pontifícia universidade católica do rio do janeiro

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1 Pontifícia Universidade Católica Do Rio do Janeiro Marcos Antonio Farias de Azevedo A LIBERDADE CRISTÃ EM CALVINO Uma Resposta ao Mundo Contemporâneo Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Teologia. Orientador: Prof. Dr. Nilo Agostini Volume I Rio de Janeiro Março de 2007

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Pontifícia Universidade Católica Do Rio do Janeiro

Marcos Antonio Farias de Azevedo

A LIBERDADE CRISTÃ EM CALVINO Uma Resposta ao Mundo Contemporâneo

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação emTeologia da PUC-Rio como requisito parcial paraobtenção do título de Doutor em Teologia.

Orientador: Prof. Dr. Nilo Agostini

Volume I

Rio de Janeiro Março de 2007

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Pontifícia Universidade Católica Do Rio do Janeiro

Marcos Antonio Farias de Azevedo

A LIBERDADE CRISTÃ EM CALVINO Uma Resposta ao Mundo Contemporâneo

Tese apresentada como requisito parcial para obtençãodo grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação emTeologia do Departamento de Teologia do Centro deTeologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pelaComissão Examinadora.

Prof. Dr. Nilo AgostiniOrientador

Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Alfonso Garcia RubioDepartamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Mário de França MirandaDepartamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Luiz Longuini NetoSeminário Teológico Batista do Sul do Brasil

Prof. Lindomar Rocha MotaPUC – Minas

Prof. Paulo Fernando Carneiro de AndradeCoordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro

de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro,

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Todos os direitos autorais reservados. É proibida areprodução total ou parcial do trabalho sem autorização doautor, do orientador e da Universidade.

Marcos Antonio Farias de Azevedo

Graduou-se em Teologia pelo Seminário TeológicoPresbiteriano do Rio de Janeiro. Concluiu Mestrado emTeologia pela PUC-Rio, em 1996. Especializou-se emMissiologia, pela Universidade Mackenzie de São Paulo,SP, em 2003. Foi professor de Teologia Contemporânea eReligiões Comparadas no Seminário TeológicoPresbiteriano do Rio de Janeiro, STPRJ. Foi coordenadorda Área de Sistemática do referido Seminário. É professorde Ética no referido Seminário. É professor em diversascadeiras na Faculdade Teológica Unida, FTU, no EspíritoSanto – ES. Colabora com Cursos de Extensão na referidaFaculdade e ministra diversas palestras na área teológica.

Ficha Catalográfica

Azevedo, Marcos Antonio Farias de

A Liberdade Cristã em Calvino – uma resposta aomundo contemporâneo / Marcos Antonio Farias deAzevedo: orientador: Nilo Agostini. – Rio de Janeiro:PUC, Departamento de Teologia, 2007.

418f.; 30 cm

Tese (doutorado) – Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro, Departamento deTeologia.

Inclui referências bibliográficas.

1. Teologia – Teses. 2. Cristianismo. 3. TeologiaMoral. 4. Liberdade. 5. Modernidade. 6. Pós-modernidade. 7. Teologia Reformada. 8. História daReforma. I. Agostini, Nilo. II. Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro. Departamento deTeologia. III. Título.

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4

À minha esposa, Priscila, e aos meus filhos,Abílio Marcos e João Marcos, com ternura e gratidão.

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5

Agradecimentos

Ao Eterno e amoroso Pai, por sua graça, capacitação e presença constante aolongo da senda percorrida;

Ao meu orientador e amigo Professor Frei Nilo Agostini pela primorosa eencorajadora orientação durante a realização deste trabalho;

Ao CNPq, à FAPERJ e à PUC-Rio, pela oportunidade de estudo e auxíliofinanceiro durante este tempo de estudos;

Aos distintos membros da banca examinadora pela atenção e disponibilidade emprestar este serviço;

Aos professores, professoras e colegas do Departamento de Teologia pelas belas eprofundas experiências ao longo do caminho;

À secretária do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Teologia,Denise Bandeira, pela presteza e gentileza em servir aos alunos;

À secretária do Programa de Graduação do Departamento de Teologia, Jussara,pela gentileza e presteza;

À minha família pelo carinho, acolhimento e incentivo constante;

Ao companheiro de Caminho, Rev. Brian e ao grande amigo Aury (in memorian),pela colaboração preciosa nos trabalhos da tese.

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Resumo

Azevedo, Marcos Antonio Farias de Azevedo; Agostini, Nilo. A LiberdadeCristã em Calvino – uma resposta ao mundo contemporâneo. Rio deJaneiro, 2007. 418p. Tese de Doutorado - Departamento de Teologia, PontifíciaUniversidade Católica do Rio de Janeiro.

Cremos que a temática central do cristianismo é a questão da liberdade, resultado

imediato de toda obra redentora de Deus, ofertada pelo Filho, Jesus Cristo, e aplicada pela

ação do Espírito Santo. O cristianismo é desafiado, sobretudo nesse tempo moderno e

pós-moderno, a responder a seus interlocutores sobre a liberdade cristã, em face da

maneira como se vive e se anuncia o evangelho. Impõe-se, portanto, refletir sobre a

Liberdade Cristã, o que faremos na perspectiva da teologia do reformador João Calvino,

locus central da presente tese. Na teologia cristã, liberdade e verdade caminham juntas –

“a verdade vos fará livres” – como elementos fundamentais ao cumprimento da vocação

da Igreja. Para tanto, faz-se necessário proceder a uma leitura da modernidade e da pós-

modernidade em suas dimensões sociocultural, econômica, antropológica e religiosa,

procurando uma definição para cada um dos paradigmas e verificar onde e como o agir da

Igreja se encontram. Em seguida, a tese apresenta uma descrição histórica da Reforma

Protestante do Século XVI e seu período preparatório, verificando que suas repercussões

foram muito além da questão teológico-doutrinária. Segue-se uma exposição sobre a vida,

a obra e o pensamento de João Calvino, com ênfase na temática da liberdade, nas

dimensões antropológica, cristológica, soteriológica e eclesiológica. Em seguida, retorna-

se a uma análise do Reino de Deus e da liberdade cristã, a partir dos evangelhos e da

teologia paulina, em sua carta aos Gálatas, tendo Jesus Cristo como principal interlocutor,

na Sua grande missão de anunciar o Reino de Deus, que é o anúncio da liberdade e vem

acompanhado de Suas atitudes, sinais concretos da atuação deste Reino. Finalmente, são

apresentadas perspectivas novas a partir dos paradigmas teológico-doutrinários de

Calvino, viabilizando uma presença eclesial significativa, no contexto da cultura atual,

estabelecendo diálogo e anúncio, sem perder a identidade cristológica, constitutiva à fé

cristã.

Palavras-chave

Cristianismo; Teologia Moral; Liberdade; Modernidade; Pós-modernidade; TeologiaReformada; História da Reforma.

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Resumé

Azevedo, Marcos Antonio Farias de Azevedo; Agostini, Nilo. La LibertéChrétienne dans Calvin – une réponse au monde contemporain. Rio deJaneiro, 2007. 418p. Thése de Doctorat - Département de Théologie, PontifceUniversité Catholique de Rio de Janeiro.

Nous croyons que la thématique centrale du christianisme, c’est la question de la

liberte, résultat immédiat de toute oeuvre rédemptrice de Dieu, offerte par son fils Jésus

Christ, et appliquée par l’action de l’Esprit Saint. Le christianisme est défié surtout

pendant ces derniers temps modernes et post moderne, à répondre à ses interlocuteurs sur

la liberté chrétienne dans la manière dont on vit et on annonce l’Evangile. Le faut

cependant, réfléchir sur la liberté chrétienne, ce que nous allons faire dans la perspective

de la theologie du réformateur Jean Calvin, lócus central de la présente thèse. Dans la

théologie chrétienne la liberté et la verité marchent ensembles – “la liberté nous rendra

libres” – comme éléments fondamentaux pour l’accomplissement de la vocation de

l’Église. Pour cela, il faut faire une lecture de la modernité et de la post modernité dans

ses dimensions socio-culturelle, économique, entropologique et religieuse, cherchant une

définition pour chacun des paradygmes en vérifiant ou et comment l’action de l’Église se

trouve ensuite la thèse présente une description historique de la Réforme Protestante du

XVI ème siècle et la période préparatoire en notant que ses répercutions sont allées

beaucoup plus au–dela de la question théologico-doctrinaire. Suit une exposition sur la

vie, l’oeuvre et la pensée de Jean Calvin mettant en valeur la thématique de la liberté dans

les dimensions entropologique christique, sotériologique et éclesiastique. Ensuite on

reviendra à l’analyse du Royaume de Dieu et de la liberté chrétienne à partir des

Evangiles et de la théologie paulinienne dans ses lettres aut galates, ayant Jésus Christ

comme principal interlocuteur, dans sa grande mission à l’annonce du royaume de Dieu

qui est une annonce de la liberté qui précède ses attitudes, signes concrets de ce royaume.

Finalement des nouvelles perspectives sont présentées à partir des paradygmes

théologico-doctrinaire de Calvin en viabilisant une présence éclésiale significative dans le

contexte de la culture actuelle, créant um dialogue et une annonce sans perdre l’identité

christologique constitutive de la foi chrétienne.

Mots clef

Christianisme; théologie morale, liberté, modernité, post modernité, théologieréformée, histoire de la Réforme, liberté chrétienne.

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Sumário

Introdução 15

PRIMEIRO CAPÍTULO

1 Uma Abordagem Sociocultural, Econômica,Antropológica e Religiosa do Nosso Tempo

21

1.1 O Fenômeno da Modernidade 231.1.1 Uma Definição da Modernidade 241.1.2 Dimensão Sociocultural 331.1.3 Dimensão Econômica 371.1.4 Dimensão Antropológica 401.1.5 Dimensão Religiosa 41

1.2 O Fenômeno da Pós-modernidade 471.2.1 Uma Definição da Pós-modernidade 481.2.2 Dimensão Sociocultural 511.2.3 Dimensão Econômica 541.2.4 Dimensão Antropológica 571.2.5 Dimensão Religiosa 60

1.3 Pluralismo Religioso e as Questões Crísticas 661.3.1 Paradigmas Teológicos diante do Diálogo Inter-religioso

como Pano de Fundo à Questão Crística69

1.3.2 O Paradigma Exclusivista 721.3.3 O Paradigma Inclusivista 741.3.4 O Paradigma Pluralista 76

1.4 Implicações Teológicas e Exigências Éticas 80

Conclusão 86

SEGUNDO CAPÍTULO

2 A Reforma Protestante do Século XVI: um Caminhopara a Liberdade Cristã

87

2.1 As Bases da Reforma Protestante do Século XVI 882.1.1 O Pano de Fundo do Reformador João Calvino 89

2.2 Os Pré-Reformadores 952.2.1 John Wycliff e os Lolardos 972.2.2 John Huss e os Hussistas 1012.2.3 Jerônimo Savanarola 103

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9

2.3 A Reforma Prostestante 105

2.4 Calvino: sua Vida e Obra 1072.4.1 João Calvino: sua Infância e seus Anos de Estudos

(1509-1535)110

2.4.2 A Primeira Estada de Calvino em Genebra (1536 –1541)

117

2.4.3 A Segunda Estada de Calvino em Genebra (1536 –1541)

127

2.4.4 Os Últimos Anos de Calvino 1342.4.5 Beza, o Sucessor e Biógrafo de Calvino 1392.4.6 As Obras de João Calvino 141

Conclusão 154

TERCEIRO CAPÍTULO

3 Calvino e a Liberdade Cristã: a Práxis Libertadora doCalvinismo em Genebra

155

3.1 A Antropologia de Calvino e a Liberdade cristão deladecorrente

157

3.1.1 A Relação entre o Conhecimento de Deus e oConhecimento de Si Mesmo em Calvino

159

3.1.2 Fontes 1613.1.3 A Imago Dei 1673.1.4 O Sensus Divinitatis e a Semen Religionis 1713.1.5 A Soberania de Deus e o Livre-arbítrio 1753.1.6 A Antropologia de Calvino e a Liberdade 179

3.2 A Eclesiologia de Calvino e a Liberdade dela decorrente 1853.2.1 Fontes 1853.2.2 Conceito de Igreja 1873.2.3 A Relação entre a Igreja e o Estado 1903.2.4 Os Sacramentos 1913.2.5 A Igreja Visível e a Invisível 1953.2.6 Eclesiologia e Missiologia Calvinista 1973.2.7 A Eclesiologia e a Liberdade Cristã 199

3.3 A Cristologia de Calvino e a Liberdade cristã deladecorrente

206

3.3.1 Fontes 2063.3.2 Cristologia Calvinista e Tradição 2073.3.3 A Obra de Cristo 2173.3.4 A Cristologia Calvinista e a Liberdade 2243.4 A Soteriologia de Calvino e a Liberdade Cristã dela

decorrente227

3.4.1 Lei e Evangelho 2283.4.2 Soteriologia e Cristologia 230

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10

3.4.3 Soteriologia e Espírito Santo 2343.4.4 A Fé, a Graça e a Santificação 2353.4.5 A Soteriologia Calvinista e a e a Liberdade 238

Conclusão 252

QUARTO CAPÍTULO

4 O Reino de Deus e a Liberdade Cristã 2534.1 Jesus Cristo e a Chegada do Reino de Deus 2534.1.1 O Reino de Deus no Novo Testamento 2554.1.2 O Testemunho Apostólico do Reino de Deus nos

Evangelhos258

4.1.3 Implicações Teológicas da Concepção Bíblica de Reinode Deus

263

4.2 Jesus Cristo e a Formação do Espaço de Liberdade 2644.2.1 Jesus Cristo e a Mensagem da Liberdade 2654.2.2 Aspectos Fundantes da Igreja Neotestamentária 268

4.3 O Espírito Santo como Agente Capacitador da Missão 271

4.4 A Liberdade Cristã na Teologia de Paulo 2784.4.1 Paulo: sua Missão e o Processo de Evangelização

Inculturada283

4.4.2 Paulo e sua Concepção de Evangelho 288

Conclusão 290

QUINTO CAPÍTULO

5 A Ação Querigmática da Igreja e a Liberdade Cristã 2915.1 O Querigma Libertário: Libertação da Igreja diante dos

Desafios da Pós-Moderniadade293

5.1.1 O Espírito Santo e o Anúncio do Querigma Libertário 2975.1.2 Igreja: Promotora de Liberdade e de Esperança 301

5.2 A Cristologia Calvinista sob o Querigma Libertáriodiante dos Desafios da Pós-Modernidade

304

5.2.1 A Atualização da Cristologia Calvinista: Aplicação naCristologia Eclesial

305

5.2.2 Unicidade e Universalidade Salvíficas em Jesus Cristo 308

5.3 O Querigma Libertário: Libertação do Ser Humanodiante dos Desafios da Pós-Modernidade

311

5.3.1 O Homem como Ser Alienado de Deus 312

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5.3.2 O Homem como Nova Criação de Deus na Sociedade 316

5.4 A Soteriologia Calvinista: sob o Paradigma doQuerigma Libertário diante dos Desafios da Pós-Modernidade

323

5.4.1 A Soteriologia e os Desafios da Pós-modernidade 3235.4.2 Em Busca de uma Salvação Integral e Integrada 334

5.5 Implicações Éticas dos Desafios da Pós-Modernidade 3375.5.1 A Ética da Vida de Serviço 3385.5.2 Desafio de Construção de uma Sociedade Humanizada 344

5.6 Impactos de uma Teologia Libertária na Sociedade 3495.6.1 Impacto na Política 3505.6.2 Impacto na Cultura 3545.6.3 Impacto na Economia 357

Conclusão 365

6 Conclusão 366

Referências Bibliográficas 379

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Abreviações

Documentos

AG = Ad Gentes

DV = Dei Verbum

DA = Diálogo e Anúncio

GS = Gaudium et Spes

LG = Lúmen Gentium

NA = Nostra Aetate

OC = Opera Calvini

CR = Corpus Reformatorum

Livros e artigos de Calvino

Institutas = CALVINO, João. As Institutas ou Tratadoda Religião Cristã. Livro I. São Paulo: CasaEditora Presbiteriana,1985.

Institutas = CALVINO, João. As Institutas ou Tratadoda Religião Cristã. Livro II. São Paulo: CasaEditora Presbiteriana, 1985.

Institutas = CALVINO, João. As Institutas ou Tratadoda Religião Cristã. Livro III. São Paulo: CasaEditora Presbiteriana, 1989.

Institutas = CALVINO, João. As Institutas ou Tratadoda Religião Cristã. Livro IV. São Paulo: CasaEditora Presbiteriana, 1989.

Institution = CALVIN, Jean. Institution de la ReligionChrestienne. Oeuvres Complètes. TomePremier. Société les Belles Lettres. Paris.1936.

Institution = CALVIN, Jean. Institution de la ReligionChrestienne. Oeuvres Complètes. TomeSecond. Société les Belles Lettres. Paris. 1936.

Institution = CALVIN, Jean. Institution de la ReligionChrestienne. Oeuvres Complètes. TomeTroisième. Société les Belles Lettres. Paris.1936.

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Institution = CALVIN, Jean. Institution de la ReligionChrestienne. Oeuvres Complètes. TomeQuatrième. Société les Belles Lettres. Paris.1936.

Romanos = CALVINO, João. Comentário aos Romanos.São Paulo. Ed. Paracletos, 1997.

Efésios = CALVINO, João. Comentário aos Efésios.São Paulo. Ed. Paracletos, 1998.

Gálatas = CALVINO, João. Comentário aos Gálatas.São Paulo. Ed. Paracletos, 1998.

Pastorais = CALVINO, João. Comentário CartasPastorais. São Paulo. Ed. Paracletos, 1998.

Hebreus = CALVINO, João. Comentário Hebreus. SãoPaulo. Ed. Paracletos, 1997.

Comentário de I Coríntios = CALVINO, João. Comentário I Coríntios.São Paulo. Ed. Paracletos, 1996.

Comentário de II Coríntios = CALVINO, João. Comentário II Coríntios.São Paulo. Ed. Paracletos, 1995.

Comentário de Salmos = CALVINO, João. O livro dos Salmos: Vol.1:Salmos de 1 – 30. São Paulo: Ed. Paracletos,1999.

Comentário de Salmos = CALVINO, João. O livro dos Salmos: Vol.1:Salmos de 31 – 68. São Paulo. Ed. Paracletos,1999.

Comentário de Salmos = CALVINO, João. O livro dos Salmos 82.3.Vol. 3, São Paulo: Parácletos, 2002, 703p.

A Verdadeira Vida Cristã = CALVINO, João. A Verdadeira Vida Cristã.São Paulo. Novo Século, 2000.

Resposta ao Cardeal Sadoleto = CALVINO, João. Respuesta al cardenalSadoleto. Barcelona: Fundación Editorial deLiteratura Reformada. 2000.

Breve Instruccion Cristiana = CALVINO, João. Breve InstruccionCristiana. Barcelona: Associación Cultural deEstudos de La Literatura Reformada, 1966.

Comentário aos Sinóticos = CALVINO, João. Commentary on aHarmony of the Evangelists Matthew, Mark,and Luke. Vol. III (Grand Rapids: Baker,1979).

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Comentário às Pastorais = CALVINO, João. Commentary on theEpistles to Timothy, Titus, and Philemon.(Grand Rapids: Baker, 1979).

Tratados e cartas = CALVIN, John. Selected Works of JohnCalvin: Tracts and Letters. Organizado etraduzido por Henry Beveridge. Grand Rapids:Baker, 1983.

Commentary of Psalms = CALVINO, João. Commentary on the Bookof Psalms. Edimburgo. Edição da CalvinTranslation Society, 1978.

Comentário de Daniel = CALVINO, João. Daniel: Vol.1: Capítulos 1– 6. São Paulo: Ed. Paracletos , 2000.

Reforma da Igreja = CALVINO, João. The necessity of reformingthe church. Dallas: Protestant Heritage Press,1995.

Page 15: Pontifícia Universidade Católica Do Rio do Janeiro

15

Introdução

Pensar teologicamente sobre a liberdade e, especificamente, sobre a

Liberdade Cristã em Calvino, nosso labor temático, traz diretamente a implicação

de uma resposta ao mundo contemporâneo. Certamente que tal tema há de ter

como locus central a cristologia e a eclesiologia e, conseqüentemente, implicações

decorrentes do anúncio das Boas Novas, tais como testemunho; serviço /

alteridade; justiça social; presença relevante na sociedade e suas relações com o

Estado; ética como agente de transformação histórica; e proclamação inculturada

da fé, com suas influências do humanismo cristão reformado no mundo atual.

Carece-nos, porém, ser impossível falar de liberdade cristã sem tocar no humano,

pois a liberdade, oferecida por Jesus Cristo, é exatamente para Ele. A liberdade

cristã, no dizer do próprio Calvino, é liberdade que plenifica o homem, que

humaniza o desumanizado, e que gera relações saudáveis em todas as dimensões

da existência humana. Para o reformador, a liberdade que Jesus Cristo oferece e é

operada pelo Espírito Santo, é vista como elemento fundamental de toda obra da

justificação, da gratuidade da salvação. Encontraremos em Calvino preciosas

pistas, em sua teologia e práxis, elementos capazes de contribuir para a mudança

do vital humano, motivo pelo qual de sua atualidade e relevância.

Encontramos, na verdade, na sociedade moderna uma mudança radical de

paradigma, ou seja, na qual Deus era o centro, porém, agora, o homem governa. A

fé não mais se assenta soberanamente sobre o trono da História, mas é substituída

pela razão humana. Se na sociedade tradicional valia o que passava pela tradição,

na sociedade moderna não há qualquer validade fora da razão. A razão humana é a

nova cosmovisão. O homem passa a ser o centro e, por ser assim, passa a ser o

construtor do seu mundo, do seu próprio futuro, de própria sociedade, inclusive de

sua própria salvação.

Olhando nosso tempo, chamado pós-moderno, constatamos que uma de suas

grandes marcas é a pluralidade – uma sociedade altamente pluralista. Por isso

mesmo, carregada de superficialidade e vacuidade. Quantidades enormes de

opções para um mesmo produto são colocadas à mostra, como num grande

supermercado, tendo sempre, diante de nós, oportunidade de escolher o que mais

nos agrada.

Page 16: Pontifícia Universidade Católica Do Rio do Janeiro

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Os meios de comunicação de massa, que alteraram e alteram a visão de

mundo de todas as pessoas, emitem informações diversificadas de ângulos

totalmente diferentes e com diversas alternativas sobre os mais variados temas da

existência, fazendo surgir, no homem, a consciência de que há realmente

alternativas para tudo e de que é ele quem determina, livremente, o que deseja. A

ênfase de suas escolhas repousa, agora, tão somente sobre a vida do indivíduo,

marcada pelo individualismo.

Tudo isso tem repercussões na vida moral, na qual valores tidos como

absolutos são relativizados, na vida, inclusive, de nossas Comunidades. Logo,

num mundo destituído de absolutos e em tempos de tantas opções, a moralidade

virou produto absolutamente descartável.

Neste mundo dessacralizado, de onde Deus foi banido e no qual a última e

única palavra é a do homem e no qual pesam as aparências de vitalidade

espiritual, projetadas pelas lideranças institucionais, observa-se as marcas de uma

tirania e de um farisaísmo espirituais, vincados pelo legalismo, pelo

conservadorismo carnal e pela paranóia, esta sustentada por aqueles que usurpam

a autoridade da Palavra e do Evangelho da graça, do dom gratuito – e esta

autoridade só a estes pertence.

Uma pergunta, no entanto, impõe-se fazer: como fica a religião nessa

sociedade? Ela não é mais uma abóbada sagrada que apresenta e garante

estruturas de significação uniforme e válida para toda uma sociedade. Não é mais

a única produtora de sentido. Há centenas de janelas de opções, pretendendo o

mesmo valor. Na verdade, não há mais hegemonia para nenhum setor, inclusive o

religioso. Nasce uma religiosidade extremamente antropocentralizada. Esta é a

grande mudança de paradigma.

Nesse novo mundo, Deus tem sérios problemas de habitação, pois o homem,

por ter alcançado sua maioridade, já não mais precisa de Deus e O lança cada vez

mais para a margem da existência, com sérias conseqüências éticas para o próprio

homem, envolvido, agora, pelas religiões de consumo. A secularização alcançou

seu auge nas últimas décadas do século XX. Hoje, aderir a um determinado grupo

religioso significa sentir-se parte integrante do primeiro mundo, significa

pertencer à contemporaneidade.

Page 17: Pontifícia Universidade Católica Do Rio do Janeiro

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Ao lançar-se ao labor da investigação sobre o tema da Liberdade Cristã em

Calvino – uma resposta ao mundo contemporâneo – nosso objetivo é verificar que

a teologia do autor, nos aspectos elencados, fornece, ainda hoje, uma contribuição

relevante para o estabelecimento de uma proposta de vida e missão eclesiais à

altura do nosso tempo, a partir do Evangelho libertador de Jesus Cristo, num

contexto religioso altamente plural, com desafios ao diálogo inter-religioso e de

uma sociedade cada vez mais pluralizada e pós-moderna, sem, contudo, perder o

conteúdo da mensagem e a identidade cristã.

Portanto, nossa hipótese é verificar em que o seu conceito de liberdade e seu

pensamento teológico nas dimensões antropológica, cristológica, soteriológica e

eclesiológica contribuem para a liberdade cristã hoje, a partir do contexto da

Reforma. Outra hipótese é que, ao trazer à tona, parte da teologia de Calvino,

pertinente ao tema da tese, tal estudo nos ofereça chaves teológicas de

interpretação seguras da realidade social, antropológica e religiosa atual, sendo

uma preciosa resposta cristã e protestante ao nosso tempo. Sem contar as

possibilidades de uma ética cristã capaz de promover uma influência ainda mais

positiva no cenário histórico em que vivemos.

Portanto, Calvino ao desenvolver o tema da liberdade cristã, trata-o numa

perspectiva profunda, seja do ponto de vista bíblico-teológico, seja do ponto de

vista de sua relevância para a atualidade. Em sua obra magna, a Instituição da

Religião Cristã, ele trata da liberdade cristã numa tríplice perspectiva, tendo como

paradigma a própria Lei Moral.

Em função de nosso tema de pesquisa constar elementos que podemos

chamar de objeto formal – a Liberdade Cristã – que, fundamentalmente, passa

pela experiência salvífica em Cristo Jesus e de objeto material, - A Liberdade

Cristã em Calvino, uma resposta ao mundo contemporâneo – utilizamos como

método de pesquisa o hermenêutico-analítico, que significa uma investigação e

uma exposição do pensamento de Calvino nos elementos elencados em torno da

temática proposta, adotando um esquema de trabalho que julgamos pertinente,

atual e relevante, a fim de mostrar a importância do tema a partir do autor no

contexto da sociedade moderna e pós-moderna.

Page 18: Pontifícia Universidade Católica Do Rio do Janeiro

18

Nossa tese conta com cinco capítulos. No primeiro, buscamos uma leitura

da modernidade e da pós-modernidade em suas dimensões sociocultural,

econômica, antropológica e religiosa, procurando uma definição para cada um dos

dois paradigmas. Percorrer esses caminhos é fundamental para uma melhor

compreensão de tempo, o que facilitará, conseqüentemente, numa análise mais

aprofundada de todo o pluralismo religioso que grassa em nossa cultura e numa

verificação de onde e como a proposta do Evangelho se encontra. Entretanto, o

faremos de forma resumida, visto que toda esta temática é amplamente conhecida.

Apontaremos referência bibliográfica para posterior consulta.

O segundo capítulo tem como proposta contemplar o pano de fundo

histórico do período preparatório à Reforma do Século XVI e o Movimento

propriamente dito, que foi muito além das fronteiras religiosas, tendo repercussões

na vida política, social, econômica, cultural, bem como fornecedor de caminhos

para a segunda geração de reformadores, que foi o caso de João Calvino.

Já o terceiro é dedicado especificamente à vida, à obra e ao pensamento de

João Calvino, com ênfase na temática da liberdade, olhando o seu conceito de

liberdade e seu pensamento teológico nas dimensões antropológica, cristológica,

soteriológica e eclesiológica e a liberdade decorrente desses paradigmas

teológicos, a partir do contexto da Reforma. Segue-se uma exposição, em linhas

gerais, do desenvolvimento do seu pensamento.

Na visão de Calvino, o pressuposto do exarado no parágrafo anterior é Jesus

Cristo, a encarnação do Verbo, que trouxe a chegada do Reino de Deus, reino da

liberdade que chega ao homem pela iniciativa de Deus, em forma de dom. Em

resposta a esse Dom gratuito de Deus, o homem que o aceita responde com fé e

confiança no Deus da vida, seguindo o Mestre e vivendo as verdades do

Evangelho.

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19

No quarto capítulo nosso olhar volta-se para uma análise do Reino de Deus

e a liberdade cristã, a partir dos evangelhos, tendo Jesus Cristo como seu principal

interlocutor, na Sua grande missão de anunciar o Reino de Deus, promovendo o

anúncio da liberdade, que vem acompanhado de suas atitudes – sinais da atuação

deste Reino: Jesus demonstra total liberdade em relação à Torá. Por força do tema,

a teologia do apóstolo Paulo será contemplada especificamente na carta aos

Gálatas, conceituando, também, o mesmo tema e verificando suas implicações

éticas para a vivência cristã.

Portanto, a pergunta que fazemos é a seguinte: A proposta das Boas Novas

tem chegado ao coração aflito deste homem atual, de tal forma que toda a sua vida

seja radicalmente transformada por Jesus Cristo, provocando verdadeira liberdade,

que resulta numa práxis do Reino de Deus?

No quinto e último capítulo, temos a grande tarefa de estabelecer as diversas

conexões com os capítulos anteriores, verificar a relevância de sua teologia e

atualizá-la ao nosso tempo, através de uma presença eclesial significativa e por

meio de uma ação querigmática integral, no anúncio de uma antiga proposta de

libertação que gera a verdadeira liberdade a um mundo novo com todos os seus

desafios. Tal anúncio terá que passar por uma evangelização inculturada, capaz de

restaurar o ethos do ser humano, desafiando-o a uma vivência significativa e

libertadora.

Na verdade, atualizar o pensamento de Calvino significa a elaboração de

uma proposta de vivência cristã à luz da liberdade cristã e de seu humanismo

cristão, com todas as suas implicações querigmáticas e éticas, como ser integral e

integrado na cultura do seu tempo.

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20

Por estes e outros motivos, creio que o tema seja de suma importância para

o atual cenário cristão, de modo geral e em particular, em nosso contexto mais

latino-americano, qual seja no sentido de resgatar uma proposta de vivência ética

profundamente cristã e de atualidade marcante. O pano de fundo da relevância do

tema dar-se-á pelo fato de que a ação querigmática de muitas Igrejas têm imposto

um jugo sobre as pessoas do tipo farisaico, trazendo sérias implicações na conduta

ética e, pior, expondo, muitas vezes, o cristianismo ao ridículo. Nossa intenção é,

portanto, mostrar que a liberdade cristã é a grande proposta e oferta de Deus ao

homem, de abrangência integral, centrada e esgotada em Jesus Cristo, o libertador

por excelência.

Cremos, portanto, que ao refletirmos sobre a obra de João Calvino a partir

de nosso locus central, que é a liberdade cristã, estaremos não apenas

estabelecendo diálogo com nossos interlocutores, mas também estaremos abrindo

importantes e fecundas janelas para nossa tarefa de reflexão teológica.

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21

Primeiro Capítulo

1Uma Abordagem Sociocultural, Econômica, Antropológicae Religiosa do Nosso Tempo

O grande desafio imposto pela atualidade não é apenas refletir sobre fatos,

mas necessariamente responder a estes, conforme afirma Deleuze: “Não existe

sequer um acontecimento, um fenômeno, uma palavra, nem um pensamento cujo

sentido não seja múltiplo”.1 Este desafio não apresenta exceção em relação à

teologia, uma vez que seu eixo central trata, fundamentalmente, da relação de

Deus com o homem e de sua resposta a Ele, que resulta em sua verdadeira

liberdade, levando “a sério a absoluta primazia do Deus que nos criou e continua

nos criando por amor, única e exclusivamente por amor”.2 Por isto, a compreensão

teológica, historicamente dogmática, unívoca e exclusivista quanto ao seu sentido

nos temas fundamentais – Trindade, soteriologia, sacramentos – está

necessariamente diante da multiplicidade de sentidos que marca o nosso tempo.

Constatado esse fato, há uma crise no campo teológico, que afeta suas mais

variadas dimensões.

Portanto, a reflexão teológica, consciente do mundo que a cerca, busca

responder aos seus interlocutores, de forma a oferecer uma visão compreensível,

dando a estes um sentido à vida humana. Não podemos viver apenas sob o forte

impacto da cultura moderna e pós-moderna sobre a Fé, mas colocar tal cultura sob

o impacto da Fé. E mais. É preciso olhar a incidência do fenômeno da

modernidade e, sobretudo, da pós-modernidade, sobre a Igreja Evangélica

Brasileira.3 Em outras palavras, impõe-se o seguinte questionamento: Os modelos

teológicos – conseqüentemente eclesiásticos - têm apresentado toda a riqueza da

salvação cristã de forma relevante, significativa e atraente aos homens e mulheres

que vivem e pensam segundo as culturas moderna e pós-moderna?

1 DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia.Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. p. 3.2 QUEIRUGA, A. Torres. Fim do Cristianismo pré-moderno. São Paulo: Paulus, 2003. p. 17.3 Sou ministro protestante da Igreja Presbiteriana do Brasil de origem Reformada, o que implicaum olhar não apenas descritivo, mais também crítico-analítico sobre a mudança epocal queassistimos e a relação da religião com seus interlocutores.

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Dentro dessa nova cosmovisão chamada modernidade, a fé cristã tem sido

tremendamente desafiada a uma espécie de nova modelagem, rompendo-se com o

passado, que inclui todos os meios culturais, a fim de que, com instrumentos

culturais modernos, tenhamos condições de compreender, traduzir, inculturar e

tentar realizar a experiência cristã através do evangelho. Em outras palavras, o que

se impõe com o novo paradigma da modernidade, do ponto de vista da fé cristã, é

“compreender as relações de Deus com o mundo”.4 É fundamental que

estabeleçamos diálogo com a sociedade moderna e pós-moderna, numa relação de

troca, onde haja abertura para falar, ouvir, compreender, apreender, propor,

mudar, deixar-se mudar, inculturar-se etc.

Para tanto, a análise da sociedade moderna e pós-moderna torna-se

fundamental para que compreendamos e vivamos como Comunidade que anuncia

o Reino, que proclama o evangelho libertador de Jesus Cristo. Ainda mais. Tal

análise possibilita encontrar fenômenos muito amplos, com múltiplas

abordagens.5 No caso, o propósito da pesquisa é, num primeiro momento, definir

o que seja modernidade e lançar um olhar descritivo, fenomenológico, sobre

alguns paradigmas6 desse tempo, focando as perspectivas sociocultural,

econômica, antropológica e religiosa.

Em cada uma delas, há implicações sérias que incidem diretamente sobre a

teologia e o modus vivendi da Fé Cristã, de tal maneira que tais paradigmas

alteraram e alteram a experiência cristã, muitas vezes em suas bases.7

4 QUEIRUGA, Andrés Torres. Um Deus para hoje. São Paulo: Ed. Paulus, 1998. p. 13.5 Note-se, pois, que a História da modernidade e pós-modernidade é também a história dos seusenigmas e das suas antinomias. São enigmas e antinomias com os quais se defronta o “indivíduo”como sujeito do conhecimento e sujeito de emancipação, que desafiam o pesquisador a buscaresclarecimentos em questões atravessadas pelas configurações e movimentos da história. Refletemdesta maneira HABERMAS, Jürgen, em O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa:Publicações Dom Quixote, 1990. p. 23; BERMAN, Marshall. Tudo Que é Sólido Desmancha noAr (A Aventura da Modernidade). São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 123; ROSSI, Pablo,Paragone degli Ingegni Moderni e Postmoderni, Il Mulino, Bolonha, 1989. p. 34; HARVEY,David, A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. p. 17; CHESNEAUX, Jean.Modernidade-Mundo (Brave Modern World). Petrópolis: Editora Vozes, 1995. p. 36.6 Por paradigmas pretendemos afirmar um conjunto de axiomas que filtram nossa visão do mundo,como se fossem grandes marcas ou características que resumem, sintetizam e expressam as maisvariadas verdades observáveis. Quando analisamos os fatos numa perspectiva históricavislumbramos, então, várias mudanças que caracterizam a ruptura entre um período histórico eoutro, mesmo quando as dimensões ou paradigmas analisados são os mesmos, mas os seusconteúdos são alterados e influenciados pela própria evolução histórica, social, econômica,humana, religiosa etc.7 JASPERS, Karl. Introdução ao Pensamento Filosófico. São Paulo: Cultrix, 1971. p. 30).

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1.1O Fenômeno da Modernidade

A primeira constatação que fazemos é que, na modernidade, o cristianismo

de tipo tradicionalista fechado, fundamentalista, legalista, mimético, com suas

diversas variantes, torna-se provinciano, aldeótico, anacrônico e irrelevante frente

ao mundo em constante evolução e mudança, complexo e repleto de desafios e

necessidades, clamando por respostas e soluções e caminhos mais seguros. José

Comblin não apenas falou da tensão entre a modernidade e o cristianismo, como

também explicitou de forma simples e eloqüente, alguns dos principais

pressupostos da cultura moderna:

O discurso moderno tem três temas principais: arazão, felicidade e a liberdade. Na modernidade tudo giraao redor desses três temas. Pode-se dizer: os três sãobíblicos e cristãos. Pois é. Contudo, os três foram e sãoapresentados como tipicamente modernos, alheios àtradição cristã, até opostos a ela. Nesse mal-entendidoestá todo o drama da modernidade face ao cristianismo.8

Para responder coerentemente esta importante questão, faz-se necessário

entrar nos meandros da cultura contemporânea, penetrar, na verdade, no fulcro das

grandes questões, de forma a esclarecer suas constantes, o que não é tarefa fácil.

Dentre as várias abordagens que temos, a que considera a modernidade e a

pós-modernidade como desconstrução dos projetos modernos é a utilizada neste

trabalho, já que a modernidade é comumente identificada como o veículo capaz de

explicar, de modo pleno, todos os fenômenos pela razão, sendo “o procedimento

matemático [...] o ritual do pensamento”.9 Já a pós-modernidade é marcada pela

multiplicidade de explicações e “verdades”.10

8 COMBLIN, José. A força da palavra. Petrópolis: Vozes. 1986. p. 205.9 ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento.Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1985. p. 254.10 Esta compreensão, compartilhada por ONCKEN, Wilhelm. Vol. XVIII, p. 483; VIOTTI,Frederico Romanini de Abranches. Origem e fundamento da Mística Pós-moderna. Parte II,cap. 2; VEITH, Gene Edward Jr. Tempos Pós-modernos, op. cit., p. 22 passim; GRENZ, Stanley.Pós-Modernismo, op. cit., p. 17; SIEPIERSKI, P., Teologia e Pós-Modernidade, Teologia SobLimite. p. 145; TRASFERETTI, José & GONÇALVES, Paulo S. L. (org.), Teologia na Pós-Modernidade, op. cit., p. 165.

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Com base nesta subdivisão, os tempos atuais serão compreendidos diante do

seguinte programa: primeiro, a formação da modernidade e a gestação da

sociedade pós-moderna. Serão enfocadas, no período moderno e pós-moderno, a

sociedade e a cultura, a economia (basicamente as teorias econômicas

prevalecentes), será feita uma leitura antropológica (enfocando a cosmovisão), e a

religiosidade (focalizando seus aspectos salvíficos e suas derivantes).11

O objetivo final é ter uma perspectiva breve, mas profunda da cultura (numa

dimensão culturalista) moderna e pós-moderna, fornecendo bases para a análise

do foco central da tese e a possibilidade de esta servir os tempos atuais com uma

contribuição significativa, relevante e fomentadora de mudanças a partir do

interior da própria cultura, pela via de uma presença eclesiástica geradora de uma

verdadeira e saudável consciência moral, com todas as suas implicações práticas

decorrentes.

1.1.1Uma Definição da Modernidade

O termo “moderno” tem uma história bem antiga. No entanto, o que Habermas

chama de “projeto da modernidade” consolidou-se somente durante o século XVIII.

Esse projeto equivalia a um extraordinário esforço intelectual dos pensadores

iluministas para desenvolver, universalmente, a ciência objetiva, a moralidade, a lei e a

arte autônoma. Em outras palavras, a modernidade nasceu como conseqüência natural

da inserção do Iluminismo na sociedade. Em seu discurso, apresentava-se como rival e

sucessora do Cristianismo.12

Os Guinnes traz uma definição interessante sobre a modernidade:

11 Como dissemos na introdução, por falta de espaço, não falaremos sobre a sociedade pré-moderna como pano de fundo à sociedade moderna, inclusive porque há ampla bibliografiadisponível sobre o tema. Somente à guisa de pano de fundo, quando pensamos numa sociedademedieval, ou pré-moderna, é necessário constatar que a família era a base da organização social,que havia uma economia de subsistência firmada na agricultura feudal e que a concentraçãopopulacional habitava nas zonas rurais. A família patriarcal era o foco das relações sociais, sendoos vínculos familiares - o grau de parentesco - as grandes pontes sociais, interligando os indivíduose organizando-os em uma sociedade homogênea.12 Gouvêa afirma que “o iluminismo do século XVIII representou o estabelecimento definitivo doneopaganismo como ideal intelectual por excelência da modernidade”. GOUVÊA, RicardoQuadros. Novos Tempos Velhas Crenças: Crítica do Neo-Paganismo sob uma Ótica Cristã emFIDES REFORMATA 3/1 (Janeiro/junho 1998), p. 7.

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Modernidade é uma terminologia que define umsistema oriundo das forças da modernização edesenvolvimento, centrado, sobretudo na premissa quetoda causa de cima para baixo vinda de Deus ou dosobrenatural foi substituída definitivamente por causasde baixo para cima, frutos dos desígnios e produtividadehumana.13

O historiador alemão Wilhelm Oncken (1838-1905) ressalta o seguinte:

A passagem da Idade Média para a Moderna serealiza de modo tão paulatino e imperceptível que não sepode fixar exatamente este período da história, menosainda assinalar um fato determinado como pontodivisório entre as duas idades.14

As mudanças começam a surgir principalmente a partir do século XIV,

concentrando-se na forma de pensar e de agir da sociedade medieval. Plínio

Corrêa de Oliveira, pensador católico, diz:

No século XIV começa a observar-se na Europacristã, uma transformação de mentalidade que ao longodo século XV cresce cada vez mais em nitidez. (...). Estenovo estado de alma continha um desejo possante, sebem que mais ou menos inconfessado, de uma ordem decoisas fundamentalmente diversa da que chegara a seuapogeu nos séculos XII e XIII.15

Podemos afirmar ainda que no centro da sociedade medieval estivesse a

religião, que atendia à demanda de explicar e legitimar as necessidades e

condições desta sociedade. Sem dúvida alguma que o grande elemento

mobilizador e agregador no período da Idade Média foi a Igreja. Na verdade, o

mundo era visto a partir das lentes da Igreja.

13 GUINNES, Os & SEEL, John. No God but God. Chicago: Moody Press,. 1992. p. 160. OsGuinness é um escritor autônomo. PhD. em teologia pela Universidade de Oxford, Inglaterra.Nasceu na China, onde seus pais eram missionários, e trabalhou durante vários anos junto com odoutor Francis Schaeffer no "L'Abri Fellowship" na Suíça.14 ONCKEN, Wilhelm. Vol. XVIII, p. 483. Citado por VIOTTI, Frederico Romanini deAbranches. Origem e fundamento da Mística Pós-moderna. Parte II, cap. 2. Cf. JUNG, MoSung. Teologia & Economia. Repensando a teologia da libertação e utopias. Petrópolis: Vozes,1995. WEBER, Max. Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura Econômica. 1984. p. 306.GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991. p. 103.COSTA, H. M. Pereira. Raízes da Teologia Contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.15 OLIVEIRA, Plínio Corrêa de. Revolução e Contra-Revolução. Parte I, cap. 3, 5, A-B. Vertambém: LINDSAY, Tomas M.. La Reforma y Su Desarrollo Social. Barcelona: CLIE. (s.d.).HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. pp. 19- 51.

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26

Na verdade, ela oferecia uma salvação meramente escatológica, expressando

um amor aos seus fiéis apenas declarativo, exercendo assim, o domínio sobre

todos através de certas práticas completamente contrárias à Palavra de Deus.16

Paul Tillich observou que durante a Idade Média tornou-se evidente um

grave sentimento de vazio moral, uma forte consciência de culpa, que conduzia,

de alguma forma, os fiéis a buscarem a salvação tão proclamada e sonhada, mas

nunca obtida, concretiva em sua experiência de fé.17

As palavras do pensador Rubem Alves são esclarecedoras:

[...] a Idade Média tinha uma magnífica visão douniverso. Seres que se organizavam estruturalmente,numa hierarquia que subia do mais baixo nível, emprateleiras espaciais de densidades ontológicas cada vezmaior, num crescendo constante, até o ápice doUniverso, onde todas as contradições, todaintranqüilidade histórica, toda transitoriedade do tempose resolviam e consumavam no Summum Bonum.18

Podemos finalizar essa ponte de passagem para a modernidade citando as

palavras de Milton Greco:

O paradigma medieval é um castelo de certezasalicerçadas na fé em Deus e na Igreja. O mundo visível éliteralmente subordinado ao invisível onde semanifestam, de forma absoluta, os desígnios do Criador,apenas perceptíveis aos intérpretes autorizados da terra[...].19

16 HAGGLUND, Bengt. História da Teologia. Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia, 1973,p. 136. Ver BURKE, Peter. História Social da Linguagem. p. 30. Cf. GOFF, Jacques Le.Mercadores e Banqueiros da Idade Média, 1991. p. 78 passim. Cf. DELUMEAU, Jean. AConfissão e o Perdão. As dificuldades da Confissão nos Séculos XIII a XVIII. São Paulo:Companhia das Letras, 1991. p. 21.17 TILLICH, Paul. A Coragem de Ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. pp. 44,45.18 ALVES Rubens. Deus morreu! Viva Deus. In: Vários, Liberdade e Fé. Tempo e Presença,1972. p. 19.19 GRECO, Milton. Os paradigmas fundamentados na certeza, em: MEDINA, Cremilda (org.),A crise dos paradigmas: Anais do 1o Seminário transdisciplinar. São Paulo: ECA/USP, 1991. p.164. Vide também CAPRA, Frijof. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e a culturaemergente. São Paulo: Cultrix, 1988. pp. 49-56.

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Segundo Peter Drucker, a sociedade sofre, de tempos em tempos, mudanças

em sua estrutura social, política, religiosa, suas artes, suas instituições, tendo que

se reorganizar a fim de adequar-se a nova visão de mundo. 20 Ora, é a partir desse

processo que nasce uma mudança de época, um mundo novo, uma nova

sociedade, ainda que trazendo elementos ou marcas de tradição anterior.

Portanto, a modernidade produziu uma sociedade edênica que sucede à

sociedade medieval e à sociedade de transição (pré-moderna). Tudo impulsionado

pela confiança na ciência, tecnologia e no progresso, fruto do primado da razão,

desembocando em um antropocentrismo. A partir dessa mudança paradigmática,

do ponto de vista teológico, por exemplo, o ser humano passou a ser o agente

central – ativo - de promoção de sua salvação e Deus tornou-se agente passivo em

todo esse processo.21 O teólogo Andrés Torres Queiruga afirma que “a

modernidade não é um bloco monolítico, senão um processo por demais

complexo em que intervêm muitos elementos. E, obviamente, nem tudo o que nela

aconteceu ou acontece é verdadeiro ou aceitável”.22

O fenômeno da modernidade não pode ser visto apenas como expressão

daquilo que é positivo e otimista. Podemos ainda afirmar que a tarefa de criticar a

modernidade não é função só da teologia, mas de todo pensamento vivo e

libertador.23 É preciso olhá-lo também a partir dos seus limites e contradições do

progresso prometido, principalmente a iniludível contabilidade das “vítimas”

sacrificadas em prol da proposta de trazer o “céu” a terra. 24

Para compreender, portanto, a modernidade, é preciso entender que esta

nasceu nos escombros da Idade Média. O nome “modernidade” é a menção dada a

uma série de transformações ocorridas a partir da decadência do status quo

medieval.25 Sabemos que nenhuma época tem condições de compreender seus

sentidos definitivos, embora possa definir alguns de seus desafios.

20 DRUCKER, Peter. Sociedade Pós-Capitalista. São Paulo: Pioneira Editora, 1993. p. 78.21 QUEIRUGA, Andrés Torres, p. 17.22 Ibidem, pp. 21-22.23 Ibidem, p. 22. O mesmo autor cita a grande obra A dialética do Iluminismo, para mostrar talverdade. Por outro lado basta que olhemos a questão da pós-modernidade para constatarmos aafirmação de Queiruga.24 DIAS, João S. Clá (org). Como Ruiu a Cristandade Medieval. São Paulo: Edições Brasil deAmanhã, 1993. p. 12.25 VEITH JR., Gene Edward. p. 22 passim.

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Na verdade, houve uma grande mudança de mentalidade, que se deu, em

grande parte, pela degradação moral da Igreja. Senão vejamos esta afirmação:

O mau exemplo que irradiava do Papado frutificava emtodos os escalões da hierarquia [...]. Conduziam-se os papas doperíodo como príncipes italianos, cuidando de aumentar seusterritórios e com eles sua influência, enriquecer a família edotar os sobrinhos [...]. Bispos e abades dos monastériosdeviam seus cargos, pelo comum, às boas graças dos príncipes,ou à corrupção [...]. A distribuição das rendas eclesiásticas nãoera proporcional: o baixo clero, privado de instrução e direção,apertava-se nas fímbrias da classe trabalhadora, conhecendo-lheas privações, partilhando-lhe o embrutecimento. A crise nãoestava apenas nos costumes. Complicara-se o culto deinfindáveis práticas vazias, meramente rituais e exteriores.26

Sem dúvida alguma que o movimento renascentista foi uma forte e

contundente reação à Idade Média, desfazendo assim, com muitos dos seus

pressupostos. O centro do surgimento do Renascimento é a Itália.27 O biógrafo de

Calvino, Teodoro Beza, faz a seguinte afirmação sobre a passagem da Idade

Média para o Movimento Renascentista:

26 SANTOS, Pedro Ivo dos. Renascimento, Reforma e Guerra dos Trinta Anos. Rio de Janeiro.JCM, s/d, p. 72.27 O teólogo Hermisten Maia Pereira da Costa, em sua obra Raízes da Teologia Contemporânea,abre uma excelente nota de rodapé, falando assim do surgimento da Renascença, que diz oseguinte: “A Itália é, a um só tempo, o berço do Renascimento e do Capitalismo moderno”(Fernando S. Lima. Renascimento: In: William Benton, org. Enciclopédia Barsa. Rio deJaneiro/São Paulo. Encyclopaedia Britannica Editores. Vol. 12. 1967, p. 4. Vejam-se também:Alfred Weber. História Sociológica da Cultura. p. 341ss; Leo Huberman. História da Riquezado Homem. p. 35; Henri Pirenne. História Econômica e Social da Idade Média. 6a Ed. SãoPaulo. Mestre Jou. 1982. pp. 160ss; Peter Burke. O Renascimento Italiano: cultura e sociedadena Itália. p. 9; Victor Civita (org.). História das Civilizações. São Paulo: Abril Cultural. Vol. III.1973. p. 59; A. J. Saraiva. História da Cultura em Portugal. Vol. I. p. 26; Paul Johnson.História dos Judeus. Rio de Janeiro: 2a Edição. Imago Editora, 1989. p. 246; T. M. Lindsay. LaReforma em su Contexto Histórico. p. 62; Ernst Bloch. Entremundos en la Historia de laFilosofia. p. 150; H. R. Trevor-Roper. Religião, Reforma e Transformação Social. Lisboa:Editorial Presença/Martins Fontes. 1981, p. 15 passim. “O conceito de que o capitalismo industrialem grande escala era ideologicamente impossível antes da Reforma é destruído pelo simples fatode que já existia.” H. R. Trevor-Roper. Ibidem, p. 27. Ibidem, pp. 44-45.

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A barbárie tinha sepultado completamente oconhecimento das línguas em que estão escritos ossegredos de Deus e era preciso ou que Deus, lá do alto,enviasse o dom de línguas aos homens por meiosmiraculosos, como fez no princípio da Igreja primitivasobre os Apóstolos, ou então que, usando os meiosordinários de aprendizagem de línguas, nos conduzisse apoder ler no original o letreiro que puseram na cruzsobre a cabeça do Senhor; e, além disso, os estudos deciências liberais despertaram espíritos que antes dissoestavam profundamente adormecidos.28

O Humanismo renascentista tinha por meta “a educação do Homem de

acordo com a verdadeira forma humana, com o seu autêntico ser”.29 Podemos

afirmar que o Humanismo era o lado filosófico do Renascimento. O Humanismo

Renascentista procura resgatar as fontes clássicas. “O Renascimento quis voltar às

fontes do pensamento e da beleza”.30 Sendo assim, de origem italiana, a

Renascença, segundo afirma Stanley J. Grenz,

[...] é uma palavra francesa cujo significado é“renascimento” ou “reavivamento”, e designa umperíodo histórico que foi, em certo sentido, ambas ascoisas: houve um renascimento do espírito clássicoexemplificado nas antigas civilizações grega e romana,mas houve também um reavivamento no aprendizadodepois da assim chamada “idade das trevas”.31

O grande Otto Maria Carpeaux em sua História da Literatura Ocidental tem

perfeita consciência das dificuldades de se estabelecer marcos precisos e absolutos

para os períodos históricos. Mais que isto, Carpeaux aponta para o fato decisivo

de que em cada época histórica, cada sociedade cria suas próprias referências e

fundamentos, isto é, que o discurso historiográfico é sempre o resultado de uma

motivação sociopolítico-cultural.

28 BEZA, Théodore. Histoire Ecclésiastique des Églises Réfomées du Royaume de France.(1580). Apud Jean Delumeau. A Civilização do Renascimento. Vol. I, op. cit., p. 98.29 JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes.1989.p. 10. Cf. NUNES, Ruy Afonso da C. História da Educação no Renascimento. São Paulo:EPU/EDUSO, 1980. p. 29.30 DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento, op. cit., p. 85.31 GRENZ, Stanley J., p. 94. Ver também WÖLFFLIN, H. Conceitos Fundamentais da Históriada Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 12.

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30

Carpeaux, em página notável, discute a gênese da modernidade e as variadas

respostas que, ao longo do tempo, foram dadas ao tema. Ele afirma:

Já na exposição de Burckhardt aparece, comoprimeiro homem moderno, Francesco Petrarca, quenasceu em 1304: e começaram a celebrar, como pai daarte moderna, o grande Giotto, que nasceu em 1267, doisanos depois de Dante. Pouco faltou para o próprio Dante,considerado então como o maior espírito da IdadeMédia, ser nomeado instaurador da Renascença.32

Veja-se, então, o humanismo como momento decisivo da emergência da

modernidade. Com o avançar do século XV, e no XVI, esta centralidade do

humano, que se apresentou inicialmente no campo artístico, consolida-se e se

expande, ou seja, a descoberta das leis da perspectiva permite a definitiva fixação

do corpo e da natureza em suas reais proporções.

Assim, a pesquisa biomédica – as dissecações – permite que se passe a

conhecer tanto a anatomia, quanto a fisiologia humanas.33

Contudo, não se veja a emergência da modernidade como processo abrupto e

unívoco. Neste sentido existem renascenças medievais, e nestas a arte é o veículo

de difusão da ideologia nascente.34

32 CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Universal. Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro,1963, Vol. I. p. 164.33 ELIADE, Mircea. Nacimiento y Renacimiento: El significado de la iniciación en la culturahumana. Traducción del inglés de Miguel Portillo. Barcelona: Editorial Kairós, 2001. p. 50. Cf.:SCHAFER, Alphons, "Zur Initiation in Wagi-Tal", Anthropos, XXXIII (1938), 421 y ss.34 As manifestações artísticas da renascença aglutinam as formas de expressão artística aosconceitos filosóficos. Conforme diz Panofsky: "Assim fazendo, ligamos os motivos artísticos e ascombinações de motivos artísticos (composições) com assuntos e conceitos. [...] De fato, aofalarmos do 'tema em oposição à forma', referimo-nos, principalmente, à esfera dos temassecundários ou convencionais, ou seja, ao mundo dos assuntos específicos ou conceitosmanifestados em imagens, estórias e alegorias em oposição ao campo dos temas primários ounaturais manifestados nos motivos artísticos". (PANOFSKY, Erwin. Significado das artesvisuais. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1991. pp. 50-51).

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31

Portanto, a transição da medievalidade para a modernidade se deu

basicamente de forma intrínseca às limitações desta configuração social. Um

movimento de transição, o Renascimento, foi financiado pelas duas estruturas

mais importantes do período: o clero e a nobreza.35 A expressão renascentista era

artística, mas cultivava em suas bases um triplo aspecto: a revalorização do ser

humano, a revalorização da natureza e o retorno às fontes clássicas.36 Estes três

aspectos são o gérmen de uma transformação social que alcançará os pilares do

sistema medieval: a religião como resposta última e exclusiva, a natureza como

elemento diminuto e subserviente diante da divindade, e a valorização exclusiva

de bens agrícolas sem qualquer tipo de manufatura.37

Delumeau destaca que nesse período surgiram as grandes escolas, algumas

que procuravam fornecer a melhor cultura possível,38 ensinando, inclusive, três

idiomas, que, segundo Herminsten visava a “formar o homo trilinguis”.39

Outro aspecto fundamental para o movimento Renascentista foi o

surgimento da imprensa. Havia uma avidez pelo conhecimento e a imprensa veio

atender tal demanda. Mais tarde ela seria grande instrumento na mão dos

reformadores, como veículo de difusão das idéias reformadas.40 Calcula-se que

num curto período de tempo, cerca de 50 anos após a descoberta da imprensa,

mais de 30 mil edições foram produzidas na Europa, com mais de 15 milhões de

exemplares.

35 WATT, Ian. Mitos do Individualismo Moderno. (Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, RobinsonCrusoe).Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. pp. 176-253.36 FERNANDES, Florestan. Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica. São Paulo:Companhia Editora Nacional, 1959; especialmente Parte I: “A Reconstrução da Realidade nasCiências Sociais”.37 BERMAN, M. Tudo Que é Sólido Desmancha no Ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.p. 15.38 DELUMEAU, Jean, p. 97.39 COSTA, Hermisten Maia Pereira, p. 52.40 Ibidem, p. 53. Cf. Lucien Febvre & Henry-Jean Martin. O Aparecimento do Livro. São Paulo:Hucitec, 1992. pp. 273,374; Victor Straus. In: Encyclopaedia Britannica. Vol. 18, 1973, p. 542;Hipólito Escolar. História del Livro. 2a edição corregida y ampliada. Salamanca/Madrid.Fundación Germán Sánchez Ruipérez/Pirámide, 1988, p. 364; W. Stanford Reid. A Propagaçãodo Calvinismo no Século 16: In: W. S. Reid (org.). Calvino e Sua Influência no MundoOcidental. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990. p. 39; Jacques Verger. Homens e Saberna Idade Média. São Paulo: Ed. Universidade do Sagrado Coração, 1999. p. 124.

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32

Nascia nesse período uma nova cosmovisão, na qual o homem passava a ser

o centro das atenções intelectuais e artísticas. Segundo lemos na História das

Sociedades,

O rígido teocentrismo medieval que centrava suasatenções na relação Deus-homem, foi substituído pelaglorificação do Humano, pela preocupação da relaçãohomem-natureza.41

Após a Renascença, a gestação da modernidade foi longa. Portanto, a

modernidade surgiu em suas expressões: o humanismo, a Reforma Protestante, o

advento do racionalismo e a progressão deste,42 o fortalecimento dos Estados

Nacionais,43 o advento do liberalismo econômico e o colonialismo.44 Mas seu

alvorecer se deu no Iluminismo, após a Guerra dos Trinta Anos. A modernidade

constitui-se, por isto, como uma sociedade influenciada pelas idéias iluministas.45

A modernidade é fortemente marcada pelas descontinuidades em suas

instituições sociais, culturais e com o modus vivendi medieval. O que está por trás

desse processo de descontinuidade é o dinamismo da modernidade. A velocidade

da modernidade afeta diretamente práticas socioculturais e comportamentos pré-

existentes.46

41 AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das sociedades: das sociedades modernas àssociedades atuais. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, (1989?). p. 78.42 DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.Rio de Janeiro: Rocco, 1985. p. 39.43 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política. Rio deJaneiro. Paz e Terra, 1985. p. 35: Ele afirma: “Desta acepção do Estado Nacional, porém, pode-setambém dar uma conotação axiologicamente negativa, desde que nos coloquemos do ponto devista do Estado e consideremos os fermentos de renovação de que é portadora a sociedade civilcomo germes de desagregação.”44 RUSSO, Jane A. Indivíduo e transcendência: algumas reflexões sobre as modernas religiõesdo eu. Revista Paulista de Psicologia e Educação, v. 3, n. 1-2, pp. 9-33, 1997-b. p.19.45 GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., p. 60.46 Quando verificamos o dinamismo da modernidade, podemos sugerir a leitura da obraModernidade e Identidade, de Anthony Giddens. Ele fala sobre três elementos que explicam oumarcam a modernidade. O primeiro ele chama de separação de tempo e espaço. O segundoelemento ele chama de desencaixe das instituições sociais. Na verdade, trata-se de uma metáforapara exprimir o movimento chamado de deslocamento. O último elemento é chamado por ele dereflexidade, sendo uma das maiores influências sobre o dinamismo das instituições modernas - p.21 passim - Cf. em As Conseqüências da Modernidade, do mesmo autor, p. 83 passim.

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33

Esta nova ordem apresenta quatro dimensões que são consideradas aqui: a

dimensão sociocultural, a dimensão econômica, a dimensão antropológica e a

dimensão religiosa.

1.1.2Dimensão Sociocultural

Definir o termo “cultura”, para traçar aspectos constitutivos e característicos

da cultura contemporânea é uma tarefa que deve levar em consideração a falta de

uniformidade de cada cultura em particular e das culturas quando confrontadas, o

que conduz a necessidade de uma base teórica para a análise da pós-modernidade.

A palavra cultura, de origem latina, deriva-se do verbo colere, que significa

cultivar, sugerindo assim uma idéia de cultivo, do processo de lavrar e

desenvolver a terra.47 De uma forma mais geral e abrangente, a cultura é entendida

como um conjunto de valores e leis que regem o comportamento humano,

possibilitando diferenciar as pessoas que possuem diferentes estilos de vida.

Diferentemente a esta, outra abordagem, um tanto mais filosófica, surge a

partir do século XVIII com a noção de oposição entre Natureza e Cultura, onde a

segunda passa a ser entendida como o mundo das produções de caráter artístico,

intelectual e religioso, aproximando-se do conceito mais genérico de civilização,

enquanto que a primeira é entendida como uma coisa operante e mecânica que

atua exercendo seu poder em vista de leis necessárias de causa e efeito.48

47 O primeiro, porém, a relacionar o termo ao cultivo de habilidades, qualidades e possibilidadesda alma humana é Cícero (Cf. CÍCERO. Tusculanae disputationes. p. 8, 11-13 passim).48 SANTOS, José Luiz. O que é Cultura? São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 43.

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O fato de não ser possível assumir tal definição é devido ao seu

etnocentrismo, seu sentido elitista ou absolutista, baseada na dicotomia cartesiana

e serva da concepção da época da inferioridade dos povos das colônias. Os

iluministas conceituaram cultura com o saber racional. Já os românticos,

ampliaram o seu conceito, afirmando que a cultura tem relação não só com o saber

racional, mas também mitológico, artístico etc. Hegel trabalhou o conceito de

objetividade e subjetividade à cultura.49 Nesse período, a antropologia cultural

conceituou cultura como uma dinâmica sociohistórica.50 O fulcro da conceituação

cultural abrange:

O desenvolvimento das capacidades do sujeitohumano, seu mundo de crenças e de valores, suas leis,suas simbologias, todo o saber acumulado nasbibliotecas e na memória viva do grupo social, os modosde produção vigentes e os produtos materiais elaboradospelo grupo.51

Representando a concepção cristã, o Concílio Vaticano II definiu cultura da

seguinte forma na encíclica Gaudium et Spes:

Pela palavra cultura, em sentido geral, indicam-setodas as coisas com as quais o homem aperfeiçoa edesenvolve as variadas qualidades da alma e do corpo;procura submeter o seu poder pelo conhecimento e pelotrabalho o próprio orbe terrestre; torna a vida social maishumana, tanto na família como na comunidade civil,pelo progresso dos costumes e das instituições: enfim,exprime, comunica e conserva, em suas obras, nodecurso dos tempos, as grandes experiências espirituais eas aspirações, para que sirvam ao proveito de muitos eainda de todo o gênero humano.52

49 PAREDES, Juan Antonio, op. cit., p. 72.50 O principal teórico culturalista, Clifford Gertz, afirma ser a cultura: “[...] um padrão designificados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepçõesherdadas e expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens se comunicam,perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida” (Cf. GEERTZ,Clifford. A Interpretação das Culturas, 1989. p. 103).51 PAREDES, Juan Antonio, op. cit., p. 73.52 GS 53.

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35

Segundo Batista Mondin há três aspectos numa cultura, ou seja, podemos

analisá-la do ponto de vista de sua origem, de sua forma e de sua finalidade.53

Partindo de sua origem,

A cultura é realização humana (a humanachivement). Distinguimo-la da natureza observando ostraços de intencionalidade e do esforço humanos. Assim,por exemplo, um rio é natureza, já um canal é cultural[...], a cultura é obra da mente e das mãos dos homens.54

Ao contrário do mundo medieval, bem como no mundo renascentista e

romântico, onde o eixo central era a natureza e o homem ficou como seu

apêndice, no mundo racionalista ou idealista o eixo central está no homem e não

na natureza. Dele, portanto, emerge a cultura moderna. Entretanto, ela não é

resultado apenas de indivíduos, mas de grupos. Sendo assim, traz em si a marca de

ser social. O próprio Niebuhr diz que “a cultura é hereditariedade social que o

homem recebe e transmite. Tudo o que é puramente privado não faz parte da

cultura”.55 Ela não é mecânica, exige esforço e construção.

Olhando a partir de sua forma, a cultura é múltipla, dinâmica e,

essencialmente, criativa e sensível. Ela está em constante mudança, pois segue os

caminhos do ser humano, enquanto ser social. Há uma dimensão de

multiformidade da cultura. Já do ponto de vista de sua finalidade, encontramos

várias posições: sua finalidade é religiosa, humanista, naturalista. Podemos, no

entanto, afirmar que não há contradição entre estes aspectos de sua finalidade.

Eles podem estar perfeitamente em harmonia entre si.56 Em outras palavras, a

cultura moderna e pós-moderna transformou toda compreensão medieval e

tradicional de espaço. O espaço agora é construído. No lugar do espaço sagrado,

ele é secularizado ou ressacralizado, numa dimensão privatizada.

53 MONDIN, Batista. O Homem, quem é ele? Elementos de Antropologia filosófica. São Paulo:Paulus, p.179.54 NIEBUHR, H. R. Christ and Culture. Nova York, 1956. p. 33.55 Ibidem, p. 33.56 Podemos citar o H. R. Niebuhr como um dos defensores dessa posição.

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36

Esta fragmentação afeta diretamente o lugar ocupado pelo cristianismo. Ele

é deslocado do centro para o lado e somente ao lado de outros setores, e não mais

acima deles capaz de oferecer sentido. Ou, nas palavras do Prof. França Miranda,

Com a emancipação dos vários setores da cultura eda sociedade (política, ciência, economia, arte, etc.)fragmenta-se o universo simbólico unitário do passadode cunho eminentemente cristão. Os diversos setoressocioculturais tornam-se autônomos, gozando deinteligibilidade e normatividade próprias e apresentandocada um deles sua interpretação da realidade, seuuniverso simbólico respectivo, simplesmente ignorandoou prescindindo dos princípios cristãos.57

No universo heliocêntrico, o homem começa a desenvolver sua percepção de

que o espaço lhe é algo externo, separado de sua realidade objetiva. Significa dizer que

o homem pode manipulá-lo, dominá-lo, através do seu conhecimento racional, livre

agora das amarras prescritas pela divindade. Kuhn elucida esta mudança paradigmática

ao afirmar que,

A civilização ocidental contemporânea é maisdependente, tanto no que se refere à filosofia do dia-a-diacomo ao pão que comemos, de conceitos científicos do quequalquer civilização passada [...]. Devemos tambémcompreender como a solução dada por um cientista a umproblema altamente técnico e aparentemente insignificantepode, em dada altura, alterar fundamentalmente as atitudesdos homens para com os problemas básicos da vida diária.58

Com a “divinização” do homem e do racionalismo, ficou este período

registrado na história como a “Idade da razão”. Na verdade, o Iluminismo pode

ser visto como a essência da modernidade. É interessante percebermos dois

movimentos: durante a Renascença o homem lançou um olhar para o passado, já

no Iluminismo ele projetou seu olhar para o futuro, para o período das luzes, para

a era de ouro, para o progresso, para o desenvolvimento, todos ideais da sociedade

moderna.

57 Cf. MIRANDA, Mário França, op. cit., p. 11.58 KUHN, Thomas. A revolução copernicana. Lisboa / Rio de Janeiro: Edições 70, 1990. pp. 21-23.

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37

O resultado não poderia ser outro senão um esvaziamento do sentido

religioso, pois na linguagem de Libânio, a modernidade destronou a religião.59

Uma vez que a religião “é a força integradora das relações humanas, o Iluminismo

afetou todos os sistemas simbólicos religiosos, fundamentais como marco de

sentido à vida em todas as suas dimensões”.60 Em outra linguagem, o Iluminismo

na sua forma mais racionalista, veio a significar “a tentativa de julgar tudo à luz

da razão”.61

A modernidade tendo como pano de fundo o projeto científico, este por sua

vez vai assumir a razão e a experiência humanas como mediadoras de definição

entre a verdade e o erro. Ou seja, “a valorização da razão toma de início a forma

de valorização da ciência e, bem mais à frente, de valorização da tecnologia, como

seu produto”.62 A aliança entre razão e a experiência resultou na conclusão de que

a cultura tornou-se científica e depois tecnológica.

1.1.3Dimensão Econômica

Tendo o progresso técnico-científico fincado definitivamente suas raízes na

cultura moderna, os laços com a sociedade tradicional - pré-moderna – foram

desfeitos, tendo a economia seu papel fundamental. Portanto, há claramente na

modernidade uma hegemonia da economia que, com a fragmentação dos variados

setores que formavam a sociedade, cada um torna-se fonte de sentido para o

homem. Em meio a essa pluralidade moderna, o homem vai buscar sentido no

poder econômico, pois é o setor que mais se destaca. Não poderia ser diferente,

uma vez que a sociedade, em suas mais diversas dimensões, vai estruturar-se a

partir do econômico.

59 LIBANIO, João Batista. A Religião no Inicio do Milênio. p. 123.60 Ibidem.61 BROWN, Colin. Filosofia & Fé Cristã. São Paulo. Ed. Vida Nova, 1999. p. 37.62 ZAJDSZNAJDER, Luciano, op. cit., p. 32.

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38

Uma das grandes características da influência do econômico é a sua

capacidade de produção, não mais artesanalmente, mas industrializadamente,

resultado da invenção da máquina. A revolução industrial tem, então, seu início.

Essa produção de massa gera consumo em massa.63 Com isso, os preços de tais

produtos caem e, conseqüentemente, começa a surgir um grande mercado de

consumo. Ou seja, todo processo de repetição do mundo medieval é deixado para

trás na medida em que a descoberta da ciência experimental torna-se uma

realidade, decorrendo daí que,

O método e o conhecimento experimentalmedeiam o aparecimento de uma nova visão de mundo ede homem. O mundo não é mais para ser contemplado eimitado (mundo antigo e medieval), mas para serenfrentado e dominado pelo homem com o instrumentalpropiciado pela ciência experimental. O homem, comsua racionalidade matemática, constrói o mundo e otransforma com sua racionalidade técnica. O homemdesprende-se do mundo, destaca-se nitidamente dele. Ecom sua racionalidade o enfrenta, domina e transforma,em proveito próprio.64

Segundo Jung Mo Sung, “o mercado deixou de ser um lugar de troca de

excedentes para se tornar o fim de toda produção e o articulador da nova

organização social”.65 Há uma completa e radical mudança na concepção

sociopolítico-religiosa, ou seja, a economia de mercado faz com que o poder

acompanhe a riqueza, não mais o contrário. Seguindo esse novo paradigma, o

mercado é deificado, nascendo, assim, a idolatria do mercado. Os indivíduos

perderam seu valor enquanto pessoas, tornando-se meros instrumentos de

produção, trazendo conseqüências lastimáveis às famílias, pois deixam de ser o

fundamento da sociedade. Weber chega a dizer que

63 Apenas como exemplo, podemos citar o fordismo, quando Henri Ford percebe a necessidade domercado e passa produzir seus carros em escala de produção, em 1914, nos EUA, para atender aum mercado consumidor. Nessa linha de pensamento a mídia de massa busca uma verdadeira eprofunda aliança com a indústria a fim de gerar nas pessoas a necessidade de consumir. Para maioraprofundamento desta questão. (Cf. HARVEY, David, op. cit., p. 115 passim).64 RUBIO, Garcia Afonsio, op. cit., p. 20.65 Ibidem, op. cit., p. 160.

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[...] a comunidade de mercado, enquanto tal, é arelação prática de vida mais impessoal na qual oshomens podem entrar [...]. Porque é especificamenteobjetivo, orientado exclusivamente pelo interesse nosbens de troca.66

Livre da influência religiosa, a sociedade econômica torna-se secularizada e,

portanto, sem qualquer valor ético sustentável, fruto de uma legitimação política

de “baixo para cima”, e não “de cima para baixo”.67 Nas palavras de Jung Mo

Sung, “a burguesia legitima ideologicamente a nova sociedade em nome do

progresso que realizaria a emancipação humana, a utopia moderna”.68 Nasce a

chamada “ética do mercado” que legitima os novos anseios e os meios utilizados

para concretização desses.69 É a ética do progresso e do lucro, onde os meios

justificam os fins, ainda que em detrimento da justiça social. Impõe-se um novo

desafio, uma nova ética que seja capaz de responder a tais problemas.

Para conhecermos a natureza de uma ética, basta verificarmos o conceito

que esta tem do ser humano. Significa dizer, então, que a ética de mercado vê o

ser humano vocacionado para o mercado. Trata-se de uma antropologia onde o

homem é altamente competitivo, buscando primeiro os seus interesses, de forma

egocêntrica. Sua natureza está voltada para o econômico. Jung Mo Sung diz que,

A natureza colocou o gênero humano sob odomínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer.Somente a eles compete apontar o que devemos fazer,bem como determinar o que na realidade faremos [...].Todos os atos humanos passam a ser vistos comoconseqüências de decisões calculadas, racionais, nasquais os indivíduos agem de modo muito parecido comum contador, ponderando todos os lucros (prazer) aserem obtidos com determinados atos, deduzindo todosos custos (dor) a serem causados por estes atos e, depois,escolhendo racionalmente o ato que maximizasse oexcesso de prazer sobre a dor.70

66 WEBER, Max. Economia y sociedad. México, Fondo de Cultura Económica, 1984. p. 306.67 SUNG, Jung Mo, op. cit., p. 172.68 Ibidem., p. 173.69 Quanto à relação ética, produção e riqueza, cf. FONSECA, Eduardo Gianeti. Vícios PrivadosBenefícios Públicos? A Ética na Riqueza das Nações. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.70 SUNG, Jung Mo, op. cit., p. 178.

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1.1.4Dimensão Antropológica

A modernidade é essencialmente caracterizada pela revolução na concepção

do próprio homem.71 Já não é mais a sociedade que outorga sentido ao homem,

mas este é que se afirma diante da coletividade. Ele quer marcar a todo custo sua

autonomia, sua independência, evitando qualquer tipo de interferência que lhe

venha de fora. O homem moderno é o sujeito da história. Ou seja, há uma clara

rejeição de toda heteronomia.72

Na verdade, o homem é a referência primeira e última de todas as suas

próprias decisões. Ele passa a ser a medida de todas as coisas. Juan Luis Segundo

afirma que “tudo na Idade Moderna pode resumir-se em uma ruptura com o

conceito medieval de homem”.73 Definitivamente a concretização dos sonhos

humanos vai habitar a geografia do progresso tecnológico.

Segundo o antropólogo francês Claude Reviére

Pertencer a uma cultura estudada não é nem umadesvantagem nem uma necessidade para o antropólogo,o importante é possuir a bagagem teórica e metodológicaque lhe permita uma distanciação científica [...].74

71 Na era moderna encontramos, segundo o filósofo Juvenal Arduini, fatores que colaboraram, dealguma forma, para o antropocentrismo: “Descartes acentuou a autonomia racional ao instaurar o‘Cogito’ como ponto de partida metodológico [...]; Kant instala o antropocentrismoepistemológico, ao situar o homem como um constituinte do conhecimento. Nietzsche busca aprimazia da vida sobre a ‘moral’, e projeta a vontade de poder encarnada no super-homem [...];Darwin formula a originalização autônoma do homem, através do evolucionismo proposto em‘Origem das Espécies” [...]; Freud, Adler, Jung e outros patenteiam o imenso e intricadodinamismo do inconsciente [...]. O marxismo suscitou a autonomia histórica do homem com osignificado transformador do trabalho [...], e para que o homem pudesse reapropriar-se de suaessência, Marx reivindicou o cancelamento da religião que ele entendia como alienante eespoliativa do ser humano. O existencialismo vinha desocultar e densificar as condições concretasda existência do homem, situado no mundo entre os limites do tempo e a pulsão da liberdade [...];o estruturalismo procurou apreender o movimento do homem dentro de um sistema derepresentações, que o envolviam como estrutura consciente ou inconsciente, como mediação nacaptura da realidade, a qual facilmente se dissolve na teia do discurso”. Cf. Juvenal Arduini.Destinação Antropológica. São Paulo: Paulinas. 1989. pp. 10,11. Ver HOEKEMA, Anthony.Criados à Imagem de Deus. São Paulo. Cultura Cristã. 1999, pp. 11-15. Nessas páginasencontramos mais detalhes sobre as principais correntes filosóficas e religiosas que produzemdeterminados conceitos antropológicos.72 AGOSTINI, Frei Nilo. Ética Cristã e Desafios Atuais. São Paulo: Ed. Vozes, p. 97. A éticaheterônoma é aquela que afirma que a obrigação é imposta de fora (ETEROS), ela é extra-indivíduo.73 SEGUNDO, Juan Luis. El dogma que libera: fé, revelación y magisterio dogmático. Santander,Sal Térrea, 1989. p. 295.74 REVIËRE, Claude. Introdução à Antropologia. Lisboa: Edições 70, 2000. p. 13.

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Agnes Heller diz o seguinte sobre o conceito de deificação do homem:

A liberdade, a igualdade e a fraternidade, juntastornaram-se uma categoria antropológica, com o que ahumanidade despertou pela primeira vez, comohumanidade, para a consciência de si própria. Do mesmomodo, a liberdade, o trabalho, a multilateralidade, aausência de limites representaram juntos a essência dohomem, a sua ‘natureza’, sendo portanto declarado que ohomem era capaz de tudo.75

Ao contrário da sociedade pré-moderna, o indivíduo moderno constrói sua

identidade em função do poder econômico. Ou seja, vive-se em função do ter,

onde sua identidade e seu valor são resultados do lugar onde habita, dos bens que

possui e pela sua capacidade de se colocar dentro do competitivo mercado

econômico. Seu projeto de vida está ancorado nos bens finitos, fruto de um

mercado altamente consumista.

Com uma sociedade fragmentada, setorizada, sem referenciais globais,

sejam religiosos ou não, o homem moderno alimenta-se de seu famigerado

individualismo. Como bem descreve Lipovetsky:

Sem dúvida o direito de o indivíduo serabsolutamente ele próprio, de fruir o máximo a vida, éinseparável de uma sociedade que erigiu o indivíduolivre um valor principal [...]. Salta aos olhos a lógicaindividualista: o direito à liberdade, em teoria ilimitada[...]. Viver livre e sem coação, escolher sem restrições oseu modo de existência: não há outro fato social ecultural mais significativo quanto ao nosso tempo; nãohá aspiração nem desejo mais legítimo aos olhos dosnossos contemporâneos.76

75 HELLER, Agnes. O homem do renascimento. Lisboa: Ed. Presença, 1982. p. 361.76 LIPOVETSKY, G. A Era do Vazio: Ensaio sobre o Individualismo Contemporâneo, 1989.pp. 9-10.

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42

Nesse novo mundo de opções o homem vai ocupar o espaço da livre e

absoluta expressão, onde o que importa é a imagem e não os conteúdos. Acontece

aqui uma revolução paradigmática, ou seja, essa era imagética não só relativiza,

mas torna todas as coisas superficiais, inclusive as relações humanas. E mais. A

imagem torna-se um produto, altamente mercantilizado, como veremos mais

adiante. Com sutileza rara, mais uma vez Lipovetsky diz que,

A expressão a todo custo, o primado do ato decomunicação sobre a natureza do que é comunicado [...],a comunicação sem finalidade nem público, o destinadortorna-se seu principal destinatário [...], comunicar porcomunicar, exprimir-se sem outro objetivo além de seexprimir e ser registrado por um micropúblico.77

Os ideais iluministas têm como centro e principal vertente a fé na razão.

Não é mera crença nos poderes da razão humana, mas uma concepção muito mais

profunda: para os iluministas, toda a população deveria ser iluminada (ou

esclarecida) para que a sociedade vivesse melhor.78

Outro elemento que marca a modernidade, decorrente do iluminismo, é a

aceitação da experiência dos sentidos e da razão como meios de obtenção de um

conhecimento exato e objetivo. O uso da razão gera, para muitos dos pensadores

da modernidade, o progresso e a libertação social. Baudelaire escreveu sobre isto,

dizendo que “modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da

arte, da qual a outra metade é o eterno e o imutável”.79

A ação moral é redimensionada, assumindo o homem a responsabilidade no uso

da razão, ou seja, cabe ao homem a tarefa de proceder ao exame inflexível de qualquer

pressuposto.80

77 Ibidem., op. cit., p. 16.78 O Iluminismo foi uma revolução intelectual que ocorreu na Europa nos séculos XVII e XVIII,sendo também o apogeu dos ideais renascentistas difundidas no século XIV. Graças aoIluminismo, a religião e as ciências separaram-se, causando mudanças na maneira de pensar, agir eencarar o mundo. A partir do Iluminismo, os homens tentaram encontrar explicações científicas,para, por exemplo, os fenômenos da natureza, originando grandes avanços científicos.79 BAUDELAIRE, C.. The Painter of Modern Life (In: SIEPIERSKI, P., op. cit., p. 145).80 Kant: "O homem deve sair do estado de natureza, no qual cada um segue os caprichos da própriafantasia, e unir-se com todos os demais [...] submetendo-se a uma constrição externa publicamentelegal [...]: vale dizer que cada um deve, antes de qualquer outra coisa, ingressar num estado civil, eesta depende do homem usar a razão responsavelmente"[...].In: BOBBIO, Norberto, op. cit., pp.45-6.

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Deste modo, a questão de base da cultura ocidental assume uma arquitetura

conceitual, praticamente finalizada, fazendo do sujeito a fonte original de doação de

sentido ao mundo e a si mesmo. Desse modo é possível defender-se de que à

dessacralização do mundo, ocorrida no universo individualista pós-feudal, corresponde

uma espécie de “sacralização do eu”, uma espécie de “culto secular” do eu, alçado à

condição de sede das significações fundamentais do ser humano.

No entanto, esta concepção de sujeito uno, autônomo, dono de sua razão, revela-

se problemática, quando se trata da análise da interioridade, da também moderna

dimensão psicológica individual. O sujeito psicológico é dividido, sua autonomia é

apenas ilusória, sua vida racional e consciente subentende uma desconhecida dimensão

inconsciente e irracional. Produz-se um paradoxo, onde o eu reina, apresenta-se

sacralizado, mas não é dono de si.

1.1.5Dimensão Religiosa

O Iluminismo produziu o que chamamos de deísmo81, sistema religioso que

afirma que o homem, dotado da razão, vive de forma autônoma, prescindindo da

ação pessoal de Deus no palco da história, pois ele faz parte de uma complexa

máquina – a natureza – que funciona de forma autônoma, num sistema de causa e

efeito, com suas próprias leis.

No auge da modernidade vive-se, do ponto de vista religioso, uma

escatologia imanente, ou seja, o futuro começava a partir de então no presente,

chamado de progresso técnico-científico, que anunciava o “céu” na terra. A “Terra

Prometida” era chegada.

81 Deísmo – Deísmo é o termo aplicado ao pensamento dos livres-pensadores ingleses dos séculosXVII e XVIII que procuraram compatibilizar a crença em Deus e o Racionalismo do Iluminismo.O deísmo nega ou a possibilidade ou o fato de qualquer revelação supernatural, e mantém que arazão é tanto a fonte quanto à base de todo conhecimento e convicção religiosos. In HODGE,Charles. Teologia Sistemática, op. cit., p. 26.

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44

“O período moderno define-se através da razão cada vez mais liberada da

religião e através do humanismo, e nas ênfases atribuídas à ciência e à política”.82

Ainda nessa linha imanentista da modernidade, Jung Mo Sung afirma que,

A contínua postergação da Parusia e a frustraçãoda tentativa de antecipar a vinda do Senhor poraperfeiçoamento ético e pregação religiosa abriramespaço para uma antecipação ativa no mundo real atravésda transformação da natureza e da sociedade.83

Cremos que, dito de outra forma, a modernidade provocou a secularização

do conceito medieval de vida, desaparecendo, portanto, a expectativa da parusia,

que produzia a esperança de um tempo potencialmente infinito, surgindo então

uma nova perspectiva, a intervenção do homem na dimensão do tempo infinito.

Assim, para compreendermos a modernidade é fundamental a consciência do

tempo infinito, pois tal mudança afeta praticamente todas as dimensões da

sociedade.84

Na linguagem de Herrero, em seu artigo sobre filosofia da religião e crise da

fé, o que houve foi um claro processo de imamentização da religião, de um lado, e

a completa autonomia da dimensão social, do outro.85

A teologia na modernidade se arvora em instância competente na interpretação e

explicação das verdades de fé com linguagem altamente técnica que escapa da

intelecção e experiência da maioria das pessoas. Um duplo efeito contraditório se

segue. Ou uma rejeição compacta, sem aduzir razões, porque não se é capaz de fazê-lo;

ou, uma aceitação, também ela sem razões, invocando a autoridade do teólogo ou da

instância teológica.86

O fenômeno da secularização pode ser visto como instrumento de

provocação. Isso porque a secularização é hoje o problema central da sociologia

da religião, definindo-se como o processo através do qual as idéias e as

instituições religiosas estão perdendo seu significado social. As idéias são menos

significativas e as instituições mais marginalizadas.

82 ZAJDSZNAJDER, Luciano, op. cit., 2002, p. 25.83 SUNG, Mo Jung, op. cit., p. 166.84 Ibidem, pp. 167-168.85 HERRERO, X. Filosofia da religião e crise da fé. In Síntese Nova Fase 13, 1985. pp. 13-39.86 Id., Desafios da Pós-Modernidade à Teologia Fundamental, In: (TRASFERETTI, José &GONÇALVES, Paulo S. L. (org.), Teologia na Pós-Modernidade), p.165.

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Paradoxalmente, em meio à efervescência religiosa há uma espécie de

derretimento da fé, o que pode ser chamado de crise de plausibilidade da

mensagem e da experiência cristãs.87 Esta corrente torna o sagrado obscurecido,

gerando uma completa mudança de valores. Ou seja, seria a perda da

transcendência. A razão em detrimento da alma. Parece-nos que a religião tem

perdido seu significado original. É evidente, portanto, que uma sociedade

pluralista contribui também para reforçar a indiferença religiosa, ou sua

fragmentação.88

A secularização provoca o fim dos monopólios das tradições religiosas e,

assim, ipso facto, conduz a uma situação de pluralismo e ao mundo privado.

Como temos dito, a noção de espaço foi tremendamente alterada com a cultura

moderna e pós-moderna, com sérias conseqüências religiosas, ou seja, agora o

espaço religioso é construído e, paradoxalmente, secularizado ou “ressacralizado

de maneira privatizada. Em vez do espaço fixo e estendido, ele é móvel e

fragmentado”.89

Peter Berger afirma que:

Durante a maior parte da história da humanidade,os estabelecimentos religiosos existiram comomonopólios na sociedade, monopólios de legitimaçãoúltima da vida individual e coletiva. As instituiçõesreligiosas eram, de fato, instituições propriamente ditas,isto é, agências reguladoras do pensamento e da ação.90

Diante disso, a religião não é mais determinante e não pode mais ser

imposta, mas “tem que ser posta no mercado”91, ficando os conteúdos religiosos

constantemente sujeitos à “moda” do dia. Dada as muitas faces da secularização, a

influência secularizadora das camadas sociais será variada de acordo com o

consumo de bens religiosos. No entanto, na medida em que a secularização é uma

tendência global, os conteúdos religiosos tendem, de um modo geral, a se

modificar numa direção secularizante.

87 AMORESE, Rubem Martins. ICABODE: Da Mente de Cristo à Consciência Moderna, p. 48.88 VALADIER, Paul. Catolicismo e Sociedade Moderna. São Paulo: Loyola, p. 64.89 LIBANIO, João Batista, op. cit., p. 29.90 BERGER, Peter. O Dossel Sagrado. São Paulo: Ed. Vozes. 1985, pp. 146-147.91 Ibidem, p. 156.

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A secularização procura invalidar a experiência com o transcendente, como

fala Cláudio de Oliveira Ribeiro:

A Igreja cede em sua própria existência, aliena-see adquire outra natureza, que é própria do mundo,portanto, seculariza-se. Secularizar é o processo peloqual, no final, a Igreja será somente uma parte do mundoentre tantas outras. Neste processo, ela é um estreitoapêndice que o mundo pode até mesmo considerarnecessário para sua complementação, mas não teráimportância prática alguma em sua vida. Secularização éo processo pelo qual o ‘sal perde o seu sabor.92

Assim sendo, podemos definir o indivíduo “secularizado” como aquele que

tem sua vida estabelecida nos valores deste século, sem qualquer interferência de

valores e crenças religiosas ou influência transcendental. Isso implicaria em ser

ateu em outras épocas. No entanto, é importante notar que no contexto

contemporâneo “ser secularizado” não implica necessariamente em não ter

religião ou não buscar uma relação com o transcendente.

No contexto contemporâneo o indivíduo é visto como um ser integral e que

necessita também da relação espiritual visando seu bem-estar pleno.

Conseqüentemente, a religião é respeitada desde que se reconheça como uma

prestadora de serviços religiosos para o respectivo departamento da vida humana.

O que não podemos fazer é olhar a secularização apenas como um fenômeno

negativo.

Como muito bem se expressou o missiólogo Ricardo Agreste,

[...] a modernidade traz consigo a secularização, aqual, sem tirar o templo da praça da matriz, desloca suainfluência para a periferia da sociedade humana. AIgreja, assim como toda forma de religiosidade nomundo moderno, é vista como um departamento da vidahumana, mas não como centro de referência de valores,costumes e propósitos. O centro de referência agora é ohomem que, como ser social, busca seu desenvolvimentoe bem estar.93

92 RIBEIRO, Cláudio de Oliveira. A Provisoriedade da Igreja. Uma contribuição daEclesiologia de Karl Barth ao protestantismo Brasileiro. Dissertação apresentada aoDepartamento de Teologia da PUC-Rio, em maio de 1994, pp. 136-137.93 AGRESTE, Ricardo. Cultura Contemporânea, op. cit., p. 5.

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Em outras palavras, a partir do momento que não se reconhece mais a

transcendência e a influência de Deus na história humana, pelo menos no discurso

e no comportamento humanos, está formada a secularização. A partir desse

momento temos, então, grandes desafios à fé cristã e à religião em geral. Temos

assim sinais claros de uma nova modelagem cultural, a pós-modernidade.

1.2O Fenômeno da Pós-Modernidade

Sabemos que a modernidade construiu um ambicioso e revolucionário

projeto cultural, que buscou transformar a face da terra pela fé na ciência e na

técnica aplicadas às forças produtivas, nas relações liberais de mercado como

capazes de implementar um estado justo e próspero, bem como na positividade do

progresso e na sua constante renovação e superação. Segundo Luis Carlos

Friedman,

[...] entre as mais poderosas forças que fizerammover os homens modernos estava a crença de queatravés da razão eles poderiam atuar sobre a natureza e asociedade na direção de uma vida satisfatória paratodos.94

No entanto, o que se observou é que, ao invés dos princípios ou pressupostos

modernos coexistirem harmoniosamente, sinergicamente, eles se sobrepuseram

uns aos outros, levando o processo a um desequilíbrio.95 Assim, os vários

princípios, interagindo entre si, não foram capazes de cumprir com as propostas

modernas que visavam, entre outros objetivos, a prosperidade social a partir do

desenvolvimento da técnica, da ciência aplicada e do livre mercado. Se por um

lado a ciência e a técnica avançaram, talvez além do esperado, a contrapartida de

prosperidade social e cultural não se concretizou.96

94 FRIDMAN, Luis Carlos. Vertigens Pós-Modernas. Configurações InstitucionaisContemporâneas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 09.95 Por exemplo, no período do capitalismo liberal, houve um desenvolvimento sem precedentes doprincípio do mercado, atrofiando o princípio da comunidade e pressionando o estado a umaresignificação de seu papel.96 ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Trad. Marcus Penchel. Rio: Zahar,1999. pp. 9-10. Ver também: SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Ed.Brasiliense, 2004. p. 21.

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Como fenômeno urbano, uma vez que a maioria da população mundial vive

nos grandes centros urbanos, a pós-modernidade é controlada pelas grandes

metrópolis industriais, tendo a mídia como seu maior e mais eficaz instrumento de

comunicação de manipulação, gerando, conseqüentemente, uma sociedade

altamente consumidora, sobretudo de imagens. Nas palavras de Zygmunt

Bauman, vivemos a “modernidade líquida”.97

Tal como na modernidade, nossa intenção inicial é procurar uma definição

da pós-modernidade, promovendo um exercício descritivo, fenomenológico, sobre

alguns paradigmas desse tempo, de igual forma focando as perspectivas

sociocultural, econômica, antropológica e religiosa.

Veremos, então, que em cada uma dessas perspectivas, há profundas e

relevantes implicações que, de alguma forma, incidem diretamente sobre a

teologia e o modus vivendi da Fé Cristã, proporcionando alterações não apenas na

cosmovisão teológica, mas alterando sua hermenêutica e, conseqüentemente, sua

práxis, de tal maneira que tais paradigmas alteraram e alteram a experiência cristã,

muitas vezes em suas bases.98

1.2.1Uma Definição da Pós-modernidade

Caracterizar ou definir a sociedade pós-moderna implica em perceber um

movimento de ruptura e continuidade, fluxo e refluxo, ou um projeto inacabado da

modernidade.99 A falência social da modernidade, por sua vez, teve seus

portadores.100

97 Ver algumas boas obras sobre o tema da pós-modernidade: Zygmunt Bauman. ModernidadeLíquida, e também Cf. Amor Líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:Ed. Zahar, 2004. Cf. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Ed.Zahar, 2003. Cf. O Mal-estar da Pós-modernidade. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1998.98 Ao contrário das concepções religiosas da comunidade em sua práxis, a realidade écompreendida na pós-modernidade de forma inerentemente complexa, visto que em qualquerteoria elaborada para entender a sociedade é apenas uma visão entre inúmeras outras possíveis,sendo que todas estarão sempre submetidas ao improvável, ao imprevisível, pois como ensinava ofilósofo alemão Karl Jaspers, “tudo é transitório, só este é permanente” (In: JASPERS, Karl.Introdução ao Pensamento Filosófico. São Paulo: Cultrix, 1971).99 HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade.100 Os “portadores” são a “fluidez, heterogeneidade, personalidade e fugacidade das construçõessimbólicas e das identidades individuais e simbólicas” (DOMINGUES, José Maurício. Sociologiae Modernidade: para entender a sociedade contemporânea, p. 21), elementos que favorecerama implantação cultural do pensamento pós-kantiano.

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O paradigma da pós-modernidade instala, portanto, uma série de crises, que

altera vários campos da sociedade, ou pelo menos faz-nos refletir sobre que

direção a sociedade caminha e sobre que bases. Por exemplo, as instituições

tradicionais têm sido reavaliadas.101 Como veremos mais adiante, com a forte

urbanização e a industrialização, as pessoas foram deslocadas, as famílias

fragmentadas e, consequentemente, os elos que forneciam estrutura ao tecido

social se desfizeram.102

Se a Revolução Industrial foi o agente que levou o pensamento iluminista a

se transformar em uma realidade na sociedade moderna, a urbanização e o

advento da mídia de massa foram os dois principais agentes que levaram o

pensamento pós-kantiano a se transformar em uma realidade cultural na sociedade

pós-moderna.103 Por meio destes dois fatores, a “Crítica da Razão Pura”, de Kant,

tornou-se bem mais do que uma crítica filosófica, mas um estilo de vida.

Assim, a pós-modernidade pode ser vista como a ruptura com as

metanarrativas. O conceito de totalidade é desfeito, não sendo mais a forma de ler

e explicar o mundo. Na verdade, ele deixa de ser o universal metafísico da

unidade, constância, regularidade, para tornar-se a diversidade, a fragmentaridade,

o efêmero, ou, na linguagem Foucault, a descontinuidade.104 Não sendo mais a

totalidade, a razão global, o contexto, ganha lugar o intertexto, o entrecruzamento

de vários mundos e cosmovisões.105

101 Segundo Giddens, a tradição consiste numa criação da modernidade (In: GIDDENS, Anthony.Mundo em Descontrole: o que a globalização está fazendo de nós, 2003. p. 50. Esta concepçãocedeu lugar a um “sujeito fragmentado”, em que a tradição não faz mais parte de suas principaispreocupações. (In: HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro:DP & A Editora, 2004. p. 47.102 Afirma ZAJDSNAJDER: “Os argumentos e as operações da Desconstrução foram postos frentea pretensões discurtivas. Afirmo, porém, que a desconstrução é um pensar-agir. Portanto, ocorreuma desconstrução de natureza prática, institucional – aqueles em que a vida se dá no mundomoderno: o indivíduo, a família, as organizações de negócios e do ócio, e o público comum.” (In:Ibid., p. 43 passim).103 GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., p. 62.104 FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 378.105 SALINAS, Daniel & ESCOBAR, Samuel. Pós-modernidade. Novos desafios à fé cristã.1999, p.24.

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Segundo Lyotard, a pós-modernidade pode ser caracterizada por uma

sociedade sem fundamentos antropológicos, do tipo newtoniano, como por

exemplo o estruturalismo ou teoria dos sistemas, e cada vez mais ancorada no

pragmatismo “das partículas de linguagem”.106 Nesse sentido, afirmamos que o

conhecimento científico torna-se uma espécie de discurso relativo.107

Foi através da falência da razão, como centro do universo moderno, que

Lyotard formulou suas teses em A Condição Pós-Moderna, pois

[...] a falência das grandes narrativas damodernidade, que explicavam e ordenavam o presente eapontavam para bonanças no futuro, mostrou a agoniadas grandes produções de sentido que associavamprogresso, revolução e auto-realização.108

Por isso que Lyotard contempla a pós-modernidade como uma cultura

vazada de parcialidade, superficialidade e provisoriedade. Princípios e fundações

já não são mais representações definidas, pois desaparece o modelo, o padrão, e

situa-se o plural, o múltiplo.

Na verdade, a modernidade modificou profundamente a face do mundo

através de seus avanços materiais, tecnológicos, científicos, culturais e religiosos,

a pós-modernidade, da mesma forma, tem produzido mudanças profundas na

estrutura social e urbana, nos conceitos estéticos e culturais, na configuração do

humano como novo sujeito, no conceito de linguagem, tendo a mídia como seu

grande agente transformador, sem falar nas transformações religiosas, tendo como

nosso foco de reflexão as questões eclesiais, soteriológicas, querigmáticas e éticas.

106 LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Rio de Janeiro: José Olympio Editora.2004, p. 16.107 “Por ora, contentemo-nos com saber que o pós contém um des – um princípio esvaziadordiluidor. O pos-modernismo desenche, desfaz princípios, regras, valores, práticas, realidades.” (In:SANTOS, Jair Ferreira, op. cit., p. 18).108 FRIDMAN, Luis Carlos, op. cit., p. 43.

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1.2.2Dimensão Sociocultural

Os pressupostos do Iluminismo influenciaram estruturalmente a construção

da modernidade. No entanto, o Iluminismo, enquanto fenômeno filosófico, foi

tremendamente questionado e abalado desde o final do século XVIII, quando Kant

lançou a Crítica da Razão Pura (1781).109 O teólogo e filósofo protestante

Ricardo Gouvêa, analisando a obra de Kant, afirma que “o racionalismo – traço

fundamental da modernidade – começou a agonizar quando Kant pôs um fim na

epistemologia de homens como Descartes e Locke”.110 O próprio Kant disse que

“até mesmo o nosso conhecimento empírico é construído através do que

recebemos por impressões da nossa própria capacidade de adquirir

conhecimento”.111

A pós-modernidade, como fenômeno cultural, surge no momento em que

acontece um tremendo esvaziamento de significado religioso-tradicional. Ou seja,

a religião herdada já não respondia mais às necessidades do novo homem. Houve

uma insatisfação ou vazio existencial. Começando pela estética e alcançando

diversas áreas, a pós-modernidade tornou-se parte efetiva da experiência cultural,

filosófica e política. Lamentavelmente toda a proposta do período da razão não foi

suficiente para “evitar que duas Guerras Mundiais destruíssem a Europa e

abalassem o otimismo modernista”.112 É sempre tarefa difícil precisar data para

esses movimentos socioculturais. No entanto, tem-se afirmado que, com “as

mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde

1959, quando, por convenção se encerra o modernismo (1900-1950).”113 Podemos

afirmar que Jacques Derrida, Michel Foucault e Richard Rorty são grandes vultos

do pensamento pós-moderno.114

109 A obra de Kant pode ser pesquisada nas referências: a) KANT, Immanuel. Critique of PureReason. Garden City: Doubleday, 1966. b) KANT, Immanuel. Crítica de la Razon Pura. BuenosAires: Losada, 1966. Disponível em: <http://www.arts.cuhk.edu.hk/Philosophy/Kant/cpr/00toc.htm#cpr-toc-A>.110 GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., p. 61.111 KANT, Immanuel, loc. cit.112 CÉSAR, Clinton Lenz, op. cit., p. 21.113 SANTOS, Jair Ferreira, op. cit., p. 8.114 Pensam assim: GRENZ, Stanley. Pós-MODERNISMO: um guia para entender a filosofia donosso tempo, 1997. Capítulo VI; SALINAS, Daniel & ESCOBAR, Samuel, op. cit., Capítulo II; eVEITH JR, Gene Edward, op. cit., p. 7.

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O desenvolvimento técnico-científico na pós-modernidade, impulsionado

pela terceira revolução industrial, chamada também de Terceira Onda, tendo as

ciências da informática e da comunicação sua grande âncora, alterou

completamente o nosso modus vivendi e nossa compreensão de espaço.115 Quando

falamos do poder da mídia, percebemos claramente que esta deixou sua função de

meio para ocupar o papel de ator principal, exercendo assim influência em

praticamente todos os setores da sociedade, desde a política até a formação da

imagem do ser pós-moderno.

A pós-modernidade confere um novo sentido à linguagem. Nas águas da

lingüística e da filosofia, Jacques Derrida, Michel Foucault, Richard Rorty e

Stanley Fish, por exemplo, são significativos representantes da

“desconstrução”.116 A grande característica do pós-moderno é exatamente a

maneira como se passa a entender a leitura. Toda forma de expressão e

organização de mundo é texto. Todo meio e modo de representação é linguagem.

A linguagem, para muitos, tornou-se a lente através da qual se pode

conhecer, bem como parte das ciências humanas vai afirmar que a mente humana

é incapaz de aceder à realidade. Uma paisagem, uma pintura, um espaço vivido,

são texto e intertexto, formas de linguagem. Tudo libera a linguagem do horizonte

estrito da razão e a aproxima do símbolo e do semiológico. A cultura é

caracterizada como processo de leitura, de linguagem, tendo o homem que

formular novos signos com suas representações.117

Gilles Lipovetsky faz uma definição bastante elucidativa, que nos ajuda a

perceber as novas faces da sociedade pós-moderna:

115 PUDDEFOOT, J. God and The Mind Machine. Computers, Artificial Intelligence and theHuman Soul. Londres: SPCK, 1996.116 Ibidem, p. 27.117 LYOTARD, Jean-François, op. cit., p. 15 passim. O autor trabalha a idéia de jogos delinguagem como metodologia de aferição da verdade.

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A sociedade pós-moderna é a sociedade em quereina a indiferença de massa, em que domina osentimento de saciedade e de estagnação, em que aautonomia privada é óbvia, em que o novo é acolhido domesmo modo que o antigo, em que a inovação sebanalizou, em que o futuro deixou de ser assimilado aum progresso inelutável. A sociedade moderna eraconquistadora, crente no futuro, na ciência e na técnica:institui-se em ruptura com as hierarquias de sangue e asoberania sacralizada, com as tradições e osparticularismos, em nome do universal, da razão e darevolução. Esse tempo torna-se frágil diante de nossosolhos... A confiança e fé no futuro dissolvem-se, noamanhã radioso da revolução e do progresso já ninguémacredita, doravante o que se quer é viver já, aqui e agora,ser-se jovem em vez de forjar o homem novo...; jánenhuma ideologia política é capaz de inflamarmultidões, a sociedade pós-moderna já não tem ídolosnem tabus, já não possui qualquer imagem gloriosa de siprópria ou projeto histórico mobilizador.118

O teólogo Ricardo Gondim traz também uma preciosa contribuição quanto à

tentativa de definição da pós-modernidade, citando inclusive o grande historiador

Arnold Tonybee:

118 LIPOVETSKY, op. cit., p. 11. Creio que para ulteriores consultas, podemos citar aqui maisalgumas obras importantes sobre a pós-modernidade, sobretudo, com destaque para uma de maioresmarcas, a pluralização: LIBÂNIO, João Batista, (In: CALIMAN, Cleto. A Sedução do Sagrado: ofenômeno religioso na virada do milênio), p. 63. Cf. COMBLIN, José. O Cristianismo no limiardo terceiro século (In: Ibidem, p. 148. AZEVEDO, Marcello S.J. Entroncamentos eEntrechoques. Vivendo a Fé em um Mundo Plural, 1991. p. 115 passim. CAPRA, Fritjof. OPonto de Mutação. A Ciência, a Sociedade e a Cultura Emergente. São Paulo: Ed. Cultrix. Em todoo livro o autor procura mostrar, de forma lúcida e extraordinariamente competente, a questão dasmudanças de paradigmas que foram ocorrendo ao longo dos séculos, razão pela qual temos hojeuma nova visão de mundo. LËVY, Pierre. O Que é Virtual?. São Paulo: Editora 34, 1996, pp. 54-55. SANTAELLA, Lucia. Corpo e Comunicação: sintomas da cultura, 2004, p. 63. Id., Os TemposHipermodernos. São Paulo: Barcarolla. 2004, p. 19. KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna: Novas Teorias Sobre o Mundo Contemporâneo. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor. 1997, p. 90. Id., Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós,2003. p. 50.

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Um dos primeiros acadêmicos a usar a expressão pós-modernidade foi sir Arnold Tonybee. Em 1940, envolvidona pesquisa sobre a ascensão e queda das grandescivilizações, descobriu que antes de se desintregarem, elassofriam o que ele chamou de “ruptura da alma”. Antes deserem esmagadas por outras civilizações, cometiam umaespécie de suicídio. Tonybee percebeu alguns sintomas queanunciavam a desintegração das sociedades. Primeiro, umsenso de abandono, uma espécie de acomodação que aceita,sem relutar, um fatalismo cínico. Desaparece o idealismo.Depois há um fluxo, as sociedades se abandonam ao ventodas circunstâncias, aos modismos. Acabam-se asmobilizações. Cresce a culpa, pelo abandono moral. Oúltimo estágio é a promiscuidade (não só no sentido sexual)como aceitação de tudo, um ecletismo e uma tolerânciaacrítica da ética. Assim, no fim da Segunda Guerra Mundial,ele concluiu que em poucos anos a Modernidade entraria emcolapso. Hoje, ela se contorce em convulsão. O progresso doconhecimento humano não levou a nada. A ciência aomesmo tempo em que oferece melhores condições de vida,arrasa o ecossistema, e os sistemas ideológicos ruíram em1989 com a queda do Muro de Berlim. Esse fracassocomunista solidificou a suspeita de que a Modernidaderealmente findava.119

1.2.3Dimensão Econômica

A pós-modernidade exerce uma espécie de compressão sobre a dimensão de

tempo e de espaço, resultando na força de um capitalismo cada vez mais

globalizado, sem raízes geográficas. O capitalismo não tem qualquer dificuldade

na dinâmica das mudanças espaciais. Trata-se, na verdade, de um “capital-

peregrino”, instantâneo, volátil, visto que ocupa o espaço virtual.120 Como

conseqüência, países ficam completamente vulneráveis às migrações econômicas,

sobretudo países com economias mais frágeis.

119 GONDIM, Ricardo. Fim de Milênio: Os Perigos e Desafios da Pós-modernidade na Igreja, op. cit.,p. 23. Ver também: PARSONS, Talcot. O Sistema da Sociedade Moderna. São Paulo: Pioneira,1974. Capítulo VI.120 FRIDMAN, Luis Carlos, p. 19.

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Na verdade, isso traz conseqüências sociais devastadoras, uma vez que

eventos locais são determinados ou modelados por acontecimentos absolutamente

distantes. Dito de outra maneira, tal sistema, à semelhança da modernidade, cria

seus excluídos, os sobrantes, os considerados “refugos globais”, visto que ficam

de fora da cadeia produtiva e, portanto, consumidora. “Os novos apartheids

sociais são constituídos em nome da paz e das ilhas de tranqüilidade”.121

Como vimos na dimensão sociocultural, o poder da mídia é que processa

todo o desenvolvimento capitalista, criando uma sociedade imagética. Tal poder

transforma tudo em mercadoria, o saber, experiências, objeto, conduzindo assim

as pessoas ao consumismo, fruto das necessidades criadas, antes não existentes,

dos desejos suscitados pelos fortes e onipresentes meios de comunicação, ou seja,

“a propaganda e a mídia são fundamentais na criação das novas necessidades, com

ênfase nos aspectos simbólicos que promovem a ‘estetização’ da economia”.122

Há uma falsificação das relações, dos sonhos, dos ideais, do próprio mundo, onde

o homem não passa de mero espectador, elemento passivo pelo poder da

imagem.123

A cultura de imagem cria uma sociedade do espetáculo, onde os desejos das

pessoas são imiscuídos nos modelos imagéticos da comunicação de massa.

Debord faz a seguinte declaração:

[...] quanto mais ele (homem) contempla, menosvive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagensdominantes da necessidade, menos compreende suaprópria existência e seu próprio desejo [...]. É por issoque o espectador não se sente em casa em lugar algum,pois o espetáculo está em toda parte.124

É interessante e importante perceber como a questão econômica exerce forte

influência sobre o social, o cultural, o religioso e o humano. A pós-modernidade é

regida pelo poder econômico, pelo neoliberalismo, com suas leis de mercado, que,

ao contrário do otimismo liberal, conseqüentemente da modernidade, proclama

que o sujeito do processo histórico não é o homem, mas sim o mercado.125

121 Ibidem, p. 20.122 Ibidem, p. 30.123 Cf. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto. 1997, p. 23.124 Ibidem, p. 24.125 HINKELAMMERT, F. Sacrificios humanos y sociedad occidental: Lucifer y la Bestia, SanJosé (Costa Rica): DEI, 1991. p.34.

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Então, no nascedouro da pós-modernidade descobre-se que o ser humano

está destinado ao consumismo, mesmo que seja de forma diferente da

modernidade. Tal consumismo abrange cada vez mais objetos, informações,

imagens, desportos, viagens, formação, relações, música, academias, médicos,

religião etc.

Nesse sentido, a visão do homem é completamente diminuída, cabendo-nos

apenas proteger o mercado, deixando que ele siga seu curso, pois a “liberdade

humana” está em seu sucesso. Decorre daí a necessidade de projetar esperança

para o ser humano. O neoliberalismo é o “caminho” para tal, exigindo, portanto,

fé no mercado. Ou seja, o mercado exige devoção e humildade, pois não há

dignidade humana fora dele. Logo, fora do mercado não há salvação.126

Milton Friedman, grande teórico do neoliberalismo, diz o seguinte:

De fato, uma objeção importante levantada contraa economia livre consiste precisamente no fato de queela desempenha essa tarefa muito bem. Ela dá às pessoaso que elas querem e não o que um grupo particular achaque devemos querer. Subjacente à maior parte dosargumentos contra o mercado livre está a ausência dacrença (fé) na liberdade como tal.127

Quando se fala em fé no mercado, trata-se, na verdade, de um argumento

tautológico, onde a razão cedeu à fé, no centro dessa “ciência” econômica.128 A

“terra prometida” é oferecida ao ser humano, na medida em que ele compreende e

aceita definitivamente a vitória do neoliberalismo, que atua sem qualquer

intervenção do Estado, que mesmo à custa de muito sacrifício, o homem chegará à

“terra prometida”, que nada mais é do que a vida numa economia de livre

mercado. O “deus” do socialismo morreu, mas o “deus” do mercado livre está

ativo e age eficientemente. Jung Mo Sung afirma que toda essa esperança, a partir

das teorias neoliberais, “é uma esperança religiosa”.129 Ele ainda diz que,

126 A Revista Internacional de Teologia Concilium publicou um número dedicado a este tema: Forado mercado não há salvação?, Petrópolis: Vozes, n.270, 1997/2.127 FRIDMAN, Milton, op. cit., p.27.128 Id., Deus numa economia sem coração, p. 58. O autor afirma que, na verdade, os especialistasneoliberais não estão fazendo economia, quando falam de fé no mercado, mas sim teologia.129 Ibidem, p. 62.

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[...] é a esperança de que os nossos problemassociais e econômicos sejam resolvidos pela intervençãomágica do mercado, sem nenhuma intervençãoconsciente dos sujeitos históricos humanos. Caberia anós, seres humanos, a única missão de combater oEstado para que o mercado possa cumprir livremente oseu papel de nos conduzir a uma nova sociedade.130

Como afirma Enrique Dussel, caracterizando o fetiche e seu processo de

fetichização do mercado, “o sistema fetichizado exige sacrifícios (...), o ‘deus’

fetiche exige vítimas cultuais”.131 Num mundo regido pelo mercado, o valor

humano não está em sua história, seus valores intrínsecos, seu ethos constitutivo,

mas sim, no seu poder de compra e de acumular bens. Ou seja, a lógica do

mercado fundamenta-se na eficiência quantitativa, na performance. Perde-se a

qualidade de vida a partir do ser, e “se ganha” a partir do ter.

No entanto, no fulcro desse paradigma consumista, encontramos padrões

elevadíssimos de consumo que utilizam os recursos naturais de maneira

insuportável, de forma insustentável. Não há uma consciência ecológica

integradora da natureza, mas uma forte consciência predatória, fruto dos interesses

empresariais e, porque não dizer, nacionais.132

1.2.4Dimensão Antropológica

Lyotard considerou a chegada da pós-modernidade ligada ao surgimento de

uma sociedade pós-industrial, na qual o conhecimento tornara-se a principal força

econômica da produção, tratando a pós-modernidade como uma mudança geral na

condição humana.

130 Ibidem.131 DUSSEL, Enrique. Para uma ética da libertação latino-americana, vol. V (Uma filosofia dareligião antifetichista). São Paulo: Loyola-Unimep, 1981. p. 54.132 ZAJDSZNAJDER, Luciano, op. cit., p. 38.

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Em seu livro A Condição Pós-moderna, Lyotard anunciou o eclipse de todas

as narrativas grandiosas. Aquela cuja morte ele procurava garantir acima de tudo

era, claro, a do socialismo clássico, mas também incluiu a redenção cristã, o

progresso iluminista, o espírito hegeliano, a unidade romântica, o racismo nazista

e o equilíbrio econômico.133

Uma face da pós-modernidade afirma o antropocentrismo, na qual o homem

traz dentro de si todas as potencialidades para resolver todos os seus problemas.

Na verdade, quando o homem pensa e age dessa forma, afasta-se cada vez mais de

sua própria dignidade, pois se distancia cada vez mais da imagem de Deus em sua

existência.134 Concluímos, então, que o homem pós-moderno vive uma das mais

graves crises existenciais que diz respeito às questões fundantes do seu próprio

ethos135 estruturador, ou seja, as relações humanas, em seus diversos setores:

sociais, culturais, econômicos e religiosos.

Nas palavras do Frei Nilo, “a crise de hoje, antes de ser uma crise de

paradigmas, revela-se uma crise que nos desestabiliza em nossa base mais

profunda, o ethos”.136 Em outras palavras, vive-se, na pós-modernidade, a crise do

humano em seu sentido mais profundo. Se na modernidade o homem era visto

como sujeito da história, na pós-modernidade ele é visto como objeto do mercado.

Inversamente ao modelo moderno que apresentava um homem triunfalista e

antropocêntrico, na pós-modernidade desenvolve-se uma visão altamente

pessimista do ser humano:

133 THOMÉ, Nilson. Considerações sobre modernidade, pós-modernidade e globalização nosfundamentos históricos da educação no contestado. O autor é professor de História de SantaCatarina e de História do Contestado na Universidade do Contestado, de Caçador (SC). Técnicoem Magistério, Licenciado em História, Especialista em História do Brasil, Mestre em Educação, eDoutorando em Educação (História, Filosofia e Educação) na FE/Unicamp. Historiador e Diretordo Museu Histórico e Antropológico da Região do Contestado, de Caçador (SC).134 COSTA, Hermisten Maia Pereira, op. cit., pp. 68,69.135 Ethos – Em grego, significa a toca do animal ou a casa humana; conjunto de princípios queregem, transculturalmente, o comportamento humano para que seja realmente humano no sentidode ser consciente, livre e responsável; o ethos constrói pessoal e socialmente o habitat humano. In:BOFF, Leonardo. Saber Cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra. p.195.136 AGOSTINI, Nilo, op. cit., p. 20.

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Os poderosos sistemas filosóficos do passado quetêm alicerçado fortes ideologias de dominação, cedemlugar a um tipo de pensamento “débil”, inseguro,aproximativo, conjetural e tolerante com outros tipos depensamento também contingentes e aproximativos.137

Há, na verdade, uma fé antropocentralizada e, conseqüentemente, uma fé em

todo projeto individualista. Resultado desse processo individualista, o homem

pós-moderno torna-se cada vez menos ideológico, para tornar-se cada vez mais

pragmático, utilitarista.

Como resultado direto do individualismo na pós-modernidade, há um

acentuado deslocamento da objetividade humana para a sua subjetividade. São as

imagens de subjetividade. Tais imagens são hoje heteróclitas, descentradas,

multiformes, instáveis, subversivas. O que assistimos, através da indústria de

imagens, é que o fundamento do “eu” mais profundo, são “as imagens do corpo, o

corpo deificado, fetichizado, modelizado como ideal a ser atingido em

consonância com o cumprimento da promessa de uma felicidade sem máculas”.138

Isso significa que a identidade do ser humano está deteriorada pela imagem do

corpo glorificado.

A cultura midiática sonha os nossos sonhos e nós somos sonhados pelos

ícones dessa cultura. Na verdade, as revistas, os cartazes, a publicidade em geral,

sonham quem devemos ser. E essa força subliminar exerce um poder tão forte

sobre os indivíduos que, mesmo conscientes de tal força, o inconsciente é afetado.

O vírus da imagem tem contaminado o homem de tal maneira que, essa olimpíada

rumo à juventude e à perfeição, “é hoje uma maratona que alcança jovens e idosos

de diversas classes sociais, mas estes não conseguem ver o pódio, porque se trata

de uma corrida infinita”.139 O resultado não poderia ser outro, senão o vazio

existencial.

137 Cf. RUBIO, Garcia Afonsio, op. cit., Sobre o pensamento “débil”, cf. G. Vattimo – P. A.Rovatti (org.), El pensiero debole. Milão: Feltrinelli, 1992.138 SANTAELLA, Lucia. Corpo e Comunicação. Sintoma da cultura. São Paulo, Paulus. 2004,pp. 125-126.139 SANT’ANNA, Dense Bernuzzi. Corpos de passagem. Ensayos sobre a subjetividadecontemporânea. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. pp. 66-70.

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1.2.5Dimensão Religiosa

Uma das principais conseqüências da forma de pensar pós-moderna – e por

que não dizer pós-kantiana – foi a substituição do objetivismo racional pelo

subjetivismo relativo.

Na pós-modernidade, em lugar dos fundamentos e das metanarrativas, agora se

postula o conhecimento “contextual”, “pragmático”, “funcional” e “relativista”. Dessa

perspectiva, é fácil compreender por que os pós-modernos optam pelo pluralismo e o

relativismo, em que a verdade se torna “aquilo que é vantajoso crer”.

A pós-modernidade questionou radicalmente a grande narrativa, seja do

Iluminismo, seja da revelação, seja da ciência. Para os pós-modernos, cabe valorizar as

narrativas menores como meio didático-pedagógico de transmissão da fé. As

metanarrativas são rejeitadas pelo pós-modernismo por serem autoritárias, pois impõem

o seu próprio significado de forma fascista.140 Nas palavras de Alexander, “se alguém

está convencido de que a sua posição é a correta, tem inevitavelmente a tentação de

controlar ou destruir os que não estejam de acordo”.141 Mas o que esta abordagem tem

a ver com o cristianismo e com a teologia? Conforme Middletone e Walsh,

[...] o problema, do ponto de vista pós-moderno, é queas Escrituras, em que os cristãos afirmam basear a sua fé,constituem uma metanarrativa com pretensões universais. Ocristianismo está inegavelmente enraizado numametanarrativa que pretende contar a verdadeira história domundo, desde a criação até o fim, da origem àconsumação.142

Para os mesmos autores, a hipótese pós-moderna das metanarrativas tem sentido

e baseia-se na observação histórica, pois a história bíblica tem sido freqüentemente

usada para oprimir e excluir aqueles que são considerados infiéis ou hereges.

140 SALINAS, Daniel & ESCOBAR, Samuel, op. cit. p. 31.141 ALEXANDER, John F. The Secular Squeeze, p. 163.142 MIDDLETON, J. R. & WALSH, B. J. Truth is Stranger Than It Used to Be, p. 76.

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Na pós-modernidade, a hermenêutica bíblica ganha novos contornos, na qual

o leitor passa a ocupar o papel de sujeito. É a partir dele que a experiência da

revelação acontece. Desse modo, a leitura da Bíblia não tem mais que se resignar

à aceitação passiva, liberalista e extrínseca de saber o que for que o revelador

disse; agora se pode perguntar, ademais, como foi revelado ao revelador, pois só

assim pode, na verdade, apropriar-se o significado vivo da revelação.143 Trata-se

de uma nova hermenêutica. Dito de outra forma, seria a superação do positivismo

da revelação. Juan Luis Segundo denominou tal processo de “aprender a

aprender”144, ou seja, tornar todo processo de aprendizagem através da

experiência, sendo, na verdade, fruto da nova fenomenologia do pensamento

atual.145

Cremos que a tarefa da teologia, hoje, é a de “manter viva e atuante a

experiência da revelação”.146 Queiruga afirma que “é preciso retraduzir o conjunto

da teologia dentro do novo mundo, criado a partir da ruptura da Modernidade”.147

O que não podemos é perder a essência do que a teologia carrega e,

conseqüentemente, a identidade do cristianismo. A teologia precisa responder aos

mais diversos interlocutores do nosso tempo. Sem jogar fora os nossos elementos

fundantes, provindos da tradição, somos desafiados, então, a atualizá-los, pois não

há respostas prontas ou pré-fabricadas pela teologia para todas as questões da vida

atual.

Falando de outra maneira, podemos perguntar: como a cultura pós-moderna

consegue, hoje, descobrir valor significativo na Revelação? Podemos responder

dizendo que o papel da teologia (Revelação Sistematizada) é questionar a cultura

na qual está inserida, de forma profética, querigmática e escatológica. Se, por um

lado, a cultura pós-moderna questiona a fé, por outro, o desafio da fé é tornar-se

questionadora da cultura, jamais perdendo sua vocação, seu conteúdo e sua

identidade.

143 QUEIRUGA, Andrés Torres, op. cit., p. 51.144 SEGUNDO, Juan Luis, op. cit., (Cf. na Ed. Espanhola: pp. 134, 176, 210, 242, 347, 373 e 375).145 QUEIRUGA, Andrés Torres, op. cit. p. 51.146 Ibidem, p. 62.147 Ibidem, p. 62.

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Há uma palavra muito elucidativa de Queiruga com relação ao fato de que a

Igreja – Católica ou Protestante148 - não tem mais o monopólio do conhecimento

absoluto de todas as coisas e em todas as áreas. Ele afirma:

A Igreja não renuncia assim à sua própriaidentidade. Ela reconhece, em vez disso, que não lhecompete o monopólio de tudo, mas sim, de maneira maissimples e modesta, sua contribuição específica. Elapermanece sendo “mestra em humanidade” (Paulo VI),mas apenas em seu campo próprio, à medida quereconhece serem os demais também mestres no campodeles. Em nosso mundo irreversivelmente plural, se aIgreja quer, de verdade, evangelizar, precisa, por sua vez,deixar-se “evangelizar” por aqueles valores que, ínsitosna criação, são hoje descobertos por outros meios. Ela é,pois, mestra enquanto também é discípula. A issoaludem a categoria teológica da “profecia externa” e aconvocação conciliar para que se escutem os “sinais dostempos.”149

Portanto, a grande questão, na pós-modernidade, quanto à dimensão

religiosa é que a Igreja – Católica ou Protestante - perdeu seu espaço de

monopólio sagrado, tendo que conviver com as múltiplas expressões religiosas.

Vivemos o tempo do desenvolvimento técnico-científico com forte ênfase na

experiência existencial, principalmente do tipo psicologizada e sentimentalizada,

determinando não só a qualidade, mas também a natureza do espaço agora

ocupado por essa nova cultura. Segundo Libânio, “há uma desmaterialização do

espaço no mundo urbano”.150 A cultura moderna e, mais acentuadamente, a pós-

moderna, são pluriespaciais, sendo totalmente definidas pelos interesses e

escolhas dos indivíduos. Acontece uma fragmentação dos espaços tradicionais,

como Igreja, família etc.151

148 Grifo nosso, acrescendo a Igreja Protestante, pois concordo com o autor.149 Ibidem, pp. 58,59.150 LIBANIO, João Batista. As Lógicas da Cidade. O impacto sobre a fé e sob o impacto da fé,p. 32.151 FERNANDES, Ruben César. Os Vários Sistemas Religiosos em Face do Impacto daModernidade. Maria Clara L. Bingemer (Org.). O Impacto da Modernidade sobre a Religião.São Paulo: Ed. Loyola., pp. 253-272. (Todo o artigo trata dessa questão).

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Verifica-se uma deificação do mercado com sua mistificação sisífica das

promessas de “felicidade e realização pessoal”, baseadas na acumulação.152 A

religião foi satelizada e pulverizada,153 o que provocou uma completa mudança de

eixo, ou seja, um deslocamento da “instituição religiosa”, como produtora de

sentido, esquemas e parâmetros para o fiel, para o sujeito da experiência religiosa.

O indivíduo é que cria seu sistema próprio. Há, como vimos, na dimensão

antropológica, uma nova caracterização do sujeito, com implicações sérias em sua

identidade. Surge, então, a crise da plausibilidade religiosa, sobretudo das

instituições religiosas, tidas por tradicionais.154

Disso decorrem duas verdades: a primeira é que o centro das atenções, na

pós-modernidade, é o homem e a segunda é que a fé, em grande parte, vive sob as

influências do poder econômico. Ela tornou-se mais um produto a ser

comercializado, consumido, buscando satisfazer sempre as necessidades do

“cliente”. A subjetividade da cultura pós-moderna, regida pelo poder econômico,

relativiza os valores cristãos, pois importa cada um com a sua fé, seja qual for.

O religioso pós-moderno carrega em si uma abertura, quase que absoluta,

para as mais diversas formas de experimentar e viver a realidade do Absoluto. O

grande perigo dessa prática religiosa é tornar-se esotérica, sincrética,

descomprometida, cósmica e meramente naturalista. Portanto, cabe aqui mais uma

palavra do teólogo João Batista Libânio sobre o pano de fundo do fenômeno

religioso atual, sobretudo, no que podemos chamar de volta ao sagrado:

152 Este conceito é puramente baseado na Teologia da Prosperidade, corrente teológica quepreconiza que, pela morte de Jesus Cristo, todo crente tem o direito de reivindicar e tomar posse detoda sorte de bênçãos, não podendo aceitar nenhum tipo de enfermidade; a prosperidade material éo fundamento dessa teologia. Citamos, a título de informação, alguns teólogos protestantes quetêm abordado o assunto: Ricardo Gondim. O Evangelho da Nova Era. São Paulo: Abba. 1993.Alen B. Pieratt. O Evangelho da Prosperidade: Análise e Resposta. São Paulo: Vida Nova. 1993.Paulo Romeiro. Super Crentes. O Evangelho segundo Kenneth Hagin. Valnice Milhomens eos Profetas da Prosperidade. Kenneth Hagin é americano e é o precursor de tal vertenteteológica, com farta literatura sobre o assunto.153 STOTT, John R.W. O Cristão em uma Sociedade não Cristã. Rio de Janeiro: Ed. VINDE,pp. 71-74.154 SOLONCA, Paulo. Inovando uma Igreja Tradicional. J. Scott Horrece (Editor), p. 119passim.

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O surto do sagrado é uma outra face da secularizaçãoda sociedade moderna e pós-moderna e não sua negação [...].Prossegue na linha da individualização, da subjetivação, daprivatização da religião na modernidade [...] as experiênciasreligiosas vinculadas a uma Instituição, no caso do mundoocidental, ao Cristianismo, quer na sua forma católica, querprotestante, perdem plausibilidade. Já não são as Igrejas oureligiões institucionais que criam necessariamente o espaçoda experiência religiosa. Antes, pelo contrário, elas perdemforça e deixam o sagrado solto, entregue às vivênciaspessoais, individuais em processo crescente de privatizaçãoe individualização.155

Nessa volta ao sagrado, vive-se uma espécie de doping religioso-tecnicista,

com matizes totalmente pós-modernas que recebem ainda uma forte influência

oriental a qual, diga-se de passagem, bem acolhida e depurada, inspira-nos por

demais. Entretanto, não é o que temos assistido. O ocidente vive uma

“orientalização religiosa”, assim como o oriente vive uma “ocidentalização

econômica”. Nessa perspectiva religiosa, o que ganha grandeza e valor é o fato de

que cada pessoa tem a plena liberdade de construir sua própria espiritualidade. O

importante é o que funciona. Vive-se um grande mercado ou shopping religioso

com suas múltiplas opções ou, numa outra imagem, não importa se a

espiritualidade é do tipo à la carte ou bufê. A satisfação tem mais valor do que o

conteúdo. É certo que opções de escolha sempre existiram, mas nunca com tanta

intensidade. A sociedade tradicional, assim, deixa de existir e dá lugar a uma

espécie de sociedade-supermercado, na qual valores tidos como absolutos são

relativizados.156

Outro aspecto igualmente sério desse contexto é que a religiosidade pós-

moderna tornou-se individualista, perdendo muito de sua dimensão

comunitária.157

155 Ibidem, In: CALIMAN Cleto (org.). A Sedução do Sagrado. O Fenômeno Religioso naVirada do Milênio, p. 56.156 MIRANDA, Mário de França. A Salvação Cristã na Modernidade. Maria Clara L. Bingemer(Org.). O Impacto da Modernidade sobre a Religião. São Paulo: Ed. Loyola. 1992. Cf.HARMS-WIEBE, Raymond Peter. Estrutura Criativa no contexto Metropolitano: Passos deum Processo de Transformação. J. Scott Horrell (Editor). São Paulo: Ed. Vida Nova, p. 29 passim.157 CARVALHO, José Jorge. Características do Fenômeno Religioso na SociedadeContemporânea. Maria Clara L. Bingemer (Org.). O Impacto da Modernidade sobre aReligião. São Paulo: Ed. Loyola, p. 133 passim.

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Toda essa “clientela” carece de um sentimento de pertença, de valor

comunitário, de integração, de solidariedade e de afetividade. Alberto Antoniazzi

classifica os períodos religiosos dos últimos séculos da seguinte forma:

1) uma primeira etapa da modernidade (séc. XVII-XVIII) em que as Igrejas Cristãs, inclusive e emprimeiro lugar a Igreja Católica, são religiões de estado edo Estado absolutista que impõe aos fiéis a religião dorei (legalismo); 2) uma segunda etapa da modernidade,que ocupa boa parte dos séculos XIX e XX (mas já iniciana Revolução Francesa) - esta etapa é marcada,sobretudo pelo confronto entre ideologias totalitárias(fascismo, comunismo, mas também – emboraconcedendo espaço às Igrejas na esfera da vida privada –liberalismo), que tendem a marginalizar ou suprimir areligião na sociedade; 3) uma terceira etapa, atual, emque a religião estaria, por assim dizer, “solta”, não maispresa ao Estado, nem condicionada pelo antagonismocom ele, mas como que flutuante sobre as ondas dasociedade, à deriva, “livre” de tomar seus rumos.158

Seguindo o mesmo rastro do fenômeno religioso atual, que traz grandes

desafios à reflexão teológica e exige dela respostas urgentes, a busca do sagrado

se perde em meio às ofertas de se experimentar as mais variadas realidades

religiosas a partir de uma perspectiva absurdamente consumista. A dimensão

transcendental desaparece. Na verdade, paradoxalmente, o atual sagrado promove

e concretiza uma profunda indiferença à realidade do próprio sagrado. Maria

Clara L. Bingemer diz que

No Brasil, hoje, assim como em muitas outraspartes do mundo ocidental moderno que se consideravamlibertas da opressão e do “ópio” da religião, explode denovo, com intensa força, a sedução do Sagrado e doDivino, des-reprimido e incontrolável. É o fenômeno daschamadas “seitas” ou grupos religiosos alternativos,novos movimentos religiosos que povoam o camporeligioso com novas e desconcertantes formas deexpressão, assustando e intrigando as Igrejas históricastradicionais, as Ciências Sociais e os bem-pensantes.159

158 ANTONIAZZI, Alberto. O Sagrado e as Religiões no limiar do Terceiro Milênio. In:CALIMAN, Cleto (org.). A Sedução do Sagrado. O Fenômeno Religioso na Virada doMilênio. pp. 11-12.159 BINGEMER, Maria Clara L. A Sedução do Sagrado. In: CALIMAN Cleto (org.). A Seduçãodo Sagrado. O Fenômeno Religioso na Virada do Milênio, p. 79.

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1.3Pluralismo Religioso e Questões Crísticas

Numa sociedade de cultura pós-moderna, a teologia como “discurso” ou “estudo”

tende a perder significado e importância. A teologia se vê ameaçada com as mudanças

que incidem sobre ela e sobre a Igreja cristã. O dogma fundamental da modernidade,

que estabelecia o sujeito e a razão crítica como fontes de interpretação, conhecimento e

aceitação das verdades, acaba ruindo por excesso dessa mesma razão moderna. 160 Ela

sofisticou-se de tal maneira que foge do controle da razão normal das pessoas, deixando

em seu lugar a aceitação ou rejeição subjetiva, arbitrária. Quando se extrema a

racionalidade, cai-se na irracionalidade, pois, não sendo capaz de acompanhá-la, não

nos resta senão aceitá-la ou rejeitá-la também sem razão.

A teologia na pós-modernidade se arvora em instância competente na

interpretação e na explicação das verdades de fé com linguagem altamente técnica que

escapa da intelecção e experiência da maioria das pessoas. Um duplo efeito

contraditório se segue: ou uma rejeição compacta, sem aduzir razões, porque não se é

capaz de fazê-lo; ou uma aceitação, também ela sem razões, invocando a autoridade do

teólogo ou da instância teológica.161 Os desafios à teologia são vários.

O teólogo Hans Küng, ao analisar a teologia no paradigma pós-moderno, traz

uma série de esclarecimentos pertinentes. Ele escreve:

Somente uma teologia que se move no horizonte atualda experiência, uma teologia rigorosamente científica e abertaao mundo e ao presente, pode justificar seu lugar nauniversidade ao lado de outras ciências. Somente pode serverdadeiramente uma teologia que abandona decididamente amentalidade confessionalista de gueto, ainda bastantedifundida, e é capaz de unir uma ampla tolerância do extra-eclesial, do religioso e do simplesmente humano com areflexão sobre o especificamente cristão.162

160 HORKHEIMER, M. La Crítica de La Razón Instrumental. Buenos Aires, SUR, 1973. p. 144.161 LIBÂNIO, João Batista. Desafios da Pós-Modernidade à Teologia Fundamental: In:TRASFERETTI, José & GONÇALVES, Paulo S. L. (org.). Teologia na Pós-Modernidade, p.165.162 KÜNG, Hans. Teología para la potmodernidad, p. 162.

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Nessa nova configuração do religioso163 dentro de uma cultura altamente

pluralizada, vale afirmar que o pluralismo religioso164 é fruto direto do fenômeno

da globalização, uma vez que os meios de comunicação produzem, por um lado,

uma virtual aproximação e, por outro lado, uma real aproximação entre os mais

variados povos e, conseqüentemente, grupos religiosos.165 A globalização gera

uma relação crescente de interdependência entre diferentes partes do planeta,

numa troca sociocultural-religiosa.166

No cenário pós-moderno, nenhuma religião tem o direito de se achar a

correta e a verdadeira e as demais falsas, nem inferior. Significa afirmar que todas

têm o mesmo direito à verdade, resultado direto do pluralismo religioso, que

carrega em si mesmo a negação coerente de que nenhuma religião pode

apresentar-se absoluta.167 Nesse sentido, não só o conteúdo teológico, mas

também a práxis da Igreja, são tremendamente afetados por tal fenômeno.168

As grandes verdades do cristianismo estão sendo questionadas, tais como o

conceito de Revelação, de verdade e de moralidade e a experiência salvífica com a

pessoa de Jesus Cristo, para citar alguns. Cristo tem sérias dificuldades de

existência. Na verdade, ele sobrevive. Contrariando o Evangelho de João, Jesus

Cristo não é mais “a verdade, o caminho e a vida”, é simplesmente mais um

colocado ao lado de muitos outros.169

163 CASSIRER, Ernst (1972). Linguagem e Mito, 1998. p. 52.164 Cf. LATOUCHE, S. En finir, une fois pour toutes, avec le développement, Le MondeDiplomatique, 2001.165 LACEY, H. Valores e atividade científica. São Paulo: Discurso Editorial. 1998, p. 32.166 MIRANDA, Mário de França, op. cit., pp. 12,38. ROTA, G. Unicitá di Gesú Cristo e pluralitàdelle religioni: per una teologia cristiana delle eligioni. Teologia 20 (2001), pp. 256-275. Paracompreender melhor o problema do pluralismo religioso e suas causas, cf. pp. 258-261. Cf.EICHER, P. Pluralismo. In: Dicionários de Conceptos Teológicos. Vol. II. Barcelona: Herder,1990, p. 237 passim; Cf. Também LIBÂNIO, J. B. As Lógicas da cidade. 2001, p. 113 passim.Encontramos, nesses autores, uma compreensão clara do fenômeno da pluralidade.167 MOTA, R. M. C. Notas para a leitura de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.Recife: Pimes Comunicações, nº 10, Universidade Federal de Pernambuco, 1975. p. 89.168 GEFFRÉ, Claude. "Le pluralisme religieux et I'indifférentisme, ou le vrai défi de la théologiechrétienne", Revue théologique de Louvain 31 (2000) 5.169 O teólogo Marcelo Azevedo faz uma distinção entre pluralidade e pluralismo, afirmando:“Pluralidade e pluralismo não são a mesma coisa. A primeira é da ordem factual e, portanto, daconstatação estática. O segundo é da ordem epistemológica e axiológica, portanto, do modo de vera realidade dos fatos e de aquilatar a projeção e o alcance dessa percepção dinâmica na própriarealidade plural”. AZEVEDO, Marcelo. Prólogo de TEIXEIRA, F. Diálogo de Pássaros, p. 11.Cf. Id., Verdade cristã e pluralismo religioso. Rio de Janeiro: 2003, pp. 1,2.

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A teologia deixa de ser objetiva e vai habitar a geografia da subjetividade,

do relativo, incluindo todos os seus conteúdos, inclusive e, sobretudo, a questão

cristológica, elemento fundante e estruturador da fé cristã. Ela sai de uma

estrutura monoblocular para uma rede pluralizada. Fala-se de teologias.170

Nossa cultura vive fortemente marcada por um pragmatismo, por uma

funcionalidade absurdamente emocional, incluindo o próprio religioso.171 Tal

pragmatismo tem provocado uma sociedade com a “cultura de consumo”, na qual

tudo se torna um bem de consumo, inclusive a religião. Nesta cultura, vale

usufruir e “curtir” sem se prender, pois, consumir é, sobretudo, conhecer sem

conhecer, no qual as escolhas são feitas pelos rótulos, pelas imagens.

Portanto, pluralismo religioso pode ser definido como a doutrina que ensina

que a salvação ou qualquer coisa que se entenda por salvação é alcançada pelas

pessoas através de uma quantidade enorme de condições e de meios, em várias

religiões.172 Faz-se necessário afirmar que a teologia das religiões tem como

interesse central os aspectos histórico-salvíficos, atingindo todas as religiões.173

Hoje já há, inclusive, uma mudança de expressão, passando de “teologia das

religiões” para “teologia do pluralismo religioso”. Todas as religiões possuem os

mesmos valores soteriológico, moral e espiritual.

Ao lado do pluralismo, há um parente próximo chamado relativismo. Todo

conhecimento é relativo. Tudo é relativo ao momento e à pessoa. Nesse sentido,

podemos dizer que todo ponto de vista é a vista de um ponto. Não há verdade

fechada. Ora, diante de tal constatação, o Cristianismo se vê pressionado em seus

pilares fundantes da fé cristã, que passam, portanto, pelos seus dogmas teologais.

No nosso caso específico, afeta a revelação de Deus através da qual o seu projeto

salvífico acontece única e definitivamente no mistério de Jesus Cristo, ou seja, há

um axioma fundamental do Cristianismo: Jesus é a revelação máxima da graça de

Deus, decisiva e definitiva, sendo, portanto, o único e universal salvador.174

170 BERMAN, Morris. El Reencantamiento del Mundo. Santiago. Cuatro Vientos, 1987, p. 41.171 MIRANDA, Mário de França, op. cit p. 106. Não podemos deixar de falar que, mesmo comtodo esse pragmatismo pós-moderno, o sentimental, o afetivo, têm predominado em nossa cultura.Agora é: “sinto, logo existo”.172 IANNI, Octávio. Teorias da Globalização. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1999, p. 86.173 BOUBLIK, V. Teologia delle religione. Roma: Studium, 1973, p. 41. Citado por DUPUIS.Rumo a uma teologia, p. 17. Cf. CANTONE, C. Religião. In: LATOURELLE, R. eFISICHELLA, R. (ed.) Dizionário di teologia Fondamentale, 1990, p. 919 passim.174 D’COSTA, G. Theology of Religions Pluralism: The Challenge of Other Religions. Oxford,basil Blackwell, 1986, p. 4.

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Eis o grande desafio à fé cristã: como viver, conviver e expressar a fé cristã

num mundo altamente pluralizado, relativizado e subjetivado e tendo que

estabelecer diálogo com as demais tradições religiosas, sem que com isso não se

perca a própria identidade cristã?

A teóloga Andreatta afirma que “o problema nuclear a ser resolvido pela

teologia cristã das religiões é a questão da singularidade e universalidade salvífica

de Jesus Cristo em conexão com a vontade salvífica universal de Deus e sua

correlação com a diversidade religiosa”.175 Percebemos, então, que toda discussão

sobre o pluralismo religioso obrigatoriamente passa pela questão cristológica e

pela dimensão soteriológica.176 Toda fé implica em um conteúdo teológico

específico, ou seja, confessional.

1.3.1Paradigmas Teológicos Diante do Diálogo Inter-Religioso como Panode Fundo à Questão Crística

O Concílio Vaticano II foi decisivo na questão do Diálogo Inter-Religioso,

abrindo caminho para uma atitude mais aberta e positiva frente às demais

religiões. Bem sabemos que houve muito esforço pré-conciliar.177

175 ANDREATTA, Cleusa Maria. Experiência salvífica cristã e pluralismo religioso em E.Schillebeeckx. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro. PUC-Rio. 2003, p. 25.176 DUPUIS, J., op. cit., p. 484.177 É no documento Lumen Gentium (número 16-17) que o Concílio mais desenvolve a questãodas relações religiosas. Também no Decreto Ad Gentes (número 3, 9, 11) e ainda na DeclaraçãoNostra Aeate. Temos também a Constituição Dei Verbum, com uma concepção mais ampla derevelação; e, finalmente, a Declaração Dignitatis Humanae, que aborda sobre a liberdade religiosa.Reconhecemos a existência de uma farta bibliografia que trata da relação do cristianismo com asreligiões não cristãs antes do teólogo K. Rahner e do Concílio em questão. Apenas para citar doisexemplos de como a questão do DIR já tinha uma ampla sistematização teológica antes de Rahnere o Vat II, fazemos referência a Ernst Troelstsch e Arnold Toynbee. O primeiro, considerado o paido relativismo histórico, defende que nenhuma manifestação histórica é absoluta; e isto inclui areligião como instância histórica. Esta afirmação de Troelstsch deve ser lida dentro do contexto dareformulação do seu pensamento. Anteriormente a esta reformulação, ele afirmara a normatividadesalvífica do cristianismo, repensa e constata que nenhuma religião pode arrogar para si o status demelhor que outra. Cf. E. TROESLSTSCH, Gesamanelte Werke, Tübingen, vol. 2, 1923; DieAbsolutheit des Christentums und die Religionsgeschichte, Tübingen, 1929; M. PYE, ErnstTroesltsch and the End of the problem about Otherr Religions, in: J.P. Clayton (edt.), ErnstTroelstsch and the future of Theology. Cambridge: University Press, 1976, pp. 172-195. Dentrode uma perspectiva mais histórica, Arnold Toynbeen, historiador inglês, defende a construção deuma religião unitária, pois, na sua percepção, a única maneira de salvar o mundo de suaautodestruição seria as religiões abandonarem sua vivência autocentrada e se abrirem umas para asoutras. Cf. A. TOYNBEE. A study of history. N. York: Oxford University, vol. 7, 1954. Anhistorian's Approach to religion. N. York: Oxford University press, 1956; What Should be thechristian approach to the contemporary Non-christian Faiths?: In: Christianity among thereligions of the world., N. York, Scribner's, 1957, pp. 83-112.

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70

No entanto, K. Rahner é quem elabora a primeira fase da Igreja Romana

com as demais religiões, do ponto de vista teológico, em sua tese acerca do

Cristianismo Anônimo.178

A partir dessa abertura, surge uma nova fase de relacionamento com os não-

cristãos bem como para os futuros desdobramentos ocorridos, tanto na reflexão

teológica quanto na práxis religiosa. No entanto, o Vaticano II, mesmo

reconhecendo valores positivos em outras religiões, não emite juízo de valor

teológico, de forma bem definida, sobre a mediação salvífica das outras religiões,

bem como não esclarece em definitivo o significado do pluralismo religioso como

fenômeno pós-moderno.179

Como pano de fundo, para uma melhor compreensão das questões teológicas

envolvidas no pluralismo religioso, afirmamos que a Encarnação é a proclamação

por meio da qual a Fé Cristã atesta que, no momento querido por Deus-Pai, seu

Filho assume a condição humana, isto é, assume a carne humana, entra

definitivamente na história.

178 PEDREIRA, Eduardo Rosa. A Questão do Diálogo Inter-Religioso. Dissertação. Rio deJaneiro. PUC-Rio. 1994, p. 35. Cf. com sua nota de rodapé 70, que diz: Uma grande maioria deteólogos vai concordar que a percepção rahneriana de um cristianismo de índole anônima de fatoabre as janelas do pensar católico para a entrada de novos ares. No entanto, desde os primeirosmomentos de sua formulação até épocas mais recentes, a tese de Rahner tem sido criticada e atémesmo rejeitada com certa veemência. As críticas a esta tese rahneriana vão desde a clássicadiscussão entre Rahner e Van Baltassar, discussão esta muito bem analisada por G. VANS, TheFaith needs for salvation. In: Talking with unbelievers, pp. 41-46, até observações mais recentes,como a de Hans Küng, que fala desta tese como sendo um meio de "conquista pelo abraço", H.KÜNG. Para uma teologia ecumênica das religiões, In: Cocilium 208 (1),1996, p. 125. É dignade nota, ainda, a crítica levantada pelo cardeal Joseph Ratzinger de que a tese do cristianismoanônimo, que influenciou decisivamente o otimismo salvífico do Vat II, além de provocar umenfraquecimento no impulso missionário da igreja, seria um atalho cômodo e confortável para osque não querem assumir a responsabilidade da explicitar o ser cristão. Cf. J. RATZINGER. ONovo Povo De Deus. op. cit. p. 324; Rapporto sulla Fede, Roma, Poline, 1985, p. 25 passim. Aoque Rahner responde com igual veemência: "Seria estúpido pensar que a expressão cristianismoanônimo esvazia a importância das missões, da proclamação da palavra Divina, do batismo. Quemquer interpretar assim nossa advertência, não somente a tem mal interpretado na sua totalidade,como nem sequer leu sua explicação com suficiente atenção." Cf. K. RAHNER. Los cristianiosanonimos, In: Escritos Teologicos. op. cit., p. 542.179 MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 13. Para uma apreciação da doutrina do Concíliosobre as religiões não-cristãs. Cf. DUPUIS, op. cit. p. 232 passim. Cf. GEFFRÉ, C. Le pluraliemereligieux e l’indiferentisme. In: Revue Théologique de Louvais 31 (2000), p. 15.

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A história cristã mostra que a doutrina da encarnação foi e é elemento

estruturador e fundante da cristologia ortodoxa.180 Várias hipóteses foram

levantadas até que se chegou a uma definição dogmática.181 Como diz Carl E.

Braaten:

A verdade da encarnação é que Deus assumiu umarealidade verdadeiramente humana, de modo que, emJesus Cristo, ele está em ambos os lados do limite quesepara o Criador da criação. A confissão de que Jesus,em sua pessoa, é verdadeiramente Deus significa que apalavra decisiva e final de Deus para o mundo foicomunicada uma vez por todas em sua Palavra feitacarne.182

O outro ponto teológico fundamental e caro ao cristianismo é a afirmação de

que há um único Deus. A fé cristã proclama a unicidade de Deus. Esse único Deus

é uno em sua essência, como em todas as suas perfeições: ciência, providência,

soberania, amor, vontade e trino nas pessoas. A dogmática cristã crê em Deus Pai,

que, desde toda a eternidade, gera o Filho; crê no Filho que é eternamente gerado

do Pai; crê no Espírito Santo, pessoa incriada, que procede do Pai e do Filho como

amor eterno de ambos.183

180 HODGE, Archibald Alexander. Esboços de Teologia. São Paulo. PES. 2001, pp. 525-530.181 NOLL, Mark A. Momentos Decisivos na História do Cristianismo. São Paulo: Ed. CulturaCristã. 2000, pp. 51-64. O autor trata com muita propriedade a formulação do dogma cristológico.182 BRAATEN Carl E. & JENSON, Robert W. Dogmática Cristã. Vol. I. São Leopoldo-RS.1990, p. 512. Ele afirma categoricamente que a encarnação foi um acontecimento real da história.O dogma da encarnação não foi um mito. Cf. GREEN, Michael. The Truth of God Incarnate,Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans, 1997, sendo uma reação clara e rápida a John Hick. The Mythof God Incarnate. Philadelphia: Westminster, 1997.183 Não há como negar que todos os credos têm inicio com uma declaração de fé: “Creio em Deus[...]”. Significa afirmar que “Deus é”. Cf. GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática, 2000, p. 165passim, incluindo uma boa bibliografia sobre o tema. Segundo Jurgen Werbick, “Na doutrina daTrindade, se tematiza a economia salvífica como auto-revelação de Deus, tematiza-se como Deus équando Ele se revela como ele mesmo e se comunica a si mesmo no Filho – em sua vida em favordos seres humanos e em sua relação com o Pai – através do Espírito – no crente e na comunidade”.In.: SCHNEIDER, Theodor (org.). Manual de Dogmática. Vol. II, 2002, p. 430.

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Michael Amaladoss e muitos outros teólogos que têm discutido a questão do

Diálogo Inter-Religioso (DIR), falam de paradigmas ou modelos teológicos que o

cristianismo tem assumido desde as primeiras sementes de toda esta complexa

temática da teologia das religiões até o atual estado da questão frente às religiões

não-cristãs, na modernidade e na pós-modernidade. Na verdade, estes modelos ou

paradigmas produzem dois movimentos: o primeiro passa-se de um paradigma

eclesiocêntrico para o cristocêntrico e o segundo, do cristocêntrico para o

teocêntrico.

Assim, diante da solicitação de Diálogo Inter-Religioso, como nosso tempo

nos impõe, apresentamos, aqui, ainda que laconicamente, três modelos teológicos

que fomentam o diálogo religioso com as religiões não-cristãs e, sobretudo, na

perspectiva crística. Vejamos tais paradigmas:

1.3.2O Paradigma Exclusivista

Historicamente, a posição exclusivista encontra suas primeiras raízes no

axioma Extra Ecclesiam Nulla Salus - Fora da Igreja não há salvação -, que foi

formulado por Orígenes (254 D.C.) e aplicado por Cipriano (258 D.C.).184 Este

axioma emerge a partir de um habitat político e sociológico muito favorável ao

nascimento desse tipo de exclusivismo: o cristianismo sai da posição de

perseguido e torna-se religião lícita no Império romano e, logo depois, se torna

religião oficial do império, ou seja, do Estado, no século IV.

Com isso, a Igreja tornou-se mais segura e, para manter sua segurança, tem

de legitimar a ideologia e o poder debaixo do qual agora descansava segura, após

longos séculos de dolorosa perseguição.185

184 KNITTER, P., op. cit., p. 121.185 AMALADOSS, M. The Pluralism of Religions and the Significance of Christ (O pluralismoreligioso e o significado de Cristo. pp. 402,403. Cf. DUPUIS, Jacques. O Cristianismo e asreligiões. Do desencontro ao encontro, 2004, p. 19 passim.

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73

O resultado foi, nas palavras de Dupuis, “uma avaliação negativa das outras

religiões”.186 A Igreja assumiu a posição de único recipitáculo ou “arca da

salvação”.187 Tal Igreja prevaleceu desde o século V até o século XVI, afirmando

o exclusivismo eclesiológico.

Mario de França Miranda, teólogo especialista no debate do diálogo inter-

religioso, o que inclui a questão cristológica e soteriológica, afirma que “falar da

salvação cristã é uma tarefa complexa e difícil, pois essa realidade implica a

pessoa mesma de Deus, como seu realizador e seu conteúdo fundamental”.188

Esta percepção teológica, no mundo católico, prevaleceu até o presente

século, quando Rahner e o Vaticano II trouxeram uma postura efetivamente mais

inclusivista. Tal posição afirma, em outras palavras, que ninguém será salvo, a

não ser que confesse fé explícita em Jesus Cristo como Senhor e Salvador e que as

outras religiões não possuem poder de mediação salvífica. Além do que, é preciso

pertencer à Igreja.189 Há claramente uma perspectiva reducionista que subjaz a

todo este pensamento e atitude exclusivistas. Por outro lado, o seu pressuposto

teológico é que o exclusivismo traz, como seus fundamentos teológicos, um

universo eclesiocêntrico e uma cristologia exclusivista. Tal posição não tem sido

mais aceita no meio teológico católico.190

186 DUPUIS, Jacques, op. cit., p. 23.187 DUQUOC, C. O Cristianismo e a pretensão à universalidade, Concilium 155 (5), 1980, pp.52-79.188 MIRANDA, Mario de França, op. cit p. 15.189 Para quem desejar um estudo mais detalhado sobre a história do surgimento e desenvolvimentodeste axioma veja-se DUPUIS, op. cit. pp. 123-155.190 Cf. MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 157. TEIXEIRA, F. Teologia das Religiões, pp.39,40; DUPUIS, op. cit. pp. 179-181. No entanto, mesmo com toda rejeição por parte doMagistério e da teologia mais atual, não podemos deixar de dizer que tal paradigma ainda encontraeco em alguns setores teológicos, seja católico ou protestante. Cf. DUPUIS, op. cit. p. 159.

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1.3.3O Paradigma Inclusivista

Alguns autores admitem que outras religiões podem mediar a salvação em

Jesus Cristo, mesmo que não tenham consciência cristã. A afirmação “fora da

Igreja não há salvação” ganha novos contornos. Portanto, os que se salvam são

uma espécie de “cristãos anônimos”. Destaca-se, dentro deste modelo teológico,

Karl Rahner. Este modelo aceita que pode haver graça e revelação em outras

religiões de modo que podem mediar a salvação em Jesus Cristo, mesmo que os

outros que crêem não tenham consciência do fato. São os chamados de cristãos

anônimos.191

Do ponto de vista da história, diz o teólogo Eduardo Rosa Pedreira que,

[...] o inclusivismo surge de uma preciosa enecessária correção histórica. Cinqüenta anos antes dodescobrimento da América, o Concílio Ecumênico deFlorença (1442) estabelecia a doutrina de que "fora daIgreja não há salvação". Quinhentos anos depois, Rahnere o Concílio Vaticano II corrigem esta rota, “restituindo”àqueles que vivem fora da Igreja a possibilidade real desalvação. Feita esta correção, a teologia católica dasreligiões avança de um modelo exclusivista para ummodelo inclusivista.192

Segundo Hans Küng, Cristo não é a causa constitutiva da salvação. Por esta

razão, as outras religiões podem ser consideradas caminhos independentes de

salvação.193 Hans Küng não aceita a tese de Rahner, que é o fundamento do

paradigma inclusivista, mas mesmo assim não rompe totalmente com tal

modelo.194 O inclusivismo de Rahner e do Vaticano II só admitiam a possibilidade

de salvação fora da Igreja e do cristianismo se tal salvação fosse a de Cristo: "A

salvação querida por Deus é salvação de Cristo".195

191 AMALADOSS, M. op cit. pp. 402,403.192 PEDREIRA, E. Rosa. DIR – Diálogo Inter Religioso, op. cit., pp. 87-90.193 KÜNG, Hans. Christianity and World Religions: Dialogue with Islam, in: L. SWIDLLER.(edts) Toward a universal theology of religion. pp. 231-249.194 Para uma melhor análise desta posição, cf. H. KÜNG, Christianity and World Religions:Dialogue with Islam, In: L. SWIDLLER (edts) Toward a universal theology of religion, op. cit.pp. 231-249; Ser cristão. op. cit., pp. 72-95, Para uma teologia ecumênica das religiões, In:Concilium 203 (1), 1986, pp. 124-131; P. KNITTER, No other name, op. cit. pp. 130-135.195 KNITTER, Paul, op. cit., p. 131.

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Tal postulado faz de Cristo a causa constitutiva da salvação e faz, daqueles

que se salvam fora da Igreja e do cristianismo, cristãos anônimos.

Hans Küng afirma que Cristo é a causa normativa da salvação e, por isto,

torna-se o catalisador crítico e a plenitude de toda salvação. Küng vai afirmar que

no centro do específico cristão deve residir a certeza de que Jesus é a "suprema e

decisiva instância e critério último para o relacionamento humano com Deus, com

o próximo e com a sociedade: em forma bíblica abreviada, como Jesus Cristo".196

No entanto, no que diz respeito ao valor salvífico das religiões não cristãs, Küng,

por um lado, o admite, mas, por outro, frisa que só o cristianismo possui a

"absoluta validade". Em outras palavras, esta posição ainda é a mais aceita pela

Igreja Católica. Para Küng a proposição de um cristianismo anônimo é,

[...] apenas uma nova interpretação do antigo dogma:Igreja agora não se refere mais, como em Florença, à SantaIgreja romana, mas propriamente, interpretada corretamente,no fundo: a todos os homens de boa vontade que, semexceção, fazem parte da Igreja de algum modo. Mas não seestá introduzindo aqui, elegantemente, pela porta dosfundos, na Santa Igreja Romana o gênero humano inteiroque tenha boa vontade [...] de modo que não resta foranenhum elemento que disponha de boa vontade, queira ounão? Fora da Igreja não há salvação _ a fórmula está certacomo nunca, porque todos se encontram dentro, de antemão:como cristãos, não formais, mas anônimos, ou _ como sedeveria exprimir para salvar a lógica _ como católicosromanos anônimos.197

O pressuposto teológico deste paradigma passa do eclesiocêntrico para

tornar-se cristocêntrico (no caso de Rahner) e teocêntrico (no caso de Küng), e,

onde antes a cristologia era exclusivista, torna-se inclusivista em Rahner e

normativa em Küng. O paradigma inclusivista possui uma perspectiva de

profundo acolhimento ou absorção, pois ela "pretende incluir como próprio, tudo

o que existe de verdade em qualquer lugar, dentro de qualquer tradição. A atitude

inclusivista tende a reinterpretar tudo dentro de uma mesma lógica, tornando todas

as coisas assimiláveis e reduzindo as diferenças a aspectos de uma única

verdade".198

196 KÚNG, Hans, op. cit., p. 103.197 Ibidem, p. 79.198 STEIL, C. A. O diálogo inter-religioso numa perspectiva antropológica, In:F.C.L.TEIXEIRA, O Diálogo, op. cit., p. 27.

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Ora, por mais que este paradigma traga aspectos extremamente positivos e

libertadores nas relações religiosas, não podemos esquecer que o cristocentrismo

sustenta o caráter absoluto de Jesus Cristo, tornando-se ao cristianismo um

obstáculo às relações inter-religiosas.

1.3.4O Paradigma Pluralista

Na busca de uma solução para o diálogo inter-religioso, encontrou-se no

aprofundamento reflexivo uma alternativa teológica mais simples e, ao mesmo

tempo, mais complexa e radical; como já dissemos, passa-se de um

cristocentrismo para um teocentrismo, que, quer queiramos ou não, implica numa

rejeição teologal da centralidade de Jesus Cristo, como único mediador salvífico.

Ou seja, “para salvar um pluralismo salvífico era necessário romper o vínculo

salvífico de Jesus Cristo com Deus como único e exclusivo, era preciso separar

Cristo-logia de Teo-logia”.199

Significa afirmar que todas as religiões são iguais e possuem valor

soteriológico em seus pressupostos. Ou seja, são vários caminhos, Cristo é só

mais um caminho, posto que Deus está acima de Cristo, Ele é o centro. As

principais raízes históricas do paradigma pluralista são a influência da cultura

moderna e pós-moderna e a teologia liberal do século XIX. França afirma que no

desafio da proclamação de Jesus Cristo como Senhor e Salvador nos dias atuais,

“só será significativa e pertinente, impactante e atraente, quando for realmente

entendida pela atual sociedade”200, visto que no cenário de uma sociedade

altamente pluralista, com suas múltiplas fontes de sentido, a relevância da tradição

perdeu seu espaço nessa nova geografia religiosa.

O pluralismo pós-moderno não só traz a possibilidade do diálogo, mas

impõe sua necessidade. Não há mais espaço para entrincheiramento e

isolacionismo, pois o diálogo é necessidade, fruto de uma cultura caracterizada

pela pluralidade.

199 MIRANDA, Mário de França. O encontro das religiões, op. cit., p. 20.200 Ibidem, p. 15.

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Com este pressuposto, o pluralismo cruza uma linha até então não

ultrapassada por nenhum modelo anterior aqui analisado. Deus, e não Jesus, seria,

na percepção pluralista, o meio e o fim da salvação. Jesus continua sendo o

caminho salvífico para os cristãos, mas não pode ser para os não cristãos que

encontram, nas suas próprias tradições religiosas, a mediação salvífica. Assim, o

cristão pode dizer que Jesus é o Cristo, mas não pode mais afirmar que o Cristo é

só Jesus.201

Em outras palavras, dentro do paradigma pluralista fala-se em cristologia

não-normativa, ou seja, Jesus só é norma para os cristãos. O pressuposto teológico

deste paradigma vai aderir a uma nova e radical visão das religiões não cristãs, ou

seja, elas passam a alcançar não legitimidade salvífica, mas autonomia, tornando

assim caminhos autênticos e independentes de salvação, sem necessitar de

mediação ou referência cristã.202

Diz Michael Amaladoss que o pluralismo produziu uma "revolução

Copérnica na teologia",203 na qual o centro em volta do qual giram todas as

religiões seja deslocado de Jesus para Deus e para a salvação. Tal perspectiva

desenvolve uma posição de igualdade ou equiparação, onde toda verdade deixa de

ser monopólio de uma única religião, para se tornar bem comum de todas as

religiões que contribuem para salvação e para a promoção do Reino de Deus.204

Segundo Amaladoss, tal posição não leva as religiões a sério.205

201 Esta é a linha particularmente desenvolvida por R. Pannikar, que se serve da antiga cristologiado Logos, na qual se insiste na distinção do Cristo universal (Logos) e o Jesus histórico. Cf. R.PANNIKAR, The Unknow Christ of Hiduism. Maryknoll, NY: Orbis Book, 1981.202 Podemos afirmar que o paradigma pluralista possui várias perspectivas teocentristas, ou seja,temos o teocentrismo chamado normativo e o teocentrismo chamado não normativo. Oteocentrismo normativo está aberta para reconhecer outras mediações salvíficas, mas argumentaque Jesus Cristo é aquele que melhor revela a ação salvífica de Deus na história. No entanto, hámais uma rachadura na doutrina cristológica, pois Cristo não é mais agente constitutivo dasalvação, o que significa dizer, em outras palavras, que o ser humano não ficaria sem salvação,apenas sem sua revelação mais profunda. Já o teocentrismo não normativo significa afirmar queJesus Cristo não tem nem valor normativo e, muito menos, constitutivo para a ação salvífica.Dentro dessa linha de pensamento teológico temos John Hick, seu maior expoente. Cf. HICK,John. A metáfora do Deus encarnado. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000; Problems of ReligionsPluralism. London: Macmillan, 1985; An Interpretation of Religion: Human Responses to theTranscendent. London: Macmilliam, 1989. Para que deseja uma reflexão crítica sobre a posição deHick, cf. DUPUIS, op. cit. pp. 261-263; D’COSTA, G. Taking other religions seriously: someironies in the current debate on a christian theology of religions. The Thomist 54 (1990), pp. 519-529. Ainda podemos citar KNITTER, P. No Other Name? A critical Survey of Christian Attitudestoward the Worlds Religions. New York, 1985.203 AMALADOS, M. S.J., Faith Meets Faith, Vidajyot. 1985, p. 109.204 PEDREIRA, Eduardo Rosa, op. cit., pp. 91-95.205 Ibidem, p. 404.

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O resultado não poderia ser outro senão um relativismo e subjetivismo

próprios da cultura pós-moderna, pois as religiões buscam "integrar em si

elementos do cristianismo, sem contudo se deixar propriamente evangelizar; e

outras, neste mesmo confronto, vêem algumas de suas características serem

assimiladas pelo próprio cristianismo.”206 No dizer do especialista no assunto,

Mário de França Miranda, vivemos uma espécie de derretimento e subjetivação da

fé,207 com conseqüências incalculáveis para a identidade religiosa.

Amaladoss erra ao distinguir e separar Cristo de Jesus; diz que “Jesus é o

Cristo, mas Cristo é mais que Jesus”.208 Já que o pano de fundo é a universalidade

da salvação na pessoa de Jesus Cristo, ele conclui que a ação cósmica de Cristo

não pode ser limitada à forma encarnada chamada Jesus209, daí afirmar que o

Cristo cósmico atinge as outras religiões.

Tais colocações de Amaladoss equivalem a dizer que Cristo atingiria outras

religiões e comunicaria elementos novos. Se o que Amaladoss afirma estivesse

correto, então, em Jesus Cristo, a revelação cristã não teria sido plena, como de

fato o foi210, ou seja, se todas as religiões juntas revelam mais de Deus, então

Jesus não é a plenitude da revelação. Se o logos é mais do que Jesus, então o

cristianismo é só parte da verdade.

Amaladoss ao separar Cristo de Jesus não está mais falando do mistério

cristão, pois o mistério de Jesus Cristo é a Encarnação do Verbo, que assume a

natureza humana. No dizer do Concílio de Calcedônia, uma só pessoa divina em

duas naturezas, humana e divina. É a união hipostática. Quem responde melhor a

esta questão é Schillebeeckx. Ele procura mostrar que após as sucessivas Alianças

de Amor de Deus por seu povo, chegamos à Aliança definitiva. Essa história

começa com a criação (Gn 1,1-2,4a.), enriquece-se com o chamado de Abraão

(Gn 12.1,2), até culminar no acontecimento definitivo: Jesus Cristo (Lc 22.20),

imagem do Pai (Jo 14.9-11). Assim, a revelação de Deus é plena em Jesus Cristo,

de forma que fora desta não há outra revelação.211

206 MIRANDA, Mário de França, op. cit., (59): 1991. pp. 215.207 Ibidem, pp. 207-210.208 M. AMALADOSS, The Pluralism of Religions and the Significance of Christi, In: VidyajyotiJournal of Theological Reflexion, 8 (1989), p. 409.209 Cf. L. cit.210 CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, Constituição Dogmática “Lumen Gentium”, In:Sacrossanto Ecumênico Concílio Vaticano II, Petrópolis, 1987, n. 9.211 SCHILLEBEECKX, Edward. Universalité unique d’une figure religieuse historique, LavalThéologique et Philosophique, 50 (1994), pp. 266-267.

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Schillebeeckx valoriza o Mistério da Encarnação, que é a entrada do Eterno

no temporal. O Verbo assumiu realmente a condição humana, é Verdadeiro Deus

e Verdadeiro Homem. Ora, “os atos históricos do homem Jesus são pessoalmente

os atos do Filho Eterno de Deus, um ato de Deus eterno em forma de

manifestação humana”.212 Chamamos atenção porque em Jesus, o fato da

Encarnação de Deus assume, na manifestação humana, um fato histórico.213

Portanto, Schillebeeckx não abre mão da universalidade e unicidade

salvífica de Jesus. Jesus Cristo é a plenitude da revelação de Deus. Fora de Jesus

Cristo não há como perceber quem de fato é Deus e em que situação se encontra a

raça humana. Só em Jesus Cristo o homem percebe sua condição de pecador e a

necessidade de salvação, e se torna apto a entender a oferta salvífica de Deus. A

revelação geral tornou-se limitada. Jesus Cristo é a causa normativa e constitutiva

da salvação.214

Como bem disse o teólogo França Miranda, a questão central da fé cristã

proclama que em Jesus Cristo temos a revelação definitiva de Deus e a salvação

para toda a humanidade. Relativizar isso significa fragmentar o cristianismo, para

não dizer destruí-lo, tirando-lhe toda identidade.215 O grande desafio é integrar

sem perder a identidade cristã.

Por isso perguntamos: Quais as implicações teológicas diante do fenômeno

do pluralismo religioso? Como responder eclesial e cristologicamente a toda essa

efervescência religiosa, com variantes que vão do misticismo esotérico até as

crendices populares? Como anunciar o evangelho libertador de Jesus Cristo numa

cultura graçada pelo neopaganismo? Que atitudes éticas impõem-se nesse tempo

himbricado de relativização e dissolução dos valores fundantes do vital humano?

Eis o que tentaremos mostrar nas próximas páginas e, certamente, em maior

profundidade, no último capítulo.

212 SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo Sacramento do encontro com Deus. Petrópolis, 1968, p.59.213 Id., História Humana: Revelação de Deus. São Paulo: Paulus. 1994, p. 213.214 Cf. RATIZINGER, J. Kommentar zu den “Bekanntmachungen” en Lexikon für Theologie undKirche – Das Zweite Vatikanische Konzil, Freburg 1966, tomo I, p. 355-356. Ver também:RATZINGER, J. A colegialidade dos bispos. Desenvolvimento teológico, In: G. BARAÚNA(ed), A Igreja do Concílio Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1965. pp. 763-788.215 MIRANDA, Mário de França. op. cit. p. 128.

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1.4Implicações Teológicas e Exigências Éticas

A teologia plural é obrigada a ver-se como ecumênica, dialógica, diacrônica,

a serviço não só da autoridade, mas também de todo o povo de Deus. Isso é

positivo e libertador, mas também desafiador.

Diante desse fenômeno da pluralidade religiosa, estando a Igreja inserida na

realidade temporal ela não pode esquivar-se do diálogo com o “diferente”.216 Ou

seja, a Igreja precisa manter com as outras tradições religiosas o diálogo inter-

religioso. O diálogo é preciso e necessário; pois sendo o homem aberto ao

transcendente, encontrará na sua própria estrutura a razão de ser desse diálogo e,

mais ainda, além do aspecto antropológico a razão fundamental do diálogo é

teológica217, que parte da unidade da própria Santíssima Trindade218. Mas

também, além do diálogo, a Igreja, para realizar seu papel recebido do Mestre (Mc

16.15), deve empenhar-se em anunciar o Mistério da salvação realizado por Deus

em Jesus Cristo, com a força do Espírito Santo219.

No cristianismo, todos que dele fazem parte, precisam ter consciência de

que a obra salvadora é iniciativa de Deus e que Jesus é a definitiva salvação

trazida para todos; e que nele se encerra toda a verdade da revelação última de

Deus.

A grande pergunta que fica é, como o cristianismo deverá portar-se frente a

tantas religiões, uma vez que se vê rodeado de uma variedade de opções

oferecidas? E ainda, por que Deus teria permitido a existência de outras religiões?

Qual o sentido e lugar das outras religiões na única economia da salvação?220.

216 CONGAR, Yves. Église et Papauté. Paris: Ed. du Cerf, 1994. pp. 21-22.217 MIRANDA, Mário França, op. cit., pp.106-107.218 Cf. Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso – CNBB, Diálogo e Anúncio,Petrópolis, 1991, n. 38.219 Cf. Diálogo e Anúncio, nº 10.220 Vários autores procuram respostas a essas perguntas e conseqüentemente encontramos variadasposições acerca do tema. Há autores que situam a problemática na impossibilidade de se falar deDeus, pois Deus é transcendente e impossível ao homem; há autores que dizem que só ocristianismo pode falar algo; há autores que afirmam que todas as religiões são caminhos legítimospara chegar a Deus, todas salvam; há autores que acham que as outras religiões são caminhos atéchegar ao cristianismo, logo que tenham chegado ali não servem para mais nada; e há autores queafirmam que a presença do Espírito Santo nessas religiões possibilita a essas pessoas a captarem aação de Deus. Por isso essas religiões não devem ser desprezadas. Com isso não querem dizer quetais religiões sejam “novas” revelações de Deus, mas que podem ter alcançado percepções que ocristianismo não alcançou.

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Para possibilitar o diálogo, devemos logo nos distanciar do pensamento de

que os outros não têm nada a nos dizer. O documento DA é categórico ao mostrar

que para realizar o diálogo, de um lado, não se deve abrir mão da verdade de

Cristo e, de outro, “os cristãos não se devem esquecer que Deus também se

manifestou aos seguidores de outras tradições religiosas”221. Por isso, o

documento indaga que tipo de garantia possuímos de termos captado toda verdade

de Cristo? “Devemos estar dispostos a aprender e a receber dos outros”.222

O diálogo religioso não significa abrir mão do que cremos, mas anunciar,

dar algo e estar aberto a receber algo, pois cada religião, dentro de sua cultura,

poderá ter captado algo que nosso horizonte cultural não nos permitiu alcançar.

Por isso devemos afirmar que elas podem nos dar novas perspectivas; com isso a

verdade cristã se explicita e se torna mais rica.223

Há que ver em que ponto a teologia tem a ver com ética. Parece-me que a relação

é indissolúvel. O papel da ética à luz da teologia, esta como fruto da exegese bíblica e

da teologia bíblica, portanto, não é mimetizada e tão pouco fechada em si mesma, é

questionar profética e escatologicamente a cultura pós-moderna. A ética cristã, fruto da

Revelação, carrega o desafio da interpelação à conversão, às mudanças nas estruturas

sociais e culturais bem como em todo processo histórico desarmonizado com a Fé

Cristã. Por que a cultura moderna e pós-moderna, com todo o seu alto desenvolvimento

tecnocientífico, necessita da ética para manter-se no seu correto caminho de produzir

benefícios a toda a humanidade? Para os pós-modernos, o argumento é que cada vez

que uma pessoa ou um grupo qualquer diz possuir a “verdade” (especialmente a

verdade religiosa), o resultado é uma repressão.

221 DA, n. 48.222 Ibidem. 49.223 HUIZING, Peter e WALF, Knut. Estruturas Centrais da Igreja em Concilium / 147 –1979/7, pp. 3-5.

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A pós-modernidade, conseqüentemente, desafia toda a ética judaico-cristã que

dominou o ocidente durante séculos.224 Isso acontece porque o pluralismo de idéias

desemboca no pluralismo de éticas. Alguns autores cristãos, críticos da pós-

modernidade, asseveram que esse pluralismo de idéias conduz a uma rejeição da

diferenciação entre “o bom” e “o mau”. No entanto, a pós-modernidade, como crítica à

cultura moderna, tem sido apenas o veículo atual de transmissão dessa tendência, pois

no passado, outros sistemas, como o existencialismo e o secularismo, também

propagaram éticas semelhantes.

Esse pluralismo de éticas tem dado lugar, por exemplo, à defesa da reivindicação

de qualquer opção ou prática sexual. Propõe-se a aceitar qualquer opção sexual, já que a

aceitação exclusiva da heterossexualidade pertence à ética judaico-cristã que hoje

estaria superada. De acordo com Velasco, autores como Rorty, Lyotard e Vattimo

optam pela tolerância, justiça e a vida “fruitiva”, respectivamente, como aspirações

supremas na vida humana.225

Vattimo, por exemplo, faz severas críticas à posição que a Igreja Católica

mantém a respeito do casamento e da heterossexualidade, quando discorre sobre a

questão moral.226 E, dessa forma, alguns teólogos pós-modernos têm permitido o

desenvolvimento da moral específica de cada grupo. Essa mudança tem sido encarada

como necessária em áreas como a sexualidade, que por terem sido reprimidas ou

oprimidas pela moral moderna, hoje tendem a rejeitar até mesmo aquilo que poderia ser

considerado uma moral básica.227

Por isso que, do ponto de vista antropológico-soteriológico, a liberdade humana é

finita e a pessoa precisa reconhecer toda a ação salvífica de Deus em Jesus Cristo,

percebendo que a salvação não é mera realização dos próprios intentos pessoais e

comunitários, ou a projeção de seus sonhos, desejos, muito menos a concretização dos

mesmos, mas sim uma ação permanente de Deus, que busca salvar a integralidade do

ser humano, situando-o no horizonte mesmo da redenção.228

224 IANNI, Octávio, op. cit., p. 125.225 VELASCO, Juan Martín. Ser Cristiano en Una Cultura Posmoderna, p. 53.226 VATTIMO, Gianni. Creer que se Cree, pp. 86-92.227 SIEPIERSKI, P., Protestantismo e Pós-Modernidade. (In: MARASCHIN, Jaci. Teologia SobLimite), p.145.

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Na cultura pós-moderna o religioso se expressa com um forte predomínio da

experiência sobre a razão e sobre a própria explicação da fé. Cada vez mais se enfatiza

a experiência e cada vez menos a teologia como discurso ou como explicação racional

da fé. Como assevera Mardones: “A fé se mede mais pela ortopráxis do que pela

ortodoxia, pela prática correta e vivência de fé do que por sua expressão adequada”.229

Lamentavelmente, a teologia, especialmente a protestante, minimiza a experiência do

indivíduo, considerando-a de um valor quase nulo, para privilegiar o discurso da

Palavra de Deus.

A teologia católica, por outro lado, também minimiza a experiência do indivíduo

ao supervalorizar os dogmas da Igreja. Ora, não podemos supervalorizar os dogmas,

como se bastasse aceitá-los como tal, em detrimentos da experiência da fé, que vivência

exatamente tais verdades. Por outro lado, não podemos supervalorizar a experiência,

que tem sido o caso da cultura pós-moderna, em detrimento das verdades fundantes não

apenas da fé, mas de toda a existência humana. Quando absolutizamos a experiência,

tudo o mais se torna relativo, pois o que vale como verdade é o que sinto. 230

Um caminho viável sugere partir das experiências significativas das pessoas,

explicitando-as para elas mesmas. E, de dentro delas, mostrar como a revelação vem

responder concretamente a elas. A racionalidade se faz por meio da credibilidade e da

inteligibilidade dos sinais da revelação. Volta-se a um caminho antigo em sua

formalidade e atual na escolha e explicitação dos sinais. Se a apologética antiga se

baseava grandemente nos milagres de Jesus, narrados nos evangelhos, para mostrar a

credibilidade de sua pessoa e mensagem, hoje esses sinais devem ser encontrados no

cotidiano das pessoas.231 E a partir disso se faz uma dupla pergunta hermenêutica:

como tais sinais permitem entender a revelação bíblico-cristã? Em que esta revelação

ilumina tais sinais?

228 MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 63.229 MARDONES, José Maria, op. cit., p. 70.230 ROUTHIER, G. “Église locale” ou “Église Particuilière”: querelle sémantique ou optionthéologique, in Studia Canônica 25 (1991), pp. 287-334.

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É preciso, também, pensar na “reconstrução” de uma teologia interdisciplinar e

contextual. Na atualidade, todo estudo no campo social deve ser visto de forma

interdisciplinar. Já não é mais possível e suficiente uma visão unívoca do fenômeno

humano. Ao se falar de teologia, precisamos encarar a tarefa a partir de óticas múltiplas,

dando valor aos pontos de vista de outras ciências sociais. Falar de reconstrução, de

contextualidade e de óticas múltiplas, implica fazer perguntas ao cristianismo que

cremos, professamos e defendemos.

É bem verdade que a pós-modernidade apresenta alguns perigos à teologia, mas

acima de tudo, grandes desafios. Seria irônico e trágico se a teologia se tornasse uma

dos últimos defensores da modernidade já quase moribunda. Para sobreviver num

tempo como esse, é assaz fundamental que a teologia se lance à tarefa de decifrar as

implicações da pós-modernidade para ela e para a Igreja Cristã.232 Possivelmente, a

saída para o teólogo seria não lutar apenas pela sobrevivência de uma teologia

argumentativa, apologética, mas também buscar espaço para uma teologia narrativa.

Ao que tudo indica, parece que não sobrará importante espaço para uma teologia

argumentativa na pós-modernidade, constituindo, então, num grande desafio à fé cristã.

A fé cristã tem diante de si a tarefa hercúlea de promover a verdadeira

liberdade através de uma vivência que desfaça as categorias da ideologia pós-

moderna, carregada pelo individualismo, que é a ideologia da anti-solidariedade e

antialteridade. João Batista Libânio afirma, portanto, que,

[...] esse surto religioso carece de tônus crítico-social. Por isso, não questiona nem afeta o sistemavigente. Antes, favorece-o, ao desempenhar papelterapêutico, tranqüilizando e harmonizando as pessoaspor dentro. As angústias, que o modelo vigente produzpor seu corte materialista, consumista, sem valorestranscendentes, sem ética, competitivo, são aliviadaspelas formas religiosas oferecidas. Elas devolvem ânimoàs pessoas para que superem a decepção e ceticismo, tãopresentes na pós-modernidade. Além disso, aefervescência do sagrado alimenta-se dos recursos damídia. Ela potencializa o impacto das expressõesreligiosas além de estender-lhes a influência.233

231 MACPHERSON, C. B. The Political Theory of Possessive Individualism. Oxford: UniversityPress, 1990.232 Para listagem destes desafios, ver: DONATO VALENTINI. La Cattolicità della ChiesaLocale, In: ASSOCIAZIONE TEOLOGICA ITALIANA, L’Ecclesiologia Contemporanea,Padova, Ed. Messaggero, 1994. pp. 69- 89.233 LIBÂNIO, João Batista, op. cit., In: CALIMAN Cleto (org.). A Sedução do Sagrado. OFenômeno Religioso na Virada do Milênio. p. 63.

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Outra questão séria, e que traz implicações éticas profundas, é a violência

associada a religião. Guerras e ataques terroristas são promovidos por motivações

religiosas, aliadas aos interesses econômico, político e sociocultural. Portanto, os

principais desafios da relação entre as religiões têm seu foco na convivência, no

diálogo, superação de todo tipo de violência, superação de todo tipo de injustiça e na

construção de uma sociedade marcada pela paz e pela alteridade.234

234 KUNG, Hans. Projeto de ética mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivênciahumana. São Paulo. Ed. Paulinas, 1992, p. 108. Ele afirma: “Não haverá paz no mundo sem umapaz entre as religiões”.

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Conclusão

Nossa intenção nesse primeiro capítulo foi promover uma leitura descritiva

da modernidade e da pós-modernidade em suas dimensões sociocultural,

econômica, antropológica e religiosa, onde buscamos certa definição para cada

um dos dois paradigmas. Percorrer esses caminhos tornou-se imprescindível para

uma melhor compreensão de nosso tempo, visto que abriu-nos o horizonte da

percepção, mesmo limitadamente, do caldo religioso pluralista que permeia a

nossa cultura e, certamente, possibilitou-nos verificar aonde e como a proposta do

Evangelho tem chegado aos corações dos homens e mulheres, marcados pela

desesperança e por uma sociedade repleta de sinais de morte e, ainda mais,

configurada por um niilismo existencial que assola diversas áreas da

existencialidade humana.

Falar sobre a liberdade cristã na modernidade e na pós-modernidade sem

perceber a cosmovisão atual bem como desse novo ethos promotor dessa cultura e

do próprio vital humano, seria absolutamente inconcebível e sem relevância para a

contemporaneidade. Levantar tais questões é de suma importância para aferir a

presença do Evangelho, através do anúncio da salvação em Jesus Cristo, no

desafio de apresentá-lo no contexto da diversidade crística, bem como a presença

da Igreja como agente de transformação histórica, sinal do Reino de Deus e

promotora de libertação, no serviço de resgate do vital humano pela ação

libertadora e libertária do Evangelho.

Por isso, como protestante escolhemos a senda do labor teológico em

Calvino, que trata tão bem da temática escolhida. Assim, cumprem-nos lançar um

olhar sobre o contexto do século XVI, verificar as condições e as causas que

produziram o movimento conhecido como a Reforma do Século XVI, tendo João

Calvino como um de seus principais protagonistas.

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Segundo Capítulo

2A Reforma Protestante do Século XVI: um Caminho para aLiberdade Cristã

Há de se afirmar, e de forma categórica, que o tema central de toda a

Reforma Protestante do Século XVI é o da liberdade. Diante de tal constatação,

torna-se imperativo conhecer um pouco sobre a Reforma, como movimento

fundamentalmente religioso235, mas com profundas conseqüências sociais,

institucionais, políticas, econômicas, culturais.

E, mais particularmente, pesquisar sobre João Calvino, um dos maiores

reformadores, contemplando seu contexto histórico, sua vida, obra, sua influência

no seu tempo e em nossos dias, a partir, sobretudo, de sua teologia, mapeando

suas afirmações antropológicas, cristológicas, soteriológicas e eclesiológicas, o

que faremos no terceiro capítulo, fato que certamente resultará na aferição de um

resgate do Evangelho primitivo, bem como da teologia dos grandes Pais da

Igreja.236

235 Em concordância com tal afirmação, citamos o teólogo Hermisten Maia P. da Costa, quecorrobora com tal declaração, em seu artigo A Reforma Protestante, em O Pensamento de JoãoCalvino. São Paulo: Ed. Mackenzie. 2000, p. 14. Em nota número 7 há outras contribuições dignasde serem citadas para ulterior pesquisa: BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social deCalvino. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana. 1990, pp. 43,67; SCHAFF, David S. NossaCrença e a de Nossos Pais. São Paulo: Imprensa Metodista. 1964, p. 66; Fernández-Armesto &Derek Wilson. Reforma: O Cristianismo e o Mundo 1500-2000. Rio de Janeiro: Record, 1997, p.11; GEORGE, Thimothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova. 1994, p. 20; Ofilósofo católico Battista Mondin disse: “A Reforma Protestante foi um acontecimentoessencialmente religioso, mas causou, ao mesmo tempo, profundas transformações políticas,sociais, econômicas e culturais”. (B. Mondin. Curso de Filosofia. São Paulo: Paulinas. 1981, Vol.II, p. 27). Em outro lugar afirma: “Como dissemos no início do capítulo, a Reforma Protestante foiantes e acima de tudo um acontecimento religioso. Em conseqüência disso, ela deve ser estudada ejulgada segundo critérios religiosos, mais precisamente, segundo os critérios da fé cristã, cujoespírito original a Reforma se propunha restabelecer”. (Ibidem, p. 41). O antigo professor deHistória Eclesiástica da Universidade de Yale, Roland H. Bainton (1894?), diz que “A Reforma foiacima de tudo um reavivamento da religião”. (Roland H. Bainton. The Reformation of theSixteenth Century. Boston: Beacon Press. 1985 - edição ampliada), p. 31.236 COSTA, Hermisten Maia P. da. A Reforma Protestante, em O Pensamento de João Calvino.São Paulo: Ed. Mackenzie. 2000, p. 14. Na verdade, a Reforma Protestante é resultado de umasérie de eventos que antecederam tal movimento, dos quais falaremos neste capítulo. Cf.PEREIRA, Eduardo Carlos. O Problema Religioso na América Latina. São Paulo: EmpresaEditora Brasileira. 1920, p. 16. Ver também LÉONARD, Émile G. O Protestantismo Brasileiro.Rio de Janeiro / São Paulo: JUERP/ASTE. 1981, pp. 27,28.

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Ao buscar o genuíno evangelho de Jesus Cristo, Calvino trazia de volta o

tema da liberdade, tão desejada e essencial à vida humana. Na verdade, o que a

Reforma fez foi interpretar – traduzir - o evento Cristo, sob a perspectiva da

liberdade. Mas é em Calvino que a liberdade recebe uma conceituação ética.

Nosso propósito, neste capítulo, é lançar um olhar histórico-analítico sobre o

período da Reforma Protestante do Século XVI, verificando seu pano de fundo, de

forma bastante lacônica, especificamente suas bases e condições políticas,

econômicas, culturais, sociais e religiosas, com seus principais pré-reformadores,

seus lugares mais importantes como palco desse movimento que mudou os rumos

da história ocidental, praticamente em todas as suas dimensões. Cremos que assim

abriremos caminho para uma análise mais específica sobre os temas que

pretendemos destacar em nossa pesquisa, a partir do reformador João Calvino, na

perspectiva da liberdade cristã, no capítulo posterior.

2.1As bases da Reforma Protestante do Século XVI

O século XVI pode ser considerado como o século maduro para a

implementação do movimento conhecido como a Reforma Protestante. Maduro

porque os séculos anteriores pavimentaram e fertilizaram os acontecimentos que

estavam por acontecer nesse período da História. A Reforma foi um movimento

fruto de uma grave crise espiritual que se abatia sobre a Igreja de então.237 O

povo, de modo geral, não encontrava satisfação e realização em sua práxis

religiosa. Reinava um vazio espiritual.

237 DOWNS, Robert B. Fundamentos do Pensamento Moderno. Rio Janeiro: Ed. Renes. 1969,p. 20. Cf. também Giacomo Martina. História da Igreja. De Lutero a nossos dias. O período daReforma. São Paulo. Loyola. Vol I. 1997, pp. 51,52. O mesmo autor afirma que católicos eprotestantes modernos procuram atenuar as crises espirituais e morais que se abatiam sobre aIgreja do século XVI. Cf. p. 53. L. Febvre, grande pesquisador francês, em estudo lançado em1929, concordando com a tese supracitada dos católicos e protestantes, vai afirmar que, naverdade, o século XVI desejava livrar-se da superstição medieval e da aridez escolástica,buscando, portanto, uma nova experiência religiosa, livre de toda hipocrisia, que trouxesse a tãoansiada paz interior. A meu ver L. Febvre fala da mesma necessidade existente na Igreja daqueleséculo, usando palavras diferentes. Cf. Giacomo Martina, op. cit., p. 54.

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Por isso que, em primeiro lugar238, como já dissemos acima, a Reforma teve

uma perspectiva essencialmente religiosa239, desejada por cristãos católicos

piedosos240, o que significa um movimento interior, nascido dentro da própria

Igreja em crise, com forte desejo de transformar a Igreja, e não, necessariamente,

criar uma nova Igreja. Na verdade, se olharmos um pouco a história passada da

Igreja verificaremos muita insatisfação, que se manifestava de muitas e variadas

formas.241 Podemos ainda afirmar que a Reforma foi uma das maiores revoluções

religiosas do mundo moderno num tempo em que o mundo vivia dominado pela

própria religião.

Sendo assim, o alcance da Reforma estendeu-se na cultura e na vida política

e social da Europa como um todo e, certamente, no Ocidente. Dois católicos,

Abbagnano e Visalberghi declaram que “contribuição fundamental à formação da

mentalidade moderna foi a Reforma de Lutero e Calvino”.242

2.1.1O pano de fundo do reformador João Calvino

Os pré-reformadores situavam-se dentro de uma cosmovisão ainda

medieval. Viviam num mundo em profunda inquietação e, conseqüentemente, em

transição. O final do período medieval foi uma fase de muita efervescência. Esta

ebulição de idéias, fatos históricos, movimentos sociais, políticos, religiosos e

econômicos constituiu o pano de fundo da transformação que a modernidade

imprimiu no modo de vida. Duzentos anos foram suficientes para preparar o

mundo para mudanças radicais que foram manifestadas mais claramente na

modernidade.243

238 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., pp. 47,48.239 BIÉLER, André, op. cit. pp. 43,67. Cf. também em David S. Schaff. Nossa Crença e a deNossos Pais. São Paulo: Imprensa Metodista. 1964, p. 66; Fernández-Armesto & Derek Wilson.Reforma: o Cristianismo e o Mundo 1500-2000. Rio de Janeiro: Ed. Record. 1997, p. 11.240 LÉONARD, Émile G., op. cit., pp. 27-28. Cf. também Felipe Fernández-Armesto & DerekWilson, op. cit., pp. 10-11.241 Uma das formas era um tipo de religiosidade repleta de misticismos, que ainda tem expressõesem nossos dias, na prática cristã de modo geral. Por exemplo, Lutero recebeu grande influência deAgostinho (354-430), Mestre Eckhart (c. 1260 – 1327). Ver TILLICH, Paul em História doPensamento Cristão. São Paulo: ASTE. 2000, p. 188.242 ABBAGNANO, N. & VISALBERGHI. A. História de la Pedagogía. Novena reimpresión.México: Fondo de Cultura Econômica. 1990, p. 253. Ver também: WARFIELD, B. B. Calvino e oCalvinismo (New York, 1931), p. 10.243 GIDDENS, Anthony. Sociología. Madri: Alianza Editorial. 1992, p. 90.

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Foram muitos os aspectos que contribuíram para as transformações

religiosas, que estão abalizadas nas dimensões vivenciais que interferiram na

cosmovisão da época. Podemos classificar, pelo menos, mais seis fatores que

contribuíram nesse sentido, que se seguem aos já citados: a instabilidade política,

o fim das cruzadas, o crescimento populacional, o declínio da agricultura e a peste

bubônica.244

Toda a crise encontrou na fragilidade da Igreja Medieval combustível para a

emergência de movimentos reformadores. A sólida política eclesiástica medieval,

embasada no direito canônico, na importância da figura unificadora do Papa e na

disseminação ideológica da Igreja dentro das diretrizes do colegiado, foi abalada

por distúrbios de natureza interna. O chamado cativeiro babilônico, que foi a

existência de um Papa na cidade de Avignon, foi o primeiro sinal mais claro do

desgaste político-ideológico da Igreja Medieval. Mais tarde, o Grande Cisma, com

a coexistência de dois Papas, um em Roma e outro em Avignon, ocasionando a

descentralização do poder da Igreja, facilitou o surgimento de surtos reformadores

e oposicionistas, que eram do interesse das monarquias estabelecidas e dos

burgueses detentores do capital outrora volátil devido à evasão de importantes

divisas à Igreja de Roma.245

244 GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados. Vol. V. São Paulo: Vida Nova. 1986, p.11. Gonzalez aponta três destes aspectos: instabilidade política, fim das cruzadas e decadência daagricultura. Sobre isto, afirma Vale: “A relação do eclesiástico com o poder secular tem o status demaior tema na história medieval européia, mas, durante um período da Idade Média, asecularização tem importância especial. O controle que o papado detinha sobre o poder secularpassou a falhar. Em 1500, o poder secular exercia uma grande influência em toda a Igreja no Norteda Europa, processo que se iniciou desde 1200. Na Alemanha, influências dos príncipes earistocratas foram importantes; na França, o poder da monarquia estava acima do eclesiástico e osprivilégios dos clérigos foram cerceados [...].” (VALE, Malcolm, The Civilization of Courts andCities in the North, In: HOLMES, George, Yhe Oxford History of Medieval Europe, Oxford:Oxford University Press, 1992, p. 276). Esta decadência do poder eclesiástico ocorreuconcomitante à “[...] crise da Idade Média [...] conseqüência das devastações e pandemias, guerra,deterioração climática e depressão econômica [...]”. Ver: CANTOR, Norman F., The Civilizationof the Middle Ages, New York: Harper Perennial, p. 529. Ver também: GONZALEZ, Justo L. AEra dos Sonhos Frustrados. Vol. V, op. cit., 11. Ver também: AQUINO, Ruben. História dasSociedades. Rio de Janeiro: Ed. Ao Livro Técnico. 1978, pp. 420,421. Sobre a crise econômicaque se abateu sobre a Europa, Cf. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material e Capitalismo. SãoPaulo: Ed. Martins Fontes. 1995, p. 62.245 “Novo período de declínio e desmoralização do papado ocorreu no século XIV e início doséculo XV.” Primeiro, os papas residiram na cidade de Avinhão, ao sul da França, por mais desetenta anos (1305-1378), colocando-se sob a influência dos reis franceses. Esse período ficouconhecido como "o cativeiro babilônico da Igreja". Em seguida, por outros quarenta anos (1378-1417), houve dois e finalmente três papas simultâneos (em Roma, Avinhão e Pisa), no que ficouconhecido como "o grande cisma". MATOS, Alderi S., O Papado: Origem e Evolução Histórica.Disponível em http://www.thirdmill.org/files/portuguese. Acesso em 12 de maio de 2004.

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Do ponto de vista do desenvolvimento teológico, este encontrou o seu auge

na escolástica.246 E no desenvolvimento da escolástica, percebe-se o princípio da

ruptura da unidade teológica medieval, marcada, preponderantemente, antes deste

movimento, pela alegorização e repetição dos discursos dos Pais da Igreja, com

poucas contribuições substanciais em comparação com outros períodos

históricos.247

A teologia, exclusivamente neoplatônica e continuísta, cedeu espaço ao

neoplatonismo e aristotelismo devido à contribuição bizantina.248 O pensamento

de Aristóteles, apresentado sob as releituras de Averróis e Maimônides, foi

utilizado pelos teólogos da Igreja, que se familiarizaram com o aristotelismo

árabe-judeu, formando a posteriori seus próprios sistemas filosóficos.249 Dessa

forma, a lógica e a física de Aristóteles finalmente deixaram sua condição de

marginal e adentraram o contexto de fé cristã, auxiliando-a na demonstração da

existência de Deus.250

Esta transformação teológico-ideológica, advinda da influência árabe à

Europa cristã, interferiu na cosmovisão e no desenvolvimento do pensamento

teológico ao modificar a cosmologia e a epistemologia.251 A primeira se dividiu

em uma física predominantemente aristotélica e uma metafísica neoplatônica. Já a

epistemologia apresentou, como alicerce para o edifício teológico, um

neoplatonismo com forte ênfase na experiência, por um lado, ou o aristotelismo

observativo e construtivista, fundamentado na lógica, por outro lado.252

246 GOFF, Jacques Le. Intelectuales en la Edad Media. Cambridge, Mass.: Blackwell, 1993, pp.24-35.247 VELASCO, Juan Martín, Ser Cristiano en Una Cultura Posmoderna, p.53.248 SIEPIERSKI, P., Protestantismo e Pós-Modernidade. (In: MARASCHIN, Jaci, Teologia SobLimite), p. 145.249 HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade, op. cit., p. 190.250 MARDONES, José Maria, op. cit., p. 70.251 LIBÂNIO, João Batista. Desafios da Pós-Modernidade à Teologia Fundamental, (In:TRASFERETTI, José & GONÇALVES, Paulo S. L. (org.), Teologia na Pós-Modernidade, op. cit.,p.165.252 TILLICH, Paul. Teologia Sistemática, op. cit., p. 33.

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A herança do neoplatonismo foi mantida, porém modificada no que diz

respeito ao conteúdo original dos autores helenísticos. Continuava cumprindo

muito bem seu papel de reafirmar os propósitos filosóficos da Igreja, mantendo o

antigo conceito de compreensão das expressões Divinas, feitas exclusivamente

através da fé. A tensão entre este antigo conceito basilar e a cosmologia e

epistemologia aristotélica foi marcante em todo o período da Escolástica.253

O problema fundamental da filosofia medieval estava na relação entre o

conhecimento e a fé, onde a fé detinha a supremacia sobre a razão. A segunda

questão importante e decorrente desta estava na relação entre o universal e o

particular. A expressão do aristotelismo e do neoplatonismo da escolástica se fez

através da distinção, a partir deste, entre nominalistas e realistas.254

Portanto, realismo, realismo moderado e nominalismo são as três fortes

correntes epistemológicas surgidas na escolástica. Ao discutir o fundamento

epistemológico da teologia cristã, elas iam ao encontro do cerne de todo o edifício

teológico, estabelecendo a base a partir da qual se construiria toda a teologia de

então.255

O esplendor da escolástica se deu devido ao desenvolvimento da vida social,

do crescimento das cidades, do comércio, do agravamento das contradições e

tensões entre o poder secular e o papado e ao surgimento de heresias que se

propagaram entre as massas, ocasionando insurreições. Acabou se desenvolvendo

também devido à ampla esfera de publicações filosóficas e científicas e à

divulgação das obras de Aristóteles. O principal escolástico foi Tomás de Aquino,

(1225- 1274), italiano, pertencente à ordem dos dominicanos. Sua teoria tinha por

objetivo rechaçar o averroísmo, reafirmando que a fé e a razão não são apenas

distintas, mas também formam um todo necessário para se conhecer a Deus.256

253 Cf. GELDER, Craig van. Postmodernism as an emerging worldview. In: Calvin theological journal.N. 26, 1991.254 DELISLE, L. "Traités Divers sur les Propriétés des Choses", Histoire Littéraire de France,Paris, 1888, vol. 1, pp. 334-88.255 COSTA, Wladimir. El Continente Prodigioso: Mitos e Imaginario Medieval en la ConquistaAmericana, Caracas: Universidade Central de Venezuela / Edição da Biblioteca Central, 1992. Cf.FREIDMAN, John B., The Monstrous Races in Medieval Art and Thought, Cambridge,Massachusetts/ London, England: Harvard University Press, 1981. p. 37. Ver também: BOBBIO,Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo:Universidade Estadual Paulista, 1995. p. 129.256 ESCOBAR, Valenzuela, G. Ética. Introducción a su problemática y su historia. 3ª. edición.McGraw-Hill. México. 1992, pp. 190-193.

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93

Os resultados da reflexão baseada na razão e a mesma fundamentada na fé,

chegam aos mesmos resultados.257 Utiliza o idealismo de Aristóteles, afirmando

que a matéria não pode existir dissociada de sua forma, e que a forma pode existir

separada da matéria. Ou seja: nada pode existir de forma independente daquilo

que foi pré-determinado por Deus, um ser puramente espiritual.258

Tomás de Aquino foi partidário do realismo moderado, afirmando não ser

possível uma correlação plena entre as idéias e a realidade. O geral, para Aquino,

é produto do intelecto, porém existe por si mesmo na mente de Deus, e a mente é

uma aptidão mais elevada que a vontade. É na mente que se situa o

conhecimento.259

A importante transição para a releitura de Tomás de Aquino, que influenciou

todo o período dos pré-reformadores, foi Duns Escoto (1265- 1308), pois

afirmava ser Deus o objeto da teologia; e a filosofia consiste em ontologia pura e

simplesmente. Por isto, o conhecimento de Deus mediante a filosofia só pode ser

limitado e o ser humano não pode ter nenhum conhecimento das substâncias

imateriais, como Deus e os anjos. Deus é a forma pura, e as demais coisas são

materiais.260

A missão do conhecimento é conhecer a singularidade, pois esta é o que

realmente existe.261 O conhecimento do mundo começa com a experimentação.

Todas as ciências têm por fonte de saber o singular, porém todas tratam também

dos universais. A ciência, neste aspecto, serve para distinguir conceitos, e não

coisas.262 Portanto, Ockham é dualista, pois afirma que o experimento é fonte de

saber e, por outro lado, diz que os símbolos são meios de conhecimento.263 A

medida que a ciência se fortalecia, a escolástica cedia espaço para esta.

257 BALTASAR, Castro Cossío. Ética Filosófica. México: Ed. Diana, 1987, pp. 39-41258 FRANKI, Victor. El Augustinismo Franciscano del Siglo XIII como Raiz de la FisicaMatematica Moderna, Bolivar, n. 16, Bogotá, pp. 23-42.259 FABRO, Cornelio, C.P.S. Participation et Causalité selon S. Thomas d’Aquin, Pub.Univ. deLouvain, 1961. p. 121.260 GOMIDE, F. M. Exemplos do Jugo de Aristóteles na Filosofia e na Ciência, Reflexão(PUCCAMP), n. 64-65. 1996, pp. 154-185.261 CASSIRER, Ernst. Filosofia de la Ilustración. Cidade do México: Fondo de Cultura. 1943, p.12.262 HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Lisboa: Ed. Dom Quixote.1990, p. 111.263 DI PASQUALE, Giovanni. História da ciência e da tecnologia: da pré-história aorenascimento. Lisboa: Edições ASA, 2002. p. 53.

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94

Os pré-reformadores estavam embebecidos pelos pensamentos da

escolástica, pricipalmente pela nova cosmovisão teológica de Aquino, gestada e

concebida a partir de um duplo foco: da revelação e da reflexão autônoma, sob a

síntese da fé cristã e do pensamento aristotélico.264 Este aspecto gerou um impasse

teológico, no sentido de que a teologia estava fadada à morte, suprimida pela

abrangência da teodicéia.265 Este impasse não foi bem resolvido com as

formulações de Duns Escoto e Guilherme de Ockham e permanecia gerando

problemas.266

Dentro desse espectro, os pré-reformadores seguiram, em grande parte, as

tendências teológicas do seu tempo. O principal fator diferenciador está atrelado a

uma volta a Agostinho, com transformações importantes na cosmovisão

eclesiológica da época, chocando-se, assim, com as estruturas da Igreja neste

período.267 Foi validada a contestação da Igreja a partir da construção de uma

teologia fundada na racionalidade, e não mais nas inúmeras afirmações dos Pais

da Igreja.268 A ruptura foi buscada a partir do dado epistemológico, não pelo dado

fideístico.269

Uma influência decisiva no pensamento dos pré-reformadores foi a mística.

Esta consiste na crença da capacidade do ser humano de levar a cabo a sua

comunicação direta com Deus. E esta comunicação, contato ou experiência é

situada acima dos dogmas e da teologia.270

O primeiro místico medieval que constituiu grande influência foi Bernardo

de Clairvaux (1091- 1153), que ensinava que o êxtase místico se alcança mediante

a cooperação entre o livre arbítrio e a graça de Deus.271

264 LIBANIO, J. Batista. Introdução à Teologia, op. cit., p. 131. Cf. DREHER, M.. op. cit., p. 88.265 BARTHES, R. “L’ancienne rhétorique Aide-mémoire”. En Communication, 16: 172-229.266 FLORESCU, V. La thétorique et la néothétorique. Gènese, Évolution, Perspectives. Bucarest:Editura Academiei. 1982, p. 43.267 VIVES, J. L. De ratione dicendi. En J. L. Vives, Opera Omnia. Edição de G. Mayans.Valencia: Monfort. VOL. II, pp. 1782-1785.268 GARIN, E. Medioevo y Renacimiento. Madrid: Taurus. 1981, p. 28.269 MURPHY James J. La Retórica en la Edad Media. Historia de la teoría de la retórica desdeSan Agustín hasta el Renacimiento (1974), México, FCE, p. 134.270 ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. p. 176.271 GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes. 1998, p. 45.

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Em meio a esse turbilhão de mudanças, o misticismo religioso alemão

nasceu fortalecido pela grande ênfase que a escolástica dava à razão, em

detrimento da emoção, preenchendo a lacuna que não foi atendida pelo

movimento pré-reformador.272 Conseqüentemente, é a expressão dos nominalistas

que se volta para o misticismo como forma de conhecer a Deus.273 Historicamente

podemos identificar dois tipos de misticismo; o misticismo cristocêntrico,

centrado na pessoa e na influência de Cristo entre os místicos, e o misticismo

neoplatônico, de tendência mais filosófica e especulativa.274 O misticismo se

desenvolveu principalmente na Alemanha, nas margens do Reno.

Nesse sentido, constatamos que a devoção moderna nasceu no meio da

burguesia, entre os necessitados de expressividade espiritual, num período regido

pela força do pensamento escolástico, que havia, de certa forma, deixado de lado

o espaço para a piedade medieval. Com a escolástica perdendo sua força, a

devoção moderna ganhou terreno.275 Estas três forças, a tensão entre o

nominalismo e o realismo tomista e o misticismo, são fundamentais para

compreender o surgimento e pensamento dos pré-reformadores.

2.2Os Pré-reformadores

Os pré-reformadores são pensadores cristãos de transição. A necessidade de

mudanças profundas na Igreja vinha sendo anunciada, já que a Igreja estava em

situação de profundo desprestígio. Para o surgimento dos pré-reformadores, o

cenário social, político, econômico e eclesiástico da época contribuiu para

manifestações de insatisfação com a Igreja da época e, muitas vezes, com o apoio

do Estado, para divulgar suas posições teológicas, com conseqüências diretas na

vida eclesial e social.

272 CAIRNS, E.., op. cit., p. 202.273 LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva. 1984, p. 27.274 GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 123.275 DREHER, Martin. Vol. III. op. cit., p. 120.

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Na verdade, o que aconteceu foi a união da piedade à práxis, ocasionando o

exercício da crítica, filha da liberdade. Fruto direto dos místicos alemães e da

nova devoção moderna, receberam como herança a busca pela piedade e a

devoção. Já dos humanistas, herdaram a busca às origens na patrística,

principalmente Santo Agostinho.

Assim, no século XV, em 1437, o rei Afonso V de Aragão chamava a

atenção para o fato de que a Igreja provocava muitos escândalos, evidenciando

assim, uma clara necessidade de se estabelecer mudanças.276 As críticas à Igreja

Católica, que foram formuladas nos séculos XIV e XV, partiam de muitas

direções, já que os abusos de parte do clero, somados à medievalidade das suas

estruturas e pensamentos, clamavam por mudanças estruturais e espirituais.

A causa da Reforma é tão complexa, que a não-menção aos pré-

reformadores torna impossível compreender satisfatoriamente o período. As

necessidades religiosas do período exigiram dos movimentos respostas que foram

sendo dadas através de rupturas mais ou menos impactantes ou profundas,

conforme o contexto e o nível de apoio das classes burguesas emergentes. Nesta

direção, não é apenas a decadência moral da Igreja Romana a causa da Reforma,

mas também foi uma transformação profunda da sociedade, culminando na

emergência de novos movimentos.277

A simultaneidade dos problemas que ocasionaram o ocaso da era medieval

são responsáveis diretos para o crescimento da sensação de crise e insatisfação. O

crescimento das cidades provocou a ascensão de classes que se viam limitadas

pela influência massiva da Igreja em todos os negócios públicos e/ou privados.

Crises sucessivas, já mencionadas, acabaram por abrir a possibilidade de

transições e, neste contexto transitório, os pré-reformadores surgem como figuras

contestatórias.

Porém, especificamente os movimentos apresentam diferenças

significativas. Por isso, torna-se imprescindível um olhar histórico-analítico sobre

alguns dos principais pré-reformadores, que contribuíram para a pavimentação da

estrada pela qual a Reforma Protestante trilharia com seus caminhantes.

276 FREITAS, Gustavo. 900 textos e documentos de História. Lisboa: Plátano, sd, vol. II. p. 156.277 DELUMEAU, Jean. Nascimento e Afirmação da Reforma. São Paulo: Editora Pioneira,1989, p 59.

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2.2.1John Wycliff e os Lolardos

É impossível falar de alguns pré-reformadores sem iniciar com John

Wycliff. Ele nasceu em 1320, em North Riding of Yorkshire.278 Formou-se no

Balliol College, de Oxford, e foi ordenado sacerdote em data desconhecida, sendo

indício da sua ordenação sua atividade na Igreja de Westbury-on-Trim, além de

pertencer à Cúria Romana, em 1361.279 Não apenas graduou-se na universidade de

Oxford, mas também se tornou brilhante professor de Filosofia e Tologia nesta

instituição. Tanto seu período na Igreja de Westbury-on-Trim, quanto em

Lutterworth, são indícios da sua participação na simonia da qual usufruíam os

grandes prelados, por obter vantagens econômicas através do serviço à Igreja.280

Quando retornou à Inglaterra, Wycliff passou a apresentar fortes críticas à

Igreja. Na medida em que aprofundava seus estudos escriturísticos, suas críticas

tornaram-se mais contundentes, sobretudo a partir do Grande Cisma de 1378. Em

1376, leu para seus alunos o tratado Do Domínio Civil, escrito por suas mãos. Sua

repercussão foi tão grande, que os parlamentares ingleses se inspiraram nele para

produzir os 140 artigos de uma lei para corrigir os abusos eclesiásticos. Neste e

em outros tratados, Wycliff denunciava as incoerências da Igreja quando se

envolvia na aquisição de bens temporais. Tais posturas de Wycliff, logicamente

contrárias à Igreja, fizeram com que ele fosse convocado pelo bispo de

Canterburry, a fim de que se apresentasse ao bispo de Londres, em 1377.281 Ele

foi acompanhado por Lord Percy e mais quatro doutores, que defenderam Wycliff

antes mesmo de qualquer pronunciamento seu, o que provocou o final da reunião.

278 CERNI, Ricardo, op. cit., p. 19. Escolhemos este autor por fornecer uma biografia maiscompleta e exata. Outros autores, quanto ao ano, fornecem outras indicações, como Cairns, E. E.,O Cristianismo através dos séculos, p. 204, aponta o ano de 1328; Dreher, M., A Igreja noMundo Medieval, defende o ano de 1324. A Enciclopédia Barsa, p. 506, Vol. XVI, aponta o anode 1330.279 CERNI, Ricardo, op. cit., p. 19.280 Simonia é alusivo à compra e venda de cargos eclesiásticos. O nome deriva de Simão, omágico, personagem bíblico que pretendia comprar o dom de Deus (At 8:9-13). Ver GONZALEZ,Justo L., op. cit., pp. 55,85.281 GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 83.

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Em maio de 1377, Gregório XI condena 18 teses do livro Do Domínio Civil.

Mesmo assim, Wycliff não foi preso, mas protegido. Alguns meses depois,

quando consultado sobre a legalidade da proibição de emitir dinheiro para Roma,

ele expressou sua posição favorável a tal decisão. Uma vez tomando posição em

favor do governo do rei contra o papado, Wycliff afirmava, em outras palavras,

que os bens temporais eram nocivos à lgreja e que, portanto, os príncipes tinham o

direito de se apossar dos mesmos, quando os clérigos não os utilizam

devidamente. Ou seja, o ideal seria que o Estado secularizasse todas as

propriedades da Igreja e se encarregasse diretamente do sustento do clero.282

Wycliff reprovou duramente a eleição de Clemente VII, no lugar de Urbano

VI, o que resultou no cisma do Ocidente, declarando que a Igreja poderia

sobreviver sem a figura do Papa.283 Tais idéias encontravam eco na corte e entre

os nobres. No entanto, os nobres perceberam, nas doutrinas de Wycliff, o

princípio de que seus súditos tinham que ser atendidos em suas necessidades.284

No compasso crescente de suas novas idéias, Wycliff, em 1380, escreveu um

ataque formal contra as doutrinas da eucaristia, inclusive a transubstanciação,

tratado este chamado Trialogus.285 Rejeitava a real presença de Cristo na

eucaristia. Para ele, todo cristão só receberia espiritualmente o corpo e o sangue

de Cristo.

282 MOTA, Carlos Guilherme. A Revolução Religiosa: Lutero e a Reforma em Lutero e aReforma. 480 anos depois das 95 teses, uma avaliação dos seus aspectos teológicos, filosóficos,políticos, sociais e econômicos. São Paulo: Ed. Mackenzie. 2000, pp. 41,42. Wycliff demonstroumuita força através de suas idéias, que buscavam não apenas uma reforma na Igreja, mas tambémque tais reformas alcançassem a vida social, política e econômica do povo. De certa forma, eleantecipou as críticas sociais e políticas que, mais tarde, foram feitas por Shakespeare, Morus eHobbes (Cf. p. 41). Na verdade, muitos setores da sociedade, tais como os burgueses, camponeses,inclusive a chamada pequena nobreza, exigiam uma reforma eclesiástica, sobretudo, que a Igrejavendesse suas terras. Houve uma intensificação do sentimento anticlerical (Cf. p. 42).283 CERNI, Ricardo. Historia del Protestantismo, op. cit., p. 22 e Enciclopédia Barsa, op. cit..284 GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 86. Os cristãos na lnglaterrasempre tenderam a se isolar do resto da Igreja, vivendo certo separatismo, talvez por sua posiçãogeográfica singular, o que facilitava às idéias de Wycliff.285 Wycliff abre, através da sua obra, uma discussão intensa sobre as doutrinas que substituiriam aconcepção católico-romana de sacramento. As doutrinas que surgiram em decorrência a esta críticaforam contrapostas, por ser o sacramento uma questão teológica fundamental. Isto motivou crisesentre os Reformadores. Um exemplo foram as diferenças entre Zwinglio e Lutero a respeito dosacramento da Santa Ceia, que se mostraram insuperáveis no decorrer da segunda metade dadécada de 1520. Ver: LIENHARD, M. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. São Leopoldo:Sinodal, 1998. Original em francês, pp. 183-189.

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Na verdade, ele afirmava ser impossível que os elementos tenham deixado

de ser pão e vinho. Esta questão era analisada por ele segundo o conceito da

encarnação: da mesma forma que a negação da encarnação de Deus constitui a

heresia do docetismo, a doutrina da transubstanciação negava a presença espiritual

de Cristo nos elementos. Portanto, da mesma forma que na encarnação a alma

encontra o corpo, Cristo está presente de forma espiritual nos elementos

sacramentais, segundo Wycliff.286

As Escrituras deveriam ser a única norma de fé. Elaborou também uma

tradução das Escrituras para o inglês, diretamente da Vulgata, colocando a Bíblia

ao alcance do povo. Mandava sacerdotes pobres e leigos de dois em dois para

anunciar as Boas Novas. A Igreja de então passou a chamá-los de lolardos.287

Defendia que a predicatio verbi (pregação da Palavra) era de fundamental

importância e que podia ser realizada não apenas pelos clérigos, mas também

pelos leigos, desde que fossem membros da Igreja invisível, podendo ser esta

pregação realizada na língua nacional.288

Santo Agostinho e Tomás de Aquino influenciaram bastante o pensamento

de Wycliff, que formula, a partir destes, suas doutrinas sobre a revelação e a

Igreja. Quanto à relação entre razão e revelação, concebe o pensamento de que

“ambas – revelação e razão - levam a mesma verdade universal”.289 A partir do

pensamento de Agostinho, Wycliff adotou a doutrina da predestinação, sendo a

Igreja o espaço dos predestinados. Ainda no lastro de Agostinho, classificou a

Igreja entre a comunidade visível, formada de todos os que a ela aderem por meio

do batismo e da comunidade invisível, formada por todos aqueles salvos, que só

Deus os conhecia. Com isso, a Igreja Visível fica marcada pela percepção clara de

que nem todos que dela fazem parte são verdadeiramente salvos.

286 GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 366.287 BOSTICK, Curtis V. The Antichrist and the Lollards. Leiden: Brill, 1998. p. 23. Comoresultado do corpo de doutrinas de Wycliff, como já mencionamos acima, surgiu o grupo chamadoLolardo. Eram, inicialmente, discípulos de Wycliff, pessoas do círculo acadêmico e de posiçãosocial elevada. A origem do termo lolardo se origina da língua holandesa e significamurmuradores ou lollium, joio. Eles disseminavam seus pensamentos entre o povo, recebendomaior aceitação das classes mais pobres. Tornaram-se pregadores leigos, anunciando e apontandoos desvios da Igreja, bem como do clero, incluindo desvios de ordem moral, o culto às imagens e adoutrina da transubstanciação. Cf. Bostick, Curtis V. The Antichrist and the Lollards. Leiden:Brill, 1998. p. 123.288 TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: Ed. ASTE, 2000, p. 191.289 Ibidem, p. 363.

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Segundo Tillich, esta doutrina constituía uma grave denúncia à Igreja

Romana, pois que questionava, de forma direta, os membros do clero através

daquilo que representavam e aquilo que viviam, sendo, portanto, desconsiderada a

autoridade destes quando demonstram que não estão a serviço dos interesses do

Reino de Deus, porque, na verdade, dEle não faziam parte.290

Nas palavras de Jean-Jacques Chevalier, quando Wycliff abordava as

doutrinas sobre o senhorio, elas “ressuscitam em favor do rei as doutrinas de

Gregório Magno”.291 Tal afirmação se prende ao fato de que, assim como

Gregório, Wycliff ensina que o rei é vigário de Deus e, portanto, representante da

realeza de Cristo. A Igreja deve ser independente do governo secular e, por sua

vez, o governo também deve ser independente da Igreja. Ou seja, o papel do

governo secular é servir a sociedade, buscando seu bem estar, pois foi instituído

por Deus para tal propósito. Sendo assim, uma vez que o Estado não exerce sua

função, não deve ser considerado legítimo.292

João Wycliff foi um dos exemplos de pensadores que, mesmo em face da

predominância da visão do quádruplo sentido da Escritura (histórico, alegórico,

tropológico e anagógico),293 defendeu e usou aquilo que poderia ser descrito como

uma hermenêutica histórico-gramatical incipiente.

290 TILLICH, Paul, op. cit., p. 189.291 CHEVALIER, Jean-Jacques. História do Pensamento Político, Tomo I, p. 251.292 GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustados, op. cit., p. 364.293 Sob influência de João Cassiano (360-435) que ensinou em uma célebre quadra: “Littera gestadocet, Quid credas allegoria, Moralis quid agas, Quo tendas anagogia.” Que poderia sertraduzido como: “A letra nos mostra o que aconteceu; a alegoria, no que devemos crer; a moral(sentido tropológico), como devemos viver; a anagogia, para onde estamos indo.”

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2.2.2John Huss e os Hussitas

John Huss foi adepto dos pensamentos de Wycliff. O tcheco nasceu, em

1373, em Hussinek, uma pequena aldeia da Boêmia.294 Logo cedo, aos dezesseis

anos, ingressou na Universidade de Praga, alcançando grande notoriedade.

Tornou-se professor, em 1398, sendo também ordenado e logo assumindo o posto

de pregador da Capela dos Santos Inocentes de Belém, em Praga.295 Ele

ministrava os cultos em língua boêmia e introduziu reformas litúrgicas conforme

sua teologia.296

Neste tempo, pregava contra os abusos da Igreja, sem apresentar variação na

ortodoxia comumente aceita. Mas afirmava “que os fiéis deveriam ser

considerados iguais nas atividades religiosas, contra os dogmas da Igreja”.297 Não

podemos deixar de afirmar que o solo da Boêmia estava preparado para a

fermentação de suas idéias, pois, além de vestígios de antigos pensamentos

religiosos (cátaros, valdenses), a decadência moral e a ignorância do povo eram

notáveis.

Mesmo com um corpo de doutrinas um tanto quanto eqüidistante da Igreja,

seu posicionamento alcançou os círculos acadêmicos em contundentes e acirradas

disputas. Por meio de Jerônimo de Praga, um de seus discípulos, teve acesso às

obras de Wycliff, que influenciaram grandemente seu pensamento, embora com

posicionamento diferente de Wycliff quanto ao sacramento eucarístico. Ao

defender algumas teses de Wycliff, Huss foi excomungado, mas não parou de

pregar.298 Roma o convocou a fim de que desse explicações acerca de seus

pensamentos. Não comparecendo, foi novamente excomungado, dessa vez pelo

cardeal Collona, em 1411, em nome do Papa.

294 A maioria dos autores consultados concorda com este ano. Apenas Justo Gonzalez apresentauma data indefinida. Martin Dreher defende o ano de 1369 e P. Kubricht defende o ano de 1372.Veja: CERNI, R., op. cit., p. 24; DERHER, Martin. Vol. III. op. cit., p. 119; GONZALEZ, Justo.,op. cit., p. 95; KUBRICHT, P., Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, p. 280.295 GONZALEZ, Justo L. Historia del Pensamiento Cristiano, p. 367.296 Doutrinas estas influenciadas por Wycliff, e aplicadas na Reforma da Igreja Boêmia e postas aserviço da dissolução da dependência ou dominação dos alemães na Boêmia. Ver: CANTOR,Norman F., The Civilization of the Middle Ages, New York: Harper Perennial, p. 500. Vertambém: GONZALEZ, Justo L.. op. cit., p. 368.297 MOTA, Carlos Guilherme., op. cit., p. 42.298 CERNI, Ricardo. op. cit., p. 26.

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O sucessor de Alexandre V foi João XXIII, como papa pisano, que publicou

uma bula fornecendo indulgências para quem lutasse contra Ladislau de Nápoles,

protetor de Gregório XII. Huss se posicionou contra a Bula, o que gerou grandes

conflitos em Praga. O rei, que apoiava o Papa pisano, proibiu as críticas à venda

de indulgências, sendo, posteriormente, esta ordem revogada devido a um acordo

entre o papa e Sigismundo, sucessor de Venceslau.299 Pela terceira vez, Huss foi

excomungado, agora em 1412, pois não obedecera à nova ordem do Papa de se

apresentar em Roma. Houve, então, um interdito a qualquer cidade que porventura

viesse a acolher Huss. Diante de tal decreto, Huss foge para o interior da Boêmia,

mas não desiste de pregar.300 O pregador retirou-se, então, para o castelo de um

nobre seu amigo, para onde o povo se pôs a peregrinar em massa. O hussismo, em

pouco tempo, alcançou influxo predominante na Boêmia. A apostasia de quase um

povo inteiro abalou o sentimento cristão ocidental.

O imperador Sigismundo, da Alemanha, irmão do rei Venceslau, da Boêmia,

convidou Huss a comparecer no Concílio de Constança e, de fato, ele se

apresentou, com um salvo-conduto, em novembro de 1414. Huss, porém, só

encontrou adversidade e rejeição. O Concílio e as autoridades trataram-no como

herege, prendendo-o. Sigismundo inicialmente protestou, mas, posteriormente,

revogou sua decisão por não querer ser identificado como um herege.301 Só

restava uma opção para Huss, retratar-se diante do Concílio. Considerado herege

por permanecer irredutível, sua morte foi decretada, em 6 de julho de 1415.302

Suas maiores contribuições, no campo teológico, foram os seus

posicionamentos apresentados em suas pregações. Huss defendia uma fé

cristocêntrica, enfatizava a responsabilidade individual, acreditava no perdão de

pecados somente através de Jesus Cristo, aguardava um juízo escatológico, era

contrário à veneração do Papa e deu importantes contribuições litúrgicas,

inserindo, na capela de Belém, uma liturgia de cunho nacional.

299 LÁSZLÓ, Barta, “A spanyolországi hungarica-kutatás története (Historiografia deinvestigações de temas húngaros na Espanha)”. Levéltári Szemle (Cadernos Arquivados). 1989.No2; ANDERLE, Adam, A fekete legenda “Magyarországon”. (A Lenda Negra na Hungria).Világtörténet. Budapest, 1985. No 3, pp. 4-16; do mesmo autor: En contacto. Historia de lasrelaciones húngaro-españolas. Sevilha: Ed. Hungexpo, 1992, p. 28.300 GONZALEZ, Justo L, op. cit., p. 99.301 GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 100.302 CERNI, Ricardo. Historia del Protestantismo, op. cit., p. 27 e KUBRICHT, P., op. cit., p. 281.Cf. MOTA, Carlos Guilherme. A Revolução Religiosa: Lutero e a Reforma, op. cit., 42.

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A execução de Huss foi recebida, na Boêmia, como uma ofensa à nação. A

reação hussista-nacionalista foi violenta e os sacerdotes não hussistas foram, em

grande número, expulsos. A rainha Sofia e as damas nobres tomaram aberto

partido por Huss como herói e mártir nacional. Quase toda a nobreza da Boêmia e

da Morávia enviaram um protesto para Constança, afirmando que Huss fora

virtuoso e ortodoxo e que os boatos de uma heresia boêmia eram invenção do

inferno. Ao mesmo tempo, formou-se uma Liga em defesa da liberdade de

pregação, para a proteção contra a autoridade episcopal e a excomunhão injusta.

Introduziu-se a praxe do cálice dos leigos (comunhão sob as duas espécies)303

como símbolo da facção hussista.304 Esta dominou a Boêmia quase totalmente

durante vários anos. Em 1419, o rei Venceslau restabeleceu os sacerdotes

expulsos, o que provocou violenta revolução, na qual foram assassinados sete

conselheiros reais, vindo o rei Venceslau a morrer do coração em conseqüência

deste golpe.305

2.2.3Jerônimo Savonarola

Jerônimo Savonarola viveu no século XV, mas esteve à frente de seu tempo.

Nasceu em 1452, em Ferrara.306 Recebeu educação rígida pelo avô. Segundo

Ricardo Cerni, Savonarola ouviu um sermão, em 1474, em Faenza, que o

impactou tremendamente, mudando definitivamente a direção de sua história. Em

seguida, entrou para o convento de São Domingo, onde recebeu sua formação

religiosa.

303 KÜNG, Hans, Veracidade: o futuro da Igreja, p. 100.304 Alguns destes, não concordando com possíveis acordos, fundaram a Unitas Fratrum, quechegou a ser muito numerosa na Boêmia e Moravia. Com o advento da Reforma Luterana, elesestabeleceram relações com os protestantes. Os austríacos passaram a perseguí-los e a organizaçãofoi praticamente destruída, sendo João Amós Comênio um representante do remanescente, queainda lutava pela instauração da ordem, o que ocorreu com o remanescente da ordem, os chamados“morávios”. Cf. RAMPAZO, L. Antropologia, religiões e valores cristãos, p. 114.305 É importante afirmar que o movimento reformador dos Hussitas nasceu devido à confluência devárias condições. A primeira foi a crise econômica e política durante o reinado de Venceslau IV(1378-1419), que sucedeu a Carlos IV. Esta crise foi exacerbada pelos problemas registrados naEuropa desse tempo (Grande Cisma, críticas à Igreja).306 GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 157.

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Sua erudição bíblica era incomparável no seu tempo, assim como sua

tremenda capacidade oratória. Enfrentou duramente a autoridade papal,

desafiando a Igreja a uma reforma espiritual e, conseqüentemente, moral. Sua

proeminência não se deu pela proximidade teológica com Wycliff e Huss, nem

por algum legado, transmitido através de um movimento que fosse importante

para a Reforma Protestante, que viria um século depois.307

Dada sua extraordinária capacidade intelectual, foi mandado a Florença,

porém, seus sermões não agradaram tanto os florentinos. Foi, então, para Bologna,

obtendo a função de mestre de estudos. Um humanista, chamado Pico de la

Mirandola, admirador de Savonarola, o indicou para Lourenço de Médicis. Ali

começou a expor as Escrituras no Convento de São Marcos, e suas conferências

começaram a atrair multidões. Em 1491, foi convidado para pregar em Santa

Maria das Flores, mas sua pregação não agradou os principais da cidade, uma vez

que sua mensagem possuía uma forte ênfase profética, denunciando,

peremptoriamente, o abuso dos impostos e a grande corrupção da cidade.

Savonarola fez da vida, no convento, um "exemplo de santidade e serviço”.308

Os excessos morais e hábitos pagãos foram totalmente eliminados. Livros,

jóias, perucas e luxos foram queimados na cidade, com a intenção de eliminar a

vaidade. Savonarola estava em seu apogeu em Florença, porém a situação era

instável, uma vez que a economia da cidade enfrentava graves problemas.

Entretanto, as mãos habilidosas de Savonarola sustentavam a situação

provisoriamente.

Negando submissão à Santa Aliança, Savonarola foi excomungado pelo

papa e proibido de pregar. Savonarola declarou inválida a excomunhão, mas

parou, momentaneamente, de pregar. Após seu retorno, usou, além de sua voz, a

imprensa para discursar contra a imoralidade da Igreja. Alexandre VI tentou

convencê-lo, oferecendo-lhe o cargo de cardeal, que foi recusado. Savonarola

começou, então, a perder prestígio em Florença.

307 CAIRNS, E. O Cristianismo Através dos Séculos, op. cit., p. 207.308 GONZALEZ, Justo L. A Era dos Sonhos Frustrados, op. cit., p. 159.

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Portanto, como vimos, a grande influência dos pré-reformadores incentivou

o nascimento de vários grupos que continuaram a desenvolver suas idéias

reformistas. Entre esses grupos, destacamos os lolardos, que foram decisivos na

Reforma Inglesa. Já na Reforma Alemã, temos os Morávios, surgidos dentre os

Irmãos Unidos,309 que tiveram também importância fundamental. Como dissemos

acima, a estrada estava pavimentada para a deflagração da Reforma Protestante do

Século XVI.

2.3A Reforma Protestante

A história narra que a Igreja ocidental dos séculos XV e XVI estava

demasiadamente cansada das demandas da Idade Média, como se já não

conseguisse mais responder aos seus novos interlocutores.310 Havia uma clara e

evidente necessidade de se promover uma reforma na Igreja e na sociedade, em

suas mais variadas áreas. O historiador Alister McGrath diz o seguinte:

A Igreja ocidental parecia estar exaurida pelasdemandas da Idade Média, que tinha visto o poderpolítico da Igreja e, especialmente, do papado, alcançarníveis jamais conhecidos anteriormente. As engrenagensadministrativa, legal, financeira e diplomática da Igrejaestavam bem lubrificadas e trabalhando com eficiência.Certamente, é verdade que os papas da Renascençaexerceram sua autoridade durante um período dedecadência moral, de conspiração financeira e de poderpolítico tremendamente mal-sucedido, que severamentedesafiava a credibilidade da Igreja como guia moral eespiritual. Ainda assim, como instituição, a Igreja naEuropa ocidental dava claros sinais de solidez epermanência. Entretanto, havia os sinais de exaustão, dedecadência.311

309 The Church Order of the Unitas Fratrum, I.1.310 WALLACE, Ronald. Calvino, Genebra e a Reforma. Um estudo sobre Calvino como umReformador Social, Clérigo, Pastor e Teólogo. São Paulo: Cultura Cristã. 2003, p. 97.311 MCGRATH, Alister. A Vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã. 2004, p. 19.

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Sem dúvida alguma que uma das mais graves crises, no período que

antecedeu a Reforma, foi de cunho eminentemente religioso. Havia um vazio

espiritual sem precedentes na história do cristianismo. A Igreja não estava

atendendo às demandas espirituais do povo. As conseqüências eram desastrosas

na vida das pessoas. Pairava, no coração do povo, uma total insegurança quanto à

salvação. A fé, ensinada pela Igreja, não supria tal carência.

O teólogo Paul Tillich (1886-1965) faz o seguinte comentário, analisando tal

período:

Sob tais condições, jamais alguém poderia saber seseria salvo, pois jamais se pode fazer o suficiente;ninguém podia receber doses suficientes do tipo mágicoda graça, nem realizar número suficiente de méritos e deobras de ascese. Como resultado desse estado de coisas,havia muita ansiedade no final da Idade Média.312

Na verdade, era como se a Igreja houvesse perdido seu senso de direção,

envolvendo-se cada vez mais em questões meramente seculares, através da

sedução do poder, prazeres e riquezas materiais, expressando, assim, certo nível

de entupimento em suas artérias eclesiásticas.313 Sua prática não era mais tão

verossímil quanto seu discurso.

Portanto, a Reforma Protestante carregava em si o embrião das grandes

transformações, não apenas religiosas, mas culturais, sociais, políticas,

econômicas etc. O teólogo Hermisten diz que “era impossível alguém abraçar a

Reforma apenas no campo da religião e continuar, em tudo o mais, a ser um

homem de uma ética medieval, com a sua perspectiva da realidade e prática

intocáveis. A Reforma, em sua própria constituição, era extremamente

revolucionária”.314

312 TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE. 1988, p. 210. O holandêsHuizinga afirma que, no apagar da Idade Média, existia um tremendo espírito de melancolia nocoração do povo. Cf. Johan Huizinga. O Declínio da Idade Média. São Paulo: Verbo/EDUSP.1978, p. 31. Cf. André Biéler. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. São Paulo: CasaEditora Presbiteriana. 1990, pp. 43,67; Ver André Biéler. A Força Oculta dos Protestantes. SãoPaulo: Ed. Cultura Cristã. 1999, pp. 49-51; David Schaff. Nossa Crença e a de Nossos Pais. SãoPaulo: 2a edição. Imprensa Metodista. 1964, p. 66; Ver Felipe Fernández-Armesto & DerekWilson. Reforma: O Cristianismo e o Mundo 1500-2000. Rio de Janeiro: Ed. Record. 1997, p. 11.313 MCGRATH, Alister, op. cit., p. 20.314 COSTA, Hermisten Maia Pereira, op. cit., p. 77. Timothy George afirma que “a Reformaocupou, e deve continuar a ocupar, um legítimo e significativo lugar na história das idéias”.GEORGE, Timothy. A Teologia dos Reformadores. São Paulo: Ed. Vida Nova. 1994, p. 50.

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Há dois grandes pensadores católicos que corroboram com tal pensamento,

quando declaram que a “contribuição fundamental à formação da mentalidade

moderna foi a reforma religiosa de Lutero e Calvino”.315

A Europa do século XVI era bem diferente dos nossos dias. Por exemplo,

“as fronteiras nacionais eram vagas e foram definidas por limites mais tangíveis e

relevantes de língua, cultura e classe”.316 A Europa ocidental317 foi

tremendamente abalada pela ação da Reforma, especialmente na França, a partir,

sobretudo, de Calvino, tendo Genebra como celeiro irradiador da nova

cosmovisão da Igreja, que alcançou quase todas as dimensões da sociedade de

então e que, até hoje, tem forte influência em todo mundo. Na verdade, Genebra

“tornou-se símbolo de subversão política e religiosa”.318

2.4Calvino: sua Vida e Obra

Nosso foco de interesse está em conhecer aquele que foi um dos maiores

reformadores do Século XVI, João Calvino319, homem de traços fortes, acometido

de muitas enfermidades, de um raro vigor intelectual, que, embora tentasse buscar

uma vida mais tranqüila, esteve, pela força da providência divina, sempre no

centro das grandes questões do seu tempo, de seu país e, particularmente,

Genebra, cidade do coração e palco da práxis de seu conhecimento, especialmente

sua teologia, tornando-a referência social, política, econômica e religiosa.

315 ABBAGNANO, N. & VISALBERGHI, A. História de la Pedagogía. Novena reimpresión.México: Fondo de Cultura Económica. 1990, p. 253.316 MCGRATH, Alister, op. cit., p. 18.317 COSTA, Hermisten Maia P., op. cit., p. 15.318 MCGRATH, Alister, op. cit., p. 18.319 FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia. São Paulo: LPC. 1985, p. 36.

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Diante disso, faz-se necessário contemplar sua história e seu tempo, suas

obras, a partir de seus primeiros biógrafos e de outros mais recentes, ainda que

brevemente, seu corpo teológico nas áreas da antropologia, cristologia,

soteriologia, ressaltando seus resultados na vida humana, imagem e semelhança

de Deus, tornando-o livre para viver a verdadeira liberdade do Evangelho de Jesus

Cristo, com todas as suas implicações ético-sociais, bem como sua eclesiologia,

geradora e formadora de uma comunidade capaz de exercitar o acolhimento, a

solidariedade, a alteridade, a justiça, numa verdadeira práxis libertadora, com

fortes conseqüências na vida social, cultural, política e religiosa do seu tempo.

E ainda mais, com fortes influências para nossos dias, desde que saibamos

ler Calvino à luz do seu tempo, retirando a moldura na qual estava inserido e,

como desafio ético-teológico, atualizar sua teologia nas áreas referidas, a fim de

que sua contribuição passada sirva-nos para vivermos a verdadeira liberdade do

Evangelho de Jesus Cristo, de igual forma, com seus desafios ético-sociais. Em

outras palavras, o que queremos dizer é que Calvino ainda pode e deve ser

ouvido.320

Sobre a pessoa de João Calvino, sabe-se mais do que sobre Ulrico

Zwínglio.321 Isto é compreensível, já que Calvino teve muito mais impacto, na

história, e suas influências foram mais duradouras e se estenderam para lugares

que Zwínglio não influenciou decisivamente.322

320 SILVESTRE, Armando Araújo. Calvino e a Resistência ao Estado. São Paulo: Ed.Mackenzie. 2003, p. 19.321 Cf. Boni (Org.), pp. 229-275 (obras de Calvino); cf. Também Nijenhuis, 1981, Bouwsma, 1989e Lessa, s.d. Ulrich Zwinglio é o verdadeiro introdutor da Reforma, na Suíça, fazendo-a de formaparalela a Lutero, nos cantões suíços. É um reformador em conflito com Lutero, por causa da suadoutrina sacramental. Cf. KAHLER, W., Zwinglf und Luther. Ihr Streit um das Abendmahl, 2vols., Leipzig 1924 e Gütersloh 1953.322 “A influência do calvinismo por mais de um século, depois da morte do reformador deGenebra, foi a força mais poderosa da Europa no desenvolvimento da liberdade civil. O que omundo moderno deve ao Calvinismo é quase incalculável”, citado por Hyma, The Life of JohnCalvin, pp. 96, 97. "As diferenças entre Zwinglio e Lutero a respeito do sacramento da Santa Ceiamostraram-se insuperáveis no decorrer da segunda metade da década de 1520, o que restringiu suainfluência.” Ver: HULDRICH, Peter Johann, Huldrych Zwinglio (1484 - 1531), o reformador deZurique – um esboço biográfico, Acta Scientiarum, Maringá, 23 (1): pp. 141-147, 2001. Mas hávínculos entre o calvinismo e o zwinglianismo. Enquanto Zwingli estabeleceu os primeirosfundamentos religiosos, seu trabalho foi continuado e aperfeiçoado pelo seu sucessor, em Zurique,Henrique Bullinger (1504 - 1575), e por João Calvino, em Genebra, os quais uniram os doiscaminhos religiosos de Zurique e Genebra à salvação, ou seja, o Zwinglianismo e o Calvinismo, eestabeleceram a base comum da confissão calvinista na Suíça: a Confessio Helvetica (prior), de1536, o Consensus Tigurinus, de 1549 e, afinal, a Confessio Helvetica (posterior,) de 1566. Cf.Locher, p. J 91-94. LOCHER, G.; ZWINGLI, W. Und die schweizerische Reformation (e aReforma na Suíça) ihrer Göttinen: Vandenhoek & Ruprecht ,1982. (Die Kirche in ihrerGeschichte, v.3).

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Ao mesmo tempo, o que ocorre é que geralmente se encontram conotações

negativas de Calvino.323 Ele chega a ser chamado de Déspota de Genebra, pois

havia sido demasiado rigoroso, a ponto de estar disposto a sacrificar todos os que

não concordavam com seu pensamento, como aconteceu com Miguel Servetus. A

doutrina da dupla-predestinação, segundo a qual Deus elegeu uns para a salvação

e outros para o inferno, também soa estranha aos ouvidos modernos.324 Em 1936,

em pleno auge do regime nazista, o literato Stefan Zweig escreveu um ensaio com

este título: “Uma Consciência Contra a Violência: Castellion contra Calvino”.325

Com habilidades literárias, o que Zweig dizia contra Calvino se aplicava

indiretamente a Hitler. Isto também contribuiu, nas últimas décadas, para

depreciar a imagem de Calvino entre os acadêmicos.

Seguramente, algumas características de Calvino sempre serão estranhas ao

homem moderno. Calvino foi um asceta que dedicou sua vida à Reforma,

procedendo, muitas vezes, de maneira restrita. Porém é preciso entender que a

imagem distorcida de Calvino se deve, também, às grandes lutas confessionais

que duraram até o século XX.326 Sobretudo no século XVII, que foi marcado por

conflitos e lutas interconfessionais, justamente entre os cristãos luteranos e

reformados: ambos os grupos difamavam, imputavam e, freqüentemente,

apresentavam seus assuntos de forma ríspida e animosa. De todas as partes,

ocorreram exageros, inclusive por parte dos reformados. Neste contexto,

cristalizou-se em toda a Alemanha, – devido a muitas publicações da corrente

mais influente, que era a luterana – a imagem de Calvino, que dominou durante

séculos.

323 “Para muitos, Calvino aparecia como a personificação de tudo o que era antiliberal, antiartísticoe anti-humano”. Doumergue, Kunst en Genoel in het Werk van Calvijn, 3 conferências.Wageningen, 1904, p. 9.324 Calvino, em sua definição de predestinação, diz que é “o eterno decreto de Deus, por meio doqual determinou o que quer fazer de cada um dos homens. Porque Ele não criou todos com amesma condição, mas que ordena uns para a vida eterna, e a outros para a condenação perpétua”(Institución III. 21.5, pp. 728-729).325 Cf. ZWEIG, Stefn. Castélio Contra Calvino. Lisboa: Civilização Editora, 1977.326 BOUWSMA, W. J. John Calvin: a sixteenth-century portrait. Oxford: (s.n.), 1989. p. 65.

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2.4.1João Calvino: sua Infância e seus Anos de Estudos (1509-1535)

João Calvino nasceu, em 10 de julho de 1509, em Noyon, no norte da França

(a uns 100 quilômetros de Paris),327 e recebeu o nome de “Jean Cauvin”.328 Era

filho de Gerard Cauvin e Jeanne de La Franc,329 casal distinto e ilustre, bem

relacionado religiosa, social e politicamente. A família era de origem normanda.

Seu pai era secretário do bispo na catedral da cidade, sendo um leigo que

trabalhava entre os clérigos, ocupando um cargo elevado entre eles.330

Van Halsema faz o seguinte comentário sobre a infância de Calvino:

Durante quatorze anos, o menino João morou emNoyon, na província francesa de Picardy. A cidade eraantiga naquela época. Era sede do bispado. Noyon estavasobrecarregada de padres, monges, cônegos, capelães ede toda espécie de empregados eclesiásticos. A catedralera o centro da vida citadina. Foi nesse pequeno mundoamuralhado, de santuários e relíquias, de procissões efestas, de círios, sinos e imagens, que cresceu Calvino.331

Por volta da idade de 12 anos, João Calvino recebeu as primeiras prebendas,

ou seja, uma parte dos seus ganhos por trabalhar numa das paróquias da cidade (a

paróquia de Gésine).332

327 A Noyon das primeiras décadas do século XVI era repleta de Igrejas e conventos, uma cidadeepiscopal, onde a sociedade respirava o sagrado. Não é por acaso que levava esse nome, Noyon, a“santa”. LESSA, Vicente Temudo. Calvino (1509-1564), sua vida e sua obra. São Paulo: CasaEditora Presbiteriana. pp. 19,24.328 Há uma infinidade de biógrafos sobre Calvino. Queremos citar algumas obras de alguns: Seusucessor: Théodore Bèze, l’histoire de la vie et mort de Calvin. Genève: (s.n.), 1565; Life of JohnCalvin, In: Tracts and tratises of John Calvin. Michigan: Eerdmans, 1958; Du droit desmagistrats. Genève: R. M. Kingdon, 1970; Correspondence de Théodore de Bèze, In: AUBERT,Hyppolyte; DUFOUR, Alain; NICOLLE, Béatrice. Genève: Droz, v.20, n. 318, 1998. COTTRET,Bernard. Calvin biographie. Paris: Jean-Claude Lattès, 1995; Traducteurs et DivulgateursClandestins de la Réforme dans l’Angleterre Henricienne, 1520-1535. Revue d’HistoireModerne et Contemporaine, Bris, n. 28, p. 472, 1981.329 Sua mãe distinguia-se por uma profunda piedade, tendo uma influência marcante sobreCalvino, quando Calvino ainda era muito pequeno, com cerca de seis anos. Ver: GEORGE,Timothy. Theology of the Reformers. Nashville: Bradman. 1988, p. 168.330 O pai de Calvino secretariava o bispo Charles de Hangest (1501-1525), mas também exercia afunção de procurador-fiscal do condado bispo. Ver LESSA, Vicente Temudo, op. cit., pp. 19,25.331 VAN HALSEMA, T.B. João Calvino Era Assim. São Paulo: Vida Evangélica S/C. 1968, p.12.332 Os benefícios eclesiásticos que Calvino recebia era fruto direto da interferência de seu pai,prática comum em seu tempo. Ver: GONZALEZ, Justo L. A Era dos Reformadores, op. cit., p.108. Cf. FERREIRA, Wilson Castro. Calvino: vida, influência e teologia, op. cit., pp. 32,33;LESSA, Vicente Temudo. Calvino (1509-1564), sua vida e sua obra, op. cit., pp. 27,28;GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Ed. Vida Nova. 1994, pp. 168,169.Cf. GEORGE T. Teologia dos Reformadore. São Paulo: Vida Nova. 1994, p. 168.

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Até 1523, Calvino assistiu aulas numa escola de sua cidade natal. Com 14

anos, foi enviado ao Collège de la Marche, um famoso internato em Paris, cujo

professor de latim e diretor era Mathurin Cordier.333 Cordier era conhecido como

o fundador de uma nova pedagogia, que Calvino aprendeu, somente por pouco

tempo, na classe de latim, mas venerou durante toda a sua vida.334 Daí eclodir no

estudante picardo um profundo amor pela Renascença e os estudos

humanísticos.335

Depois de um breve tempo, Calvino mudou – por razões desconhecidas –

para outro internato: o Colégio de Mantaigu. Este era um baluarte da ortodoxia

católica romana e provocava medo em seus alunos. Bem sabemos que as

universidades de Paris recebiam, na sua maioria, alunos de famílias burguesas

emergentes ou aristocráticas.336 No século XVI, as universidades francesas

passavam por um período de declínio, fruto, em parte, do fim da Idade Média,

principalmente como centros de treinamento profissional.337 A princípio, seu pai

pretendia que ele estudasse teologia em Paris. Provavelmente a grande motivação

teria sido a possibilidade de o filho continuar o progresso eclesiástico que Gérard

Cauvin havia conquistado na diocese de Noyon. Na verdade, havia possibilidade

real de crescimento eclesiástico para a família de Calvino, inclusive pela própria

influência, alcançada por seu pai.338 É bom esclarecer que tal interesse e prática

faziam parte do seu tempo. Alister, Ganoczy e Lessa dizem o seguinte sobre a

formação inicial do jovem Calvino:

333 Naquele tempo, a peste tomou conta da Noyon. Era o momento ideal para Calvino iniciar seusestudos em Paris. Sobre isto, ver: MCGRATH, Alister, op. cit., p. 38. Ver. BIÉLER, A. OPensamento Econômico e Social de Calvino, op.cit., p.114. Mathurin Cordier fora um dosmaiores professores de latim de seu tempo. Cf. GEORGE T. Teologia dos Reformadores, op. cit.,p. 169.334 GONZALEZ, Justo L., op. cit., p. 109. A ida de Calvino a este colégio atendia aos desejos dopai de Calvino, que desejava fazê-lo um clérigo. Dada a notabilidade de Cordier, anos depoishaveria de lecionar na Academia de Genebra, e ao interesse de Calvino, este foi um período deprofunda dedicação aos estudos, traço que o acompanhou em toda a sua vida de Calvino.Aproveitou ao máximo a sabedoria e experiência do seu preceptor. Cordier foi capaz de influenciartremendamente a mente, já brilhante, de Calvino, ao colocá-lo em contato direto com oHumanismo.335 MARTINA, Giacomo, op. cit., p. 146. Foi ali que passou a conhecer os bons autores clássicos,desenvolvendo sua habilidade de pensar e sua capacidade de falar e escrever em latim. Cícero foiseu grande referencial clássico. Ver também: LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 34.336 VERGER, J. Le rôle social de l’université d’Avignon au Xme siècle. BHR 33 (1971), pp. 489-504.337 GOFF, Jacques Le. “La conception française de l’université à l’époque de la Renaissance”, pp.94-100.338 Ibidem, p. 49.

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Em 1526, após concluir seus estudos humanistas,Calvino vai estudar humanidades, ou filosofia, cursopreparatório para os demais. O costume atual de estudarteologia, logo que se entra na universidade, eradesconhecido no século XVI, em Paris.339 Estudarfilosofia, durante quatro ou cinco anos era condiçãonatural à época para alguém cursar teologia.340 Após asaída de Calvino de Montaigu, em 1528, o espanholInácio de Loyola toma assento aos pés dos mesmospreceptores.341

Segundo Karl Reuter, Calvino, como aluno de John Mair (ou Major) em

Paris, foi tremendamente influenciado por este professor escocês.342 Mair abriu os

horizontes teológicos de Calvino, colocando-o diante de uma nova concepção

antipelagiana, bem como de uma nova visão agostiniana. Já Wendel diz que Mair

colocou Calvino diante das obras Four Books of the Sentences, de Pedro

Lombardo, teólogo de muita influência no seu tempo, ensinando-o a lê-las com as

lentes de William de Ockham.343

Calvino fez amigos, entre eles estavam alguns simpatizantes e, inclusive,

seguidores da Reforma. Calvino não se pronunciou no tocante a esta, já que a

polêmica luterana contra Zwínglio parecia a ele demasiadamente forte. Nem

sequer sabemos com certeza se Calvino, há este tempo, conhecia os escritos de

Lutero. Em todo caso, não aderiu à Reforma, permanecendo fiel à doutrina

católico-romana. É possível caracterizar o Calvino deste tempo como um

humanista católico, que desejava uma renovação das ciências, mas não por uma

Reforma no sentido luterano.

339 Ibidem, p. 41.340 GANOCZY. The Young Calvin, p. 174. Quanto ao suposto desejo de seu pai de que estudasseteologia, podemos verificar as memórias posteriores de Calvino: OC 31.22. Cf. o comentário deBèze, “son coeur tendit entièrement à la Théologie” (OC 21.29).341 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 39. No ano seguinte, Calvino foi estudar no Collége deMontaigu, de orientação escolástica, onde estudou gramática, filosofia e teologia. Ali teve contatocom o pensamento de vultos como Tomás de Aquino, Agostinho e Jerônimo. Estudaram, também,nessa famosa escola, Erasmo de Roterdã e Rabelais.342 REUTER, Grundverstandnis der Theologie Calvins, pp. 20,21,28. Para uma visão resumida, cf.MCGRATH, A. E. Reformation Thought, (New York/Oxford, 1988), pp. 63,64. No entanto, estatese é superficialmente modificada em um estudo mais recente de Reuter, Vom Scholaren bis zumjungen reformator. Sua tese anterior é aceita plenamente por McDonnel, John Calvin, pp. 7-13.343 WENDEL, Calvin, p. 19. O fato de não encontrarmos referências explícitas aos teólogosGregório de Rimini, John Mair e William de Ockham, por exemplo, nas Institutas de 1536, nãoquer dizer que Calvino não tenha recebido influência de tais escritores.

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Gerard Cauvin decide, então, mandar, Calvino, em 1528, para Orleans, a fim

de que ele estudasse Direito, o caminho mais seguro para a fama e a fortuna.

Orleans era a requisitada e concorrida Universidade. Estudou com o mestre e

jurista Pierre de l’Étoile, conhecido como “o príncipe dos advogados

franceses”.344 Tornou-se Licencié en lois (Bacharel em Direito). Destacou-se por

sua inteligência e brilhantismo. Foi monitor da disciplina em várias ocasiões, nas

quais, certa feita, por seu notável crescimento, o grande mestre Pierre de l’Étoile o

convidou para ministrar uma aula em seu lugar. O resultado foi maravilhoso,

provocando a admiração de todos.345 Foi-lhe oferecido o título de doutor em

Direito, o que não sabemos se Calvino aceitou.346 O historiador católico

Florimond de Raemond oferece um belo testemunho sobre a vida de Calvino

como estudante de Direito. Dizia ele:

Distinguia-se por um espírito ativo e uma grandememória, por uma grande destreza e vivacidade emrecolher as lições e discursos que seus mestres proferiame que depois confiava à escrita, com facilidademaravilhosa e beleza de linguagem, deixando sobressairmuitos conceitos e transportes de um belo espírito.347

Calvino foi bastante influenciado pela filosofia natural aristotélica, mesmo

rejeitando, posteriormente, o escolasticismo medieval. Por exemplo, em suas

obras, a partir de 1550, há embates freqüentes sobre toda a cosmologia

aristoteliana.348 Quando pensamos nos estudiosos dialéticos, Goulet afirma:

É inútil falar em horas de estudo, no que se refereaos dialéticos. O dia não é longo o suficiente! Háconstantes discussões, vigorosas defesas de sofismos,aos domingos e feriados; recitais três vezes por semana ecríticas e debates aos sábados.349

344 A frase é de Teodoro Beza: OC 21.121-2. Sobre a discussão da controvertida data da mudançapara Orleans, ver Parker, John Calvin, pp. 189-191.345 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 51.346 Parece que Beza dá a entender que Calvino recebeu tal título. Entretanto, deixa muito claro emsua narrativa. (Teodoro Beza. Life of the John Calvin: em Tracts and Treatises on theReformation of the Church. Vol. I, Ixi; Teodoro Beza. “Life of John Calvin”. John CalvinCollection, CD-ROM (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 05. Cf. SCHAFF, Phillip. History ofthe Christian Church. Vol. VIII, p. 306; Cf. LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 51;FERREIRA, Wilson Castro, op. cit. pp. 45,46.347 WYLIE, J. A. History of protestantism. Vol. II, p. 156.348 KAISER, “Calvin’s Understanding of Aristotelian Natural Philosophy”.349 Quicherat, Historie de Sainte-Barbe, Vol. I, p. 330.

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Em 1529, Calvino deixa Orleans e vai para Bourges, buscando aperfeiçoar

seus estudos em Direito, fruto da presença do grande jurista, o italiano André

Alciati, conhecedor profundo do direito romano, que fora convidado por

Francisco I.350 Ele era “um jurista de primeira linha, teórico da soberania do

príncipe”.351 Em Bourges, encontrava-se o luterano Melchior Wolmar, sendo que,

provavelmente, estivera em Orleans primeiro. Ali, Calvino foi introduzido ao

estudo do grego, aprofundando ainda mais seu conhecimento do NT.352 Quando

escreveu seu comentário sobre a 2a carta aos Coríntios, dedicou-a a Melchior

Wolmar, em 1546.353 Sucessor e um dos primeiros biógrafos de Calvino,

Theodoro Beza, foi conhecido pelo reformador em Bourges, quando ainda

contava apenas dez anos.

Ficam evidentes que os ensinamentos jurídicos que Calvino adquiriu,

exerceram forte influência sobre sua vida. Timoth George afirma que tal

conhecimento o preparou para futuros trabalhos, que exerceria em Genebra, onde

pôde promover uma ampla reforma nas instituições desta cidade. Ainda mais. Os

estudos jurídicos abriram-lhe a visão para a antiguidade clássica, bem como os

estudos dos textos antigos, nas línguas originais.354

Calvino tornou-se um competente estudioso das Escrituras, bem como da

história e do pensamento dos Pais da Igreja e ainda dos grandes clássicos gregos.

No início, sempre por conta própria. Há um forte comentário sobre tal fato, nas

palavras do pensador e comentarista bíblico Martin Dreher:

350 Francisco I, Rei da França, sucessor de Luís XII, iniciou seu reinado no dia 1 de janeiro de1515. Inicialmente parecia moderado com a causa protestante, posteriormente tornou-seperseguidor do protestantismo. Ver: BIELÉR, André, O Pensamento Econômico e Social deCalvino, p. 104.351 LADURIE, Emmanuel Le Roy. O Mendigo e o Professor: A Saga da Família Platter no SéculoXVI. Rio de Janeiro. Ed. Rocco. Vol. I, 1999, p. 325. In: COSTA, Hermisten Maia Pereira, op.cit., p. 02.352 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 51.353 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 52.354 GEORGE, Timoth. Theology of the Reformers. Nashville: Broadman. 1988, p. 171.

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Nenhum teólogo influenciou tão profundamente oprotestantismo pós Lutero quanto Calvino. [...]Curiosamente, o criador da dogmática das Igrejasreformadas jamais estudou Teologia. Em Paris, tinhaestudado Lógica, Dialética, Metafísica, elementos que,em muito, o auxiliaram em seu estudo teológicoautodidata. O fato de não ter estudado Teologia, nosmoldes tradicionais, possibilitou-lhe um encontro com aBíblia, com a Patrística e com textos de teólogos doprotestantismo emergente, que não estavamcondicionados pela escolástica. Quem lhe preparou ocaminho para esse encontro foram os humanistascristãos, amplamente combatidos pela ortodoxiaparisiense.355

Após a morte de seu pai, Calvino ficou desobrigado do estudo do Direito e

passou a estudar Literatura Clássica, sua verdadeira paixão. O rei Francisco I

fundou, em Paris, uma universidade com orientação humanista, na qual Calvino se

matriculou. Em Paris, agora pela segunda vez, residiu no Colégio Fotet. “Em Paris

devotou-se ao estudo das línguas originais das Escrituras e se absorveu ainda em

estudos teológicos”.356 Em 1532, publica o seu primeiro livro, uma edição do livro

de Sêneca intitulado "Sobre a Clemência", completada com um aparato textual e

um longo comentário.357 Editado com seus recursos pessoais e, segundo McNeill,

“o principal monumento dos conhecimentos humanísticos do jovem Calvino”.358

Ele apoiou grandemente o famoso humanista Guillaume Budé (1467-1540), que,

juntamente com Erasmo (1469-1536) e Juan Luis Vives (1492-1540), formavam o

“triunvirato do humanismo europeu”.359

A pergunta que fazemos, a essa altura, é: quando Calvino se converteu à

Reforma? Calvino endossou a Reforma de uma forma inicialmente discreta. Ele

próprio revela que viveu uma conversio subita.

355 DREHER, Martin. A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma. ColeçãoHistória da Igreja. Vol. III. São Leopoldo: Sinodal, 2004, pp. 94-95.356 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 55.357 WALLACE, Ronald, op. cit., p. 12. Cf. SILVESTRE, A. A. Calvino e a Resistência aoEstado. São Paulo: Ed. Mackenzie. 2003, p. 83.358 MCNEILL, John T. The History and Character of Calvinism. N. Y. 1954, p. 104. Cf.BIERMA, L. D. A Relevância da Teologia de Calvino para o Século 21 In Fides Reformata, VIII.2(2003), p. 11.359 FRAILE, Guillermo. Historia de la Filosofia. Madrid: La Editorial Catolica, S. A,. Vol. III.1966, p. 62.

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Eu estava tão profundamente entregue àsuperstição papista que dificilmente poderia ser libertode tanta convicção. Porém, de repente, Deus mudou meucoração dócil e suavemente por uma conversão súbita,pois, apesar da minha idade, eu estava bastanteendurecido frente a este assunto. Sem dúvida, quandotive algum conhecimento da piedade verdadeira,imediatamente me invadiu um tremendo anelo de tirarproveito disto. Não deixei os diversos estudoscompletamente, porém, cada vez mais, os deixei de lado.Grande foi minha surpresa quando, antes do término doano, todos os que sentiam o anelo pela doutrina puraestavam reunidos em torno de mim para aprender, aindaque eu mesmo fosse quase que um principiante.360

O médico Nicolas Cop, reitor da Universidade de Paris, na qual estava

matriculado Calvino, inaugurou, em novembro de 1533, o semestre universitário

com um discurso em uma Igreja parisiense. Na sua pregação sobre as bem-

aventuranças do sermão do monte, Cop se professa reformado. Os franciscanos,

em cuja Igreja a conferência se deu, acusaram Cop de heresia361 e, depois de

algumas semanas, ele vai até Basiléia, sua cidade natal. Os investigadores acabam

suspeitando de Calvino e da sua participação na formulação do discurso. Se de

fato Calvino compartilhou com as idéias de Cop, sua adesão à Reforma se deu no

outono de 1533.362

360 Reply to Cardeal Sadoleto’s Letters, C. Tr., Vol. I, p. 62. Para uma discussão completa dessaquestão cf. F. Busser, Calvin’s Urteil uber sich selbst, Zurich, 1950, pp. 26ss; também John T.McNeill, History and Character of Calvinism, N. Y. 1954, pp. 109ss. Cf. Danièle Fischer.Nouvelles réflexions sur la conversion de Calvin. Études Théologiques et Religieuses, n. 58, 1983.Cf. Alexandre Ganoczy. Le jeune Calvin. Genèse et évolution de sa vocation réformatrice.Wiesbader: F. Steiner, 1966. Cf. O Millet. Calvin et la dynamique de la parôle. Étude derhétorique réformée. Paris: Champion, 1992. Significa afirmar que Calvino converteu-se entreParis e Orleans, período em que prosseguiu seus estudos literários (Paris) e concluiria suaformação em Direito (Orleans)361 “A Sorbona e o Parlamento reuniram-se para ouvir o caso e o confiado reitor saiu dauniversidade acompanhado de seu séquito para responder perante o Parlamento” In: LESSA,Vicente Temudo, p. 58.362 Avisado de que encontraria a morte, fugiu imediatamente para Basiléia. Calvino foi acusado deter escrito o tal discurso. De igual forma teve que fugir de Paris, escondendo-se, por semanasseguidas, nos arredores de Paris, próximo de Nantes. Logo que pôde, seguiu caminho paraAngoulême, terra de Margarida de Navarra. Ali permaneceu por vários meses, até o final de 1533,na residência de Du Tillet, onde pôde dedicar-se intensamente aos estudos, pois privava de umavasta biblioteca do seu hospedeiro. Ver: FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., pp. 62-65. Vertambém MCGRATH, Alister. A vida de João Calvino, op. cit., pp. 83-85.

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Em outubro de 1534, a cidade de Paris entrou em turbulência devido ao

chamado caso das afirmações. Estas foram afirmações contra a missa, e os

luteranos foram acusados de serem autores de uma conspiração contra a ordem

pública e a religião. Calvino já havia causado rumores por confessar publicamente

sua fé evangélica e por fazer proselitismo. Por causa disto, Calvino teve que sair

da cidade e buscar um lugar tranqüilo para seguir com seus estudos. Queria redigir

um catecismo para ser lido pelos franceses. Por isto, passou as primeiras semanas

do ano de 1535 na cidade de Basiléia.

2.4.2A Primeira Estada de Calvino em Genebra (1536-1541)

Assim, Calvino, ao chegar a Basiléia, adota o pseudônimo de Lucianus, um

anagrama latino do seu nome, Calvinus.363

Diferentemente de Lutero, em 1536, Calvino não estava preocupado, neste

tempo, com as discussões acirradas com o escolasticismo medieval ou qualquer

tipo de mudança no programa teológico das universidades. Quando lança as

Institutas, sua preocupação era lutar contra os inimigos da indiferença e da

ignorância, apresentando, de forma sistematizada, os pontos fundamentais da

Reforma.364 É preciso dizer que, no início da Reforma, a maior preocupação de

Lutero era o embate com a Igreja sobre a doutrina da justificação somente pela fé,

ou como o homem entrava em comunhão com Deus. Mas a Reforma, vivida mais

ao Sul, buscava discutir as mudanças necessárias tanto na Igreja quanto na

sociedade, segundo as Escrituras.

Nas Institutas de 1536, Calvino tem como preocupação principal criticar as

formas eclesiológicas da Igreja Católica, provenientes dos grandes teólogos

medievais, sobretudo Graciano e Pedro Lombardo. O que ele queria era questionar

e desacreditar as eclesiologias em sua fons et origo.365 O escolasticismo não

produzia ecos ressonantes em Estrasburgo ou Genebra, naqueles dias de Calvino.

363 Temos nesse período a primeira e segunda estadas de Calvino em Genebra (1536-1541).364 MCGRATH, Alister, op. cit., p. 55.365 MCGRATH, Alister, op. cit., p. 56. Quando Calvino cita a obra Four Books of the Sentences,de Pedro Lombardo, nas Institutas de 1536, são retiradas do quarto livro, que trata exatamente dadoutrina da Igreja e dos Sacramentos. Cf. p. 56.

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Em abril de 1536, depois da publicação da sua obra Institutio, Calvino

viajou a Paris para ver seus irmãos. Lá se encontrou, pela primeira vez, com

Miguel Serveto, que acabara de editar, em Hagenau, Alsácia, sua obra contra o

dogma da Trindade. Seguiu, posteriormente, para Estrasburgo, onde esperou se

encontrar com Bucer e seus correligionários. Não pôde tomar o caminho mais

curto, porque o rei da França, Francisco I, e o imperador, Carlos V, estavam em

guerra. Por isto, Calvino tomou o caminho mais seguro, passando por Lyon e

Genebra. Em Genebra, encontrou-se com Guilherme Farel. Calvino descreve

Farel da seguinte maneira:

O caminho mais curto à Estrasburgo. Para ondequeria ir, estava fechado devido à guerra. Por istopensava estar aqui (Genebra) somente de passagem,passando lá apenas uma noite. Aqui, pouco antes, opapado havia sido abolido por um homem reto quemencionei antes (Farel), e pelo mestre Pierre Viret.Porém as coisas não evoluíam como deveriam, e entre oscidadãos existiam dissidências e partidarismos. Nestemomento, fui descoberto por um homem (Tillet), que meapresentou aos outros. Em conseqüência, Farel, queestava iluminado pelo sonho de fomentar o evangelho,fez muitíssimos esforços para deter minha partida e,quando afirmei que eu queria manter-me livre para meusestudos privados, e quando viu que seus argumentos nãodavam em nada, passou a maldizer-me: “Que Deusamaldiçoe seus estudos e tranqüilidade por estar diantede uma emergência tão grande e não apoiar a Reforma.”Estas palavras me perturbaram e assustaramprofundamente, tanto que renunciei a minha viagemplanejada. Consciente dos meus temores e timidez, nãoqueria por nada ser obrigado a assumir um cargodeterminado.366

366 João Calvino, Prólogo ao Comentário dos Salmos.

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A Reforma havia sido introduzida em Genebra em 1535.367 Genebra lutou

“contra a tirania de um duque e de um bispo até derrotá-los.”368 O duque

chamava-se Charles III, de Savoy369, e o bispo, Pierre de La Baume.370

Farel foi a pessoa que inseriu Genebra na Reforma. Havia feito muitas

mudanças, porém a Reforma foi imposta pelo Conselho da cidade também por

buscar maior independência em relação aos bispos.371

367 Oferecemos, aqui, alguns autores de renome que podem ajudar no conhecimento maior sobre aGenebra daquele período: Monter, E. W. Studies in Genevan Governement, 1964c, e Calvin’sGeneva, 1967; Kingdon, R. M. Geneva in the coming of the wars of religion in France, 1956.Estas obras podem ser auxiliadas ainda com Annales Calviniani, dada a sua imensa riqueza deinformações e dados cronológicos, bem como documentos sobre os registros do Conselho deGenebra (Registres du Conseil), e ainda por Bergier, J. F. e Kingdon, R. M. (eds). Registres de laCompagnie des Pasteurs de Genève. Vols. 1 e 2, Genebra, 1962-1964. Verificando estudos maisantigos, temos, ainda, Doumergue: Jean Calvin, les hommes et les choses de son temp, Vols. 5 e6, 1889-1927, contendo uma fabulosa e inesgotável fonte de citações.368 SILVESTRE, Armando Araújo. Calvino e a Resistência ao Estado. São Paulo: Ed.Mackenzie. 2003, p. 20.369 “O duque de Savoy reuniu mais de 500 mercenários para atacar Genebra, cercando-a no finalde 1535. A cidade apelou para Berna. Como não houve resposta, apelou para o rei Francisco I, daFrança. O rei francês enviou pequena força de cavalaria, que chegou a Genebra desfalcada peloinverno nos Alpes e pelos ataques das tropas de Savoy”. No entanto, Berna, percebendo asdificuldades de Genebra, mandou aproximadamente 6 mil soldados para libertar Genebra, isso emfevereiro de 1536.370 Em 1539, o bispo Pierre de La Baume tornou-se cardeal, em 1544, arcebispo de Besançon,conforme Monter (1964b, p. 130). A cidade de Genebra não ofereceria mais espaço para regimestotalitários ou teocráticos. Tal constatação serve-nos para sustentar a tese de que Calvino não foium tirano. Quando Calvino e Farel estiveram na cidade juntos, foram banidos, pois talveztentassem impor algum tipo de liderança religiosa mais forte. Mesmo quando convidado pararetornar, jamais recebeu da cidade poderes absolutos. Na verdade, ele não exerceu domínio sobreGenebra. Calvino jamais pode ser classificado de tirano, pois sua luta foi estabelecida na rupturacom as mazelas da Igreja de então, bem como contra qualquer domínio político-eclesiástico. Ora,como supor um Calvino tirano, sendo ele forte defensor de uma prática cristã que implicava emresistência à própria tirania? Cf. SILVESTRE, Armando Araújo, p. 20.371 Guilherme Farel, percebendo que Genebra estava aberta aos ideais da Reforma, buscouinfluenciar o Conselho municipal no sentido de aderir à Reforma. A resposta foi positiva, pois, em19 de maio de 1536, o Pequeno Conselho resolveu convocar um grande conselho geral paraperguntar se o povo queria viver de acordo com a nova fé Reformada. “Por fim, ao cabo dealgumas semanas, Genebra assumiu definitivamente a sua divisa: pos tenebras lux – após as trevas,a luz.” In: SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 24. Logo depois, a cidade votoufavoravelmente “pela conclusão da primeira fase da Reforma na cidade, jurando viver, de agoraem diante, de acordo com a lei do Evangelho e com a Palavra de Deus”. MCGRATH, Alister, op.cit., p. 115. Conforme SILVESTRE, Armando Araújo, “o motor adotado pela cidade, PosTenebras Lux, mais parecia uma afirmação profética que uma realidade presente nessa primeiraestada de Calvino”, op. cit., p. 96.

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Assim, Genebra, agora, possuía status de cidade-estado, onde o magistrado

estava acima do bispo e do duque. Nesse sentido temos que admitir que a Reforma

foi introduzida, na cidade, como conseqüência da reforma civil. O Conselho

Geral, adotando a Reforma deliberou medidas que haveriam de influenciar

Genebra nas suas mais diversas áreas, como por exemplo, social, econômica,

política e religiosa.372 A influência fora tal que Genebra tornou-se cidade-refúgio

para aqueles que fugiam das perseguições religiosas. Alister diz o seguinte:

A declaração dos cidadãos de Genebra pode dar aaparência de haver criado uma Igreja Reformada. Naverdade, ela fez pouco mais do que criar uma perspectivareformadora vazia, sem substância, dentro da qual asintenções tinham precedência sobre as ações. Rejeitar ocatolicismo era uma coisa; construir uma nova ordem eum novo governo eclesial era outra bem diferente. Semuma ideologia religiosa definida, nenhum passo positivonessa direção poderia ser dado.373

Faltava, portanto, estabelecer conteúdo à Reforma iniciada. O partido

católico romano seguia com muita influência e Farel estava sobrecarregado. Nesse

ínterim, Calvino viajava da França para Estrasburgo, em 1536374, e de passagem

por Genebra, foi então que Farel o persuadiu fortemente a permanecer na

cidade.375 Calvino não estava muito disposto a enfrentar os grandes desafios da

cidade, sobretudo por parte daqueles que se opunham às idéias reformadas.376

372 Resoluções do Conselho, R. C., de 18.3.1539, in: Opera Calvini, p. 245,21.373 MCGRATH, Alister, op. cit., p. 116.374 Segundo Alister, naquele mesmo ano, o exército de Berna havia conquistado Lausanne ealimentava o desejo de conquistar novos territórios. A luta pelo estabelecimento do domínioreligioso de determinada cidade dava-se por meio de debates teológicos. Queriam que toda aLausanne aderisse à posição de Berna. Por questões lingüísticas, o Conselho de Berna convidouFarel e Viret para apresentar suas idéias sobre a Reforma. Foi convidado e lá se encontrou (Cf.MCGRATH, Alister, op. cit., p. 117). Dez artigos foram apresentados, conhecidos como Lesconclusions qui doibvent estre disputées a Lausanne nouvelle province de Berne, no dia primeirode outubro de 1536 (A escrita em francês é de sua época). A certa altura do debate, Calvinosolicitou a palavra e interveio, e passou a discorrer com tamanho conhecimento, citando fluente eliteralmente os grandes Pais da Igreja, que a todos impressionou. O reformador saiu do debate coma fama de grande orador e grande apologista da fé reformada. O resultado foi tal que, no finaldaquele ano, Calvino já tinha sido designado pastor de Genebra. No entanto, “Calvino era poucomais do que um simples servidor civil, vivendo na cidade sob licença. Era o Conselho municipal, enão Calvino, Farel ou Viret – que controlava os assuntos religiosos de nova república” (Cf.MCGRATH, Alister, op. cit., p. 119). Na verdade, os pastores ficavam sempre à mercê dasdecisões e possiveis mudanças por parte do Conselho.375 MARTINA, Giacomo, op. cit., p. 147. Cf. SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 91.Calvino mesmo relata o encontro com Farel: “Mestre Guillaume Farel me reteve, em Genebra, nãoatravés de conselhos e exortação, mas por uma adjuração espantosa, como se Deus, mesmo doalto, estendesse sua mão sobre mim para me deter.” (Cf. Cottrett, 1995, p. 393).376 GONZALEZ, Justo L., op. cit., p. 113.

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Calvino desconhecia as sutilezas da administração pública, fosse na área da

política urbana, fosse na área econômica. É neste contexto que Calvino se

estabelece em Genebra. Passa a desempenhar a tarefa de “leitor da Santa Escritura

na Igreja de Genebra”,377 e passa a pregar e apoiar a formação da Igreja

genebrina.378

Tornou-se apenas, no primeiro momento, um professor e conferencista ou

expositor das Escrituras. Em pouco tempo, Calvino deixa de ser apenas lecteur e

assume também a posição de prédicateur e de pasteur, vendo as grandes e

urgentes necessidades de organização da Igreja de Genebra. “Ainda em 1536, ele

publicou sua pequena Confissão de Fé para as Igrejas reformadas.”379

Calvino, mesmo sem tanta experiência, trabalhou, nesse período,

objetivando tornar o cidadão genebrês um verdadeiro cristão, cuja experiência de

fé fosse externada na prática cristã.

Em 1537, Calvino envia uma proposta para a reorganização da Igreja ao

Conselho da cidade.380 Aqui é possível observar uma característica básica da

teologia de Calvino: sua prioridade é sempre a forma pela qual a Igreja se

apresenta. Não adere ao conceito anabatista, que considera a Igreja como uma

comunidade exclusiva dos eleitos.

377 MARTINA, Giacomo, op. cit., p. 147.378 Philip Hughes nos conta que não foi muito antes que Calvino foi compelido “pelascircunstâncias da controvérsia na cidade [...] a adicionar aos seus compromissos de ensino aresponsabilidade da pregação pública”. Philip E. Hughes, ed., introdução ao The Register of theCompany of Pastors of Geneva in the Time of Calvin (Grand Rapids, MI, William B. EerdmansPublishing Co.), p. 5.379 SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 95.380 Ele imediatamente obteve o consentimento do Senado em Genebra para uma forma de políticaeclesiástica que fosse derivada da Palavra de Deus, e da qual não deveria ser permitido que nemministros nem pessoas se apartassem. A Church Order of the Protestant Reformed Churches (AOrdem das Igrejas Protestantes Reformadas), que é essencialmente a Ordem da Igreja deDordrecht (1618-1619).

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A Igreja é mais bem explicada como a comunidade dos fiéis que se

comprometem livremente com ela. Calvino e Farel redigiram uma confissão em

francês (Confissão de Fé) que teve que ser afirmada por todos os habitantes de

Genebra, para determinar quem quisesse professar o Evangelho e quem preferisse

pertencer ao reinado do Papa, ao invés do reinado de Cristo. Calvino introduziu

mais mudanças: os salmos passaram a ser cantados nos cultos, a catequese foi

introduzida, foi redigido um catecismo mais curto que as Institutas e muito

parecido com o Catecismo Menor, de Lutero. Porém, as propostas reformatórias

de Calvino não foram aceitas facilmente no Conselho, só sendo aprovadas após

muita indecisão deste. O conflito se instalou de forma mais intensa quando os

cidadãos de Genebra foram incitados a fazer a confissão preparada por Calvino.

Muitos não queriam fazer e as tensões entre Católicos e Reformados aumentaram,

fazendo da obrigação da confissão de fé um fracasso.381 Calvino, porém,

continuou a insistir na obrigatoriedade desta confissão.

A resistência a Calvino foi estabelecida e, em 1538, os partidos de oposição

de tendência católico-romana ganharam terreno. Soma-se a isto a inquietação,

causada pelos anabatistas. Acusações graves foram feitas contra Calvino e Farel.

Entre elas, a afirmação de que Calvino teria aderido à seita dos arianos. Esta

acusação foi levada a Berna (com a qual Genebra estabeleceu um tratado de

cooperação mútua), onde as atitudes de Calvino foram vistas como suspeitas. Não

houve maiores conseqüências, porém a posição de Calvino, em Genebra,

debilitou-se devido às acusações. Nas eleições de 1538, a oposição vence e o novo

Conselho proíbe que Calvino e Farel preguem no Domingo da Ressurreição.

Calvino e Farel desobedecem e pregam, sendo destituídos de seus cargos. Dentro

de três dias tiveram que abandonar a cidade.382

381 Sobre este período específico, afirma Calvino: “Fosse eu narrar os inúmeros conflitos por meiodos quais o Senhor tem me exercitado, desde aquele tempo, e as quantas provações com as quaisEle tem me testado, daria uma longa história”. Calvin, prefácio, p. XLIV.382 “João Calvino e Farel tiveram muitos adversários e opositores em Genebra [...].Finalmente aoposição venceu as eleições. E no dia 23 de abril de 1538, Calvino e Farel foram banidos de Gene-bra.” In.: Gonzales, Justo, A Era dos Reformadores, p. 56.

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Ao sair de Genebra, Calvino procurou seguir à Basiléia para prosseguir seus

estudos, e Farel foi chamado para ir à Neuchâtel no mesmo ano. Os amigos de

Calvino o acusaram de ser demasiadamente obstinado, o que ele admitiu. Decidiu,

por causa disto, não assumir uma vida pública, optando por uma vida discreta e

pelo serviço como acadêmico.383 Durante algum tempo, recusou o convite da

cidade de Estrasburgo, de ocupar-se lá e cuidar pastoralmente dos refugiados

franceses daquela cidade. Por fim, Calvino aceita o convite feito por insistência de

Martin Bucer e Wolfgang Capito.384

383 Calvino pode colocar em prática muitas de suas idéias sobre a dinâmica eclesial (Ver.WALLACE, Ronald, op. cit., p. 43). Adquiriu grande experiência na administração eclesiástica,bem como na área da “organização e disciplina eclesial e civil” (Ver. MCGRATH, Alister, op.cit., p. 124). Na então recém-fundada Academia de Johann Sturm, ele pode exercer a docência. Foium período profícuo de produção literária. Mesmo enfrentando sérios problemas financeiros,motivo pelo qual teve que se desfazer de boa parte de sua biblioteca, foi capaz de lançar novaedição das Institutas, em agosto de 1539, sendo complementada em sua versão francesa, em 1541.O grande comentário aos Romanos foi preparado nesse período, escrito em 1539, dedicado aSimão Grynaeus, professor de Calvino em hebraico, reformador em Basiléia. “A Igreja e acomunidade Reformadas, que haviam existido apenas em sua mente, na Genebra de 1538, eramagora realidades concretas. A teoria abstrata e o sonho foram substituídos pela experiência práticae concreta” (MCGRATH, Alister, op. cit., p. 124). De fato a vida transcorria muito bem. Alcançoua cidadania strasbourgeois e, em agosto de 1540, contraiu núpcias com Idelete, uma jovemsenhora, viúva de um anabatista. Casou-se em 14 de agosto de 1540. No entanto, seu casamentodurou apenas nove anos, pois sua esposa morreu, vítima de tuberculose. Tiveram apenas um filho,que também morreu ainda muito criança. Cf. SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 102.Calvino havia adquirido experiência, conhecimento e alto prestígio.384 SCHAFF, Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. VIII, p. 299.

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Em 1538, Estrasburgo se tornou um dos principais centros do protestantismo

alemão. Bucer e Capito se mantiveram teologicamente independentes, ainda que

tivessem aderido, em 1536, à Reforma de Wittenberg. Bucer é considerado o líder

mais imprescindível nas negociações do partido evangélico. Portanto, Calvino

tornou-se pastor de uma comunidade de refugiados franceses e assumiu um

modelo eclesiástico adotado em Estrasburgo.385 Adotou a ordem de culto de

Bucer, introduzindo somente algumas mudanças.386 Além disto, Calvino assumiu

uma cadeira de exegese na faculdade da cidade, que havia sido fundada

recentemente. Ali trabalhou numa nova edição de sua obra Institutio, que foi

publicada em 1539.

O tempo de Calvino em Estrasburgo foi considerável para compreender sua

mente, já que a cada semana ele dava conferências, pregava quatro sermões,

elaborava seus livros, viajava várias vezes para participar dos diálogos sobre a

religião. Ali foi o lugar em que Calvino conheceu Melanchton; nasceu entre os

dois uma profunda amizade.

385 Segundo o biógrafo Courvoisier, Estrasburgo é a cidade onde Calvino se torna verdadeiramenteCalvino. O seu sistema de pensamento é aqui consubstanciado em algo de mais marcadamenteoriginal. A sua obra Institutio é aqui re-editada (1539). É agora três vezes maior do que a primeiraedição. Em outubro de 1539, Pierre Caroli chega a Estrasburgo. Caroli está, agora, entre ocatolicismo e o protestantismo. Ele acusa Calvino de o terem confundido na sua fé. Calvino éconvocado a se submeter a um ritual tal como ele foi escrito por Caroli, para provar a sua fé. Umahumilhação para Calvino. Calvino sofre uma crise nervosa. Neste outono de 1539, Calvino escrevetambém um comentário à carta de Paulo aos Romanos. Este tema é particularemente querido doprotestantismo. Porque ali se encontra a justificação, através da fé, como a base de sustentação domovimento protestante. Pois somente a fé salva e justifica. Ver: SILVA, Jouberto Heringer.Música na Liturgia de Calvino em Genebra, Fides Reformata, São Paulo: Centro Presbiterianode Pós-Graduação Andrew Jumper, vol. VII, nº 2, jul/dez, 2002, p. 91.386 Até Bucer se tornar o reformador de Estrasburgo, a influência de Lutero era muito forte naliturgia reformada, sendo que Bucer trouxe a influência de Zwínglio à cidade, fazendo de sualiturgia uma síntese do pensamento de culto de Lutero e Zwínglio. A liturgia de Martin Bucer eramais simples que as missas romanas. Ele retirou muitos responsos, inseriu salmos metrificados ehinos, excluiu o Kyries e o Glória in excelsis, inseriu orações de gratidão, permitiu que o pregadorselecionasse o texto de seus sermões e fez com que o culto tivesse se tornado menos estético emais racional. Ver: WEBBER, Robert E., Worship Old and New, Grand Rapids: ZondervanPublishing House, 1984, p. 77-78. Como diz Charles Baird, Calvino “voltou-se para a autoridade einspiração da lei e do testemunho de Deus.” BAIRD, Charles W., A Liturgia Reformada, SantaBárbara D’Oeste: SOCEP, 2001, p.21. Calvino, em seus intentos reformadores na liturgia,procurou retornar a um culto evangélico e livre das distorções que a história trouxe. Ver: WHITE,James F., Protestant Worship, Tradition in Transition, Lousville: John Knox Press, 1989, p. 63.

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Foi assim que o companheiro mais próximo de Lutero se tornou amigo de

Calvino.387 Durante toda a sua vida, Calvino demonstrou um grande respeito a

Lutero (e este também dirige palavras gentis a respeito de Calvino), porém, nos

últimos dias de vida de Lutero, Calvino apresenta mais dificuldades em relação à

rudeza dele.388

Enquanto desenvolvia seu ministério em Estrasburgo, os líderes procuraram

direcionar Calvino para o casamento. Ele mesmo parecia não se identificar com a

idéia, sendo reticente a esta. Calvino acabou, por fim, casando-se com Idalette de

Bure, viúva de um anabatista a quem ele mesmo havia convertido. Em 1540, Farel

veio de Neuchâtel para celebrar seu casamento.389

Enquanto isto, em Genebra, as coisas não evoluíam bem. Depois da partida

de Calvino e Farel, a vida eclesiástica estava desorganizada. Alguns amigos de

Calvino procuraram desabilitar os sucessores do Reformador. Calvino interveio,

exigindo o reconhecimento dos novos pastores. As coisas se acalmaram, porém a

situação segue incerta. Berna procura controlar Genebra.390 Os sucessores de

Calvino também foram expulsos da cidade e cresceu, na cidade, o temor de um

conflito armado. Os Reformados procuram convencer uma parte dos seus

adversários que a ordem só poderia ser reestabelecida pelo retorno de Calvino o

mais rápido possível.

387 LINDBERG, Carter, As Reformas da Europa, p. 234. Calvino continuou seus esforços pelaunidade com Bucer e Melanchton, porém a relação entre eles não mudou por isto. H. Koffijberg,De Internationale Strekking van het Calvinisme, (Amsterdam, 1916), pp. 15-21.388 “A Reforma de Lutero, que foi complementada por Calvino e Zwínglio, modificacompletamente a concepção religiosa de então." Ela começa por rejeitar os intermediários e aspirair até Deus e o Cristo diretamente, sem passar pela cristandade. A fé é o ponto fundamental doLuteranismo e de toda a Reforma, a base de toda a religião reformada. “Nessa experiência doCristo finalmente puro, finalmente a sós, estaria a fé." Haveria assim uma fé pura, puramenteinspirada pelo Espírito. “A fé liberada de todas as contaminações dos interesses históricos epaixões da cristandade”. DREHER, Martin, p. 15. DREHER, Martin, “Introdução”. In: LUTERO,Martinho. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Editoras Sinodal e Concórdia.389 Idelette de Bure (? - 29 de Março de 1549) foi a mulher de João Calvino, com quem se casouem Estrasburgo. Seu primeiro marido, Jean Stordeur, tinha falecido de peste bubônica. Tinha doisfilhos e teve, com Calvino, pelo menos três, todos mortos na infância. Ver: Bouwsma, William J.John Calvin – A Sixteenth Century Portrait (Oxford, UK: Ox-ford University Press, 1988), p.45; Cairns, Earle E., O Cristianismo Através dos Séculos, op. cit., p. 278; Ferreira, Wilson C.,Calvino: Vida, Influência e Teologia (Campinas, LPC, 1985), p. 21.390 Em 1526, os genebrinos firmaram uma aliança com os "cantões" de Berna e de Friburgo. Sendoassim, estavam mais fortalecidos para lutar contra o duque Carlos III, de Sabóia, que, em janeirode 1531, concede independência política ao "cantão" genebrino e provoca assim a perda do podertemporal do bispo. Nos anos de 1526 e 1527, a cidade tinha sido atraída para a órbita da Suíça e,em 1533, Berna promovera ativamente a causa da Reforma Protestante em Genebra. Desde aí ainfluência da cidade protestante foi sentida e as decisões de Berna passaram a ser respeitadas emGenebra, que contava com sua ajuda militar. Ver: VAN HALSEMA, Thea B., João Calvino EraAssim, p. 81.

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Em 20 de outubro de 1540, uma delegação viajou até Estrasburgo para pedir

a João Calvino o seu retorno a Genebra. Calvino recusou o convite feito e então

Farel apoiou os mensageiros e interveio; e Bucer, pelo contrário, desejou a

permanência de Calvino em Estrasburgo.391

O esforço para convencer Calvino dura meio ano, até que se decide a passar

algumas semanas em Genebra. Finalmente, em 13 de setembro de 1541, Calvino

chega a Genebra para passar estes dias, mas acaba permanecendo na cidade até o

fim da sua vida.392 Durante seu período na cidade, esta se tornou um refúgio para

as pessoas advindas de todas as partes.393

391 KEE, Christianity: A Social and Cultural History, 378.392 Calvino morre, em 27/05/1564, em Genebra. No seu funeral, não houve cerimônia religiosa eninguém sabe, até hoje, onde está enterrado seu corpo. Schlesinger & Porto, Geografia Universaldas Religiões, 1988:709.393 Genebra chegou a abrigar mais de 6 mil refugiados vindos da França, Itália, Inglaterra,Espanha e Holanda. (Ver Philip Schaff, History of the Christian Church, VIII, 802; RicardoCerni, Historia del Protestantismo, 2ª ed. corrigida (Edimburgo: El Estandarte de la Verdad,1995), 63), aumentando este número com os estudantes que para lá se dirigiram com a fundaçãoda Academia de Genebra (1559). Lembremo-nos que a população de Genebra era de 9 a 13 milhabitantes [9 mil segundo Reid (W.S. Reid, A Propagação do Calvinismo no Século XVI: emW. Stanford Reid ed., Calvino e sua Influência no Mundo Ocidental, 52; 12 mil conformeMcNeill (J.T. McNeill, Los Forjadores del Cristianismo, Vol. II, 211); 13 mil de acordo comNichols (Robert H. Nichols, História da Igreja Cristã (São Paulo: Casa EditoraPresbiteriana,1978), 164). Schaff apresenta dados mais específicos relativos a cada período:aproximadamente 12 mil habitantes no início do século XVI, aumentando para mais de 13 mil em1543, tendo um surto de crescimento de 1543 a 1550, quando a população saltou para 20 mil(Philip Schaff, History of the Christian Church, VIII, 802. Ver também Tomas M. Lindsay, LaReforma y su Desarrollo Social (Barcelona, CLIE, - 1986 -, 117). Afora isso, Calvino exerceupoderosa influência através da palavra falada e escrita; a sua Instituição - contrariamente à DeClementia - tornara-se um sucesso editorial desde o seu lançamento em 1536. Wendel nos diz quea primeira edição da Instituição esgotou-se em menos de um ano (François Wendel, Calvin (NovaYork: Harper & Row, 1963), 113; Justo L. Gonzalez, A Era dos Reformadores, 111). (Vertambém, Timothy George, Teologia dos Reformadores, 177-178). Ladurie, analisando a saga dafamília Platter, diz que o ponto mais alto da tipografia de Platter – Lasius - que publicou aprimeira edição da Instituição, em latim (1536) -, foi com a obra de Calvino, a qual “projetaraThomas”. (Ver Emmanuel Le Roy Ladurie, O Mendigo e o Professor: A Saga da Família Platterno Século XVI, Vol. 1, 152, 153, 166).

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2.4.3A Segunda Estada de Calvino em Genebra

Calvino estava seguro de que Deus o havia chamado para a tarefa de

reformar a Igreja daqueles dias. Sua primeira resposta a esse chamado foi dedicar-

se à obra com seu saber e sua admirável inteligência. Mais tarde, olhou claramente

que Deus o queria em Genebra, ainda que seu espírito desejasse a solidão e o

repouso. Depois de seu regresso do exílio em Estrasburgo, onde sua alma

encontrou a consternação frente à possibilidade de assumir os desejos de seu ego,

acabou mais uma vez consentindo em assumir a tarefa para a qual foi estimulado e

constantemente convidado pelos seus amigos: o pastorado entre os refugiados

ingleses. Ao consentir com o juízo dos seus amigos, concluiu: “Esta é a vontade

de Deus”.394

Quando Calvino volta a Genebra, sua primeira pregação consiste na

continuação do último tema que ele pregou: age como se nunca tivesse saído da

cidade e retoma a pregação de 1538. Volta com muito mais prestígio e força

política, que utiliza para a reorganização da Igreja.

Segundo Calvino, o consistório devia ter o poder de citar, interrogar,

sancionar – e até excomungar – os membros da comunidade que considerava

haver cometido infrações contra a doutrina ou a moral. O conselho da cidade

rechaçou esta idéia porque teme a implementação de tribunais paralelos à sua

jurisdição oficial. Depois de algumas reticências, Calvino procurou se impor,

primeiro fazendo concessões até que, em 1555, ele conseguiu o que desejava.395

Calvino enfrentou, também, muitas disputas doutrinárias. Era um homem

ortodoxo em suas convicções teologais. Às vezes, era muito intransigente, não

podemos negar. Enfrentou muitos embates teológicos com Castellion, Bolsec,

Monnet e Jaques Gruet.396

394 Doumergue, Calvijn als Mensch en Hervormer, Trad. Helena C. Pos, (Amsterdam, 1931), pp.10-15.395 Os conflitos entre Calvino e o Conselho de Genebra foram vários. Foram travados devido àquestão do direito da excomunhão, da conformação da vida religiosa aos princípios reformadores,à questão da ceia e sua celebração, à questão do sustento dos pastores de Genebra e o trato com osLibertinos, que desejavam toda sorte de liberdade e poucas obrigações. Ver: BIELÉR, André, op.cit., pp. 192-193.396 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., pp. 171-178.

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Dentre as muitas lutas, debates e processos que o reformador enfrentou, o

mais sério e controvertido foi o caso com o espanhol Miguel Serveto397, uma

lamentável mancha vermelha em sua folha de trabalho, em Genebra, segundo

muitos historiadores. Ultimamente, tem-se escrito demasiadamente sobre o

assunto, ora a favor do reformador, ora condenando-o. O próprio Calvino, Beza,

Bolsec, Castellion, entre os mais próximos do acontecimento, também escreveram

sobre o episódio.398

“A crítica impiedosa não admite atenuantes, olhando como subterfúgios

todos os argumentos invocados na defesa do austero reformador”.399 No entanto,

mesmo admitindo que tal experiência de Calvino tenha arranhado sua reputação,

não podemos deixar de afirmar que, no seu tempo e, em Genebra, ainda faltava

um conceito ético-religioso formal acerca da tolerância.400

397 SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 54, em uma nota de rodapé traz o seguinte resumosobre a vida de Serveto: Michel Servet ou Miguel Servetus (1511-1553): “foi um jovem físicoespanhol e brilhante estudioso. Descobriu que a doutrina Nicena da Trindade usava termos não-bíblicos e, após estudar a Bíblia e os padres antinicenos, formulou outro ponto de vista, rico emteologia eucarística e batismal. Publicou seus pontos de vista em 1531 (De trinitatis erroribus libriVI) e novamente, em 1553, (Cristianismi restitutio), o que ocasionou sua execução, como herege,em Genebra. Ele considerava o Espírito uma força e não uma pessoa. Negou a eterna geração doVerbo etc. Era também geógrafo e anatomista e criou que a Bíblia deveria ser estudada em seucontexto histórico. Sua maior contribuição científica foi a descoberta da circulação do sangue nasvias respiratórias. De 1541 a 1553, manteve correspondência secreta com Calvino, que reprovavaseu antitrinitarianismo. Um amigo de Calvino denunciou Servet à Inquisição Católica e ele foipreso. Escapou para Genebra, possivelmente contando com o apoio de anticalvinistas. Calvinoexigiu seu arrestamento e, como ele não negava sua heresia, o Petit Conseil autorizou suaexecução na fogueira em Champel, no dia 27 de outubro de 1553 (Cf. Westminster dictionary ofChurch history, p. 763; Oxford Dictionary, p. 1263).398 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 179. Lessa ainda afirma que os historiadores PhilipSchaff, Wylie, Hagenbach, além de outros, podem ser consultados com proveito. Podemos citarainda Augusto Dide, pastor, que se tornou livre pensador e escreveu uma apologia de Serveto,contendo um forte ataque a Calvino. Entretanto, um dos principais historiadores que escreveramsobre o assunto chama-se Henry Tollin, pastor da Igreja francesa, em Magdeburgo. Michelet,Voltaire e Rousseau foram contundentes contra Calvino. (Ver o escritor Valentine Zuber,professor de l’École Pratique des Hautes Études. Vol. I. 2004, p. 656).399 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 180.400 SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., pp. 53,54.

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A polêmica sobre Miguel Servetus é a mais importante que se levanta sobre

o ministério de Calvino, em Genebra, no que diz respeito à compreensão de sua

ética e da sua concepção prática de liberdade. Algumas publicações afirmam que

Calvino, apoiado pelo Conselho da cidade, aprovou a morte de um adversário

incômodo e que teria demonstrado, neste ato, sua crueldade e rigidez.401 Seria

muito simplista pensar assim e por isto mesmo analisaremos este conflito com

mais detalhes.

Miguel Servetus nasceu em Aragão, em 1511. Em 1531, na Basiléia e em

Estrasburgo, enfrentou os Reformadores acerca da pergunta se a Palavra de Deus

se escreve através de mãos humanas. Também teve conflitos com as autoridades

por discordar das perseguições às pessoas tidas por hereges. Publicou, ao mesmo

tempo, escritos contra a doutrina tradicional da Trindade. Nestes, afirma que a

Trindade é uma incompreensão, já que a Escritura apresenta um Deus criador, e o

Filho e o Espírito Santo seriam meras expressões da ação divina, porém não

seriam Deus (monarquianismo).

Os escritos de Servetus criaram muitos conflitos e o Conselho de

Estrasburgo proibiu sua venda. Servetus foi até Paris estudar Medicina e foi, nesta

época, que chamou a atenção de Calvino. Depois que trabalhou um tempo como

corretor em Lyon, assumiu o cargo de médico do arcebispo de Vienne, na

província francesa La Dauphine. Neste tempo, Servetus descobriu a circulação de

sangue nos pulmões, assunto que o faz conhecido na história da medicina.

401 “Outro grande problema que Calvino teve de enfrentar, nesta época, foi o caso de Miguel deServeto. Este apareceu, em Genebra, afirmando que as Escrituras Sagradas nada falavam sobre oDogma da Trindade. Serveto insistia, ainda, que Jesus não era o Filho de Deus, que não passavade um homem. Em Genebra, essa pregação representava um grande perigo para a Igrejaflorescente; logo o Conselho da Igreja tomou as providências de prendê-lo. Uma vez preso, elefoi levado a julgamento, pois as leis da época o exigiam; mas é bom deixar claro que o poder desentenciar Serveto não estava nas mãos de Calvino, e, sim, do Conselho de Genebra, o PequenoConselho. Contudo, o grande reformador nada fez para impedir a condenação de Miguel deServeto. Este, depois de um processo sumário, foi condenado e, em 27 de outubro de 1553, comseus livros amarrados entre os braços, inclusive suas Restitutas, livro onde expunha sua teologiadivergente, Serveto foi queimado na colina de Champel. Esse episódio tem sido utilizado pelosinimigos de Calvino para denegrir a sua obra. Entretanto, é bom lembrar que a condenaçãodaqueles que a Igreja considerava hereges era uma prática da época iniciada, implantada evalidada pela Igreja Católica Romana, que não só a aprovava, como a utilizava sistematicamentena condenação de protestantes e das mulheres acusadas de bruxarias.” GOMES, Antonio Máspolide Araújo. O Pensamento de João Calvino e a Ética Protestante de Max Weber, Aproximações eContrastes, p. 4.

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O que não podemos esquecer é que, sob a pena inquisitorial de Vienne,

Serveto já tinha sido condenado às chamas, em 17 de junho de 1551, antes da

tomada de decisão de Genebra, que ocorreu, em 27 de outubro de 1553. Lessa

afirma que “as atas do processo de Vienne foram publicadas pelo abade

D’Artignny, em 1749; e as do processo de Genebra por A Rilliet, em 1844”.402

Outro fato importante, que temos que levar em consideração, é a tentativa de

julgar Calvino à luz do nosso tempo, esquecendo-nos que o contexto no qual

Calvino vivia ainda estava enebriado de práticas medievais.403 Também os que

tentam condená-lo são, via de regra, antitrinitários, livres pensadores e céticos.

Lessa faz a seguinte diferença entre os dois, ao afirmar que:

Calvino era o construtor, o sistematizador dasdoutrinas da Reforma, o campeão da ortodoxia, ocontinuador de Agostinho e de Paulo, o novo Atanásio,na questão trinitária, o baluarte da fé. Serveto supunha-seum reformador de vistas mais largas, propondo o seuChristianismi Restitutio.404

Calvino foi o homem que deu à Reforma todo um caráter acentuadamente

positivo, organizando, de fato, um sistema de doutrinas, fruto de genialidade.405

Sua relevância não está em sua originalidade, mas em sua capacidade de

sistematizar as doutrinas cardeais da fé cristã, tendo como ponto de partida as

Escrituras Sagradas e o conceito sobre a soberania de Deus.406 Significa dizer que

o protestantismo não veio a se tornar um mero negativismo da vida humana. Ao

contrário, foi uma grande afirmação do primitivo cristianismo.407

402 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 180.403 GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Importância de João Calvino na Teologia e no PensamentoCristão. Em O Pensamento de João Calvino. São Paulo: Ed. Mackenzie. 2000, p. 117.404 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 181.405 MARTINA, Giacomo, op. cit., p. 149.406 GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., pp. 115,116.407 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 182.

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Depois de condenações em outros lugares, as Igrejas e os magistrados civis

condenaram Serveto e lançaram sobre o reformador de Genebra grande prestígio e

respeito. Agora só faltava a palavra de Genebra. O Conselho, então, no fatídico,

dia 26 de outubro de 1553, lançou a sentença final – Serveto condenado às

chamas. Lessa afirma que “Calvino e seus amigos pleitearam pela mitigação do

suplício – a espada em lugar da fogueira – mas nada obtiveram”.408 Interessante

notar que a essa altura, Guilherme Farel foi destacado para acompanhá-lo até

Champel, o lugar do cumprimento da sentença. Farel tentou persuadi-lo de seus

erros a fim de que pedisse o perdão de Deus. Farel ainda conseguiu um encontro

entre Serveto e Calvino, que foi acompanhado de dois membros do Conselho.

Seguiu-se o pedido de desculpas pelas ofensas pessoais, por parte de Serveto, que

ouviu de Calvino não guardar nenhum ressentimento. O reformador procurou

mostrar-lhe que, desde o primeiro encontro entre os dois, em 1534, tentou

dissuadi-lo de seus graves erros teológicos. No dia seguinte, deu-se o ato final de

morte.

De alguma forma, tal desfecho serviu para manchar o brilho do grande e

forte reformador. Calvino ainda lançou sua defesa, que trazia o apoio dos pastores

de Genebra, sobre o título, em latim, de fidelis expositio errorum Michoelis

Serveti et brevis eorundem refutatio ou, em francês, de declaration pour

maintenir la vraye foy. Lamentavelmente, temos que admitir que nem Calvino e o

seu tempo nada podiam fazer de melhor. Protestantes ainda repetiam os horrores

da Inquisição. Apesar disso, Calvino ainda é considerado um dos grandes arautos

da liberdade moderna.409 Lessa diz ainda que “a responsabilidade de Calvino é

somente moral pela sua acusação veemente contra os erros teológicos do seu

opositor. Não lhe cabe nenhuma responsabilidade judicial”.410

Caminhando para o fim da referência a esse triste episódio, podemos admitir

lições para o cristianismo em geral e, sendo assim, citar as palavras do moderno

autor C. H. Irwin, em sua obra John Calvin – The man and his work, que pode

ajudar-nos um pouco:

408 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 206.409 GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., p. 118. Gouvêa afirma: “Calvino era um homem desentimos profundos e de grande misericórdia. Suas cartas o provam; sua perseverança em Genebrao prova [...]”.410 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 201.

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Dizer, pois, que Calvino queimou Serveto é, pelomenos, exprimir meia verdade. Calvino não foi o únicoautor. Era um entre muitos. Como representante daopinião protestante, agiu em capacidade pública. QueServeto merecia a morte era a opinião geral da época, enão um fato peculiar a Calvino. Coleridge afirma que amorte de Serveto não era culpa especialmente deCalvino, mas o opróbrio comum do Cristianismoeuropeu. Quanto à fogueira propriamente, Calvino fezoposição, advogando o cutelo como um gênero de mortemais rápido e mais misericordioso.411

Por fim, não podemos deixar de registrar a iniciativa do Protestantismo

moderno de erguer um monumento expiatório em Genebra, exatamente “trezentos

e cinqüenta anos depois do holocausto de Champel”,412 em que “numa das faces

do monumento, vem o registro do nascimento e morte de Miguel Serveto”.413 Do

outro lado, lemos a seguinte inscrição:

Filhos respeitosos e reconhecidos de Calvino,nosso grande reformador, condenando, porém, um erroque foi o do seu século, e firmemente ligados à liberdadede consciência conforme os verdadeiros princípios daReforma e do Evangelho, elevamos este monumentoexpiatório aos XXVII de outubro de MCMIII.414

Este é o espírito do cristianismo, poder dizer peccavimus. De Genebra, a

influência de Calvino chegou a Holanda, Inglaterra, Alemanha, Suécia,

Dinamarca, França, sua pátria, sem falar em outros países.415

411 IRWIN, C. H. John Calvin – The man and his work. Indianápolis, 1976, p. 169.412 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 212.413 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 212.414 LESSA, Vicente Temudo, op. cit. p. 212.415 GONZALEZ, Justo L., op. cit., p. 119.

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Em 1559, sob a influência do próprio Calvino, foi organizado em Genebra o

primeiro Sínodo, tornando a Igreja organizada institucionalmente como Federação

de Igrejas. Eram onze Igrejas federadas. Estavam lançadas as bases do sistema

calvinista da reforma francesa. Houve uma Confissão de Fé, com quarenta artigos,

versando sobre todas as principais doutrinas. Também foi elaborada uma

Confissão sobre a disciplina eclesiástica, com quarenta artigos. Tudo tem seu

início na Igreja local, sendo que o Consistório regulamentava o culto. Depois vem

o que era chamado de Colóquio, ou seja, várias Igrejas, cada uma representada

pelo pastor e um presbítero. Seguindo a gradação, vinha o Sínodo Provincial,

formado por vários Colóquios. Finalmente, havia o Sínodo Nacional, que atendia

às grandes questões eclesiásticas, doutrinárias e teológicas. Todos possuíam seus

representantes. Essa estrutura serviu de base para o presbiterianismo. Tal sistema

era democrático-representativo. O resultado foi a multiplicação de Igrejas pelo

país. De 1555 a 1563, cerca de trezentas novas Igrejas reformadas foram

organizadas.

Face ao tamanho crescimento, começaram a surgir os massacres, sendo o

primeiro em Vassy. Somente com a ascensão de Henrique IV, de Navarra, e com a

promulgação do Edito de Nantes, que a liberdade e a tolerância religiosa foram

permitidos. No entanto, aos poucos, as liberdades foram sendo restringidas.

Primeiro foi Luiz XIII, em 1629, no edito de Nimes. Depois Luiz XIV, em 1685,

terminou por revogar o pouco que restava de liberdade e tolerância. Deu-se, então,

um grande processo de emigração dos protestantes do reino com muita perda para

a nação. Luiz XV, em 1724, promulgou dezoito artigos duríssimos contra os

protestantes. Aprouve à Providência, através de Luiz XVI, estabelecer, em 1787, o

Edito de Versailles, reconhecendo o protestantismo como religião legítima.416

416 LESSA, Vicente Temudo, op. cit. p. 243.

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2.4.4Os Últimos Anos de Calvino

A coroação dos trabalhos árduos de Calvino, após a organização da cidade e

do arrefecimento das disputas doutrinárias, foi a criação da academia de Genebra,

inaugurada no dia 5 de junho de 1559.417 Teodoro Beza foi o seu primeiro reitor.

Mais tarde, veio a se tornar uma universidade. Seu início teve três cátedras: grego,

hebraico e filosofia. Esta academia se transformou em uma escola de formação de

muitos teólogos que se converteram à Reforma e se transformaram, depois, em

grandes reformadores em seus países. Não é possível subestimar a importância

desta instituição.418 Por exemplo: John Knox, da Escócia, é um dos estudantes em

Genebra e com ele muitos de outros países.419 A academia é o ponto culminante

da obra de Calvino: aqui, a interpretação bíblica – a motivação calvinista central –

ganha um espaço e manifesta singular organização.420

No mesmo ano, foi publicada a versão final das Institutas. A esta altura, este

consistia num manual importante, composto de quatro volumes e 24 capítulos,

pertencente ao grupo de grandes obras dogmáticas da teologia evangélica.421

417 GONZALEZ, Justo L., op. cit., p. 117.418 Cf. O excelente artigo de W. Stanford Reid, “Calvino e a Fundação da Academia de Genebra,”Westminster Theol. Jour., XVIII (1955), pp. 1-35.419 Carlos Barro falando sobre a visão missionária de Calvino e seus ideais para com aUniversidade de Genebra disse (BARRO, 1998, p.44): “A Idéia de Calvino era de que, quandopropriamente treinados, os estudantes poderiam voltar a seus próprios países e espalhar oevangelho como missionários. Nesse sentido, ele procurou tornar Genebra um centro missionáriopara espalhar a Reforma e os seus ensinos por toda a Europa e outras partes do mundo”. BARRO,Antônio Carlos. In Revista Fides Reformata. N° 1 Volume III: São Paulo (SP): SeminárioPresbiteriano Revendo José Manoel da Conceição, janeiro a junho de 1998, pp. 38-49.420 A “Academia de Genebra” foi fundada em 05/06/1559. A necessidade de pastores e obreirosera gritante! O próprio Calvino, numa de suas cartas, desabafa essa triste realidade, dizendo que“em todas as partes da França, os irmãos estão implorando a nossa assistência”. Antônio CarlosBarros, A Consciência Missionária de Calvino. In: Fides Reformata, vol. III, no. 1, 1998, p. 43421 Quando João Calvino começou a escrever a primeira edição das Institutas da Religião Cristã,em 1535, com a idade de 27 anos, sua intenção era servir grandemente aos interesses protestantes,mas sua influência deve ter excedido em muito a sua expectativa. Provou ser o trabalho maisinfluente da Reforma Protestante. Os protestantes de outros países viram, em Calvino, e em suaobra, um pilar de grande força para a obra iniciada, pois que era um teólogo do mais alto grau,enquanto que os romanistas temeram sua caneta como um dos inimigos mais fortes. Certo escritorcatólico teve que dizer o seguinte a respeito das Institutas: "É o Alcorão, o Talmud da heresia, acausa principal de nossa queda [...] o arsenal comum do qual os oponentes da velha Igrejaobtiveram emprestado as armas mais agudas. Nenhum escrito da era da reforma é mais temidopelos católicos romanos, e mais zelosa e hostilmente combatido, que as "Institutas" de JoãoCalvino".

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Devido ao excesso de trabalho durante toda a sua vida, Calvino, que havia

passado por muitas enfermidades, ficou debilitado.422 Em 2 de fevereiro de 1564,

enunciou sua última conferência na academia e, em 6 de fevereiro, pregou o seu

último sermão.423 Em 27 de maio de 1564, Calvino morreu em Genebra. Um dia

depois, foi sepultado sem nenhuma pretensão, como ele mesmo havia pedido.424

Por isto, ninguém, nos dias atuais, sabe com precisão onde estão os restos do

reformador.

Foram vinte e cinco anos de extensa dedicação à causa do Evangelho. De

1536 a 1538, encorajado por Farel e convidado insistentemente pelo Conselho da

cidade, passou ali mais vinte e três anos, de 1541 até 27 de maio de 1564, dia em

que o Eterno e Soberano Senhor o chamou à sua presença.

422 OC 9.891-4. As notas 130 e 131 do artigo João Calvino: O Humanismo Subordinado ao Deusda Palavra – a propósito dos 490 anos de seu nascimento. In: Fides Reformata 4/2 (1999) deHermisten Maia Pereira da Costa, são dignas de registro: No dia 08/02/1564, escreveria a médicosde Montpellier, agradecendo os remédios e a gentil atenção. Nesta carta, ele descreve suasenfermidades: artrite, pedras nos rins, hemorróides (que o impediam de cavalgar), febre, nefrite,indigestão, cólicas, úlceras, emissão de sangue por via urinária. (Ver João Calvino. To thePhysicians of Montpellier, “Letters”, John Calvin Collection, CD-ROM (Albany, OR: AgesSofware, 1998), número 665. Teodoro Beza. “Life of John Calvin”, John Calvin Collection, CD-ROM (Albany, OR: Ages Sofware, 1998), 50 e 52. Ver também Philip Schaff. History of theChristian Church. Vol. VIII, 820,821. Os últimos momentos de Calvino foram testemunhadospor seus pares, que afirmam: “Estes são os eventos principais na vida e morte de Calvino que eumesmo testemunhei durante os últimos dezesseis anos. Eu penso que estou qualificado paradeclarar que nele foi exibido diante de todos os homens um dos mais belos e ilustres exemplos devida piedosa e morte triunfante de um verdadeiro cristão; que será fácil pela malevolênciacaluniar, como será difícil devido a sua exaltada virtude imitar”. [Teodoro Beza, “Life of JohnCalvin”, John Calvin Collection, CD-ROM (Albany, OR: Ages Software, 1998), 65. Outratradução: Teodoro Beza, Life of John Calvin: em Tracts and Treatises on the Reformation of theChurch, Vol. I, cxxxviii. Cf. Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. VIII, 272].423 Philip Hughes nos conta que não foi muito antes que Calvino foi compelido “pelascircunstâncias da controvérsia na cidade [...] a adicionar aos seus compromissos de ensino aresponsabilidade da pregação pública”. Philip E. Hugh es, ed., introdução ao The Register of theCompany of Pastors of Geneva in the Time of Calvin (Grand Rapids, MI, William B. EerdmansPublishing Co.), p. 5.424 Calvino compreendia que a glória deveria ser tributada apenas a Deus, e que por melhor quefosse o ser humano, não era digno de honrarias. Pensa assim porque entende que “a condição dohomem com relação a Deus é de total depravação, havendo uma tremenda “discrepância entre anossa sordidez e a suprema pureza de Deus.” Institutas, livro II, p. 230.

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O grande e amável amigo Farel lhe faz a última visita, já aos setenta e cinco

anos. Seu biógrafo Theodoro Beza ali esteve até o momento final. Realizou

grande esforço para falar suas últimas palavras aos pastores de Genebra, palavras

de despedida.425 Em seu Discours d’adieu aux ministres, Calvino afirmou que

tinha sido apenas um “pobre e tímido acadêmico”,426 vocacionado por Deus para

o serviço do seu Reino.427

Logo depois de sua morte, Beza escreveu:

Assim esta luz esplêndida da Reforma foi levadade nós com o pôr-do-sol. Durante aquela noite, e no diaseguinte, houve grande lamentação por toda a cidade;para a República a tristeza da perda de um de seuscidadãos mais sábios; a Igreja lamentou a morte de seupastor fiel; a Academia se entristeceu por se ver privadade um professor incomparável, e todos se afligiram pelaperda daquele que foi, sob Deus, o pai e confortador detodos.428

425 OC 9.891-4. As notas 130 e 131 do artigo João Calvino: O Humanismo Subordinado ao Deusda Palavra – a propósito dos 490 anos de seu nascimento. In: Fides Reformata 4/2 (1999) deHermisten Maia Pereira da Costa, são dignas de registro: No dia 08/02/1564, escreveria a médicosde Montpellier, agradecendo os remédios e a gentil atenção. Nesta carta ele descreve suasenfermidades: artrite, pedras nos rins, hemorróides (que o impediam de cavalgar), febre, nefrite,indigestão, cólicas, úlceras, emissão de sangue por via urinária. (Ver João Calvino. To thePhysicians of Montpellier, “Letters”, John Calvin Collection, CD-ROM (Albany, OR: AgesSofware, 1998), número 665. Teodoro Beza. “Life of John Calvin”, John Calvin Collection, CD-ROM (Albany, OR: Ages Sofware, 1998), pp. 50,52. Ver também Philip Schaff. History of theChristian Church. Vol. VIII, pp. 820,821.426 MCGRATH, Alister, op. cit., p. 223.427 OC 9.892: “[…] un pauvre escholier timide comme ie suis, et comme ie l’ay tousiors esté […]”.428 BEZA, Theodoro. Life of John Calvin: em Tracts and Treatises on the Reformation of theChurch, CXXXIV e, em outra tradução: Teodoro Beza, Life of John Calvin, p. 63, em JohnCalvin Collection (The AGES Digital Library, 1998). Cf. J. T. McNeill. The History andCharacter of Calvinism, p. 227. Ver também Hermisten Maia Pereira da Costa. João Calvino: OHumanismo Subordinado ao Deus da Palavra – a propósito dos 490 anos de seu nascimento. In:Fides Reformata 4/2 (1999), p. 14.

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O agora cidadão genebrino não soube o significado da palavra descanso.

1564 foi o ano do “nascimento de Shakespeare e de Galileu, e da morte de

Miguel Ângelo”.429 Genebra perdia o sábio cidadão, a Igreja o seu pastor fiel, a

Academia seu mestre, a Europa o semeador da liberdade. Homem de cuja teologia

enaltecia o soberano Deus e expunha as fraquezas humanas ante a maravilhosa

graça de Jesus Cristo. Seus parcos bens foram deixados, por testamento, para seu

irmão Antonio Calvino e seus sobrinhos, deixando ainda uma pequena quantia ao

caixa dos estudantes necessitados e outra para os carentes estrangeiros.430

Calvino despertava, e ainda desperta, mais respeito e admiração do que

propriamente afeto e carinho. Segundo Silvestre, “Calvino merece um retrato en

mouvement, no qual não é ditador nem fundamentalista.”431 Doumergue o

classifica como um dos homens mais prodigiosos e ativos de todos os tempos, que

trabalhava incessantemente em favor da vida.432

O grande historiador Schaff diz que,

Aqueles que julgam de seu caráter e conduta, dizele, pelo caso de Serveto, e de sua teologia peloDecretum horriblile – vêem as manchas do sol, mas nãoo próprio sol. Levando em conta todas as suas falhas,deve ser julgado como um dos maiores e melhoreshomens que Deus fez aparecer na história doCristianismo.433

Ricardo Gouvêa, comentando sobre a genialidade e a luta do reformador

pela dignidade humana diante de Deus, de si e do seu semelhante, diz que

“Calvino foi um patrono dos direitos humanos”.434 Um monumento foi erguido

em sua homenagem, nas comemorações dos 300 anos da Reforma de Genebra, em

1835, que dizia, entre outras coisas: “Alquebrado no corpo, poderoso no espírito,

vencedor pela fé, o Reformador da Igreja, o Pastor e Protetor de Genebra.”435

429 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 262.430 GONZALEZ, Justo L. A Era dos Reformadores. Vol. VI. São Paulo. Ed. Vida Nova, p. 117.431 SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 80432 Há muitas obras de Doumergue, das quais podemos citar: Jean Calvin, les hommes et les chosesde son temp (1889-1927); La Genève calviniste e The Christian Institutes of Calvin and theConfession of Faith of la Rochele (1896).433 SCHAFF, Phillip. The Swiss Reformation, op. cit., p. 834.434 GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., pp. 118.

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O teólogo Hermisten Maia Pereira da Costa, em seu artigo João Calvino: O

Humanismo Subordinado ao Deus da Palavra – a propósito dos 490 anos de seu

nascimento, cita um dos grandes historiadores franceses, o católico Ernest Renan

(1823-1892), que, em seus Études d’Histoire Religieuse, faz o seguinte

comentário acerca de Calvino:

Era Calvino um daqueles homens absolutos queparecem ter sido vazados de um só jato num molde, eque se estudam por meio de um simples olhar. Umacarta, um gesto é bastante para se formar dele um juízo[...]. Não dava importância a riquezas, nem a títulos, nema honras; indiferente às pompas, modesto no viver,aparentemente humilde, tudo sacrificava ao desejo detornar os outros iguais a si. Excetuando Inácio deLoyola, não conheço outro homem que pudesse rivalizarcom ele nestes raros predicados. É surpreendente comoum homem, cuja vida e cujos escritos atraem tão poucoas nossas simpatias, tornasse-se o centro de um tãogrande movimento e que suas palavras tão ásperas, suaelocução tão severa, pudessem ter uma tão espantosainfluência sobre os espíritos de seus contemporâneos.Como se pode explicar, por exemplo, que uma dasmulheres mais distintas de seu tempo, Renata de França,que, no seu palácio de Ferrara, via-se cercada dos maisbrilhantes talentos da Europa, se deixasse cativar poraquele severo doutrinador, enveredando-se, por suainfluência, numa senda que tão espilhosa lhe deveria tersido?

Semelhantes vitórias só podem ser alcançadas poraqueles que trabalham com sincera convicção. Semmanifestar aquele ardente desejo de procurar o bem dosoutros, que foi o que assegurou a Lutero o bom êxito deseus trabalhos, sem possuir o encanto, a perigosa, postoque lânguida doçura de S. Francisco de Sales, Calvinosaiu vitorioso, numa época e num país em que tudoanunciava uma reação contra o cristianismo, e issosimplesmente por ser o maior cristão do seu século.436

435 SCHAFF, Philip. History of the Christian Church. Vol. VIII, 825. In: Hermisten Maia Pereirada Costa. João Calvino: O Humanismo Subordinado ao Deus da Palavra – a propósito dos 490anos de seu nascimento. In: Fides Reformata 4/2 (1999), p. 15.436 RENAN, Ernest. Études d’Histoire Religieuse. (Paris, 1880). 7a edição, p. 342. Apud PhillipSchaff. History of the Christian Church. Vol. VIII, pp. 279,280. In: COSTA, Hermisten MaiaPereira, In: Fides Reformata 4/2 (1999), p. 01.

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2.4.5Beza, o Sucessor e Biógrafo de Calvino

Depois da morte de Calvino, Teodoro Beza foi eleito seu sucessor como

moderador dos pastores de Genebra. Beza nasceu, em 1519, na Borgonha. Seu pai

era o governador Real em Vezelay, sua mãe era conhecida pela sua generosidade

e seu tio, Nicholas, estava no parlamento Francês. Nicholas o convidou para

estudar em Paris e, antes de se dirigir para lá, estudou aos pés de Melchoir

Wolmar, na Alemanha e, posteriormente, em Bourges, tendo concluído seu curso

de Direito em Orleans, em 1539.437

Após sua graduação, seguiu para Paris, sendo-lhe prometida a sucessão no

escritório de seu tio Nicholas, onde recebia 700 coroas douradas que eram mais do

que suficientes para o seu sustento. Depois de 2 anos em Paris, ele adoeceu

mortalmente, quando, então, veio a perceber suas necessidades espirituais, o que

resultou na sua conversão. Antes de se recuperar totalmente, tomou os seus

pertences e se dirigiu para Genebra, pois, havendo renunciado à fé católico-

romana, era o local mais seguro de se estabelecer. Por causa de sua conversão,

foram tomadas todas as suas regalias, inclusive o sustento conseguido pela sua

família, mas mesmo assim, ele estava disposto a abandonar tudo e aprender mais

sobre a fé protestante.

Originalmente professor jurista, passou dez anos lecionando Grego na

academia de Lausanne, na Suíça. Em 1558, foi para Genebra. Um ano depois,

tornou-se diretor da academia da cidade.438

Calvino, que se encontrava em Genebra, e que já o conhecia desde os

tempos em que estudou com Wolmar, o recebeu de braços abertos. Em 1558,

ocupou a primeira cadeira de Grego na Academia de Genebra. Já em seus

primeiros anos em Genebra, Beza tornou-se consultor teológico da Igreja

francesa, dialogando com as autoridades políticas dos hunguenotes no contexto

das guerras da religião.

437 CARTER, Lindberg. As Reformas na Europa, p. 325.438 Em 1558, Beza aceitou uma oferta de Calvino para lecionar na recém fundada academia emGenebra. Ver: Gonzalez, Justo L., Dicionário Ilustrado dos Intérpretes da Fé, p. 110.

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Após a morte de Calvino, assumiu a cadeira de Teologia como sucessor de

Calvino. Beza foi o responsável por solidificar, através da academia de Genebra,

os princípios Reformados na cidade, além de proporcionar a expansão das idéias

reformadas na Europa, especialmente nos Países Baixos.

Depois de 1564, Beza manteve estreito contato com as comunidades

francesas. Ao participar do concílio, ele foi eleito presidente do sínodo de La

Rochelle. Beza é considerado o sucessor de Calvino, em Genebra, porém não

apresenta literal continuidade com o pensamento ou metodologia do seu

antecessor: suas raízes estão na filosofia aristotélica e, por isso, ele trata de

sistematizar as teses particulares da sua obra teológica (principalmente a doutrina

da predestinação e a compreensão acerca da eucaristia).

Outra característica do seu trabalho é a ênfase no NT e sua dedicação à

ciência bíblica. Sua edição do NT, contendo o texto que ele mesmo descobriu, foi

reimpressa mais de 150 vezes até 1965.

A influência de Beza nos estudos da Escritura, faz-se através de um viés

acadêmico, e não propriamente pastoral ou apologético,439 o que influenciou uma

geração inteira de estudantes e foi o princípio do fortalecimento das concepções

reformadas em Genebra. Porém, doutrinas como a da inspiratio verbi,440 da

infalibilidade e inerrância441 e da lectio continuae regulatoris442 foram as bases

das rupturas socinianas443 e, conseqüente, arrefecimento da fé reformada na

França.

439 Ao contrário de Calvino, que era um expositor da Escritura, e que comentava os textosobjetivando a pregação, Beza inseriu o estudo acadêmico do Antigo Testamento e do Novotestamento, sendo precursor da teologa bíblica moderna. Ver: MURDOCH, Ralph, Interesting ofScriptures Studies?, New York: New Harper, 1998. p.57.440 A concepção do “ditado verbal da Escritura” não é um legado de Calvino, mas dos seussucessores, sob a influência de Beza. Jean Astruc e Pierre Bordieu, ao apresentarem suas críticas aCalvino neste ponto, estão na realidade apontando desvios no calvinismo, e a literalidade foidefendida por autores calvinistas como Turrentino e W. Ames, como sendo um princípio extraídode Calvino. Ver: COURTHIAL, Pierre, Idade de Ouro do Calvinismo na França (Em: Calvino eSua Influência no Mundo Ocidental), pp. 88-110.441 As doutrinas mencionadas foram adotadas por Calvino, mas o foco de Calvino, posto na açãodo Espírito, foi substituído pela idéia nominalista de que a Escritura por si mesma pode culminarem ensino da “correta e santa doutrina”. Institutas, livro I, 10,2.442 A “lectio continua”, adotada por Calvino no seu ministério, em Genebra, foi confirmada porBeza, que, ao contrário de Calvino, não aceitava a adoção de qualquer lecionário, inclusive aquelesadotados em cidades como Berna e Zurich. Ver: CARTER, Lindberg, As Reformas na Europa, p.318.443 O socianismo é um movimento fundado sob a influência de Socianus, precursor do Iluminismo.O socianismo adota o pelagianismo, ou seja, a razão, que não está totalmente corrompida, podecompreender as verdades sobre Deus, e operar a salvação. Ver: GONZALES, Justo L., DicionárioIlustrado dos Intérpretes da Fé, p. 589.

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Além da tradução da Bíblia, Beza contribuiu de forma grandiosa para o

progresso da fé protestante com a publicação de sua Confissão de Fé, que

inicialmente fora produzida no intuito de conquistar seu pai à fé. Tal confissão foi

utilizada em larga escala, na época, para promover o conhecimento evangélico aos

seus compatriotas, sendo editada e dedicada a Wolmar. Esta confissão foi

considerada a maior das contribuições de Beza para a fé protestante, sendo

respeitada tanto pelos amigos como pelos inimigos, como uma obra de grande

relevância, principalmente nas questões relacionadas ao sacramento da Ceia.

Teodoro Beza morreu aos 86 anos, em 13 de outubro de 1605. Ele não foi

enterrado ao lado de Calvino, porque os seus opositores tinham ameaçado roubar

o seu corpo. O efeito de seus trabalhos foi de grande significado. Embora não

tenha sido reconhecido por ter desenvolvido algum pensamento novo, seus

trabalhos são tidos como de grande valia, ainda hoje, por manifestarem esta tônica

de desenvolvimento e simplificação da fé calvinista, porém com um tônus na

doutrina da Graça Irresistível.

2.4.6As Obras de João Calvino

Segundo seu primeiro biógrafo, Theodoro Beza, Calvino nasceu para

escrever.444 Sempre esteve às voltas com a pena, fazendo dela uma arma poderosa,

capaz de enfrentar as mais acirradas lutas dos grandes resistentes à Reforma e as

mais absurdas heresias, bem como sistematizar a riqueza da teologia e influenciar

sua cidade, seu país e a Europa do seu tempo, o Ocidente e até mesmo o mundo.

Dominou como poucos as duas línguas que utilizou o latim e o francês, podendo

ser considerado um grande clássico. Não há nenhuma dúvida de que Calvino

revelou, em seus escritos, a grande influência recebida de Santo Agostinho e

Bernardo.445

444 FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., p. 140.445 Ver LANE, A. N.: “Calvin’s Use of the Fathers and the Medievals”, in Calvin TheologicalJournal, 16, 1981, pp. 14 9-205; e “Calvin’s Sources of St Bernard”, in Archiv fürReformationsgeschichte, 67, 1967, pp. 253ss.

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O reformador assume as Escrituras como o ponto de partida de sua teologia.

Para Calvino, o AT e NT falam do mesmo Deus. Por isto, não é possível

estabelecer uma diferença essencial entre as partes da Bíblia. Assim, as profecias

do AT são realidades no NT. No AT, se vislumbra o Evangelho. O NT apresenta

luz própria. As similaridades são numerosas, sem negar as diferenças. Porque é a

mesma aliança de Deus com os homens que se manifesta em toda a Bíblia. Por

esta razão, a Lei tem sua serventia para que o ser humano reconheça seus pecados

(como em Lutero); e seu objetivo fundamental está em orientar a vida do crente

segundo os mandamentos de Deus.446 É certo que com os mandamentos se

reconhece a pecaminosidade humana, porém este fato não suspende o seu

verdadeiro sentido, que é mostrar a maravilhosa vontade de Deus.447

No entanto, mesmo com tamanha inteligência, conseguia alcançar os

intelectuais e os humildes do povo. Como bem testemunhou Warfield:

O que vemos em Calvino fundamentalmente é ohomem de letras, como santo: ele nunca visava, para si,nada, ele nunca desejava, para si, em toda a sua vida, elenunca aderiu inteiramente a qualquer outra vocação. Eleera por natureza, por dons, por educação – por inatapredileção, por qualidades adquiridas igualmente – umhomem de letras. E ele fervorosamente – podemos dizer– aproximadamente, como tal, desejou dedicar-se aDeus.448

446 Afirma Calvino: "A terceira aplicação da Lei é a mais importante porque se refere a seuobjetivo final: se realiza em todos os fiéis, em cujos corações o Espírito de Deus domina. Eles têma Lei escrita, incluída e esculpida em seus corações pelo dedo de Deus, o que significa que sãoorientados pelo Espírito a terem uma disposição mental interior que os leva a, de bom grado, sesubmeterem. Sem dúvida, é possível tirar um duplo proveito da Lei. Primeiro: é o melhorinstrumento que nos ensina dia a dia qual é a vontade de Deus que buscamos cumprir, pois nosafirma tal conhecimento. Por mais que um servo anele de todo o coração cumprir as expectativasdo seu amo, sempre tenderá a necessidade de explorar e observar a particularidade de seu patrão.O mesmo vale para os fiéis. Nada pode se libertar desta necessidade, porque nada há de maisprofundo ou sábio que o puro conhecimento da vontade de Deus, através da educação diária naLei. Segundo: não necessitamos somente que alguém ensine, mas que também admoeste. Este éoutro proveito que o servo tem através da Lei. Sua observação constante reforça nossa obediênciae salva do perigoso caminho do pecado e da desobediência. Os santos necessitam sem dúvida deajuda e estímulo, porque ainda que seu espírito deseje buscar a justiça de Deus, as debilidades dacarne pesam sobre eles, e não vão por caminhos com a necessária e alegre disposição.” Parágrafocitado das Institutas II, 7,12.447 “Pela lei Deus exige o que lhe é devido, todavia não concede nenhum poder para cumpri-la.Entretanto, por meio do Evangelho os homens são regenerados e reconciliados com Deus atravésda graciosa remissão de seus pecados, de modo que ele é o ministério da justiça e da vida.”Segundo Coríntios, (2 Co 3.7), p. 70.448 WARFIELD. Calvin and Augustine, Baker Book House Distributer Grand Rapids, 1956, p. 5.

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Sem dúvida, além de ser um profundo conhecedor da teologia, Calvino

também foi comentarista da Escritura, fazendo seus comentários a partir das

línguas originais.449 Warfield afirma que a importância dos comentários bíblicos

de Calvino é porque são análogos à sua teologia, uma vez que a sua teologia

consiste numa exposição coerente com a própria Bíblia. Ele também afirma que,

[...] é um marco da época em que a história dadoutrina da Trindade, por exemplo, era compreendidamais comumente com elementos de subordinacionismo,mas a aplicação da Escritura por Calvino contribuiu paraesclarecer mais adequadamente a doutrina quanto àprofundidade da co-igualdade das Pessoas.450

Embora já tenhamos citado e comentado, ainda que laconicamente, sobre

algumas das obras de Calvino, ele, na verdade, escreveu aproximadamente 96

obras. Sua influência, através de suas penas e postulados doutrinários,

fundamentados nas Escrituras e nos grandes pais da Igreja, estendeu-se por muitos

países. Apesar de sua frágil saúde, com inúmeros afazeres, exercendo diferentes

ofícios, tais como pastor, professor, estadista etc., sua obra é, de fato, espantosa,

em qualidades literária e teológica, clareza e profundidade.

Em quase todas as obras, ele a dedicava a reis, príncipes de várias nações,

nobres, amigos pessoais. Phillip Schaff diz que “ele (Calvino) foi o habilidoso

exegeta entre os reformadores e seus comentários estão entre os melhores do

passado e do presente”.451 Karl Barth diz ainda o seguinte: “[...] eu poderia feliz e

proveitosamente assentar-me e passar o resto de minha vida somente com

Calvino”.452

449 Por entender ser a Bíblia o registro inerrante da Palavra de Deus, e que não é possível conhecera Deus sem a Palavra, Calvino se lança a comentar a Escritura e o faz segundo um programa queconsiste em preservar “a unidade que se processa à par da Palavra do Senhor” (Institutas, livro IV,2.5).450 Ainda que este juízo seja verdadeiro, não obstante, isto não quer dizer que Calvino não tenhasido influenciado por Lutero através de Bucer, sendo estas concepções calvinistas avivadas atravésda leitura de Agostinho. Ainda que Calvino seja crítico da prolixidade de Agostinho, ele cita estecom mais freqüência que todos os outros Pais da Igreja. Calvino, em sua leitura teológica,apresenta-se mais dependente das Escrituras que outros teólogos Reformados da época, e aclaridade e incisão do seu pensamento, bem como as aplicações práticas para a vida total e defervor e afeto são decorrentes desta leitura da Escritura. Por isto, Calvino é chamado teólogo docoração (Warfield, op. cit., p. 23).451 SCHAFF, Phillip. History of the Christian Church. Vol. VIII, p. 261.452 BARTH, Karl. Revolutionary Theology in the Making, p. 101. Apud Timothy George, op. cit.p. 163.

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Segundo Ricardo Gouvêa, Calvino foi um dos maiores exegetas do seu

tempo e ainda hoje permanece praticamente insuperável.453 De seus estudos

resultou um novo paradigma hermenêutico para o protestantismo subseqüente,

através da aplicação do método histórico-gramatical ou, como é chamado

também, histórico-análitico. Sempre priorizando as Escrituras, colocando-as sobre

a autoridade da Igreja como instituição e defendendo o princípio do livre exame,

buscava colocar a Palavra ao alcance de todos: intelectuais e gente simples do seu

tempo.

Lessa, sobre a capacidade literária de Calvino, afirma:

Suas Institutas, seus judiciosos e opulentosComentários, os sermões, tratados e escritos diversos,fazem ver nele o homem bem diferente daquele que éretratado pelos adversários ou por aqueles que oconhecem apenas de modo perfunctório, eivados aindade sombrio preconceito, derivado da leitura deperiódicos e de livros tendenciosos.454

Aos 22 anos, em 1529, escrevia sua primeira obra, De Clementia, um

comentário sobre Sêneca, de cunho eminentemente humanístico, com farta citação

dos clássicos, sobretudo, Cícero.455

453 GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., pp. 116.454 LESSA, Vicente Temudo, op. cit. p. 248.455 DURANT, Will. A reforma: história da civilização européia de Wyclif a Calvino: 1300-1564. p. 384. Cf. SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 83. A primeira obra de Calvino erauma clara consciência que o reformador tinha acerca da necessidade de tolerância, de liberdade,pois, na obra, conclama o rei Francisco I, da França, a usar de clemência para com osreformadores. Desde muito cedo Calvino abraçara o humanismo, que trazia, em seu conteúdo, avalorização do homem.

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145

Em 1534, escreveu uma obra apologética, chamada Psychopannychia –

sobre o sono da alma -, cujo propósito era combater as heresias dos anabatistas,

que diziam que a alma dos mortos permanecia em estado de sono até o dia do

juízo final. Teve sempre que enfrentar os erros dos anabatistas. Nesse mesmo tom

apologético, escreveu Adversus fanaticam et furiosam sectam Libertinorum qui se

spirituales vocant (1545), contra o partido dos Libertinos. Ainda escreveu

Resposta ao Cardeal Sadoleto (1539); Sobre o Livre Arbítrio, contra Pighius

(1543); O Culto das Relíquias (1543); Exortação a Carlos V sobre a necessidade

de uma reforma na Igreja (1543) e Contra o Concílio de Trento (1547).456

Sem dúvida de que a Instituição da Religião Cristã, ou Institutas, é a obra-

prima de Calvino. Escrita, como já dissemos, a partir dos dogmas do Credo

Apostólico.457 A primeira edição, em 1536, consistia em seis capítulos, a partir

dos quais a obra foi evoluindo, ganhando corpo e densidade bíblico-teológica no

decorrer dos anos, até sua última edição. É, na verdade, o grande clássico sobre

teologia sistemática, ao qual, segundo alguns, apenas Cidade de Deus, de Santo

Agostinho, e a Summa Teológica, de Tomás de Aquino podem ser comparadas, no

que diz respeito à história da teologia.458

Sem dúvida que a teologia de Calvino tem muitos matizes e é muito

detalhada.459 As Institutas (cuja versão final é datada de 1559) são a primeira

dogmática evangélica extensa. A renovação reformatória se apresenta como um

contraponto à tradição escolástica e dialoga permanentemente com os escritos do

AT e NT.460

456 Apenas como informação histórica, nesse mesmo ano de 1534, no dia 15 de agosto, emMontmartre, Inácio de Loyola instituiu a ordem dos jesuítas. Ano também importante pelo fato deque Paulo III excomungou Henrique VIII e estabeleceu, na Itália, a Inquisição.457 LESSA, Vicente Temudo, op. cit. pp. 73-77.458 GOUVÊA, Ricardo Quadros, op. cit., p. 116.459 “Calvino não está vinculado, como Lutero, a algum ramo da Igreja Cristã; está associado maisapropriadamente a um grande sistema de pensamento. E esse sistema é tão extenso, tão penetrante,e tão poligonal que, desde um ponto de vista, é um corpo sólido de doutrinas abarcando todas asgrandes verdades da religião e da vida.” Calvin Memorial Addresses (Savannah, 1909), p. 37.460 O primeiro princípio do calvinismo é o reconhecimento da Escritura como a Palavra de Deus.Este foi o princípio formal da Reforma Protestante, estabelecida em todos os credos calvinistas, e ofim de toda contradição em todos os escritos próprios de Calvino. A Escritura não é somente oguia autoritativo para o caminho da salvação, mas também dota o homem de uma interpretaçãoautoritativa da realidade como um todo, mais particularmente a existência do homem. O calvinistabusca olhar todas as coisas à luz da eternidade (sub species aeternitatis). Ver: La Historia yCarácter del Calvinismo (New York, 1954), p. 433.

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As Institutas demonstram os dois pólos complementares através dos quais o

pensamento calvinista se apresenta. Por um lado, enfatiza a glória, majestade e

onipotência de Deus.461 Por outro lado (e igual em importância ao primeiro), trata

da salvação do ser humano. Aqui Calvino se mostra como discípulo

(independente) de Lutero. Ambos os conceitos estão bem unidos. Na encarnação e

na salvação, manifesta-se a glória de Deus.462 Quanto à epistemologia, Calvino

trata da questão do conhecimento de Deus e conhecimento de si mesmo.463

461 Por soberania o calvinista entende o absoluto direito de Deus em governar o mundo e fazer oque deseja. É o criador, “Pois dele, por meio dele e para ele são todas as coisas.” Juan Calvino,Institución (Libro I, Cap. 16, pár. 1-9; Libro III, Cap. 21, 22, 23).462 Porém os dois temas se interligam. Sobre isto, afirma Calvino: “Agora, foi-nos da máximaimportância que fosse tanto verdadeiro Deus quanto verdadeiro homem aquele que nos houvessede ser mediador. Se da necessidade disso se indaga, não houve, de fato, uma necessidade simples,ou, como dizem geralmente, absoluta. Procedeu, antes do decreto celeste, de que dependia asalvação dos homens. Mas o Pai clementíssimo decretou o que nos era melhor.” Institutas, livro II,p. 230.463 "Toda nossa sabedoria – se é que merece este nome, se é verdadeira e confiável – compreendeno fundo das coisas: o conhecimento de Deus e de nós mesmos. Estes dois, sem dúvida, estãovinculados de múltiplas maneiras, e por isto não é tão fácil constatar qual é superior, ou originário.Primeiro, nenhum homem pode contemplar-se sem contemplar a Deus com todos seus sentidos, oDeus em que vivemos, e nos movemos, e somos (Atos 17.28). Porque todos os dons queconstituem os bens aparentemente não os temos a partir de nós mesmos. Inclusive em nossaexistência como humanos consiste em ter nossa essência no Deus único. E segundo, estes donsmostram a nós como caem as gotas do céu e nos guiam como o riacho na fonte. Porque justamentenossa pobreza se reconhece mais claramente na riqueza inimaginável de todos os dons queprocedem de Deus. Especialmente a decadência miserável em que caímos, porque o primeirohomem perdeu a fé, o que nos obriga a levantar os olhos. Precisamos e devemos implorar a Deusque nos dê o que nos falta, porém, ao mesmo tempo. devemos aprender a ser humildes [...].Sentimos nossa ignorância, vaidade, pobreza, debilidade, nossa maldade e depravação, e assimchegamos a compreender que somente em Deus se achará a verdadeira luz da sabedoria, averdadeira força e virtude, uma riqueza imensa de todos os bens e a verdadeira justiça. Éjustamente nossa miséria que nos faz contemplar os dons de Deus, e somente quando somosconfrontados com isto é que vemos nossos defeitos, e procuramos seriamente alcançar o Senhor.Porque (naturalmente) cada homem prefere confiar em si mesmo e geralmente não se conhece poristo, pois se conforma com suas habilidades e não quer saber da sua miséria. Quem se conhece,não somente tem a motivação de buscar a Deus, mas de certa maneira é levado por suas mãos àsua sabedoria e santidade, porque ninguém pode conhecer a si mesmo sem antes haver conhecidoo rosto de Deus, e nesta contemplação passa a olhar a si. Porque uma enorme soberba é inata emnós, e sempre achamos que somos impecáveis, sábios e santos, a não ser que nos enfrentemos comprovas palpáveis de nossa injustiça, mácula, estupidez e impureza, e nos convençamos destamaneiras. Porém, isto não ocorrerá se somente olharmos para nós mesmos e não para o Senhor,porque ele é o único parâmetro que nos permite nos autojulgarmos. Por natureza, tendemos àhipocrisia e, por isso, qualquer aparência de justiça nos satisfaz tanto, porém, no fundo, somentepoderia nos satisfazer a verdadeira justiça.” Institutas, livro I, 1, 1 e 2.

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Os quatro grandes volumes podem ser assim distribuídos: No primeiro livro

temos a Doutrina do conhecimento de Deus como Criador e Sustentador de todas

as coisas; o duplo conhecimento de Deus; a doutrina das Escrituras Sagradas; a

doutrina da Santíssima Trindade; a obra da Criação e a doutrina da Providência.

No segundo livro, encontramos o Conhecimento de Deus como Redentor; a

doutrina da Queda e o pecado humano; a doutrina acerca da Lei; o AT e o NT; o

Dogma Cristológico, tendo Jesus Cristo como Mediador e sua Pessoa como

Profeta, Sacerdote e Rei e a obra da Redenção. O terceiro livro aborda a forma

pela qual alcançamos a Graça de Cristo, seus Benefícios e seus feitos; a doutrina

da Fé e da Regeneração; a doutrina do Arrependimento; a Vida Cristã em Cristo;

o dogma da justificação; a doutrina da predestinação e a doutrina da Ressurreição

Final. O último livro trata dos meios externos pelos quais somos chamados por

Deus para vivermos uma nova vida na expressão comunitária da Fé; fala da

doutrina da Igreja; a doutrina dos Sacramentos e termina sobre o governo civil.

Quanto aos livros sagrados, tornou-se um dos mais competentes

comentaristas bíblicos, escrevendo sobre quase todos os livros das Escrituras.

Quanto ao NT, faltaram apenas 2 e 3 João e Apocalipse. O primeiro deles foi o

comentário aos Romanos, em 1539, ainda em Estrasburgo, que foi dedicado a

Simão Grynaeus, seu professor de hebraico e grande reformador em Basiléia. Já

relativamente ao AT, escreveu sobre o Pentateuco, Profetas Menores, Salmos,

Isaías, Jeremias, Daniel, Homilias sobre Jó e 1o Samuel. Ainda comentou o

profeta Ezequiel até o 20o capítulo, onde não teve mais forças físicas para

continuar. Seu último comentário foi sobre o livro de Josué, já nos derradeiros

dias de sua existência.

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Podemos, ainda, classificar suas obras pelos sermões e homilias catalogados.

Através deles, Calvino demonstra um abençoado e rico ministério, embora seja

uma literatura pouco explorada.464 Neles encontramos um pastor altamente

preparado, conhecedor profundo das línguas originais, cuidadoso exegeta, um

expositor primoroso das Escrituras, com rara beleza e pureza doutrinal.

Encontramos neles, também, um homem completamente ligado aos problemas do

seu tempo e dos seus dias. Neles encontramos também grandes e profundas

exortações morais aos seus interlocutores.465 Por anos se utilizou do púlpito da

Igreja Saint Pierre para vociferar com firmeza e unção a Palavra de Deus.466 Na

verdade, diz Wilson Castro:

[...] verifica-se, nos sermões de Calvino, umacombinação admirável do teólogo, exegeta e pastor, poisque as suas mensagens, calcadas na boa doutrina, têmsempre uma aplicação prática às necessidades de seusouvintes,467.

Temos também as poderosas, delicadas, amigáveis e, muitas vezes,

misericordiosas, cartas de Calvino. Através delas, descobrimos um Calvino cada

vez mais tolerante, misericordioso, atento às questões de seu tempo,

comprometido com uma ética libertadora, através do Evangelho de Cristo. Foram

mais de 2 mil cartas. Na verdade, nelas encontramos a expressão do coração de

um grande homem. Nelas viajavam mais do que teologia, belos e lógicos

discursos, consolo e encorajamento aos perseguidos, desafios aos nobres,

príncipes e reis, viajavam também parte de seu coração, de sua alma, enfim, de

sua existência.

464 FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., p. 162.465 SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 125.466 Ver John Kromminga. This is my heart – Devotional Readings from Writings of John Calvin.Zondervan P. House. Grand Rapids MI, 1958. Nixon Leroy. John Calvin’s Teachings and TheirImplications for the theory of Reformed Protestant Christian Education. Thesis, New YorkUniv., 1962. James Mckinnon. Calvin and Reformation. Longmans Green and CO., New York,1936.467 FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., p. 162. Cf. SILVESTRE, Armando Araújo, op. cit., p. 130.

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Elas são espelho da alma de quem as escreve,quando nasce uma necessidade existencial e se inseremem nossa vida sem intenção literária estereotipada, masem atendimento a um dever de comunicação de algo aalguém.468

Em outras palavras, as cartas de Calvino revelam a necessidade cada vez

mais premente de atender aos problemas mais agudos da época, vividos por seus

amigos. Elas revelam, também, um teólogo tremendamente contextualizado,

sensível às correntes políticas, sociais, espirituais e ético-morais de seu tempo.

Elas também confirmam o alcance internacional de seu ministério, sua teologia e

de sua espetacular influência.469 Descrevendo a beleza e o árduo trabalho de

recolher muitas cartas do reformador, Wilson Castro Ferreira afirma que:

Coube, afinal, ao Dr. Jules Bonnet a pesada tarefada busca e reunião das muitas cartas encontradas emvários lugares da Europa, tarefa essa que lhe custou 5anos de incansável labor e que acabaram integrandoquatro grossos volumes das epístolas de João Calvino.470

Não podemos deixar de afirmar que a publicação de suas cartas serviu como

instrumento apologético, pois revelavam um Calvino completamente diferente

daquele que seus opositores descreviam.471

Calvino também introduziu a concepção de que a obra de Cristo manifesta a

realidade de seu tríplice ofício como Profeta, Sacerdote e Rei.472 Ou seja, da

mesma forma que sua concepção dos múnus que dirigia a Igreja e o estado, os

ofícios exercidos por Cristo são identificados a partir de suas ações (ou pelo

menos de como Calvino as entendia).

468 FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., p. 151.469 Quando reunidas, suas cartas formam nada mais nada menos do que 13 volumes da IoannisCalvini Opera Omnia, e 4 volumes da coleção Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters,organizado por Henry Beveridge e Jules Bonnet e tradução de David Constable. Grande Rapids:Baker, 1983.470 FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., p. 153.471 FERREIRA, Wilson Castro, op. cit., p. 154.472 O ministério mediador de Jesus Cristo é colocado em termos de “ofício” e se desdobra natriplicidade destes. Calvino assim os denomina: Múnus profético, múnus sacerdotal e múnus real.Institutas, Vol II, p. 260.

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A pneumatologia de Calvino é também entendida consoante a obra do

Espírito, que age na Igreja e através da Igreja. E a epifania do Espírito se dá na

dinâmica da vida comunitária, na qual os crentes são convocados, guiados e

animados pelo Espírito.473

Entre os reformadores, Calvino foi o que apresentou uma pneumatologia

mais extensa, e inserida nos principais ramos da sua teologia. Na dimensão

soteriológica, a ação do Espírito opera a conversão cristã.474 Na eucarística, o

Espírito eleva o espírito do crente estabelecendo comunhão com o Cristo.475

Uma notável citação expressa muito bem o entendimento que Calvino tem

da predestinação e a sua impressão no tocante às demandas em torno desta. Para

Calvino, a predestinação não pode ser plenamente compreendida através de

esquemas lógicos, mas prioritariamente através da aceitação da Escritura. Calvino

responde àqueles que sepultariam toda menção da predestinação que

473 No comentário do Salmo 73:23, Calvino declara o papel do Espírito na preservação dos eleitos.Ele diz “a razão de não sucumbirmos, mesmo entre os severos conflitos, nada mais é porquerecebemos o cuidado do Espírito Santo. Realmente, Ele nem sempre põe sobre nós o seu poder deum modo evidente e notável (pois Ele nos aperfeiçoa em nossa fraqueza), mas é suficiente que Elenos socorra, ainda que sejamos ignorantes e inconscientes disto: de que Ele nos sustente quandonos humilhamos, e ainda nos levante quando caímos” (John Calvin, in loci, The Works of JohnCalvin. In: Ages Digital Library).474 Ao comentar Efésios 1:14 Calvino interpreta que “o Espírito, pois, é o penhor de nossa herança,ou seja: a vida eterna; para a redenção, ou seja: até ao dia em que a redenção se plenifique.Enquanto vivemos neste mundo, necessitamos de um penhor, porque combatemos em esperança;mas quando a possessão mesma se manifestar, então cessará a necessidade e o uso do penhor”(Efésios, p. 37).475 Afirma Calvino: “Se o sangue de animais era um símbolo genuíno de purificação, no sentidoem que ele agia de uma forma sacramental, quanto mais o sangue de Cristo, que é a própriaverdade, não só dará testemunho da purificação por meio de um rito externo, mas também aqueleque realmente penetrará nas consciências humanas.” O autor mostra claramente como a morte deCristo deve ser avaliada não pelo prisma de seu ato externo, mas pelo poder do Espírito. Cristosofreu como homem, no entanto, a fim de que sua morte pudesse efetuar nossa salvação, suaeficácia flui do poder do Espírito. O sacrifício que produziu a expiação externa foi muito mais queuma obra meramente humana. O texto diz que o Espírito é eterno, para que saibamos que areconciliação que ele efetua é eterna. Hebreus, pp. 231-232.

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[...] a Escritura é a escola do Espírito Santo, noqual não se há de deixar por coisa alguma necessária eútil de conhecer, nem tampouco se ensina mais que o queé preciso saber. Por isto, é preciso guardar-se de ensinarmais do que é preciso saber e também impedir que osfiéis queiram saber tudo quanto na Palavra de Deus estáescrito sobre a predestinação, a fim de que não pareçaque queremos defraudá-los ou privá-los do bem e dobenefício que Deus deseja comunicar, ou acusar oEspírito Santo de haver manifestado coisas que tinhamsido preferível manter secretas. Permitamos, pois, aocristão que abra seus olhos e seu entendimento a todoraciocínio e as Palavras de Deus quando forem ditas, detal forma que o cristão mantenha a sobriedade eprudência, de tal forma que, quando for percebido queDeus fechou sua boca sagrada, cesse também e não leveadiante sua curiosidade fazendo novas perguntas. Tal é olimite da sobriedade que temos que guardar: que aoaprender, sigamos a Deus, deixando de falar primeiro,mas ouvindo Deus falar, sem desejarmos saber mais,nem passar adiante do ensino do Senhor.476

Esta citação contradiz de uma vez o argumento de que Calvino era um

teólogo especulativo e comprova seu profundo interesse em escutar a voz de Deus

falando nas Escrituras. O mesmo pensamento é poderosamente expresso por

Calvino ao advertir aqueles que são demasiadamente curiosos, aqueles que não

deixariam nenhum dos “segredos Divinos sem esquadrinhar ou sem explorar”.477

A estes admoesta a não exceder os limites da Palavra, pois a sabedoria humana

não deve entrar em labirintos proibidos, dos quais é impossível escapar. “E nós

não teremos vergonha de ignorar algo, se nele há uma ignorância douta.”478

476 Institutas, livro III, cap. 21, 3.477 Institutas, livro I, 2, 3.478 Institutas, livro III, cap. 21, 2.

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Finalizando, encontramos o que podemos chamar de escritos litúrgicos e

eclesiásticos, como afirma Lessa.479 Temos as Ordenanças da Igreja de Genebra

(1537); