58. 91 Idem, p.66.
45
aqueles previstos na Constituição como tal e/ou, conforme defende Ingo Sarlet,
aqueles que contêm decisões fundamentais sobre a estrutura do Estado e da
sociedade.
Com esse perfil ideológico, de grande valorização dos direitos
fundamentais, a Constituição de 1988 demonstrou uma forte reação contra o
autoritarismo vigente no período que lhe antecedeu. Outrossim, a adoção de um
regime democrático foi definitivamente consagrada com a garantia ao direito ao
voto direto, secreto e igual para todos e com a determinação de eleições diretas
para os cargos de Presidente da República, Governador de Estado e Distrito
Federal, Prefeito Municipal, Deputado Federal, Estadual e Distrital, Senador e
Vereador.92 A atual Constituição estabeleceu, ainda, novos direitos trabalhistas,
tais como a jornada máxima de trabalho de 44 (quarenta e quatro) horas
semanais, a garantia do direito à greve e a instituição do seguro desemprego e
do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço93.
Outra inovação importante realizada pela Constituição Federal de 1988
se deu na forma de tratamento da ordem econômica. Até o seu advento, as
constituições colocavam em um primeiro artigo noções introdutórias dos
elementos posteriormente apresentados. A atual Carta Magna optou por dividir
o Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira) em capítulos, agrupando os
artigos por temas específicos94.
De acordo com Washington Peluso Albino de Souza, “ao tratar dos
‘Princípios Gerais da Atividade Econômica’, o legislador constituinte situou no
primeiro artigo do Capítulo I (art.170) os ‘Fundamentos’, os ‘Objetivos’ e os
‘Princípios’ para todo Título VII, portanto, específicos da ‘Ordem Econômica e
Financeira’, segundo a Carta de 1988.”95
92 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. 93 Idem. 94 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Economica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 113. 95 Idem, p. 114.
46
Tendo em vista os objetivos do presente trabalho, passaremos a analisar
com maior profundidade a atual constituição econômica brasileira no próximo
item.
2.7.1 Constituição econômica de 1988
A expressão “Constituição Econômica” surgiu com o advento da
Constituição de Weimar e se refere às disposições constitucionais que tratam da
organização jurídica econômica, bem como dos princípios e diretrizes a serem
observadas pelos Estados ao regularem a economia vigente, conforme explica
Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
O Direito Constitucional Econômico tem, pois, como objeto as bases da organização jurídica da economia. Seu propósito é estabelecer o controle da economia, porque enseja fenômenos de poder. Consiste, assim, nas regras jurídicas que regem a atuação do indivíduo, dos grupos, do Estado, no domínio econômico. Compreende, pois, as normas jurídicas básicas que regulam a economia, disciplinando-a, e especialmente controlam o poder econômico, limitando-o, com o fito de
prevenir-lhe os abusos.96
Neste diapasão, vale registrar desde já que a importância da análise da
“Constituição Econômica” para o presente trabalho reside no fato de que o Direito
Penal, ao tutelar a Ordem Econômica, necessita sempre ter em vista os
princípios e diretrizes que devem ser observadas pelo Estado na regulação da
economia, para que não se torne um empecilho ao desenvolvimento nacional.
Com efeito, considerando que o ordenamento jurídico é único, bem como
que tem por escopo o regramento para o bem estar social, não se pode admitir
que sejam incriminadas condutas que estejam de acordo com os objetivos
almejados em determinada matéria. Da mesma forma, não se pode admitir
interpretações que levem à penalização de atos incentivados ou consentâneos
com as diretrizes estatais.
96 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 378.
47
Tais afirmações podem ser inferidas do próprio conceito dado por Eros
Roberto Grau á “Constituição Econômica”, que, segundo o autor, estipula as
normas essenciais da economia, das quais devem decorrer as demais normas
da ordem jurídica que regulam a matéria:
Conceituar-se-á, então, como “o conjunto de preceitos e instituições jurídicas que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econômico, instituem uma determinada forma de organização e funcionamento da economia e constituem, por isso mesmo, uma determinada ordem econômica” (Vital Moreira); ou definida a partir de sua função, como “formada pelo ordenamento essencial da atividade económica – contendo os princípios e as normas essenciais ordenadoras da economia, dos quais decorrem sistematicamente as restantes normas da ordem jurídica da economia” (António L. Souza
Franco).97
Esclarecida a relevância do presente estudo para o trabalho, importa
registrar que diversos autores (inclusive os dois supramencionados) consideram
possível diferenciar, para fins didáticos, a constituição econômica material da
constituição econômica formal, assim como se faz com a constituição política.
Em seu aspecto formal, a constituição econômica pode ser definida como “o
conjunto de normas que, incluídas na Constituição, escrita, formal do Estado,
versam o econômico.”98 Até o momento, não há constituição econômica que não
esteja no bojo de uma constituição política. Na acepção material, constituição
econômica “abrange todas as normas que definem os pontos fundamentais da
organização econômica, estejam ou não incluídas no documento formal que é a
constituição escrita. Frequente é, aliás, que a Constituição econômica material
seja mais extensa que a Constituição formalizada”.99
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conforme já
mencionado, destina o seu Título VII para disciplinar a ordem econômica e
financeira do país, inaugurando o assunto com a apresentação dos princípios
gerais da atividade econômica (Capítulo I, Título VII). Tendo em vista o seu
caráter dirigente, é certo afirmar que as disposições nela contidas acerca da
97 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 14 ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2010, p. 77 - 78. 98 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 378. 99 Idem, p. 378.
48
economia confere a ela propriedade de plano global normativo, como bem
explica Eros Roberto Grau:
Que a nossa Constituição de 1988 é uma Constituição dirigente, isso é inquestionável. O conjunto de diretrizes, programas e fins que enuncia, a serem pelo Estado e pela sociedade realizados, a ela confere o caráter de plano global normativo, do Estado e da sociedade. O seu art. 170 prospera, evidenciadamente, no sentido de implantar uma nova ordem econômica.100
A análise da atual Constituição Econômica brasileira nos permite afirmar,
também, que o modelo econômico vigente no país assume uma feição bastante
peculiar, porquanto possui características neoliberais e intervencionistas. Essa
característica é consequência das divergências de ideias dos participantes da
Assembleia Nacional Constituinte.101
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery explicam que a ordem
econômica brasileira está subordinada às regras inerentes a um Estado
Democrático de Direito e à construção de uma sociedade justa, livre e solidária,
ressaltando:
Subordinar a ordem econômica aos objetivos fundamentais da República não permite afirmar que a ordem econômica está subordinada ao Poder Estatal. O Estado é um agente econômico que pode interferir na economia para preservação da livre concorrência; apesar de ser um dos agentes mais importantes do processo econômico, não pode interferir de maneira que estabeleça um dirigismo econômico que comprometa a livre iniciativa, sem dizer que toda forma de intervenção deverá estar previamente regulamentada, e subordinada a todos os princípios norteadores da Administração Pública (CF 37), podendo, inclusive, ser controlada judicialmente (CF
5.º XXXV).102
Os princípios gerais da atividade econômica encontram-se elencados no
caput e incisos do artigo 170 da Constituição Federal e, conforme já mencionado,
devem nortear a atuação do Direito Penal na economia. Não se pode olvidar,
100 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 14 ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2010, p. 174. 101 CLARK, Giovani; CORRÊA, Leonardo. Teoria das Normas e o Direito Econômico: Um diálogo com a Filosofia do Direito. In: SOUZA, Washington Peluso Albino de; CLARK, Giovani (Coord.). Direito econômico e a ação econômica estatal na pós modernidade. São Paulo: LTr, 2011, p. 39. 102 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 4.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 845.
49
entretanto, que outros princípios adotados pela Constituição também repercutem
diretamente no âmbito econômico e, portanto, em todo o ordenamento jurídico
criado para ele – como, por exemplo, o princípio do Estado de Direito e o do
Estado Federal.
Passaremos, agora, a analisar cada um dos principais valores trazidos
pela atual Constituição como embasadores da ordem econômica vigente no
país.
2.7.2 Princípios embasadores da ordem econômica vigente
O art. 170 da Constituição Federal afirma que a ordem econômica tem
“por fim assegurar a todos existência digna”, repetindo e ratificando a importância
da dignidade da pessoa humana, elencada no inciso III do artigo 1º como
fundamento da República Federativa do Brasil. A existência digna, ainda de
acordo com o artigo 170 da Constituição, será garantida conforme os ditames da
justiça social. Este conceito tem por base a igualdade de direitos e a
solidariedade.
Nesse sentido, o que a justiça social busca é a maior igualdade entre os
cidadãos, pregando a maior proteção daqueles sujeitos que se encontram em
condição desprivilegiada, ou seja, a justiça social parte de uma ideia de
isonomia. Assim, é possível afirmar que a justiça social é uma espécie de justiça
distributiva, que se aplica aos desiguais. Ao contrário da justiça comutativa que
é destinada aos iguais.
Nesse sentido, podemos verificar uma adequação do dispositivo em
análise com objetivo fundamental da República previsto no inciso III, do artigo 3º
da Constituição Federal, qual seja: “erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais”. A redução das desigualdades
sociais e regionais é repetida, ainda, como um dos princípios da ordem
econômica brasileira no inciso VII do artigo 170 da Constituição.
50
O mesmo dispositivo afirma, ainda, que a ordem econômica é fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, repetindo, assim, dois outros
fundamentos da República brasileira, dispostos no inciso IV do artigo 1º. Essa
disposição, de acordo com Eros Grau, importa em conferir ao trabalho e ao
trabalhador tratamento peculiar. Vale transcrever as lições do aludido autor a
respeito do assunto:
Esse tratamento, em uma sociedade capitalista moderna, peculiariza-se na medida em que o trabalho passa a receber proteção não meramente filantrópica, porém politicamente racional. Titulares de capital e de trabalho são movidos por interesses distintos, ainda que se o negue ou se pretenda enunciá-los como convergentes. Daí porque o capitalismo moderno, renovado, pretende a conciliação e
composição entre ambos.103
Ultrapassado o caput do artigo 170 da Constituição, passam a ser
enumerados os princípios contidos nos seus incisos. O primeiro deles, previsto
no inciso I, trata da soberania nacional. Este princípio, de acordo com Eros
Roberto Grau104, cumpre dupla função: trata-se de um instrumento para garantir
a todos existência digna e uma diretriz a ser seguida, um objetivo a ser
alcançado. A soberania econômica é de extrema importância para o país, pois
em última análise, possibilita a soberania política, prevista como fundamento da
República pelo art. 1º, inciso I, da Constituição Federal. Importante ressaltar que
esse primeiro princípio não prega o isolamento político, mas a participação do
país no mercado internacional, em condições de igualdade.105
O segundo inciso do artigo 170, por sua vez, traz o princípio da
propriedade privada, que deve ser tratada juntamente com o princípio da função
social da propriedade (inciso III), por estarem atrelados um ao outro. Com efeito,
a propriedade privada é direito fundamental de todo e qualquer cidadão, porém
desde que cumpra sua função social.
103 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 14 ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2010, p. 200. 104 Idem, p. 230. 105 Idem, p. 232.
51
A função social da propriedade se coaduna com o fim da ordem
econômica, qual seja, o de “assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social”, porquanto condiciona a propriedade privada à
realização de uma função dirigida à justiça social. José Afonso da Silva, ao tratar
desse assunto, explica que o sistema de apropriação privada tende a organizar-
se em empresas, que também estão sujeitas ao princípio da função social da
propriedade. Vale reproduzir as mencionadas lições:
O sistema de apropriação privada, como no sistema de apropriação pública ou social, tende a organizar-se em empresas, sujeitas ao princípio da função social (...). Vimos já que o nosso sistema é fundamentalmente o da propriedade privada dos meios de produção, o que revela ser basicamente capitalista, que a vigente Constituição tenta civilizar, buscando criar, no mínimo, um capitalismo social, se é que isso seja possível, por meio da estruturação de uma ordem social intensamente preocupada com a justiça social e a dignidade da pessoa
humana.106
Em seguida, o inciso IV do artigo 170 trata da livre iniciativa, que envolve a
liberdade de indústria e comércio, liberdade de empresa e liberdade de contrato.
Essa liberdade é protegida, também, por força do parágrafo único do mesmo
dispositivo, que determina: “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer
atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos,
salvo nos casos previstos em lei”. O princípio em comento possui raízes no
modelo liberal de economia e exerce um importante papel no desenvolvimento
econômico, tendo em vista que quanto maior o número de ofertas disponíveis,
maior a competitividade e, consequentemente, a margem de escolha dos
cidadãos.
Esse princípio constitui um claro exemplo de baliza constitucional ao Direito
Penal dirigido à tutela da Ordem Econômica, tendo em vista que não se pode
admitir a criminalização de condutas que promovam a livre iniciativa – salvo,
evidentemente, se após uma ponderação de valores, a medida e o sacrifício
sejam imprescindíveis para a proteção de outro bem jurídico de relevância igual
ou maior à da Ordem Econômica.
106 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2006, p. 813.
52
Vale lembrar, outrossim, que todos os princípios elencados nos incisos do
artigo 170 devem ser lidos em conjunto com o seu caput. Isso significa que a
liberdade de concorrência deve ser condicionada ao próprio fim da ordem
econômica, ou seja, “assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames
da justiça social”. De acordo com Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade
Nery, as condições que asseguram a livre concorrência são:
a) atomicidade do mercado: tanto do lado da oferta quanto da procura: existe um grande número de unidades econômicas nenhuma delas com dimensão ou força suficiente para influenciar a produção ou o preço; b) homogeneidade do produto: todas as empresas de uma indústria fabricam bens que os adquirentes consideram idênticos ou homogêneos, não existindo razão para se preferir o bem de uma ou de outra; c) livre acesso à indústria: quem deseja dedicar-se a uma certa exploração pode fazê-lo, sem restrições ou demoras; os ofertantes que integram a indústria não podem opor-se à entrada de novos concorrentes; d) transparência do mercado (publicidade completa): todos os participantes no mercado possuem conhecimento completo de todos os fatores significativos do mesmo; e) perfeita mobilidade dos agentes econômicos: cada um dos vendedores pode dirigir sua oferta a qualquer um dos compradores e cada um destes pode encaminhar a sua procura a qualquer um dos ofertantes; f) entre as indústrias, existe
uma perfeita mobilidade dos fatores de produção.107
Os incisos V e VI do artigo 170 tratam respectivamente da defesa do
consumidor e da defesa do meio ambiente, fortalecendo ainda mais a ideia de
que a ordem econômica deve visar à dignidade da pessoa humana e o bem-
estar social.
A busca do pleno emprego, por sua vez, princípio elencado no inciso VIII
do artigo 170 da Constituição Federal, é um princípio diretivo da economia, e
procura que seja garantido emprego a todos que estejam em condições de
exercer uma atividade produtiva, como bem explica José Afonso da Silva:
A busca do pleno emprego é um princípio diretivo da economia que se opõe às políticas recessivas. Pleno emprego é expressão abrangente da utilização, ao máximo grau, de todos os recursos produtivos. Mas aparece, no art. 170, VIII, especialmente no sentido de propiciar trabalho a todos quantos estejam em condições de exercer uma atividade produtiva. Trata-se do pleno emprego da força de trabalho
107 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 4.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 848.
53
capaz. Ele se harmoniza, assim, com a regra de que a ordem
econômica se funda na valorização do trabalho humano.108
Por fim, o artigo 170, inciso IX, da Constituição Federal, estabelece que as
empresas de pequeno porte, constituídas sob as leis brasileiras e com sede e
administração no País, devem ter tratamento favorecido. Este dispositivo se
justifica por incitar o desenvolvimento da indústria nacional, colaborando para a
soberania mencionada no inciso I do Art. 170. Além disso, indica que o Estado
deve fomentar o pequeno empreendedor, considerando ser ele um importante
gerador de emprego e renda para a população.
Diante de todo o exposto neste capítulo, vale repetir que o Direito Penal,
ao tutelar a ordem econômica brasileira, deve ser balizado pelos princípios aqui
mencionados, tanto no momento da elaboração legislativa quanto na aplicação
da lei. Cabe a ele, por sua própria função, agir de forma a coibir condutas
prejudiciais à sociedade, sem atingir os atos que vão ao encontro das
necessidades sociais.
Em outras palavras, aplica-se aos crimes econômicos como um todo o que
Nelson Hungria ensinou ao tratar do crime contra a economia popular, no trecho
já transcrito neste trabalho: “(...) a aplicação da justiça penal, deve ter uma
escrupulosa atenção na exegese da lei, para que não tome a nuvem por Juno,
isto é, para que jamais identifique como crime contra a economia popular uma
atividade favorável ao bem comum (...)”.109
3 SOCIEDADE DE RISCO
O que configura a sociedade de risco, não é só a mera existência de riscos,
mas o fato desses riscos serem complexos, globais, imprevisíveis, invisíveis e
muitas vezes imperceptíveis.
108 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2006, p. 797. 109 HUNGRIA, Nelson. Dos crimes contra a economia popular e das vendas a prestações com reserva de domínio. Rio de Janeiro: Jacinto, 1939, p. 17/18
54
As crises econômicas contemporâneas normalmente são desencadeadas
por uma série de disfunções estruturais complexas e inter-relacionadas, que
envolvem aspectos sociais, comportamentais, econômicos e políticos, sem que
seja possível obter uma visão precisa dos problemas que se multiplicam, e,
consequentemente, precisar a forma mais eficaz de enfrentá-los.
Nesse sentido, é possível afirmar que o atual estágio de evolução científica
e tecnológica, no qual são produzidos, além de riquezas e desenvolvimento
econômico, uma série de riscos ambientais, sociais e econômicos, configura a
transição de uma sociedade industrial para uma sociedade de riscos, sendo tais
riscos caracterizados pela invisibilidade, a globalidade e a imprevisibilidade..
A teoria da sociedade de risco, desenvolvida pelo sociólogo alemão Ulrich
Beck, fundamenta-se em um contexto no qual a proliferação dos riscos e perigos
decorrentes dos avanços da modernidade, sobretudo a devastação do meio
ambiente em escala global, colocam em dúvida o futuro da humanidade,
conforme exposto no trecho abaixo:
É precisamente essa transformação de ameaças civilizacionais à natureza em ameaças sociais, econômicas e políticas sistêmicas que representa o real desafio do presente e do futuro, o que justifica o conceito de sociedade de risco. Enquanto o conceito da sociedade industrial clássica se apoiava na contraposição entre natureza e sociedade (no sentido do século XIX), com o conceito de sociedade (industrial) de risco parte-se da “natureza” integrada à civilização, ao mesmo tempo que acompanha, passando por todos os subsistemas
sociais, a metamorfose das violações sofridas.110
A passagem de uma primeira modernidade, fundada na luta de classes, e
papéis sociais pré-definidos, em que havia limites visíveis para o progresso
técnico-científico e previsibilidade de suas consequências, para uma segunda
modernidade, marcada pela complexidade das formas sociais, dinamismo
industrial e imprevisibilidade, configura, segundo Beck111, uma “modernização
reflexiva”, que se baseia em uma ideia de “autoconfrontação das bases da
110 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 99. 111 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997, p. 11-72.
55
modernização com as suas próprias consequências”, conforme explica Luciana
Carneiro da Silva:
Segundo Beck, o conceito de modernização reflexiva não implica, como poderia sugerir, reflexão, mas antes a ideia de autoconfrontação das bases da modernização com as suas próprias consequências. No entanto, longe de significar uma opção que se pudesse escolher ou rejeitar no decorrer de disputas políticas, tal confronto/transição ocorreu de forma autônoma, indesejada e despercebida, seguindo o padrão dos efeitos colaterais que, de modo cumulativo e latente, ensejam os riscos e as ameaças aptos a questionar e, finalmente, destruir, na ótica do autor, as bases da sociedade industrial.112
A respeito da modernização reflexiva, Ulrich Beck explica que esse
conceito se baseia na possibilidade de os sujeitos refletirem sobre “as condições
sociais de sua existência e assim modificá-las”113. Nesse sentido, esclarece o
autor que os sujeitos dessa modernização podem ser os agentes individuais e
coletivos, sejam cientistas ou pessoas comuns, as estruturas, instituições e
organizações114, ressaltando que há divergência de opiniões em relação ao tema
dentre os vários autores que o analisam. Para Beck, além dos agentes
individuais e sociais e dos sistemas especialistas, merecem destaque, como
sujeitos da modernização, as estruturas, por serem elas que tornam possíveis
as modificações necessárias para que haja a ação115.
A razão de ser desse enfoque se dá, para o autor, em razão de sua posição
divergente em relação ao meio da modernização reflexiva, que é o não-
conhecimento (e não o conhecimento, como sustentam alguns outros autores).
Isso porque, em sua visão, a sociedade risco é a “era dos efeitos colaterais”116
ou seja, são justamente os efeitos desconhecidos da modernização reflexiva (os
riscos) os seus principais personagens.
112 SILVA, Luciana Carneiro da. Artigo: Perspectivas político-criminais sob o paradigma da sociedade mundial do risco. http://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/64-ARTIGO 113 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997. 114 Idem. 115 Idem. 116 Idem.
56
Ainda sobre esse aspecto, o autor explica que o termo “reflexão” se refere
a conhecimento, enquanto que “reflexividade” está ligada à ideia de
autodissolução ou auto-risco da sociedade117. Ou seja, na sociedade de risco a
ideia de “reflexividade” está ligada ao “efeito colateral” mencionado
anteriormente, conforme explica o autor no trecho abaixo:
Em termos precisos, a “reflexividade” da modernidade e da modernização, a meu ver, não significa reflexão sobre a modernidade, a auto-relação, a auto-referencialidade da modernidade, nem significa a autojustificativa ou autocrítica da modernidade no sentido da sociologia clássica; em vez disso (e antes de tudo), a modernização reduz a modernização, não intencional e não vista, e por isso também livre da reflexão, com a força da modernização automizada.118
Ulrich Beck sintetiza essa diferenciação explicando que a tese da
reflexividade defende que “quanto mais avança a modernização das sociedades
modernas, mais ficam dissolvidas, consumidas, modificadas e ameaçadas as
bases da sociedade industrial”119, sendo que isso pode ocorrer
independentemente de qualquer reflexão120.
Com efeito, os riscos dessa nova realidade não se esgotam em efeitos e
danos já ocorridos. Neles, exprime-se sobretudo um componente futuro, que se
baseia em parte na extensão futura dos danos atualmente previsíveis e em parte
numa perda geral de confiança ou num suposto “amplificador do risco”. Riscos
têm, portanto, na atualidade, fundamentalmente que ver com antecipação, com
destruições que ainda não ocorreram mas que são iminentes, e que, justamente
nesse sentido, já são reais hoje.121
Beck explica, também, que as espécies de riscos são extremamente
variáveis. Com efeito, além da destruição, como ocorre no caso do que ele
117 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997. 118 Idem, p. 209-210. 119 Idem, p. 210. 120 Idem. 121 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 39.
57
denomina de “crise ecológica”122, há também a perda de certezas, inseguranças
e demais questões de valores que geram riscos decorrentes da alteração dos
modelos sociais até então estabelecidos. Como exemplo desse tipo de
modificação decorrente da modernidade, o autor menciona o papel crescente da
mulher no mercado de trabalho, que estaria transformando a base familiar da
sociedade industrial.123
Apesar da gravidade dos riscos gerados atualmente, as decisões que
envolvem a suas produções, mesmo quando em níveis globais, são discutidas
no âmbito da política, da ciência e da economia, sob um viés extremamente
capitalista, à margem do conhecimento público. Assim, de acordo com Beck, as
decisões que, à primeira vista, deveriam ser tomadas democraticamente, pois
envolvem a vida e o bem-estar de todos, são na verdade tomadas “a portas
fechadas”, movidas por interesses econômicos privados.124
Ulrich Beck ressalta, ainda, que os riscos gerados nessa “segunda
modernidade” decorrem do próprio êxito da sociedade cientificista e tecnológica,
que por muitas décadas produziu (e produz cada vez mais) novos saberes,
muitas vezes instrumentalizados na forma de inventos ditos indispensáveis para
a satisfação e felicidade humana atual, mas que ao invés de apresentarem
respostas e soluções, trazem consigo, muitas vezes, mais dúvidas e incertezas,
por meio de produção desenfreada de riscos da modernização.125
Neste contexto, é importante ressaltar que a base do modelo de produção
da sociedade de risco exige constantes inovações, principalmente em busca de
novas tecnologias que aumentem a produtividade, reduzindo os custos. Na
verdade, a própria sobrevivência empresarial, no sistema capitalista de mercado,
122 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997, p. 213. 123 Idem. 124 BECK, Ulrich. O que é globalização?: equívocos do globalismo, respostas a globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 125 BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo global: en busca de la seguridad perdida. Barcelona: Paidos, 2008, p. 34-35.
