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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO- PUC-SP
JUDSON FORLAN GONZAGA CABRAL
ANTONIN ARTAUD: A VIDA E SUA DIMENSÃO POLÍTICA
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2015
JUDSON FORLAN GONZAGA CABRAL
ANTONIN ARTAUD: A VIDA E SUA DIMENSÃO POLÍTICA
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais, sob a orientação do Prof. Dr. Miguel Chaia.
SÃO PAULO
2015
BANCA EXAMINADORA
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Miguel Chaia, orientador generoso, inventivo e muito
firme. Amigo, pelo qual serei eternamente grato.
A Professora Vera Chaia, por tudo.
À Talita Alcalá Vinagre, amiga admirável, Pesquisadora/Artista admirável.
Muito obrigado!!!
A todos os meus amigos, que durante toda essa trajetória foram
fundamentais: Joana Egypto e Ricardo Campello, pelas longas conversas, trocas e
generosidade. Luis Eduardo Tavares e Alexis Milonopoulos, amizade que levarei
para a vida. Andrei Massa, parceiro de trabalho, amigo de longa data. Paloma Fraga,
pelas inúmeras conversas, trocas, parcerias estimulantes. E a todos os outros.
À professora Silvana Tótora, pelas suas aulas magnificas e seus textos
estimulantes.
À professora Rose Segurado, pelas aulas na graduação e mais ainda por me
apresentar ao professor Miguel Chaia.
Ao Professor Renato Ferracini e à professora Silvana Tótora, pela atenção e
pelas decisivas sugestões na banca de qualificação e presença na banca de defesa.
A Katia e Rafael, funcionários do Programa em Ciências Sociais, por sempre
me ajudar quando precisei e ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências
Sociais da PUC.
A PUC-SP, esse espaço da produção e circulação de conhecimento.
Ao CNPq-CAPES, pela bolsa que me permitiu fazer a pesquisa.
A minha mae Maria das Graças, (Gaga), pela batalha da vida, por fazer tudo
isso possível; ao meu pai João Batista (Beruca), pela felicidade e leveza com que
leva a vida; aos meus irmãos João Fábio Cabral (preto), Francister Cabral (Mirte) e
Fábia Cabral (Fabia), por tornar possível tudo isso.
A memória de José Claudio Peixoto Mendes, onde estiver meu eterno
agradecimento. Muito, muito obrigado. A Você, eu dedico essa Dissertação, pois
tenho certeza que você estaria muito feliz! Viva, viva!!!!!!
A Antonin Artaud, por me fazer pensar, por me fazer querer mais e mais a
VIDA.
RESUMO
Antonin Artaud foi um artista francês que viveu no século XX. Ele com seu teatro e
estilo de vida abalou os diversos programas morais e instituições pelas quais a vida
era balizada. Fez de sua vida e arte um combate. Por isso mesmo sofreu diversos
tipos de correções. Artaud, homem de teatro, trabalhou como ator de cinema, foi
dramaturgo, figurinista, cenógrafo, desenhista, crítico de arte, foi um ativo entre seus
contemporâneos. Trilhando inicialmente a esteira das vanguardas históricas e de
seus ideais, especialmente o dos surrealistas tinha como projeto revivificar a arte
teatral para que a mesma fosse usada como o lugar de ação sobre a vida. O teatro
como prática de si. A obra de Artaud foi fundamental para que ele pudesse traçar
uma vida que se colocava além ou aquém de certa perspectiva de vida vigente com
seus mecanismos normalizadores. Além de Artaud e seu teatro a pesquisa enfatiza
Nietzsche e Foucault com alguns conceitos caros a esses autores. A vida dos três
foram vidas que de certa forma traçaram sobre a existência maneiras outras de estar
nela. Instituíram uma estética da existência à medida que fizeram das suas vidas
uma obra de arte. Portanto, a pesquisa enfatiza a vida e sua dimensão política
entendida aqui na qualidade de uma vida no e pelos seus experimentos. Para tanto,
busca pensar à luz dos autores outros tipos possíveis de politização.
Palavras-chave: Vida. Política. Teatro. Crueldade. Estética da existência.
ABSTRACT
Antonin Artaud was a french artist that lived on 20th century. With his theater and
lifestyle, he shattered several moral institutions and rules that guided life. Made his
life and art a combat. For this same reason, was subject of several reprimands.
Artaud, man of theater stage, worked as a film actor, playwright, costume designer,
scenographist, illustrator, art critic, an active man among his peers. Begun threading
the path of historical avant-garde, and his ideals, especially those connected to
surrealism, were aimed at revive theatrical art so it could be used as the place of
action on life. Theater as practice of itself. Artaud’s works were crucial so he could
draw a life that was beyond or earlier of a certain life perspective consonant with its
standardizing mechanisms. Beyond Artaud and his theater, this research focus on
Nietzsche and Foucault, addressing some concepts dear to those authors. The life of
those three were lives that to a certain extent drawn over existence other ways to be
part of it. They established an aesthetic of existence from designing their lives as art
pieces. Therefore, the research focuses on life and its political dimension seen
through quality of life and its experiments. In this sense, draws the authors’ thoughts
for different kinds of political actions.
Keywords: Life. Politics. Theater. Cruelty. Aesthetics of existence.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................. 08
1 EXPERIMENTO ARTAUD: UMA INVESTIGAÇÃO POLÍTICA, O
TEATRO COMO PRÁTICA DE SI.....................................................
24
1.1 Teatro Alfred Jarry............................................................................. 26
1.2 O Teatro e seus duplos...................................................................... 32
1.3 O teatro e a peste.............................................................................. 37
1.4 O Teatro da Crueldade...................................................................... 43
1.5 O corpo-sem-órgãos.......................................................................... 54
1.6 A Dimensão Política do Teatro de Artaud.......................................... 59
2 ANTONIN ARTAUD ENTRE NIETZSCHE E FOUCAULT: A
CRUELDADE E O CUIDA DE SI COMO PRÁTICA,
RESISTENCIA E EMERSÃO DE VIDAS OUTRAS..........................
78
2.1 O poder em Foucault......................................................................... 79
2.2 Nietzsche e a Grande Política........................................................... 85
2.3 A crueldade entre Artaud e Nietzsche............................................... 91
2.4 O Antonin Artaud o suicida da sociedade.......................................... 98
2.5 Artaud um contradiscurso, uma anticonduta..................................... 106
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................. 116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................. 127
8
INTRODUÇÃO
Artaud (2006) começa seu livro “O teatro e seu duplo” da seguinte maneira:
Nunca como neste momento, quando é a própria vida que se vai, se falou tanto em civilização e cultura. E há um estranho paralelismo entre esse esboroamento generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para reger a vida. (2006, p. 01).
Artaud começa a esboçar esse livro entre os anos de 1930 do século XX em
diante. Pouco tempo, portanto, antes de sua última internação que durou dos anos
de 1939 a 1946. De 1946 a 1948, ano de sua morte, ele completou o que veio a ser
“O teatro e seu duplo”. Em todo caso a questão que se colocava para Artaud era
acerca do que a cultura ocidental com seu processo civilizatório estava fazendo com
a vida. Ele via nesse processo civilizatório a ruína da própria vida e a separação de
sua potência. Percebia que pouco a pouco os indivíduos eram cortados das suas
conexões vivas para se submeterem a um estilo de vida que os coficavam. Toda sua
luta em vida sendo, portanto, um constante combate as segmentarizações, balizas
pelos quais o corpo e a vida passavam.
Pois bem, essa pesquisa teórica que agora apresento volta sua análise
acerca da vida e sua dimensão política na obra e vida do Artista francês Antonin
Artaud. Buscando refletir como Artaud com seu teatro criou através de seus
experimentos e escrita uma vida que resistia às estratégias de poder e seus
mecanismos de normalização. Além de Artaud, outros dois autores serão
fundamentais para pensar a vida e sua dimensão política na obra e vida do artista
francês. São eles: Michel Foucault e Fredriech Nietzsche.
A vida é um daqueles conceitos rodeados de discussão. Está presente em
todos os lados, nas conversas cotidianas, nos discursos científicos, na política, na
mídia, na igreja, nas artes. A vida virou o foco de investimento. A potência de uma
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nação corresponde à vida da população: medida por meio das taxas de natalidade,
mortalidade, longevidade, qualidade etc. Em nome da vida, são criadas e usurpadas
forças, reivindicados e declarados direitos, instituídos e modificados costumes.
Contudo, fica uma pergunta, de qual vida estamos falando? De uma vida que de
cabo a rabo foi aparelhada pelo capital, pois este necessita, como deixa claro
Maurizio Lazzarato na esteira Felix Guattari, lançar modelos subjetivos que se
articule com os fluxos econômicos, tecnológicos e sociais. Ou seja, do mesmo modo
que se produz carro, roupa, se produz subjetividades que consumam tais produtos,
mas não só os produtos, e sim, formas de vida. Através dos fluxos de imagem, de
informação, de conhecimento e de serviços que acessamos constantemente,
absorvemos maneiras de viver, sentidos de vida, consumimos toneladas de
subjetividade.
A vida vira o alvo da política moderna enquanto forma, estilo. Ao final de
“História da sexualidade volume I: A vontade de saber”, Foucault sintetiza o processo
através do qual, no início da modernidade, a vida natural começa a ser incluída nos
mecanismos e cálculos do poder estatal, transformando a política em biopolítica: “o
homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e,
além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja a
política, sua vida de ser vivo está em questão”1. (1997, p. 134).
Foucault apresenta nos seus cursos no College de France, suas ideias sobre
a passagem do “Estado territorial” ao “Estado de população”. Ele definiu o conceito
de Biopolítica como a forma pela qual se tentou, desde o século XVIII, racionalizar
os problemas apresentados `a prática governamental através de fenômenos próprios
a um conjunto de seres vivos constituídos como uma população. Eram estes
fenômenos relativos à saúde, higiene, natalidade, diferença entre raças, etc.
Segundo Foucault, foram duas as formas principais através das quais se
desenvolveu concretamente o poder sobre a vida a partir do século XVII. A primeira
se centrou no corpo máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões,
na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na
1 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1997a.
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sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos. As disciplinas como
procedimentos de poder asseguravam o cumprimento dessas metas. A segunda
forma de exercício do poder sobre a vida como já mencionado, a saber a biopolítica,
se formou por volta da metade do século XVIII e centrava-se no corpo espécie, no
corpo como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a
mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida. Tais processos são assumidos
mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores, através de uma
biopolítica da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população,
segundo Foucault, constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a
organização do poder sobre a vida.
Assim é que, com abordagem dos mecanismos da biopolítica, a ampliação
dos instrumentos teóricos que compõem a analítica do poder realizada por Foucault
chega ao tema do “governo da vida” ou, ainda, ao problema da “vida como objeto de
governo”. É no interior dessas duas análises que pode ser situado o estudo
realizado por Foucault acerca do poder pastoral – entendido pelo filósofo como o
“modelo arcaico” das governamentalidades políticas -, bem como seu estudo sobre
as “artes de governar” consistente na razão de Estado e nos neoliberalismos
contemporâneos.
Contudo, se é a vida o alvo sobre a qual incide todas técnicas de poder
político na tentativa de uma homogeneização da mesma, é nela própria que se
encontrará as resistencias que permitirão que outros tipos de vida possam emergir.
Essas formas de vida visadas não constituem uma massa inerte `a mercê das
tecnologias de poder político, mas um conjunto vivo de estratégias. A partir daí, seria
preciso se perguntar de que maneira, no interior desses mecanismos de controle e
produção de subjetividade, pode surgir novas modalidades de se agregar, de
trabalhar, de criar, de auto-superar, de inventar dispositivos de valorização e
autovalorização.
Umas das alternativas, talvez, esteja na criação de territórios alternativos
àqueles ofertados ou mediado por essas tecnologias do poder vigente. Territórios
esses que possam servir de meios para afirmar modos outros de ocupar o espaço
doméstico, de cadenciar o tempo comunitário, de mobilizar condutas outras, de
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reinventar a corporeidade, de lidar com o prazer e a dor, de rascunhar uma
existência outra. Territórios existenciais como propõem Deleuze-Guattari, espaços
heterotópicos como explica Foucault, isto é, outros espaços no interior da sociedade
com suas instituições normalizadoras, com seus espaços de contenção,
perspectivas extra-moral como reivindica Nietzsche, com seu combate a
unilateralidade da perspectiva moral judaico-cristã.
Isto é, “imaginar e fazer existir novos esquemas de politização”. Pois segundo
Foucault (2014), o conjunto das relações de força em uma sociedade dada constitui
o domínio da política, a política é uma:
Estratégia mais ou menos global que tenta ordenar e finalizar essas relações de força […] Toda relação de força implica, a cada momento, uma relação de poder (que é, de algum modo, seu corte instantâneo), e cada relação de poder remete, como ao seu efeito, mas também como `a sua condição de possibilidade, a um campo político de que ela faz parte”. (2014, p. 40).
Para Foucault, a análise e critica política tem que inventar estratégias que
permitirão, ao mesmo tempo, modificar essas relações de forças bem como
coordená-las de maneira que essa modificação seja possível e se inscreva na
realidade.
Segundo Foucault, as relações de poder enraízam-se profundamente no nexo
social. Uma sociedade sem relações de poder só poderia ser uma abstração, já que
viver em sociedade é viver de modo que seja possível uns agirem sobre a ação do
outro. Contudo, deve-se notar que isto não quer dizer que o poder se constitui em
uma fatalidade incontornável no centro da sociedade, tampouco que as relações de
poder tal como estão constituídas sejam necessária e que não possam ser
transformadas ou abolidas.
Buscar formas novas de fazer política, eis o recado de Foucault, só assim
poderemos resistir a “vampirização” da vida por parte das tecnologias do governo da
vida, das condutas. E uma das maneiras que ele enxerga a partir do estudo da
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antiguidade é a do cuidado de si, a de fazer da própria existência uma obra de arte.
A de tornar a vida uma experiência, não no sentido de acumulação, mas no sentido
de torna-se outra coisa por meio da experimentação. Ou a fórmula “Torna-se o que
é” nietzschiana que pode ser entendida como um devir aplicado `a vida humana. A
uma vida enquanto exercício de estilo.
Para Rosa Dias, Nietzsche exorta cada um esculpir sua existência como uma
obra de arte. A vida deve ser pensada, querida e desejada tal como um artista
deseja e cria sua obra, ao empregar toda sua energia para produzir um objeto único.
Eis o que nos fala Dias (2011):
Mantendo a arte de viver em primeiro plano, Nietzsche investe todo seu saber na tarefa de descobrir e inventar novas formas de vida, Convida o ser humano a participar de maneira renovada na ordem do mundo, a construir a própria singularidade, organizar uma rede de referências que o ajude a se moldar na criação de si mesmo. E tudo isso só pode ser feito contra o presente, contra um “eu” constituído2. (2011, p.12).
O ser humano, para a autora na esteira de Nietzsche, é um hábil
experimentador de si mesmo, um espírito em constante metamorfose. Recusar,
portanto, um “eu” constituído, é colocar em evidencia um sistema complexo de
elementos múltiplos, distintos e que nenhum poder de síntese domina. É tornar
visível a multiplicidade que é o ser humano e que a cultural Ocidental tentou forjar
como um eu universal, carregando em si uma essência a priori, sendo o mesmo para
todos os tempos e lugares. Sendo da ordem dos efeitos, as subjetividades são
configurações singulares, históricas, momentâneas; configurações transitórias e
descontínuas, abertas a múltiplas possibilidades de acordo com as práticas a que
estão submetidas.
Portanto, a vida não pode ser restringida a uma única perspectiva, a vida é
expansão, e como expansão é uma atividade criadora, que não quer conservar-se:
antes de tudo quer crescer. Para Nietzsche a vida é vontade de potência e como
2 DIAS, Rosa. Nietzsche: a vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
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vontade de potência busca apropriar-se de alguma coisa para impor uma forma, um
sentido, uma função, uma nova direção.
Fazer da vida uma obra de arte é fazer da própria vida um experimento, é
concebê-la como um risco em que se pode “ganhar” ou “perder” isso porque tudo é
novo, inédito e perigoso. O seu projeto político está na concepção de uma
singularidade radical, no surgimento de vida paralelas que não se contentam com o
que estar estabelecido, mas que faz ranger de dentro os pilares que sustentam essa
falsa “boa vida”, “vida feliz”. A política está na afirmação da sua condição de outsider,
em não querer participar dos estabelecidos e suas fixações hierárquicas e seus
assujeitamentos, e sim, na constituição de estilos outros de vida que tem na sua
imanência sua própria valoração.
Mas para isso, temos que inventar como nos fala Foucault espaços aonde
essas vidas possam ser gestadas, rascunhadas, experimentadas. E talvez, não
tenha lugar melhor para tais experimentos do que nas artes. Todavia, o objeto dessa
pesquisa é o artista francês Antonin Artaud e seu teatro da crueldade, isto é, a vida e
sua dimensão política, enquanto uma política do experimento, da invenção, uma
“política menor” nos termos deleuzianos, uma “grande política” nos termos
nietzschiano e que, portanto, não se pretende enquanto modelo a ser seguido
universalmente, mas enquanto uma “arte interessada”, na exata medida que
estimula a vontade de potência como movimento de auto-superação, isto é, uma
força originária. A arte como estímulo da vida.
Todavia, se faz necessário, como ficará explicito durante a presente pesquisa,
deslocar o entendimento acerca da relação arte e política e mais especificamente
acerca do entendimento do que seja teatro político. Pois, como comumente é
concebido, grosso modo, o teatro político é todo aquele que tem na tematização, no
seu conteúdo o carimbo de reconhecimento. O deslocamento de uma arte como
instrumento propagandístico de uma concepção política: instrumento de propaganda
política seja dos governantes, seja de grupos políticos de oposição, seja de minorias.
Deslocar a concepção do teatro político como muitos o define é também
problematizar se na maior parte das vezes, o teatro político não passa de um ritual
de confirmação para aqueles que já estavam convencidos.
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Artaud reivindica que o teatro crie seu próprio espaço e que não seja mera
representação de conflitos sociais, mas que seja um espaço de contínua criação, de
feitura e desmanche do homem e do mundo que habita. Portanto, não é um teatro
que se contenta com a representação da realidade, mas um teatro que cria
realidades e com isso se torna um meio de confronto da mesma, vide sua ideia
acerca do teatro e a peste. Não é um teatro da representação enquanto auto-
conservação de uma certa realidade, perspectiva, vida, mas um teatro que afirma a
vida como continua criação. Eis o que nos diz Derrida (2009):
[…] Artaud quer acabar com o conceito imitativo da arte. Com a estética aristotélica na qual se reconheceu a metafísica ocidental da arte. ' A arte não é imitação da vida, mas a vida é a imitação de um princípio transcendente com o qual a arte nos volta a pôr em comunicação' […] A arte teatral deve ser o lugar primordial da destruição da imitação: mais do que outro foi marcado por esse trabalho de representação total no qual a afirmação da vida se deixa desdobrar e escavar pela negação. Esta representação, cuja estrutura se imprime não apenas na arte mas em toda cultura ocidental (as suas religiões, as suas filosofias, a sua política), designa portanto mais do que um tipo particular de construção teatral. Eis por que a questão que se põe a nós hoje excede largamente a tecnologia teatral3. (2009, p. 342).
Isto se aproxima - claro, guardadas as devidas diferenças - por um lado, com
o pensamento de Rancière (2012) quando ele nos fala o seguinte:
[...] Como o teatro poderia desmascarar os hipócritas, se a lei que o rege é a lei que governa o comportamento dos hipócritas: a encenação por corpos vivos dos sinais de pensamentos e sentimentos que não são seus? […] O problema então não se refere à validade moral ou política da mensagem transmitida pelo dispositivo representativo. refere-se ao próprio dispositivo. Sua fissura põe à mostra que a eficácia da arte não consiste em transmitir mensagens, dar modelos ou contramodelos de comportamento ou ensinar a decifrar as representações. Ela consiste sobretudo em disposições dos corpos, em recorte de espaços e tempos singulares que definem maneiras de ser, juntos ou separados, na frente ou no meio, dentro ou fora, perto ou longe"4. (2012, p.55).
3DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 2009.
4RANCIÈRE, Jacques. A emancipação do Espectador. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
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Por outro lado, com a problematização de Lazzarato (2014) no rastro de Feliz
Guattari acerca da representação política e as funções representativas da linguagem:
As semióticas significantes (linguagem, escritura) afirmam 'representar' todas as outras podalidades de expressão ditas pré-significantes (corporais, mímicas, icônicas) e a-significantes (a moeda, as equações da ciência etc). A essas últimas faltam alguma coisa que só a linguagem pode acrescentar, da mesma forma que falta para os cidadãos e para o social alguma coisa que só a representação política pode trazer. […] tanto a 'representação', linguageira quanto a representação política constituem uma tomada de poder que sobrecodifica, hierarquiza, subordina as outras semióticas e as outras modalidades de expressão. As duas formas de 'representação', nos sistemas de signos e nas instituições políticas, são solidárias, e toda ruptura política requer que tanto uma quanto a outra se desfaçam5. (2014, p. 174).
Artaud entendi que essas formas de representação, principalmente a da
linguagem, separava o homem das forças que impulsiona e que o faz vibrar em um
plano de criação. Para ele, essas representações é o que nos fazia estabilizar em
uma forma, ou melhor, que nos faz pensar, viver através de formas cristalizadas,
criando assim, maneiras corretas” de pensar, bem como, de sentir e de viver. Neste
caso ganha força a compreensão da arte num movimento interno em direção ao
sujeito, seja ele artista ou usufruidor. O significado da arte é marcadamente o de
potencializar a vida, criando simbiose de difíceis distinções entre artista , obra,
circunstância e vida. Uma arte que está voltada a constituição de si próprio.
A constituição de si mesmo para Lazzarato (2014) pode romper com as
significações dominantes, “já que ela não considera, num primeiro momento,
significantes, discursos, mas uma potência de autoafetação, uma relação de força
com ela mesma”. (2014, p.176). Se formos nos vestígios de Foucault poderíamos
falar de uma prática de subjetivação e produção de modelos de existência. E tal
problemática era cara a Artaud, visto seu pensamento acerca da relação entre vida
e arte, pois, para o criador do “teatro e a peste” essa relação só pode ser concebida
como combate, no sentido de provocação de uma pela outra, da qual nenhuma sai
5LAZZARATO, Maurizio. Signos, máquinas e subjetividades. São Paulo: SESC/n-1, 2014.
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intacta. Segundo Lazzarato (2014):
A subjetivação política foucaultiana é indissociável da ethopoiesis (a formação do ethos, a formação do sujeito). A necessidade de articular a transformação do mundo (das instituições, das leis) com a transformação de si, dos outros e da própria existência constitui, de acordo com Foucault, o problema específico da política [...]. (2014, p. 299).
O que esse teatro começa a perceber é que a força, talvez, política (de ação)
do teatro na contemporaneidade estaria no fato mesmo de interromper certa
apreensão da realidade. Muito mais do que na representação da mesma ou em
reproduzir uma forma pautada na transmissão. Esse teatro se caracteriza por criar
espaços de experimentação de si. Busca ser mais da ordem da suspensão,
descontinuidade, e menos da mediação. Ele quer ser mais da produção de presença
e menos da representação.
A questão que se coloca, portanto, é como a arte pode se tornar uma ação
política e, por conseguinte, um meio de criação de outras maneiras de se estar na
vida. Ora, a arte de Artaud não era outra coisa senão essa tentativa, ou seja, a
tentativa de uma ação que buscava outra forma de vida. Mas não se deve entender
outra forma de vida como uma simples reforma, aonde sai de uma e vai para outra
mantendo a mesma lógica anterior. Por querer essa outra forma um paradoxo se
instaurava, pois por um lado ele combatia certa forma de política, mais ligada ao
modelo institucional e, portanto, a sua lógica macropolítica, que para ele era a
interrupção dos fluxos potentes, era de alguma forma domesticadora dos instintos
rebeladores e do estreitamento da vida, das várias possibilidades de exercê-la. Mas
ao mesmo tempo, ao insistir em querer interromper a ressonância-codificadora
macro sobre a vida, ele se relacionava com outra dimensão da política, com a
micropolítica. Pois de algum modo ele sabia que era ali na dimensão do contato
entre os corpos que novas formas poderiam insurgir.
Isto me faz perceber que além da arte como uma ação, um meio de se criar
fissuras na vida, a própria vida do artista é em si reveladora de todo um investimento
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político para conformá-la a uma determinada ordem. Talvez, esteja aí relevância da
pesquisa que aqui segue, isto é, a tentativa de estudar a dimensão política na vida e
na mesma proporção e como possibilidade de resistência sua dimensão política
enquanto experimentadora de estilos outros.
A presente pesquisa, portanto, tem o objetivo de analisar uma dimensão
política que envolva a situação da própria vida. Tomando como referência a obra de
Artaud pretende-se problematizar o conceito de política, supondo sua característica
polissemica, de modo a ampliar este conceito para experiencia da “escrita de si”, e
assim, ver nesta “política-menor” possibilidades de invenções da própria e existência
e do que a restringi.
Para tanto o recorte da pesquisa se deu pelo estudo de alguns textos de
Artaud na qual ele formula o conceito do teatro da crueldade, buscando os
desdobramentos deste meio artístico nas dimensões da vida ou existência, numa
situação marcada pela cultura enquanto área compreendida politicamente. Neste
sentido, estão sendo analisadas criteriosamente três obras de Artaud, quais sejam:
O teatro e seu duplo, Linguagem e Vida e Van Gogh, O suicidado da sociedade.
O tema dessa pesquisa, portanto, refere-se a relação entre arte e política,
especificamente, entre teatro e uma determinada proposta de arte, enquanto
motivadora e fomentadora de um publico envolvido visceralmente com as ações em
desenvolvimento. Pretende-se, dessa forma, analisar possibilidades para ampliação
do debate a respeito do significado da política - enquanto pensamento e ação.
A relação teatro e política é um tema recorrente na literatura teatral. Porém
muitas vezes vem carregada de pré-conceitos ou interpretações simplistas. Quando
se fala em teatro político, pensa-se em teatro engajado, teatro didático, tomada de
posição. E isto é colocar mal a problema, ou, em todo caso restringi-lo. Se podemos
entender “político”, também, como o que se relaciona com os interesses públicos, é
preciso entender o teatro não apenas como a obra dramática e seu conteúdo, mas
também a peça tal como é representada diante de um certo público e para um certo
público- a obra em sua forma cênica. Isto implica logo de entrada entender a arte
para além da sua função, herdada ou designada, de mediação/representação. A
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partir daí, tudo muda: a interrogação não se aplica mais unicamente às “mensagens”
deste ou daquele autor dramático, mas abrange todo o teatro no coração mesmo do
seu exercício.
Se o teatro como uma ação política não se restringe mais só a questão da
representação de conflitos intersubjetivos (como no teatro do drama burguês), ou
sociais (como o teatro Épico de Bertold Brecht, o teatro da morte de Tadeuz Kantor),
ele reivindica uma ação direta sobre si e sobre o mundo, sem o ato da mediação,
nesse sentido, ele tem no seu cerne a própria constituição de um espaço-tempo
próprio por meio do qual a experimentação sobre si pode acontecer.
E mais, ele coloca uma questão para o que comumente se entende por
político, que é o desse teatro começar por reconhecer que uma representação
teatral de problemas definidos na realidade como políticos corre, desde o início, o
perigo de repetir demais, tal e qual o que foi qualificado publicamente, na mídia e no
discurso padrão, como “político”. E se concordarmos com Foucault (2014) para o
qual “se levarmos em conta um discurso, não devemos interrogar a realidade de que
esse discurso seria reflexo, mas a realidade do problema que faz com que nos
achemos obrigados a falar dele[...]". (2014, p.15).
Devemos interrogar se o efeito que se queria ao transmitir tal mensagem não
se tornou a reafirmação ao invés de ruptura, se não se tornou uma política da
continuidade e, portanto, do conformismo e não uma política do dano, isto é, da
descontinuidade, do não ver o que se quer que veja e falar o que se quer que fale.
Um teatro político que reivindica, portanto, uma atitude critica ao nos relacionarmos
no espaço-tempo [que está acontecendo agora].
Há, nesse sentido, uma necessidade de deslocamento ou mesmo ampliação
do entendimento do termo “política”, pois, o mesmo é comumente associado à uma
visão macroscópica das relações de poder, compreendendo, assim, o conjunto de
ações, comportamentos e intuitos, que acontecem à nível estatal ou institucional.
Contudo, ao querer pensar o teatro como ação política sobre a vida, o presente
trabalho se desloca dessa forma organizada verticalmente a partir de um centro
único e estável que é essa forma soberana, para aquela dos fluxos das forças em
19
relações múltiplas e complexas.
Desse modo, nos aliamos a Michel Foucault para o qual em a “História da
sexualidade I” o poder não é central e localizado, mas acontece nas relações, de
maneira complexa e mútua, não somente entre dois corpos, mas em uma rede. O
poder acontece nas extremidades da vida, em suas últimas ramificações, nas
relações de cada singularidade, nas “micro-percepções” que se encontram na
complexidade das relações em nível social, cultural, familiar, profissional. A esta
nova forma, Foucault dá o nome de micropoder, que segundo ele, são detentores de
grande influência nas atitudes humanas, deixando os homens aptos para o controle
do Estado.
E também a Friedrich Nietzsche com seu entendimento do que seria “A
Grande Política”, que poderia ser entendida, grosso modo, como contra-movimentos
ao desenvolvimento decadencial da pequena política, com suas aspirações de
melhoramento do homem transvestidas por “fachadas pseudo-humanistas”. À luz
dos conceitos de Foucault, considerando política como esta rede complexa de
relações, e de Nietzsche com sua “grande política”, o presente projeto busca
compreender como o teatro de Artaud pode torna-se “ação política”.
Sendo assim, a análise da obra de Artaud será feita a partir da perspectiva da
“micropolítica” em Foucault e da “grande política” em Nietzsche como construção de
interferências que se aliam a outros modos de se estar na vida, vislumbrando com
isso a libertação individual e a produção de rupturas subjetivas que permita a
constituição da existência de si.
Pode-se pensar a política à luz dos dois autores referindo-se à sua dimensão
micro do processo de produção das formas de realidade: a realidade em vias de se
constituir, se definir e ao mesmo tempo em vias de se desmanchar. A realidade tanto
individual quanto grupal ou coletiva. Enquanto a macro referindo-se à realidade em
suas formas constituídas – aqui também tanto no nível individual quanto grupal ou
coletivo.
20
Pensar outros parâmetros, deslocar-se efetivamente da posição política
tradicional, tanto em termos de uma prática conceitual quanto em termo de uma
prática militante. Pensar contra lógica, a qual permite, por exemplo, romper a
reificação da consciência e apreender a dimensão de criatividade social é pensar a
“técnica de subjetivação” para Foucault. Dito de outra maneira deslocar-se da
posição política tradicional ou pensar a técnica de subjetivação é interferir no status
quo, é gerar outros modos singulares de sentir, pensar e existir. É Pensar a
expansão dos índices de liberdade, outra produção estética da existência.
Guatarri e Antonio Negri, quando falam de revolução, propõem que se saia
da posição apenas pragmática, da busca da verdadeira revolução, e se entenda que
a revolução é uma revolucionar permanente. A vida, pensada como potência da vida,
nesses autores, requer um combate, compõe-se em meio a processos plurais de
racionalização. É nesta perspectiva que Foucault, talvez, vai afirmar a liberdade
como um exercício, como práticas de liberdade que acontecem naquilo que se faz
para transforma-se. Este exercício opera uma critica no limite de si mesmo e se
afirma como processo permanente de problematização e de ultrapassagem dos
limites históricos que nos constituem em seu estado de coisas e de enunciados.
A dimensão critica e política da obra de Artaud evidencia-se na sua tentativa
de distorcer a teoria pela qual era julgado, de querer transformar o indivíduo- uma
operação próxima ao conceito de “grande política” nietzschiano e da micropolítica
com sua construção de interferências que aliavam outros modos de está na vida.
Dessa forma o artesão do corpo sem órgãos corrobora com os autores aqui citados
ao identificar que o poder está no individuo e que, por conseguinte, se contrapõe ao
poder estatal, a uma política organizada pelo viés institucional, visto por esses
autores como uma forma de massacre do indivíduo na sua potencia de vida. E essa
distorção, desordenamento, esfacelamento desse indivíduo formatado estariam
expressos no teatro da crueldade.
A noção de política na arte contemporânea inclui, para Chaia, a transgressão
enquanto posicionamento do artista ou do movimento diante da cultura e da
sociedade, e também a resistência entendida simultaneamente como criação de
valores e exercícios de conflito.
21
A arte contemporânea vem adensando a insurreição dos saberem subjugados, sinalizando o prenuncio da liberdade ao trazer novos significados à rede produtiva de micropoderes (...). Conectando diferentes práticas culturais e políticas, numa época em que o capitalismo exacerba as formas artísticas. Assim, na contemporaneidade, a arte critica vem explicitando com mais
frequência a sua faceta de arte radical, fortalecida pela eclosão do ativismo artístico. A relação entre arte e política deixa vislumbrar a libertação individual e a produção de ruptura subjetivas que permitem avançar na luta micropolítica. (CHAIA, 2007, p. 38).
E de novo retornamos a Artaud quando sua grande preocupação era com a
vida e sua potência. Para ele era insuportável o condicionamento inato que pesava
sobre o corpo, pois ele sabia que a vida, era determinada social, histórica, e
politicamente “(...) ela não é apenas influenciada e invadida de fora por contextos
sociais. A sociedade é um dado quase inato ao corpo” (UNO, 2007, p. 39). A arte era
para ele um estado de exceção permanente que se colocava contra a reificação e
homogeneização da vida.
A obra inteira de Artaud era uma tentativa de abalar a biografia que se
constituía vindo de fora e que na concepção dele o paralisava numa existência que o
não permitia experimentar outras formas de vidas possíveis, outras dimensões. Era
investir sobre si próprio; ele próprio inventar com a sucessão de posturas e gestos
práticas diluidoras de normas estratificantes.
Pode-se levantar a hipótese que a busca de Artaud, era uma busca por “linhas
de fugas” no sentido deleuziano. Seus experimentos, não eram reproduções do
mesmo, mas a experimentação do limite. Invenções de vibrações, rotações, giros,
gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito. Pois, Para ele
alguma coisa de completamente novo só poderia emergir com o combate, no sentido
de provocação uma pela outra, entre vida e obra, aonde nenhuma das duas sairiam
intactas.
22
Para o artesão do corpo sem órgãos:
[...] Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual e que, aliás, só poderá assumir todo o seu valor se permanecer virtual, impõe às coletividades reunidas uma atitude heroica e difícil. (ARTAUD, 2006, p. 24).
Ao querer perturbar os sentidos, liberar o inconsciente ele não queria nada
menos que descolonizar o pensamento e assim abrir-se para novas formas de
relações.
Artaud buscando proporcionar outra apreensão estética que não fosse pela
coerência do pensamento discursivo e lógico cria o teatro da crueldade. Ele tinha
como projeto uma encenação que fizesse com que o espectador fosse submetido a
um tratamento de choque emotivo, de maneira a libertá-lo do domínio discursivo e
lógico para encontrar uma vivência imediata, uma experiência estética e ética
singular. Uma arte interessada, assim como quer Nietzsche. Uma arte que é política
porque é o espaço por excelência da possibilidade da experimentação da vida. Por
que não se quer enquanto auto-conservação, representação, mas como resistência
e por isso mesmo afirmadora da vida, do movimento de expansão dela.
A pesquisa está dividida em duas partes, sendo a primeira intitulada:
“Experimento Artaud: uma investigação política o teatro como prática de si”. Essa
primeira parte gira entorno de como a obra de Artaud foi fundamental para que ele
pudesse traçar uma vida que se colocava além ou aquém de uma certa perspectiva
de vida vigente com seus mecanismos normalizadores.
A segunda parte intitulada: “Antonin Artaud entre Nietzsche e Foucault: a
crueldade e o cuida de si como prática, resistencia e emersão de vida outras”. A vida
dos três aqui referido foram vidas que de certa forma traçaram sobre a existência
maneiras outras de estar nela. Se detendo, portanto, a segunda parte sobre alguns
conceitos fundamentais a esses autores que os ajudaram a pensar a vida como obra
de arte ou como estética da existência. Conceitos como o de grande política em
23
Nietzsche, de poder para Foucault, de crueldade, presente tanto na obra de
Nietzsche como de Artaud, o cuida de si estudado por Foucault etc. Conceitos que
ajudam a pensar a política por outro viés, fora da lógica política-moral que se
encontra instituída nas instituições moderna para os autores.
24
1 EXPERIMENTO ARTAUD: UMA INVESTIGAÇÃO POLÍTICA, O TEATRO COMO PRÁTICA DE SI
“O teatro da revolução branca está no fim […]. Eu disse que os escravos não tem pátria. Isso não é verdade. A pátria dos escravos é a revolta [...]”.
Heiner Muller
“[...] E me parece indispensável afirmar que nenhuma conquista, que tenda a, e tenha como objetivo, uma realidade metafísica a mais rara e a mais densa, tem valor a não ser em função do plano físico, terrestre, material e humano no qual vivemos”.
Antonin Artaud
Em Artaud a busca com seu teatro sempre foi por uma “conquista” de si. Por
uma arte que religasse o homem a si próprio. Que o fizesse romper com os
automatismos que lhes eram impostos. Grande parte de sua obra surgindo
precisamente como uma tentativa de recriar e transformar sua própria história. Para
isso, ele passou sua vida inteira buscando uma arte teatral que rompesse o teatro
psicológico ocidental e seus procedimentos de representação (deixando de fora tudo
que não obedecia a expressão através do discurso, das palavras ou mesmo do
diálogo6) na tentativa de encontrar um teatro que tocasse a vida, ou melhor, que a
produzisse. Um teatro, cujo verdadeiro programa fosse a encenação de uma
máquina de produzir o real.
Artaud, homem de teatro – trabalhou como ator de cinema, foi dramaturgo,
figurinista, cenógrafo, desenhista, crítico de arte- foi um ativo entre seus
contemporâneos. Trilhando inicialmente a esteira das vanguardas históricas e de
seus ideais, especialmente o dos surrealistas tinha como projeto revivificar a arte
teatral para que a mesma fosse usada como o lugar de ação sobre a vida. Quando
fala em ação, Artaud pensa em um acontecimento único, tão imprevisível quanto
6 Para Artaud, o próprio diálogo possibilitava infinitas maneiras sonorizações na cena, entretanto, o
teatro ocidental em oposição ao teatro oriental, o reduziu a mero discurso. Ele pretendia na sua defesa que o teatro retomasse seu aspecto concreto, sua autonomia em relação ao diálogo como coisa escrita e falada.
25
qualquer ato cujo valor é medido pelo grau de veracidade e não por verossimilhança.
No artista francês o ponto crucial era que o teatro devesse remodelar a vida: “É
preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo teatro no qual o homem,
impavidamente, torna-se senhor daquilo que ainda não existe, e que o faz nascer
[...]” (ARTAUD, 2006, p. 08).
Podemos situar suas propostas junto às diversas correntes que modificaram
as artes cênicas europeias na primeira metade do século XX. Sua trajetória cruzou
com o “mais” importante da vida intelectual e cultural da época: Surrealismo,
expressionismo, teatro, cinema, poesia, sem contar a experiência que vai ser
fundamental na sua vida, a da loucura.
Artaud conviveu com artistas de diversas linguagens, transitou por diversos
ateliês artísticos. Trabalhou nos anos 20 como ator com diretores importantes do
teatro francês, como Lugne Poé7, Charles Dullin e George Ptoeff, Jacques Copeau,
Louis Jouvet, Gaston Baty, além de participar por alguns anos das atividades do
grupo surrealista, no cinema participou de filmes como Napoléon (1926) de Abel
Gance, La Passion de Jeanne D'Arc (1927) de Carl Dreyer entre muitos outros.
Entre 1920 e 1936 Artaud trabalhou em dezenas de teatros e frequentou todos
aqueles que contavam no mundo da cena. Escreveu projetos de encenações para
peças de August Strindberg, além de diversos artigos sobre teatro, cinema, artes
plásticas. Sua participação no campo artístico e cultural de sua época foi bastante
intenso.
Experienciou o que tinha de mais potente na sua época, e vivenciou horrores
dos mais cruéis possíveis. No entanto, não se pode deixa de chamar atenção para
dois fatores que marcarão a vida do criador do teatro da crueldade. Um deles foi sua
chegada a Paris ainda jovem, sendo confrontado em Paris com a sombra das duas
figuras que influenciarão sua trajetória posterior: Alfred Jarry e Strindberg. O primeiro
7 A sua chegada em Paris nos anos 20 do século XX vai ser concomitante com ascensão da figura do
encenador no teatro. Este cada vez mais ganharia importância no decorrer dos anos subsequentes. Importantes reviravoltas já ocorreram, nesse domínio, na virada do século XIX ao XX. Os encenadores vão modificar permanentemente a cena. Antoine, na França, Craig, na Inglaterra, Stanislavski, na Rússia, entre outros, além disso, se anuncia com desenvolvimento do encenador duas tendências, uma realista e outra simbolista.
26
dando nome a sua companhia de teatro anos depois. É no teatro Alfred Jarry que ele
vai começar a fazer suas primeiras direções e a intensificar seus experimentos
acerca do seu teatro da crueldade. O outro foi sua ida para o México à procura de
outro sentido para o teatro, para o pensamento e para vida. A sua intenção era fugir
das prisões da cultura racionalista presente em seu país buscando na experiência
dos índios Tarahumaras refundar sua própria cultura.
1.1 Teatro Alfred Jarry8
Segundo a biografa de Artaud, Florence de Mèredieu, olhar para a trajetória
de Artaud é retraçar “a vida intelectual da época que se estende do final do século
XIX aos dias seguintes à Segunda Guerra Mundial. Época particularmente complexa
e fecunda, atravessando duas guerras mundiais, que vê surgir o que em arte se
denominará 'modernidade'. Teatro, música, literatura e artes plásticas conhecerão
subversões radicais, enquanto nasce e se desenvolve a arte de massa que constitui
o cinematógrafo”.9
É nesse contexto que surge O teatro Alfred Jarry. O teatro é fruto da
colaboração entre três personagens, Antonin Artaud, Robert Aron e Roger Vitrac. A
colaboração entre Artaud e os companheiros, principalmente com Vitrac terá uma
importância fundamental na trajetória de Artaud. Vitrac era escritor e dramaturgo.
Sua relação com Artaud se intensifica após a expulsão de ambos da Central
Surrealista fazendo-os retomar às fontes dadaístas. Na realidade, Vitrac já tinha
participado ativamente do dadá. Daí vir da parte dele um gosto pronunciado pelo
caráter demolidor da linguagem. Como Artaud não tinha participado de nenhum
movimento, essa colaboração com Vitrac permitiu Artaud fazer elo com o
anarquismo dadá. Com Victor ou As Crianças no Poder, Vitrac lhe dará, por esse
8
Alfred Jarry entusiasmou toda uma geração de intelectuais. Os dadaístas e surrealistas, principalmente, o saudaram como um dos seus precursores. A seu texto teatral Ubu Rei vai atingir Artaud profundamente, muito por conta da invasão do irracional, da destruição das principais convenções teatrais, sendo que ele vai inovar com a substituição da linguagem nobre por um estilo vulgar e o herói tradicional pelo seu 'duplo ignóbil'. 9 M`EREDIU, Florence de. Eis Antonin Ataud. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 33.
27
motivo, uma lição magistral de rebelião e destruição da língua.
O Teatro Alfredo Jarry se constitui nessas bases como um teatro experimental e
de vanguarda, conduzido por maioria de jovens atores na tentativa de romper com o
teatro convencional. O Alfredo Jarry nas palavras do Jovem ator René Lef`evre era
um teatro que vinha “(...) Para manifestar, protestar. Éramos contestadores
cenicos” 10 . (LEFEVRE apud MÈREDIEU) 11 . Isto corrobora diretamente com o
pensamento de Artaud (2008) quando ele diz:
As convenções teatrais venceram. Tais como somos, somos incapazes de aceitar um teatro que continuasse a trapacear conosco. Temos necessidade de crer naquilo que vemos. Um espetáculo que se repete todas as noites segundo os mesmos ritos, sempre idêntico a si próprios, não pode conquistar nossa adesão.12 (2008, p34).
Ou seja, para Artaud o teatro tinha que ser um acontecimento, um espetáculo
único, que desse a impressão de ser imprevisto, incapaz de se repetir quanto
qualquer ato da vida.
Para tanto, o teatro teria que descartar tudo aquilo que o nutria e isso só seria
possível para Artaud se o teatro reencontrasse sua verdadeira linguagem. Que era a
linguagem espacial, de gestos, de atitudes, de expressões e mímica, de gritos,
sonora, mas que teria a mesma importância intelectual e de significação sensível
que a linguagem das palavras. A busca era por um teatro total, um espetáculo
integrado. Por meio desses procedimentos o teatro se tornaria um espaço aonde nos
serviríamos dele para remodelar a vida, um meio que possibilitaria tanto ator como
espectador reatar com a vida em vez de separar dela, por conseguinte, o teatro era
um meio e não um fim em si. “O teatro Alfredo Jarry destina-se a todos que
enxergam no teatro não um fim, mas um meio, a todos que se inquietam com uma
10
Ibdem. p. 330. 11
Durante a dissertação se notará um excesso de citações de Antonin Artaud por apud, isso se deve por ser citações que os autores transcrevem direto das obras em francês do artista. E como dessa dissertação não domina o francês achou por bem utilizar os apuds. Tentando ser o mais ao pensamento de Artaud. 12
ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 2008.
28
realidade da qual o teatro é apenas signo. O teatro Alfredo Jarry foi criado para se
servir do teatro e não para servi-lo”. (ARTAUD, 2008, p. 49)”. O teatro Alfredo Jarry
nasce como uma reação ao teatro ocidental bem como por uma total libertação do
mesmo. Artaud quer revivificar a noção de teatro e restituir-lhe o vigor perdido.
Com o teatro Alfredo Jarry, Artaud e seus companheiros se dirigiam não só ao
espírito e os sentidos dos espectadores, mas a toda sua existência. A deles e a
nossa. Jogamos nossa vida no espetáculo que se desenrola sobre o palco. “(…) O
espectador que vem ver-nos sabe que vem oferecer-se a uma operação verdadeira,
onde não somente seu espírito, mas também seus sentidos e sua carne estão em
jogo” (ARTAUD, 2008, p. 31). A tentativa era por sacudir o espectador, deixando-o
arrepiado com o dinamismo interior do espetáculo atingindo, assim, o mais grave
possível, não sua forma exterior, mas seu ser inato. Portanto, há nesta proposta
uma necessidade de ser o mais voraz possível, desprezando mais uma vez, o teatro
ocidental com suas encenações e se filiando a alguma coisa próxima do
imponderável ou se quiser a um teatro ritualístico nos moldes do que se
convencionou o nascimento do teatro ocidental, as festas pagãs, os rituais
dionisíacos.
Contudo, é no teatro oriental, mas especificamente, no Teatro de Bali que
Artaud vai encontrar bases para seus experimentos no Teatro Alfredo Jarry. O teatro
físico e não verbal vivenciados por eles. Ele se encantou com a forma como o teatro
estava contido no limite de tudo que pode acontecer num cena, independente de um
texto escrito. E como isso acarretava a construção de um estado único por meio do
transe acessado através da justaposição de todos os elementos. Mas não se deve
entender o transe aqui como a perda total do controle, talvez por isso, Artaud não
fazer menção ao rito de Dionisio quando pensava esse estado de êxtase, de
participação e entusiasmo que o espetáculo fomentaria e sim a criação de um ritual
onde os participantes passariam por uma ação controlada, pois o essencial aos seus
olhos era os atores não serem apoderados pelo transe e sim dotados de um estatuto
rigoroso que permitiria a eles fazer nascer esse transe sem, contudo, imergir nele: “
Saber de antemão os pontos do corpo que é preciso tocar, é induzir o espectador em
29
transes mágicos”.13 (ARTAUD apud VIRMAUX, 1990 p. 47).
O teatro nesse sentido seria uma arte do contágio e para que ele execute sua
revolução, como pensava Artaud, ele teria que ascender ao caráter mágico14. Ele
concebia o teatro como uma verdadeira operação de magia. Aonde permitiria vir à
tona tudo quanto há de obscuro, de enfurnado, de irrevelado no espírito. Se
aproximando do universo dos ritos o teatro pensado por Artaud seria um exercício de
desestabilização de conceitos e referências, para se extrair daí um impulso criador e
revitalizante. O seu ato mágico perturbaria o repouso dos sentidos e liberaria o
“inconsciente comprimido”, pois agindo sobre o homem, permitiria que emergisse
outros “estados de ser” que permitiria a constituição de uma nova cultura e
sociedade.
(…) sentido de modificação integral, e pode-se até dizer mágica, não do homem, mas daquilo que no homem é ser, porque o homem verdadeiramente cultivado traz o espírito no seu corpo; é o seu corpo que a cultura trabalha ao mesmo tempo o espírito (ARTAUD apud QUILICI, 2004, p. 49).
As experiências feitas no teatro Alfredo Jarry procurava, nessa acepção,
manifestar um estado de espírito atual, isto é, uma atitude em face de certas coisas
da vida. As escolhas por textos que não traziam em si uma atualidade dos fatos,
mas uma espécie de universalidade adequada às necessidades do seu tempo.
Artaud entendia que o teatro não era lugar de resolver conflitos sociais ou
psicológicos, batalhas às paixões morais, mas de exprimir objetivamente verdades
secretas.15 Artaud sonhava com um teatro que fosse esse momento de confronto, no
13
VIRMAUX, Alain. Artaud e o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1990. 14
Tanto o rito como a magia em Artaud terá Para Cassiano Sydow Quilici um caráter especifico uma maneira própria de se apropriar deles. “O rito, pelo menos no sentido de Artaud, se aproximava ma is ao sentido arcaico do rito. Designava sempre um modo distinto que se contrapunha ao comportamento distraído e rotineiro, intensificando a experiência do momento presente e possibilitando o afloramento de outros estados de ser. Desse modo, a ritualização opunha-se ao agir profano, difuso e dispersivo”. (...) “'magia primitiva' tem também uma finalidade específica. Não se trata apenas de reconhecer outra 'lógica', ou forma de 'pensar' o mundo, mas de 'usar' a magia como uma ideia provocativa dentro da própria cultura contemporânea, que nos obrigaria, por exemplo, a pensar a arte fora de seu enquadramento 'estético', ou seja, dentro de um campo de saber específico, que foi se definindo no Ocidente a partir do século XVIII”. (QUILICI, Cassiano S.. São Paulo: Annablume, 2004, p 37 e 43) 15
Essas verdades secretas nada tem haver com uma essência que veria de uma ordem moral, portanto, de uma verdade a ser descoberta ou mesmo alcançada, mas de um ato de coragem ao
30
qual toda a existência é colocada em xeque. Um teatro que revelasse para a
comunidade suas 'forças obscuras' desencadeando uma crise que só se resolveria
pela destruição total ou 'purificação radical'. Eis que ele nos diz: “O verdadeiro teatro
sempre me pareceu o exercício de um ato perigoso e terrível, em que, aliás, a ideia
de teatro e de espetáculo se elimina, bem como a ideia de toda ciência, toda a
religião e toda a arte” (ARTAUD, 2007, p. 145).
Do mesmo modo como Artaud insistia pela destruição do teatro ocidental
como ele era feito e pensado, para daí retomar um teatro que tocasse a vida, ou
melhor, que fosse a própria vida, ele também reivindicava outra atualidade que não
era aquela a qual ele pertencia. Portanto, a função do teatro para ele era de fazer
emergir outra atualidade, para isso, o teatro teria que ressuscitar velhos mitos e
confrontando a atualidade a qual pertencia tocaria as inquietações do presente.
Nessa direção o teatro não seria superado pelos acontecimentos que atingiriam o
presente, nem a representação de tais acontecimentos, mas algo como a própria
constituição de outro presente, de outra atualidade. Sendo assim, esse termo
atualidade estaria bem próximo ao de crueldade, no que diz respeito, ao modo como
se deveria agir sobre si próprio e sobre o meio a qual estava inserido.
Quando ele pensava a noção de atualidade e de presente e a relação desses
termos com o teatro ficava claro que a função do último não era representar um fato
da atualidade, do presente, mas um teatro que auxiliar-se a superar os estados
promovidos pelos acontecimentos atuais. Como as festas teatrais da antiguidade
ajudavam os homens a exorcizar seu medo dos deuses. O teatro sendo menos uma
representação e mais um espaço de libertação das angustias e estratificações que
paralisava o homem diante do mundo. Ele nos diz: “(...) O homem rebelado contra a
fatalidade e que, em lugar de padecê-la, se insurge contra Ela e cria em função
dessa revolta”16. (ARTAUD apud ARANTES, 1988 p. 21). O teatro, portanto, não
deveria ficar refém a imitação de uma dada realidade. Mas ser o espaço da
insubordinação, gerador de conflito entre as duas dimensões, a teatral e a da
expor ou falar algo franco. A verdade aqui estaria mais próxima a veracidade, a veridição da vida enquanto experimentada e que constitui e afirma um estilo de vida que se orienta por critérios imanentes. É uma verdade que se quer enquanto afronta aos modelos. 16
ARANTES, Urias Corrêa. Artaud: teatro e Cultura. São Paulo: Unicamp, 1988, p. 21.
31
realidade exterior a do teatro, revelando, dessa forma, os limites estratificadores
impostos pela sociedade e seus dispositivo de controle: “nenhuma produção artística
é válida sem o sentimento dessa impotência, e a consciência exasperada e ativa
daquilo que, pelo fato de viver, foi perdido”. (ARTAUD apud ARANTES, 1988, p. 22).
Contudo, não se deve entender aqui “pelo fato de viver, foi perdido” algo de força
reativa ou de um niilismo paralisante, mas a necessidade17 de inventar maneiras de
viver diferentes, criar outras possibilidades de corpo e vida. Outras organizações
possíveis.
A intenção com o Teatro Jarry (como também com outras práticas artísticas, já
que como dito anteriormente, ele transitou por diversas áreas e linguagens), e com
sua vida, era de não perdoar nada, de não fazer concessões para tudo àquilo que na
visão Artaud soterrava o homem na mais profunda perda da vida, ou seja, de sua
potência, fazendo com que o homem se apaziguasse diante do corpo orgânico com
suas funcionalidade e codificações. A sua “arte-vida” não era nada pacificadora, para
ele, elas deveriam ser um ato perigoso, um ato de enfrentar por si mesmo os riscos.
E isto, em Artaud, se realizou na sua mais radical expressão, vide todas as formas
de internamentos por quais ele passou e de tratamento, entre eles, o eletrochoque.
Artaud fez por meio de sua arte emergir uma vida paralela. O verdadeiro teatro, em
tais termos, deveria extrapolar as formas de normalização, negando o lugar que lhe
é destinado por uma dada ordem cultural: o da “produção de espetáculo”, que
deverão ser consumidos como “bens simbólicos”, dentro do mercado do lazer e
entretenimento.
O histórico do teatro Alfredo Jarry, muito por conta desse radicalismo que
propunha os seus participantes, se fez com a montagem de apenas quatro peças e
de muitas dificuldades para encontrar lugares para suas encenações e de conseguir
17
Gilles Deleuze numa palestra para alunos de cinema atrela o ato de criação a uma necessidade. “É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa necessidade — que é uma coisa bastante complexa, caso ela exista — faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se em refletir, mesmo sobre o cinema”. [transcrição do autor da dissertação]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VNKo53tUKb4. Acesso em: 21 mai. 2014.
32
apoio financeiro para a continuidade do projeto. Mesmo os atores, por também não
serem tantos na sua época, tinha certo “medo” de embarcar em tal projeto. Artaud
queria ao seu lado não atores apenas com talento, mas atores que buscava em si
uma sinceridade vital que fosse mais forte que suas convicções.
1.2 O Teatro e seus duplos
Artaud (2006) inicia “O Teatro e seu Duplo” com o prefácio intitulado “ O teatro
e a cultura” e no início ele diz o seguinte:
Nunca como neste momento, quando é a própria vida que se esvai, se falou tanto em civilização e cultura. E há um estranho paralelismo entre esse esboroamento generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para reger a vida”18. (2006, p. 1).
Em conformidade com tal pensamento, poderia se dizer que, a civilização
aparece para Artaud como uma regente das ações, mesmo àquelas mais sutis,
promovendo assim a fabricação de certo comportamento e, por conseguinte, de um
pensamento moldado e reduzido à esfera de mero objeto que se extrairia o modo de
ser na vida. Nessas bases, o comportamento se constituiria como um a priori e seria
tarefa dos indivíduos pertencentes a esse meio social extrair o pensamento dos seus
atos ao invés de como queria Artaud identificar seus atos com seus pensamentos.
Em outras palavras, o que Artaud não queria era que houvesse a cisão entre o que
se pensa e o que se é na vida, mas que as coisas estivessem imbricadas.
Decorrendo daí uma re-apropriação da vida, pelo menos, como ele entendia.
Uma das maneiras que acreditava ser a mais potente para obtenção dessa
vida que ele acreditava ser fora de todas suas amarras cultural, era aquela que
exige que de tempos em tempos produza-se cataclismos que incite a retornar a
18
ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
33
natureza, ou seja, que incite a se lançar a um estado de natureza próximo ao
animalesco e que ainda não ganhou forma, que ainda não passou pela máquina
civilizatória com seus códigos e funções, pelo seu processo de domesticação. Pois
segundo Artaud: “[...] tudo o que serve para captar, dirigir e derivar forças é, para
nós, uma coisa morta da qual já não sabemos extrair senão um proveito [...] de
Fruidor”. (2006, p. 05). Daí ele exigir uma arte que exalte a animalização, criando
assim uma atmosfera de tensão psíquica, de abalo das estruturas de sustentação de
uma certa forma cultural e social e, por consequência, de vida19.
O que ele busca nada mais é que uma ruptura com um mundo disciplinante
que tem sua realização na unidade. Na perspectiva animista tudo é forma e força
produzindo efeitos que são produção de estados de ver e sentir como efeitos do
mundo vivo. Abre-se um “troço” que não cabe com nada. Promovendo assim uma
espécie de estranhamento com seus hábitos. O corpo nesse sentido é tomado por
uma fragilidade, um estado fundamental, pois é um estado convocado a fazer algo.
Sustentar o momento de fragilidade onde o mundo provocou algo no meu corpo é
buscar dar corpo a esse estado na forma de um gesto, um texto, uma obra. O que
19
Isto muito se aproxima, por exemplo, com o conceito de animismo de Felix Guatarri para quem: “ De certo modo ocorreu um descentramento da subjetividade. E hoje me parece interessante voltar a uma concepção, eu diria, animista da subjetividade, repensar o Objeto, o Outro como podendo ser portador de dimensões de subjetividade parcial: se for o caso, através de fenomenos neuróticos, rituais religiosos ou fenomenos estéticos por exemplo. De minha parte, não preconizo um puro e simples retorno a um irracionalismo. Mas me parece essencial compreender como a subjetividade pode participar de invariantes de escala, ou seja, como ela pode ser ao mesmo tempo singular, singularizada num individuo, num grupo de indivíduos, mas também ser suportada por agenciamentos espaciais, arquitetonicos, plásticos um agenciamento cósmico inteiramente outro. Como a subjetividade se encontra ao mesmo tempo do lado do sujeito e do objeto, portanto. Sempre foi assim. Mas as condições são diferentes em razão do desenvolvimento exponencial das dimensões tecnocientí cas do ambiente do cosmos. Sou mais inclinado (...) a propor um modelo de inconsciente que seria o de um curandeiro mexicano ou de um bororo, partindo da ideia de que espíritos povoam coisas, paisagens, grupos; de que há todo tipo de devires, de hecceidades que subsistem por toda parte, e, portanto, um tipo de subjetividade objetiva, se assim podemos dizer, que se encontra condensada, estourada, remanejada, no nível dos agenciamentos. O melhor exemplo estaria, evidentemente, no pensamento arcaico”. (GUATARRI. Caderno de subjetividade, 2011, p. 07). Para
Angela Melitopoulos e Maurizio Lazzzarato, ele opera um descentramento da subjetividade separando-a não apenas do sujeito, da pessoa, como também do humano. Segundo os autores “... Seu problema é sair das oposições sujeito/objeto e natureza/cultura, que tomam o homem como a medida e o centro do Cosmos. Nessas oposições, a subjetividade e a cultura constituem a diferença especifica do homem não só em relação aos animais, plantas, rochas, mas também diante das máquinas e técnicas. As sociedades capitalistas produzem tanto uma hipervalorização do sujeito quanto uma homogeneização e um empobrecimento da subjetividade e de seus componentes (fragmentados em faculdades modulares como a Razão, o Entendimento, a Vontade, a Afetividade, regidas por normas)”. (GUATARRI. Caderno de subjetividade, 2011, p. 08).
34
move o gesto é o agenciamento com esse mundo. Portanto, não é um ato
transcendental em relação ao mundo, uma recusa, como se existisse um ideal que
desconheceríamos e que alcançaríamos, mas uma espécie de descolonização do
pensamento, do corpo, uma abertura para afetos que possibilita novas percepções.
E que tenha um efeito real de deslocamento da cartografia vigente.
Para isto o teatro deveria romper com a noção de bom comportamento e
invadir os corpos e mentes do publico por meio da atmosfera atemorizante gestada
durante aquele tempo-espaço de comunhão entre todos ali presente. O teatro como
ato perigoso confrontaria o publico consigo próprio explicitando a impotência para
possuir a própria vida. Por meio do teatro então o homem faria emanar formas
intensivas até então adormecidas ou simplesmente docializadas no processo de
constituição de uma cultura (Ocidental)20 que privilegia a contemplação e que pensa
em sistemas, em formas, em signos, em representações.
Atingir diretamente o organismo para reconstruir o corpo. O projeto de Artaud,
na verdade, era um projeto de base ontológico. O teatro e seu duplo e
principalmente seus escritos dos últimos anos frisam incansavelmente essa
exigencia de um corpo novo: “Não aceito o fato de não ter feito um corpo por mim
mesmo”. Mudar o corpo, mudar o mundo, uma coisa não se faz sem a outra: “ Não
sou dos que acreditam que a civilização deva mudar para que o teatro mude: e
acredito que o teatro, utilizado no seu sentindo superior e o mais difícil possível, tem
força sobre o aspecto e sobre a formação das coisas”.(ARTAUD apud VIRMAUX,
2009, p.16). Era o sonho de uma subversão radical, da qual o teatro seria o agente e
o princípio.
Defendia, portanto, um teatro como um ente onde o Ser pudesse se revelar,
um teatro capaz de propiciar o desvelamento, exercendo ao mesmo tempo um papel
terapêutico e de recriação. Terapêutico pela crueldade, a cura pela destruição. Na
20
Quilici no seu livro sobre Artaud, já mencionado aqui, retoma esse trecho de Felix Guatarri e Suely Rolnick “ O conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma maneira de separa atividades semióticas [atividades de orientação no mundo social e cósmico] em esferas, `as quais os homens são remetidos. Tais atividades, assim isoladas, são padronizadas, instituídas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotização dominante- ou seja, simplesmente cortadas de suas realidades políticas.”. (QUILICI, 2004, p. 36).
35
recriação, o homem deveria submeter-se a uma transformação, a uma mudança do
corpo para mudar o mundo, mas não do corpo físico, e sim de uma operação
ontológica, a questão do Ser.
Não Obstante, Artaud sabia o quanto a vida era enraizada por uma linguagem
e o quanto este lugar era marcado por uma opressão impossibilitando o sujeito
experimentar aquilo que para ele era essencial, o pensamento ilimitado. Pois ao
fazer, o homem faria ver e sentir um duplo dele mesmo, isto é, aquele que é inato a
ele e que decorre da sua vida na relação com história e com o meio social a qual
pertence e aquele que vai sendo deixado na virtualidade por conta de não
reconhecer e, portanto, relacionar com os valores que sustentam e fomenta esse
modo de vida.
O pensamento nessa perspectiva é cruel. É, porque ao conseguir pensar o
homem seria invadido, penetrado, transformado num processo estranho,
indeterminável que o faria romper com toda espessura de sua vitalidade, com o
emaranhado de sua memória, de suas sensações, tudo que é gravado no corpo.
Artaud sofria duas vezes, por um lado sofria por não conseguir pensar além do que
a linguagem o permitia pensar e por outro por conta do pensamento escapar por
todos os lados fruto do eletrochoque investido sobre ele. Referindo-se ao
pensamento, Artaud nos diz: “Pensar... é sentir sempre seu pensamento igual a seu
pensamento... Mas meu pensamento para mim, ao mesmo tempo em que ele peca
por fraqueza, peca também por quantidade. Eu penso sempre numa taxa inferior”.
(ARTAUD apud FELÍCIO, 1996, p. 03)21.
Para o filosofo japonês Uno (2012):
Pensar é cruel, mas não poder pensar também é cruel e, finalmente, pensar, para Artaud, consiste em nunca conseguir pensar, na medida em que um pensamento nunca faz o espírito funcionar com algumas regras conhecidas, mas reencontra a cada vez materiais e corpos desconhecidos”. (2012, p. 35).22
21
FELÍCIO, L.V. A procura da lucidez em Artaud. São Paulo: Perspectiva, 1996. 22
UNO, Kuniichi. A Gênese de um Corpo Desconhecido. São Paulo, N-1, 2012.
36
Em todos os escritos de Artaud aparece, quase como uma obsessão, a busca
por reencontrar-se consigo próprio, que não é aquele que queriam que fosse. Daí
ele poder dizer:
[...] Não sou Antonin Artaud, não nasci em Marselha em 4 de setembro de 1896, não nasci jamais, o corpo de Antonin Artaud vivo é somente uma captura de mim, mas essa caricatura feita quando eu não estava ali foi feita com uma coisa essencial que me pertence e é preciso retomá-la recuperando o curso do tempo”. (ARTAUD apud MERIDIEU, 2011, p. 35).
Tudo gira em torno do espírito que virá, do corpo, do devir. E é função da arte
possibilitar este por vir. O teatro é o lugar privilegiado para isto já que ele seria para
Artaud o espaço aonde viria à tona por meio de uma encenação ritualística, mágica
o que há de mais obscuro, enfurnado, irrevelado. Pois, a encenação tornaria
possível a criação de certa emoção psicológica em que as “ molas mais secretas do
coração serão postas a nu”.
O teatro e seus duplos, não seria nada mais, nesse sentido, que o constante
confronto consigo próprio, ou melhor, com aquilo que segmentarizou como sendo o
EU, com o outro que não é o mesmo que ele, com o fora que o constitui, com aquilo
que o impede de ser ele próprio. A finalidade dele era atingir a VIDA em seu estado
bruto, isto é, num estado anterior aquilo que constitui o homem como homem.
A Vida e a obra de Artaud é uma busca constante para arruinar as
segmentarizações, balizas pelos quais o corpo, a vida, passam, ou seja, é uma
busca infinita por se refazer, por outros modos, por ser “livre”. Para isto a vida e obra
do artista francês teve que abalar profundamente a questão da biografia e da
identidade.
37
1.3 O teatro e a peste
A arte para Artaud, como ele a experimentava e vivenciava, não podia
carregar em seu estatuto a designação de uma ação pacificadora. Ela devia ser
tudo, menos um instrumento representativo-pacificador. O ato teatral se realizava ao
subtrair a barreira entre o palco e público. Com o encontro entre essas duas
dimensões algo de perigoso passava entre elas promovendo assim certa inquietação
na plateia. Um estado de expansão de si. Pois, segundo Arantes, ao estar “[...]
Estatelado ridicularizado na boca de cena, aquele corpo é o signo vivo do mal
recusado. E um signo que, interrompendo o teatro, põe algo em movimento,
expande-se, desdobra-se na afirmação de si mesmo”. (ARANTES, 1988, p. 14).
Daí o teatro ser como a peste para Artaud. Pois ambos parecem manifestar
sua presença nos lugares, afetar todos os lugares do corpo, todas as localizações do
espaço físico, em que, segundo Artaud, “a vontade humana, a consciência e o
pensamento estão prestes e em vias de se manifestar”. Nesses termos o teatro
como a peste dilaceraria não às ilusões da consciência que atribui um falso sentido
à vida, mas a própria consciência e todos os sentidos, o corpo individual e o corpo
coletivo.
Não obstante, Artaud (2007) tenta deixar claro nos seus escritos que assim
como o pestífero que morre sem destruição da matéria, o ator como o espectador
penetrado e transtornado também por seus sentimentos promove uma “destruição”
não da matéria, mas da forma. “Pois a lógica anatomica do homem moderno é de
não ter jamais podido viver, nem pensar viver, a não ser como possuído”23. (2007, p.
121). Existe nisso uma espécie de liquidação de certa forma dura que impede a
expansão ou a presença de um estado outro, de uma força extrema.
Se o teatro é como a peste, para Artaud (2006):
23
ARTAUD, Antonin. Eu, Antonin Artaud. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.
38
Não é apenas porque ele age sobre importantes coletividades e as transtorna no mesmo sentido. Há no teatro, como na peste, algo de vitorioso e de vingativo ao mesmo tempo. Sente-se que esse incêndio espontâneo que a peste provoca por onde passa não é nada além de uma imensa liquidação. Um desastre social tão completo, tal distúrbio orgânico, esse transbordamento de vícios, essa espécie de exorcismo total que aperta a alma e a esgota indicam a presença de um estado que é, por outro lado, uma força extrema em que se encontram em carne viva todos os poderes da natureza no momento em que lá está prestes a realizar algo essencial”. (2006, p. 25).
Para Arantes, no teatro a vitória e a vingança têm a ver com a liberação e a
circulação de signos, assim como das forças de que são signos. Isto ganharia um
caráter revolucionário ao refazer, como queria Artaud, “a cadeia entre aquilo que é e
aquilo que não é, entre a virtualidade do possível e aquilo que existe na natureza
materializada. (ARTAUD apud ARANTES, 1988, p. 07). Então como duplo da peste,
o que se caracterizaria como revolucionário não seria o estabelecimento de uma
ordem possível em nome de uma ordem superior que negaria a ordem estabelecida.
Mas um ato corrosivo que age por dentro, que vai fazendo estralar toda estrutura
que o impede de ir além ou aquém dos seus limites recolocando com isso em seu
movimento de constituição. “Refazendo o caminho entre o possível e o realizado, ele
não revela a utopia, nem recoloca em questão o direito de cidadania do reprimido,
mas reacende os conflitos latentes, e por isso é anárquico”. (ARANTES, 1988, p.
07).
Ainda, segundo esse pensamento, o teatro seria para Aratud, algo como um
espaço virtual, lugar próprio do fluxo das formas, que suspenderia a realidade
constituída e a negaria em seu próprio movimento de constituição. Negando assim
os postulados sobre os quais acredita-se ser a base orientadora para vida.
Insurgindo daí a necessidade de romper “consigo” próprio, com “pensamento-
imagem”, numa tentativa de se lançar no devir vida.
39
O importante aqui é marcar a superioridade vital da ação do teatro: ela introduz no mundo um espaço virtual onde as forças combatem até a extinção, que não é mais do que sua transmutação, sem redenção possível. O palco aparece assim como o lugar do mal absoluto, mas também como o crivo da vida. (ARANTES, 1988, p. 19).
O teatro seria então o lugar de abertura para “uma vida” já que ele reúne,
anarquiza, promove conflitos radicais e não mais o lugar de representação de uma
realidade que separa, ordena, hierarquiza, determina funções e fins, uma realidade
pacifica. Sendo assim:
Pode-se admitir que os acontecimentos externos, os conflitos políticos, os cataclismos naturais, a ordem da revolução e a desordem da guerra, passando sobre o plano do teatro descarreguem-se na sensibilidade de quem os vê com a força de uma epidemia. (ARTAUD, 2006, p. 21).
Ou seja, é um teatro que espelha a realidade, entretanto, busca na sua
execução criar um estado tal de ritualização que trituraria os nervos dos
espectadores, destruindo-o para que houvesse a possibilidade de emersão de uma
vida outra, de um mundo outro. No fim a realidade não se apaga, mas também não
se desliga do fluxo produtor da vida.
O que ocorre é uma reabertura do espaço virtual, mantendo assim, acesas e
vivas as forças e os desejos que afirmam a si mesmo contra a fatalidade. Pois, o
homem ao adentrar a este espaço chamado teatro e vivenciar a experiência ali
proposta se veria diante da fatalidade da vida, da impotência dela, contudo, isto não
significaria a desistência diante dela, mas pelo contrário “[…] O homem rebelado
contra a fatalidade e que, em lugar de padecê-la, se insurge contra ela e cria em
função dessa revolta”. (ARTAUD apud ARANTES, 1988, p. 21). Daí a necessidade
de um teatro provocador, de produção da exaltação, de revolta absoluta, um teatro
da manifestação do mal que só poderia se apaziguar com a morte ou com a
“extrema purificação”.
40
Segundo Arantes, o teatro e a peste são idênticos e diferentes, ambos
purgam um abscesso coletivo, moral e social; mas a ação do teatro se desenvolve
no espaço perigoso do espírito, do imaginário coletivo, “o que implica que ela
expande e multiplica o conflito cruel da matéria e do espírito, da vontade e da
natureza, do homem e do destino, para além de toda consciência individual e
coletiva”. (ARANTES, 1988, p. 22). O teatro então seria o espaço da vitória da
anarquia sobre todas as ordens, pois, “revelando às coletividades sua potência
sombria, sua força oculta, convida-as a tomar diante do destino uma atitude heroica
superior que não teriam tomado jamais sem isso”. (ARTAUD, 2007, p. 42).
A comparação entre o teatro e a peste colocará a tônica no poder
desestruturador da arte, no seu aspecto grave e implacável, capaz de colocar o
homem diante de situações extremas, exigindo dele uma atitude heroica diante da
vida. Como a peste, o teatro pode ter uma ação epidêmica, que dissolva os quadros
regulares da vida social, e faz eclodir forças sombrias e disruptivas, o 'o tempo negro
de certas tragédias antigas que todo teatro verdadeiro deveria reencontrar'
(ARTAUD, 2006, p. 28). É essa confrontação que pode produzir uma 'formidável
convocação de forças, que conduz o espírito à origem de seus conflitos'. Artaud
sonhava com um teatro que fosse esse momento de confronto, no qual toda a
existência é colocada diante do perigo.
Entretanto, para que essa ação teatral acontecesse da forma como Artaud
desejava tinha que acontecer a elaboração de uma série múltipla de símbolos
espaciais que, agisse diretamente sobre os sentidos do espectador, produzindo
assim a expansão tanto dos símbolos como das sensações físicas produzidos por
esse grande hieróglifo que era o teatro artaudiano. Um teatro de imagem que
desenredaria conflitos, liberaria forças, desencadearia possibilidades, mesmo que
essas possibilidades e forças tivessem em si algo de negra, mal, não seria culpa do
teatro, mas da própria vida. Já que para Artaud a vida tal como ela era ou a fizeram
não era motivo de exaltação “(...) Parece que através da peste , e coletivamente, um
gigantesco abscesso, tanto moral quanto social, é vazado; e, assim, como a peste, o
teatro existe para vazar abscessos coletivamente”. (ARTAUD, 2006, p. 28).
41
O teatro ganharia nesses moldes uma importância fundamental para o artista
francês no sentido de ser o espaço ideal para promover a destruição de todas as
máscaras que vão se sobrepondo sobre o homem o distanciando de si próprio e de
se verem, de fato, como são, ou seja, a ação do teatro seria benfazeja, pois
sacudiria a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claro dos
sentidos. O teatro almejado e experimentado por Artaud poderia ser visto, como bem
disse Armand-Laroche, como um “cavalo de Troia”.
Artaud aconselha-nos a recuperar o grito de revolta, de insubordinação, uma
revolta que resistiria às crueldades do mundo, ele oferecia por meio do seu teatro a
possibilidade de um verdadeiro contágio que como o da peste conduziria o sujeito a
uma desordem fundamental das secreções do corpo e da vida, micróbios inquietos
que afetam e se manifestam em todos os lugares. Promovendo assim um verdadeiro
anarquismo libertário sobre si e sobre o social e suas funcionalidades. Entretanto,
isto não quer dizer que seja tudo ou qualquer coisa, mas um intenso trabalho exigido
para a criação de uma estética da existência ou mesmo se, quiser, a um estilo de
vida, a um exercício de estilo, que reúne inúmeras variações sob uma unidade. Dito
de outra maneira: não ser escravo de si, nem dos outros.
O teatro, como peste, talvez, fosse para Artaud, nada mais do que a
superação da forma, o espaço que faria passar pelas formas algo que não pode ser
formalizado, levando às últimas consequências o embate entre a forma e a força
geradora. Para Arantes, a ação teatral em Artaud é um fluxo de forma que
consomem e são consumidas no movimento de sua produção. “É que uma forma
não reproduz, nem ilumina algo exterior, nem mesmo traz para visibilidade as
possibilidades latentes. Daí que a questão da boa forma não seja a da adequação,
mas a da forma em movimento e a do movimento da forma”. (ARANTES, 1988, p.
19).
Superar a forma para tocar a vida este era o empreendimento de Artaud. No
que ele nos diz no seu magistral livro o Teatro e seu duplo:
42
Do mesmo modo, quando pronunciamos a palavra vida, deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam. E, se é que ainda existe algo de infernal e de verdadeiramente maldito nesses tempos, é deter-se artisticamente em formas, em vez de ser como supliciados que são queimados e fazem sinais sobre suas fogueiras. (ARTAUD, 2006, p. 08).
E a vida que ele grita em ter só poderia ser acessada pelo teatro se de fato o
mesmo fugisse das objetivações e representações da cultura ocidental. Após ser
abandonado pelas pessoas na conferência que foi convidado a apresentar, Artaud
(2006), fala Anais Nin:
Eles sempre querem ouvir falar de: querem ouvir uma conferência objetiva sobre 'o teatro e a peste' e eu quero lhes dar a própria experiência, a própria peste para que eles s aterrorizem e despertem. Não percebem que estão todos mortos. A morte deles é total, como uma surdez, uma cegueira. O que lhes mostrei foi a agonia. A minha, sim, e de todos os que vivem. (2006, p.166).
A tentativa do encenador francês não era tornar visível um pestífero segundo
seu tipo social, mas capturar o que desse estado circula como intensidades. Encenar
a peste não é imitá-la, mas atravessar esse campo inflamável em que cada gesto ou
grito é uma criação sem limites, intensidade que se liga a outra, em um devir
ilimitado.
A arte que interessava a Artaud era aquela que fazia sentir a carne “nada me
toca apenas me interessa isto que se endereça diretamente a minha carne” é como
se ele quisesse afastar tudo aquilo que o impedia de ser ele mesmo, melhor
dizendo, que não deixava-o descobrir-se24. O termo Carne se identifica com Vida. E
Vida, em Artaud, tem que ser entendida não como uma solução acabada, pois não
24
Novamente chamo atenção aqui para o fato de que em Artaud o descobrir-se não tem nada haver com uma essência ou mesmo uma relação com uma identidade fixa, pelo contrário, a sua luta sempre foi por transbordar isto que no ver dele o tornava “mais pobre e com menos vida”. Poderíamos aproximar essa ideia com a de Nietzsche do “torna-se quem se é” no sentido da vida como exercício de estilo. “Ser não é nada senão um contínuo 'ter sido', algo que vive de se negar e de se consumir, de se contradizer a si mesmo”. Crepúsculo dos ídolos, II, §1.
43
teria uma existência escolhida, nem determinada. Nesse sentido a Vida era para ele
processual, se faria no transcurso de sua existência. O teatro era para ele então, um
espaço de continua criação, era feitura e desmanche do homem e do mundo que
habita.
1.4 O Teatro da Crueldade
Artaud buscando proporcionar outra apreensão estética que não fosse pela
coerência do pensamento discursivo e lógico cria o teatro da crueldade. Ele tinha
como projeto uma encenação que fizesse com que o espectador fosse submetido a
um tratamento de choque emotivo, de maneira a libertá-lo do domínio discursivo e
lógico para encontrar uma vivência imediata, uma experiência estética e ética
original.
Para Artaud a cultura do Ocidente trai a potência do pensamento ao relega-lo
a uma representação, isto é, pensar, nesse sentido, é estabelecer formas, signos,
sistemas. O homem civilizado do ocidente perdeu a capacidade de alcançar a vida,
segundo ele, um civilizado é um “monstro no qual se desenvolveu até o absurdo a
faculdade que temos de extrair pensamentos de nossos atos em vez de identificar
nossos atos com nossos pensamentos” (ARTAUD, 2006, p. 08).
O pensamento representação nos separaria da força que impulsiona e que faz
vibrar em um plano de criação. É o que nos estabiliza em uma forma, ou melhor, o
que nos faz pensar através de formas, criando maneiras “corretas” de pensar, como
também, de sentir e de viver. Daí o combate de Artaud pelo presente aberto às
forças que o afetam. Combate contra um pensamento, quer dizer, o que faz um
pensamento representação do mundo ao invés da experimentação do mundo.
Existia em Artaud uma necessidade do pensamento, de multiplicidades ou
variações possíveis dele. Ele se afastava de todo mecanismo estático ou de todo
conformismo que não conseguia pensar além ou aquém de uma gramática
classificatório, representativa. O ato cruel ou a crueldade exercida por Artaud estava
44
exatamente em querer pensar fora do pensamento praticado pelo ocidente. Segundo
Uno (2012):
No interior do pensamento, a crueldade significa a mutação de tudo o que caracteriza o pensamento, do que condiciona o sujeito e o objeto do pensamento, incluindo a linguagem. Mas a crueldade é, no fundo, o signo do que é estrangeiro ao pensamento, de uma cruel abertura do pensamento ao exterior. (2012, p.37).
Para Deleuze, antes de tudo, precisamos acreditar no mundo. A creditar é
promover uma relação com o pensamento, ou melhor, com o impensável no
pensamento, justamente para resistir, para alcançar um ato político. Algumas
experiências artísticas enquanto experiência do fora nos coloca num estado de
videncia. O fora “consiste em Visões e Audições que já não pertencem a língua
alguma. Essas visões não são fantasmas, mas verdadeiras Ideias que o autor vê e
ouve nos interstícios da linguagem, nos desvios da linguagem”25.(DELEUZE, 1997,
p. 17). A experiência do fora ou pensamento exterior nos faz ver e ouvir o mundo
longe dos clichês de uma suposta essência da realidade. Ou seja, nos faz ver e ouvir
a vida em sua exterioridade pura, em sua mais alta potência. Colocar o pensamento
em relação com o fora confere ao pensamento um parentesco com nômade,
guerreiro, deserto.
De modo que o pensamento ao invés de ser pensado como Estado, é como
tribo. Deleuze chama isso de uma espécie de contra-pensamento, que é todo
contrário da aglutinação que o Estado favorece. Pois o Estado é da ordem de certa
gregariedade, rebanho. O pensamento para o filósofo francês é, nesse sentido, uma
solidão povoada, uma solidão que permite um povoamento. O que esse pensamento
que se coloca sobre o signo do deserto, do intempestivo, da solidão, da tribo força é
outro pensamento, da ordem do espaço liso, contrário, portanto, ao espaço estriado
do Estado, que traça um caminho que deve ser seguido de uma ponta a outra.
Portanto, se tem no pensamento liso uma espécie de velocidade, transito. O
pensamento para Deleuze, não tem imagem.
25
DELEUZE, Gilles. Critica e Clinica. Editora 34, 1997.
45
Pensar em Artaud, então, seria da ordem do inominável, de um pensamento
sem imagem26 que o afastaria da representação. De fato, a representação é a mola
mestre de um pensamento imagem com suas séries de postulados, sobre os quais o
pensador acredita que começa a pensar. Mas o que é um pensamento sem
imagem? Para muitos autores, como Gilles Deleuze e Felix Guattari não há
resposta, mas aberturas, possibilidades, problemas que surgem como respostas.
No teatro de Artaud há certa recusa desse sistema de representação e, por
conseguinte, dessa imagem do pensamento e dos seus pressupostos. Promovendo
assim, a desestabilização de um enquadramento na forma de pensar. Nesse sentido,
podemos dizer, que a manobra encontrada por Artaud para alcançar este estado
libertário do pensamento foi por meio do ataque a linguagem.
A linguagem em Artaud deve ser percebida como barulho, desarmonia,
encrespamento, queixa inarticulada de uma palavra nascida dos contatos. Ora, a
proposta dele sempre foi “a confusão de minha e (sua) língua”, existia assim em
Artaud um desprezo por sua língua materna, contudo, Felício chama atenção para
fato dessa negação de Artaud ser ultrapassada, imediatamente, por outra negação,
“chegando ao um novo estado de linguagem, com sentido novo [...]”. (FELÍCIO,
1996, p. 17). Existindo assim o abandono de uma linguagem, que tinha em sua
origem o discurso casualista e científico, para se chegar numa nova linguagem que
fosse compreendida de maneira diversa à primeira.
Ora, é nesse momento que se faz presente o domínio da arte, do seu teatro,
no domínio da expressão, que Artaud (2006) definirá da seguinte maneira:
26
Para Daniel Lins é no livro de Deleuze O bergsonismo que melhor encontraremos uma reflexão acerca do combate a esse pensamento-imagem e sua forma arborescente. Para o autor a obra de Deleuze é uma ferramenta que podemos usar na desconstrução da imagem tradicional do pensamento e de propor novas vias. É nesse sentido que tal proposta de pensamento se torna importante aqui para pesquisa, pois vemos nele conexões com o pensamento de Artaud e seu ataque ao pensamento-representação. Segue que Lins nos diz: “Não por acaso Deleuze abre o capítulo 'A imagem do pensamento' questionando o começo. Ora, a existência de um começo insere-se numa imagem do pensamento, que impõe uma raiz, um pensamento arborescente, o que leva Deleuze a engendrar o conceito de pensamento sem imagem, e que se torna ao longo dos tempos verdadeiras barricadas contra a representação, contra a imagem dogmática do pensamento”. (LINS, Daniel. Estética como acontecimento- o corpo sem órgãos. São Paulo: Lume editor, 2012, p. 13).
46
Da expressão, eu entendo não certo ar de rir ou de chorar, mas a Verdade profunda da arte [...]. O sujeito importa pouco e também o objeto. O que importa é a expressão, não a expressão do objeto, mas certo ideal do artista, de certa soma de humanidade através das cores e dos traços”. (2006, p. 17).
Por isso, segundo ainda Felício, a arte era considerada por Artaud como uma
palavra, quer dizer, como ato de dizer alguma coisa.
Todavia, não devemos entender o ato de dizer alguma coisa, como
reprodução de um modelo, pois para ele o modelo em si não era nada, dito de outro
modo, se o artista deforma a realidade é para que nesse ato a arte exista, pois o que
importa é que através do modelo se possa dizer algo de vida vacilante e angustiada.
Por essa perspectiva, a arte era para Artaud “[...] sempre uma altura a atingir”. A
arte, portanto, não seria uma simples cópia da natureza, mas um encontro com ela,
por meio do sensível.
O sensível como balizador de uma arte que voltava-se para o instinto, para
transformação de si e do mundo. O seu teatro quer trazer a tona aquilo que é
desprezado: emoções e corpo. A sua cena quer revelar os indivíduos com seus
instintos, sinceridades, regiões ocultas. Ele quer revelar o que a sociedade quer
esconder, o que está sobreposto pela sociedade cristã. E o teatro como Duplo é o
lugar ideal já que ele coloca em perspectiva as ideias, quer dizer, o teatro não agiria
imediatamente sobre a realidade cotidiana e direta, mas, desdobrando
dialeticamente27 e como duplo as ideias pacificadas nessa realidade, funcionaria
como “o grande mágico [que] por suas formas é a figuração esperando tornar-se a
transfiguração”. O poder do teatro estaria então em poder transformar a realidade,
não porque desejaria no futuro uma realidade melhor, mas porque é o lugar do
conflito “dialético”.
27
O sentido que Artaud dar ao conceito de dialética é bem especifico, ou seja, para Artaud “A dialética é a arte de considerar as ideias sob todos os aspectos imagináveis- é um método de repartição das ideias”. (ARTAUD apud ARANTES, 1988, p. 27). Bem próximo, talvez, a um perspectivismo nietzscheano. ou seja, não se tendo um ponto de vista absoluto, que unifique e harmonize os potencialmente infinitos pontos de vista existentes.
47
O verdadeiro teatro para ele era aquele que fazia escorrer pelas brechas da
cultura ocidental, com suas formas petrificantes, as sombras que guardam nelas as
vibrações da vida, isto é,
[...] O verdadeiro teatro, porque se mexe e porque se serve de instrumentos vivos, contínua a agitar sombras nas quais a vida nunca deixou de fremir. O ator que não refaz duas vezes o mesmo gesto, mas que faz gestos, se mexe, e sem dúvida brutaliza formas, mas por trás dessas formas, e através de sua destruição, ele alcança o que sobrevive às formas e produz a continuação delas. (ARTAUD, 2006, p. 07).
Essa ideia se articula com a sua ideia de um teatro físico, concreto, aonde
sua potência de realização se daria ao escapar da linguagem articulada, ou seja, a
uma cena que se dirigiria antes de mais nada ao sentido. Para isso, o teatro deveria
criar um espaço poético capaz de criar imagens materiais equivalente às imagens
das palavras. Um espaço onde o estado poético só seria totalmente eficaz se
produzisse uma poesia concreta, isto é, se produzisse objetivamente alguma coisa
através de sua presença ativa em cena. Trata-se aqui de expor o teatro por si
mesmo, como uma arte no espaço e no tempo, com corpos humanos e todos os
recursos que ele inclui como obra de arte total.
Por isso, ele retoma os procedimentos do Teatro de Bali ao começar
experimentar o teatro da crueldade, pois se lá um som equivale a um gesto e,
portanto, não se caracteriza como mero cenário ou acompanhamento de
pensamento é porque ele faz com que o espírito evolua, o dirige, o destrói ou o
transforma definitivamente. O longo hábito dos espetáculos de distração, segundo
Artaud, nos fez esquecer a ideia de um teatro grave que, “abalando todas as nossas
representações, insufle-nos o magnetismo ardente das imagens e acabe por agir
sobre nós a exemplo de uma terapia da alma cuja passagem não se deixará mais
esquecer”. E ele nos diz mais: “Tudo o que age é uma crueldade. É a partir dessa
ideia de ação levada ao extremo que o teatro deve se renovar”. (ARTAUD, 2006, p.
98).
48
O teatro retomaria sua força, no ver de Artaud, ao ser o espaço que fizesse
despertar nervos e corações. Pois se chegou a um ponto forte de desgaste da
sensibilidade ocidental. Os danos do teatro psicológico foram grandes, na visão de
Artaud, sobre a sensibilidade. Ele chega a constatar o recalcamento da teatralidade
no palco europeu tradicional: “Como é que o teatro, no teatro pelo menos como
conhecemos na Europa, ou melhor, no Ocidente, tudo o que é especificamente
teatral, isto é, tudo que não obedece à expressão pela fala, pelas palavras, ou, se
quisermos, tudo que não está contido no diálogo seja deixado em segundo plano?”
(ARTAUD apud PAVIS, 2008, p. 372)28. O que importa antes de tudo é romper com a
sujeição do teatro ao texto e reencontrar a noção de uma espécie de linguagem
única, a meio caminho entre o gesto e o pensamento.
O Teatro da Crueldade rejeita não somente as características do teatro
tradicional, mas também, de modo geral, a racionalidade da sociedade ocidental,
propondo as bases para um novo teatro e para uma nova maneira de apreensão do
mundo, que remeta ao nível pré-verbal da psique humana. O termo "crueldade" se
refere aos meios pelos quais o teatro pode abalar as certezas sobre as quais está
assentado o mundo ocidental - a começar pela própria linguagem.
Artesão de uma “linguagem-outra” como diz Daniel Lins. De um pensamento
e desejo-outros. “Pode-se inventar uma linguagem própria, fazer com que a
linguagem fale com um sentido extragramatical, mas é preciso que haja um
sentimento válido em si, que provenha do horror- horror este velho serve da dor [...]”.
(ARTAUD apud LINS, 2011, p. 30). Inventar, pois uma “linguagem própria”, sem
jamais perder a dimensão do acontecimento inserido em toda criação.
Se existia por parte do pensador do “teatro e a peste” o ataque a linguagem, a
ideia de retorcê-la, dobra-la era na tentativa de sacudir o organismo, de recusar a
resignação. Para isso, deveria-se criar um espetáculo em consonância com essa
linguagem explodida, liberta de uma gramática racional, coaguladora de uma
“linguagem-bomba”. E se existe ainda algo que o teatro pode extrair da palavra são
suas possibilidades de expansão fora das palavras, de desenvolvimento do espaço,
28
PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 372.
49
de ação dissociadora e vibratória sobre a sensibilidade. Nesses termos, o
espetáculo não deveria temer ir tão longe quanto necessário à exploração de nossa
sensibilidade nervosa.
A própria forma de como o espetáculo deveria ser disposto na sala prova
como Artaud tinha em mente criar um universo encantatório que agisse sobre a
sensibilidade, a psique de cada um, eis que ele nos diz:
[...] É para apanhar a sensibilidade do espectador por todos os lados que preconizamos um espetáculo giratório que em vez de fazer da cena e da sala dois mundos fechados, sem comunicação possível, difunda seus lampejos visuais e sonoros sobre toda a massa dos espectadores (ARTAUD, 2006, p. 97).
A conquista de um movimento de continua criação, a afirmação da parte
indomável da vida, eis a intenção de Artaud. Até porque ao fazer vibrar sua língua
Artaud acreditava refazer todos os caminhos do pensamento em sua carne. Soldar a
arte tão fisiologicamente à vida, de modo a ser ilusório querer isolar uma da outra.
Em várias passagens dos seus escritos ele reforça essa relação imbrincada entre
ambas.
A vida é queimar perguntas. Não concebo uma obra isolada da vida. Não amo a criação isolada. Também não concebo o espírito isolado de si mesmo. Cada uma de minhas obras, cada um dos planos de mim próprio, cada uma das florações glaciares de minha alma interior goteja sobre mim. (ARTAUD apud COÊLHO, 2013, p. 55-56)29.
A fala de Artaud é a de um corpo-espírito que se coloca continuamente em
cena, como que distanciado de si mesmo, que se reinventa em suas batalhas, em
suas criações. Ela se dirige primordialmente aos sentidos e faz oscilar a própria
noção de referencial e de figuração do personagem, ou seja, faz emergir uma forma
não-ilustrativa, que deforma o corpo-personagem-ilustrativo incitando os corações e
29
COÊLHO, Wilson. Antonin Artaud: a linguagem na desintegração da palavra. Curitiba: Appres, 2013, p. 55-56.
50
as mentes daqueles que lançam seus corpos em uma prática mais aberta e funda de
teatralidade. O estilo de Artaud inventa-se como uma língua que exprime a tensão
entre o logos e o corpo. Abrindo-se para uma escrita-corpo que capta o ritmo e a
cadencia da vida. Sua teatralidade promove, pois, uma completa mudança na
mentalidade, nos hábitos e padrões teatrais, e deságua em um domínio particular de
trocas com o espectador, em intervenções fronteiriças entre arte e vida, quase
sempre nos limites de uma ultrapassagem.
Nessa cena o ator entra num embate consigo próprio ao colocar em
movimento tudo aquilo que de alguma forma faz parte da sua constituição corpórea,
ou melhor, ele torna evidente a si próprio, por meio da experimentação, todo um a
priori de clichês que o preenche conformando e circunscrevendo-o a um corpo
organismo. Para Ferracini (2013):
Podemos chamar esse quadro-corpo pré-preenchido de doxas corpóreas- doxa utilizada aqui em seu sentido grego de opiniões comuns, opiniões gerais ou totalizantes. Ou, no caso mais específico corpóreo, os comportamentos e clichês expressivos [...]. Fora isso, o corpo é acometido por comportamento sociais, históricos, culturais que além de o inserirem em um código cotidiano de relações, o 'docilizam' em sua potência de força. (2013, p. 76).
Aqui não se trata de um “esvaziamento total” das “doxas corpóreas”, mas de
uma luta que permita abertura do corpo -por meio dos processos criativos artísticos-
para outras forças e intensidades. Nesse sentido, podemos retomar Michel Focault,
pois com ele ganha força uma nova grande linha de indagação a respeito do corpo.
A saber: de que corpo necessita determinada configuração espaço-temporal de
saberes e poderes? Em outras palavras, pergunta-se pelas práticas discursivas e
não-discursivas que se investem sobre os corpos e o arrastam para uma série de
problemas.
Segundo Foucault, em toda sociedade o corpo aparece como objeto e alvo do
poder. Ele está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem
limitações, proibições ou obrigações. Entretanto, essas técnicas ou anatomia política
51
foram se aperfeiçoando ao ponto de dele afirmar:
É preciso parar de sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele 'exclui', ele 'reprimi', ele 'recalca', ele 'censura', ele 'abstrai', ele 'massacra', ele esconde. De fato, o poder produz; ele produz real; produz domínios de objetos e rituais de verdade 30 . (FOUCAULT, 1997, p. 138).
O poder, portanto, possui uma eficácia produtiva, um cabedal estratégico,
uma produtividade. Daí a explicação do fato de ter como alvo o corpo humano, não
para supliciá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo.
O teatro da crueldade por ser um embate dos corpos e dos poderes de afetar
e ser afetado, portanto, uma espécie de embate físico -daí a fisicalidade do teatro-
permiti sondar e viabilizar resistências e saídas do próprio campo dos
condicionamentos e das múltiplas conexões que nos enredam. Pois, ele torna-se um
espaço possível de tentativas de instaurar um corpo que se esquiva a sua própria
instituição. Todavia, não é uma idealização de que vai suprimir toda determinação
pela qual a existência é atravessada, porém, a capacidade de jogar com as
determinações; em suma, de interromper seu encadeamento para compô-las
livremente.
Trata-se de abrir o corpo. Por que este pode encontrar-se fechado,
insensível às pequenas percepções, educado para as tarefas mais exigentes e
rígidas da realidade. Segundo Jose Gil, “Abrir o corpo é torná-lo hipersensível,
despertar nele todos os seus poderes de hiperpercepção, e transformá-lo em
máquina de pensar- quer dizer reativá-lo enquanto corpo paradoxal, o que todos os
regimes de poder sobre o corpo procuram apagar, esforçando-se por produzir o
corpo unitário, sensato, finalizado das práticas e das representações sociais que
lhes são necessárias”31. (GIL. 2001, p. 212). Talvez se trate em Gil quanto em Artaud
de esculpir um corpo sem imagem do que se é um corpo. Um corpo-devir-criança,
30
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. São Paulo: Vozes, 1997. 31
GIL, José. Movimento Total: o corpo e a dança. Relógio d' água, 2001.
52
que provoca algo novo. Sem uma forma fixa ou uma história que conduza a um
desfecho já sabido. Mas um corpo que escuta sua época, capta o ritmo da vida,
procura as zonas de turbulência, zonas de caos, onde os movimentos
inclassificáveis tomam origem.
Todavia, isto não é possível para o “anarquista coroado” sem a crueldade,
pois a crueldade para ele está próximo do agir. No apetite de vida, no impulso
irracional para a vida, há uma espécie de maldade inicial. A crueldade pode ser
pensada em Artaud tanto de forma catastrófica como criativa, no entanto, não menos
cruel. Pois, se crueldade é sinônimo de agir, ela é cruel porque nos força a se
deslocar, transfigurar, ou se quisermos, transvalorar os valores que engendram uma
forma de vida. Por outro lado, a vida é para o homem crueldade, pois ela é uma
modelagem infinita da força do vivo. Segundo Artaud, o homem tem consciência que
toda vida no seu conjunto é fruto de uma crueldade infinita. E o artista francês, para
definir a crueldade, retoma exatamente os mesmos termos que Spinoza, a saber:
“esforço”, “apetite”, “desejo”. Contudo, ele sentia-se mais próximo do grande
pensador da crueldade que foi Nietzsche, segundo o qual, “(...) Ver-sofrer faz bem,
fazer-sofrer mais bem ainda- eis uma frase dura, mas um velho e sólido axioma,
humano, demasiado humano. […] Sem crueldade não há festa: é o que ensina a
mais antiga e mais longa história do homem”. 32 (NIETZSCHE, 2013, p. 153).
As marcas vão se fazendo ver no corpo daqueles que experienciam o ato
cruel, que se deixam envolvessem pela violência da alma, do pensamento, que
situam-se no domínio da crueldade não só corporal, mas moral, portanto:
[...] não se trata dessa crueldade que podemos exercer uns sobre os outros, despedaçando-nos mutuamente, serrando anatomias pessoais ou, como os imperadores assírios, mandando sacos de orelhas humanas, narizes e narinas bem cortadas pelo correio; mas sim da crueldade muito mais terrível e necessária que as coisas podem exercer sobre nós. Não somos livres. O céu ainda pode cair sobre nossas cabeças. (ARTAUD, 2006, p. 89).
32
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Segunda dissertação,§6, 2013, p. 51.
53
Sobre o Teatro da Crueldade, Artaud sempre afirmou que não se tratava de
um mero teatro social, mas um teatro da angústia humana em reação contra o
destino, um teatro repleto de gritos que não eram de pavor, mas de ódio, e ainda
mais do que ódio, do sentimento do valor da vida. A relação entre vida e teatro
possui um sentido primordial para Artaud e seu Teatro da Crueldade, era por meio
dele que o artista francês via e vivenciava a possibilidade de transformação ou se
quiser de deformação de um corpo institucionalizado.
O teatro da crueldade torna-se o próprio movimento da vida, e não, uma
representação, pois libera fluxos, as intensidades, aquilo que ainda não foi
formatado por certo poder domesticador. É uma criação incessante, uma busca por
tornar o teatro o campo de configuração de forças que contaminem o presente,
esboçando novos possíveis.
A sua função clara é a de provocação e reação ao estado de coisas atuais.
Ele põe em movimento a sensibilidade, o espírito e a própria vida. Porém, ele nos
convida à transformações incidindo não nos domínios dos fatos, mas agitando e
despertando as forças vivas que percorrem o presente, mas que permanecem em
repouso, quietas, lá onde a vida se encerra em formas estabelecidas e nas
significações dominantes.
Artaud não tem apenas uma teoria sobre o teatro, ou um pensamento sobre a
cultura. Ele busca, todo momento, a “encarnação”, a cura da cisão entre
pensamento e carne. Daí brota uma linguagem que, mais do que representar,
pretende ser um modo de agir e afetar. Quando escreve, Artaud é também “homem-
teatro”, ator empenhado na transformação do corpo e da mente cotidiana na direção
de estados superiores de existência.
Segue que ele nos diz:
Todo esse magnetismo e toda essa poesia e esses meios de encantamento diretos nada seriam se não colocassem o espírito fisicamente no caminho de alguma coisa, se o verdadeiro teatro não pudesse nos dar o sentido de uma criação da qual possuímos
54
apenas face e cuja realização completa está em outros planos (…) E pouco importa que esses outros planos sejam realmente conquistados pelo espírito, isto é, pela inteligência; isso é diminuí-los e não interessa, não tem sentido. Importa é que, através de meios seguros, a sensibilidade seja colocada num estado de percepção mais aprofundada e mais apurada, é esse o objetivo da magia e dos ritos, dos quais o teatro é apenas um reflexo. (ARTAUD, 2006, p. 104).
1.5 O corpo-sem-órgãos
Todas as lutas e guerras que Antonin Artaud travou, sejam, poética, teatrais,
quando esteve trancafiado foram pelo corpo-sem-órgãos. Foram lutas por uma
política menor, intensiva, não identitária, imanente à criação da vida. A busca era por
construir um corpo ou mesmo desconstruir por meio da potência criativa da arte. Arte
e vida estão unidas aqui por um teatro de construção de si, de desterritoralização,
um teatro como ferramenta importante na sua capacidade de afetar.
O corpo-sem-órgãos não detém uma ordem fixa, um organismo. É uma
recusa a todos os limites, sejam eles, temporais ou biológicos. Nesse corpo o fluxo
circula de outra maneira. Um corpo de intensidade, de limiares, de dor. O corpo-sem-
órgãos seria uma operação de resistência a tudo aquilo que o estratifica, o obstrui,
ou seja, um engajamento por um corpo que não se contenta com o que é dado, que
não busca reproduzir em si o modelo majoritário ordenador. Um corpo que não é
mais um sistema organizado, mas que se compõe como uma matéria “intensa e
intensiva” que vibra ou pulsa sob o organismo. É uma superfície por onde deslizam
acontecimentos, velocidades que não estão canalizadas em distribuições e
esquadriamento. Portanto, desarticula o corpo organizado em função de uma
otimização. Abre-se assim, para dar passagem a outras funções. Tudo isso é fruto
de uma operação, mas não está dado. É um combate incessante aos clichês, a uma
cartografia cultural vigente. É uma tentativa de buscar frechas por onde possam
passar intensidades que façam vibrar esse corpo, o expondo às forças do mundo. As
forças são entendidas, nesse sentido, como instância diretamente responsável por
desencadear a sensação naquele que entra em contato com ela. Abrindo-se para
uma virtualidade que permite experienciar novas maneiras de ver e sentir. Porém,
55
não se chegaria a um fim como bem lembra Deleuze e Guatarri (2002): “Não é uma
noção, um conceito, mas, antes de tudo, uma prática, um conjunto de práticas. Ao
corpo sem órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a
ele, é um limite”.33 (2002, p. 28).
Este “novo corpo” resultado de tal operação seria da esfera do anárquico
enquanto devir-guerrilheiro que organiza emboscadas contra o organismo, não
orgânico, acefálico e vital. Por isso mesmo bombardeado por todos os lados ou
como nos diz Lins (2011):
Corpo-sem-o-órgãos que foi, como Artaud, roubado pelo Divino, estuprado pelos deuses esfomeados, sugadores de energia humana, incapazes de caminhar no deserto sem se agarrarem às muletas, como homens ordinários, em guerra permanente contra o corpo atravessado por uma vitalidade não-orgânica.
Esta vitalidade faria extrapolar os limites impostos por uma forma de
existência que tem na média, ou seja, nem além, nem aquém, seu padrão e, por
assim ser, sua força disciplinadora.
Tudo aquilo que se coloca além ou aquém desse padrão médio de existência
sente no próprio corpo e, portanto, na vida, os efeitos cruéis de uma lógica que
permanentemente cria dispositivos de controle para a manutenção da ordem.
Quando Artaud cria a metáfora do corpo-sem-órgãos, ele não quer nada menos que
ultrapassar a lógica mediana que exige do homem um corpo disciplinado,
retificado34. Ele acreditava num corpo como espécie de escrita viva no qual as forças
imprimem “vibrações”, ressonâncias e cavam “caminhos”.
33
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Felix. Mil Platôs vol.3. São Paulo: 34, 2002, p. 28. 34
Este tema do corpo será mais bem aprofundado nos capítulos seguintes ao se discutir a relação entre corpo e política, mais especificamente em Foucault. Para a discussão que aqui segue o que se busca é tomar consciência de como um certo padrão normativo implica, para a manutenção de sua existência, de um corpo organizado, ou seja, investido de controle. Dito de outra maneira, esta padronização necessita também ela da padronização do corpo, pois sem tal efeito pode-se causar uma verdadeira dissimetria e com isso sua falência. Claro, que pode se dizer, talvez, na mesma proporção que ela necessita também dos que extrapolam, pois só assim pode se fazer ver o caráter punitivo a quem extrapassou a média.
56
Para Lins, o corpo sem órgãos, é o que mantém o homem vivo:
É o desejo desejando o desejo. É uma dodecafonia mesclada à polifonia de um corpo vibrátil a quem nada falta, pois ele tem o infinito como premissa existencial, como abismo do Ser. Ele não procura para encontrar, mas para se perder na busca. Ora, a produção do corpo sem órgãos supõe, antes de tudo, energia, vida. (LINS, 2011, p. 46).
Criar para si um corpo sem órgão é reinventar-se.
O teatro de Artaud é uma luta contra o “homem-forma”, contra o corpo
instituição (o Estado, a igreja, a família). A ideia de Artaud é da ordem da crueldade.
Como partir de outro corpo, como retomar a vitalidade não orgânica. “Se quiserem
podem me meter numa camisa de força, mas não existe coisa mais inútil que um
órgão. Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então terão libertado dos
seus automatismos e devolvido a sua verdadeira liberdade. Então poderão ensiná-lo
a dançar às avessas”.35
Criar espaços para vida, eis o que evoca a ideia do ‘corpo-sem-órgãos’.
Espaços que implicam esvaziamento de certas representações do interior do corpo.
Mas tomemos cuidado. Não tornemos o corpo sem órgãos como uma teoria ou
como diz Deleuze e Guatarri “[...] num saber universitário, eliminando ao mesmo
tempo seu processo de invenção e experimentação [...]”. 36 É uma prática. Um
experimento intensivo. Para fabricar um corpo sem órgãos é preciso agenciar.
Intensificar as forças. Deixando as linhas de fuga desterritorializar aquilo que está
formatado.
Sendo assim, o corpo sem órgãos é uma recusa às formas que se impõe
delimitando todo o seu raio de experimentação, de circulação, de pensamento. A
ideia aqui é de uma matéria que engendraria sua própria forma, engendrando,
portanto, formas outras de ver, de sentir, de se relacionar, de existência. Poderíamos
35
ARTAUD, Antonin. In: MÈREDIEU. Florence. op. cit. p.157. 36
DELEUZE, Gilles & GUATARRI, Felix. op. cit. p. 28.
57
contrapor aqui ao pensamento de uma segmentaridade dura para quem o processo
de individuação seria a imposição da forma sobre a matéria, de uma forma ideal,
pois já se teria um modelo a se alcançar.
Talvez, fosse essa a grande luta de Artaud, a recusa a uma segmentaridade
dura que imporia uma imagem prévia do que seja um pensamento, um corpo, um
modelo a ser seguido que conduziria o ser a um modo de existir. Ou seja, não
possibilitando outros modos de experimentos da vida, cerceando a possibilidade do
ser de viver outros possíveis. Por isso, ele tinha como projeto uma encenação que
fizesse com que o espectador fosse submetido a um tratamento de choque emotivo,
de maneira a libertá-lo do domínio discursivo e lógico para encontrar uma vivência
imediata, uma experiência estética e ética original.
Pode-se pensar a obra de Artaud como uma radicalidade de modo de criação
e como uma resistência artística. Como afirmação da arte como forma de
resistência. A visão de uma arte engajada no e pelo devir sensível percorre toda sua
obra. Ao insistir na necessidade de ‘acabar com as obras-primas’ ou atacar a escrita
literária, Artaud pretende mostrar que o essencial da arte reside no seu núcleo
intensivo, no que ela provoca e desencadeia – os devires sobre o corpo de quem
cria e de quem contempla e que provocam uma mudança no próprio corpo da
cultura e da civilização. O que importa é o interesse que uma obra pode gerar em
cada um para se superar e viver para além das formas canônicas da cultura. Daí sua
exigência de uma contaminação violenta pela arte, exposta em seus escritos sobre
teatro.
Destruir os órgãos significa destruir as coerções sociais que impregnaram
nosso ser físico-mental, psicossocial, sociocultural. Até porque para Artaud, era
insuportável o condicionamento inato que pesava sobre o corpo, pois ele sabia que
a vida, era determinada social, histórica, e politicamente “(...) Ela não é apenas
influenciada e invadida de fora por contextos sociais. A sociedade é um dado quase
inato ao corpo”. 37(UNO, 2007, p. 38). A arte era para ele um estado de exceção
37
UNO, K. As pantufas de Artaud segundo Hijikata. In: GRENER, Christine e AMORIM, Claudia (orgs). Leituras da morte. São Paulo: Annablume, 2007.
58
permanente que se colocava contra a reificação e homogeneização da vida.
O corpo sem órgãos é uma tentativa de rebelar-se contra sua própria
existencia para assim, atingir a vida. Eis que Artaud nos diz: “Para existir basta
abandonar-se ao ser/mas para viver/é preciso ser alguém/e para ser alguém/é
preciso ter um OSSO,/é preciso não ter medo de mostrar o osso/e arriscar-se a
perder a carne”. (ARTAUD, 1938, p.151)38. Ou seja, a carne sendo tudo aquilo que
se sobrepõem a nós- a política, a sociedade, as instituições, as relações de poder- e
que nos dão uma forma, um rosto, um modo de ser. Mostrar o osso, buscar o corpo
sem órgãos é fazer aflorar um corpo selvagem, bravo, arisco, associal, arredio ao
conformismo, a algo antecipadamente dado ou imposto por uma transcendência que
nos direcionaria ao mero ser, ou se quiser, a mero sobrevivente. Existe nesse corpo
que Artaud forjou algo de violento, de violador. Mas, que fique claro que quando se
fala em violência, fala da violência para enfrentar o pensamento determinado, a
imagem dogmática, o corpo-órgãos; a violência, pois, como potência positiva, como
uma vontade de tudo; uma potência que encontra sua força inventiva no
arrombamento.
Uma analogia possível a ser feita é a entre o corpo-sem-órgão, o
pensamento-sem-imagem e o da produção de uma nova linguagem. Pois contém
neles a chance do esvaziamento de tudo aquilo que os antecede e os engendram
em algo. E com isso a viabilidade de fazer dizer o indizível e fazer ver o invisível.
Mas como dizer o corpo, como dizer o indizível do corpo? Para o artesão do corpo
sem órgãos, criando uma nova linguagem, inventando, isto é, criando problemas,
vivendo perigosamente, portanto, tudo indica que em Artaud a criação estava muito
mais próxima do perigo que do conforto aparente de uma produção de arte de
entretenimento.
Em suma, buscar experimentar o corpo sem órgãos é o mesmo que assumir o
perigo de se ter que matar o que ocidente constituiu como sendo o homem. E mais,
ao matar o homem como ele foi conformado é matar também seu criador, Deus. Pois
só assim poderia se reinventar um novo homem:
38
ARTAUD, Antonin. Escritos Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983.
59
Quero dizer que descobri a maneira de acabar com esse/ macaco de uma vez por todas/ e já que ninguém acredita mais em Deus, todos acreditam/ cada vez mais no homem. / Como?/ como assim?/ sob qual ângulo o Sr. Não passa de um maluco, um/ doido varrido./ Colocando-se de novo, pela última vez, na mesa de autópsia para/ refazer sua anatomia./ O homem é enfermo e mal construído./ Temos que nos decidir a desnudá-lo para raspar esse animalúculo/ que o corrói mortalmente,/ Deus/ e justamente com Deus os seus órgãos [...]. (ARTAUD apud LINS, 2011, p. 44).
1.6 A Dimensão Política do Teatro de Artaud
Viemos até agora tentando trazer à tona como a vida e a obra de Antonin
Artaud mobilizaram uma vida que fazia fugir dos padrões normativos e que por conta
de tais experimentos se forjou uma vida outra que não estava em identidade com um
padrão pré-estabelecido de conduta social. E que por isso mesmo sofreu o que
sofreu.
Nesta perspectiva, se faz necessário, portanto, trazer a lume, melhor dizendo,
visualizar como o teatro que Artaud forjou pode ser percebido como um teatro
político já que comumente não é visto por grande parte dos pensadores que se
detém ao estudo da relação entre arte e política, mas especificamente, entre a
linguagem teatral e o pensamento político enquanto um teatro político. Pois, a ideia
corrente de teatro “político” passa por um teatro que apreende temas discutidos
publicamente ou que ele mesmo traz para a discussão, e dessa forma (pelo menos)
tem efeito esclarecedor.
Porém, no que diz respeito a um teatro de esclarecimento e de um (esperado)
aprofundamento de problemas políticos atuais através de sua representação no
palco, a crítica a respeito já não significaria um tema em si? Explico, ela não deveria
começar com o reconhecimento de que uma re-presentação teatral de problemas
definidos na realidade como políticos pode correr, desde o início, o perigo de repetir
demais, tal e qual, o que foi qualificado, como “político”. Fazendo com que haja,
consciente ou inconscientemente uma adaptação aos hábitos e percepção pré-
60
formadas? Engessando, desse modo, a possibilidade de se pensar a política por
outros meios e assim vislumbrar a abertura do pensamento e da ação na direção de
possibilidades que mostrem novos horizontes e caminhos.
Para o Teatrólogo Hains Thies Lehmann39, o meio pelo qual a arte age no
conflito político, torna-se ação política e expressa a quebra dos comportamentos
normatizados: a esse fenomeno ele chama “interrupção”. Ou seja, a interrupção das
normas, dos sistemas disciplinadores. A arte pode criar essas interrupções com
elementos como o terror, a anarquia, o delírio, o desespero, o riso, a revolta etc.
O teatro, como prática da interrupção da regra, reclama um direito absoluto à
exceção, ao irrepetível, ao impossível de ser levado em conta. A frase do dramaturgo
alemão Heiner Müller, segunda a qual, seria tarefa da arte “tornar impossível a
realidade”, atinge este radicalismo. O Teatro de Artaud corrobora com esse mesmo
radicalismo ao nos fazer perceber outras leituras da realidade, desempenha o que
talvez seja sua função principal, de abrir espaço para o imaginário, abrir os olhos
para aquilo que permanece exceção em toda regra, para o que foi deixado de lado, o
que não foi levantado, o que não se ergueu e por isso representa uma reivindicação.
Nesse sentido, se faz necessário adentrar a discussão que Miguel Chaia faz
acerca da distinção entre, o que ele chama, política explicita e política implícita. A
primeira “demarcada por um núcleo duro e definido pelo poder do Estado e do
partido, pela montagem e funcionamento das instituições e mecanismos de
representação” e a Segunda pelo seu aparecimento.
39
Hains Thies Lehmann é professor e pesquisador de teatro na Alemanha. Foi através dele que o termo pós-dramático ganhou vigência no meio artístico teatral. Ele escreveu um livro chamado “Teatro Pós-dramático” esse livro é resultado de uma longa pesquisa e observação das novas formas que no início dos anos de 1990 do século passado começam a insurgir. Formas essas decorrentes de releituras da obra de Antonin Artaud.
61
[...] Em diferentes momentos e circunstâncias da vida. Esta política difusa deve ser considerada para se abordar a dimensão política da arte e ela é exercitada nas ações e conhecimentos que se distanciam daquilo que é compreendido como tipicamente político40. (CHAIA, 2007, p. 14-15).
Fica claro, portanto, que para se pensar a arte de Artaud como uma arte com
dimensões políticas se faz preciso ter em mente o caráter polissêmico do conceito
de política, pois a abordagem que aqui se dará é da ordem do “micro”, “menor”,
“molecular”41. Sem contudo, achar que as duas dimensões não se cruzam, não se
afetam, e por conseguinte não produzem nessa interação uma forma de vida.
Desse modo, podemos pensar a arte de Artaud como “um exercício
experimental da liberdade, como sempre afirmou o critico de arte Mario Pedrosa que
seria a função da arte (PEDROSA, 1995, p. 17)”. Entretanto, esse exercício de
liberdade em Artaud é uma prática assim como o corpo sem órgãos, portanto, não
tem um fim em si ou a idealização de uma emancipação absoluta. Como prática
reivindica um exercício ininterrupto. Sendo assim, podemos pensar liberdade em
Artaud à luz do conceito de liberdade para Foucault. Pois, para este, a liberdade
nunca será uma libertação completa ou uma emancipação absoluta, simplesmente
porque novos poderes, e novas relações de mando se criam. A liberdade para
Foucault está no exercício ininterrupto da resistência, da revolta e da recusa. A
liberdade para ele não é um estado, mas uma ética.
Ora, se voltarmos a Artaud perceberemos que o que existe como tentativa no
teatro dele é- além de conter em si um lado virulento e perigoso da poesia que agiria
como força dissociadora e anárquica, subvertendo desta forma as relações
conhecidas- uma forma de subversão que não estaria apenas no domínio do
exterior, no domínio da natureza, mas no domínio interior, isto é, do ser. Ou seja, é
40
CHAIA, M. Arte e Política: situações. In: CHAIA, Miguel (org). Arte e Política. São Paulo: Azougue,
2007. 41
Os conceitos de “menor” e de “minoria”- “antes acontecimentos singulares do que essencias individuais, antes individuações por ecceidade do que substancialidade”- foram elaboradas por G.Deleuze e F. Guattari, in Kafka por uma literatura menor. O de minoria também remete ao conceito de “molecular” elaborado por Guattari. O uso do conceito de micro vem da leitura das obras de Michel Foucault, mas especificamente, em Microfisica do poder.
62
uma espécie de despersonalização, descentramento de si. Mas, tomemos cuidado,
uma coisa é o pensador e o artista buscarem uma verdade que o faz se anular
nessa busca, ocorrendo assim, uma despersonalização de assujeitamento. Outra
coisa é uma despersonalização para dar voz à multiplicidade. É uma
“dessubjetivação”42: um deslocar-se de si para que outras coisas aconteçam; os
afetos, intensidades, experiências, experimentações. É uma renuncia a um EU que
se sobrepõe, sobredetermina como uma espécie de golpe de Estado que o general
conduz num processo que antes dele podia tomar diversas direções. A figura do eu,
do sujeito, da pessoa são formas da interioridade e que remete a certo
individualismo. E que, portanto, estar atrelado a certa produção de subjetividade e
processo de individuação. Assim, o indivíduo vai ganhando pouco a pouco
elementos de equilíbrio estável que vão sobrecarregando e vão o impedindo de
42
Essa questão da dessubjetivação assim como da subjetivação é muito bem discutida por Peter Pál Pelbart ao retomar Giorgio Agamben na esteira de Deleuze e Guattari. O autor traz dois distintos processos de dessubjetivção. Por um lado, e aí ele usa Agamben para pensar, um duplo movimento de dessubjetivação e subjetivação exercida pelo Estado, pois, segundo, Pelbart, o autor italiano não enxerga o sujeito como dado, mas sim no interior de um processo ao mesmo tempo de subjetivação e dessubjetivação. “Por um lado, lembra ele [Agamben], o Estado moderno é uma máquina de descodificação que embaralha e dissolve as identidades clássicas. Mas ao mesmo tempo, é uma máquina de recodificação jurídica das identidades dissolvidas. Portanto, ao mesmo tempo em que dessubjetiviza, ressubjetiviza”.(2013, p. 226). Todavia, essa dessubjetivação seguida de uma ressubjeivação como uma prática de um Estado está atrelada a um assujeitamento do sujeito, tem-se, portanto, um risco, que segundo Pelbart, Aganbem identifica no rastro de Foucault, que é ao promover a ressubjetivação se invista nessa situação como uma nova identidade, que se produza um sujeito novo, mas assujeitado ao Estado, e que se reconduza desde logo, apesar de si, esse processo infinito de subjetivação e de assujeitamento que define justamente o biopoder. Além disso, podemos pensar na relação entre o capitalismo e o Estado, a família, a psicanálise, a mídia, pois aonde o primeiro desfaz de um lado, com seu movimento de desterritorialização, o Estado e os seguintes reterritorializam de um outro. A questão que fica é: o que reterritorializa. Mas como diz Deleuze ao retomar a lição vinda dos animais de Kafka – o que importa não é a liberdade, mas achar uma saída, é quando Pelbart se conecta com Deleuze e Guattari para pensar o par dessubjetivação e subjetivação, desse modo, o autor do O Avesso Do Niilismo, nos diz: “(...) Guattari e Deleuze formulavam um problema similar ainda no final dos anos 1960, quando reivindicava o domínio do impessoal, do acontecimento, das singularidades pré-individuais como a única linha 'subjetiva' possível, para não dizer, a-subjetiva, sem que houvesse aí qualquer drama, nem justificativa diante de qualquer tribunal egológico ou político, já que nisso repousava uma nova dimensão a própria política, que desertava os enquadres tradicionais da subjetividade histórica. Por exemplo, um devir, o que é? Dessubjetivação, certamente, na medida que arrasta os indivíduos dados para fora de sua identidade constituída, desmanchando ademais fronteiras entre as esferas humanas e não humanas, animal, vegetal, mineral, mítica, divina. Mas a partir desses devires imperceptíveis nascem sujeitos lavares, múltiplos eus, subjetivações outras. Então, quando Deleuze afirma anos mais tarde, que só há um universal na política , o devir-minoritário de todos e de cada um, é um chamamento a uma simultânea dessubjetivação e subjetivações eventuais, numa lógica já inteiramente distante da identidade, da sujeição, do assujeitamento, para não dizer do sujeito, ou do sujeito da História, segundo uma dialética do reconhecimento e da identidade. Como diz a introdução a Diferença e repetição, já em 1968: 'Cogito para um eu dissolvido. Acreditamos num mundo em que as individuações são impessoais e em que as singularidades são pré-individuais: o esplendor do 'SE''. Coerencia do Acontecimento impessoal ou da anarquia coroada”. (PELBART. O Avesso do niilismo. 2013, p. 228).
63
buscar novas individuações.
O teatro de Artaud torna-se político na medida em que coloca em cena não a
representação de um sujeito previamente dado, mas o embate com esse próprio
sujeito. Na medida em que brutaliza a forma-sujeito, ele opera uma espécie de
transgressão, tendo por objetivo não uma anulação da forma, mas a dissolução de
estruturas cristalizadas, de modo a proporcionar a irrupção do novo. Em suma, ele
reivindica algo do “informe”, que não quer dizer a não-forma, mas principalmente um
engajamento num trabalho que faz essas formas fremirem e se abrirem a realidade.
Todavia, isto requer um processo de crueldade com a semelhança, um trabalho
sobre si. Estamos falando de duas coisas ao mesmo tempo, por um lado uma
dessubejetivação, que promove um deslocamento de uma identidade sujeitada, por
outro de um processo de subjetivação-outra, que promove outra forma de habitar-se
e habitar o mundo, mas quem diz dessubjetivação e subjetivação, diz trabalho, e
quem fala em trabalho, fala de disciplina, quem fala de disciplina, fala em esforço,
fala em dores.
Assim, a concepção do corpo-sem-órgãos assinalada por Artaud pode ser
compreendida dentro do projeto de recusa à semelhança, isto é, recusa a uma
prática da representação, em prol de um pensamento informe, daquilo mesmo que
tem por objetivo agir contra as formas fixas, submetendo-as um processo de
renovação. O desafio se torna iniciar um trabalho de transformação de si, do seu
modo de vida. Modificar a própria existência possibilitando uma nova construção
com o outro. É claro que para o criador de O Teatro e seu Duplo, não existe
possibilidade de modificar a vida sem modificar o corpo. Porém, ele tinha toda
lucidez de que não era uma tarefa fácil, ele tinha consciência do seu inatismo, eis o
que nos diz: “Eu sou um genital inato, ao olhar de perto, isso quer dizer que eu
jamais me realizei. Há imbecis que se acreditam como seres, seres por inatismo. Eu
sou daqueles que para ser precisa escapar de seu inatismo”. (ARTAUD, 1983, p.
42)43.Um genital inato é, portanto, alguém que tenta nascer por si mesmo, fazer
diversos nascimentos para tentar assim excluir seu inatismo. Em outro contexto
43
ARTAUD, A. Escritos de Antonin Artaud. Coleção Rebeldes Malditos. Seleção e notas Claudio Willer, LPM, 1983.
64
Michel de Certeau afirma que “cada sociedade tem seu corpo, assim como ela tem
sua língua”44. E do mesmo modo que a língua, o corpo está submetido à gestão
social tanto quanto ele a constitui e a ultrapassa. Nesse sentido podemos corroborar
com Ferracini quando ele nos diz que “o corpo é uma máquina autopoética
cotidiana. E, mais especificamente, na cena, uma máquina autopoética estética. ”45.
(FERRACINI, 2013, p. 82). Desse modo, o corpo é ele próprio objeto e resistência
do poder político investido sobre ele.
O corpo não cessa de ser (re) fabricado ao longo do tempo. Portanto, se torna
empobrecedora as análises que toma o corpo como algo já pronto e constituído
para, em seguida, privilegiar suas representações ou o imaginário da época onde ele
está submerso. Em termos Foucaultianos não se trata de realizar uma listagem das
maneiras supostamente exóticas de lidar com o corpo em outras épocas, mas sim
de tornar questionáveis os gestos e as atitudes que ontem e hoje nos parecem
familiares ou não. Pois o corpo é, ele próprio, um processo. Resultado provisório das
convergências entre técnica e sociedade, sentimentos e objetos, ele pertence
menos à natureza do que à história. O que torna inútil retroceder a um suposto grau
zero das civilizações para encontrar um corpo impermeável às marcas da cultura.
Como nos bem mostra o pensador frances em seu texto “Nietzsche, a
genealogia e a história” cometemos um erro gravíssimo ao achar que o corpo seja
algo que escape a história, isto é, que o corpo tem apenas as leis de sua fisiologia.
Para o autor, tal corpo é formado por uma série de regimes que o constroem. “(...)
ele é destroçado por ritmo de trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por venenos
– alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais simultaneamente; ele cria
resistencias”46 (FOUCAULT, 2007, p. 27).
Porém, para além do corpo físico como “a superfície de inscrição” das novas
tecnologias de poder, isto é, de aprimoramento, disciplina, modelação em relação a
um modelo vigente, existe todo um aparelhamento sobre a produção de
44
Esse trecho foi retirado de anotações referente a palestra proferida pela professora Denise Bernuzzi Sant'Anna no núcleo de subjetividade do departamento de psicologia da PUC-SP. 45
FERRACINI, Renato. Ensaios de Atuação. São Paulo: Perspectiva, 2013. 46
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a Genealogia e a História. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
65
subjetividade. Do mesmo modo que o corpo-físico passa pelo processo modelagem,
o corpo-subjetivo é fabricado, modelado. Não por acaso o grande interesse de
Foucault na constituição do sujeito, ao ponto do autor chegar afirmar num dos seus
últimos textos, a saber, “O sujeito e o Poder”, que sua pesquisa não teve como alvo
os mecanismos de poder, mas compreender as diferentes formas com que os
sujeitos são constituídos.
O autor entende que não existe uma precedência do indivíduo ao poder, mas
que esse indivíduo é fruto desse poder, seus pensamentos, seus hábitos, seus
desejos. O poder é nessa chave pensado por Foucault, mais inventivo do que se
poderia esperar. Então, lutar contra o poder não é se apoiar no indivíduo contra o
poder, mas lutar contra o modo de individualização que o poder produz. É, portanto,
lutar contra si mesmo. Combater o poder é combater contra si mesmo. Não se trata
de saber quem se é ou o que se é, mas recusar o que se é. Na chave Nietzschiana
diríamos “torna-se quem se é”. O “conhece-te a ti mesmo” dá lugar a um “inventa-te
a ti mesmo”- como sugere uma passagem de Humano, demasiado humano:
As naturezas ativas, bem-sucedidas, não agem segundo a sentença 'conhece-te a ti mesmo', mas como pairasse diante delas o mandamento: quer um si mesmo, e assim te tornarás um si mesmo. O destino parece ter-lhes deixado sempre ainda a escolha; enquanto os inativos e contemplativos meditam de como, daquela vez e uma vez por todas, ao entrarem na vida, escolheram.47 ( NIETZSCHE, 2014, p.157. § 366).
Essa “escolha” é a possibilidade de constantemente se reinterpretar, se
reinventar, diferir de si mesmo. O homem inativo (o niilista) decidiu quem é de uma
vez por todas, ou seja, constitui uma subjetividade; o homem ativo (o criador), ao
contrário, aceita a todo o momento perder-se de si mesmo, desconhecer-se. E isto é
caro a Antonin Artaud, vide sua ideia de corpo-sem-órgão.
Desse modo, podemos retomar Artaud quando eles nos diz “a nossa ideia
inerte e desinteressada de arte autêntica se opõe uma ideia mágica e violentamente
47
NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano II § 366. In: Obras Incompletas, 2014, p.157
66
egoísta, isto é interessada” (ARTAUD, 2006, p. 06). Uma arte, portanto, como
estímulo da vida, uma arte que tem na vida seu foco. A arte nesse sentido torna-se
uma necessidade enquanto um espaço de identificação com a vida, isto é, de
experimentação, de apetite de vida, de agitação da vida, de “agitar as sombras nas
quais a vida nunca deixou de fremir”. Uma espécie de arte enquanto “máquina de
guerra”48, irredutíveis aos aparelhos de dominação e às soberanias hierárquicas.
Necessárias à invenção guerreira de si.
O “anarquista coroado” converte seu teatro numa espécie de teatro-
laboratório no qual será conduzida uma pesquisa de auto-superação. Bem próximo
aliás das considerações nietzschianas sobre o fazer artístico, isto é, de que a arte é
“interessada”, na exata medida em que estimula a vontade de potencia como
movimento de ultrapassar ou se superar. Artaud debruça-se intensamente sobre os
próprios processos psicofísico, impelido pela urgência de lidar com seu sofrimento e
pela necessidade de criar os meios de “refazer-se”. Ele cria uma poética a qual
chama “o grito da própria carne” e a reivindica um novo corpo. O seu teatro se
articula com um problema mais geral do agir e da capacidade humana de
reconstruir-se corporalmente.
A arte aqui toma outra guinada. A sua operação política, se é que podemos
chamar assim, se efetua no momento que ela cria espaços de experimentação de si,
no momento que ela abre um vácuo, opera um corte, se articula com a exterioridade.
É um agir sobre si próprio na tentativa de alargar os limites que circundam e barram
o intensivo. Uma forma de transgressão que primeiro se dar em si próprio podendo
assim criar-se. Se faz, portanto, presente aqui uma ideia de que somos um corpo
que incessantemente se faz e ao mundo cujo percurso se singulariza a cada ação e
cada ação afirma a diferença no corpo contra a História, a Cultura.
48
Sobre o conceito de máquina de guerra encontrará mais no livro de Gilles Deuleuze e Felix Guattari. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.5. 1997, Ed. 34, p. 12-13. O texto referência para essa
discussão é: “Tratado de Nomadologia: a máquina de guerra”. Eis que os autores nos diz: “(...) quanto `a máquina de guerra em si mesma, parece efetivamente irredutível ao aparelho de Estado, exterior a sua soberania, anterior a seu direito: ela vem de outra parte (…) Seria antes como multiplicidade pura e sem medida, a malta, irrupção do efêmero e potência da metamorfose. Desata o liame assim como trai o pacto. Faz valer um furor contra a medida, uma celeridade contra a gravidade, um segredo contra o público, uma potência contra a soberania, uma máquina contra o aparelho. Testemunha de uma outra justiça, `as vezes de uma crueldade incompreensível, mas por vezes também de uma piedade desconhecida(vista que desata os liames).
67
Se pensarmos em termos Foucaultianos poderíamos pensar num poder
político enquanto prática de subjetivação e produção de modelos de existência.
Segundo Lazzarato (2011):
A subjetivação política foucaultiana é indissociável da ethopoiesis (a formação do ethos, a formação do sujeito). A necessidade de articular a transformação do mundo (das instituições, das leis) com a transformação de si, dos outros e da própria existência constitui, de acordo com Foucault, o problema específico da política [...] (2011, p. 299).
Foucault chama atenção para o fato de existir um sistema de poder que barra,
proíbe, invalida os discursos das massas e seus saberes, poderes, segundo ele, que
não se encontra “[...] somente nas instâncias superiores da censura, mas penetra
muito profundamente em toda trama da sociedade”, segundo ainda Foucault os
próprios intelectuais- podemos pensar também outros setores da sociedade que
pensam e representam a mesma- fazem parte desse sistema de poder, já que:
[...] a ideia de que eles são agentes da “consciencia” e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual [artista?] não é mais o de se colocar 'um pouco na frente ou um pouco de lado' para dizer a muda verdade de todos; é antes de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e instrumento na ordem do saber, da 'verdade', da 'consciência' do discurso”.49
Assim, o palco do teatro da crueldade aparece como um espaço formidável
para colocar em evidência o funcionamento da malha do poder e, nessa perspectiva,
lutar contra, feri-lo onde ele é “ mais invisível e mais insidioso. O palco do teatro da
crueldade como o espaço das mais infinitas alianças e traçados, permitindo que se
trasse sobre o corpo que trazemos, toda outra geografia. Já que é inerente a sua
conformação todo um investimento de forças/poderes. O nosso corpo é o que
49
FOUCAULT, M. Os intelectuais e o poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2007, p. 71.
68
devemos “perder”, pois já nascemos, estratificados, demarcados, indivíduo.
Portanto, quando Artaud advoga a favor de um teatro que aja sobre a sensibilidade,
ele não queria menos do que convocar uma verdadeira mudança epidérmica.
O seu teatro da crueldade insurgindo, por conseguinte, como um combate,
um “chicotear-se” constante contra o ser-corpo-órgão organizado, segmentarizado
por uma ressonância, ou seja, por uma sobrecodificação que constituiria numa
“rostificação”50 homogênea. O seu teatro emergindo como uma forma de interrupção
dos mecanismos que constroem o indivíduo se desdobrando numa resistência à
politica de controle, promovendo formas outras de existência, isto é, de vida que
escapa aos lugares bem definidos.
A intenção não era como geralmente se divulga limitar-se a proporcionar uma
experiência sensorial ao público, o ataque aos sentido é apenas parte da estratégica
que será adotada pelo teatro da crueldade. Seu intuito era criar um teatro e uma
linguagem que fizesse pensar, claro que não nos moldes de teatro épico brechtiano,
por exemplo, que procura estimular uma atitude analítica nos artistas e plateia.
Artaud se interessava em levar o espírito assumir atitudes profundas e eficazes do
seu próprio ponto de vista, entretanto, para que essa ação ocorresse, tinha que
haver um aprofundamento na questão da linguagem para poder através dela
instaurar certo modo de pensar, distinto do raciocínio conceitual.
Nesse sentido o seu teatro como espaço físico e como ação transformadora
de si e do mundo se insere como uma arte política ao forjar um espaço singular na
cultura ocidental, um domínio próprio, em que sejam retomados procedimentos
negados e recalcados pelo racionalismo. Ele produz uma espécie de esvaziamento
de toda uma linguagem clara que impede que o pensamento deixe fluir a poesia
contida nele. Ou seja, para Artaud, “a atividade do 'espírito', em contraste com a
atividade da razão, não busca a segurança dos conceitos, que nos remetem sempre
a um mundo de regularidades e constâncias. Ela se processa numa espécie de
vazio, que é também um espaço de liberdade, de surgimento de virtualidades, de
50
Sobre os conceitos de segmentaridade e rostidade encontrarão mais no livro de Gilles Deleuze e Feliz Guatarri. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol.3.
69
qualidades que podem aparecer como um 'sentimento poderoso'”. (QUELICI, 2004,
p. 128).
Evidenciando assim que existe outras formas, outras variações, outras
experiências. Cria resistência porque dissolve as normas pré-estabelecidas e as
verdades impostas. O que insurge de tudo isso é a percepção do abismo entre o
âmbito político estatal (normativo, enclausurante) que dá regra e arte critica, que é
sempre, digamos simplesmente, exceção – é exceção a toda regra. Como atitude
estética essa arte/teatro é impensável sem o fator da transgressão do prescrito.
Para Chaia (2007):
[...] O enfrentamento ou a recusa do artista é uma reafirmação do significado da arte, num constante embate contra a regra. Nessas tensas e paradoxais relações entre arte e política, a primeira coloca-se como uma das possibilidades de interrupção da tendência de cisão da vida, respondendo às reduções e impedimentos colocados pela sociedade. O potencial da arte, na sua capacidade de se referir a toda experiência humana, amplia-se no contato com a política- seja como junção ou como recusa da política. A arte deve ser vista como prática ativa na história. Nessas circunstâncias, a arte é a exceção constantemente colocada contra a reificação e homogeneização da vida e geradora de entraves ao controle querido pela regra. (2007, p.39).
A arte torna-se uma afirmação da autoconsciência – uma autoconsciência que
pressupõe uma desarmonia entre a pessoa do artista e a comunidade. De fato, o
esforço do artista é medido (segundo Artaud) pelo tamanho de ruptura com a voz
coletiva (da “razão”). O artista é uma consciencia tentando ser. “Eu sou aquele que,
para ser, deve fustigar o que me é inato”, escreve ele. Retomando Chaia (2007, p.
19), “a concepção da política pode ser compreendida numa larga faixa que vai da
sua imediata identificação com o social, o coletivo, o público- conforme a tradição
clássica- até as abordagens em torno da prática do sujeito, ao se considerar as
recentes formulações da micropolítica”.
Nesta direção, podemos pensar, então, que era na dimensão da vida que se
70
encontrava a política em Artaud, isto é, numa arte que estraria mais próxima à uma
atividade de si sobre si, um experimentar-se, um experimento-vida, muito mais do
que numa arte de caráter revolucionário comunista que se assentava, ainda, sobre
um figurativismo. Se pensarmos, por exemplo, numa obra como a do dramaturgo
alemão Bertold Brecht, verificaremos um teatro que tem na representação da
realidade sua mola propulsora, ou seja, o teatro como lente de aumento que faria ver
as contradições presente na realidade, descortinaria os mecanismos de dominação
e, assim, o público poderia de forma distanciada fazer uma leitura da realidade e em
seguida agir sobre ela. Para isso, ele cria alguns procedimentos que ajudariam no
descortinar desse jogo de dominação. Um era gestos por meio do qual se revelaria o
ato dialético de uma ação, de um gesto. O outro o de distanciamento. Que se daria
pela quebra da linearidade da história, da quarta parede, com a inserção da narrativa
e dos comentários através de cartazes, por exemplo. Tanto Brecht como Artaud,
cada um de sua forma, buscavam transformações. Brecht ainda usando do
procedimento figurativista ou, se quiser, da verossimilhança e racional, Artaud mais
próximo do figural, da veracidade, da ordem do sensorial.
A questão da arte para um artista como Antonin Artaud era em relação a uma
realização de si no mais profundo disso. À luz de uma atitude como essa podemos
pensar a política em Artaud na esfera da micropolítica onde o que está em jogo é o
próprio refazer-se constante por meio da sua arte. É nesse momento que ele pode
dizer: “Eu, Sr. Antonin Artaud, nascido em 4 de setembro de 1896 em Marselha, na
rua do jardim-des-plantes,4, de um útero onde eu não tinha o que fazer e aonde eu
nunca cheguei a fazer nada mesmo antes, por que esse não é um modo de nascer,
somente copulado e masturbado nove meses pela membrana, a membrana que
devora sem dentes, como dizem os Upanishads, e eu sei que nasci de modo
diferente, de minhas obras e não de uma mãe, mas a mãe quis me pegar e veja o
resultado em minha vida”.51
Retumba daí sua recusa ao seu nascimento biológico. É como se ele
dissesse que é preciso nascer de novo, de forma diferente. Esse nascimento,
portanto, não estaria dado a priori, mas se faria no curso da vida. Essa sua ideia de
51
ARTAUD, Antonin. In: MÈREDIEU, Florence. op. cit. p. 42.
71
que nasceu de suas obras e não as obras que nasceram dele faz-se pensar num ato
antropofágico, num devir - Artaud - obra, num “fazer-se-desfazer-se”
permanentemente, ou seja, numa revolução permanente como pensava Felix
Guatarri, isto é, molecular na medida em que o tipo de guinada ou transformação
que ela acarreta acaba se dando de maneira local, por meio de sensações às quais
não se encontra atrelada a nenhuma agenda política.
Através de sua escrita, de suas encenações, de seus desenhos Artaud
buscou, explorando todo caos imanente à criação artística que não se deixa capturar
pelo ato tranquilizador de um estilo arte de entretenimento, uma forma de
transbordar todo sistema de vida ocidental, outro plano que manifestaria outra
ordem, outra economia de forças vitais. Tratava de fazer vibrar o corpo além de seus
limites orgânicos, social e historicamente organizados.
A arte de Artaud poderia ser definida nestas bases como uma arte crítica, já
que ele tendia a um inconformismo diante da produção de certa existência,
carregava em si uma aguçada lucidez perante o que a vida estava se tornando. E
tinha no seu teatro o desejo que através dele pudesse se chegar a ultrapassagem de
um corpo moldado pelas redes institucionais de vigilância, da organização. Nesse
sentido é interessante retomar o ensaio de Chaia (2007, p. 22) quando ele nos diz:
Uma relação básica entre arte e política se estabelece a partir de uma aguçada consciência crítica do artista, proporcionando a um indivíduo ou a um pequeno grupo criar obras baseadas na sensibilidade social, no gozo da liberdade e nos esforços e pesquisas para o avanço ou a revolução da linguagem.
Chaia (2007) chama atenção para o engajamento critico do artista que, não
necessariamente está atrelado a um ementário político. Ora, faz todo sentido pensar
Artaud como membro e defensor dessa arte critica, pois para Chaia, os escritos de
Artaud desmascaram o peso da cultura morta, os riscos da racionalidade política e a
dominação imposta pelo discurso.
A arte de Artaud se insere no estatuto daquelas que deseclipsa e faz sentir na
72
própria vida os efeitos do transbordamento de uma existência pautada por um
discurso que naturaliza certa realidade, encobrindo assim, o seu caráter de
construção- do mesmo modo como todos somos sujeitos políticos independente de
nossa vontade e consciência, é possível sustentar que somos todos atores sociais,
representando, de maneira consciente e inconsciente, papéis sociais no nosso dia a
dia- daí sua obsessão de enfatizar a relação existente entre o teatro e a peste, pois
como a peste o teatro produziria, exatamente, algo entorno de uma perversão maior
da vida que, em suma, sem tocar o corpo, produz as desordens mais excessivas.
Abalando, assim, o mundo moral, social, psicológico. Evidenciando, por isso mesmo,
toda maquinaria do poder, isto é, todas as relações, feixes de forças que produzem e
sustentam certa realidade e, por conseguinte, certa forma de vida.
Forjar homem outro: esta era, podemos dizer, a intenção de Artaud. A
necessidade do teatro se confirmava neste projeto, pois, para Artaud o teatro não é
evasão , asilo ou torre de marfim; é instrumento e meio de ação; permitiria agir sobre
o mundo e sobre o homem. Sua ação não se limita ao autor, ao ator, ela ultrapassa
até mesmo o público comum das salas tradicionais. Não visa nada menos do que à
reestruturação integral da condição humana. Para Virmaux, o teatro de Artaud “(...)
o objetivo é duplo: exercer um papel terapêutico e empreender uma recriação.
Funções estreitamente ligadas entre si”. (VIRMAUX, 1990, p. 15).
Sua arte se confunde com sua própria vida, sendo assim, a sua arte está para
a produção da própria existência, para uma existência que foge a organização
coletiva burguesa ou mesmo estatal. Os rasgos de sua imaginação, de seus
processos profundos, sobretudo do seu inconformismo, saltavam de sua arte. Sua
obra, mais do que um libelo contra o discurso institucional, resgata uma vitalidade
essencial, um fazer artístico que associa paixão ao ato sensório/cognitivo. Espelho
vivo de sua própria experiência e de seus duplos, sua fala se torna a própria
experiência.
A fala de Artaud é a de um corpo, de um espírito que se coloca continuamente
em cena, como que distanciado de si mesmo, que se reinventa em suas batalhas,
em suas criações. Ela se dirige primordialmente aos sentidos e faz oscilar a própria
noção de referencial e de figuração do personagem, incitando os corações e as
73
mentes daqueles que lançam seus corpos em uma prática mais aberta e funda de
teatralidade. A elocução de Artaud inventa-se como uma língua que exprime a
tensão entre o logos e o corpo. Sua teatralidade promove, pois, uma completa
mudança na mentalidade , nos hábitos e padrões teatrais, e deságua em um
domínio particular de trocas com o espectador, em intervenções fronteiriças entre
arte e vida, quase sempre nos limite de uma ultrapassagem. Nessa cena o ator se
experimenta, assumindo corajosamente modelos simbólicos arriscados e
desafiantes.
É interessante notar que quando Artaud reivindica o caráter mágico do teatro
o que ele está querendo é desfazer o teatro como ele é feito no ocidente para em
seguida refazer outro, no entanto, se ficarmos só com essa apreensão corremos no
mesmo risco de erro que alguns pesquisadores das vanguardas correram, segundo
o historiador Peter Burger, ao não enxergarem que as vanguardas, sim, alargaram o
campo de compreensão do que seria ou não arte, ou seja, elas promoveram uma
revolução no interior do próprio campo artístico, contudo, isto não se repetiu no
campo social. O que ele quer dizer, que não necessariamente ambos os campos
estão em simetria de movimento. 52 Que havendo mudança num ou noutro isto
implique imbricação. Para inserir Artaud nesta discussão devemos ter em mente que
o desejo dele não era ficar só na revolução da forma em arte, mas entendia que ao
revolucionar o teatro (entenda destruir certa forma de se conceber e fazer) só assim
revolucionaria o mundo, ou seja, para haver a produção de um homem-outro tinha
que haver a criação de um novo teatro. Era por meio desse novo teatro que esse
homem-outro ganharia seus contornos. Ele traz à tona, dessa maneira, uma
discussão importantíssima, a saber, a da modelação do homem, da sua forma.
Decerto que a questão se tornar pensar outros modos formais de existência, pensar
fugas ao modelo de estratificação vigente, ou seja, buscar/inventar outras formas de
52
Pode se dizer que é, talvez, próprio da arte (quando não estatizada e refém de um modo de produção pautado no lucro e no consumo desenfreado)esse caráter dissimétrico em relação a sociedade que está em entorno. Contudo, pode-se correr o risco dessa mesma arte dissimétrica se fechar nela mesma. E com isso se auto-alimentar do próprio campo para usar Pierre Bourdieu. Criando assim uma cisão entre. Entretanto, Burger chama atenção para: “A arte na sociedade burguesa vive da tensão entre moldura institucional l(libertação da arte frente `as pretensões sociais de uso) e os possíveis conteúdos políticos das obras individuais. Contudo, de forma alguma é estável essa relação de tensão, estando sujeita, como veremos, a uma dinâmica que impele no sentido da sua superação”. BURGER, Peter. Teoria da Vanguada. São Paulo: Cosacnaify, 2008, p. 62.
74
ser e estar no mundo. E ele tinha certeza que não era a do teatro psicológico
burguês e seus derivados e menos ainda um teatro dito engajado que pautava sua
ação por um a priori racional político. Talvez, esteja aqui para muitos a dificuldade
em ver na obra de Artaud o caráter político, pois, as ações revolucionarias que ele
pregava não tinha um proveito imediato para a realidade, era ação inútil, porque a
utilidade pertence ao plano da realidade organizada. A finalidade era transcender
aquilo próprio que constituía o homem e circunscrevia numa forma pré-dada.
Portanto, transcender a realidade na tentativa de fundar outra.
Isto vem ao encontro do pensamento de Oneto (2004) para o qual:
[...] o processo de criação, naquilo que denominamos 'arte', é indissociável de uma política, mas de uma política em sentido diverso
do comumente concebido – diverso por fundar seu modo de articulação em uma experiência de realidade distinta da habitual. As artes puderam, então, aparecer como uma ação sobre a realidade, isto é, como uma 'política'. A realidade sobre a qual agimos deveria, porém, ser encarada como algo sempre em vias de constituição, de tal maneira que não poderíamos mais pressupor as possibilidades como dadas a partir de um real pronto e acabado.53(2004, p.198).
Portanto, não se trata apenas de uma revolução cênica, mas de uma
constituição outra da realidade e do homem. Para nos convencermos disso basta
examinar o que o termo “teatro” significa para Artaud. Como vimos, emprega a
palavra com valores diametralmente opostos, para designar ao mesmo tempo o que
ele rejeita e o que ele deseja instaurar. Em última instância poderíamos dizer, talvez,
que o projeto artaudiano resultou numa criação de uma anti- conduta54 que para se
fazer plena necessitava de uma realidade outra, de um outro campo social, por isso
o ataque a cultura, a sociedade, a linguagem, a racionalidade ocidental, a tudo
aquilo que o impedia de vislumbrar o além ou o aquém.
53
ONETO, D.P. A que e como resistimos: Deleuze e as artes. In: Nietzsche/Deleuze: arte resistencia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 198. 54
Este conceito de anti-conduta será explorado no segundo capítulo ao pensar ela a partir de Michel Foucault.
75
Um teatro que buscava forjar seu próprio espaço-tempo na esperança de
duplicar a realidade e ali aonde a realidade social exterior a ele não toca, pôde-se
experimentar-se até o ponto que um novo espírito se levantaria. Ele condenava o
teatro que virou um duplo da realidade cotidiana e direta e que aos poucos se
reduziu a uma mera cópia inerte. O DUPLO a qual ele lutava para estabelecer era o
de outra realidade, perigosa e típica, na qual os princípios, como bem diz Willer era
o mesmo “...[d]os golfinhos, que põem a cabeça para fora mais imediatamente
voltam à escuridão”. (p. 54). No fundo, o que podemos vislumbrar com o teatro do
“anarquista coroado” são instrumentos forjados para o combate ao investimento de
uma política de disciplina e controle.
Artaud por meio do seu teatro, para ficar nessa linguagem especifica, de
algum modo buscava desqualificar, de um lado, as obras banais (entretenimento) e
os falsos valores modernos, de outro lado, pesquisar e pôr em evidência os
“acontecimentos autenticos”, ou seja, algo da ordem da experiência que leva um
tempo para ser sentida, como diz Nitzsche “lenta é a experiencia de todos os poços
profundos: longamente têm de esperar, antes de saberem o que caiu em seu fundo”.
Enfim, a luta foi por uma vida-outra. Foi por restaurar o continuo da vida, pois
se estar correto Dumoulié, “nunca são a obra de arte e tampouco o jogador que se
opõem a uma ordem ou resistem a uma força; inversamente, é certa ordem do
mundo ou uma estrutura social dada que, como rochedo, constitui uma força de
resistência contra a corrente da vida”. (2007, p. 01). Artaud lutou contra essas
barreiras inventando um teatro que possibilitasse inventar gestos, relançar forças
que restaurassem a continuidade do vivo, de tal modo que passam a criar linhas de
fuga que são linhas de vida e expressões estética da potência.
Deste ponto de vista, a política é um colocar à prova, uma experimentação.
Ela não consiste apenas em engajar-se na urgência de ser contra, mas uma política
que se abra à esfera do acontecimento, a uma política do devir. Portanto, tanto a
arte como a política aqui, devem ser pensadas como uma arte política menor, no
sentido que Deleuze-Guattari dão a esse conceito. Sem pretensões de vir a ser
majoritária com seus padrões, mas ser o espaço do deslizamento, curtos-circuitos,
linha de escape, que na sua ressonância produzem corpos vibráteis. Deleuze, na
76
esteira de Kafka, lembra que o pequeno é a sede irredutível das forças, o local dos
desvios, locus da diferença. Uma cartografia das forças e dos signos que se
subtraem, fogem e fazem fugir o império das potências molares, a maioria e seus
modelos, a gregariedade.
Estamos em fim, na presença de dois processos de subjetivação diferentes:
uma subjetivação majoritária que remete a um modelo de poder estabelecido,
histórico ou estrutural, e uma subjetivação minoritária que não cessa de
“transbordar, por excesso ou por falta, o limiar representativo do padrão majoritário”.
A vida-obra de Artaud entendo está mais próxima desta. Tudo que ele fez em vida
não foi nada menos do que buscar sempre estar além ou aquém dos padrões
normativos. Fez da sua vida uma experimentação. Da sua obra uma escrita de si.
Pensando nisso chego a ESCRITA DE SI. No curso “A coragem da verdade: o
Governo de si e dos outros II” Michel Foucault faz uma reflexão muito potente sobre
“o fazer da própria vida um testemunho da construção de uma vida artística,
despojada e livre”. Para tanto, esse fazer-se se caracteriza pela a ruptura com o
instituído, com os valores e hábitos sociais, com a busca de um modo de vida
singular e com a coragem da verdade. A busca aqui é por construir um estilo de
existência, assegurando o testemunho pela própria vida. Interessa-lhe a escolha da
vida revolucionária como escândalo da verdade, como estilo de existência em que
se destaca a coragem de lutar radicalmente pela verdade, correndo o risco da morte,
se necessário, envolvendo a parrésia ( que ele atrela a escrita si) como prática
política e constituição ética. Ele nos diz:
Este estilo de existência próprio do militantismo revolucionário, que assegura o testemunho pela vida, está em ruptura, deve está em ruptura com as convenções, hábitos, valores da sociedade. E deve manifestar diretamente, por sua forma visível, pela sua prática constante e por sua existência imediata, a possibilidade concreta e o valor evidente de outra vida, que é a verdadeira vida.55 (FOUCAULT, 2011, p. 161).
55
FOUCAULT, Michel. A Coragem da Verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
77
Sendo assim, essa escrita de si tem que ser pensada como abertura para o
outro, como espaços intersubjetivos em que se buscam a constituição de
subjetividades éticas e a transformação social. Também penso que ela pode ser
verificada como um ato de denuncia e revelação de toda uma violência política sobre
si. Em que sentido, como questionadora de forças e de modos da linguagem
estabelecida social e culturalmente. A escrita assim pondo em questão a existência,
pelo menos essa existência que se subjetiva na relação das forças, dos poderes no
interior da cultura a qual faz parte. Ao contrario da necessidade de purificação (como
depois vai acontecer com a prática de confissão posta pelo cristianismo) a escrita
não se caracteriza pelo desenrolar de um filme da vida ou pela meia culpa, a escrita
de si vai afirmar rupturas subjetivas por meio do olhar para si mesmo e constatar do
quanto participa de um jogo da verdade/poder e com isso poder redesenhar suas
trajetórias pessoais no jogo.
Uma arte política por ser um combate, uma luta, um choque direto com os
exercícios das tecnologias de poder travado por quem está interessado em
resistências; atiçar revoltas em si, contra si e entorno de si como mutações,
transformações.
Enfim, se tomo a vida-arte de Artaud como política, não é porque ela tome
uma posição política que, como diz Foucault, nos conduz a uma escolha sobre um
tabuleiro de xadrez já constituído, mas porque nos força a imaginar e fazer existir
novos esquemas de politização. Eis o que nos diz Foucault (2013):
Se politizar é conduzir a escolhas, a organizações já prontas, todas essas relações de forças e esses mecanismos de poder que a análise libera, então não vale a pena. Às grandes técnicas novas de poder (que correspondem às economias multinacionais ou aos Estados burocráticos) deve opor-se uma politização que terá formas novas. (2013, p. 41).
78
2 ANTONIN ARTAUD ENTRE NIETZSCHE E FOUCAULT: A CRUELDADE E O CUIDA DE SI COMO PRÁTICA, RESISTENCIA E EMERSÃO DE VIDAS OUTRAS.
“[...] Antes do ser há a política”
Deleuze-Guatarri
Foucault (2014) num dos vários debates que participou é perguntado sobre o
seu maior interesse pela política que pela filosofia, eis que ele responde o seguinte:
Mas esse não é o problema. Sua pergunta é: 'Porque eu me interesso tanto pela política?'. Para responder de modo muito simples, eu diria: por que eu não deveria estar interessado? Que cegueira, que surdez, que densidade de ideologia teriam o poder de me impedir que eu me interesse pelo assunto, sem dúvida o mais crucial da nossa existência, isto é, a sociedade na qual vivemos, as relações econômicas segundo as quais ela funciona, e o sistema que define as formas regulares, as permissões e as interdições que regem regularmente nossa conduta? A essência da nossa vida é feita, do funcionamento político da sociedade na qual nos encontramos. Assim, eu não posso responder à pergunta 'por que eu deveria me interessar por ela ?'; posso apenas responder-lhe perguntando 'por que eu não deveria estar interessado?56 (2014, p. 46).
A resposta dele é resultado de como pensava que deveria ser as “figuras
públicas” em relação uma verdadeira tarefa política:
Parece-me que a verdadeira tarefa política, em uma sociedade como a nossa, é criticar o funcionamento das instituições, que dão a impressão de ser neutras e independentes; e criticá-las e atacá-las de tal maneira que a violência política, que sempre foi exercida de maneira obscura, por meio delas seja desmascarada, para que se possa combatê-las.”. (FOUCAULT, 2014, p. 51).
56
CHOMSKY, Noam e FOUCAULT, Michel. Natureza Humana Justiça vs. Poder: o debate entre Chomsky e Foucault/. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
79
E é nesse sentido que retomamos Foucault nesta segunda parte, como um
companheiro para pensar a política e seu investimento sobre a vida. Não obstante,
quando pensamos figuras criticas como Michel Foucault, Antonin Artaud e Friedrich
Nietzsche pensamos no sentido de uma critica que nos ajuda a desentocar o
pensamento e ensaiar mudanças, descolonizar o pensamento, parafraseando
Foucault fazer de uma forma que isso que se aceita como vigente em si não seja
mais em si.
A vida dos três aqui referido foram vidas que de certa forma traçaram sobre a
existência maneiras outras de estar nela. Cada um de sua forma foi revelador dos
procedimentos de impedimento para se alcançar uma vida que estivesse
desconforme com a vida engendrada naquele tempo- espaço a que cada um
pertencia. Uma vida que estivesse em descompasso com o “bom-viver” da vida
instituída e garantida pela sociedade vigente. Entretanto, para que essa sociedade
se garanta ela requer de algumas tecnologias de poder que possam agir nas
diferentes camadas que sustentam tal sociedade.
Pensando nisso é que podemos retomar os três, pois como dito
anteriormente, cada um com sua forma foi revelador dos procedimentos de
investimentos sobre a vida, mas também foram esboçadores de resistências a esse
investimento e criadores de existência que transbordavam a norma, a média, e que
possibilitava pensar uma outro modelo de vida.
2.1 O poder em Foucault
Para Michel Foucault existe em toda sociedade táticas e estratégias do poder
que possibilitam não, como diz o direito, uma simples privação da liberdade, mas
mais do que isso, há uma prática do poder político que se interessa pelo corpo das
pessoas, que se deve manter em boas condições. Donde podemos inferir que o
poder para o pensador francês não deve ser reduzido a um estado repressivo, pois
nessas bases a concepção seria puramente jurídica e de pequeno alcance no que
tange a produtividade do poder. Eis que Foucault (2007) nos diz:
80
Ora, me parece que a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de produtor no poder. Quando se define os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica desse mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força de proibição. […] Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, formar saber, produz discurso. (2007, p. 09).
É interessante notar na fala de Foucault que ele em nenhum momento diz que
o poder não é também repressivo, e sim, que é uma rede produtiva e que, portanto,
estar contido nele a instância negativa, mesmo que seja menor a função negativa
dele na produção e manutenção do corpo social. Nesse sentido, ele rompe com o
ato redutivo de algumas análises em conceber o poder pelos seus pares senhor-
escravo, mestre-discípulo, senhor-operário, o senhor que diz a lei, e a verdade, do
que censura e proíbe. Ou seja, Foucault foge de um esquema de poder que o torna
homogêneo, que o universaliza, independente das circunstâncias e dos domínios a
que ele está atrelado. O interesse agora, é por averiguar como em cada época se
desenvolve procedimentos que permitam fazer circular os efeitos do poder de “forma
ao mesmo tempo contínua, ininterrupta, adaptada e 'individualizada' em todo corpo
social”. Fomentando assim, uma nova economia do poder, diria Foucault, que seria
mais da ordem de uma nova governabilidade, de um governo dos vivos do que de
uma instância econômica nos moldes de uma análise ideológica e dos jogos das
superestruturas e das infraestruturas.
Ora, uma das várias contribuições trazidas pelas obras de Michel Foucault foi,
exatamente, o deslocamento do olhar daquilo que sempre foi considerado como
central, essencial para se entender o funcionamento da sociedade e das instituições,
para aquilo que era descrito como periférico, marginal, menor, fronteiriço. Pois,
segundo Foucault, o poder político tem raízes mais profundas do que se imagina. Ao
deslocar seu olhar para os núcleos e pontos de apoio invisíveis e pouco conhecidos,
Foucault nos permitiu observar que a verdadeira resistência ao poder político e sua
solidez se localiza aonde ninguém espera encontrá-lo. Uma das principais
81
preocupações do autor era justamente procurar dar conta deste nível “molecular” de
exercício do poder, não bastava a Foucault apenas dizer que por trás dos governos
e dos aparelhos de Estado existe uma dominação, era preciso revelar o local da
ação, os espaços e as formas como essa dominação é exercida. Portanto, trata-se
em Foucault de compreender as relações de poder no seu exercício e, mais, não se
tratava como bem deixa claro Roberto Machado, na obra de Foucault, minimizar o
papel do Estado nas relações de poder existentes em determinada sociedade.
O que se pretendia era se insurgir contra a ideia de que o Estado seria o órgão central e único de poder, ou de que a inegável rede de poderes das sociedades modernas seria uma extensão dos efeitos do Estado, um simples prolongamento ou uma simples difusão de seu modo de ação, o que seria destruir a especificidade dos poderes que a análise pretendia focalizar. (MACHADO, 2007, XIII).
Para Foucault, portanto, o poder não é central e localizado, mas acontece nas
relações, de maneira complexa e mútua, não somente entre dois corpos, mas em
um complexo jogo de relações. O poder acontece nos embates do cotidiano, nas
relações de cada singularidade, nas “micro-percepções” que se encontram na
complexidade das relações em nível social, cultural, familiar, profissional. Aí está a
nova forma, Foucault dar o nome de “micropoder”, que segundo ele, não é um poder
que tem a intenção de possuir, mas de manter sob controle. Então o que é o poder
para ele? Eis que nos diz: [...] o poder é uma relação de forças, ou melhor, toda
relação de força é uma 'relação de poder'. Para Deleuze (2005), devemos
compreender que em Foucault o poder:
[...] não é uma forma, por exemplo, a forma-Estado; e que a relação de poder não se estabelece entre duas formas como o saber. Em segundo lugar, a força não está nunca no singular, ela tem como característica essencial estar em relação com outras forças, de forma que toda força é relação, isto é poder: a força não tem objeto nem sujeito a não ser a força57. (2005, p. 78).
57
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
82
Por isso, é que ele está sempre presente e se repõe diferentemente a cada
configuração histórica. Pois, segundo Deleuze, ele afeta, ele é ação sobre outra
ação, “sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes, é um conjunto de
ações sobre ações possíveis”. (DELEUZE, 2005, p. 81). Nesses termos deleuzianos
podemos entender o poder para Foucault como uma lista, necessariamente aberta,
de variáveis exprimindo uma relação de força ou de poder, ou seja, sem papel fixo,
mas alternada e até simultaneamente, em cada um dos polos da relação. A pergunta
então não é o que é o poder ou de onde ele vem para Deleuze em Foucault, mas
como ele se exerce. Cabe, então, analisar suas modalidades de exercício, isto é,
tanto a emergência histórica de seus modos de aplicação quanto os instrumentos
que ele se atribui, os campos onde intervém, a rede que projeta e os efeitos que
implica numa determinada época.
O poder é móvel, fluido, passageiro, transmuta-se ao mesmo tempo em que
se camufla sob as aparências de uma razão inocente e desvestida de pretensões de
exercício de poder. Este conjunto de relações tem efeitos sociais múltiplos que
devem ser encontrado interrogando as modalidades de exercício dos poderes, o
“dispositivo”58 ou o agenciamento no qual se cruzam as práticas, os saberes e as
instituições. Compreende-se então que esta relação de forças, que é o poder, é
sempre uma situação estratégica onde estamos uns em relação aos outros e de
acordo com Foucault (1984, p. 10): “só existe o poder que se exerce por uns sobre
os outros; o poder só existe no ato, mesmo se ele se inscreve num campo de
possibilidades em desordem que se apoiam em estruturas permanentes.”
O poder, para Foucault, nesse sentido, é variável e instável, jogo de forças
que definem as relações sociais em cada momento histórico concreto, e que se
define através de práticas e discursos específicos. Só se pode apreender o tipo de
58
O termo “dispositivo” deve ser entendido aqui como designou Foucault: operadores materiais do poder, isto é, técnicas, estratégias, e formas de assujeitar desenvolvidas pelo poder. Ou se quiser, “um conjunto decididamente heterogeneo, o qual abrange discursos, instituições, planejamento arquiteturais, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, propostas filosóficas, morais, filantrópicas, resumindo: o dito e o não dito […]. O próprio dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos […]. Eu disse que o dispositivo era de natureza essencialmente estratégica, o que supõe que se trata aí de uma manipulação de relações de forças, seja para desenvolvê-las em uma direção, seja para bloqueá-las, ou para estabilizá-las, utilizá-las”. FOUCAULT, M. O jogo de Michel Foucault. In: Ditos & Escritos IX. Rio de Janeiro:
Forense universitária, 2014, p.45.
83
poder em jogo em um determinado campo de práticas e discursos – local e
temporalmente delimitados – através da descrição minuciosa, em detalhes, do
funcionamento dessas práticas, nunca pela aplicação de uma teoria do poder
concebida a priori. São as práticas que dizem o tipo de poder que as mantém ou as
desestabiliza. “Analítica do poder” significa isto: descrição do tipo de poder em jogo,
em campos muito delimitados e circunscritos da experiência.
Seguindo essa perspectiva foucaultiana o que aparece como evidente é a
existência de formas de exercício do poder diferentes do Estado, a ele articuladas de
maneiras variadas e que são indispensáveis inclusive a sua sustentação e atuação
eficaz. E são esses exercícios e tecnologias de poder que age diretamente no corpo
produzindo sujeitos garantido certo comportamento, mas também é nessa instância
do micro que brotam resistências e novas formas de ambientalidade e assim de
produção de uma subjetividade outra.
Tanto é que para Foucault (2007, p. 149-150) qualquer mudança da
sociedade não poderá ser efetuada “se os mecanismos de poder que funcionam
fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar,
cotidiano, não forem modificados”. Há, portanto, o reconhecimento de uma
capilaridade de relações de força que se desenvolve e instauram ambientes no
interior da sociedade.
Portanto, é ali, na sua dimensão micro que se instauram as vidas que
escapam ao controle e que na sua quase insignificância podem fazer rachar o
grande navio condutor e gerenciador da “grande vida”. Claro que sabemos,
principalmente, com seus últimos escritos, quando ele começa a escrever sobre a
“governamentalidade”59, sobre o Estado como um nova forma de “poder pastoral”
59
Foucault define Governamentalidade da seguinte maneira: “Por essa palavra […] eu quero dizer três coisas. […] entendo conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma bastante específica, bem complexa, de poder, que tem por alvo a população, como forma mais importante de saber, a economia política, como instrumentos técnico essencial, os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por governamentalidade, entendo a tendência, a linha de força que, em todo Ocidente, não cessou de conduzir, e há muitíssimo tempo, em direção `a preeminência desse tipo de poder que se pode chamar de 'governo' sobre todos os outros – soberania, disciplina. […] Enfim, por governamentalidade, acho que se deveria entender o processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, tornado nos séculos XVI e XVII Estado administrativo, foi encontrou-se pouco a pouco, 'governamentalizado'”.(Governamentalidade, p. 296. In: Ditos e Escritos volume IV: estratégia,
84
que cada vez mais essas fugas vão se tornando exceções, mas ela é possível e é
isto que ele deixa claro.
Como vimos na nota de roda pé a noção de governamentalidade remete ao
conjunto de práticas que funcionam como dispositivos de segurança (instituições,
leis, regulamentos, saberes, etc.) por meio dos quais se governa a população em
relação a fenômenos de massa que podemos conhecer e administrar em termos
estatísticos, todavia, deve-se ter em conta a aleatoriedade dos acontecimentos
futuros e a liberdade dos indivíduos. Nessa perspectiva, as relações de poder bem
como as diferenças das relações de dominação, supõem o exercício da liberdade e,
por isso, para poder governá-lo, os dispositivos de segurança recorrem a
mecanismos de veridicção, de produção de discursos verdadeiros. Não há governo
– em um sentido foucaultiano – sem liberdade e sem produção de verdade, sem um
conjunto de regras e procedimentos (jogos da verdade) por meio dos quais se
estabeleça a distinção entre o verdadeiro e o falso.
Pois bem, a ação de governar, o exercício da liberdade e a produção de
verdade podem ter um caráter reflexo quando, em lugar de estar dirigido para os
outros, definem os modos de relação do sujeito consigo mesmo. Alguém pode
governar-se a si mesmo, não ser escravo de si mesmo e não simplesmente produzir
a verdade acerca de si mesmo, mas também produzir-se a si mesmo, sua própria
vida, na forma da verdade ( como ele explica na forma da parrésia). Para Foucault
essas formas reflexas de governo, da liberdade e da veridicção definem a ética60.
Enfim, para Foucault o poder está sempre presente e se repõe diferentemente
a cada configuração histórica. Cabe a nós investigar as formas pelas quais ele em
cada época opera e constitui formas de vida e, por conseguinte, de sujeitos em
relação aos jogos da verdade. No cerne desses jogos, encontram se, na microfísica
do poder, regras de legitimação de discursos forjadas nas relações de poder
mantidas entre os sujeitos no espaço social. Não se trata, portanto, de situar o poder
nem aquém nem além, nem em termos do bem ou mal, mas situá-lo em “termos de
poder-saber. Rio de Janeiro: Florense Universitária, 2012). 60
Ver em Ditos e Escritos Volume V: ética, sexualidade, política a reflexão acerca do conceito de ética para Foucault.
85
existencia”.
Resistir a essas constituições por meio da invenção de si, isto é, interferir nos
processos que constituem nossas variadas subjetivações, (seja por meio de
guerrilhas contra nós mesmos, como diria Deleuze, isto é, contra as potências que
nos invadem, seja por meio de combate ao corpo órgão como queria Artaud) implica
um movimento subversivo com as relações de força que marca presença nas formas
do saber e nos dispositivos de poder. Como nos diz Foucault (2010, p. 283):
O problema político, ético e filosófico de nossos dias não é o de tentar libertar o indivíduo do Estado e das instituições estatais, mas de nos libertar tanto do Estado quanto do tipo de individualização que está vinculado a ele. Precisamos promover novas formas de subjetividades através da recusa desse tipo de individualidade que tem sido imposta a nós há vários séculos61.
2.2 Nietzsche e a Grande Política
Dentre universo de temas que figuram no pensamento de Nietzsche, a critica
a uma certa política - que é da ordem da moral, e que se sustenta por meio das
instituições- que ele opera em relação à tradição vem ganhando contornos cada vez
mais definidos. E, neste universo, uma abordagem político-cultural recebe espaço
destacado: A Grande Política. Elaborada com mais intensidade no último período de
produção do filósofo. Genericamente a Grande Política em Nietzsche deve ser
entendida no sentido de um contradiscurso / contramovimento. De uma
transvaloração de todos os valores.
Contudo, o contradiscurso em Nietzsche é o contrário de um espírito que não
afirma. É contra exatamente por querer afirmar outra vida que no entender dele está
indo pelo ralo na modernidade. Para Nietzsche "um tipo superior de existência"
61
DREYFUS, Hubert e RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro:
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
86
surgiria quando os valores que norteiam a conduta humana deixassem de ser os que
visam unicamente à conservação. Apostando na vida e não mais na sobrevivência, o
homem ampliaria seus horizontes, agiria de maneira diferente, PENSARIA DE
FORMA DISTINTA.
No confronto com todos e tudo aquilo que busca dominar, fechar a vida,
Nietzsche coloca sua tese da grande política a partir do empenho com a mesma. A
vida para o filósofo é expansão, ela é uma pluralidade de instinto e afetos. Ela é uma
eterna experimentação que não se sabe de antemão o ponto de chegada. A vida em
Nietzsche não é homogênea como quer todos os aparelhos de captura da mesma.
Ela é uma relação de força e por ser relação não dar para pensar num campo
homogêneo. Maurice Blanchot numa linda passagem do seu livro diálogo deixa claro
está ideia da experimentação que é a vida em seu percurso e sua heterogeneidade.
O autor começa dizendo que a distância entre o ponto A e o B não é a mesma entre
o ponto B e o A. Para o autor são perspectivas diferentes. Existindo assim
diferenças, heterogeneidade. É como se a distância tivesse que ser percorrida,
experimentada só assim se saberia. Pensamento oposto ao pensamento cartesiano,
a um modelo de gestão da vida que a política moderna na esteira de uma moral
erguem. Para Nietzsche a cultura Ocidental tornou o homem fraco, construindo
seguranças, armando uma fortaleza que se sustenta nos pilares religioso, político e
moral.
Nietzsche é um contundente adversário da tradição “política-moral” do
Ocidente, pois via nela uma dinâmica decadencial presente desde um dos germes
da cultura ocidental, vale dizer, da cultura judaico-cristã, bem como no
prolongamento dos movimentos sócio-políticos da modernidade, que faz com que
uma única perspectiva se absolutize indo para além do jogo de conflito do qual
emergiu e pretendendo ser válida para sempre e para todos – posição radicalmente
oposta à grande política.
Absolutização e conservação de uma única perspectiva de vida impede que
outros tipos de vida possam emergir, possam ser experimentadas, acarretando,
assim, um aniquilamento da multiplicidade, dos devires. Se vontade de potencia é
expansão, ela depende de oposição, para poder ser vontade de potencia. O que
87
implica dizer que uma perspectiva, segundo Nietzsche, é sempre tomada em vista
de sua relação com outras perspectivas também possíveis. Esta relação se dá a
partir da instituição de um jogo que possui como dinâmica precisamente o conflito
entre diversas perspectivas, ou interpretações que estão em constante mutação,
mas que hipótese alguma se confunde com extermínio entre si. É o que para
Nietzsche acontece na “pequena política”, ou seja, na política institucional moderna
transmutada em Estado e seu ímpeto totalitário de açambarcar a multiplicidade do
real, conquistando por intermédio de imposições contratuais de normas, de leis, de
coerção, o humano em sua animalidade como lócus por excelência das paixões, dos
desejos, dos instintos, da vontade de potência como força livre e impulsionadora da
vida.
Para Tótora (2010, p. 135), o sentido da “grande política” em Nietzsche:
[...] em nada tem a ver com as disputas entre povos, raças, Estados, partidos pelo domínio, com base na força física da superioridade das armas ou biológicos fundados em ideias racistas. Nietzsche sempre se afirmou frente à política do seu tempo como 'inatual'62.
Se ela não está atrelada a uma disputa entre povos, raças, Estados, ela está
infinitamente comprometida com a vida, com o homem. O trabalho do autor de
Zaratustra sempre foi por “colocar o indivíduo numa posição incômoda: este é o meu
trabalho. Atração pelo combate de libertação do indivíduo”63. (NIETZSCHE, 2007,
p.146).
Nietzsche (2007) insiste na necessidade de conceber a vida por outras
formas. Todavia, isso só será possível se a libertar das amarras da moral, que a fixa
numa perspectiva unilateral. Para tanto, o empreendimento exige um combate a
ilusão de que haja uma moral universal e, por conseguinte, uma única perspectiva
sob a qual todas as outras se repontam e tornam-se unificadas. A vida é ela própria
uma eterna luta de forças, infinitos pontos de vistas existentes. Contudo, os pontos
62
TÓTORA, Silvana. Revista NEAMP. 63
NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre política. Volume II. Rio de Janeiro: PUC Rio/ Loyola, 2007.
88
de vistas não são meros resultados da observação de um “sujeito universal”, como
querem fazer acreditar, mas diferentes interpretações, pois, tanto o homem não tem
uma natureza “universal”, ou seja, o mesmo para todo lugar, mas resulta do
processo histórico e cultural a qual faz parte, quanto, as diferentes perspectivas são
diferentes interpretações, isto é, estão essencialmente ligadas aos interesses vitais
de cada espécie, são como diz Eduardo Viveiros de Castro em outro contexto, as
“mentiras” favoráveis à sobrevivência e afirmação de cada existência.
As perspectivas são força em luta, mais que “visões de mundo”, vistas ou
expressões parciais de um “mundo” unificado sob um ponto de vista absoluto
qualquer: Deus, a Natureza, Estado etc. Todo esse mundo tem distintas vidas se
delineando, todavia, todos são possíveis, mas não ao mesmo tempo, por isso,
serem forças em lutas, por querer a todo o momento que ser a superior. Contudo, O
que acontece na cultura ocidental regida pela moral judaico-cristã e pelos
movimentos sócio-políticos é uma tentativa de conservação de uma única
perspectiva, isto é, um estilo de vida.
Cada Perspectiva corresponde a um tipo de vida, é certa maneira de ser,
sentir, perceber, afetar e ser afetado. Um tipo de vida é certa configuração pulsional,
instintiva, é certo corpo. Tipos de vida são configurações da vontade de potência e
cada vontade de potência produz, inventa, impõe certo sistema de valor. Portanto,
cada perspectiva bem como tipos de vida promovem recortes, seleções: isto entra,
isto não entra, é importante e não é importante. Para cada perspectiva certa
hierarquia. E hierarquia em Nietzsche deve ser vista como tensões, relações entre
as forças, luta. Portanto, nunca assujeitamento.
Cada perspectiva não só seleciona do mundo o que lhe interessa, mas a partir
dessa seleção inventa mundos, formas de vida. Há uma pluralidade e essas
pluralidades se enfrentam, claro, que não sem a cada instante uma tornar dominante
diante da outra, mas que também entra em colapso permitindo assim que outras
formas de vida possam vir a ser. Para cada perspectiva e o tipo de vida que ela
engendra existe um interesse e por existir este interesse ela não pode ser isenta, ela
não pode colocar no mesmo lugar coisas das quais ela imprime uma distinção. O
que nos permite concluir a título provisório que viver não é um ato desinteressado,
89
ingênuo, mas algo da ordem do risco, da escolha, da invenção.
Nietzsche é o filósofo da diferença. Por isso, para ele, todo dualismo é um
reducionismo, ausência de perspectivismo. Ainda mais quando acontece que, para
se afirmar, um lado precisa negar o outro. A vontade de poder não nega, não
equilibra as partes envolvidas em conflito, até porque é estranho citar “partes”
quando tudo é contante devir. Sem dúvida, é melhor a expressão “centros de
vontade de poder” e lembrar que há graus de forças, de relação. Há sim dominação,
subjugação das forças contra as forças, nunca, porém, eliminação. Segundo Tótora
(2010, p. 79): “A força é o que pode e a vontade de potência é o que quer. Toda força
por vontade de potência quer expandir, crescer e não conservar, vencer resistências,
imprimir formas e dominar”64.
A grande política se situa, portanto, no campo da experimentação não
universais, pois seguindo o raciocínio aqui traçado, ela não se pretende modelo,
“não se consolida em instituições representativas, tampouco se converte numa
moral, formalizada ou não em leis, que possa servir de guia para ação”.(TÓTORA,
2010, p.165). É contramovimento, contradiscurso relativamente à modernidade
“político-moral” e todo cortejo de radical homogeneização e apequenamento do
homem que a acompanha. Ou seja, é contraposição precisamente à perspectiva da
“pequena política” que caracteriza está modernidade “político-moral”. Segundo o
filósofo “O nosso sentimento moral é uma síntese, uma ressonância conjunta de
todos os sentimentos de dominação e submissão que imperam na história de nossos
antepassados”.(NIETZSCHE, 2007, p. 107. 1(22)) A Grande política é uma guerra
contra tudo aquilo que vampiriza a vida, que arruína.
A grande política […] quer gerar um poder suficientemente forte para forçar a humanidade a ser uma totalidade superior, com impiedosa dureza contra o degenerado e o parasítico na vida- contra aquilo que arruina, envenena, difama, destrói […] e que ve no aniquilamento da vida a insígnia e uma espécie superior de almas”65. (NIETZSCHE, 2007, p. 42. 25(1)).
64
TÓTORA, Silvana. A Tolerância e o intempestivo. Local: Ateliê Editorial, 2010. 65
NIETZSCHES, Friedrich. Fragmentos Finais. Brasília: UNB, 2007.
90
Fazer a grande política é agir no sentido de violar todos os valores morais
que tornam a vida um mero estado de sobrevivência. Mais especificamente uma
moral, a moral cristã, a qual é entendida por ele como uma interpretação da
realidade que desvaloriza a existência terrena em prol de outra vida no além (a qual
seria, esta sim, a “verdadeira vida”). Nietzsche ver na moral cristã e nas instituições
políticas modernas a decadência da vida na sua multiplicidade de manifestações,
através da incidência do niilismo reativo vinculado à base moral.
Este movimento decadencial, que possui o niilismo como sua principal lógica,
expressa-se politicamente por meio de uma estratégia de aniquilação das diferenças
e de quaisquer outras perspectivas possíveis em detrimento de um desejável
conflito, mas em proveito de um pseudo-humanismo apoiado na igualdade de todos.
A hegemonia de tal perspectiva torna-se possível, não porque seja a perspectiva que
melhor cultiva uma “vida destacada” - uma das intenções de Nietzsche – mas ao
contrário, porque pretende ser mais do que uma perspectiva moral possível “ao lado
da qual, antes da qual, depois da qual muitas outras morais, sobretudo mais
elevadas, são ou deveriam ser possíveis”66. (ABM, p. 89).
Ora, é precisamente esta homogeneização que possui seu germe já na
cultura judaica, mas é elevada a termo definitivamente pela modernidade política
que evita, preventivamente, o advento de um tipo mais elevado de homem, pois “são
perigosos”, “não previsíveis”, “exceções”, “fortes o suficiente a fim de colocar em
questão aquilo que foi fundado e construído lentamente” e em lugar desse homem,
emerge um homem fadado a ser escravo, submisso, que nada cria, mas só
reproduz. Assim a “pequena política”, que nada mais é que a política-moral-
institucional-moderna, serve para conservar um tipo de mundo, de sociedade, de
vida e, por conseguinte, um homem que não um perigo aos valores vigentes. O seu
efeito é por prevenir a sociedade dessas vidas que fazem ranger a mesma,
[...] Para sociedade, sem dúvida, interessa somente que alguém não cometa mais certas ações: para esse fim, ela o priva das condições a partir das quais ele pode cometer certas ações: isso é, em todo caso, mais sábio do que tentar o impossível, a saber: romper a fatalidade
66
NIETZSCHES, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, §202.
91
do seu ser, desse e daquele modo”67. (NIETZSCHE, 2005, p. 208. §394).
Essa sociedade assentada sobre a moral cristã domesticou o homem, deu-lhe
uma forma, o esculpiu a sua imagem, forjou uma natureza universal, não sem muita
violência, crueldade. A pequena política só tornou ainda mais cruel este processo de
domesticação do bicho homem, por meio de ferro e fogo incutiu sua moral, tornou-se
uma violência organizadora das forças que habitam o homem e a sociedade.
Separou o homem das forças e do que elas podem. O tornou dócil.
Se a política-moral, isto é, a pequena política se caracteriza pela
conservação, pela segurança, pelo conhecido, pela unidade, subordinação,
negação, ressentimento, a grande política é vontade de potência, é vontade de
querer, de dominar, de experimentar, de crescer, de mudar. É pluralidade, destruição,
afirmação.
2.3 A crueldade entre Artaud e Nietzsche
A palavra crueldade aparece para alguns dicionários como emanando da
língua latina e significando etimologicamente “horror, ato de fazer mal a alguém” mas
também “rigor e “cru”68. É justamente desses dois últimos significados que Artaud
nos fala. Artaud pensava que pela simples ação, pelo simples colocar-se em
movimento, a crueldade se faria presente, inevitavelmente. Percebemos isso mais
distintamente quando ele nos fala acerca da crueldade como algo necessário, um
apetite de vida.
A crueldade não foi acrescentada a meu pensamento, ela sempre viveu nele; mas eu precisava tomar consciência dela. Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor […] de necessidade
67
NIETZSCHES, Friedrich. A Vontade de Poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. 68
Entre eles o dicionário Michaelis.
92
implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido da dor fora de cuja necessidade inelutável a vida não consegue se manter. (ARTAUD, 2006, p. 119).
A crueldade é, portanto, uma necessidade, assim como tudo que é necessário
é cruel, pois é determinado e implacável. O mal e o cruel se deslocam no seu
sentido usual na linguagem e nos abre para uma significação menos exíguo aos
clichês das palavras. A crueldade é má, pois ela é seletiva, é sempre aquilo que age
e de forma determinada, rigorosa e consciente. A questão da consciência é,
inclusive, muito importante para compreendermos a crueldade em Artaud. Diz-nos
que para que exista crueldade é necessário, antes de mais nada, consciência.
A crueldade é antes de mais nada lúcida, é uma espécie de direção rígida, submissão à necessidade. Não há crueldade sem consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a consciência que dá ao exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel […]. (ARTAUD, 2006, p. 118).
Mas do que se trata essa consciência da qual Artaud nos fala? Em primeiro
lugar, nada tem a ver com aquela ideia socrática da razão que prioriza o seu uso e
deseja excluir qualquer tipo de afeto, menos ainda com uma consciência fruto de
uma razão de Estado que imprime uma “má consciencia”, um “sentido/instinto de
rebanho”. Esta consciencia da qual Artaud nos fala pode ser entendida a partir do
processo seletivo nietzschiano, em que a escolha se dá a partir de uma necessidade
que prioriza determinada espécie de vida.
Contudo, hoje, repete Artaud, a consciência está doente. Ela se deixa
voluntariamente enfeitiçar pelo espírito de massa, do rebanho, ideais coletivos,
fantasias universais mantidas pela mídia, pelos os mais diversos dispositivos que
buscam reger o homem criando barreiras para ao limite dos desejos, do gozo. O que
Artaud chama “consciencia da massa” se nutre de ressentimentos e de ódio, e foge
à responsabilidade como a todo contato com a crueldade do real, submetendo-se às
potências transcendente de morte.
93
Eis o paradoxo da consciência doente: ela prefere se refugiar na morte a
enfrentar a crueldade de viver. Ela está presente no espírito do rebanho que se
aglutina por trás de um ideal para exercitar seu ressentimento em toda impunidade e
expulsar para o exterior a origem da crueldade da vida. Estar presente nessa
fórmula outra espécie de crueldade que nada tem a ver com a crueldade enquanto
apetite de vida, vontade de potência, e sim com uma crueldade exercida pela cultura
ocidental e que os autores viam como uma crueldade voltada contra a própria vida,
uma crueldade reativa, que é aquela quando o ressentimento é objeto de uma
perpétua reprodução.
A crueldade artaudiana é, portanto, aquela que deriva de uma necessidade,
ela é rigor, e se ela é uma necessidade, rigor, ela é um esforço. Pois tanto em
Nietzsche como em Artaud para se ter uma vida fora da média instituído e incutido
pelos aparelhos de modulação e julgamento da mesma, se exige deixar o conforto, a
segurança da vida de lado, “não se deixar despojar da vida por um Deus ladrão”,
mas toma-la em suas mãos. “O esforço é uma crueldade, a existencia é uma
crueldade. Saindo de seu repouso e se distendendo até o ser […]. (ARTAUD, 2006,
p. 120). Deslocar, agir, destruir, eis o que Artaud reivindica como ato cruel. Contudo,
não se deve entender em Artaud destruição como algo negativo e vazio, longe disso.
Se for um vazio, é um vazio que afirma, que “produz a própria afirmação no seu rigor
pleno e necessário”69
(DERRIDA, 2014, p. 345). Ela é uma afirmação, ela é um
apetite cego de vida.
No fogo de vida, no apetite de vida, no impulso irracional para vida há uma espécie de maldade inicial: o desejo de Eros é uma crueldade, pois passa por cima das contingências; a morte é crueldade […] a transfiguração é crueldade, pois em todos os sentidos e num mundo circular e fechado não há lugar para a verdadeira morte, pois uma ascensão é um dilaceramento, pois fechado é alimentado de vidas e cada vida mais forte passa através das outras, portanto, as devora num massacre que é uma transfiguração […]”. (ARTAUD, 2006, p.120).
69
DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 2014.
94
É cruel porque afirma um estilo de vida diferente da que foi esculpida no
transcurso da história, pela moral cristã. Porque busca uma forma de avaliação que
não se assemelha a forma transcendente, que busca instaurar um modelo ou ideal
para guiar a vida, mas que é imanente, que institui a cada vez seu próprio critério e
que, portanto, só existe em ato. Por isso, ele reivindicar uma vida para além de uma
mera vida biológica, de uma vida que nos é dada. Ele concebe a vida de uma outra
forma: o homem deveria parir, na sua própria vida (biológica) novas vidas e diversas
vezes, num movimento sucessivo. O homem, assim, deveria procurar nascer, se
refazer, na sua própria vida que lhe foi dada pelo nascimento biológico.
Aliás, isso muito se aproxima com a ideia de Nietzsche da figura do criador ou
legislador, pois requer dele que substitua um modo de interpretação por outro a fim
de se chegar a uma modificação de valor. Pois segundo Woltling (2013, p. 229):
“Nietzsche confronta-se, assim, com um problema de eficácia operatória: substituir
uma interpretação por outra significa agir sobre o corpo que interpreta, modificar
suas condições de existencia”70. Ora, isto sempre foi o que Artaud buscou, vide sua
concepção de corpo-sem-órgãos. Para Artaud (2007, p. 63), o homem era prisioneiro
de um mau corpo “que lhe proíbe toda a poesia e a força a viver sob o irremissível
pelourinho das leis, sejam de exército, de polícia, de igreja, de justiça ou de
administração. E são principalmente de igreja”. Não por caso, ele escreve a peça
radiofonica “Para Acabar com o Julgamento de Deus”. Que não era outra coisa se
não a reivindicação pelo fim do juízo, no sentido do fim do julgamento, no fim da vida
como um tribunal.
Se instaura na vida uma espécie de “sistema de julgamento”, por meio dessa
grande fortaleza que se sustenta sobre os pilares do Estado, da família, da razão
ocidental, da moral cristã etc. Não sendo só um sistema, mas também a produção
de uma espécie de dependencia e de rebaixamento vital. Este “sistema de
julgamento” sendo um mecanismo de poder que se abate não só sobre a
consciência, mas também sobre o corpo (o corpo carregando esse julgamento).
Sobre o corpo incide múltiplos mecanismos de silenciamento, disciplinarização,
monitoramento. Um corpo como uma organização, hierarquia, julgamento,
70
WOLTLING, Patrick. Nietzsche e o Problema da Civilização. São Paulo: Barcarolla, 2013.
95
acomodamento.
O resultado foi a constituição de um corpo que funciona, de um corpo
organismo que funciona para o trabalho, para guerra, que funciona conforme uma
máquina produtiva. A organização do corpo já é uma hierarquia de juízo, de
condenação. Foi contra o sistema que constituiu esse corpo que Artaud se rebelou.
Eu renego o batismo e a missa. Não existe ato humano no plano erótico interno que seja mais pernicioso que a descida do presente jesus-cristo nos altares. Ninguém me acredita e posso ver o público dando de ombros mas esse tal cristo é aquele que diante do percevejo deus aceitou viver sem corpo quando uma multidão descendo da cruz, a qual deus pensou tê-los pregado há muito tempo, se rebelava e armada com ferros, sangue, fogo e ossos avançava desafiando o Invisível para acabar com o JULGAMENTO DE DEUS. (ARTAUD, 1986, p.154).
Artaud entendia que para “explodir” esse corpo sob o carimbo do julgamento,
essa unidade que se tornou, deveria agir sobre ele próprio, é daí que ele requerer
um corpo-sem-órgãos. Daí o esforço e o rigor dele por criar uma vida outra que
permitisse o homem não ser mais macaco de uma existência, mas criador dela
própria. No entanto, isto só seria possível para Artaud com muito esforço, e quando
ele diz esforço ele diz crueldade, portanto, uma existência singular - pois não se trata
em Artaud de uma vida molar com seus sistemas de julgamento - não se inventa
sem crueldade “parece-me que a criação e a própria vida só se definem por uma
espécie de rigor, portanto, de crueldade básica que leva as coisas ao seu fim
inelutável, seja a que preço for. (ARTAUD, 2007, p. 120). Ou seja, para Artaud não
existe criação, vida, pelo menos como ele concebia essas duas coisas sem o ato
cruel. A crueldade estar exatamente porque uma força busca dominar a outra,
porque busca a expansão, busca materializar formas outras “ […] É com crueldade
que se coagulam as coisas, que se formam os planos do criado” (ARTAUD, 2007, p.
121).
Tudo indica, portanto, que criar, viver não se exerce sem acompanhar uma
forma de poder e de violencia. Contra o “sistema de julgamento” Artaud proclama
96
uma espécie de “sistema da crueldade” que é a relação existente entre corpos e
força no jogo delas ao invés da relação entre a alma e o juízo. Se troca a vítima pelo
corpo e a força. Para Deleuze (2004, p. 145):
Artaud dará ao sistema da crueldade desenvolvimento sublimes, escrita de sangue e de vida que se opõe à escrita do livro, como a justiça ao juízo, e acarreta uma verdadeira inversão do signo […] O sistema da crueldade enuncia as relações finitas do corpo existente com forças que o afetam […] por toda parte o sistema da crueldade opõe-se à doutrina do juízo71.
Insurge daí uma vida apossada das forças para combina-las das mais
variadas maneiras. Uma vida em combate. Para Artaud, conforme Deleuze, o
combate é contra Deus, o ladrão, o falsário. O devir produzido pelo combate, contra
e entre Si, é que vai produzir forças e tornar o combatente alguém capaz de lutar
contra seu inimigo. Não se fala aqui do combate na guerra. Ao contrário: o combate
é vitalidade, é não orgânico, é a força produzindo mais força. Artaud, segundo
Deleuze, fala do querer-viver cabeçudo dos bebes, do querer indomável dos
adolescentes e dos loucos, da potencia criativa dos artistas. “Ninguém se
desenvolve por juízo, mas por combate que não implica juízo algum”. (DELEUZE,
2004, p. 152).
Um modo de existência pautado pelo juízo, sempre se faz em nome de certos
valores, critérios que nos precede. Portanto, não consegue apreender o que há de
novo no presente. Não consegue enxergar, produzir novos modos de existência já
diferenciando um do outro. Há de se instaurar o combate para um modo de vida
novo poder ser criado, combinações novas poderem existir. A arte do pensamento
diz respeito a apreender os diferentes modos de existência, por isso, não dar para a
partir de um juízo universal avaliar os modos de existência, pois só vai haver um.
Na tentativa de criar outra existencia, fora dos juízos, de suas penas,
Nietzsche, Artaud, para Daniel Lins inauguram uma ética da crueldade “sob o prisma
71
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 2004.
97
de outra humanidade: sem queda nem piedade, sem culpa nem ressentimento”72.
(LINS, 2011, 249). Uma crueldade produzida por outra humanidade: uma cultura da
crueldade para além da dívida e do juízo. Eis o que nos diz Artaud (1986, p. 160):
Sim, estou dizendo coisas estranhas, pois contrariamente ao que todos foram levados a crer, os povos anteriores a Colombo eram estranhamente civilizados e isso pelo fato de conhecerem uma forma civilização baseada exclusivamente no princípio da crueldade.
Uma humanidade outra não corrompida pelos instintos de reação e
ressentimento que estão presente na cultura ocidental moral cristã. Nietzsche mostra
que está é, por essência e historicamente, um sistema de opressão e de
recalcamento. Na “Primeira dissertação” (§11) da Genealogia da Moral, declara que
o sentido da cultura é a domesticação dos homens, sob o efeito dos “instrumentos
da cultura”, que são “ aqueles instintos de reação e ressentimento, com cujo auxílio
foram finalmente liquidados e vencidas as estirpes nobres e os seus ideais”. A
civilização é a vitória dos escravos, daqueles que designam os criadores, os
potentes e os fortes de “bárbaros”. “[...] o sentido de toda cultura é amestrar o animal
de rapina “o homem”, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, doméstico”.
(NIETZSCHE, 2009, p. 30)
Contra a cultura do adestramento, o sistema de julgamento, a crueldade
enquanto afirmadora da vida. Segundo Wotling (2013, p. 234), “Nietzsche vem a
identificar instinto de crueldade e sentimento de potência: 'Os animais possuem
sentimentos de potência, isto é. Crueldade'”. Nietzsche afirma que a arte, o
pensamento e toda criação se fazem a golpes de martelo e que o artista é antes de
tudo um destruidor. A vida e obra de Artaud não foi outra coisa que não um combate
para que um modo de vida novo pudesse vir a ser criado. E isto não era possível
sem crueldade, segundo ele.
72
“A história da cultura é a história da crueldade”. In: LINS, Daniel; OLIVEIRA, Nilson; BARROS, Roberto. (org). Nietzsche/Deleuze/Natureza/Cultura. São Paulo: Lumme, 2001.
98
O que esses autores, cada um do seu modo, expressam é a busca por um
pensamento que não julga a vida, mas a afirmam. Que busca destruir um certo
modo de valoração pautado no julgamento moral, por outros modos de valoração,
que Nietzsche chama de avaliação. O sistema da crueldade, para finalizar, é um
sistema que cria outros valores. Uma crueldade pelo excesso, permeada pela
potência em possuir a vida. Camille Dumoulié destaca que a “A crueldade em Artaud
é o que equivale a 'vontade de potencia em Nietzsche'”.
2.4 O Antonin Artaud o suicida da sociedade
O que em vida Artaud buscou fazer da sua Vida não foi nada menos que
colocar-se em estado vibrátil, em colocar o pensamento em relação com o “fora”, o
que implicou uma recusa ao determinismo social, a uma vida que reduzia sua
sensibilidade ao visível, a uma perspectiva que buscava distribuir papéis, separar
por funcionalidades, criar órgãos específicos para o corpo totalizante, criar parte
para o todo. Nada mais pertencente à lógica molar do que os departamentos, as
representações.
Ao querer certa vida que não se assemelhava a forma-vida, ele possibilitou
alternativas para se pensar cenários outros de vidas outras. Se retomarmos os
termos de Foucault, diríamos que ele viabilizou, por meio do seu teatro, novas
formas de subjetivação. O que conferiu a sua vida um parentesco nos moldes de
Deleuze com o “nomadismo”, o “guerreiro”, o “deserto”. Certa “máquina de guerra”.
O que, de alguma forma, se engendrava no processo artístico dele era algo
do FORA, fora de si próprio, fora do Estado. O pensamento, dele/nele, por exemplo,
se colocava sempre em relação ao fora, a algo que escapava da codificação e
aglutinação do EU. De modo que o pensamento ao invés de ser pensado como
Estado, era da ordem do impessoal. Era uma espécie de contra-pensamento, que
era todo contrário da aglutinação que o Estado oferece. Pois, o Estado é da ordem
de certa gregaridade, rebanho, segundo Nietzsche.
99
Podemos deduzir que o pensamento em Artaud era um desmoronamento, era
um vácuo que se abria e fazia desmoronar toda uma unidade que impossibilitava
algo novo acontecer. Ou seja, o pensamento-vida engendrado pelo Estado diluía-se
diante da existência-vida-Artaud e assim o permitia experimentar intensidades
outras. A forma-Estado não encontrava representação no corpo-sem órgãos
artaudiano. Claro, que isto tinha implicação sobre a vida dele, e dentre as maiores
suas várias internações.
Se o projeto dele era por um corpo-sem-órgão que escapava dos
investimentos sobre ela, ele de certa maneira estava vislumbrando uma existência-
acontecimento, da qual a forma Estado era incapaz de possibilitar. Ora, a forma de
vida que o Estado quer e ressoa é aquela que está diretamente atrelada à disciplina,
a um rendimento, isto é, a um tipo de regime disciplinar-utilitário-dócil. Segundo
Foucault, tal regime caracteriza-se por um conjunto de técnicas de coerção que se
exerce segundo um esquadriamento sistemático do tempo, do espaço e do
movimento dos indivíduos, e que abrangem particularmente as atitudes, os gestos,
os corpos: “Técnicas de individualização do poder. Como vigiar alguém, como
controlar sua conduta, seu comportamento, suas aptidões, como intensificar seu
desempenho, multiplicar suas capacidades, como colocá-lo no lugar onde ele será
mais útil”73. (FOUCAULT apud REVEL, 2011, p. 36). Portanto, um experimento que
não se assemelha a tal modelo irrita e requer cuidado por parte do governo da
população como um todo e das condutas como parte.
Os procedimentos disciplinares se exercem mais sobre os processos da
atividade do que sobre seus resultados e “o assujeitamento constante de forças […]
impõe uma relação de docilidade-utilidade”. Não obstante, Foucault procura
compreender de que maneira elas se tornam, num determinado momento, fórmulas
gerais de dominação.
73
REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2011.
100
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. (FOUCAULT, 2010, p.133).
Essa “anatomia do corpo” como ele mesmo define, abrange as escolas, os
hospitais, os locais de produção e, de modo mais amplo, qualquer espaço fechado
que possa possibilitar a gestão dos indivíduos no espaço, sua repartição e sua
identificação. Existe aqui todo um trabalho para moldar o corpo em conformidade
com a moral dominante. E assim produzir e reproduzir um estilo de vida. Pois, se
corroborarmos com antropólogo Marcel Mauss que no seu famoso artigo “técnicas
do corpo” descreve que os gestos, as atitudes, os comportamentos individuais são
aquisições sociais, fruto de aprendizagens e de mimetismos formais e inconscientes,
perceberemos a necessidade por parte desse estilo de vida molar de criar espaços
para que essa reprodução seja garantida.
E tudo aquilo ou todos aqueles que não estiver(em) em aliança a esse estilo
que garante a produção de uma certa sociedade e a reprodução dela como ela é vai
ser acusado ou investido dos mais diversos dispositivos de controle e disciplina e
regulação. É nesse sentido que Artaud vislumbra o braço armado de uma sociedade
pronta a defender pela força “a saúde de um mundo de deformados”. Ele era aqui
um pálido figurante da medicina reguladora e persecutória.
Ele que passou nove anos em asilos, que mencionará repetidas vezes ter
morrido em Rodez nos transes de um eletrochoque, sabe que a medicina como
saber-poder cria artificialmente a morte, uma vida desprovida de qualquer defesa
sobre si própria: “O Bardo é agonia da morte na qual o eu cai no Charco,/ e há no
eletrochoque um estado de lamaçal/ pelo qual passa todo o traumatizado […] Eu
passei por este momento e não esquecerei jamais”. (ARTAUD, 2011, p. 16). Mesmo
vinte anos depois ainda era grande sua indignação acerca dessa medicina
reguladora e radical sua revolta diante de uma sociedade que incidia sobre a vida
lhe tirando qualquer possibilidade de ser sua potência máxima, de ser vida para
além da sobrevida: “Este mundo tem necessidade de cultivar cobaias para sua
101
secular coleção de esqueletos,/ esqueletos de alienação./ Eu afirmo que a loucura é
um golpe arquitetado/ e que sem medicina ela não teria existido” e ele chega num
estado de lucidez tremendo ao dizer, “em que fomos coagidos a escolher entre
renunciar a ser homem ou se tornar um alienado evidente./ Mas que garantia têm os
alienados evidentes deste mundo de serem tratados por seres vivos autenticos?”.
(ARTAUD, 2011, p. 16-17).
Nas suas vociferações o que ressoava era o grito dissonante com a
sociedade a qual pertencia, era um corpo desprendendo-se dela, um corpo-sem-
órgãos, sem finalidade, utilidade, um corpo extrapolador dos limites da boa e bonita
silhueta corporal. Segundo Norbert Elias, o processo civilizatório bem como o
processo de individualização foi, também, um processo de contenção da
gestualidade corporal. O indivíduo se reconhece como indivíduo a partir do momento
que se volta para si e cinde com o fora, no entanto, ao ter um corpo fora da medida
que garante o justo meio, ele é a todo o momento constrangido, por isso, a
necessidade de contenção da gestualidade. Isto implica uma polidez em nossos
comportamentos, e assim nos recolhermos cada vez mais a nós mesmo.
Impossibilitando olhar além do horizonte que nos constitui e que somos.
Ora, o que Artaud mais queria com sua vida como com sua obra era
extrapolar essa medida, era transbordar essa sociedade que introduzia-se no seu
corpo apagando dele toda consciência sobrenatural, o incubando numa lógica
passiva, num corpo possuído pela sociedade. Segundo Merèdieu, a recusa do
doente mental fica normalmente nos próprios limites da biografia que a sociedade e
o poder psiquiátrico procuram lhe impor. Além disso, segundo ela,
[…] o louco é então, aquele que franqueia imperturbavelmente todos os limites, arrogando-se impunemente o direito de ser ao mesmo tempo Napoleão, Luis XVI e Ramisés II. Artaud, Artaud, o louco e o internado, não escapa a essa regra, ele recusa o nome paterno, se pretende alternadamente grego ou irlandês e assegura não ser ninguém menos do que Jesus Cristo. E bem mais Jesus Cristo que o próprio Jesus Cristo! E bem mais Antonin Artaud que Antonin Artaud de antes. (MERÈDIEU, 2011, p.37).
102
A crise de identidade, associada à recusa em endossar seu registro civil
comum, será uma das maiores razões invocadas pelos médicos de Artaud para
legitimar o recurso do eletrochoque. E quando, na sequência de algumas séries de
eletrochoque, Artaud concorda, enfim, em se reintegrar a seu registro civil e em
endossar (como uma veste velha ou roupa gasta) o nome de Artaud, os médicos
percebem isso como uma vitória sobre a doença. “De qualquer lado que eu olho
para mim mesmo, sinto que nenhum dos meus gestos, nenhum de meus
pensamentos me pertence. Sinto a vida apenas como um atraso que, para mim, a
torna desesperadamente virtual”. (ARTAUD apud MERÈDIEU, 2011, p.37). O caso
Antonin Artaud mostra, assim, uma extraordinária mancha sensível, possibilitando a
compreensão do que foi o tratamento da doença na primeira metade do Século XX.
A loucura tornou-se cativa por conta da razão. A compreensão dela passa
pela mediação da razão. Como pensar sem essa mediação. “A razão não pode mais
atestar a existência da loucura sem comprometer-se ela mesma nas relações da
loucura. O desatino não está fora da razão, mas nela, justamente, investido,
possuído, por ela, coisificado”. (FOUCAULT, 2010, p. 343). Aquilo que em outro
momento se embaralhava entre o desatino e a loucura vai se separando e, segundo
Foucault, vai ser nos textos de Nietzsche e Artaud, que essa separação assumirá,
para cultura Ocidental, suas significações filosóficas e trágicas.
Essa relação de investimento de poder-saber e, portanto, de controle sobre a
loucura é perfeitamente compreensível numa sociedade que necessita do
silenciamento de vidas que extrapolam seus valores que garantem sua medida e,
assim, seu funcionamento “normal”. Ora, a loucura é tudo o contrário disso, ela
invoca certos poderes da natureza, da embriaguez, do excesso, da morte, da
transgressão. Foucault tem razão quando diz que a separação entre desatino e
loucura assumirá significações trágicas para as figuras aqui referidas, pois foram
silenciados vários poderes quando a loucura tornou-se objeto de uma ciência
médica. E ele tem ainda mais razão quando revela o nascimento da psiquiatria como
tecnologia do poder para agir sobre a parcela da população ditas desviantes.
Não podemos esquecer que a psiquiatria nasce com a sociedade industrial e
com um pensamento especifico- mesmo que nem todos compartilhassem desse
103
pensamento- ela vinha como uma higiene moral para “limpar o terreno” de ociosos,
rebeldes e inadaptados. Segundo Pálpelbart (2009, p. 195):
A psiquiatria trataria de um subproduto acessório e marginal da sociedade industrial, colaborando assim, de forma indireta para o seu pleno desenvolvimento e validando sua nova moralidade com uma teoria 'científica'. Ao se propor realizar uma pedagogia das paixões e dos desvios, a psiquiatria produzia um controle social, coletivo e individual, em profundidade, uma vigilância, e junto com isso, uma racionalização dessa moralidade74.
O objetivo explícito da psiquiatria era transformar o alienado em não alienado.
Isso significava: curá-lo do “egoismo”- socializando-o -, fazer com que o mundo
exterior o interesse mais que o mundo interior, educá-lo para as normas de
convivência social, e ensiná-lo a controlar suas próprias tendências. Nas palavras de
Pálpelbart, o sistema asilar foi montado visando socializá-lo e normalizá-lo. Sair do
ser-de-Natureza para resgatar o ser-de-Cultura.
Isso só era possível num complexo jogo de forças, onde haveria um combate entre o alienista e o alienado, entre a vontade do primeiro e a obstinação do segundo, entre a disciplina de um e a desordem do outro, entre a norma e a paixão, entre Cultura e Natureza. (PÁLPELBART, 2009, p. 195).
É absurda a lucidez com que Artaud enxerga a funcionalidade da psiquiatria,
do seu papel de tecnologia de poder, do seu mecanismo de controle a favor de uma
determinada sociedade e contra tudo que desviava dela. Ou seja, diante dos
aparelhos que defendem por diversos meios a “boa sociedade” e que não admite
nada OUTRO que não SEJA a sua semelhança. Mas eis que ele nos diz:
74
PELBART. Peter. Da clausula do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo:
Iluminuras, 2009.
104
E o que é um autêntico alienado? É um homem que preferiu tornar-se louco, no sentido em que isto é socialmente entendido, a conspurcar certa ideia superior da honra humana. Foi assim que a sociedade estrangulou em seus asilos todos aqueles dos quais ela quis se livrar ou se proteger, por terem se recusado a se tornar cúmplices dela em algumas grandes safadezas. Porque um alienado é também um homem que a sociedade se negou a ouvir e quis impedi-lo de dizer insuportáveis verdades. Mas, neste caso, a internação não é a única arma, e a união concertada de homens tem outros meios para vencer as vontades que ela deseja quebrar. (ARTAUD, 2007, p. 32-33).
Para Foucault, a partir do surgimento dos mecanismos disciplinares a
individualização ascendente dá lugar a uma individualização “descendente”. Se
estabelece uma identidade. O indivíduo emergindo como objeto do saber e da
prática médica. “Pela disciplinarização do espaço médico, pelo fato de se poder
isolar cada indivíduo, colocá-lo em um leito, prescrever-lhe um regime etc., pretende-
se chegar a uma medicina individualizante. Efetivamente, é o indivíduo que será
observado, seguido, conhecido, curado.” (FOUCAULT, 2007, p. 110). O saber
médico-psiquiátrico se torna fundamental numa sociedade que precisa controlar as
condutas desviantes para colocá-las corretamente no lugar em que sua eficácia seja
máxima.
Tendo a norma como referencia a ciencia “médica-psico” debruça-se sobre os
casos e individualiza-os tratando sempre dos seus desvios. Centra-se, assim, nos
desviantes: nas crianças, nos doentes, nos loucos, nos delinquentes. E, quando fala
do homem são, normal e legalista, “fá-lo sempre perguntando o que ainda há nele de
criança, de loucura, de assassino”. Mas, nesse discurso psiquiátrico, a
inconformidade com a regra é transposta em características psicológicas do sujeito.
Para Pálpelbart (2009, p.114 a 120):
O operador desta transposição é o conceito de instinto, ou todas as outras noções que a ele se assemelha e se confundem: impulso, pulsão, tendência, propensão, automatismo, etc. Através do instinto e da dinâmica independente, involuntária e incontrolável que lhe é própria, vai se procurar a causar e explicar os desvios.
105
Deste modo, a norma disciplinar é sobreposta a uma norma fisiopsicológica,
ou uma norma médica. As condutas e comportamentos passam então a ser
distribuídos em um campo de saúde ou de patologia. Foucault chama atenção em
algumas passagens do seu livro Os Anormais para fato de quando a discrepância e
o automatismo forem mínimos, isto é, quando se tem uma conduta conforme e
voluntária, tem-se, grosso modo, uma conduta sadia. Quando, ao contrário, a
discrepância e o automatismo crescem, não necessariamente na mesma velocidade,
tem-se um estado de doença. Portanto, o saber psiquiátrico age para corrigir essas
condutas que desviam-se e assim garantir o funcionamento do organismo social.
A conduta de Artaud, ou melhor, a sua anticonduta sempre foi desviante. Seu
caso, por exemplo, é único, um ser que conseguiu se situar nos “dois lados” de
mundos antagônicos da loucura e da normalidade. Isto possibilitou a ele a pensar
que quando os tempos e espaços tenderem se misturar e se interpretar, aquilo que
bem podemos chamar como seu delírio o levará a inventar para si uma existencia
que o permitirá ser em si mesmo ser seu próprio pai, sua própria mãe.
Autoengendrar-se e se arrancar do nada, à força de extirpações e de expurgos. Sua
obra toda sendo uma abertura para destruição e autoconstituição. Pálpelbart (2009,
p. 154) nos fala o seguinte:
Artaud, com a virulência e sofrimento que o marcaram, fez de sua obra uma obra que diz sua destruição, de suas palavras fez palavras que dizem ausência de linguagens, fez da obra um ' escarpamento sobre o abismo da ausência da obra'. Pela loucura, conclui Foucault, essas obras abrem um silêncio, um vazio e um dilaceramento que obrigam o mundo, que as repele e acolhe, a interrogar-se.
A sua vida assim como sua obra nunca foi uma defesa dessa sociedade, pelo
contrário. Artaud através da constituição de si por meio da sua obra tornava-se um
suicida da sociedade, pois não comungava dos mesmos valores que a sociedade e
o Estado asseguravam. Ele, por intermédio de sua vida-obra convulsionava o
modelo de existência proclamado por tal sociedade. Não atoa ele sofreu o que
sofreu. O seu modelo de vida desviante se tornou foco de investimento de
prevenção e correção. São vidas como a dele e de outros que radicalizaram na
106
singularização o alvo de investimento, pois são vida que podem fazer o grande
“navio-sociedade” estralar e vir a afundar. “Vidas paralelas”, como diria Foucault.
Contudo, não se trataria das vidas paralelas ao modelo de Plutarco e os antigos,
como o filósofo francês deixa claro. Se trataria de vidas paralelas que divergem
indefinidamente. Sua singularidade é tão radical que não podem ser reunidas nem
mesmo a partir de um lugar imaginário – o infinito - ( como acontecia com as vidas
paralelas exaltadas por Plutarco e os antigos), são alteridades extremas. Não
existindo, portanto, um ponto de convergência, jamais poderiam ser exemplares: o
renome se perde. Mas se perde principalmente porque, em função de sua
singularidade, elas são condenadas. Estas vidas diferentes são desclassificadas e
separadas, são colocadas em paralelo: são o Outro, são construídas como não
humanidade. Então suas falas são desfiguradas e negadas. Seu destino, assim, é
precipitar-se para a obscuridade. São vidas esquecidas, silenciadas, seja como for:
Passei nove anos num asilo de alienados. Ali me fizeram uma medicina que nunca deixou de me revoltar. Essa medicina chama-se eletrochoque, consiste em meter o paciente num banho de eletricidade, fulminá-lo e pô-lo bem esfolado a nu e expor-lhe o corpo tanto externo como interno à passagem de uma corrente que vem do lugar onde se não está nem se deveria estar para lá de estar. O eletrochoque é uma corrente que eles arranjam sei lá como, que deixa o corpo, o corpo sonâmbulo interno, estacionário para ficar sob a alçada da lei arbitraria do ser, em estado de morte por paragem do coração (ARTAUD, 2007, p. 97).
2.5 Artaud um contradiscurso, uma anticonduta
O drama de Artaud significou uma tentativa desesperada de quebrar o vidro,
de arrancar a grade que o confinava na prisão, de atravessar a tela que separava a
sua consciência de seu corpo, de sua vida.
A sua vida-obra foi uma incessante busca para arruinar as segmentarizações,
balizas pelas quais o corpo e a vida passam, ou seja, uma busca infinita por se
refazer, por outros modos, por ser livre. Não por acaso sua recusa constante a uma
107
certa codificação, a um certo processo de subjetivação que resultaria numa
identidade que, para ele, seria a própria camisa de força que tempos depois veio
usar ao ser internado diversas vezes.
Não sou Antonin Artaud, não nasci em Marselha em 4 de setembro de 1896, não nasci jamais, o corpo de Antonin Artaud vivo é somente uma caricatura de mim, mas essa caricatura feita quando eu não estava ali foi feita com uma coisa essencial que me pertence e é preciso retomá-la recuperando o curso do tempo”. (ARTAUD apud MÈREDIEU, 2011, p. 35).
A sua vida-obra era o próprio abalo à biografia.
A maior parte dos escritos de Artaud e de sua existência se atém à questão
dos limites e dos não limites de seu eu. Para Mèredieu, Artaud sempre interpretou
papeis. Colocava-se continuamente em cena. Contudo, não se tratava propriamente
de falar em cabotinagem (ainda que tampouco não se deva desconhecer a função
desta). Mas, de fato, o que salta aos olhos de quem ler a biografia de Artaud escrita
pela autora é uma espécie de figura distanciada de si mesmo, procurando
constantemente exagerar e descentrar os limites do eu. “Antonin Artaud foi
primeiramente um modelo pervertido, uma tentativa de esboço que eu mesmo
retomei em certo momento para entrar em mim vestido”. (ARTAUD apud
MÈREDIEU, 2011, p. 35).
O duplo, o outro de si muito cedo aflorou e foi esse outro aquele que
franqueou todas as barreiras do teatro para se encontrar nu e só, em plena
crueldade.
Artaud vai passar sua vida a perturbar todos os dados do que se denomina,
na sociedade ocidental, um “registro civil”. Ele ignorou permanentemente todas as
balizas da vida comum e do conjunto que “Breton chamou de 'as coordenadas
habituais'”. Ultrapassou todos os contratos, tácitos e os demais, com a sociedade.
Segundo Foucault, a partir do surgimento dos mecanismos disciplinares no século
XVIII, sobre tudo do exame, “O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e
108
as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite
qualificar, classificar, punir” (FOUCAULT, 2010, p. 177), o exercício do poder deixa
de ser visível e quem se torna objeto constante de observação é o alvo do poder, o
súdito. Este passa a ser crescentemente vigiado e controlado, torna-se “objeto” de
um saber que não deixa nada escapar. Constitui-se assim um sistema de registro
intenso, um campo documentário que capta e fixa cada indivíduo. Registros que
permitem tanto um saber e controle sobre as singularidades quanto uma
comparação de cada um com todos os demais. O indivíduo é transformado em um
caso e submetido a uma descrição que toma a norma por referência. E a
descritibilidade é tanto mais marcada quanto maiores forem os desvios. Os arquivos
biográficos , desta maneira, tornam-se um meio de controle e um método de
dominação. Funcionam como um processo de objetivação e de sujeição. Eles
apõem a cada um sua própria singularidade, atando-os as seus traços, às medidas,
aos desvios, às notas que o caracterizam e fazem dele um “caso”. Através do
exame, arquivos biográficos constituem o indivíduo como efeito e objeto do poder e
como efeito e objeto do saber. (FOUCAULT, 2010, p. 177-185).
O estudo acerca do século XVIII permite a Foucault observar ter havido não
somente uma racionalização econômica, o que para ele com frequência se estudou
com detalhe, mas “igualmente uma racionalização das técnicas políticas, das
técnicas de poder e das técnicas de dominação. A disciplina, quer dizer, os sistemas
de vigilância continua e hierarquizada de malhas bem apertadas, é uma grande e
importante descoberta da tecnologia política”75. (FOUCAULT, 2012, p.106). Essas
tecnologias permitiu, principalmente, a partir do século XIX, governar as condutas,
isto é, normaliza-las. Através do poder pastoral, tática herdada do cristianismo que
se configurava pelo cuidado com cada um e com todos.
Uma das consequências é que o poder pastoral, que tinha sido ligado, durante séculos – de fato, durante mais de um milênio -, a uma instituição religiosa bem particular, estendeu-se, de repente, ao conjunto do corpo social; ele encontrou apoio em uma multidão de instituições. E, em vez de ter um poder pastoral e um poder político mais ou menos ligados um ao outro, mais ou menos rivais, viu-se desenvolver uma 'tática' individualizante, caraterística de toda uma
75
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos vol. VIII. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2012.
109
série de poderes múltiplos: o da família, da medicina, da psiquiatria, da educação dos empregadores etc. (FOUCAULT, 2014, p. 127).
O desenvolvimento dessas novas técnicas de poder sendo, portanto,
voltadas, na modernidade, para os indivíduos e destinadas a dirigi-los de maneira
continua e permanente. Essas técnicas incidindo sobre o sujeito, ou melhor, sobre o
processo de individualização. São essas práticas de governamentalidades que
instituem a subjetividades, que operam ações sobre ações possíveis, ou seja, que
opera a condução das condutas, maneiras pelas quais nós saberemos nos governar
e dominar nossos prazeres e desejos. No entanto, nos dirá Foucault que não se
pode dissociar dessa “governamentalização” da vida dos homens, característica das
sociedades ocidentais europeias, a questão fundamental a ela correlata que é “como
não ser governado?”. Como não ser governado dessa ou daquela maneira, em
nome destes ou daqueles princípios, por meio de tais ou quais procedimentos.
Essa questão fundamental do “como não ser governado” seria a
contrapartida, a parceira e ao mesmo tempo a adversária das artes de governar.
Seria a maneira de limitá-las, recusá-las, transformá-las. É justamente o encontro do
governo dos outros e de si que permite para Foucault articular a resistências e assim
não ser vítima de ninguém.
Como se nota na última fase do pensamento de Foucault surge o tema do
“cuidado de si” no prolongamento da ideia de governamentalidade. A análise do
governo dos outros segue, com efeito, a análise do governo de si, isto é, a maneira
pela qual os sujeitos se relacionam consigo mesmos e torna possível a relação com
outrem. É nessa fase que ele começa a ventilar através de suas análises da
Antiguidade Clássica condições de possibilidade de um sujeito com capacidade de
recusa e resistência, de não ser governado por um governo das condutas se
tornando dóceis e útil e assim normalizados, mas de se opor a um saber-poder
dominante fomentando outros jogos de verdade e de poder e outras formas de
subjetivação.
110
A subjetivação, nesses termos, pode ser entendida como uma individuação
operante por interioridade de campos individuais, inaugurando um espaço que se
abre, não só a ação política, mas a uma ética, desdobrando possibilidades inéditas
de novos modos de ação. Porém, o processo de produção de subjetividade vai ser
na modernidade investido de cabo a rabo pelo saber e sua tentativa de apropriar-se
dela e pelo poder na intenção de controla-la. Ou seja, ao mesmo tempo em que ela
é investida de controle, ela é possibilidade de resistencia também.
E essas resistências acontecem por meio de lutas que questionam o estatuto
do indivíduo. Promovendo e afirmando por um lado, o direito de ser diferente e
enfatizando tudo aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente individuais; por
outro, atacam tudo aquilo que separa o indivíduo, que quebra sua relação com os
outros, fragmenta a vida comunitária, força o indivíduo a se voltar para si mesmo e o
liga a sua própria identidade de um modo coercitivo. Para de fato as lutas de
resistencia poderem acontecer algo da esfera da revolta, da insubordinação tem que
ser despertado. Todavia, não devemos entender resistencia em Foucault como um
enfrentamento de força, mas libertária. Como uma busca comprometida por
experiências outras. Para além dos conhecidos parâmetros que nos têm orientado
no presente. Trata-se, portanto, da busca inquieta pelos vínculos intensos que
viabilizam associações libertárias, no presente, geradoras de estilos de vida não-
hierárquicos.
Se a resistencia não é um enfrentamento de força e sim libertária, isto quer
dizer que para ela ser libertária é indispensável uma existência intensiva, algo
próximo a um estilo de “vida artista” 76 , a uma estética da existência, que se
pensarmos em Foucault, estar direcionada com uma atitude. Estando aberta à
experimentação e a invenção de si mesmo. Se a sociedade e o Estado tomam
iniciativas para corrigir condutas, e assim adestra-las e conduzi-las, é preciso
revoltar-se contra esse regime político e, desse modo, traçar maneiras outras de
governar a si, isto é, um exercício de si sobre si para se adquirir um modo de ser, um
certo estilo. O sujeito tornando-se assim uma obra.
76
Quando penso aqui vida artista estou pensando junto com Artaud para quem ser artista não é aquele que se pauta por uma estrutura estética, mas que produz vida como obra de arte.
111
A vida que Artaud traçou para si corrobora em número, gênero e grau com
esse pensamento. Uma atitude próxima a parresiástica, isto é, de fala franca, de
pronunciar a verdade em risco imediato. Uma atitude, uma prática, um estilo de
existencia que se torna ponto chave contra o governo da sociedade, a lei, como as
cartas ou os corpos são dispostos nela. Um agir sobre si, que não permiti
associações que preservem o ambiente vigente. Mas que fossa o advento ou
melhor, a criação de novas formas de condutas, vidas, relações na sociedade, na
arte, na cultura. Entretanto, como deixa claro Foucault em A coragem da Verdade,
não se trata nessa atitude, da parresía do tagarela, do dizer tudo, no sentido de dizer
qualquer coisa, no que passa pela cabeça. Mas no “dizer a verdade, sem
dissimulação nem reserva nem cláusula de estilo nem ornamento retórico que possa
cifrá-la ou mascará-la”. (FOUCAULT, 2011, p. 11). A parresía põe em risco não
apenas a relação estabelecida entre quem fala e aquele a quem dirigi, mas, no
limite, põe em risco a própria existência daquele que fala.
A parresia implica que os sujeitos se constituam a si mesmos enquanto
sujeitos éticos, capazes de se arriscar, lançar um desafio, dividir os iguais pelas suas
tomadas de posição, isto é, que sejam capazes de governarem a si mesmos e os
outros em uma situação de conflito. No ato de enunciação política, na tomada
pública da palavra, manifesta-se uma potência de autoposicionamento, de
autoafetação, a subjetividade afetando a si mesma, como apropriadamente disse
Deleuze a propósito da subjativação foucaultiana. A parresia reestrutura e redefine o
campo de ação possível tanto para si quanto para os outros. Ela modifica a situação,
abre uma nova dinâmica, precisamente porque ela introduz o novo . “A estrutura da
parresia, mesmo se ela implica um estatuto, é uma estrutura dinâmica e uma
estrutura agonística”, que ultrapassa o quadro igualitário do direito, da lei, da
constituição.
A parresia é, nesse sentido, uma forma de enunciação muito diferente
daquela proposta pela pragmática do discurso através dos performativos. Os
performativos são fórmulas, “rituais” linguísticos, que pressupõem um status mais ou
menos institucionalizado daquele que fala, sendo que o efeito que a enunciação
deve produzir já está institucionalmente dado (quando aquele que está habilitado
enuncia “ a sessão está aberta”, isto é, apenas uma repetição “institucional”, cujos os
112
efeitos são conhecidos antecipadamente). A parresia, pelo contrário, não supõe
nenhum status, ela é a enunciação de “não importa de quem”. Diferentemente dos
performativos, ela “abre-se a um risco indeterminado”,
Possibilidade, campo de perigos, ou, pelo menos, eventualidade não determinada […] o que vai precisamente fazer do enunciado da sua verdade em forma de parresía algo absolutamente singular, entre as outras formas de enunciados e entre as outras formulações da verdade, é que na parresia há abertura de um risco. No desenrolar de uma demonstração que se faz em condições neutras não há parresía, muito embora haja enunciado da verdade, porque quem enuncia assim a verdade não assume nenhum risco. O enunciado da verdade não abre nenhum risco se vocês não o encaram como elemento num procedimento demonstrativo 77 . (FOUCAULT, 2011, p.60-61).
Essa atitude parresiastica, do falar franco, da coragem da verdade, terá sua
legitimidade assegurada pelo estilo de vida de quem enuncia, um estilo de vida que
não tem nada a ver com o estilo de vida do demagogo e seu discurso retórico.
Segundo Passetti (2011, p. 110):
Um parresiasta problematiza com coragem ao explicitar a fala e o que diz sem usar a retórica. Ele não busca consenso, consentimentos e tampouco pretende usar sensacionismos. Pratica a verdade como atividade, pela fala direta e dizendo o que é perigoso para consigo. Ele sabe que quem fala está numa posição abaixo da de quem ouve. Ele pretende criticar e não demonstrar a verdade. O parresiasta lida com hierarquias e suas respectivas retrações decorrentes de experimentações de liberdade. Reconhece que a verdade se produz pelo confronto entre forças78.
A vida de Artaud (2007) sempre foi uma prática que escolhia a fala em vez do
silêncio,
77
FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes. 2011. 78
PASSETTI, Edson. Michel Foucault e os guerreiros insurgentes: anotações sobre coragem e verdade no anarquismo contemporâneo. In: JUNIOR, Durval Muniz de Albuquerque/ VEGA-NETO, Alfredo./ FILHO, Alípio de Souza. (orgs). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
113
[…] a guerra que eu quero fazer surge da guerra que a mim me fazem [...] eles fizeram nascer em mim a imagem desse grito armado para a guerra, desse terrível grito subterrâneo. Para esse grito, tenho que cair. É o grito do guerreiro fulminado que esmigalha de passagem, e com um embriagado ruído de espelhos, as muralhas quebradas. Caio. Caio mas não tenho medo. Vomito o meu medo no ruído da raiva, num urro solene. uma insurgência contra os modelos institucionais e suas formas de associações”. (2007, p. 46-47).
Claro que tudo isso demandou a produção de uma certa existência, de uma
vida, e que, por não se conformar ao estilo vigente da época sofreu diversos
investimentos dos dispositivos de disciplinarização, controle e adequação. A vida de
Artaud foi uma vida, pelo menos, depois dos seus vinte anos e de sua chegada a
Paris, rastreada por estes dispositivos que tinham a seu favor a produção de um
saber que se desdobrava no par poder-saber79.
Uma vida que como tantas outras vidas que se rascunhavam na borda, à
margem da grande vida, isto é, da vida codificada, normalizada, da vida-forma, da
sua institucionalização, da sua maioridade- só possível de ser alcançada pelo o tutor
igreja, Estado, escola, família etc. Essas vidas infames, sem um rosto em identidade
com o modelo, sem o belo corpo-órgão. Foram elas no seu estado de duplo, não do
mesmo, mas de uma tentativa de esboço outro que se fez notar todo jogo de poder
em termos de táticas e estratégias para assegurar um certo estilo de vida, de
sociedade. Pois, se corroborarmos com Gilles Deleuze, para quem, numa sociedade
o que é primeiro são as linhas, os movimentos de fugas, é tarefa do pastor-Estado
assegurar seu rebanho e para isso ele terá que criar aparelhos que garantam a
unicidade desse rebanho e a estabilidade do ambiente.
79
Segue uma das passagens que explicita a relação entre poder e saber para Foucault “É necessário (…) admitir(...) que poder e saber se implicam diretamente um no outro, que não há relação de poder sem constituição correlativa de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua, ao mesmo tempo, relações de poder. Essas relações de 'poder-saber' não devem ser analisadas a partir de um sujeito do conhecimento que seria livre, nem em relação ao sistema de poder; mas é necessário considerar, ao contrário, que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformações históricas. Em suma, não é atividade do sujeito do conhecimento que produziria um saber útil ou recalcitrante ao poder, porém o que determina as formas e os domínios do conhecimento são poder-saber, os processos e as lutas que os atravessam e pelos quais são constituídos.” (FOUCAULT apud DREYFUS & RABINOW, p. 153).
114
Todavia, Artaud por exercer uma conduta insurgente não se deixou tomar pelo
“niilismo” reativo ou por um marasmo, mas fez da sua vida uma ética transgressora,
libertária, uma existencia ofensiva que atacava com seu “corpo-peste” os navios da
guarda do Estado e a polícia do pensamento. Combatia qualquer tipo de registro que
o quisesse adequar a uma identidade, pois entendia que o seu nascimento se fazia
no decorrer do tempo.
O registro civil do homem que sou e que se chama Antonin Artaud tem como data problemática de nascimento 4 de setembro de 1896 às oito horas da manhã. E como lugar de meu ingresso nesta vida, Marselha, Bouches-du-Rhône, França, rua do Jardim-des-Plantes, 4, no 4 andar. Porém, eu absolutamente não concordo com tudo isso, pois foi preciso muito mais tempo, digo, tempo concreto, patente, verificado, atual, autêntico, para me tornar o cabeçudo rebelde e incoercível que sou. (ARTAUD apud MÈREDIEU, 2011, p. 47).
Ao recusar esse sistema de registro Artaud não queria outra coisa senão
nascer a partir dos experimentos de si, produzindo-se enquanto obra, não sendo e
nem aceitando ser fruto de ninguém. A essa estética da existencia estar atrelada a
modelagem de uma anticonduta, pois uma coisa não está apartada da outra. Se ele
faz da sua vida uma obra, era porque ele também recusava a conduta que se
moldou através desse sistema identitário constituído no interior de um corpo político.
Contra a política sobre a vida podemos dizer que Artaud forjou uma vida que
afirmava uma outra política, que estaria atrelada a constituição de si.
Uma política do devir, da diferença80 enquanto uma política da criação e,
portanto, não se restringindo ao dualismo que para Nietzsche era redutor, não
permitindo enxergar além ou aquém do disposto pela relação dualista. Se colocando
fora desse corpo político, mas como “inatual”, intempestivo como diria Nietzsche, e
não negligenciando que esse corpo político existe e age sobre a confecção e
80
Não se trata aqui da “politica da diferença” e do outro enquanto a arte de administrar as diferenças – as alteridades – em um projeto comum. Como é, por exemplo, a politica moderna, com seu sistema democrático, que consiste na tolerância para com o outro, na produção do consenso, através do dialogo e não do conflito. Trata- se da produção da diferença como estranho. Um estranho incorrigível, perturbador.
115
gerenciamento dessas condutas. Portanto, uma política do devir que não se
contenta com a identidade e a semelhança. Por isso, talvez, podermos pensar a vida
de Artaud enquanto uma anticonduta, um contradiscurso, no sentido de ele afirmar, o
fora, o outro, o duplo, mas não o duplo do mesmo, e sim, como a emergencia de
uma diferença desestabilizadora das formas vigentes, a qual nos separa do que
somos e nos coloca uma exigência de criação.
Uma anticonduta no sentido de não estar atrelado a um aspecto molar da vida
com seus valores morais e suas segmentarizações e nem mesmo uma utilidade
enquanto modelo. E que, portanto, não se reconhece nela e nem se contrapõe a ela
no jogo político molar, mas que emerge imperceptíveis, menores, como expressão
de uma vida libertária, cheia de vigor por criar mundos outros, modos outros de estar
no mundo. Outra forma de politização como queria Foucault.
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se a arte torna-se interessante quando tem o poder de afetar, de alterar os
sentidos, despertar percepções e estimular o pensamento crítico ou criativo, para
arrancar o espectador da inércia e lançá-lo a uma experiência outra, que não é a que
ele vive cotidianamente, é porque ela de alguma maneira abre uma fenda entre o
sujeito e o mundo, pois produz uma força que afeta nossos corpos e nos abre às
novas percepções, que se materializarão em novos gestos, palavras etc. E que
nesse sentido pode ter um efeito real de deslocamento da cartografia vigente.
Num mundo onde a lógica reinante é da produção e consumo cada vez mais
rápido dos bens de produção matérias como também de subjetividades, ou seja,
formas de vidas, esse outro espaço que emergiria e que se constituiria com esse
teatro pensado por Artaud promoveria uma suspensão na recepção, exigindo do
espectador outro tipo de participação, um outro tipo de encontro. O que é posto em
jogo aqui é outra maneira de experimentar o acontecimento artístico. A relação que
esse teatro estabelece não é mais o de transmissão de uma experiência, mas a do
próprio experimentar. Isto faz emergir um corpo intensivo no ator como também um
corpo em estado de convulsão no espectador, pois os dois seriam tocados no que
mais eles têm de profundo, no seu estado sensível. Em suma, os dois, numa
experiência radical como essa proposta por Artaud atingiram um corpo “extra-
cotidiano”.
Este corpo “extra-cotidiano”, ou seja, em estado vibrátil, se chocaria com a
realidade vigente. Aquela interior ao acontecimento artístico e a que está na história
e produz codificações. Fazendo emergir assim um estranhamento acerca de si
próprio. Descortinando o quanto o corpo é resultado dessas forças que fazem um
certo território se coagular e com ele suas estratégias de manutenção de um certo
modo de vida. É nesse sentido que podemos corroborar com Foucault quando ele
nos diz em “Vigiar e Punir” que o poder enquanto não formalizado não ve e não fala,
mas faz ver e faz falar.
117
Nesse teatro, a busca é por criar um espaço para que possa como diz
Deleuze, “fazer do corpo uma potencia que não se reduz ao organismo”. É poder
experimentar até o ponto que se esgota os possíveis e faz nascer como queria
Artaud UMA VIDA, mas não uma vida que é reconhecida pelo exterior dos fatos, mas
uma espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançaram.
Um espaço como esse de um teatro que não mais busca apenas representar
uma realidade com seu espaço-tempo que seria exterior a ele, mas estabelecer o
seu próprio, permite uma experimentação de si próprio fazendo-se escapar por todos
os lados, promovendo linhas de fugas em busca de gestar ou evidenciar outras
subjetividades, por conseguintes, outros modos de estar e agir no mundo, outras
realidades com suas relações próprias.
Um espaço de heterotopias como pensava Foucault (2009, vol. III, p. 414-15):
Primeiro, há as utopias. As utopias são espaços sem lugar real. São espaços que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou oposta. É a própria sociedade aperfeiçoada, ou é o contrário da sociedade, mas, de qualquer forma, essas utopias formam espaços que são fundamental e essencialmente irreais. Também há, e isso provavelmente existe em todas as culturas, em todas as civilizações, lugares reais, lugares efetivos, lugares que estão inscritos exatamente na instituição da sociedade, e que são um tipo de contra-espaços, um tipo de utopias efetivamente realizadas nos quais os espaços reais, todos os outros espaços reais que podemos encontrar no seio da cultura, são ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, tipos de lugares que estão fora de todos os lugares, ainda que sejam lugares efetivamente localizáveis. Esses lugares, porque são absolutamente diversos de todos os espaços que refletem e sobre os quais falam, eu os chamarei, por oposição às utopias, de heterotopias.
Espaços fomentadores e engendradores de corpos outros, subjetividades
outras, relações outras. São espaços que evidenciam vácuos, fissuras, brechas no
sistema como todo. Pois são espaços que estão em relação com todos os outros
posicionamentos como diz Foucault (2009, p. 415), “mas de tal modo que eles
suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto de relações que se encontram por
118
eles designados, refletidas ou pensados”.
Um espaço como esse se faz necessário exatamente por ver nele a
possibilidade de possíveis, de agenciamentos outros que não os que são
comumente agenciados e que produzem os territórios vigentes com suas formas de
vida carregadas de normatizações. Por ver nele uma troca incessante que tem
como sua última busca os agenciamentos das heterogeneidades na luta contra a
homogeneização do modo de vida. Ver nessas produções teatrais que comumente
são deixadas de lado quando se fala de um teatro político a sua política, por ver
nesses teatros e nos espaços que engendram, intensidades, fluxos de combates,
recusa de uma certa cultura e seus investimentos sobre o corpo e a vida .
Esse espaço se potencializa ao forjar um COMUM, mas não um comum
homogêneo que mataria as singularidades de cada sujeito, coletivo etc..., mas um
espaço dentro do qual o artista envolvido nessa produção possa manifestar a
totalidade de sua existência e inverter o processo desencadeada pela produção
industrial, a qual reduz o trabalho humano a repetição de gestos conforme uma linha
de montagem controlada por cronômetros. A busca da presente ação é por um
pensamento que se negue a considerar o produto acabado e a vida a ser vivida
como separados, ou seja, práxis igual à poiesis, criar é criar a si mesmo. O que
importa não é mais atingir um produto tendo na esteira dele um pensamento utilitário
(utilitário nos modos capitalistas), mas tentar perceber em que condições o mundo
objetivo (do cronômetro, da ciência) permite uma produção de novidade, ou seja,
uma criação.
Sendo assim, não colocando toda energia criadora para atingir uma finitude,
que no caso aqui seria o produto-obra, mas por vivenciar e experimentar e ser
experimentado pelo processo. Então, poder-se-ia dizer o processo-obra, o processo-
obra vida, o processo-obra corpo, o processo-obra subjetividade. Poderíamos,
portanto, nos referir a uma dinâmica paradoxal entre, de um lado, o plano extensivo
com seu mapa de formas e representações vigentes e sua relativa estabilidade e, de
outro, o plano intensivo e as forças do mundo que não param de afetar nossos
corpos, redesenhando o “diagrama de nossa textura sensível”.
119
Ou seja, sendo atravessado por inúmeras desterritorializações, forçando a
produção de formas de vidas agonísticas em embate e em autoinvenção.
Produzindo vidas-menores, isto é, vidas atravessadas pelo devir, que são vidas,
segundo Deleuze e Guatarri, capaz de driblar as formas dadas, constituídas,
perceptíveis. É só nessa condição que para os autores o devir atingi a potência de
afetar, do contágio, da desterritorialização do padrão majoritário.
A vida enquanto obra de arte ou a arte possibilitadora da criação de uma
estética da existencia só é possível, talvez, se elas resistirem a querer ser maior, isto
é, padrões, modelos pelos quais nos guiaríamos. Se ela afirmar sempre seu estado
menor, que não quer dizer só que é uma minoria de pessoas, mas uma intensidade
como nos diz Deleuze. O problema que o “devir-menor” coloca é o da recusa ao
padrão majoritário e o seu entendimento acerca do homem, da sociedade, da vida.
Parafraseando Deleuze, fazer da vida um uso menor.
Podemos insistir um pouco ainda com Deleuze, (até porque foi um leitor dos
mais refinados tanto de Nietzsche como de Foucault, produzindo livros sobre
ambos), quando ele escreve, das poucas ou quase nada, sobre teatro, a saber: “Um
manifesto de menos”, acerca dos experimentos teatrais de Carmelo Bene. Aqui não
é o momento para se debruçar sobre a obra do artista italiano, o que nos vai
interessar nesse texto é sua crítica ao teatro, principalmente ao teatro francês e sua
realização no que ele chama de uma língua maior.
Isso significa que as línguas podem ser consideradas maiores e menores: maiores quando têm uma forte estrutura homogênea e contantes ou universais de natureza fonológica, sintática ou semântica, o que as faz do poder; menores quando só comportam um mínimo de contantes e de homogeneidade estrutural 81 . (MACHADO, 2010, p. 14).
O teatro estando para Deleuze submetido a uma língua maior. Contudo, o
interesse de Deleuze em Bene era saber como o teatro poderia operar uma língua
81
MACHADO, Roberto. Sobre o Teatro: Um manifesto do menos; O esgotado/ Gilles Deleuze. Rio
de Janeiro: Zahar, 2010.
120
menor dentro da maior e fazer assim com que ela perca sua constância e comece a
derivar e, desse modo, permita a ela emitir outros gritos, dados, gagueiras, sopros.
Todo outro modo é possível, portanto, quando se tira da língua essa
homogeneidade, estrutura e legitimidade. Isto permitiria fazer a língua maior tremer
e assim emitir outras variações (língua menor). Ora, isto se aproxima com a ideia de
heterotopia de Foucault bem como de perspectivismo de Nietzsche e com Artaud e
seu ataque a linguagem, principalmente em seu texto “para acabar com as obras
primas”. Ambas os pensadores combatentes reivindicam outros modos de existencia
que abalariam a forma vigente.
Mas vejamos o que diz Artaud (2006, p. 83):
Uma das razões da atmosfera asfixiante, na qual vivemos sem escapatória possível e sem remédio – e pela qual somos todos um pouco culpados, mesmo os mais revolucionários dentre nós –, é o respeito pelo que é escrito, formulado ou pintado e que tomou forma, como se toda expressão já não estivesse exaurida e não tivesse chegado ao ponto em que é preciso que as coisas arrebentem para começar tudo de novo.
Artaud (2006, p. 85) propõe uma espécie de variação e, portanto, de não
representação,
[…] reconheçamos que o que já foi dito não está mais por dizer; que uma expressão não vale duas vezes, não vive duas vezes; que toda palavra pronunciada morre e só age no momento em que é pronunciada, que uma forma usada não serve mais e só convida a que se procure outra, e que o teatro é o único lugar do mundo onde um gesto feito não se faz duas vezes.
Ele denuncia a preponderância de uma forma que cristaliza e interrompe o
surgimento de outras relações entre as pessoas, na vida.
Com entradas diferentes, mas buscando de alguma maneira confrontar-se
com essa língua maior como fez Artaud com seus ataques a linguagem, Bene,
segundo Deleuze, retirava das suas peças os personagens que representavam o
121
poder e, portanto, algo que tem haver com a história, com a estrutura, com um certo
encadeamento maior. Desse modo, opera-se uma espécie de variação. Algo que
antes não variava começa a variar. Nessa variação se experimenta uma
heterogeneidade, uma flutuação intensiva, ascensão e queda, mas não só no
próprio texto, como também nos objetos de cena, na iluminação, na música. Ocorre
uma espécie de, o que Guattari chamava “heterogenese”. Descarrilha a linguagem e
nessas variações intensivas faz com que ela emita sons, sopros, gagueiras,
colapsos, aonde o sentido também vai entrando em colapso. Isto lembra alguém? A
linguagem vai perdendo seu caráter representativo para alçar voos diretos.
Eis o que na verdade acontecerá. Trata-se de nada menos do que mudar o ponto de partida da criação artística e de subverter as leis habituais do teatro. Trata-se de substituir a linguagem articulada por uma linguagem de natureza diferente, cujas possibilidades expressivas equivalerão à linguagem das palavras, mas suja fonte será buscada num ponto mais recôndito e mais recuado do pensamento. (ARTAUD, 2006, p.129).
Dessa maneira, o sentido também fugirá. E então poderemos, tanto no teatro
de Bene como de Artaud, chamar de variação contínua.
Parece enfim que a mais elevada ideia de teatro é a que nos reconcilia filosoficamente com o Devir, que nos sugere através de todos os tipos de situações objetivas a ideia furtiva da passagem e da transmutação das ideias em coisas, muito mais que a transformação e do choque dos sentimentos nas palavras. (ARTAUD, 2006, p. 128).
O teatro deve ser vida em estado intensificado, “transubstancializado”. Não a
realidade cotidiana mimetizada, mas o real depurado, que nos tira do sono da rotina
e nos confronta com questões centrais da existencia. Derrida (2014, p. 346) nos fala
que no teatro da crueldade:
122
[...] a cena já não representará, pois não virá acrescentar-se como uma ilustração sensível a um texto já escrito, pensado ou vivido fora dela e que não faria mais do que representar, cuja trama não constituiria. Já não virá repetir um presente, re-presentar um presente que estaria noutro lugar e antes dela, cuja plenitude seria mais velha do que ela, ausente de cena e podendo de direito passar sem ela: presença a si do Logos absoluto, presente vivo de Deus. Não mais será representação, se representação quer dizer superfície exposta de um espetáculo oferecido a curiosos.
O Desafio que se coloca para o teatro, para política é devolver uma espécie
de potencia atual ao “devir-menor”; “devir-mulher”; “devir-criança”; “devir-animal”;
“devir-imperceptível”, todos eles nos arrastando para fora do padrão majoritário.
Dando nascimento, assim, a outros modos de existencia, pois como já referido aqui,
o modo majoritário se quer universal. Já nos devires menores são múltiplas as
existências, sem nenhuma querer se absolutizar. Desse modo, vem à luz com a
recusa a esse modo maior, perspectivas diversas de existências. É um modo de
desertar o maior. Para Deleuze (2010), minoria não designa mais um estado de fato,
mas um devir no qual a pessoa se engaja. Ele nos fala:
Devir-minoritário é um objetivo, e um objetivo que diz respeito a todo mundo, visto que todo mundo entra nesse objetivo e nesse devir, já que cada um constrói sua variação em torno da unidade de medida despótica e escapa, de um modo ou de outro, do sistema de poder que fazia dele uma parte da maioria82. (2010, p. 62).
Nesse sentido que viemos traçando até o presente momento, o teatro surgirá
como o que não representa nada, mas apresenta e constitui uma consciência de
minoria, “operando alianças aqui e ali conforme o caso, seguindo linhas de
transformação que saltam para fora do teatro e assumem uma outra forma, ou se
reconvertem em teatro para um novo salto”. (DELEUZE, 2010, p. 64). Ora, isso se
liga com Foucault e sua fala acerca da necessidade de imaginar e fazer existir novos
esquemas de politização. Em oposição a “maioridade”, às grandes técnicas novas
82
DELEUZE, Gilles. Sobre o teatro: Um manifesto do menos; O esgotado. Rio de Janeiro: Zahar,
2010.
123
de poder - “que correspondem às economias multinacionais ou aos Estados
burocráticos” - deve se instaurar uma politização que terá novas formas.
Sem, contudo, achar que não haverá em algum momento a exploração
econômica e política das novas práticas. Já nos dizia Foucault, que haverá
exploração em um momento ou outro de tudo que for criado de novo. É o que ocorre
igualmente com a vida, com a luta, com a história. Do ponto de vista político e
estratégico Foucault não pensa que a recuperação ou a exploração das novas
liberdades seja uma objeção a todos esses movimentos ou a todas essas situações.
Foucault situa assim o aspecto positivo, produtivo das relações de poder. O
poder estar sempre presente. Onde ele está há luta, resistencia. Conclui Foucault
(2014, p. 258):
Não estamos então presos em uma armadilha. Esta situação é o dado em que se dá qualquer luta. Isto quer dizer que sempre se pode mudar a situação. É uma possibilidade permanente. Não é possível nos colocarmos de fora da situação, em nenhum lugar estamos livres de toda relação de poder. Não estamos sempre presos em uma armadilha, mas, ao contrário, estamos sempre livres.
A resistencia é o que se pode procurar no interior das relações de poder. Sem
resistencia, não há relação de poder. Como já discutimos em outro momento,
resistencia em Foucault consiste em um processo de criação, transformar a
situação, ter uma participação ativa no processo. Trata-se de saber em que medida
a subjetividade dominada pode criar seu próprio discurso.
A perspectiva fucaultiana e deleuzina de tematização do poder gera uma
problemática correlata que dirá respeito às possibilidades de resistencia, de
produção de vias alternativas [em termos de comportamento pessoal, de
organização de ações coletivas, reunião de forças] para se “escapar” à rede de
poder e para promover a emergência de forças de contrapoder, mas bem entendidas
como forças de potencialização da vida. Mas essas vias – também elas – nesse
horizonte, são pensadas, como móveis, rizomáticas, exercidas em rede;
horizontalizadas. Sendo assim, a potencialização da vida que se confronta com o
124
poder disseminado de gestão e controle da mesma vida não se fará por lideranças
representativas (verticalizadas, centralizadas, institucionalizadas), mas por meios de
conexões plurais e de movimentos internos de circulação e de trocas.
Para ir tentando finalizar o não finalizável. A vida se coloca como um
experimento contínuo e como tal requer uma atitude critica para com ela. Deleuze na
esteira de Nietzsche diria trata-se de uma tomada de consciência, não no sentido
psicanalítico tampouco com uma consciência política marxista ou no caso do teatro
brechtiana.
A consciência, a tomada de consciência, é uma grande potência, mas não feita para soluções nem para as interpretações. É quando a consciência abandona as soluções e interpretações que ela conquista sua luz, seus gestos e seus sons, sua transformação decisiva. (DELEUZE, 2010, p. 64).
Bem próxima, aliás, com a consciência cruel artaudiana, do afrontamento do
que vem de seu exterior.
Artaud delineou uma vida que buscava incessantemente superar a si mesma,
foi um eterno combatente, rebelde contra a imposição da obediência. Como nos fala
Nietzsche em Da superação de si mesmo “recebe ordens aquele que não sabe
obedecer a si próprio”83. (NIETZSCHE, 2011, p. 109). Na revolta Artaud encontrou a
insubmissão, no corpo sem órgãos encontrou a possibilidade de nascer por si e isto
não seria possível sem a crueldade, entendida como vontade de potência, sendo
está uma força de metamorfose, portanto, “impossível designar uma forma fixa e
unívoca às suas manifestações”. (WOTLING, 2013, p. 205). Não foi Artaud um
animal estranho e transgressor perante as regras do “parque humano” civilizatório,
cercado pelas correntes de um pensamento que sempre procura encarcerar as
ideias em saberes racionalizadores e interditar qualquer possibilidade de abordagem
não disciplinar, ou qualquer criação a partir de delírios ou da própria loucura?
83
NIETZSCHE, Friedrich. Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
125
Artaud ao fazer da sua vida e obra um combate contra todos os dispositivos
punitivos, controladores colocou o que Foucault (2010, p. 316) tempos depois veio
colocar:
O problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não é o de tentar libertar o indivíduo do Estado e das instituições estatais, mas de nos libertar tanto do Estado quanto do tipo de individualização que está vinculado a ele. Precisamos promover novas formas de subjetividades através da recusa desse tipo de individualidade que tem sido imposta a nós há vários séculos.
A maneira que Artaud encontrou para recusar esse processo de
individualização foi através da constituição de si pela arte, pelo seu teatro. Fez da
sua vida um grande experimento ético-estético-político, fez dela uma escrita de si.
Tornou sua vida uma prática de auto-formação. E sabia que essa forma outra que
ganhava contornos durante o tempo era provisória e, portanto, não repetitiva, assim
como um gesto na vida.
Enfim, a vida é vontade de potência, de experimentação, de risco. Para
finalizar gostaria de retomar uma passagem de Friedrich Nietzsche que está no seu
livro “Assim Falou Zaratustra”. Zaratustra está a observar juntamente com a multidão
dois acrobatas que andam por uma corda esticada de uma torre a outra. Em
determinado momento um deles cai e a multidão corre para que ele não caia sobre
ela, excerto Zaratustra que não se move. Ao lado dele caiu justamente o corpo,
destroçado, mas vivo ainda. Dai que segue esse diálogo; “que fazes aqui? – disse-
lhe. “há muito tempo que eu sabia que o demônio me passaria a perna. Agora ele
me leva para o inferno; queres impedi-lo?”. Segue que Zaratustra responde: “Por
minha honra, amigo... Nada do que falas existe: não existe demônio nem inferno.
Tua alma morrerá antes ainda que teu corpo: nada temas, portanto” o homem olha
receoso e respondeu: “Se falas a verdade, então nada perco, ao perder a vida. Não
sou muito mais que um animal a ensinaram a dançar, com golpes de bastão e
pequenos nacos de comida”. Eis que Zaratustra responde “ De maneira nenhuma
[...] Fizeste do perigo o teu ofício, não há o que desprezar nisso. Agora pereces no
teu ofício: por causa disso, eu te sepultarei com minhas próprias mãos”.
(NIETZSCHE, 2011, p. 20).
126
“Quem sou?
De Onde venho?
E se o disser
como sei dizê-lo,
imediatamente
vereis o meu corpo atual
voar em estilhaços
e refazer
com dez mil aspectos
notórios
um corpo novo
onde não podereis
nunca mais
esquecer-me”.
(ARTAUD, 2007, p. 165).
127
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