58
conforme explica Pierpaolo Bottini, “exige a adaptação constante, sob pena de
obsolescência e perecimento”.126
Essas inovações necessárias para a sobrevivência empresarial na
sociedade capitalista, entretanto, não são acompanhadas pelo conhecimento
dos riscos que produzem. Ou seja, as novas formas de produção, para serem
mais céleres e ao mesmo tempo terem menor custo, acabam por gerar riscos
desconhecidos, conforme explica Pierpaolo Bottini:
Porém, a velocidade das descobertas científicas, da criação de novas técnicas de produção e de novos insumos não se faz acompanhar pelo conhecimento científico destas inovações, nem sobre os potenciais perigos oriundos de sua aplicação em processos produtivos: é o que gera o risco. A produção de riquezas e a manutenção da atual organização econômica são associadas à criação de riscos. Estes são, portanto, produto da radicalização da revolução industrial, e fator indispensável para a funcionalidade das relações econômicas, em um sistema orientado pela livre iniciativa e pelas regras de mercado.127
Dessa forma, o risco acaba sendo, por um lado, de extrema importância
para a economia da sociedade moderna e, de outro, tendo em vista o vulto dos
danos que podem gerar, um fator de grande temor social. Ou seja, “as estruturas
que fundamentam o modelo atual, e que garantem sua sobrevivência e
reprodução, são responsáveis pelo desenvolvimento do risco. O fator
indispensável para a manutenção da estrutura social – o risco – coincide com o
seu próprio fator de desequilíbrio”128. Ainda nesse sentido, leciona Bottini:
Desta forma, a organização estrutural clássica da sociedade, em que o poder econômico utiliza o poder ideológico para a manutenção do sistema de produção, entra em crise, não em sua totalidade, mas no ponto crucial da gestão de riscos. A dificuldade em lidar com os novos riscos gera atritos, cada vez menos localizados, entre representantes do próprio poder econômico, da mesma classe social, e estes atritos serão refletidos em diversos campos das relações sociais e dos discursos delas decorrentes. A modernização e o risco dissolvem os contornos da sociedade industrial que os originou.129
126 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 127 Idem, p. 35. 128 Idem. 129 Idem.
59
Não por outra razão, Ulrich Beck identifica nas características dos riscos
modernos os principais motivos deles exigirem formas de resposta política e
jurídica diferenciadas para enfrentamento. Em relação ao seu nível de
abrangência, os riscos da modernidade possuem dimensão imensamente
superior aos riscos apresentados na sociedade industrial.
Nesse diapasão, vale lembrar que o Direito é influenciado pela economia e
pelas características e temores da sociedade em que vigora. Na atualidade,
portanto, diante do que foi aqui exposto, isto significa que ele deve conciliar a
necessidade do risco para o desenvolvimento econômico e os temores sociais
que esse mesmo risco desperta, conforme bem explica Pierpaolo Bottini:
O paradoxo do risco, a dificuldade em estabelecer sua medida ou seu grau de tolerância, a disputa entre discursos, repercute nas categorias do direito. Reflete-se na construção do direito positivo por meio de normas e regulamentos ambíguos, abertos, sem referenciais claros e, em muitos momentos, conflitantes entre si. Impacta também a construção da dogmática, revelando conceitos e definições de difícil precisão, que podem ser preenchidos por conteúdos materiais diversos. Resulta, por fim, no acirramento da disputa da crítica jurídica, com diversas escolas metodológicas e diferentes autores sustentando posições antagônicas, divergentes, sobre a finalidade do direito e sua maneira de se relacionar e de se comunicar com a sociedade.130
Consequentemente, é fundamental “criar ou inventar um novo sistema de
regras que redefina e refundamente as questões a respeito do que é uma ‘prova’,
e o que significam ‘adequação’, ‘verdade’ e ‘justiça’, perante todos os riscos
prováveis (e que atingem a todos) na ciência e no direito. Seria preciso nada
menos que uma Segunda Ilustração, por intermédio da qual nosso
entendimento, nossos olhos e nossas instituições pudessem reconhecer a
menoridade da primeira civilização industrial – da qual ela mesma é responsável
– e dos danos que ela causou a si mesma”131.
A compreensão da complexa e paradoxal situação atualmente estabelecida
e da necessidade de gerenciar os riscos é de extrema importância para o estudo
130 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 50. 131 BECK, Ulrich. O que é globalização?: equívocos do globalismo, respostas a globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 178.
60
do Direito Penal, tendo em vista que a sua aplicação deve se dar para a geração
de riscos de maior monta. O raciocínio que permeia essa afirmação é lastreado
no fato de que, sendo os atuais riscos advindos de atividades humanas, sua
geração pode ser coibida, ou ao menos reprimida, por meio de leis e cominações
de sanção. Seguindo a proporcionalidade, às condutas geradoras de riscos mais
prejudiciais (mesmo que potencialmente) devem ser cominadas as sanções mais
graves, cabendo aí a utilização do Direito Penal.132
Além de observar o requisito da gravidade do risco que gera a conduta, a
utilização do Direito Penal como mecanismo de gerenciamento de risco, pela sua
própria natureza e pelos princípios que o regem, deve estar condicionada
também à falta de outros meios hábeis e menos agressivos para a contenção
que se pretende – ou seja, o Direito Penal tem que ser utilizado de forma
subsidiária. As demais formas possíveis e preferenciais de gerenciar os riscos
são explicadas por Bottini por meio do chamado “gerente de risco”133, definido
como aquele incumbido de avaliar e regulamentar os riscos, conforme se vê no
trecho abaixo:
A gestão de riscos é uma atividade generalizada na sociedade atual, levada a cabo por diversos personagens, em maior ou menor escala, seja na esfera pública, seja na privada. O gerente de risco será qualquer pessoa encarregada de avaliar riscos e tomar decisões sobre seus limites que, no âmbito público, pode ser o legislador ao fixar regras para a execução de determinadas atividades, o administrador público nos espaços discricionários conferidos à sua avaliação, e a própria autoridade judicial, ao se deparar com um conflito concreto. No âmbito não governamental a atividade de gerenciamento de riscos também se faz presente. O desenvolvimento do mercado de seguros, a consolidação de modalidades negociais de prevenção de riscos, como os contratos a prazo, a negociação de títulos e bens a preço futuro, e outros, revestem de importância a atividade de análise e cálculo de riscos. Os investimentos financeiros são pautados por estudos variados sobre os riscos de aportar capital a determinada instituição ou a determinado país.134
Em outras palavras, podemos sintetizar o raciocínio acima exposto da
seguinte maneira: no paradoxo gerado pela necessidade do risco e o
132 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 133 Idem, p. 39. 134 Ibidem.
61
(justificável) temor social que ele acarreta, cabe ao legislador distinguir os riscos
socialmente aceitáveis dos riscos que, por seu potencial lesivo, não podem ser
tolerados. São nestes últimos que poderá incidir o Direito Penal, quando os
demais ramos do Direito (ou fora dele) não se mostrem aptos a impedir as
condutas que os geram.
Importante ressaltar, outrossim, que para que seja possível a utilização do
Direito Penal na contenção e controle dos novos riscos surgidos na
modernidade, é necessário uma série de adequações em seu modelo tradicional.
A respeito dessas inovações sofridas pelo Direito Penal para fazer frente às
novas criminalidades, Luciano Anderson de Souza explica:
Quer isto significar que a complexidade da vida social tem encaminhado o Direito Penal por um percurso desconhecido e que tem obrigado os teóricos das ciências criminais à busca de novos modelos de sistematização e ao erigimento de novos standards para o manejo da dogmática penal. Neste sentido, os autores têm se dividido entre uma tendência que prega a expansão do controle penal por meio do endurecimento das penas cominadas aos delitos, da criminalização de novéis condutas ou que até então vinham ou vem sendo reguladas por outros ramos do saber jurídico, além da criminalização de condutas que, se não chegam efetivamente a atingir o bem jurídico defendido, ao menos tem o condão de colocá-lo em perigo.135
Nesse mesmo sentido são as lições de Pierpaolo Bottini, conforme
demonstram as lições a seguir apresentadas:
O risco, elemento central na organização social, será fator determinante para a orientação da política criminal. A forte presença de tipos penais de perigo abstrato nas legislações, a normatização dos nexos causais pela teoria da imputação objetiva, o desenvolvimento das normas de cuidado e dos delitos culposos, as novas definições dogmáticas de omissão e de autoria utilizam o risco como elemento nuclear. O risco é incorporado ao direito penal da mesma forma que é incorporado em outros setores comunicativos da sociedade, de maneira impactante e incisiva.136
135 SOUZA, Luciano Anderson de. Expansão do Direito Penal e Globalização. Editora Quartier Latin do Brasil, 2007, p. 54. 136 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 51.
62
Dessas mudanças surgiu o denominado Direito Penal do Risco137. Com
efeito, essa nova denominação se deve à grande alteração ocorrida na área,
tendo em vista que o Direito Penal estava adequado à realidade da Sociedade
Industrial, na qual as condutas humanas geradoras dos riscos então existentes
podiam ser abrangidas pelas leis penais que protegiam os bens jurídicos
clássicos (individuais), tais qual a vida, o patrimônio e a propriedade. Na
realidade atual, marcada pela globalização e pela existência de riscos
transindividuais, conforme mencionado, o Direito Penal teve que voltar sua
atenção para as condutas geradoras de risco antes que o bem jurídico fosse
efetivamente atingido, tendo em vista as vultosas consequências (muitas vezes
de difícil ou impossível reparação) que o dano pode acarretar.
Para que possa se antecipar ao dano, o Direito Penal do Risco se vale
muito dos crimes de perigo abstrato, que, diferentemente dos crimes de lesão ou
de perigo concreto, não precisam da lesão ou efetiva ameaça de lesão ao bem
jurídico para se configurarem. Para sua tipificação, basta a conduta considerada
lesiva, conforme explica Élcio Arruda:
O alto grau de complexidade experimentado pela sociedade, com o enleamento de diversas esferas organizativas, potencializa o risco de resultados danosos, produzíveis a longo prazo. A tradicional relação de causa e efeito, inerente aos tipos de resultado material, tem se mostrado insuficiente à abordagem da problemática. Na sociedade complexa, a palavra de ordem é precaução. Daí o freqüente recurso aos tipos de perigo abstrato ou presumido, cuja consumação reclama a mera probabilidade de causação do dano, independentemente de o agente querê-lo: é suficiente o dano possível ou o eventus periculi138.
Essa espécie de estruturação, segundo parte da doutrina, teria o condão
de transformar o Direito Penal Tradicional em Direito Penal de Perigo, conforme
bem explica Renato Silveira:
137 Prittwitz atribuiu a denominação de "Direito Penal do Risco" ao Direito Penal dotado de caráter expansivo, que passou a acolher bens jurídicos transindividuais, adiantar “as barreiras entre o comportamento punível e não punível”, e “reduzir as exigências para a reprovabilidade” (SILVA, Pablo Rodrigo Alflen da. Características de um direito penal do risco. Obtido pelo site: http://siteantigo.mpes.gov.br/anexos/centros_apoio/arquivos/14_2069102112362008_Caracter%C3%ADsticas%20de%20um%20Direito%20Penal%20do%20Risco.doc.) 138 ARRUDA, Élcio. Intervenção Mínima: um princípio em crise. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n. 192. Artigo 3757.
63
Essa preocupação metaindividual é relevante, pois, como se trata de crimes sem vítimas, de bens jurídicos sem titular, e de importância emblemática, os quais nem mesmo poderiam suportar prejuízos, entende-se pela necessidade de inversão verdadeiramente conceitual do Direito Penal. Não mais se admite a punição por uma lesão, mas sim, postula-se em momento anterior a esta. Este giro copérnico transmuta o Direito Penal tradicional – de dano – em um Direito Penal de Perigo – prévio a este.139
Seguindo essa ideia, é importante ressaltar que, no colóquio preparatório
sobre delitos de perigo (ocorrido em 1968), que precedeu o X Congresso
Internacional de Direito Penal, após registrarem que o avanço da tecnologia, das
ciências e da técnica gerava uma série de perigos para diversos bens jurídicos
e valores humanos, o que estava sendo combatido com a criação de uma série
de tipos penais de perigo em diversos países do globo, afirmaram que a proteção
gerada por essas espécies de delitos vinha acompanhada da criação de “estados
de incerteza e insegurança, naquelas mesmas situações vitais que a lei quer
proteger contra o perigo gerado pelo uso e emprego de técnicas, máquinas e
energia...”.140
Após analisar esta e outras questões atinentes ao delito de perigo,
entretanto, o grupo de estudiosos chegaram à conclusão de que esses tipos
penais não são, necessariamente, violadores dos princípios gerais do Direito.
Basta que eles sigam algumas regras, como bem demonstra o trecho abaixo:
Considerar que a política legislativa consistente em incriminar a mera suscitação de perigo não se oporá aos princípios gerais de direito, se respeitar o princípio de legalidade, ou imprecisos (sic). Considerar, mais, que a incriminação de suscitação de perigo só seja feita em último caso, para suprir as deficiências dos meios não penais de legalidade, evitando, principalmente, tipificações em termos muito gerais ou imprecisos. Considerar, mais, que a incriminação de suscitação de perigo só seja feita em último caso, para suprir as deficiências dos meios não penais de prevenção, e que, se forem admitidos tipos de delitos de perigo presumido, seja muito bem dosado, além de ser permitida produção de prova para tornar sem efeito a presunção.141
139 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A busca de legitimidade dos crimes de perigo abstrato no direito penal econômico. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 20, n. 238, p.6-7, set. 2012. 140 MIOTTO, Armida Bergamini. X Congresso de Direito Penal Internacional. http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/180544/000344076.pdf?sequence=1, p. 83. 141 Idem, p. 84.
64
Além dos chamados crimes de perigo abstrato, que será melhor estudado
no próximo capítulo, o Direito Penal de Risco se vale muito de tipos abertos e de
expressões vagas e imprecisas. Essa forma de tipificação de conduta se deve à
dificuldade que o legislador encontra em abranger todas as possíveis atividades
que possam gerar danos inadmissíveis.
Vale destacar, ainda sobre as condutas lesivas tipificadas no Direito Penal
do Risco, os chamados crimes por acumulação ou crimes cumulativos (que
serão estudados em momento oportuno). Esta denominação refere-se àquelas
condutas que por si só nem mesmo significam uma ameaça ao bem jurídico,
entretanto, quando realizada em conjunto o colocam em perigo. Exemplos claros
são encontrados no Direito Ambiental142, mas é certo que também no Direito
Penal Econômico pode-se observar situações em que “uma multiplicidade de
condutas de pequena monta pode, em momento futuro denotar, um real perigo,
senão dano, à economia”143. Ainda sobre essa espécie de crimes, Cornelius
Prittwits afirma:
Situándonos aún en un plano descriptivo, este Derecho Penal del riego se caracteriza además porque el comportamiento que va ser tipificado no se considera previamente como socialmente inadecuado, al contrario se criminaliza para que sea considerado como socialmente desvalorado. Esta prescripción afecta al Derecho Penal medioambiental in toto y puede apreciarse también en el Derecho Penal económico, y conduce – en ámbitos distintos a los conocidos y criticados con razón – a una revitalización de la creencia en la “fuerza conformadora de costumbres del Derecho Penal”. La motivación ética de esta nova criminalización rara vez tiene que ver con
142 Conforme explica Ana Carolina Carlos de Oliveira, "a categoria dos delitos por acumulação é inicialmente sugerida por Lothar Kuhlen, para fornecer uma hipótese de intervenção penal nos casos de pequenas infrações ao meio ambiente que, individualmente, são insignificantes, já que não representam lesividade suficiente para permitir a punição do autor, mas que, somadas, representam um dano considerável às condições de preservação ambiental”. Essa mesma autora explica, ainda, que “Kuhlen desenvolve sua teoria a partir de um caso concreto, segundo o qual pequenas propriedades suinocultoras ao longo de um rio lançavam dejetos em quantidade ligeiramente acima do permitido pelas regras administrativas. Constatou-se, contudo, que apesar da pouca representatividade dos poluentes lançados ao rio por cada uma das propriedades (insuficiente, portanto, para a caracterização do tipo penal de poluição das águas), a soma dos poluentes despejados por todas as propriedades representava uma deterioração grave da qualidade da água. Em vista deste problema, sugere o autor a punição destas condutas, individualmente, com a finalidade de preservação do meio ambiente, enquanto bem jurídico coletivo, a ser desfrutado por toda a sociedade. O delito que fundamentaria a punição seria o de poluição das águas.” (OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos. A tutela (não) penal dos delitos por acumulação. http://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/176-ARTIGOS) 143 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal econômico como direito penal de perigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 147.
65
comportamientos violentos (normalmente y de forma correcta ya penalizados), pues se trata de comportamientos cuyas consecuencias transcienden a la criminalidad violenta y que sólo, cuando se analizan superficialmente resultan inofensivos. Estas conductas no contravienen generalmente la ética más inmediata, que impregna la moral social y resulta altamente relevante en el modo de comportarse, sino que el contrario contravienen con frecuencia una “moral lejana” mucho menos relevante en la conformación de conductas. Estas conductas generalmente son designadas como criminalidad de bagatela, en cuanto que su peligrosidad surge únicamente a través por el denominado efecto de acumulación, o, dicho de otro modo, la falta de peligrosidad en el momento del comportamiento se desmiente únicamente a través de la consideración de perspectivas temporales más amplias.144
Essas características do Direito Penal do Risco, embora se mostrem de
elevada importância para a contenção dos riscos atuais e consequente
apaziguamento dos anseios sociais, causam um conflito no Direito Penal. Com
efeito, todos os meios acima mencionados, como a antecipação da tutela penal
por meio dos crimes abstratos, a utilização dos delitos cumulativos, além do
elevado uso dos crimes de mera desobediência, dos crimes omissivos e dos
crimes culposos acabam por relativizar princípios como o da legalidade,
proporcionalidade, subsidiariedade, intervenção mínima e lesividade.
O grande conflito que se observa com a flexibilização dos princípios acima
mencionados se dá porque a base do Direito atual está fincada na ideia de uma
efetiva proteção dos direitos e garantias individuais, muitas vezes afrontados
pelo próprio Estado. Com efeito, conforme foi demonstrado no histórico
elaborado nesse capítulo, a primeira geração de direitos protegidos foi a dos
direitos individuais, que eram resguardados, em grande parte, mediante a
imposição de limites à atuação estatal.
Na verdade, os princípios orientadores do Direito Penal tem como principal
objetivo a proteção dos cidadãos contra o poder punitivo do Estado. Assim, ao
disciplinar que condutas só poderão ser punidas se houver lei anterior que
expressa e detalhadamente as incriminem, que penas devem ser cominadas e
aplicadas de forma proporcional ao mal causado e que o Direito Penal, pela
144 PRITTWITS, Cornelius. Crítica y justicación del Derecho Penal en el cambio de siglo: el analises crítico de la ecuela de Frankfurt. Coordenadores: Luis Arroyo Zapatero, Ulfrid Neumann, Adán Nieto Martín. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla – La Mancha, 2003, p. 262-263.
66
gravidade de suas sanções, não deve ser utilizado quando houver outro meio
hábil e menos rigoroso para lidar com o problema, o que faz o Ordenamento
Jurídico é proteger os cidadãos do poder do Estado, impondo balizas à sua
atuação.
Neste diapasão, é importante ter em mente que o Direito Penal, na
sociedade de risco, é bastante questionado, em razão da ambivalência que há
em relação ao risco (repita-se, visto como necessário para o desenvolvimento
social e, ao mesmo tempo, extremamente ameaçador). Com efeito, há muitas
celeumas acerca de aspectos referentes à pena que seria cabível para a geração
de riscos incriminada, aos comportamentos que devem ser penalizados e à qual
seria a medida e o grau da pena cabível, tendo em vista que a expansão
demasiada do Direito Penal como gestor de risco poderia acarretar na
paralização das atividades produtivas, conforme se vê nas lições abaixo:145
A norma criminal é chamada a cumprir o papel de instrumento de controle de riscos e, por isso mesmo, sofre o paradoxo que incide sobre os demais mecanismos de contenção de atividades inovadoras. A dúvida sobre a medida e o grau da pena, sobre quais comportamentos arriscados realmente interessam ao direito penal, os conflitos subjacentes à gestão de risco está presente em todas as etapas, da construção à aplicação dos tipos, da atividade legislativa ao labor interpretativo. A demanda pela expansão do direito penal sobre novos riscos vem acompanhada de uma contra-argumentação de ordem econômica, que sugere a retração dos âmbitos de abrangência das normas criminais, sob pena de paralização de todas as atividades produtivas.146
Diante das ideias apresentadas, fica bastante claro que a flexibilização dos
princípios orientadores do Direito Penal diminui as garantias asseguradas aos
cidadãos frente ao Estado, o que não pode deixar de ser visto como um relevante
problema, tendo em vista toda a luta travada para que os direitos individuais
fossem plenamente protegidos. Vale lembrar que as gerações de direitos
(individuais, sociais e transindividuais) devem ser somadas, de forma a permitir
a coexistência de todos eles.
145 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 146 Idem, p. 67.
67
Outrossim, as próprias características da sociedade de risco que exigem a
flexibilização de alguns conceitos e princípios clássicos do Direito Penal,
demandam, também, cautela na aplicação desse ramo do Direito, sob pena de
verem prejudicados valores e mecanismos que consideram de grande
importância para o funcionamento, avanço e bem estar da sociedade atual.
O conflito gerado no Direito Penal fica, assim, bastante evidente, haja vista
que, além de lidar com o sentimento paradoxal que surge na sociedade em
relação ao seu (atual) mais importante desafio, o risco, cabe a ele se adequar
aos novos anseios sociais, protegendo os bens jurídicos que atualmente fazem
parte das preocupações da coletividade, como ocorre com o meio ambiente e a
economia. Por outro lado, para a proteção desses bens jurídicos transindividuais,
se faz necessário uma série de flexibilizações que diminui os direitos individuais,
tão caros a toda a sociedade há longo tempo. A esse respeito, José Francisco
de Faria Costa explica:
Estamos, assim, perante um quadro bastante complexo. Por um lado, a afirmação do princípio da segurança do cidadão individual perante os poderes do Estado que, por seu turno, invocando precisamente essa mesma necessidade de segurança, individual ou colectiva, não se importa de utilizar o direito penal como máquina repressora.147
Diante de todo o exposto, percebe-se que o Direito Penal se consubstancia
em uma importante forma de controle de riscos na sociedade atual, entretanto,
a sua utilização deve ser realizada com critério, de forma a não violar a estrutura
sobre a qual a teoria desse ramo jurídico foi erigida e de não prejudicar o
desenvolvimento social. Nesse sentido, são diversos os estudos e teorias que
têm sido apresentados (algumas delas serão sucintamente exibidas neste
trabalho) com o intuito de embasar posições contrárias e a favor desse novo
papel que tem assumido o Direito Penal, e, em especial, o Direito Penal
Econômico.
147 COSTA, José Francisco de Faria. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p.356.
68
CAPÍTULO II – DIREITO PENAL NA TUTELA DA ORDEM ECONÔMICA: UMA APROXIMAÇÃO À TEORIA DO BEM JURIDICO
1 CONCEITO DE DIREITO PENAL ECONÔMICO
Sem maiores apegos aos termos técnicos que abaixo serão explorados, é
possível afirmar que os delitos econômicos datam de antigos tempos, tendo se
mantido na história, em cada época com contornos diferentes. No Direito
Romano, por exemplo, pode-se observar a proteção penal à ordem econômica
por meio da Lex Julia de Annona, editada ao tempo de César, que sancionava
com a pena de morte a especulação e a violação de normas sobre a importação
e comércio de gêneros alimentícios.148
O que se denomina modernamente de “Direito Penal Econômico”, no
entanto, só surgiu a partir das duas grandes guerras. Findo este período, as
economias se viram aniquiladas e sem forças para se reerguer sem a ajuda do
Estado, razão pela qual, a partir desse momento a intervenção estatal passou a
ser uma realidade intensa, regulando atividades comerciais, promovendo
atividades geradoras de emprego, entre outras atividades econômicas afins.149
Em meio a essa intensa regulação estatal, o Direito Penal passou a assumir
um importante papel para a proteção das economias e também para a
reformulação das atividades a elas atinentes, criminalizando novas condutas e
cominando penas. As sanções criminais passaram a ser utilizadas como forma
de apoio às políticas criadas à época que visavam ao restabelecimento da
economia.150
Posteriormente, o advento da globalização gerou uma transformação da
realidade social, que permitiu uma significativa expansão da criminalidade
148 MASIERO, Clara Moura. Direito penal econômico: aplicabilidade dos procedimentos investigatórios na Lei n. 9.034/95. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2010. 149 Idem. 150 Idem.
69
organizada, dentre elas aquelas de natureza econômico-financeira. Conforme
leciona Clara Moura, trata-se “da chamada criminalidade moderna, a qual a
grosso modo, possui uma estrutura complexa e organizada e atinge bens
jurídicos transindividuais, como o meio ambiente e a economia. Esse fenômeno
constitui uma das características do Direito Penal moderno, qual seja, a
‘evolução’ de uma criminalidade clássica, que envolvia bens jurídicos
interindividuais, a uma criminalidade moderna, que envolve por sua vez danos
transindividuais.”151
O surgimento dessas novas modalidades criminosas, decorrente das
alterações sociais das últimas décadas e da estrutura global que hoje se
apresenta, pela gravidade dos danos que pode gerar – conforme explorado na
primeira parte desse trabalho –, exigiu uma série de adaptações do Direito Penal,
que acabou por formar subdivisões especializadas para delitos de determinadas
naturezas, tais quais os delitos econômicos.
Seguindo esse raciocínio, surgiu uma posição bastante forte na doutrina,
segundo a qual o Direito Penal Econômico consiste em um ramo relativamente
autônomo do Direito Penal Geral, que estuda, regula e aplica os dispositivos
legais aos delitos praticados contra a ordem econômica. Em outras palavras,
segundo tal posição, esse ramo do Direito Penal visa à proteção da atividade
econômica presente e desenvolvida na economia de livre mercado.152
O entendimento no que tange ao alcance do ramo, entretanto, não é
pacífico dentre os estudiosos do tema. Importantes autores153 buscam um
conceito menos abrangente para o Direito Penal Econômico, defendendo que
este deve ser entendido como o conjunto de normas jurídico-penais que
protegem a ordem socioeconômica (regulação jurídica do intervencionismo
estatal na Economia). Sua característica, considerando essa ideia, é ser o grau
de intervenção estatal na economia mais intenso do intervencionismo, vez que
151 MASIERO, Clara Moura. Direito penal econômico: aplicabilidade dos procedimentos investigatórios na Lei n. 9.034/95. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2010, p. 13. 152 MASI, Carlo Velho. O crime de evasão de divisas na era da globalização: novas perspectivas dogmáticas, politico-criminais e criminológicas. Porto Alegre: Pradense, 2013. 153 Idem.
70
admite o exercício do jus puniendi. Interessante notar que este conceito se
encaixa com a causa do surgimento da matéria, no período pós-guerras.
Vale, ainda, destacar as lições de Luciano Feldens, que explica que no
âmbito internacional, tem-se tratado por Direito Penal Econômico “a área do
Direito Penal que se aglutina em torno ao denominador comum da atividade
econômica, de sorte que sua definição conceitual relaciona-se ao conjunto de
normas jurídico-penais que protegem a ordem econômica”154. Com essas
considerações o autor conclui:
O objeto de proteção penal é, portanto, a ordem econômica, expressão que, retratando o próprio bem jurídico tutelado, abre ensanchas ao reconhecimento do que vem de se denominar Direito Penal Econômico, especialmente passível de ser conceituada em termos mais ou menos amplos. 155
Além dos conceitos mencionados acima, há ainda vários outros. A
divergência que se estabelece entre os diversos autores que estudam o tema é
muito bem justificada pela ambiguidade conceitual do próprio termo ordem
econômica, que torna uma conceituação única do que pode ser entendido como
Direito Penal Econômico ou crimes econômicos uma tarefa bastante difícil.
Luiz Regis Prado156, por exemplo, considera que ordem econômica pode
ter diferentes conceitos, dependendo do ângulo que seja examinada. Em
acepção estrita, ordem econômica pode ser definida como a regulação jurídica
da intervenção do Estado na economia; já em acepção ampla, pode ser
conceituada como a regulação jurídica da produção, distribuição e consumo de
bens e serviços. A respeito dessa dicotomia, e de sua importância para a
identificação do bem jurídico protegido, o renomado autor ressalta:
Essa dicotomia conceitual acaba tendo repercussão no campo do bem jurídico protegido. Destaca-se que a ordem econômica lato sensu não pode constituir-se em bem jurídico diretamente protegido (ou em
154 FELDENS, Luciano. Tutela Penal de Interesses Difusos e Crimes do Colarinho Branco: por uma relegitimação da atuação do ministério público: uma investigação à luz dos valores constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 122. 155 Idem. 156 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 37.
71
sentido técnico), visto que não pode ser tido como elemento do injusto. Tão-somente em sentido estrito pode ser tida como bem jurídico diretamente tutelado (ou em sentido técnico), ainda que manifestado em determinado interesse da Administração.157
Complementando os seus ensinamentos, este autor defende que para
efeito de proteção penal, a regulação jurídica da intervenção do Estado na
economia deve ser considerada de forma ampla, sendo a tutela penal, portanto,
endereçada às atividades realizadas no âmbito econômico e no empresarial,
tendo em vista que tais atividades se imbricam mutuamente158. Colocadas essas
ideias, Luiz Régis Prado conclui:
Esse conceito de ordem econômica acaba por agasalhar as ordens tributária, financeira, monetária, e a relação de consumo, entre outros setores, e constitui um bem jurídico penal supra individual, genericamente considerado (bem jurídico categorial), o que por si só não exclui a proteção de interesses individuais. Além disso, em cada tipo legal de injusto há um determinado bem jurídico específico ou em sentido estrito, cada figura delitiva. Tal concepção fundamenta em sede penal um conceito amplo de delito econômico, mas não totalizador ou amplíssimo.159
Toda essa dissonância de entendimentos por parte dos juristas sobre o
Direito Penal Econômico resultou em uma situação bastante peculiar na
atualidade brasileira: há atualmente um emaranhado de leis penais, produzidas
de acordo com as conveniências de cada época, que incriminam condutas
aparentemente lesivas à economia de determinado período, sem que haja entre
essas normas um liame lógico.
Compartilhamos da posição acima exposta, segundo a qual a ideia de
Direito Penal Econômico e, consequentemente, crimes econômicos, depende do
entendimento que se confere ao termo ordem econômica, considerada como
bem jurídico – lembrando que há questionamentos inclusive sobre essa
premissa (de ser a ordem econômica bem jurídico), conforme será exposto a
seguir.
157 PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. 158 Idem, p. 38. 159Ibidem.
72
2 TEORIA DO BEM JURÍDICO
2.1 Conceito e evolução
A noção de bem jurídico é extremamente importante ao Estado
Democrático de Direito, porquanto permite a definição dos valores que são mais
caros à sociedade e consubstancia importante fonte de limitação ao poder
punitivo estatal, conforme bem explica Édson Luís Baldan:
Poucos os conceitos são tão caros à política criminal como à dogmática que o bem jurídico. Ocorre que, num Estado Democrático de Direito, a noção de bem jurídico desempenha papel preponderante: decididamente define a função do Direito Penal e, por conseguinte, esclarece os limites do ius puniende, conferindo, ademais, a legitimidade do mesmo ao Direito Penal.160
Luiz Regis Prado, por sua vez, leciona que na atualidade existem poucas
posições contra o postulado de que o delito constitui lesão ou perigo de lesão a
um bem jurídico. Segundo esse autor, a doutrina do bem jurídico tem se firmado
como um dos pilares da teoria do delito e assume relevante função balizadora
da atividade legislativa, por limitar os fatos passíveis de sanção penal àqueles
efetivamente danosos à sociedade. 161
Não obstante a concordância em relação ao postulado acima mencionado,
o conceito de bem jurídico é bastante controverso. Com efeito, são vários os
autores que, priorizando um ou outro valor, construíram um conceito próprio e
diverso de bem jurídico. Entretanto, analisando os pontos em comum das
diversas opiniões a respeito, percebe-se que a noção de bem jurídico decorre
das necessidades da sociedade em que ele é reconhecido como tal, como bem
leciona Luiz Regis Prado:
De qualquer modo, resta patente que a noção de bem jurídico decorre das necessidades do homem surgidas na experiência concreta da vida que, “enquanto dados sociais e historicamente vinculados à experiência humana, têm uma objetividade e uma universalidade que
160 BALDAN, Édson Luís. Por uma delimitação conceitual do direito penal econômico pela análise da ordem econômica como bem jurídico tutelado. Dissertação de Mestrado em Direito Penal. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001, p. 30. 161 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
73
possibilitam sua generalização, através da discussão racional e o consenso, e sua concreção em postulados axiológicos-materiais.”162
Nessa acepção, a ideia de bem jurídico pode ser identificada desde
Feuerbach – embora ainda não esquematizada e sem denominação. Este autor
defendia que com o contrato social, que possibilitou a organização em
sociedade, coube ao Estado a conservação da estrutura que se formou. Em
outras palavras, o Estado assumiu a função de garantidor das condições da vida
em comum, só podendo intervir penalmente “quando fosse presente uma
situação que viesse a lesionar algum direito dos cidadãos”.163
Posteriormente, Birnbaum publicou na Alemanha um ensaio ressaltando a
importância de uma valoração do que poderia ser objeto do Direito Penal,
conforme sintetiza Renato Silveira:
Em crítica severa ao autoritarismo, verifica-se o início de uma redimensionalização do Direito Penal. Nesse contexto, Birnbaum, em 1834, publica, na Alemanha, seu ensaio sobre a tutela da honra, dando, ainda que não conscientemente, o passo inicial do que hoje se entende por bem jurídico. Sua elaboração acentua-se na valoração dos bens da coletividade, cuja garantia é tida também, em termos gerais, por Rudolph Von Jhering. Nesse aspecto, a assertiva de que a origem da preocupação não se deu, como muitos pretendem, com uma preocupação em limitar, ou ser crítica ao poder punitivo do Estado, mas, sim, de justificar certas criminalizações, como os então conhecidos como crimes policiais ou condutas atentatórias à religião ou à moralidade. 164
No positivismo, a ideia de “bem jurídico” foi trazida Karl Binding, que definiu
o crime como a lesão a um direito subjetivo do Estado, sendo o bem jurídico
aquilo que a lei estabelecesse como tal. Mesmo no interior da escola positivista,
entretanto, a visão de Binding foi considerada demasiadamente formalista, por
não vincular valores à noção de bem jurídico.165
162 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. 163 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012. 278 p., 23 cm. (Diké; v. 3), p.131. 164 Ibidem. 165 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012.
74
Na tentativa de superar esse criticado caráter da ideia de Binding, o
também positivista Franz Von Liszt, seguindo uma linha naturalista sociológica,
passou a defender que os bens jurídicos deveriam ser definidos pelo Estado
dentre aqueles interesses sociais vitais, baseados em circunstâncias sociais
concretas. Ou seja, para ele, os bens jurídicos não poderiam ser entendidos tão
somente como aqueles definidos pelo Estado como tal; mas, deveriam ser
entendidos como até preexistentes ao definido pelo Estado, porquanto
decorrentes da própria realidade social.166 Nas palavras de Von Liszt, bem
jurídico poderia ser definido, portanto, da seguinte forma:
Bem jurídico não é bem do direito ou ordem jurídica (como pensa Binding e também Bosin que o segue, W. V, 2º, 275), mas um bem do homem que o direito reconhece e protege. – A ideia do bem jurídico é, ao nosso ver, mais ampla do que a do direito subjetivo.167
A partir das ideias de Welzel, novamente a noção de bem jurídico é
reformulada. Com efeito, esse autor funda-se na noção de que a finalidade
primordial do Direito Penal é a proteção de “valores elementares da vida em
comunidade”, o que muda os conceitos até então prevalentes, como explica
Renato Silveira:
Para ele, o Direito Penal leva a efeito a proteção de bens jurídicos ou mandando ou proibindo determinadas ações. Por trás de tais mandados ou proibições encontrar-se-iam deveres éticos e sociais, os quais seriam assegurados mediante a imposição de sanção quando da sua lesão. Esse também o fundamento que viria ele a utilizar para a construção do socialmente adequado em Direito Penal. Ao fugir de simples menção quanto a uma situação causal, o pensamento welzeniano finca-se em necessária proteção ética-social, ou seja, no próprio pensamento dos cidadãos sobre um determinado bem.168
A grande peculiaridade do pensamento de Welzel em relação àquele
formulado por Von Liszt está justamente na atenção dada ao caráter ético-social
do bem jurídico, com especial destaque ao fato de que deve ser considerado
166 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012. 167 VON LISZT, Franz. Tratado de direito penal alemão, traduzido da última edição e comentado por Hygino Duarte Pereira. Tomo I. Rio de Janeiro: F. Briguiet & C. – Editores, 1899, p. 94. 168 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012. 278 p., 23 cm. (Diké; v. 3), p.133.
75
como tal (digno de tutela pelo Direito Penal) aquilo que, em um Estado Social, o
Direito deseje proteger de lesões.169
Essa ênfase na questão valorativa perdura até os dias atuais e é um dos
principais elementos para a seleção de bens jurídicos. Luiz Regis Prado, ao tratar
do tema, ressalta, inclusive, que o conteúdo axiológico do bem jurídico
independe do legislador. Para ele, “a norma não cria o bem jurídico, mas sim o
encontra”.170
A função de balizar e conter o poder punitivo estatal, conforme explica Luiz
Regis Prado, decorre justamente dessa característica axiológica do bem jurídico,
tendo em vista que o fim do Direito Penal no Estado Democrático de Direito é
proteger os interesses mais relevantes ao homem e à sociedade, não lhe
cabendo interferir, até pela intensidade de suas penas, em questões de somenos
importância.171
Outra importante discussão que surge em torno do tema ora em análise diz
respeito ao caráter constitucional ou sociológico que deve ser atribuído ao bem
jurídico. Para aqueles que sustentam o caráter constitucional de bem jurídico,
este deve estar inserido na Constituição, que serve, inclusive, como limitação ao
poder incriminador estatal; para os que defendem um conceito sociológico, o
bem jurídico decorre diretamente da realidade social.172 De cada uma dessas
concepções decorrem efeitos bastantes diversos.
Sobre a concepção sociológica de bem jurídico, após mencionar
importantes nomes que a adotam, como K. Amelung, G. Jakobs173, Luiz Regis
Prado formula a seguinte síntese:
169 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012. 278 p., 23 cm. (Diké; v. 3). 170 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 6. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 35. 171 Ibidem. 172 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Op. Cit, p. 129-148. 173 PRADO, Luiz Regis. Op. cit., p. 40.
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Nessa perspectiva, em apertada síntese, Amelung entende ser a noção de bem jurídico válida como teoria sistêmica e critério da nocividade social. A legitimação substancial da referida noção encontra-se para Jakobs na vigência da norma enquanto objeto de tutela. Este último autor, nas pegadas de Luhmann, afirma que a missão do Direito Penal é assegurar a validade fática ou vigência das normas jurídicas, no sentido de garantir expectativas indispensáveis ao funcionamento do sistema social. Tem a função de estabilizar a ordem social através da imputação de condutas. O delito, como transgressão da norma penal, significa oposição à prescrição normativa que se vê contrariada pela sanção, que impõe ou restabelece a obediência ao Direito.174
Após expor as posições adotadas por mais alguns grandes nomes que
seguem a concepção sociológica, Luiz Regis Prado afirma que nenhuma das
construções formuladas nesse sentido trouxe um conceito material de bem
jurídico, que explicasse o que é lesionado por um delito e a razão pela qual
determinada sociedade opta por incriminar determinadas condutas e não outras.
Isso é bastante problemático porque deixa o legislador sem limites para
selecionar as condutas que devem ser incriminadas e suas respectivas sanções,
e não dá balizas para que o intérprete busque os específicos objetos de tutela.175
A corrente que adota o entendimento de que o bem jurídico deve ter como
lastro a Lei Maior, defende, por sua vez, que a Constituição consubstancia a
única fonte e restrição para a seleção dos bens que podem ser defendidos pelo
Direito Penal. Nesse sentido, ao ponderar sobre o tema, Renato Silveira afirma:
Rudolphi, em uma mesma linha, tem para si que os valores essenciais deve ter referência constitucional, estando o legislador ordinário obrigatoriamente vinculado a uma proteção de bens jurídicos, prévia ao ordenamento penal. O Estado de Direito não é meramente um Estado de Legalidade, encontrando sua real legitimação na ideia de justiça material. O bem jurídico assume, então, unidade de função social, tendo a norma constitucional como parâmetro fundamental.176
No mesmo sentido, Luís Regis Prado leciona que as teorias constitucionais
“procuram formular critérios capazes de se impor de modo necessários ao
174 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 6. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 40. 175 Idem, p. 43. 176 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012. 278 p., 23 cm. (Diké; v. 3), p.135.
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legislador ordinário, limitando-o no momento de criar o ilícito penal.”177 Além
disso, segundo o autor, a Constituição deve realizar o papel de diretriz político-
criminal, conforme se pode verificar do trecho abaixo:
O conceito de bem jurídico deve ser inferido na Constituição, operando-se uma espécie de normativização de diretivas político-criminais. Podem ser agrupadas em teorias de caráter geral e de fundamento constitucional estrito. A divergência entre elas é tão somente quanto à maneira de vinculação à norma constitucional.178
Tendo em vista que em um Estado Democrático de Direito as normas
devem ser construídas de forma escalonada, é certo que todas as normas penais
devem ter seu fundamento de validade na norma constitucional. Não havendo
tal compatibilidade, a norma infraconstitucional deve ser retirada do sistema, por
meio dos mecanismos previstos para tal fim.
Destarte, percebe-se que são as necessidades e valores sociais que
determinam a introdução da previsão de determinado bem jurídico na
Constituição. Contudo, no Estado Democrático de Direito, tal previsão
constitucional é fundamental para que determinado bem jurídico possa ser
protegido pela norma penal incriminadora.
É importante destacar, entretanto, que mesmo dentre aqueles que se filiam
à concepção sociológica de bem jurídico, há autores, como Winfried Hassemer,
que não descuram da importância da valoração constitucional. Nesse caso, essa
corrente se distinguirá da outra (constitucional) porque sustenta a necessidade
da confirmação da danosidade social da conduta incriminada, como bem explica
Renato Silveira:
Em campo tido como sociológico, Hassemer afirma que há de se partir dessa concepção nitidamente voltada aos aspectos constitucionais. Não despreza, no entanto, a necessidade de confirmação de uma “danosidade social” para a legitimação da intervenção punitiva por parte do Estado. Os bens jurídicos seriam considerados desde uma perspectiva político criminal geral. Portanto ter-se-ia uma avaliação dos valores constitucionais em termos de compreensão social do bem jurídico. Dessa forma, o professor de Frankfurt menciona que
177 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 6. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 62. 178 Ibidem.
78
considera os três critérios para o bem jurídico. Segundo eles, a noção de bem deve adequar-se à realidade, uma vez que está a se falar da relação entre Direito e vida, de uma verdadeira ligação entre o direito das pessoas. Mais do que isso, o conceito de “bem jurídico” deveria ser seletivo e nítido, já que se trata dos limites da intervenção na liberdade. Por fim, acentua que o conceito desse “bem” deve ser genericamente compreensível, impedindo-se incriminações nebulosas.179
Com efeito, Winfried Hassemer, apesar de seguir a Teoria Sociológica, é
enfático ao falar da importância das constituições para o Direito Penal. Para ele,
a constituição tem o fundamental papel de limitar o poder punitivo estatal,
conforme se pode concluir da leitura do trecho abaixo:
Conforme a estas tradiciones, el Derecho penal es un ‘Derecho que pone límites a la lucha contra el delito’ y la Constitución formula límites a la intervención, también para el Estado que ejerce o poder punitivo. El hecho de que una limitación de las intervenciones constituye al mismo tiempo un espejo de su legitimación, es decir, que puede entenderse como justificación de las intromisiones llevadas a cabo dentro dos limites establecidos, resulta evidente, pero es harina de otro costal. Por último, se permitirá afirmar asimismo, que las limitaciones del Derecho penal provenientes de la tradición del Derecho Penal, y las limitaciones de las intromisiones penales impuestas por la Constitución, por el otro, proceden en última instancia de la misma fuente: una fundamentación del Derecho penal y de la pena basada en los derechos fundamentales llevada a cabo sobre todo por la filosofía política de la Ilustración.180
Hassemer continua o seu raciocínio afirmando que a proteção de bens
jurídicos é um princípio negativo, porquanto limitador do Direito Penal. Segundo
ele, este princípio não prega a incriminação de todas as condutas que lesem o
bem jurídico, mas impede a tipificação penal de condutas que não o lesem nem
o exponham a perigo de lesão. O autor afirma, ainda, que há relação direta entre
a ideia de bem jurídico e de direitos fundamentais, tendo em vista que estes
últimos têm a função de defender os cidadãos, inclusive contra o arbítrio do
Estado.181
179 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012. 278 p., 23 cm. (Diké; v. 3), p.135. 180 HASSEMER, Winfried. ¿Puede haber delitos que no afecten a un bien jurídico penal? In: HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teoría del bien jurídico: ¿fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 97. 181 Idem, p. 98.
79
2.2 Princípios instrumentalizadores do bem jurídico
Além dos requisitos apresentados para a legitimidade do bem jurídico, vale
mencionar que só deve ser objeto da tutela penal, pela gravidade das penas que
esse ramo do Direito impõe, aquilo que não pode ser satisfatoriamente tutelado
por outros ramos jurídicos. Nesse sentido, Édson Luís Baldan, ao tratar do
importante Princípio da Subsidiariedade do Direito Penal, após expor a posição
de vários doutrinadores sobre o tema, conclui que bem jurídico é aquele que
exige a proteção do Direito Penal, por não haver outros ramos jurídicos aptos a
defendê-lo. Vale expor as palavras desse autor:
Do ângulo penalístico, portanto, bem jurídico é aquele que esteja a exigir uma proteção especial, no âmbito das normas de direito penal, por se revelarem insuficientes, em relação a ele, as garantias oferecidas pelo ordenamento jurídico, em outras áreas extrapenais.182
Baldan continua o raciocínio explicando que o tipo penal deve explicitar
qual o bem jurídico que o legislador visou com ele proteger. Para o autor, não
devem ser apenadas as condutas que não lesionem nem coloquem em risco de
lesão nenhum bem jurídico.183
Ainda com enfoque na subsidiariedade do Direito Penal, Paulo Cesar
Busato também afirma que, por ser o Direito Penal o ramo que promove as
punições mais severas por parte do Estado, deve salvaguardar apenas alguns
bens jurídicos específicos, de extrema relevância e cujos outros ramos do
ordenamento não consigam por si só tutelar:
O Estado somente pode cercear da maneira mais drástica – com a sanção penal – um comportamento humano que ofenda de modo significativo um bem jurídico fundamental à convivência social, o qual não pode ser tutelado de outro modo menos gravoso. Este é um critério essencial para a análise da referência material de uma incriminação que se consolidou na tradição dogmática jurídico-penal. Somente desse modo é possível, concomitantemente, justificar um tipo
182 BALDAN, Édson Luís. Por uma delimitação conceitual do direito penal econômico pela análise da ordem econômica como bem jurídico tutelado. Dissertação de Mestrado em Direito Penal. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2001, p. 33. 183 Ibidem.
80
incriminador e oferecer um delimitador seguro contra o arbítrio do
Estado.184
Pelo que foi exposto acima, percebe-se que, quando contextualizamos a
Teoria do Bem Jurídico às normas e princípios vigentes em um Estado
Democrático de Direito, fica claro que a proteção penal deverá recair nos bens
jurídicos constitucionalmente previstos, por serem estes os que refletem as
necessidades e valores mais caros da sociedade existente naquele momento.
Com efeito, tendo em vista que a ideia de bem jurídico cria parâmetros de
controle para a atuação incriminadora estatal, é imprescindível que a sua seleção
seja diretamente vinculada a valores, cuja relevância seja reconhecida
socialmente.185 A esse respeito, Rogério Greco afirma:
A finalidade do Direito Penal é proteger os bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade, ou, nas precisas palavras de Luiz Regis Prado, “o pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade”. Nilo Batista também aduz que “a missão do direito penal é a proteção de bens jurídicos, através da cominação, aplicação e execução da pena”. A pena, portanto, é simplesmente o instrumento de coerção de que se vale o Direito Penal para a proteção dos bens, valores e interesses mais significativos da sociedade.186
Paulo César Busato, por sua vez, explica que “o princípio da necessidade
da intervenção corre o perigo de ser demasiado abstrato e vago, pelo que requer
uma base concreta de sustentação, que assinale quais são as balizas e limites
fundamentais do sistema”.187 Para o autor, foi a teoria do bem jurídico que
procurou solucionar o que deve ser efetivamente protegido:
O princípio do bem jurídico estabelece um limite material ao poder punitivo estatal, pois impede que se estabeleçam delitos e penas que não tenham em sua estrutura de base a proteção a um bem jurídico.188
184 BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao direito penal: fundamentação para um sistema penal democrático, 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. 185 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012. 186 GRECO, Rogerio. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p.2. 187 BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes. Op. cit, p. 39. 188 Idem.
81
Nesse mesmo sentido, Luís Regis Prado, citando Rudolphi, muito bem
sintetiza o que deve ser levado em consideração para que o importante papel do
bem jurídico, de veiculador de valores, seja bem desempenhado:
Para tanto, a concretização do bem jurídico como um juízo de valor do ordenamento positivo deve levar em conta as condicionantes seguintes: “Que o legislador não é livre em sua decisão de elevar à categoria de bem jurídico qualquer juízo de valor, estando vinculado às metas que para o Direito Penal são deduzidas da Constituição. 2) Que com o anterior somente se assinalou o ponto de vista valorativo para se determinar o conteúdo material do bem jurídico, ficando ainda para serem desenvolvidas as condições e funções em que se baseia esta sociedade dentro do marco constitucional. 3) Que um tipo penal seja portador de um bem jurídico claramente definido não significa já sua legitimação; é necessário, ainda, que só seja protegido diante de ações que possam realmente lesioná-lo ou colocá-lo em perigo”.189
Nesse contexto emerge a questão de como valorar e estabelecer quais são
os bens que, pela sua relevância para a sociedade, merecem e necessitam ser
resguardados pelo Direito Penal (e, portanto, previstos constitucionalmente), se
não como forma primordial de proteção, ao menos subsidiariamente. Na
atualidade já é certo que tal análise deve ser norteada pelos “princípios penais
que são as vigas mestras – fundantes e regentes – de todo o ordenamento
penal.”190
Sintetizando brevemente o que foi exposto acima, é possível sustentar
como principais ideias da Teoria do Bem Jurídico na atualidade o seguinte: (i) a
eleição dos bens jurídicos a serem protegidos pelo Direito Penal deve refletir a
necessidade e principais valores da sociedade regida pelo ordenamento; (ii) no
Estado Democrático de Direito, os bens jurídicos aptos a serem protegidos estão
previstos na Constituição vigente; (iii) uma das principais funções do bem jurídico
é limitar o poder punitivo estatal, o que é fundamental para assegurar os direitos
individuais conquistados pelos cidadãos.
A partir dessas considerações, passaremos a analisar a seguir,
considerando a natureza transindividual da ordem econômica, se ela pode ou
189 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 6. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 64-65. 190 Idem, p. 66.
82
não ser aceita como bem jurídico apto a ser tutelado pelo Direito Penal.
2.3 Proteção de bens jurídicos transindividuais
O Direito Penal clássico surgiu na era do Iluminismo, que considerava como
bens jurídicos dignos de proteção pelo ordenamento aqueles voltados à tutela
dos bens jurídicos individuais, tais como a vida, a liberdade e o patrimônio, até
então a maior preocupação social,191 conforme já explicado na primeira parte
desse trabalho.
Com o advento da sociedade de risco, entretanto, as preocupações sociais
se alteraram profundamente, se dirigindo aos potenciais danos advindos das
novas formas de vida, que extrapolam “a existência, individual e comunitária ou
provenham de acontecimentos naturais ou derivam de ações humanas próximas
e definidas para contenção das quais bastava a tutela dispensada aos bens
jurídicos ‘clássicos’ como a vida, o corpo, a saúde, a propriedade, o patrimônio,
etc.”192
Com efeito, as transformações recentes operadas na sociedade deram
origem a novas modalidades de danos, que afetam os chamados interesses
transindividuais, divididos pela doutrina em três espécies: (i) interesses
individuais homogêneos: relativos a indivíduos ligados entre si por uma
vinculação jurídica; (ii) interesses coletivos: pertencentes a um grupo de
indivíduos, determinável ou não, vinculados por situação de fato; e (iii) interesses
difusos: pertencentes a toda coletividade, sendo impossível aferir os lesados. O
crime econômico pode atingir qualquer uma das três modalidades de bens
jurídicos coletivos acima especificados.
191 MASI, Carlo Velho. O crime de evasão de divisas na era da globalização: novas perspectivas dogmáticas, politico-criminais e criminológicas. Porto Alegre: Pradense, 2013. 192 Idem.
83
O surgimento desses novos riscos (de danos de natureza diferente do que
se conhecia anteriormente) gerou ao Direito Penal uma série de desafios que
acabaram por criar na doutrina questionamentos acerca da possibilidade de se
manter as bases tradicionais desse ramo jurídico, até hoje vigente. A esse
respeito, Paulo Silva Fernandes apresenta as seguintes ideias sobre a
convocação do Direito Penal para responder aos novos desafios da atual
sociedade:
E desde já parece evidente que o direito penal não o pode fazer recorrendo aos meios tradicionais, próprios de um “paradigma penal das sociedades democráticas industriais do fim do séc. XX”, em que “os riscos para a existência, individual e comunitária, ou provinham de acontecimentos naturais (para a tutela dos quais o direito penal é absolutamente incompetente) ou derivavam de ações humanas próximas e definidas, para contenção das quais era bastante a tutela dispensada a clássicos bens jurídicos individuais como a vida, o corpo, a saúde, a propriedade, o património; para a contenção das quais, numa palavra, era bastante o catálogo puramente individualista dos bens jurídicos (...) e assim o modelo de um direito penal liberal e antropocêntrico”.193
As alterações realizadas no Direito Penal, para adequá-lo às novas
necessidades e temores surgidos com o advento da sociedade de risco,
entretanto, foi no sentido de alargar o seu campo de atuação, para que passasse
a englobar novas áreas, sem alterar os seus princípios fundamentais. Para
melhor expor essa transformação, nos valemos novamente das lições de Paulo
Silva Fernandes:
É sabido que durante o século XX, sobretudo na segunda metade, o direito penal, apesar do movimento de descriminalização, sofreu um certo alargamento, operado pelo aparecimento do direito penal secundário, na sequência da maior intervenção do Estado na sociedade. Tal alargamento permitiu que o direito penal interviesse, como vem fazendo, em novas áreas até então reservadas a outros sistemas de proteção, nomeadamente o civil e o administrativo, sem que abdicasse dos seus princípios fundamentantes. (...) sendo certo que o direito penal vê alargado o seu domínio de intervenção através de um direito penal novo, especial, secundário, alargamento esse possível não só pelo aparecimento de novos bens jurídicos, como pela criminalização de condutas que outrora estavam entregues ao direito administrativo sancionador.194
193 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 22/23. 194 Idem, p. 14.
84
A posição de Paulo Silva Fernandes vai ao encontro da doutrina que hoje
predomina no Brasil, no sentido de aceitar que, com a mudança da sociedade e
o advento dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, surgiram
novas modalidade de bens jurídicos: os transindividuais.195
A ideia de tutelar com o Direito Penal os interesses transindividuais surgiu
há algumas décadas (em 1975), inicialmente com foco nos direitos difusos, por
meio da obra de Filippo Sgubbi, intitulada Tutela penale di interessi difussi. O
escrito tratava justamente das mudanças operadas na sociedade e dos novos
interesses delas advindas, enfatizando o papel do Direito Penal na sua
proteção.196
As transformações acima mencionadas, deram origem à expressão Direito
Penal de Risco, que defende dever ser abandonada “a ideia basilar de uma
proteção individual, para focar-se em uma ideia de tutela supra-individual”.197
Essa mudança de foco, para muitos doutrinadores, gera uma situação bastante
complicada, porque para a proteção de bens meta-individuais, muitas vezes, é
necessário antecipar a tutela penal, o que gera uma certa dificuldade na aferição
do desvalor da ação, conforme explica Renato Silveira:
Notadamente, em situações de cunho meta-individual existe uma certa dificuldade na constatação de um desvalor da ação – até mesmo porque, não raro, aqui se verificam tendências de antecipação da tutela penal -, ou, pior do que isso, constata-se uma impossibilidade de avaliação de potencialidade danosa do tipo, dando-se um passo adiante de um simples desvalor da ação.198
A dificuldade acima mencionada consubstancia um dos argumentos que
embasam a posição (minoritária) daqueles autores que sustentam que a ideia de
195 A posição, entretanto, está longe de ser pacífica, tendo em vista que se encontra estudos sobre o tema alegando que a ideia de bem jurídico deve estar, necessariamente, atrelada a interesses individuais para que haja o devido respeito aos princípios do Direito Penal Mínimo. 196 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001. 197 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012. 198 Idem.
85
bem jurídico deve estar necessariamente atrelada a interesses individuais para
que haja o devido respeito aos princípios do Direito Penal Mínimo.
Luciano Anderson de Souza, por exemplo, justificando a posição
minoritária, afirma que para a proteção dos bens jurídicos individuais, o legislador
considera a soma de vários “interesses individuais social e constitucionalmente
valorados”199. Quando a proteção recai em bens jurídicos coletivos, entretanto,
segundo o autor, há um caráter complementar de proteção dos bens jurídicos
individuais.200
Tais correntes também enfrentam críticas, porém de outro viés.
Acreditamos que a mais significativa delas, tendo em vista que o Direito deve ser
dirigido igualmente a todos, é a que sustenta que um Direito Penal voltado à
proteção apenas de bens individuais acabaria por penalizar apenas os
desfavorecidos, protegendo os mais abastados, que, no mais das vezes, são os
responsáveis pelas condutas que violam bens meta-individuais, como o meio
ambiente e a ordem econômica.201
O quadro é, no entanto, bastante problemático, tendo em vista que os
preceitos basilares do Direito Penal constituem um relevante empecilho à sua
adequação à nova realidade social, na qual o perigo assume cada vez maior
relevância. Tal fato, aliado à inegável necessidade de tutela às novas
necessidades, fez com que alguns autores passassem a se indagar sobre a
conveniência da manutenção do Direito Penal, como se pode aferir das lições de
Paulo Silva Fernandes a seguir transcritas:
O perigo é uma categoria que ganha cada vez maior importância, associada porventura a uma “criminalização expansiva dos delitos de negligência e omissão. Que significa isso? Que o direito penal não serve? Vamos agora à velha questão, já posta por RAMON CAPELLA, da extinção do direito penal, ou posta por RADBRUCH, da substituição do direito penal por coisa melhor, questões postas noutro tempo e por
199 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012. p. 114. 200 Idem. 201 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Bem jurídico-penal: leituras conflituosas. In: SAAD-DINIZ, Eduardo; POLAINO-ORTS, Miguel (Org.). Teoria da pena, bem jurídico e imputação. São Paulo: LiberArs, 2012.
86
razões diferentes? Ou, pelo contrário, os desafios que são colocados agora ao direito penal até reforçam a sua existência, mas implicam uma adequação em termos jurídicos-dogmáticos? 202
O que prevalece fortemente, contudo, é que os empecilhos são superáveis,
mesmo com a manutenção dos principais alicerces do Direito Penal vigente. A
adequação desse ramo jurídico à nova realidade é possível e suficiente para
satisfazer às novas necessidades sociais.
Além da denominação Direito Penal de Risco, encontra-se na doutrina a
denominação Direito Penal Secundário. Essa expressão serviria para designar
o Direito Penal adequado à sociedade de risco (assim como Direito Penal de
Risco), que seria uma evolução do Direito Penal Clássico, também chamado de
Direito Penal Primário ou de Justiça. Paulo Silva Fernandes, ao responder o
quanto o Direito Penal deveria se modificar para se adequar à nova realidade,
bem explica a natureza do Direito Penal Secundário. A respeito, vale transcrever:
Na nossa opinião, curiosamente, não nos parece que o direito penal deva fazer muito mais do que aquilo que já fez em termos de flexibilização. Um estudo aprofundado sobre o direito penal secundário prova-nos que as respostas dadas por este, sem descaracterizar o direto penal, sem o desvirtuar, sem o desviar dos princípios que o estruturam, viabiliza todo um conjunto de respostas, na mesma linha, ainda que num ou noutro aspecto tenha que sofrer conformação dogmática, se a tutela que se pretenda tiver que ser mesmo efectiva, como deve ser.203
O Direito Penal Secundário, portanto, está voltado à proteção de bens
jurídicos coletivos e, segundo Jorge Figueiredo Dias, possui forte caráter
administrativo, inclusive incriminando diversas condutas que consubstanciam
descumprimento a determinadas normas administrativas.204
Sobre esse caráter administrativo do Direito Penal adequado à sociedade
de risco, Renato de Mello Jorge Silveira, após explicar que a incriminação de
202 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: livraria Almedina, 2001, p. 23. 203 Idem, p. 24. 204 DIAS, Jorge de Figueiredo. Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma do direito penal nos novos espaços de intervenção. In: D´AVILA, Fabio Roberto, SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder (orgs). Direito Penal Secundário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
87
condutas que infrinjam normas administrativas é uma das novas técnicas para a
elaboração do crime de perigo, especialmente quando se considera os crimes
contra a ordem econômica, leciona:
Desde há muito, percebe-se, como uma das mais frequentes incidências da Administração da vida cotidiana, o regramento de condutas. Entendendo que algumas regras devem ser mais impositivas, cabendo ao seu infrator sanção penal, formata-se essa nova modalidade delituosa. Inicialmente tidas na Alemanha como situações específicas (Prüfstellendelikte), hoje encontram-se distintas maneiras de classificar ou mesmo identificar tais construções típicas, sempre dizendo respeito a uma ação dada em contrariedade a uma prévia regulamentação administrativa. Caracterizada por descrever sua conduta típica atinente à realização de atividade sem a esperada autoridade administrativa, nelas não se percebe por claro, situação necessariamente danosa, mas unicamente de perigo, desenhado pelo legislador.205
Tal novidade é uma das características da chamada “expansão do Direito
Penal”, entendida como o alargamento do uso desse ramo do Direito para tutelar
situações sobre as quais não intervinha anteriormente. Essa tendência atual,
entretanto, tem sido objeto de muitas críticas e até temor, justamente sob o
argumento de que enfraqueceriam o postulado da exclusiva proteção ao bem
jurídico, que, conforme já se viu, constitui uma importante ferramenta de
proteção aos cidadãos em relação ao poder punitivo estatal. A este respeito,
Paulo Silva Fernandes leciona:
Os riscos são enormes, diz-se: expansão desmedida, até se perder de vista o referente matricial, nomeadamente a proteção exclusiva de bens jurídicos – “palpáveis ou ao menos substancialmente identificáveis do indivíduo ou do Estado”, seguindo pela discussão pública -, administrativização (através do recurso a sanções próprias do direito administrativo, do direito de mera ordenação social, etc.), a criação de condutas de perigo abstracto em detrimento dos crimes de dano e mesmo de perigo concreto, o que, aliado à “eleição de bens jurídicos vagos ou de amplo espectro”, resulta numa excessiva antecipação da tutela, um determinado efeito analgésico ou tranquilizante do direito penal (no qual pode vir a antever-se um instrumento ao serviço da população insegura e amedrontada)...”206
205 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal econômico como direito penal de perigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 142. 206 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 72.
88
São frequentes, também, as críticas que sustentam que essa expansão do
Direito Penal acaba por lhe conferir um caráter simbólico. Com efeito, de acordo
com esse entendimento, o uso do Direito Penal serviria, de um lado, para
intimidar a população, para que não pratiquem condutas demasiadamente
arriscadas, de outro, para dar sensação de tranquilidade ao resto da sociedade,
que se sentiria mais tranquila com o aumento de leis mais rigorosas, já que “só
o Direito Penal é rigoroso o suficiente, aos olhos do povo, (...) pois só ele pode
afastar o cidadão da sociedade por um período determinado de tempo.”207
Luciano Anderson de Souza, citando Hans-Joaquim Hirsch, explica, ainda,
sobre o simbolismo desse Direito Penal expansionista, que por sua característica
de ser construído para tranquilizar a sociedade, acaba transformando o Estado
em “Estado de Segurança”.208
Extremamente relevante para o tema proposto nesse trabalho, porque
bastante aplicável a crimes econômicos, é a opinião desse mesmo autor acerca
das operações policiais que constantemente assistimos na mídia. Segundo ele,
essas operações dirigidas a pessoas reconhecidamente abastadas, busca
intimidar que o cidadão comum adote condutas análogas, sob pena de ser
sancionado de forma tão ou mais eficaz.209
O Direito Penal está acostumado com o uso de aspectos simbólicos, o que
não é, por si só, um problema. Entretanto, quando a função simbólica acaba por
ser a única que determinado tipo penal pode exercer, ou seja, quando nenhum
bem jurídico pode ser protegido pelo tipo, com o tempo, a ineficiência da norma
pode gerar um enfraquecimento da confiança da população no ordenamento
jurídico.210 Vale transcrever, a respeito, as lições de Luciano Anderson de Souza:
A utilização desenfreada da fórmula tipificadora, erigindo-se as mais diversas e complexas condutas sociais à categoria delitiva, para fins de intimidação, quando outros ramos jurídicos ou mesmo outras soluções sociais poderiam tutelar com maior eficiência a situação, gera
207 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012, p. 156. 208 Ibidem. 209 Idem. 210 Idem.
89
sua inaplicação: ou porque a legislação é desconhecida, ou porque o Estado não possui condições materiais de sua repressão, ou porque simplesmente encontra-se disseminada a crença na impunidade, dentre inúmeras outras possibilidades.211
A ideia dessa construção é muito simples: se o tipo penal não é apto a
proteger o bem jurídico, a perpetração do crime nele descrito não poderá
acarretar a aplicação da pena cabível ao agente ativo, o que dá à sociedade a
sensação de que crimes podem ser cometidos sem serem devidamente punidos.
A repetição de histórias de impunidade (ou punições insuficientes), por sua vez,
acaba por causar uma descrença social no Direito Penal em um sentido mais
amplo, porque gera na população a impressão da inutilidade ou ineficácia das
leis penais. Diante disso, fica claro que a utilização de leis penais meramente
simbólicas acaba por deslegitimar o Direito Penal, gerando, após algum tempo,
o efeito inverso do inicialmente desejado.
Outra importante crítica tecida a respeito do expansionismo do Direito
Penal provém da denominada Escola de Frankfurt. Segundo seus
representantes, para proteção da liberdade, o Direito Penal deveria se limitar a
incriminar apenas aquelas condutas que violassem bens fundamentais à
sociedade, tais como a vida, a propriedade e a saúde.212
Winfried Hassemer é um exemplo das críticas abordadas por essa Escola.
Segundo ele, na procura de reduzir a insegurança causada pelas novas
modalidades de danos decorrentes da sociedade de risco, o Direito Penal
acabou por se afastar de sua função primordial, qual seja, proteger os valores
mais caros à sociedade. A respeito, vale reproduzir as lições de Pierpaolo Cruz
Bottini:
HASSEMER parte da constatação de que o direito penal atual, procurando minimizar a insegurança oriunda de uma sociedade de riscos e dirigir processos e relações causais complexos, altera substancialmente seus conceitos dogmáticos: logo, afasta-se de sua missão original de apenas assegurar uma escala de valores
211 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012, p. 159-160. 212 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
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indispensáveis à vida social, e se torna um instrumento em busca do controle dos grandes problemas da sociedade atual, como a proteção do meio ambiente, da saúde pública, da ordem econômica e da política exterior, dentre outros.213
Bottini acrescenta, ainda, que Hassemer defende não ser cabível a
utilização do Direito Penal como gestor de risco, devendo esse importante ramo
do direito ser utilizado apenas para a proteção de bens jurídicos fundamentais.
Critica tal ideia, entretanto, afirmando que não seria conveniente aplicá-la ao
sistema jurídico brasileiro, vez que poderia ensejar arbitrariedade pelo Estado.214
Outro argumento contrário ao pensamento de Hassemer, no que tange às
suas ideias desfavoráveis a um uso mais amplo do Direito Penal, se dá em
relação ao já mencionado direcionamento que se faria desse importante ramo
jurídico, caso ficassem excluídos de sua alçada a contenção dos novos riscos,
conforme explica Bottini:
Importa destacar, ainda, a posição de alguns autores que vislumbram no direito de intervenção de HASSEMER uma proposta de um direito penal de classes, subjacente, que direciona o direito penal ao delinquente tradicional, oriundo das camadas marginalizadas da população, enquanto o afasta das condutas perpetradas pelas classes dominantes e mais abastadas, responsáveis pelos delitos do novo direito penal. O direito de intervenção seria uma válvula de escape que abrigaria a criminalidade econômica, os crimes de colarinho-branco, os ilícitos ambientais, afastando a pecha de delinquente aos praticantes de tais atos e qualquer ameaça de restrição de liberdades.215
Tal raciocínio, ao nosso ver, é bastante coerente. Com efeito, os delitos
perpetrados contra bens jurídicos transindividuais, em especial contra a ordem
econômica, na maior parte das vezes provêm de classes mais abastadas, que
possuem maior acesso às diversas espécies de mercados que fazem parte da
organização econômica e detêm maiores conhecimentos sobre como auferir
vantagens com eles.
213 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato: direito penal da sociedade de risco; direito penal e gestão de risco; imputação objetiva e perigo abstrato; princípio da precaução. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 100. 214 Idem, p. 102. 215 Idem, p. 103.
91
Destarte, se o Direito Penal restringisse sua esfera de proteção, nos moldes
defendidos por Hassemer, dirigiria o seu poder punitivo, predominantemente, às
classes mais baixas, deixando imunes às suas sanções aqueles que
praticassem crimes contra a ordem econômica, que, nos mais das vezes, têm
maior destaque social.
Tal característica, além de reprovável por estar em desacordo com a
igualdade pregada pelos Estados Democráticos de Direito, seria bastante
prejudicial para a sociedade. Com efeito, conforme exposto na primeira parte
desse trabalho, a lesão à ordem econômica pode levar a consequências
gravíssimas, capazes de alterar o próprio curso da história e,
consequentemente, lesar (ainda que indiretamente) os direitos fundamentais de
milhares de pessoas, por todo o globo, dependendo da extensão do dano.
Em outras palavras, na sociedade atual, é bastante claro que as condutas
lesivas aos bens jurídicos transindividuais podem ser tão ou mais lesivas à
sociedade (principalmente quando vista de forma mais ampla) e aos direitos
individuais (porque seus efeitos podem afetar direitos individuais de inúmeros
indivíduos) do que aquelas que lesam apenas bens jurídicos tradicionais. Por
esta razão, não é razoável, nem consentâneo com a realidade da sociedade de
risco em que vivemos, dirigir o Direito Penal apenas à proteção dos bens
jurídicos clássicos.
Todo esse contexto de debate e discussão, gera uma importante dúvida,
muito bem sintetizada por Paulo Silva Fernandes da seguinte forma: “conseguirá
o conceito de bem jurídico ser matriz de referência de um discurso jurídico-penal
(não porventura novo mas) renovado, ou deverá ser abandonado?”216
A resposta, na opinião do mencionado autor (a qual nos filiamos) é que o
conceito de bem jurídico continuará com sua importância, levando em conta ser
inegável a existência de bens jurídicos transindividuais.
216 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 82.
92
Com efeito, conforme bem explicado por Paulo Silva Fernandes, com a
utilização das lições de Figueiredo Dias, existem bem jurídicos individuais e
“bens jurídicos de índole supra-individual, social ou colectiva, dotados de um
mesmo grau de exigência de tutela, o que em nada belisca a plena função de
exclusiva proteção subsidiária de bens jurídicos do Direito Penal”217, apesar de
serem mais vagos do que aqueles individuais.
Para corroborar a afirmação acima (de ser inegável a existência de bens
jurídicos transindividuais), devemos lembrar que o conceito de bem jurídico, em
um Estado Democrático de Direito, deve ser inferido na Constituição, conforme
bem explica Luiz Regis Prado, nas lições abaixo transcritas:
O conceito de bem jurídico deve ser inferido na Constituição, operando-se uma espécie de normativização de diretivas político-criminais. Podem ser agrupadas em teorias de caráter geral e de fundamento constitucional estrito. A divergência entre elas é tão somente quanto à maneira de vinculação à norma constitucional.218
Ainda no sentido de defender a existência de bens jurídicos coletivos, Paulo
Silva Fernandes, aponta a importância do conceito de bem jurídico, nos
seguintes termos:
Assim, Silva Dias conclui pela importância do conceito de bem jurídico tanto ao nível político-criminal (constituindo ainda tal noção a base do programa político-criminal, embora de uma forma menos nítida, dando o seu contributo para a identificação do dano, para distinguir crimes e contra-ordenações, etc.), rejeitando-se, portanto, a hipótese de um novo “direito penal do risco” levar à “liquefação do bem jurídico e à sua substituição por uma tutela de perigos indeterminados”, antes apontando, continua, “para a irrupção de bens jurídicos pessoais e patrimoniais de tipo novo, que, apesar de difusos e fluidos nos limites, permitem ainda a identificação de um núcleo essencial e continuam a fornecer um padrão crítico ao legislador na hora de seleccionar as condutas puníveis”, como também ao nível dogmático, nomeadamente quanto à impossibilidade tendencial de se operar uma distinção entre perigo e lesão efectiva, ao contrário do que sucede quanto aos bens jurídicos de tipo clássico, de que é paradigma a protecção da vida, ao caráter difuso dos novos bens, das causas de justificação (nomeadamente a legítima defesa).219
217 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 96. 218 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição.6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 62-63. 219 Idem, p. 97.
93
Mais especificamente sobre o Direito Penal Econômico, objeto do presente
trabalho, esse mesmo autor explica que os bens jurídicos por ele protegidos são
de natureza artificial, porquanto construído ao longo da história, com o moderno
intervencionismo estatal na economia, cujo desenvolvimento já explicamos no
capítulo anterior. A respeito vale transcrever:
O bem jurídico protegido, v.g. em sede de Direito Penal Económico, é de natureza “artificial” ou construída pelo devir histórico-social, nomeadamente movido pelo intervencionismo do Estado moderno no desenrolar da economia. Assim, não conto com aquele substrato onto-antropológico definido e sedimentado, ao contrário do que sucede com os bens jurídicos, chamemo-lhes, clássicos, como a vida ou a
integridade física.220
Ainda sobre o assunto, esse autor explica que os novos delitos que surgem
com a criação desses novos bens jurídicos se diferem substancialmente dos
delitos denominados clássicos, porque, ao contrário da carga valorativa que
estes últimos possuem – aspecto fundamental para permitir a perenidade que
lhes são tão características –, são “normativamente orientados para o
prosseguimento de um determinado objectivo político-económico, decantável em
cada contexto histórico”221, o que os tornam bastante mutáveis.
Em outras palavras, os delitos clássicos buscam resguardar bens jurídicos
que independem de tendências políticas e governamentais vigentes em
determinado momento histórico, tais como a vida, a propriedade, a integridade
física, entre outros. Os crimes econômicos, por sua vez, são criados com a
finalidade de auxiliar a concretização de objetivos estatais na área econômica e,
por essa razão são tão modificáveis e modificados quanto eles.
Apesar de tal volubilidade, entretanto, autores como Paulo Silva Fernandes
consideram tais bens jurídicos de indiscutível importância para a sociedade
atual, porquanto fundamentais para a regulação econômica. Corrobora tal
entendimento o histórico apresentado no primeiro capítulo, que demonstra a
220 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 84. 221 Idem, p. 85.
94
gravidade dos efeitos de uma crise econômica para inúmeros indivíduos ao redor
do globo.
Importante ressaltar, ainda, que os interesses transindividuais, como um
todo, exigem do Direito Penal uma tutela antecipada do bem jurídico. Para tal
desiderato, esse importante ramo jurídico se vale, com frequência, dos crimes
de perigo abstrato, o que acarreta um afastamento do princípio da ofensividade
ao bem jurídico, nos seguintes termos:
Assim, dá-se o afastamento do princípio da ofensividade ao bem jurídico, qua tale, como critério material de punição, bem como a necessidade de aproximação e recurso a normativos extra-penais (nomeadamente o administrativo) e designadamente a normas penais em branco, para melhor cobrir as exigências a si colocadas, a par, ou fundindo-se com ela, de uma expansão necessária.222
Os crimes de perigo abstrato serão melhor estudados no próximo tópico,
no entanto, cumpre registrar desde já, que a análise da legitimidade das normas
que tutelam bens jurídicos transindividuais (em especial, para este trabalho, a
ordem econômica) é necessária para que se evite o uso indevido do Direito
Penal, que não deve ser desvinculado de seu caráter subsidiário.
Nesse diapasão, para que se possa concluir pela legitimidade de
determinada norma penal que tutele interesse difuso, é necessário que a
tipificação em análise vise a proteger efetivamente um bem jurídico, como, por
exemplo, a ordem econômica. Não se admite, portanto, que o Direito Penal seja
utilizado como mero meio simbólico para o auxílio de um controle que possa ser
realizado por outros ramos jurídicos. Tal questão é bem sintetizada por Luciano
Anderson de Souza:
(...) a simples adoção de uma política econômica setorial ou momentânea, ou a mera conveniência administrativa em matéria de regulação econômica, sem referência a valores humanos fundamentais ao contrato social, carecedores da especifica proteção jurídico-penal, não pode representar substrato a uma criminalização válida. Em outras palavras, a utilização do Direito Penal como contundente meio de reforço à política econômica estatal vigente, ignorando-se sua vocação de tutela de bens jurídicos, desvirtua sua
222 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” o futuro do direito penal. Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 89.
95
característica de última ratio na proteção de interesses humanos imprescindíveis para a pacífica convivência social, limitando-se ao mero simbolismo penal consagrador, desse modo, de um indevido arbítrio do Estado na esfera particular.223
Por outro lado, é certo que a realidade da sociedade de risco não pode
prescindir de crimes que tutelem interesses transindividuais, sob pena de se
deixar sem proteção valores que, atualmente, são extremamente importantes
para a sobrevivência da sociedade.
Com efeito, considerando tudo o que foi exposto sobre bem jurídico, é
realmente temerário defender que o Direito Penal ainda deva se restringir a
proteger interesses individuais, porquanto o distanciaria da tutela de bens
bastante caros à sociedade, deixando-o obsoleto e com pouca utilidade na
realidade que se apresenta atualmente.
Nos filiamos, assim, às posições que consideram absolutamente possível
e pertinente com o ordenamento jurídico a existência de bens jurídicos
transindividuais, tais como a ordem econômica, o meio ambiente, as relações de
consumo, entre outras. Mais do que possível, nos parece, inclusive,
imprescindível que esses outros valores sejam elevados a categoria de bens
jurídicos, possibilitando a sua proteção pelo Direito Penal.
Acrescentamos ainda que, ao nosso ver, os princípios que balizam o
Direito Penal deixam margem para a possibilidade de incriminação de condutas
que afetem interesses transindividuais, o que é fundamental para que esse
importante ramo do Direito continue representando um meio poderoso de
proteção social.
3 CRIMES DE PERIGO ABSTRATO
Para iniciar esse tópico, vale destacar que, após selecionar os bens
jurídicos que devem ser protegidos pelo Direito Penal, o legislador deverá
223 SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: Fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012, p. 85.
96
selecionar as condutas que atentem ao bem jurídico eleito para formular o devido
tipo penal, conforme explica Guilherme Guedes Raposo:
Em seguida, ele deve estabelecer, a partir da relevância do bem jurídico e também de suas características, uma pauta de condutas que deverão ser evitadas ou realizadas para que o bem – naquilo que dependa de ações humanas, evidentemente – permaneça incólume ou, pelo menos, para que sua afetação se reduza o máximo possível. Aqui o legislador deve se valer necessariamente de regras de experiência, de dados empíricos e criminológicos, além de eventuais conhecimentos científicos setoriais, a fim de possibilitar não só a identificação das condutas que afetam o bem jurídico, mas também para definir em que medida elas o afetam. Finalmente, uma vez definidas as ações que, de acordo com a dinâmica social existente, mais contribuem, direta ou indiretamente, para a afetação do bem jurídico em análise, o legislador deverá elaborar um conjunto de normas comportamentais primárias que proíbam ou ordenem as condutas consideradas relevantes para a
proteção de um bem jurídico específico(...).224
O autor continua suas lições explicando que dentre as condutas
possivelmente atentatórias ao bem jurídico tutelado, há um escalonamento de
gravidade e penas aplicadas. As condutas consideradas mais graves são
aquelas que efetivamente atingem o bem, depois as de perigo concreto e, por
fim, as de perigo abstrato. Ou seja, a dosagem da pena deve levar em conta o
grau de perigo a que a conduta expõe o bem jurídico tutelado.
Nesse diapasão, vale registrar a diferenciação que Bernd Schünemann faz
entre os crimes de perigo abstrato e crimes de perigo concreto:
Tradicionalmente se han distinguido los delitos de peligro abstracto y concreto. En los delitos de peligro abstracto, el mero motivo do legislador para castigar tales acciones es la evitación de um peligro, que según la experiencia, en un desarrolo posterior llevan a la puesta en peligro del bien jurídico. Por el contrario, em los delitos de peligro concreto, bien jurídico individual ya tiene que haber incurrido por si
mismo en el peligro de la lesión (...).225
224 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 167-168. 225 SCHÜNEMANN, Bernd. La estructura de los delitos de peligro (los delitos de peligro abstracto y abstracto-concreto como modelo del derecho penal económico moderno). In: Cuestiones actuales del sistema penal: crisis y desafíos. Lima: Ara, 2008, p. 17.
97
Ocorre, entretanto, que com as transformações que a sociedade sofreu e
vem sofrendo, já descritas nesse trabalho, a noção da gravidade de cada espécie
de delito tem se alterado, conforme explica Guilherme Raposo Guedes:
Esta regra, contudo, comporta exceções, não sendo raras as hipóteses (...) de comportamentos prévios que estão de tal forma interligados a lesões gravíssimas a bens jurídicos de extrema relevância social que a necessidade de sua evitação será mais importante para a tutela destes bens do que para a prevenção de certos atos de lesão ou de
perigo concreto.226
Em outras palavras, na conjuntura atual, o crime de perigo abstrato possui
enorme relevância, sendo muitas vezes merecedores de penas ainda mais
severas do que aquelas aplicadas a crimes de lesão, pelo potencial lesivo que
possuem.
Neste contexto, José Cerezo Mir, rebatendo as críticas que alguns juristas
fazem ao crime de perigo abstrato, registra que as alterações ocorridas na
sociedade não permitem que o Direito Penal se mantenha com as mesmas
convicções que prevaleciam no Estado Liberal. Vale registrar as palavras do
autor:
Quisiera señalar, sin embargo, antes de centrarme em el estúdio de los delitos de peligro abstracto, que no es posible uma vuelta al Derecho Penal del siglo XIX, reduciendo básicamente el Derecho Penal a la protección de los bienes jurídicos individuales. El Derecho Penal no puede ignorar la evolución del Estado liberal al Estado de bienestar, so pena de desconectarse del fin de conseguir una mayor justicia social.227
Apenas para esclarecer, os tipos penais abstratos se distinguem dos
demais, porque neles o legislador deixa de prever um resultado naturalístico para
a consumação do delito: há apenas a descrição da conduta penalmente
relevante, com a exposição do bem jurídico a perigo e a mera potencialidade de
dano. Ou seja, a ofensividade da conduta é presumida, uma vez que perigo
226 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 170. 227 CEREZO MIR, José. Los delitos de peligro abstracto. Revista de Derecho Penal. n. 2, 2001. 719-746 / Revista de Derecho Penal Rubinzal-Culzoni.
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constitui unicamente a ratio legis, ou seja, o motivo que dá lugar à vedação legal
do comportamento. Nesse sentido Carlo Velho Masi explica:
Apreciável ex ante, o perigo é inerente à ação ou omissão, não necessitando de comprovação. A infringência da norma inibidora (embasada por critérios de experiência/precedente e bom senso), por si só, cria um estado de perigo para toda a sociedade, sem que necessariamente haja efetiva lesão. São de perigo abstrato crimes como o tráfico de drogas, o porte de armas, a embriaguez ao volante e tantos outros tipos penais cuja redação indica apenas a conduta, sem qualquer menção ao resultado. O foco da criminalização é o desvalor da ação, aferida pela potencialidade de ocasionar danos ao bem jurídico. Nesses casos, ainda que o tipo penal descreva a mera conduta, fica a critério do intérprete a constatação de que o comportamento não é inócuo para afetar o bem jurídico tutelado pela norma penal, isto é, que tem capacidade de colocá-lo em perigo, ainda
que em abstrato.228
Para Guilherme Guedes, os crimes de perigo abstrato são uma forma de
antecipar a tutela penal, se diferenciando dos delitos de perigo concreto por não
exigir para sua consumação, um efetivo perigo de lesão ao bem jurídico tutelado:
A categoria dos crimes de perigo abstrato engloba, portanto, toda e qualquer forma de proteção antecipada que não imponha a ocorrência de um efetivo perigo de dano ao interesse tutelado. Trata-se, na realidade, de uma categoria que aglutina todos os crimes que não podem ser qualificados como delitos de lesão ou de perigo concreto, abarcando um conjunto heterogêneo de tipos penais que descrevem condutas com potencial de riscos diferentes e que possuem requisitos próprios que devem ser observados pera a legitimidade desta forma de
intervenção penal. 229
Carlo Velho Masi sustenta, ainda, que o crime de perigo abstrato reduz as
possibilidades de dar soluções mais individualizadas aos casos concretos,
concluindo que “se se renuncia à prova de um dano, não se pode mais encontrar
a prova da causalidade. Por consequência, insiste-se na prova da conduta
228 MASI, Carlo Velho. O crime de evasão de divisas na era da globalização: novas perspectivas dogmáticas, político-criminais e criminológicas. Porto Alegre: Pradense, 2013, p. 51. 229 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 179.
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incriminada, cuja gravidade não depende da apreciação do juiz, mas, para o
legislador, era o motivo da criminalização desta conduta.”230
Por fim, esse mesmo autor enumera as consequências que acredita serem
acarretadas com a adoção do crime de perigo abstrato:
Isso acarreta uma série de reflexos sobre a Dogmática, como uma natural flexibilização na apreciação do nexo causal e a diminuição de categorias como as tentativas e da consumação, da autoria e da participação ou do dolo, o que se agrava com o recorrente emprego de expressões e termos ambíguos e imprecisos na formulação dos tipos
penais e a utilização massiva de leis penais em branco. 231
A exemplo desses dois autores, a doutrina brasileira se divide muito no que
tange à aceitação ou não do crime de perigo abstrato. Guilherme de Guedes
Raposo, expõe as mais relevantes críticas tecidas a essa espécie de
incriminação:
Dentre os principais argumentos contrários à antecipação da tutela penal por meio da criminalização dos crimes de perigo abstrato está o de que a tipificação de comportamentos incapazes de gerar lesão ou perigo concreto a bens jurídicos equivaleria a uma forma de criminalização de meras desobediências a normas jurídicas e violaria alguns dos princípios penais de garantia conquistados(...). Segundo argumenta-se, a antecipação da proteção no âmbito do direito penal, significaria uma ruptura com os princípios clássicos do direito penal, como o da ofensividade, da intervenção mínima, da proporcionalidade, da culpabilidade e da legalidade(...). Assim, de acordo com esta corrente de pensamento, ainda que se considerasse necessária a antecipação da tutela para a proteção de certos interesses, ela deveria ser levada a cabo por meios não penais, a fim de evitar a violação de
direitos fundamentais dos indivíduos.232
Ocorre, entretanto, que como afirma Guilherme Guedes, os tipos penais de
perigo abstrato consubstanciam “a proibição de atos que, segundo regras de
experiência ou dados científicos específicos, proporcionavam uma situação
230 MASI, Carlo Velho. O crime de evasão de divisas na era da globalização: novas perspectivas dogmáticas, politico-criminais e criminológicas. Porto Alegre: Pradense, 2013, p. 52. 231 Idem, p. 51. 232 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 173.
100
futura mais propícia à ocorrência de graves lesões a bens jurídicos
essenciais”.233
Raposo completa o seu raciocínio afirmando que a tipificação penal desses
comportamentos se baseia em uma estratégia político-criminal do Estado para
obstar um processo que poderá acarretar sérias lesões ao bem jurídico
futuramente.234
Em sentido similar, José Cerezo Mir afirma:
La proliteración de los delitos de peligro abstracto en el moderno Derecho penal se basa, en las figuras delictivas que protegen bienes jurídicos colectivos, en el deseo de anticipar la protección penal de los bienes jurídicos individuales em uma sociedad caracterizada por um notable incremento de los riesgos para los mismos. Han contribuido a ello también las dificultades para probar, em ocasiones, la relación de causalidad entre la acción y la lesión del bien jurídico. Estas dificuldades están determinadas también, según Schünemann, por la amplia sustitución de las relaciones personales, em la moderna sociedad de masas, por formas de conducta anónimas y standarizadas (por ejemplo, en la distribuición de alimentos o en las inversiones de capital).235
Quanto ao argumento de que o crime de perigo abstrato poderia afrontar o
princípio da culpabilidade, nos parece correto o entendimento de Guilherme
Guedes Raposo, porquanto não podemos vislumbrar alguma peculiaridade no
que tange a verificação da culpabilidade após a perpetração de um crime de
perigo abstrato. Os requisitos observados em um caso dessa natureza serão
análogos àqueles que seriam avaliados em caso de lesão, por exemplo.
Por outro lado, de curial importância registrar que a presunção de
periculosidade se restringe à tipicidade penal e ao fato que a norma busca evitar,
ou seja “o legislador se limita a dispensar a prova de perigo real somente para
233 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 174. 234 Ibidem. 235 CEREZO MIR, José. Los delitos de peligro abstracto. Revista de Derecho Penal. n. 2, 2001. 719-746 / Revista de Derecho Penal Rubinzal-Culzoni.
101
fins de caracterização do tipo penal e não para a reprovabilidade do
comportamento, que deve ser aferida em concreto em cada injusto”.236
Nos parece, também, no que tange à legalidade, que tal princípio será
respeitado se a norma de perigo abstrato for elaborada de forma plenamente
inteligível, descrevendo claramente o comportamento incriminado e a pena
imposta.
Ressalte-se, entretanto, que embora não se possa imputar a uma norma
de perigo abstrato a alcunha de ilegítima ou inconstitucional simplesmente por
se tratar de uma norma de perigo abstrato, sua legitimidade e validade
dependem de uma série de requisitos, que serão analisados mais a frente.
Guilherme Guedes Raposo explica, ainda, utilizando-se das lições de
Andrew von Hirsch e Wolfgang Wohlers, que os crimes de perigo abstrato
englobam três tipos de antecipação de tutela: “os delitos preparatórios (ou de
preparação), os delitos de cumulação (ou delitos cumulativos) e os crimes de
perigosidade concreta (ou de ação concretamente perigosa).”237
3.1 Delitos preparatórios ou de preparação
Delitos preparatórios ou de preparação se referem a condutas que não
constituem lesão a bem jurídico, mas que poderão contribuir para a prática de
uma lesão futura, podendo o ato ser punido independentemente da efetiva lesão
ulterior. A respeito Guilherme Guedes expõe:
Nesses casos, excepcionando a regra que determina que atos meramente preparatórios são irrelevantes para o Direito Penal, o legislador, com o intuito de proteger de maneira mais efetiva um determinado bem jurídico, antecipa sua tutela a um momento prévio ao
236 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 174. 237 Idem, p. 180.
102
da lesão ou do perigo real, criminalizando de forma autônoma a prática de um ato de preparação. 238
Wolfgang Wohlers define essa modalidade de delito da seguinte forma:
Tratam-se de modalidades de comportamento cujo potencial de risco reside no fato de, ou o próprio autor, ou outra pessoa, poderem praticar uma conduta conectada ao resultado do comportamento prévio em questão. O âmbito de aplicação desse tipo de delito estende-se tanto à proteção de interesses individuais quanto à proteção de interesses coletivos.239
Conforme mencionado, os crimes de perigo abstrato possuem requisitos a
serem seguidos para que tenha sua validade reconhecida. Nos casos dos delitos
preparatórios ou de preparação, não se admite a criminalização de
comportamentos que produzam resultados benéficos à sociedade, mesmo que
coloquem em risco algum bem jurídico protegido. Guilherme Guedes Raposo
apresenta a seguinte justificativa para essa regra:
Isto porque em uma sociedade em que a produção de riscos tornou-se parte da dinâmica das relações sociais e da produção da maior parte da riqueza mundial, a imposição de pena aos autores de condutas que favoreçam a realização de outras ações lícitas, sob o argumento de que elas produziriam risco para bens fundamentais, praticamente inviabilizaria a vida em sociedade. E esta conclusão sequer pode ser alterada pela possibilidade remota de que a ação precedente possa favorecer o cometimento de algum delito ulterior.240
Diante dessa conclusão, o autor explica que a tipificação de atos de
preparação só se legitima quando as condutas que os sucederem forem
necessariamente ilícitas, o que ocorre em quatro hipóteses: (i) condutas
destinadas a incitar crimes de terceiros (ex. apologia ao crime); (ii) associação
de pessoas para a finalidade única de cometer crimes (ex. quadrilha e
associação para o tráfico de entorpecentes); (iii) transmissão de conhecimentos
específicos, que tenha como único propósito o cometimento de crimes; (iv)
fabricação e/ou colocação em circulação de produtos perigosos, que tenha como
238 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 181. 239 WOHLERS, Wolfgang. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 90, v. 19, 2011. 97-107 / RBCCRIM. 240 RAPOSO, Guilherme Guedes. Op. cit., p. 184.
103
única utilidade o cometimento de ilícitos. Nesse último caso, o autor ressalva que
em casos de artefatos, por exemplo, que podem ser usados tanto para fins
legítimos como para fins ilegítimos, “será necessário uma prévia regulamentação
administrativa que diferencie as formas de uso permitidas daquelas que, em
razão do potencial e risco envolvido, não poderão ser realizadas legitimamente
por particulares.”241
3.2 Delitos cumulativos (ou de cumulação)
De acordo com Guilherme Guedes Raposo, as condutas incriminadas por
delitos cumulativos ou de cumulação são aquelas que cometidas isoladamente
não tem o condão de afetar o bem jurídico protegido, entretanto, quando
praticadas em maior escala, tem um imenso potencial lesivo.242 Jesús-Maria
Silva Sánchez, por sua vez, explica essa modalidade de delito da seguinte forma:
O paradigma anterior é a difusão da tese que entende que é possível sancionar penalmente uma conduta individual ainda quando esta não seja em si mesma lesiva do bem jurídico (nem o ponha por si só em perigo relevante), se se conta com a possibilidade certa de que dita conduta – não lesiva de per se – se realize também por outros sujeitos, de modo que o conjunto de comportamentos culminará certamente lesionado o correspondente bem jurídico. São estes os chamados “delitos cumulativos (ou acumulativos)” (Kumulationsdoikte, accumulative harms), cuja relevância penal se pretende assentar na adoção de uma perpectiva aparentemente alheia ao modo de pensar penalista: What if everybody did it? O que ocorreria se todos fizessem o mesmo? Pois se trata de casos em que a conduta individualmente considerada não provoca um risco relevante (ou seja, harmless), enquanto, por outro lado, se admite que “general performance would be harmful” e que sua prática por uma pluralidade de pessoas não constitui simplesmente uma hipótese, senão uma realidade atual ou iminente.243
Vale registrar, ainda, sobre o mesmo tema, as lições de Wolfgang Wohlers:
Delitos de cumulação: Tratam-se de modalidades de comportamento que em si consideradas, de fato, não são capazes de conduzir à lesão ou ao menos à lesão em quantidade relevante de nenhum interesse
241 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 186. 242 Idem, p. 184. 243 SÁNCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do direito penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Série as ciências criminais no século XXI, Volume 11. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.121.
104
jurídico protegido, mas que em conjunto com outras modalidades de comportamento dirigidas no mesmo sentido podem, sim, conduzir a uma lesão. O âmbito especial de aplicação desse tipo de delito é a proteção de interesses supraindividuais (coletivos); nesse âmbito trata-se mesmo da forma típica fundamental dos tipos penais. Exemplos são, ao lado dos tipos penais que protegem o meio-ambiente (§324 e ss. StGB), aqueles tipos penais que visam a proteção de determinadas instituições estatais ou complexos funcionais ou sociais (...).244
Esta modalidade de crime abstrato importa sobremaneira para o presente
trabalho porque é bastante relevante para a tutela de bens coletivos, como o
meio ambiente e a ordem econômica. Na verdade, é justamente pela magnitude
dos bens jurídicos transindividuais, que eles “não podem ser afetados
significativamente por um único comportamento humano, mas apenas por um
conjunto de atos que, somados, serão materialmente capazes de afetá-los de
maneira relevante.”245
Essa espécie de criminalização está fundada no dever geral de
cooperação, segundo o qual todos os cidadãos devem agir de forma a manter
os interesses sociais relevantes, se abstendo de realizar atos que, repetidos por
outros, poderá prejudicar a sociedade.246 Concluindo o tema, Guilherme Guedes
afirma:
Assim, diante de determinados interesses de indiscutível relevância social que, em razão da sua magnitude, só possam ser afetados significativamente pela repetição de certos comportamentos, o Estado, com base no dever geral de cooperação e com o objetivo de outorgar-lhes uma proteção mais efetiva, pode, legitimamente, proibir a prática de tais condutas a fim de evitar a indesejada acumulação de ações. Trata-se de uma forma válida de regulação da vida em sociedade, que se insere no âmbito da missão constitucionalmente atribuída aos Estados modernos e que é perfeitamente compatível com os valores
consagrados na Carta Maior.247
A ideia dos delitos de acumulação já é conhecida por diversos
ordenamentos jurídicos, e foi especialmente desenvolvida atualmente por Lothar
Kuhlen, conforme bem explica Jesús-María Silva Sanchéz:
244 WOHLERS, Wolfgang. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 90, v. 19, 2011. 97-107 / RBCCRIM. 245 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 188. 246 Idem, p. 189. 247 Idem, p. 189-190.
105
Essa concepção, relativamente conhecida nas diversas culturas jurídicas, foi desenvolvida ultimamente por Lothar Kuhlen, cuja fundamentação, mais além do concreto tipo penal do Código alemão sobre o qual se projeta, merece consideração. Com efeito, esse autor parte em sua análise do § 324 StGB (delito de contaminação de águas, Gewässerverunreinigung), de que se devem subsumir no tipo determinados atos concretos, ainda que eles, contemplados em si mesmos, não ponham em perigo nem sequer abstrato o bem jurídico protegido. Na medida em que a acumulação de tais atos concretos podem realmente produzir consequências lesivas, entende que se deve sustentar não somente sua tipicidade formal, senão a própria tipicidade material. Em qualquer caso, é importante, para a exata compreensão do seu ponto de vista, realçar que a concepção de Kuhlen – tal como manifestada em réplica às críticas dirigidas a sua opinião –, a acumulação não aparece como um elemento hipotético dos Kumulationsdoikte, senão um elemento real (isso é, considera-se de antemão com a realização atual ou iminente de fatos similares por uma múltipla variedade de sujeitos).248
Neste diapasão, vale ressaltar que essa forma de incriminação exige que o
legislador possa vislumbrar, de forma realista, aquelas condutas que, produzidas
por um significativo número de pessoas, possa gerar lesão ao bem jurídico
tutelado. Ou seja, para que tipificações penais dessa natureza sejam legítimas,
é imprescindível que três fatores sejam observados: (i) que os fatos proibidos
sejam, ainda que potencialmente e sob certas circunstâncias, aptos a causar
efetiva lesão para bem jurídico de elevada importância; (ii) que o legislador
presuma a ameaça lastrado em fatos empíricos e conhecimentos científicos, não
se admitindo, portanto, meras ilações; e (iii) que a criminalização da conduta e
consequente imposição de pena seja imprescindível para evitar a probabilidade
da lesão, ou seja, que não haja outros ramos do Direito aptos a impedir a ação
perniciosa.249
A obrigatoriedade da observação desses parâmetros justifica essa espécie
de delito à luz do princípio da lesividade, vez que a conduta ameaça o bem
jurídico tutelado, ainda que não quando praticada isoladamente. Ou seja, a
incriminação acaba por ser fundamental para a proteção do bem jurídico
248 SÁNCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do direito penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Série as ciências criminais no século XXI, Volume 11. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.121-122. 249 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 191.
106
considerado de grande importância para a sociedade. Justamente por isso
Guilherme Guedes Raposo afirma:
Já aquelas ações cuja produção do dano é irrisória, ainda que realizadas por um número incontável de pessoas, não poderão ser objeto de criminalização, da mesma forma que os comportamentos que possam ser coibidos eficazmente por meio de uma simples imposição de multa administrativa, pois nestas situações a imposição de uma pena representaria – em razão da ausência dos parâmetros materiais acima fixados – uma violação dos princípios da lesividade e da
proporcionalidade.250
3.3 Delitos de ação concretamente perigosa (ou de perigosidade concreta)
São chamados de delitos de ação concretamente perigosa ou de
perigosidade concreta aqueles cujas condutas tipificadas, por si só, são aptas a
causar um dano ou uma situação de perigo real ao bem jurídico, não sendo,
entretanto, exigível que ocorra a lesão ou o perigo concreto de lesão ao bem
jurídico tutelado para que o crime seja consumado. A respeito, vale transcrever
as palavras de Wolfgang Wohlers:
Delitos de conduta concretamente perigosa: Tratam-se de modalidades de comportamentos cuja perigosidade reside no fato de que elas conduzem a situações que não podem mais ser controladas pelo autor e que – quando apenas um objeto da ação estiver no raio de alcance do autor – por si só podem ter como consequência um perigo concreto e mesmo uma lesão. Exemplos do direito positivo alemão são a embriaguez na direção sem consequências posteriores (§ 316, StGB) e o incêndio qualificado (§ 306a, I, StGB).251
Na atualidade, contudo, conforme já explicado neste trabalho, a produção
de riscos é algo inerente a vida em sociedade. Por essa razão, para que a
conduta seja considerada potencialmente perigosa a ponto de merecer a
proteção do Direito Penal, precisa possuir três características essenciais, quais
sejam:
250 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 193. 251 WOHLERS, Wolfgang. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 90, v. 19, 2011. 97-107 / RBCCRIM.
107
(i) criação de um risco de dano relevante ao bem jurídico tutelado e superior
ao que ordinariamente é tolerado pelos cidadãos, “gerando uma situação de tal
forma perigosa que os benefícios por ela produzidos se tornem secundários
diante da forte probabilidade da lesão a certos interesses.”252 Evidentemente,
essa avaliação deve ser realizada com base em dados empíricos e científicos.
(ii) exige-se também que a conduta proibida “esteja relacionada
diretamente à proteção de bens jurídicos de relevância fundamental para o
indivíduo e para a sociedade – tais como o meio ambiente, a vida ou o patrimônio
das pessoas -, não sendo possível que ela se destine apenas a facilitar o
cumprimento de uma função administrativa do Estado.”253
(iii) para a incriminação dessas condutas é necessário, ainda, que os riscos
por ela criados “a bens essenciais não possam ser mantidos sob o controle do
agente de forma suficientemente segura nem possam ser devidamente
compensados por terceiros. Em outras palavras, nesta espécie de delito, é
fundamental que o agente, com sua conduta, crie uma situação incontrolável de
forma que a ocorrência ou não de uma lesão grave a um bem fundamental
escape integralmente de seu domínio.”254
Ou seja, para que o tipo aqui tratado seja perpetrado, basta que a conduta
cometida tenha a aptidão de lesar gravemente um bem jurídico fundamental e
fuja ao controle do autor da ação, independendo de efetiva lesão ou exposição
do bem a um perigo concreto.255256
252 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e estrutura do delito: uma reflexão sobre a legitimidade da antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 194. 253 Idem, p. 195. 254 Idem, p. 196. 255 Ibidem. 256 Guilherme Guedes, nessa mesma obra, cita como exemplo de crime dessa natureza a gestão fraudulenta, capitulada no art. 4º, caput e parágrafo único da Lei 7.492/86, justificando que “em ambos os casos, a conduta praticada cria um risco de quebra da instituição financeira – e, portanto, de lesão ao patrimônio de todos os investidores – acima do risco tolerado pelas regras de mercado e a ocorrência ou não do dano escapa do domínio do responsável pela administração da instituição financeira.”
108
CAPÍTULO III – ORDEM ECONÔMICA COMO BEM JURÍDICO-PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A Doutrina constitucionalista explica que a palavra país é usada para
designar o território no qual habita determinada população. O sentido de Estado,
por sua vez, é bem mais amplo e está ligado à ideia de ordenação e poder, como
bem explica José Afonso da Silva:
Estado é, na justa definição de Balladore Pallieri, uma ordenação que tem por fim específico e essencial a regulamentação global das relações sociais entre os membros de uma dada população sobre um dado território, na qual a palavra ordenação expressa a ideia de poder soberano, institucionalizado.257
A expressão Estado de Direito surgiu com o Liberalismo e,
consequentemente, bastante ligada a essa concepção. O Estado Liberal de
Direito, como foi chamado incialmente, possuía, como características basilares
(que até hoje perduram como tais no Estado de Direito), as seguintes: (i)
submissão à lei, esta considerada como “ato emanado formalmente do Poder
Legislativo, composto de representantes do povo, mas do povo-cidadão”258; (ii)
separação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, independentes entre
si, “como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a
independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões
dos poderosos particulares”259; (iii) “enunciado e garantia dos direitos
individuais”260.
Como bem se vê, o Estado de Direito tem como objetivo limitar e controlar
poderes para garantir direitos fundamentais a todos os cidadãos. Conforme visto
na primeira parte deste trabalho, a preocupação com os direitos dos cidadãos
surgiu como reação aos abusos cometidos pelo Estado nas épocas precedentes.
257 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2006, p. 97-98. 258 Idem, p. 113. 259 Ibidem. 260 Ibidem.
109
Com efeito, a submissão aos ditames da lei, que deve ser igualmente
aplicada a todos os cidadãos, independentemente de posição social, hierárquica
e econômica; a separação dos Poderes, de forma que cada um deles seja
harmônico e independente dos demais, possibilitando um controle recíproco; e
a garantia especial a alguns direitos considerados fundamentais, reflete bem o
interesse em um Estado mais igualitário, sem tratamentos preferenciais a
ninguém.
Ocorre, entretanto, que, conforme também explicado na primeira parte
deste estudo, os princípios do Estado Liberal e a igualdade por ele propagada,
quando aplicados à desigualdade que existia de fato, eram geradores de
imensas injustiças, razão pela qual houve a necessidade de reestruturação de
conceitos.
A evolução das modalidades de Estado já foi abordada no Primeiro
Capítulo desta dissertação, portanto nos limitaremos aqui a tratar do Estado
Democrático, para melhor compreensão do termo Estado Democrático de
Direito. Vale, para tanto, transcrever as lições de José Afonso da Silva:
Este (Estado Democrático) se funda no princípio da soberania popular, que “impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure, como veremos, na simples formação das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento”. Visa, assim, a realizar o princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana. Nesse sentido, na verdade, contrapõe-se ao Estado Liberal, pois, como lembra Paulo Bonavides, “a ideia essencial do liberalismo não é a presença do elemento popular na formação da vontade estatal, nem tampouco a teoria igualitária de que todos têm direito igual a essa participação ou que a liberdade é formalmente esse direito”.261
O Estado Democrático de Direito, como bem explica José Afonso da
Silva, não é a mera junção do Estado Democrático com o Estado de Direito. Ele
consiste em um conceito novo e independente dos demais, mesmo tendo com
eles uma ligação próxima. A respeito, vale transcrever a explicação do autor
261 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2006, p. 117.
110
sobre os elementos fundamentais desse conceito, com menções aos artigos da
Constituição de 1988 que o preveem:
A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.262
José Afonso da Silva explica, ainda, que o Princípio da Legalidade é basilar
no Estado Democrático de Direito, tendo em vista que “é da essência do seu
conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática”263.
Trata-se, portanto, de um Estado subordinado à lei, “mas da lei que realize o
princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca
da igualização das condições dos socialmente desiguais”.264
O que se nota, portanto, é que em um Estado Democrático de Direito, mais
do que apenas o cumprimento da lei, importa o sentido e relevância da norma a
ser criada e obedecida, tendo em vista que é por meio das leis que essa
modalidade de Estado pode transformar a realidade social de forma a atingir os
objetivos que lhe são característicos. A respeito, José Afonso da Silva leciona:
É precisamente no Estado Democrático de Direito que se ressalta a relevância da lei, pois ele não pode ficar limitado a um conceito de lei, como o que imperou no Estado de Direito clássico. Pois ele tem que estar em condições de realizar, mediante lei, intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade. Significa dizer: a lei não deve ficar numa esfera puramente normativa, não pode ser apenas lei de arbitragem, pois precisa influir na realidade social. E se a Constituição se abre para as transformações políticas, econômicas e sociais que a sociedade brasileira requer, a lei se elevará de importância, na medida em que, sendo fundamental expressão do
262 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2006, p. 121. 263 Ibidem. 264 Ibidem.
111
direito positivo, caracteriza-se como desdobramento necessário do conteúdo da Constituição e aí exerce função transformadora da sociedade, impondo mudanças sociais democráticas, ainda que possa continuar a desempenhar uma função conservadora, garantindo a sobrevivência de valores socialmente aceitos.265
Fica claro, portanto, que em um Estado Democrático de Direito, a lei é o
meio utilizado para cumprir objetivos, como a busca do bem estar social, a
igualdade material (de fato) entre os cidadãos (ou, ao menos, a redução da
desigualdade), a formação de uma sociedade justa, a preservação dos direitos
fundamentais, dentre outros. Nesse mesmo sentido, Milton Fornazari Junior,
citando Luiz Luisi, explica:
Na precisa lição de Luiz Luisi, “ao incorporar os princípios do Estado liberal e do Estado social, e ao conciliá-los, as Constituições modernas, renovam de um lado, as garantias individuais, mas por outro lado introduzem uma série de normas destinadas a tornar concretas, ou seja, ‘reais’, a liberdade e a igualdade dos cidadãos, tutelando valores de interesse geral como os pertinentes ao trabalho, a saúde, a assistência social, a atividade econômica, o meio ambiente, a educação, a cultura etc”.266
É fundamental, também, que a lei seja adequada ao momento social em
que vigora, para que possa, de forma eficaz, servir como meio para que o Estado
transforme a realidade, de forma a adequá-la aos seus objetivos e princípios,
inerentes à forma democrática incorporada.
O Direito Penal, portanto, como os demais ramos do ordenamento, deve
ser composto por um conjunto de normas jurídicas que sirva ao Estado
Democrático de Direito como instrumento para a realização de seus objetivos.
Diante disso, se, por um lado, as normas desse ramo do ordenamento devem
ser cuidadosamente redigidas, para que não permitam a violação de nenhum
direito fundamental do investigado ou acusado, por outro, devem ser
suficientemente eficazes para impedir condutas contrárias às finalidades
265 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2006, p. 121-122. 266 FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008. 119-
140.
112
pretendidas. É nesse contexto que deve ser pensado o Direito Penal Econômico
na atualidade, conforme será demonstrado a seguir.
2 DIREITO PENAL ECONÔMICO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Seguindo a ideia de que a lei, em um Estado Democrático de Direito, deve
exercer uma função transformadora da realidade, a Constituição Federal de
1988 previu em seu bojo “princípios que expressam os direitos e as garantias
individuais e os princípios de proteção de valores supraindividuais e da justiça
social”267, sendo certo que tais princípios “convivem e devem conviver em
harmonia”.268
No que tange especificamente ao Direito Penal, parte da doutrina defende
a existência de duas espécies de princípio constitucionais regentes da matéria:
(i) os princípios de direito penal constitucional, que tratam exclusivamente de
matéria penal e consagram direitos e garantias individuais, como princípio da
legalidade dos crimes e das penas e princípio da intervenção mínima do Direito
Penal, e (ii) os princípios constitucionais influentes em matéria penal, que
concedem ao Estado o uso do Direito Penal para tutelar bens considerados
essenciais para a sociedade, como a ordem econômica e o meio ambiente.269 A
respeito desses últimos, vale transcrever:
Os princípios influentes em matéria penal não têm conteúdo tipicamente penal. Dispõem sobre o conteúdo das incriminações. São eles que dão ao Direito Penal a função de ser mais um instrumento do Estado na tutela de bens de relevância social. Consistem, em geral, como fonte e vínculo ao legislador infraconstitucional, no sentido de orientar a elaboração de normas penais incriminadoras destinadas à proteção dos valores constitucionais supraindividuais.270
Fornazari Junior, após expor o significado dessas modalidades de
princípios, conclui o seu raciocínio afirmando que eles são “os fundamentos do
267 FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008. 119-140. 268 Idem. 269 Idem. 270 Idem.
113
direito de punir do estado e, também, elevam o Direito Penal à nobre missão de
ser um instrumento para a consecução de uma sociedade mais justa, que atenda
plenamente as diretrizes constitucionais”271.
Nesse diapasão, e retomando o que já foi exposto ao longo do trabalho, é
certo que o Direito Penal Econômico, como parte do Ordenamento Jurídico
vigente, deve ser adequado e suficiente para auxiliar na consecução dos fins
almejados pelo Estado brasileiro, de acordo com os seus valores
constitucionalmente previstos.
Isso significa, portanto, que ele deverá, por um lado, não ser expandido
exageradamente, para que não desrespeite os direitos fundamentais e não
atrapalhe os objetivos da Ordem Econômica, e, por outro, não ser limitado em
demasia, para não se tornar insuficiente ou ineficiente à proteção do importante
bem jurídico transindividual Ordem Econômica – visto que, também dessa forma,
se pode obstar o atingimento dos fins almejados pelo Estado brasileiro no setor
econômico, os direitos fundamentais e, de forma transversa, também os direitos
individuais. Nesse sentido, Lênio Streck leciona:
Nesse (novo) contexto, a teoria do bem jurídico, que sustenta a ideia de tipos penais no direito penal, igualmente passa a depender da materialidade da Constituição. Não pode restar qualquer dúvida no sentido de que o bem jurídico tem estrita relação com a materialidade constitucional, representado pelos preceitos e princípios que encerra, a noção de Estado Democrático e Social de Direito. Não há dúvida, pois, que as baterias do direito penal do Estado Democrático de Direito devem ser direcionadas para o combate dos crimes que impedem a concretização dos direitos fundamentais nas suas diversas dimensões.272
Dessa ideia surge o denominado Princípio da Vedação à Proteção
Deficiente, que decorre do Princípio da Proporcionalidade e considera que a
proteção da dignidade da pessoa humana, tão valorizada pelo Estado
Democrático de Direito, depende para sua efetividade não apenas do respeito
271 FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008. 119-140. 272 STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso à proibição de proteção deficiente ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito. v. 80, 2004. 303-345, p. 311.
114
aos direitos fundamentais daqueles que praticam condutas incriminadas, mas
também da efetiva proteção às vítimas e à sociedade em geral. A respeito,
explica Rogério Greco:
A outra vertente do princípio da proporcionalidade diz respeito à proibição de proteção deficiente. Quer isso dizer que, se por um lado, não se admite o excesso, por outro, não se admite que um direito fundamental seja deficientemente, seja mediante a eliminação de figuras típicas, seja pela cominação de penas que ficam aquém da importância exigida pelo bem que se quer proteger, seja pela aplicação de institutos que beneficiam indevidamente o agente etc.273
Ao defender esse Princípio, Lênio Streck274 aclara que o Estado também
frustra o seu dever de proteção à sociedade, quando deixa de resguardar de
forma adequada determinado bem jurídico. No que tange ao presente trabalho,
por todo o histórico desenvolvido, fica bastante claro quão nefastas podem ser
aos cidadãos as consequências de uma proteção inadequada à Ordem
Econômica.
Com efeito, desemprego em massa, crises econômicas e até mesmo
ambientes propícios para que ascendam ao poder governos totalitários são
apenas alguns exemplos das trágicas implicações da inadequada tutela ao bem
jurídico transindividual ora em análise na sociedade de risco em que vivemos
atualmente, o que, sem sombra de dúvida, torna mais do que justificada a
necessidade de flexibilizar o Direito Penal tradicional, para adequá-lo às
necessidades atuais.
Justamente por esta razão, nos parecem inadequadas ao Estado
Democrático de Direito atual as ideias muito apegadas às concepções do
liberalismo clássico. Para melhor explicar tal afirmação, vale transcrever a
exposição que Lênio Streck faz sobre o assunto:
O que tem ocorrido de concreto nesse aspecto e dado margem ao aquecimento do debate entre penalistas de apego exacerbado ao liberalismo e os que buscam a guarida penal de bens supra-individuais,
273 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 77-78. 274STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso à proibição de proteção deficiente ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito. v. 80, 2004. 303-345.
115
é que estes buscam introjetar na concepção de bem jurídico penal a idéia de que uma série de valores constitucionais de feição coletiva necessitam de proteção penal, enquanto aqueles (apegados às concepções do liberalismo clássico), resistem a tanto, obstaculizando a extensão da função de proteção penal aos bens de interesse da comunidade, sob o argumento de que tal concepção implicaria uma “indesejada ampliação das barreiras do direito penal”. De certo modo, continuam a pensar o direito a partir da idéia segundo a qual haveria uma contradição insolúvel entre Estado e Sociedade ou entre Estado e indivíduo.275
Ora, por tudo o que foi exposto no presente trabalho, nos parece claro que
manter o Direito Penal dentro das barreiras que lhe foram estabelecidas pelo
liberalismo clássico, em um período histórico no qual a realidade e as
necessidades sociais eram substancialmente diversas das que se observa
atualmente, privaria o Estado Democrático de Direito de um poderoso
instrumento para a consecução de seus objetivos e proteção de seus princípios.
Em outras palavras, o papel que o Direito e o Estado assumem no Estado
Democrático de Direito exige que o Direito Penal nele vigente seja analisado
também a partir de um garantismo positivo, conforme explica Lênio Streck:
Aliás, parcela expressiva do segmento que abriga os penalistas brasileiros de orientação crítica fazem essa leitura do garantismo tão-somente pelo viés negativo. Com efeito, a partir do papel assumido pelo Estado e pelo direito no Estado Democrático de Direito, o direito penal deve (sempre) ser examinado também a partir de um garantismo positivo, isto é, devemos nos indagar acerca do dever de proteção de determinados bens fundamentais através do direito penal. Isso significa dizer que, quando o legislador não realiza essa proteção via direito penal, é cabível a utilização da cláusula da “proibição da proteção deficiente”(...).276
A conjuntura da realidade vigorante na sociedade de risco, que abarca além
de novas necessidades, novos temores, novos riscos e novas formas de
criminalidade, exige que o Direito Penal seja reanalisado, para que não se torne
obsoleto e inapto a participar dos regramentos relevantes à sociedade atual. A
respeito, imprescindível registrar:
275 STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso à proibição de proteção deficiente ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito. v. 80, 2004. 303-345, p. 309. 276 Idem, p. 340.
116
XI. Numa palavra: analisar o direito penal sob a ótica do Estado Democrático de Direito e do constitucionalismo que o engendrou implica, necessariamente, levar em conta as mudanças paradigmáticas ocorridas no campo do Estado e do direito. Consequentemente, torna-se necessário romper com a idéia de que há uma contradição insolúvel entre Estado e Sociedade ou entre Estado e Indivíduo. XII. É nesse ponto que reside a fragilidade das teses que não admitem a extensão da função de proteção penal aos bens de interesse da comunidade (bens transindividuais), sob o argumento de que tal concepção implicaria uma “indesejada antecipação das barreiras do direito penal”. Por isto é que tenho insistido na tese de que o Estado – na feição transformadora que assumiu nessa quadra da história – não é necessariamente mau, opressor. Neste contexto, o direito penal não tem somente a função de “proteger” o indivíduo da opressão desse mau “Leviatã”. Também deve ter a função de proteger os direitos fundamentais, devendo, para tanto, por vezes, lançar mão do direito penal para efetivar essa proteção.277
Ressalte-se, entretanto, que (conforme mencionado acima) o dever de
proteger os direitos individuais contra o poder punitivo estatal remanesce como
algo fundamental a um Estado Democrático de Direito. Ou seja, a proteção aos
bens jurídicos transindividuais e a necessária adequação do Direito Penal à
realidade e necessidades atuais não podem violar os direitos individuais,
extremamente caros à sociedade. Para possibilitar essa convivência
equilibrada, devem ser observados os princípios constitucionais de Direito Penal,
como explica Ariella Toyama Shiraki:
Se, por um lado, a modernidade cunhou novos bens jurídicos dotados de dignidade penal a reclamar uma tutela diferenciada, por outro, não menos verdadeira é a afirmação de que uma nova forma de criminalização há de observar princípios constitucionais imanentes a um Estado Democrático de Direito, sob pena de ilegitimidade das imputações.278
Não se pode olvidar, contudo, que para não inviabilizar a efetiva tutela do
Direito Penal, pelas próprias características dos bens jurídicos transindividuais –
e, em especial a Ordem Econômica –, pode haver peculiaridades na incidência
de alguns princípios constitucionais, quando aplicados a esses temas
277 STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso à proibição de proteção deficiente ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Boletim da Faculdade de Direito. v. 80, 2004. 303-345, p. 342. 278 SHIRAKI, Ariella Toyama. A legitimidade do direito penal econômico como direito penal de perigo. Uma análise à luz dos princípios da lesividade e da intervenção mínima. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 83, v. 18, 2010. 7-52 / RBCCRIM, p. 13.
117
especificamente. O assunto será explorado a seguir, com o uso de exemplos
práticos.
3 PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE
No Estado Democrático de Direito, o denominado Princípio da Dignidade
da Pessoa Humana deve nortear todo o ordenamento jurídico, influindo inclusive
na aplicação dos demais princípios. A própria Teoria do Bem Jurídico está
estritamente vinculada à dignidade da pessoa humana, como bem explica
Pierpaolo Bottini:
O direito penal funcional de um Estado Democrático de Direito tem por missão, em primeiro lugar, proteger a dignidade humana, consubstanciada na tutela de bens e interesses essenciais para sua materialização. Sua legitimidade e seus limites decorrem da atividade de garantir a existência segura de bens jurídicos. Logo, o conceito de bem jurídico está atrelado ao conceito de dignidade humana, ou seja, bem jurídico será todo elemento indispensável ao livre desenvolvimento do indivíduo dentro de um sistema social orientado para a autodeterminação, para a garantia da pluralidade e da liberdade democrática.279
Uma das importantes conquistas para assegurar a dignidade da pessoa
humana foi a exigência de lei para a incriminação de qualquer cidadão, hoje
consignada no Princípio da Legalidade, que estabelece, para o seu atendimento,
o cumprimento de três requisitos: (i) que a lei seja taxativa, ou seja, que seja
clara qual a conduta proibida, não se admitindo termos vagos ou indeterminados;
(ii) que a lei seja prévia à conduta incriminada; e (iii) que os crimes apenas sejam
criados por meio de lei formal e escrita.280
Nos ateremos aqui ao primeiro dos requisitos mencionados – que
consubstancia o Princípio da Taxatividade –, por ser ele o que traz maiores
discussões na tutela penal da Ordem Econômica, em razão do uso relativamente
comum de normas penais em branco para esse fim, como ocorre com o art. 7º,
279 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 177-178. 280 FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008.
118
inciso II281, da Lei nº 8.137/1990 (crimes econômicos), e art.10282 e 22283, da Lei
nº 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro)284.
3.1 Normas penais em branco
Normas penais em branco (também denominadas de primariamente
remetidas) são aquelas que necessitam de complementação para ter seu
preceito primário compreendido, ou seja, “embora haja uma descrição da
conduta proibida, essa descrição requer, obrigatoriamente, um complemento
extraído de um outro diploma – leis, decretos, regulamentos etc. – para que
possam, efetivamente, ser entendidos os limites da proibição ou imposição feitos
pela lei penal, uma vez que, sem esse complemento, torna-se impossível sua
aplicação.”285
A doutrina divide as normas penais em (i) normas penais em branco
homogêneas (em sentido amplo ou homólogas): aquelas cujo complemento é
oriundo da mesma fonte legislativa que as editou (Congresso Nacional), ou seja,
são complementadas por lei; e (ii) normas penais em branco heterogêneas (em
sentido estrito ou heterólogas): aquelas que possuem complemento oriundo de
fonte diversa daquela que a editou, como portarias, regulamentos etc.286
Diante dessa classificação, alguns doutrinadores, como Rogério Greco287,
defendem que a norma penal em branco heterogênea, por não ter seu
281 Lei nº 8.137/1990. Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo: II - vender ou expor à venda mercadoria cuja embalagem, tipo, especificação, peso ou composição esteja em desacordo com as prescrições legais, ou que não corresponda à respectiva classificação oficial; 282 Lei nº 7.492/86. Art. 10. Fazer inserir elemento falso ou omitir elemento exigido pela legislação, em demonstrativos contábeis de instituição financeira, seguradora ou instituição integrante do sistema de distribuição de títulos de valores mobiliários: 283 Lei nº 7.492/86. Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: 284FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008, p. 128-129. 285 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 20. 286 Ibidem. 287 Rogério Greco registra que Nilo Batista, Zaffaroni, Alagia e Slokar adotam posição no mesmo sentido.
119
complemento advindo de lei em sentido estrito, ofenderia o Princípio da
Legalidade.288
Esse mesmo autor, entretanto, registra que prevalece a “posição
doutrinária que entende não haver ofensa ao princípio da legalidade quando a
norma penal em branco prevê aquilo que se denomina núcleo essencial da
conduta.”289 A respeito, vale registrar:
A técnica das leis penais em branco pode ser indesejável, mas não se pode ignorar que é absolutamente necessária em nossos dias. A amplitude das regulamentações jurídicas que dizem respeito sobre as mais diversas matérias, sobre as que pode e deve pronunciar-se o Direito Penal, impossibilita manter o grau de exigência de legalidade que se podia contemplar no século passado ou inclusive a princípio do presente. Hoje, cabe dizer que desgraçada mas necessariamente, temos de nos conformar com que a lei contemple o núcleo essencial da conduta.290
Importante notar que, no trecho supra transcrito, o autor reitera o que temos
defendido no presente trabalho, no sentido de ser necessária a flexibilização do
Direito Penal para a sua adequação à realidade atualmente vigente.
No que tange às normas penais em branco heterogêneas, concordamos
com a posição prevalente, principalmente em relação aos crimes econômicos.
Com efeito, havendo o núcleo essencial da conduta, a exigência de que o
complemento normativo se desse apenas por meio de lei apenas obstaria a
tutela adequada ao bem jurídico, tendo em vista que, em razão da natureza
mutável das necessidades desse setor, seria necessária “uma revisão frequente
das ações proibidas ou ordenadas, tornando ineficaz a tutela penal”291, conforme
leciona Milton Fornazari Junior:
Assim, entendemos compatíveis com o princípio da legalidade o uso das normas penais em branco, tanto nos delitos comuns como nos econômicos (a fortiori), desde que estabelecidos os seguintes requisitos: a) que a remissão esteja justificada em razão do bem jurídico protegido pela norma penal; b) que a norma já preveja a sanção
288 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012. 289 Idem, p. 24. 290 MATEU, Juan Carlos Carbonell. Derecho penal: concepto y princípios constitucionales, p. 124. In: GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012. p. 25. 291 FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008, p. 129.
120
penal no seu preceito secundário; e c) que o preceito primário contenha o “núcleo essencial da proibição”.292
Considerando a importância da eficaz tutela penal da Ordem Econômica
para a garantia de diversos direitos e princípios fundamentais, nos parece mais
consentânea com o Estado Democrático de Direito a aceitação do uso das
normas penais em branco, desde que respeitadas as condições acima
mencionadas.
3.2 Tipo penal aberto e a gestão temerária
O tipo penal fechado é aquele que descreve de forma completa, clara e
precisa, a conduta proibida pela lei penal293. O tipo penal aberto, por sua vez, é
aquele que não possui uma descrição tão precisa, normalmente por
impossibilidade de se prever exatamente as formas de perpetração do injusto,
conforme explica Rogério Greco:
Contudo, em determinadas situações, o legislador, por impossibilidade de prever e descrever todas as condutas possíveis de acontecer em sociedade, criou os chamados tipos abertos, nos quais não há descrição completa e precisa do modelo de conduta proibida ou imposta. Nesses casos, faz-se necessária sua complementação pelo intérprete.294
Para alguns estudiosos, entretanto, tipos penais demasiadamente
inobjetivos no que tange à descrição da conduta proibida violaria o Princípio da
Taxatividade, reduzindo a garantia dos direitos individuais frente o poder punitivo
estatal. Para uma eficaz garantia de tais direitos, segundo tal corrente, é preciso
que “o tipo penal esteja bem construído, de modo a enunciar com clareza as
características essenciais da conduta proibida, tornando-a inconfundível com
outras. E é justamente essa clareza que exige o princípio da taxatividade ou da
determinação, também conhecido como mandato de certeza.”295
292 FORNAZARI JUNIOR, Milton. Aplicação dos princípios constitucionais aos crimes econômicos. Revista Criminal: ensaios sobre a atividade policial. n. 2, v. 2, 2008, p. 130. 293 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p.166. 294 Ibidem. 295 MACHADO, Fernando Buzzá. O Princípio da Legalidade e os Crimes de Gestão Fraudulenta e Gestão Temerária de Instituição Financeira.
121
Dentre os crimes econômicos, o denominado crime de gestão temerária,
tipificados no art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, é um célebre exemplo
de tipo penal aberto, que tem sua constitucionalidade seriamente questionada,
por ser considerado impreciso demais. Tal norma prescreve:
Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira: Pena - Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa. Parágrafo único. Se a gestão é temerária: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.
O caput do art. 4º, acima transcrito, diz respeito ao chamado crime de
gestão fraudulenta. Tal delito não suscita tantas discussões como o crime de
gestão temerária, em razão do termo fraudulentamente nele contido ser mais
preciso na determinação da conduta punível (utilização de fraude para obter
vantagem ilícita) do que a expressão gestão temerária, entendida como aquela
afoita e mais arriscada do que recomendaria a prudência.296
Com efeito, a imprecisão e subjetividade da expressão temerária297
acabam por deixar ao arbítrio do julgador a decisão acerca da licitude da conduta
lesiva à instituição financeira. Isto, por sua vez, acarreta uma significativa
insegurança jurídica, já que a mesma conduta, dependendo do julgador que a
analise, pode ou não ser considerada criminosa. A respeito, vale registrar:
De modo geral, os tribunais tratam de forma superficial a caracterização do crime de gestão temerária, lançando mão, de forma casuística, de truísmos que se perpetuam – “risco além do permitido”, “comportamento afoito”, entre outros. Mesmo partindo do pressuposto de que “temerário” constitui elemento normativo e – como os demais que permeiam o direito penal – poderia ser integrado pela doutrina e pela jurisprudência, a complexidade do tema emperra sua caracterização. Deste modo, a condenação e a absolvição de gestores denunciados a teor do disposto no parágrafo único do artigo 4º da Lei
http://www.femparpr.org.br/monografias/upload_monografias/FERNANDO%20BUZZA%20MACHADO.pdf 296 SANTOS, Polianna Pereira dos. Um estudo sobre o crime de gestão temerária à luz do princípio da legalidade estrita. Artigo digital portal IBCCRIM. Nº de chamada: 16. p. 2011 D16. 297 Temerário é definido no dicionário Aurélio como: 1. Arriscado, imprudente, perigoso. 2. Arrojado, audacioso, atrevido; precipitado. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa/ Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 3. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1939.
122
nº. 7.492, de 1985, oscilará à maneira dos entendimentos dos tribunais, em cada caso. 298
Assim, considerando que o Princípio da Taxatividade visa a garantir que o
Estado explicite, por lei, as condutas criminosas, evitando, assim, que o cidadão
possa ser punido por algo que a lei não proíba – o que violaria, inclusive, a
garantia fundamental, capitulada no art. 5º, inc. XXXIX299, da Constituição
Federal –, são muitos os que defendem a inconstitucionalidade do art. 4º,
parágrafo único, da Lei nº 7.492/86.
Nos parece correta essa posição, porquanto, conforme já defendido, a
garantia aos direitos individuais é algo fundamental para o Estado Democrático
de Direito. Outrossim, conforme leciona Luciano Feldens, “se, por um lado,
estamos todos conformes acerca da necessidade de proteção jurídico-penal ao
sistema financeiro nacional, em ordem a coibir condutas que exponham a risco
ou prejuízo efetivo a coletividade - sua destinatária por definição constitucional
(art. 192 da CF/1988) -, por outro, é preciso que tenhamos claro: essas
‘imprecisões’ do tipo não servem a ninguém”300. Vale registrar as explicações
desse autor:
A imprecisão leva à imprevisão. E a imprevisibilidade sobre o universo de condutas abarcado pelo tipo coloca em xeque a garantia de conhecer previamente a conduta incriminável. Um vício que se transporta ao processo decisório, uma vez que toda a carga de imprecisão na lei é transferida ao juiz sob a forma de poder interpretativo; um poder que, exercido sob tais circunstâncias traduz-se em arbítrio judicial. Sabido que algum grau de imprecisão legislativa é inevitável, a questão é reduzi-los aos limites do tolerável, de sorte a impedir manipulação discriminatória do sistema jurídico-penal. Um sistema que não pode barganhar – ou, pelo menos, não pode barganhar legitimamente – um
298 SANTOS, Polianna Pereira dos. Um estudo sobre o crime de gestão temerária à luz do princípio da legalidade estrita. Artigo digital portal IBCCRIM. Nº de chamada: 16. p. 2011 D16. 299 Art. 5º, CF XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. 300 FELDENS, Luciano. A estrutura material dos delitos de gestão fraudulenta e temerária de instituição financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 86, v. 18, 2010. 170-200 /
RBCCRIM, p. 172.
123
superávit de eficiência à custa da relativização de garantias fundamentais.301
Esse mesmo autor, diante dessas considerações defende que “a única
maneira de salvar o delito passaria por compreender que a ilicitude penal está,
no caso, estritamente vinculada às diretrizes fixadas pela autoridade
administrativa no gerenciamento do potencial de risco admitido na gestão de
uma instituição financeira.”302 Vale registrar:
Haveremos, assim, de vislumbrar a elementar temerária como um elemento normativo, para cuja adjudicação de sentido se faz necessário o recurso ao marco regulatório específico, sobretudo, porque traduz uma valoração negativa de conduta que, antes de pertencer ao mundo do Direito, assenta-se como tal no âmbito do mercado financeiro. Não se trata, pois, de um juízo que se possa fazer sem a mediação ou, pelo menos, sem o auxílio das diretrizes administrativas (econômico-financeiras) que visam a limitar o risco das diversas operações realizadas no âmbito das instituições financeiras.303
Dentre os exemplos de diretriz administrativa limitadora de riscos, o
supramencionado autor cita a determinação do Bacen para que as instituições
financeiras cumpram o previsto nos Acordos de Basiléia I e II304, “que
uniformizaram, em linhas gerais, a administração de riscos do sistema financeiro
internacional dos países signatários.”305
Ao nosso ver, o crime de gestão temerária precisaria ser reescrito para que
ficasse em consonância com o Estado Democrático de Direito em que vivemos.
A conduta poderia ser delimitada tanto com a descrição das condutas
301 FELDENS, Luciano. A estrutura material dos delitos de gestão fraudulenta e temerária de instituição financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 86, v. 18, 2010. 170-200 / RBCCRIM. p. 172-173. 302 Idem, p. 194. 303 Ibidem. 304 O Comitê de Regulamentação Bancária e Práticas de Supervisão, sediado no Banco de Compensações Internacionais - BIS, em Basiléia, na Suíça (Comitê de Basiléia) foi criado em 1974, objetivando induzir comportamento nos países membros do G-10, para aprimorar a qualidade da supervisão bancária e fortalecer a segurança do sistema bancário internacional. O acordo conhecido como Basiléia I, celebrado em 1988, define mecanismos para mensuração do risco de crédito e estabelece exigência de capital mínimo para suportar riscos. Em junho de 2004, o Comitê divulgou o Novo Acordo de Capital, comumente conhecido por Basiléia II, que tem por objetivo: (i) promover a estabilidade financeira; (ii) fortalecer a estrutura de capital das instituições; (iii) favorecer a adoção das melhores práticas de gestão de riscos, e (iv) estimular maior transparência e disciplina de mercado. Fonte: http://www.bb.com.br/portalbb/page51,136,3696,0,0,1,8.bb?codigoNoticia=7724 305 FELDENS, Luciano. Op. Cit.
124
consideradas criminosas, quanto com a alusão ao desrespeito a determinadas
regras administrativas (o que transformaria o tipo em uma norma penal em
branco).
Com efeito, a expressão temerária é demasiadamente equívoca para
conferir ao cidadão alguma segurança acerca do que se visa a evitar com a
incriminação. Outrossim, também não nos parece consonante com os objetivos
do Estado brasileiro (que prima pelo tratamento isonômico) permitir que
condutas exatamente iguais sejam tratadas como crime ou não, dependendo do
juiz designado para analisar o caso, já que isso significa quase um sorteio de
incriminação e punição.
Não obstante a posição aqui adotada, vale ressaltar que a Jurisprudência
pátria tem considerado constitucional a norma contida no art. 4º, capítulo único,
da Lei nº 7.492. Contudo, conforme já mencionado, por não haver concordância
quanto ao que incrimina a lei, as decisões sobre o tema são bastante
divergentes.
4 PRINCÍPIO DA LESIVIDADE
Outro princípio bastante aventado nas análises do Direito Penal Econômico
é o Princípio da Lesividade, segundo o qual condutas que nem sequer ameacem
de lesão o bem jurídico protegido pela norma não possuem relevância penal. O
tema já foi abordado neste trabalho, em especial por ocasião da análise dos
delitos cumulativos ou de cumulação, contudo, pela relevância do tema, vale
estudá-lo aqui sob outra ótica.
Para iniciar o assunto, vale ressaltar que o Princípio da Lesividade também
decorre do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. A explicação para tal
vínculo é que as penas impostas pelo Direito Penal violam bens fundamentais,
como a liberdade. Logo, em um Estado Democrático de Direito, tal medida só se
justifica se efetivamente a conduta tiver o condão de lesar determinado bem
125
jurídico. Pierpaolo Bottini tece lições sobre essa relação, que valem ser aqui
reproduzidas:
Diante do exposto no apartado anterior, pode-se afirmar que a atuação de um direito penal funcionalizado, em prol de um Estado Democrático de Direito, está pautada pela proteção de bens jurídicos necessários à garantia da dignidade humana. Logo, a norma penal somente será legítima se tutelar um interesse fundamental do ser humano. Para materializar esta assertiva e conferir-lhe operacionalidade, surge o princípio da lesividade. O conceito nullum crimen sine iniuria estabelece que somente será penalmente relevante a conduta que lesiona o bem jurídico protegido, de forma que serão atípicos os atos
que não afetem os interesses tutelados.306
Rogério Greco, por sua vez, explica que o Princípio da Lesividade constitui
mais uma limitação ao poder punitivo estatal. O autor explica, ainda, que tal
princípio se originou no período iluminista e que possui quatro principais funções,
quais sejam: “a) proibir a incriminação de uma atitude interna; b) proibir a
incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor; c)
proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais; d) proibir a
incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico”.307
A razão pela qual o princípio ora em análise é tão discutido em sede de
Direito Penal Econômico reside no fato de tal disciplina se utilizar com bastante
frequência dos chamados crimes de perigo abstrato (cuja definição e espécies
já foram apresentadas nesse trabalho).
Com efeito, de acordo com parte da doutrina, essa modalidade de delito
não é compatível com o Estado Democrático de Direito, porque não se
coadunaria com ele permitir a atuação da tutela penal antes da ameaça concreta
e efetiva a um bem jurídico, como bem explica Pierpaolo Bottini:
O princípio da lesividade, em primeira análise, estaria em confronto com os crimes de perigo abstrato que, por definição, não exigem um dano efetivo, nem um perigo real para qualquer bem jurídico. Efetivamente, para parte da doutrina penal, tais delitos não são compatíveis com um Estado Democrático de Direito por faltar-lhes lesividade. Alegam que a ausência de um resultado externo e
306 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 205. 307 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 51.
126
destacado do comportamento é imprescindível para a caracterização do injusto penal e, por isso, não será possível a antecipação da tutela penal a âmbitos prévios à ameaça concreta e efetiva de interesses tutelados.308
No mesmo sentido, Ariella Toyama Shiraki explica que, embora os crimes
econômicos sejam importantes para a tutela de bens jurídicos difusos, sob um
ponto de vista mais tradicional, violam princípios fundamentais que buscam
limitar o poder punitivo estatal:
(...) se por um lado, os crimes de perigo abstrato despontam como estruturas destinadas à tutela de bem jurídicos difusos, como a ordem econômica, dotada de relevância constitucional, por outro, questionável é sua compatibilidade com princípios fundamentais que, em última análise, visam a limitação do poder estatal, mormente quando se tem em perspectiva que tal técnica de construção legislativa, ao menos em uma concepção clássica, importa na antecipação da tutela penal e na presunção absoluta de perigo, facilitando, sobremaneira, a imputação.309
Não obstantes tais questionamentos sejam bastante respeitáveis, fato é
que “a intervenção jurídico-penal no domínio econômico, concretizada, no mais
das vezes, por meio de crimes de perigo abstrato, constitui uma realidade
amplamente contemplada na legislação nacional e largamente reconhecida
pelos tribunais brasileiros”.310
Com efeito, são várias as sugestões voltadas à superação do aparente
conflito entre os crimes de perigo abstrato e o Princípio da Lesividade. Pierpaolo
Bottini enfatiza duas delas: (i) considerar que essa espécie delitiva acarreta um
dano efetivo a bens jurídicos transindividuais, e (ii) rever o conceito e limites do
Princípio da Lesividade.311
A primeira das posições mencionadas – que sugere sejam os crimes de
perigo abstrato considerados causadores de danos efetivos a bens jurídicos
308 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 205-206. 309 SHIRAKI, Ariella Toyama. A legitimidade do direito penal econômico como direito penal de perigo. Uma análise à luz dos princípios da lesividade e da intervenção mínima. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 83, v. 18, 2010. 7-52 / RBCCRIM, p. 13. 310 Idem, p. 17. 311 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op. cit.
127
difusos – pretende que tal modalidade de delito, quando utilizada para a defesa
de bens jurídicos transindividuais, sejam considerados como crimes de lesão.312
A crítica que se faz a tal entendimento, entretanto, é que tal ideia iria de
encontro com a própria finalidade do Princípio da Lesividade, haja vista que
qualquer conduta poderia ser considerada lesiva a um bem jurídico difuso, como
bem explica Pierpaolo Bottini:
Conforme já apontado (supra IV, 3.4.1), esta proposta carrega consigo problemas de difícil solução porque, por ela, qualquer tipo penal estaria adequado sob o aspecto da lesividade, pois qualquer conduta proibida, sob uma certa perspectiva, lesiona um bem jurídico difuso. Com isso, esta linha de pensamento acaba por esvaziar o próprio princípio da lesividade, pois a própria moral ou o sentimento religioso podem ser compreendidos como interesses difusos passíveis de proteção penal, o que legitimaria a criminalização de condutas que atentem contra seus preceitos.313
Destarte, sendo aceita tal explicação, a função limitativa do poder de punir
estatal, extremamente cara ao Estado Democrático de Direito, ficaria
prejudicada. Com efeito, um dos pontos fundamentais para a limitação
suficientemente protetiva é a tutela exclusiva de bens jurídicos, entendidos nos
termos já expostos neste trabalho.
A segunda posição destacada por Bottini sugere a revisão do conceito e
limites do Princípio da Lesividade, para nele abranger “a desestabilização de
expectativas diante de atividades arriscadas, como mero potencial de perigo”.314
Sobre esse assunto, o autor explica:
FARIA COSTA já apontava para a percepção de três níveis de lesividade. O primeiro seria o dano a determinado bem jurídico, seguido por um segundo nível, compreendido pela colocação deste bem em perigo concreto, quando sua normativa intencionalidade é perturbada por força de uma ação humana responsável. Os delitos de perigo abstrato, por sua vez, refletiriam um terceiro nível de lesividade, que só seria possível mediante uma descrição minuciosa, pelo legislador, da conduta proibida, relacionada a um bem jurídico concreto com dignidade penal.315
312 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 313 Idem, p. 206-207. 314 Idem, p. 207. 315 Idem, p. 207-208.
128
Pela importância da posição de Faria Costa, amplamente utilizada na
doutrina, vale transcrever as suas exatas palavras no que tange a correta
descrição da conduta tipificada pelo crime de perigo abstrato, como legitimadora
dessa modalidade delitiva. Com efeito após mencionar os três níveis da
ofensividade, o autor afirma:
Por aqui se podem perceber, pois, os pressupostos fundantes dos crimes de perigo abstracto. Coisa diversa é a maneira de se desenhar, ao nível do tipo, aquela relação de cuidado-de-perigo. Está-se perante um problema de construção que, diga-se, o legislador, de maneira diversa da que acontece nos crimes de resultado, leva a cabo por meio de uma rígida definição das condutas proibidas. Dir-se-ia que o “aparente” défice de legitimidade é contrabalançado pela extraordinária minúcia que o legislador põe, deve pôr, na descrição das condutas proibidas. Assim, se o tipo legal de crime de perigo abstracto é composto por tais elementos, não vemos em que é que a sua legitimidade possa ser tocada.316
Importa, por fim, registrar as palavras de Ariella Toyama ao afirmar que é
este último posicionamento exposto o mais aceito na doutrina:
Portanto, orientados pelo escopo de superar a tensão verificada entre os crimes de perigo abstrato e o princípio da ofensividade, os posicionamentos até então enunciados parecem convergir precisamente no ponto em que propõem uma revisão dos contornos do conceito de lesividade, o qual não compreenderia apenas a lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado, mas também as situações de perigo abstrato, as quais restariam legitimadas diante da descrição precisa do âmbito do proibido e da clara identificação de um bem jurídico dotado de dignidade penal.317
Essa segunda corrente adequa o crime de perigo abstrato ao Princípio da
Lesividade, no que se refere ao aspecto legislativo, mas ainda deixa margem a
dúvida acerca de como aplicar o dispositivo penal ao caso fático. Não obstante,
é certo que a lesividade da conduta tipificada como crime de perigo abstrato deve
ser perquirida também no momento da aplicação da norma, cabendo ao juiz tal
função.318
316 FARIA COSTA, José Francisco de. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, p. 644-646. 317 SHIRAKI, Ariella Toyama. A legitimidade do direito penal econômico como direito penal de perigo. Uma análise à luz dos princípios da lesividade e da intervenção mínima. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 83, v. 18, 2010. 7-52 / RBCCRIM, p. 33. 318 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
129
Dado considerarmos essencial para os dias de hoje a tutela penal dos
crimes econômicos, concordamos com a adequação realizada. Com efeito, nos
parece que a obrigação de descrever minuciosamente a conduta proibida
consubstancia uma boa forma de limitar o poder punitivo estatal, sem inviabilizar
a defesa da Ordem Econômica pelo Direito Penal.
Deve se ter em mente, entretanto, que a descrição deve ser de conduta
materialmente apta a configurar um crime, sob pena de se esvaziar inúmeros
direitos conquistados ao longo da história e já mencionados no presente
trabalho. Isso significa que, em respeito ao Princípio da Lesividade, apenas as
condutas que efetivamente lesem ou coloque em risco (mesmo que potenciais)
o bem jurídico protegido poderão ser objeto do Direito Penal.
Em outras palavras, “a construção do tipo penal, seja de perigo abstrato,
seja de lesão, demanda um injusto material, que será o risco de dano ao bem
protegido, mesmo que sob uma perspectiva ex ante ou abstrata, de modo que a
ausência deste risco afastará a lesividade, e a incidência da norma penal não
será adequada aos preceitos de um direito penal racional e funcional.”319
4.1 Princípio da Lesividade e crime de gestão temerária
Ao cotejarmos as lições acima apresentadas sobre o Princípio da
Lesividade com o que já foi exposto sobre o crime de gestão temerária, nos
parece bastante claro que também esse preceito é violado pela norma prevista
no art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86.
Com efeito, não há dúvida de que o crime de gestão temerária é um crime
de perigo abstrato, porquanto criminaliza uma forma de expor a perigo o sistema
financeiro nacional, sem a exigência de nenhuma demonstração de dano ao bem
jurídico. A respeito, vale transcrever:
319 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 208.
130
O objeto da proibição da gestão temerária não seria o resultado danoso, mas sim a situação de risco causada pela ação do administrador excessivamente arrojado que, por exemplo, opere em níveis elevadíssimos de alavancagem em mercado de derivativos. Nesta perspectiva, irrelevante seria indagar sobre o resultado (lucro ou prejuízo): o crime já estará consumado no momento da operação. Portanto, o legislador optou por tutelar o bem jurídico ameaçado de lesão pela conduta preliminar potencialmente gravosa, pouco importando, ao menos em tese, o efetivo resultado.320
Como crime de perigo abstrato, lembrando os ensinamentos de Bottini, já
expostos no presente trabalho, o delito de gestão temerária refletiria “um terceiro
nível de lesividade, que só seria possível mediante uma descrição minuciosa,
pelo legislador, da conduta proibida”321. Ao contrário disso, entretanto, pode-se
dizer que o tipo penal em comento não descreve nem mesmo superficialmente
as condutas que pretende proibir.
Isso porque, conforme já mencionado ao tratarmos do Princípio da
Taxatividade, o art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492/86 criminaliza apenas o que
chama de gerir temerariamente, sem especificar o que entende como tal, falha
grave tendo em vista que o adjetivo temerário é bastante equívoco, causando
dúvidas até mesmo quanto à possibilidade de punição da conduta na modalidade
culposa.
Nesse diapasão, vale lembrar que alguns doutrinadores admitem a
modalidade culposa do crime, ressaltando que o próprio significado da palavra
temerário (arriscado, imprudente, perigoso) remete a uma conduta culposa322.
Prevalece, entretanto, com base no artigo 18, parágrafo único, do Código Penal,
que a conduta deve ser punida apenas quando praticada dolosamente, conforme
explica Polianna Pereira dos Santos:
Se fraudulenta é a gestão realizada mediante fraude, ardil, com o fim de obter vantagem ilícita, a gestão realizada sem a prudência necessária, com assunção de riscos desarrazoados e que não
320 FRAGOSO, Rodrigo. Gestão Temerária de Instituição Financeira. http://www.fragoso.com.br/eng/arq_pdf/artigos/arquivo71_.pdf 321 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 207-208. 322 PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o sistema financeiro nacional. São Paulo: RT, 1987, p. 52-53.
131
necessariamente precisa gerar prejuízos nos aponta para uma vertente de culpa, e não de dolo. Há doutrinadores que apostam na admissão implícita da modalidade culposa do crime de gestão fraudulenta. Não obstante, tendo em vista a excepcionalidade do crime culposo, conforme prevê o parágrafo único do artigo 18, do Código Penal, não se pode aceitar a caracterização culposa do crime de gestão temerária. Como, então, identificar o dolo de conduta realizada sem prudência? A jurisprudência reconhece o dolo eventual como elemento subjetivo mínimo para a caracterização do crime.323
O que se percebe, portanto, é que o crime de gestão temerária, tal como
está atualmente descrito no art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492/86, não deixa
claro qual a conduta proibida, o que é extremamente grave, principalmente por
se tratar de um crime de perigo abstrato. A respeito, vale registrar:
Se ordinariamente a redação típica não pode e nem deve valer-se de cláusulas genéricas ou elementos normativos excessivamente abertos, particularmente no que diz respeito aos delitos de perigo abstrato, o grau de indeterminação será tão extremo que a tarefa valorativa do juiz estará desvinculada de qualquer margem de referência, bem assim aos membros da comunhão social não poderá haver referência do proibido e do permitido.324
Em outras palavras, a indeterminação da conduta incriminada no tipo
penal em análise, somada à sua natureza de crime de perigo abstrato, denota
que o art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492/86, viola o Princípio da Lesividade e
está em desacordo com o Estado Democrático de Direito.
5 PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E SUBSIDIARIEDADE
O Princípio da Intervenção Mínima, também denominado última ratio, já foi
mencionado no presente trabalho, mas será analisado agora sob a perspectiva
da adequação dos delitos econômicos ao Estado Democrático de Direito.
Conforme já mencionado, esse princípio apregoa que o Direito Penal deve
se preocupar apenas com os bens mais importantes à vida em sociedade,
considerando as necessidades do momento histórico em que vige.
323 SANTOS, Polianna Pereira dos. Um estudo sobre o crime de gestão temerária à luz do princípio da legalidade estrita. Artigo digital portal IBCCRIM. Nº de chamada: 16. p. 2011 D16. 324 REALE JUNIOR, Miguel. Problemas Penais Concretos, São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 17.
132
Consequentemente, tal princípio não apenas determina a criminalização de
novas condutas, como, também, a descriminalização daqueles atos que não são
mais relevantes. A respeito, vale registrar:
O princípio da intervenção mínima, ou ultima ratio, é o responsável não só pela indicação dos bens de maior relevo que merecem a especial atenção do Direito Penal, mas se presta, também, a fazer com que ocorra a chamada descriminalização. Se é com base neste princípio que os bens são selecionados para permanecer sob a tutela do Direito Penal, porque considerados como os de maior importância, também será com fundamento nele que o legislador, atento às mutações da sociedade, que com a sua evolução deixa de dar importância a bens que, no passado, eram da maior relevância, fará retirar do nosso ordenamento jurídico-penal certos tipos incriminadores.325
A este princípio se liga diretamente o Princípio da Subsidiariedade, tendo
em vista que, segundo ele, o Direito Penal deve “interferir o menos possível na
vida em sociedade, devendo ser solicitado somente quando os demais ramos do
Direito, comprovadamente, não forem capazes de proteger aqueles bens
considerados da maior importância.”326
A essa ideia, vale acrescentar o entendimento de Pierpaolo Bottini,
segundo o qual a subsidiariedade é uma decorrência lógica do Estado
Democrático de Direito e do Princípio da Lesividade:
Afirmar que o direito penal funcional, ligado ao Estado Democrático de Direito, está limitado à proteção de bens necessários à garantia da dignidade humana e ao princípio da lesividade implica aceitar seu papel subsidiário no bojo do sistema da gestão de riscos. Se a norma penal só está autorizada a agir mediante uma violação de bens jurídicos fundamentais, o direito penal será o último recurso do Estado para promover o controle social.327
Em outras palavras, tendo em vista os ideais do Estado Democrático de
Direito, o Princípio da Subsidiariedade pode ser fundamentado da seguinte
forma: a ideia basilar de proteção de direitos fundamentais exige que haja limites
ao poder de punir estatal, portanto, tendo em vista que as penas impostas pelo
Direito Penal são as mais rigorosas do ordenamento, certo é que, em um Estado
325 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 47. 326 Ibidem. 327 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 208-209.
133
Democrático de Direito, a sanção penal pode ser adotada somente na presença
da violação de um bem do qual a sociedade não possa prescindir.
Ariella Shiraki explica que o Princípio da Intervenção Mínima e o Princípio
da Subsidiariedade correspondem a uma posição intermediária entre o
abolicionismo (que prega a substituição do Direito Penal por outras formas de
controle social) e o movimento denominado lei e ordem, que sustenta ser
possível solucionar o problema da criminalidade com o recrudescimento da
intervenção penal. A respeito, vale registrar as palavras da autora:
Dessa forma, apresenta-se como uma via de mão dupla. Vale dizer, se por um lado impõe a descriminalização de condutas que não apresentem nocividade social, bem como a previsão de penas alternativas à privação de liberdade do indivíduo diante de condutas de menor gravidade, por outro, autoriza uma maior reação penal para a tutela de novos bens jurídicos reputados relevantes, recorrendo-se até mesmo à construção de tipos de perigo abstrato.328
Das lições acima expostas é possível concluir que não há incompatibilidade
entre o Direito Penal Econômico e o Princípio da Intervenção Mínima e o
Princípio da Subsidiariedade, mesmo havendo o uso do crime de perigo abstrato.
Tal entendimento foi adotado pelo Código Penal espanhol de 1995, no qual
consta, na exposição de motivos, que foi enfrentada a “antinomia existente entre
o princípio da intervenção mínima e as crescentes necessidades de tutela em
uma sociedade cada vez mais complexa, dando prudente acolhida a novas
formas de delinquência, porém eliminando, por sua vez, figuras delitivas que
tenham perdido sua razão de ser.”329
Em relação aos crimes de perigo abstrato, bastante utilizados pelo Direito
Penal Econômico, Bottini explica que não haverá afronta ao Princípio da
Subsidiariedade “desde que a norma aponte para comportamentos arriscados
328 SHIRAKI, Ariella Toyama. A legitimidade do direito penal econômico como direito penal de perigo. Uma análise à luz dos princípios da lesividade e da intervenção mínima. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 83, v. 18, 2010. 7-52 / RBCCRIM, p. 37. 329 Ibidem.
134
para bens jurídicos tutelados, que não possam ser inibidos de maneira
satisfatória por outros mecanismos de gestão de risco.”330
Bottini explica, ainda, que para a concretização da subsidiariedade é
necessário que o Estado crie mecanismos de contenção eficazes, que não sejam
criminais. Caso contrário, segundo o autor, o Direito Penal fica transformado “em
instrumento de escape para a ineficácia de outras funções públicas que
garantam a estabilidade social”.331
O que se tem observado atualmente, entretanto, é que alguns fatores
(como a corrupção, a burocratização, entre outros) têm dificultado a ação de
controle de outros ramos do Direito como o Direito Administrativo e Civil. Tal fato
acaba por transferir para o Direito Penal funções pouco adequadas ao Estado
Democrático de Direito.332
5.1 Princípio da intervenção mínima, princípio da subsidiariedade e gestão
temerária
No que tange ao crime de gestão temerária, pelo que foi aqui exposto, é
bastante claro que o tipo viola também os Princípios da Intervenção Mínima e da
Subsidiariedade, até como decorrência lógica da violação em que incorre ao
Princípio da Lesividade.
Com efeito, por ser um crime de perigo abstrato previsto em um tipo penal
que não descreve apropriadamente a conduta incriminada, fica difícil embasar a
afirmação de que o Direito Penal é realmente necessário como gestor de riscos
nesses casos.
Nesse diapasão, nos parece que a adequação do art. 4º, parágrafo único,
da Lei 7.492/86 aos princípios ora em análise e, consequentemente, ao Estado
330 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 210. 331Ibidem. 332 Idem.
135
Democrático de Direito, exigiria que sua aplicação estivesse condicionada à
prévia existência de normas administrativas que regulassem os riscos permitidos
e proibidos na gestão de instituição financeira. Nesse caso, conforme já
mencionado no presente trabalho, o crime poderia ser mantido, inclusive, em
uma norma penal em branco, que previsse o núcleo essencial da conduta. Ou
seja, o crime poderia ser mantido se previsto em tipo penal que não deixasse
dúvidas no que tange à conduta proibida.
Imprescindível ressaltar que quando as sanções administrativas forem
suficientes para inibir condutas indesejadas na gestão de instituições financeiras,
a incriminação não será uma medida condicente com o Estado Democrático de
Direito atualmente vigente.
6 PRINCÍPIO DA FRAGMENTARIEDADE
Outro importante princípio para o Direito Penal adequado ao Estado
Democrático de Direito é o Princípio da Fragmentariedade. Segundo ele, apenas
as condutas que ataquem de forma violenta ou intolerável o bem jurídico pode
ser objeto da tutela penal. Trata-se do corolário dos Princípios da Intervenção
Mínima e da Lesividade, como bem explica Rogério Greco:
Como corolário dos princípios da intervenção mínima, da lesividade e da adequação social temos o princípio da fragmentariedade do Direito Penal. O caráter fragmentário do Direito Penal significa, em síntese, que, uma vez escolhidos aqueles bens fundamentais, comprovada a lesividade e a inadequação das condutas que os ofendem, esses bens passarão a fazer parte de uma pequena parcela que é protegida pelo Direito Penal, originando-se, assim, a sua natureza fragmentária.333
Esse princípio também não é necessariamente violado pelos crimes de
perigo abstrato, tendo em vista que estes proíbem condutas causadoras de
riscos que não podem ser tolerados pela sociedade, como é o caso de situações
envolvendo o manejo de energia nuclear e engenharia genética.334
333 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 59. 334 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
136
Não obstante a possível coexistência de crimes de perigo abstrato com o
Princípio da Fragmentariedade, atualmente é possível verificar tipos penais
dessa natureza que violam o princípio em comento. A respeito, leciona Bottini:
Por outro lado, em algumas situações a conduta típica não representa um ataque violento que ameace a estabilidade social, e sua sanção afetará o princípio da fragmentariedade. É o que ocorre com os delitos de perigo abstrato por acumulação, em que a prática de uma conduta típica não representa um ataque violento ou não permitido ao interesse protegido pela norma penal (supra IV,2) e nas hipóteses em que o risco criado pela conduta é tolerado pela sociedade (infra IV, 4.2.6). Nestas hipóteses, o comportamento não é avaliado como inadmissível dentro dos parâmetros do funcionamento social, ou pela baixa potencialidade lesiva, ou pela adequação aos padrões cotidianos de exposição ao risco, pelo que não caberá ao direito penal incidir sobre ele, sob pena de banalização de sua utilização.335
Vale ressaltar, entretanto, que embora concordemos que a sanção de
condutas produtoras de riscos tolerados pela sociedade336 viola o Princípio da
Fragmentariedade, não compartilhamos da opinião de que também os crimes de
perigo abstrato por acumulação padeçam desse mesmo vício. Isso porque,
conforme já exposto nesse trabalho, há uma série de requisitos a serem
observados para essa modalidade de incriminação, que, quando atendidos,
torna o tipo penal adequado ao Princípio da Fragmentariedade.
Em outras palavras, o Princípio da Fragmentariedade exige que a
elaboração dos tipos penais de perigo abstrato, bem como sua interpretação, se
atenham apenas a condutas que gerem intoleráveis riscos à sociedade.
6.1 Princípio da Fragmentariedade e gestão temerária
335 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 212-213. 336 De acordo com Bottini: “Existem hipóteses em que o risco, mesmo quando vedada pela norma penal na forma de tipos de perigo abstrato, é permitido diante de sua utilidade social em determinados contextos, tolerável pela dinâmica da comunidade me que se insere. A materialização do tipo não exige apenas a periculosidade, mas uma periculosidade não permitida. A ausência de permissão de criação de um risco é presumida pela existência de um tipo penal de perigo abstrato que veda a prática da conduta, mas pode ser afastada em determinadas situações limite, definidas como hipóteses de risco permitido.” BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 237.
137
Na mesma linha de raciocínio exposta ao longo desse trabalho, é certo que
também sob a perspectiva do Princípio da Fragmentariedade o crime de gestão
temerária merece críticas. Isso porque a impossibilidade de se aferir de forma
clara quais condutas poderão ser enquadradas no tipo penal acaba por transferir
ao Judiciário a função de eleger as atividades de gestão que configuram o crime,
esvaziando a ideia de que o Direito Penal deve incidir apenas sobre os riscos
intoleráveis para a sociedade.
Outrossim, tendo em vista que a materialização do tipo não exige apenas
a periculosidade, mas uma periculosidade não permitida, não se pode prescindir
de uma descrição precisa das condutas proibidas pelo tipo penal.
Com efeito, conforme já mencionado, há muitas divergências entre os
juízes no que tange a aceitabilidade ou não do risco produzido por diversas
conduta de gestão de instituição financeira, razão pela qual condutas idênticas
podem ser consideradas dignas de serem tuteladas pelo Direito Penal em alguns
casos e não em outros, o que não se coaduna com os direitos individuais
garantidos pelo Estado Democrático de Direito.
7 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Outro importante princípio do Direito Penal, também decorrente do Estado
Democrático de Direito e da importância e valoração da dignidade humana dele
decorrente é o chamado Princípio da Proporcionalidade (que aqui será
mencionado de forma sintética, apenas para tratar do crime de gestão
temerária). Isto porque, se a resposta deste ramo jurídico não for proporcional
ao agravo gerado pela conduta do agente, o próprio Princípio da Exclusiva
Proteção de Bens Jurídicos fica fragilizado, como bem explica Pierpaolo Bottini:
Outro vetor indispensável a um sistema penal fundamentado na dignidade humana é o respeito ao princípio da proporcionalidade. Como afirmado, a atuação do direito penal é legítima apenas diante da violação de bens que representam a dignidade humana: logo, a medida da resposta punitiva deve ser proporcional a esta violação, do contrário o próprio princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos não encontrará aplicação material. Se a aplicação da pena afeta a
138
dignidade, suprime bens fundamentais do ser humano, deve ser precedida pela violação, ou colocação em risco relevante, de bem de igual monta, ou maior, pelo agente delitivo.337
No mesmo sentido, Alberto Silva Franco Leciona:
O princípio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se, em consequência, inaceitável desproporção. O princípio da proporcionalidade rechaça, portanto, o estabelecimento de cominações legais (proporcionalidade em abstrato) e a imposição de penas (proporcionalidade em concreto) que careçam de relação valorativa com o fato cometido considerado em seu significado global. Tem, em consequência, um duplo destinatário: o poder legislativo (que tem de estabelecer penas proporcionadas, em abstrato, à gravidade do delito) e o juiz (as penas que os juízes impõem ao autor do deito têm de ser proporcionadas à sua concreta gravidade).338
É certo, portanto, que, em respeito ao princípio ora em comento, a
quantidade e intensidade da pena cominada a determinado delito e a ele
aplicada em concreto deve ser proporcional à importância do bem jurídico lesado
ou ameaçado e à gravidade da conduta. No que tange aos crimes de perigo
abstrato, essa proporcionalidade deve se dar levando em consideração quão
próxima de lesar o bem esteve a conduta incriminada. Destarte, é certo que os
crimes de perigo abstrato devem ser apenados de forma mais branda do que os
de perigo concreto e de lesão.339
7.1 Princípio da Proporcionalidade e crime de gestão temerária
Conforme já exposto, entendemos que o art. 4º, parágrafo único, da Lei
7.492/86, não nos permite aferir qual a conduta que considera delituosa.
Considerando todos os princípios violados em decorrência de tal característica,
o atendimento ao Princípio da Proporcionalidade pelo tipo se torna inviável, ao
menos no que tange ao estabelecimento das penas em abstrato.
337 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 213. 338 SILVA FRANCO, Alberto. Crimes hediondos. 4. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 67. 339 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op. cit., p. 215.
139
Com efeito, se não é possível saber qual conduta o legislador visou a
incriminar, menos ainda se pode concluir se a pena a ela cominada é ou não
proporcional à sua gravidade.
7.2 Proibição de Proteção Deficiente
Conforme já exposto nesse trabalho, o Princípio da Proporcionalidade
possui, além da vertente acima mencionada, a que trata da proibição de proteção
deficiente. Isso significa que, se por um lado o Direito Penal não pode agir com
excessos para que não desrespeite os direitos fundamentais e não atrapalhe os
objetivos da Ordem Econômica, por outro, não pode ser limitado em demasia,
para não tornar deficiente à proteção de bens jurídicos.
Com efeito, a proteção da dignidade da pessoa humana, sempre visada
pelo Estado Democrático de Direito, depende não apenas do respeito aos
direitos fundamentais daqueles que praticam condutas incriminadas, mas
também da efetiva proteção às vítimas e à sociedade em geral. Ou seja, o Estado
também frustra o seu dever de proteção à sociedade, quando deixa de
resguardar de forma adequada determinado bem jurídico.
Em outras palavras, o Direito Penal atende ao Princípio da
Proporcionalidade quando, sem descurar dos direitos individuais e das garantias
já concedidas ao cidadão contra o poder punitivo estatal, incide de forma
suficiente a proteger bens jurídicos de grande relevância, como é o caso da
Ordem Econômica.
Diante disso, admite-se algumas peculiaridades na incidência de princípios
constitucionais, quando aplicados a crimes econômicos, conforme exposto
acima. Não se pode aceitar, entretanto, que se ignore importantes garantias
individuais, como ocorre com o crime de gestão temerária, sendo certo que tipos
penais com vícios dessa natureza não podem subsistir no Estado Democrático
de Direito em que vivemos atualmente.
140
CONCLUSÃO
O Estado Constitucional surgiu como um Estado Liberal, visando a limitar
os poderes estatais – e, consequentemente, sua possibilidade de intervir na vida
dos particulares –, como forma de reação ao absolutismo que lhe precedeu.
Corresponde à primeira dimensão dos direitos fundamentais, denominados
direitos civis e políticos (Direito de Liberdade), também designados de direitos
negativos, por pretender a abstenção do Estado.
As constituições desse período, refletindo o desejo da sociedade à época,
focavam na proteção dos interesses individuais dos cidadãos e não tratavam de
matérias concernentes à ordem econômica. O Direito Penal se adequava a essa
tendência, se preocupando em proteger bens jurídicos essencialmente
individuais.
Com o passar do tempo, entretanto, alguns eventos históricos deixaram
claro que a falta de regulamentação estatal possibilitava aos particulares a
realização de uma série de condutas que desestruturava as economias dos
países liberais. As crises decorrentes dessas desestruturações, pelas
consequências nefastas que geraram às sociedades atingidas, foram de grande
relevância para que ficasse evidenciada a necessidade de o Estado intervir na
economia. A partir de então, as constituições passaram a tratar da Ordem
Econômica e de outras questões sociais.
Com a intervenção do Estado na economia e a necessidade de garantir o
efetivo cumprimento das normas governamentais destinadas ao setor, surgiu o
Direito Penal Econômico, como campo jurídico-penal destinado à tutela do bem
jurídico meta-individual Ordem Econômica, o que significou uma relevante
mudança para o Direito Penal, até então focado na proteção de bens jurídicos
individuais.
A existência de bens jurídicos transindividuais (considerando que em um
Estado Democrático de Direito o conceito de bem jurídico deve ser inferido da
141
Constituição) nos parece absolutamente possível e pertinente com o
ordenamento jurídico brasileiro. Na verdade, mais do que possível, nos parece
imprescindível para o bem-estar social que interesses coletivos como a Ordem
Econômica sejam tutelados pelo Direito Penal.
Com efeito, sendo os bens jurídicos penais aqueles valores de maior
importância à sociedade e tendo em vista que condutas lesivas à Ordem
Econômica podem gerar crises de âmbito nacional, levando ao desemprego e à
diminuição de renda em todo o país, negar a tutela penal a tal bem jurídico
colocaria em cheque a própria utilidade do Direito Penal para a
contemporaneidade.
Neste diapasão, importa lembrar, ainda, que em um Estado Democrático
de Direito, a lei é o meio utilizado para cumprir objetivos, como a busca do bem-
estar social, a igualdade material (de fato) entre os cidadãos (ou, ao menos, a
redução da desigualdade), a formação de uma sociedade justa e a preservação
dos direitos fundamentais. Destarte, o Direito Penal deve ser composto por um
conjunto de normas jurídicas aptas a servirem ao Estado Democrático de Direito
como instrumento para a realização desses objetivos, o que só é possível com
a tutela dos valores que hoje são os mais relevantes para a sociedade.
Seguindo tal raciocínio, nos parece correto adotar, em defesa da eficaz
tutela da Ordem Econômico pelo Direito Penal brasileiro, o denominado Princípio
da Vedação à Proteção Deficiente, que decorre do Princípio da
Proporcionalidade e considera que a proteção da dignidade da pessoa humana,
tão valorizada pelo Estado Democrático de Direito, depende para sua efetividade
não apenas do respeito aos direitos individuais daqueles que praticam condutas
incriminadas, mas também da efetiva proteção às vítimas e à sociedade em
geral.
Evidentemente, não se pretende defender aqui que o Direito Penal, na
tutela da Ordem Econômica, possa se esquecer de seus preceitos basilares,
criados para proteger os cidadãos do ius puniendi estatal – já que as garantias
aos direitos individuais continuam como algo essencial ao Estado Democrático
142
de Direito. O que se defende é que deve haver um equilíbrio para que,
observando as garantias individuais, o Direito Penal não se torne insuficiente ou
ineficiente para a proteção do bem jurídico transindividual Ordem Econômica,
tendo em vista as nefastas consequências que podem advir de sua lesão.
Além das garantias individuais, na defesa da Ordem Econômica brasileira,
o Direito Penal deve observar, também, os princípios e diretrizes a ela
concernentes, previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, para que, protegendo adequadamente tal bem jurídico, não se torne um
empecilho ao desenvolvimento econômico nacional. Por essa razão, não devem
ser adotadas interpretações que levem à penalização de atos incentivados ou
consentâneos com os objetivos perseguidos no setor.
Com efeito, o cenário hodierno, marcado pela globalização e o advento
da sociedade de risco, possui uma série de peculiaridades atinentes ao âmbito
econômico que não podem ser ignoradas pelo Direito Penal. Dentre elas, é de
elevada relevância o fato de que o modelo de produção atual exige constantes
inovações, que muitas vezes geram riscos de graves danos à sociedade como
um todo.
Ou seja, há um paradoxo em relação à causação de risco no setor
econômico: por um lado, os riscos são necessários e desejados para o
desenvolvimento econômico, por outro, são temidos. Para conciliar essa
contradição, o Direito Penal deve ter sua aplicação limitada às atividades
econômicas geradoras de riscos inadmissíveis, por sua danosidade (ao menos)
potencial, e condicionada à falta de outros meios hábeis e menos agressivos
para a contenção de riscos pretendida.
O combate aos riscos gerados pela sociedade atual a vários bens jurídicos
transindividuais, inclusive à Ordem Econômica, exige do Direito Penal uma série
de adaptações em seu modelo tradicional, que estava adequado à realidade da
Sociedade Industrial – na qual bastava, para a eficaz proteção dos cidadãos, a
proteção a bens jurídicos clássicos (individuais), tais qual a vida, o patrimônio e
a propriedade. A esse Direito Penal modificado foi conferida a denominação de
143
Direito Penal do Risco, que tem como uma de suas características marcantes o
uso abundante de crimes de perigo abstrato, para que seja possível antecipar ao
dano a incriminação de determinadas condutas perigosas.
Com efeito, diferentemente dos crimes de lesão ou de perigo concreto, os
crimes de perigo abstrato não precisam da lesão ou efetiva ameaça de lesão ao
bem jurídico para se configurarem. Neles, o legislador deixa de prever um
resultado naturalístico para a consumação do delito: há apenas a descrição da
conduta penalmente relevante, com a exposição do bem jurídico a perigo e a
mera potencialidade de dano.
Embora haja discussões a respeito da legitimidade e constitucionalidade
dos crimes de perigo abstrato, prevalece que por sua indispensabilidade para a
adequada proteção da sociedade atual, deve-se aceitá-lo, contanto que a
conduta punida gere efetivo risco e esteja suficientemente descrita no tipo penal
(posição a que nos filiamos).
Em outras palavras, o crime de perigo abstrato será legítimo e
constitucional se efetivamente proteger o bem jurídico e se for elaborada de
forma plenamente inteligível, descrevendo claramente o comportamento
incriminado e a pena imposta. O uso do crime de perigo abstrato nesses termos
permite o equilíbrio que deve haver entre a tutela efetiva da Ordem Econômica
e o respeito aos direitos individuais.
Outras modalidades de tipificação que, embora importantes para a tutela
da Ordem Econômica, requerem alguns cuidados para se manterem legítimas
são: (i) tipos penais em branco, que para não violar o Princípio da Legalidade e
da Taxatividade precisam prever em seu bojo o núcleo essencial da conduta, e
(ii) tipos penais abertos, que devem enunciar com clareza as características
essenciais da conduta proibida, tornando-a inconfundível com outras.
Tipos penais que não atendam minimamente aos princípios basilares do
Direito Penal, como aquele que prevê o crime de gestão temerária, não podem
ser aceitos no ordenamento jurídico brasileiro, independentemente da
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importância que possam ter para a proteção da Ordem Econômica, por violarem
os direitos e garantias assegurados pelo Estado Democrático de Direito.
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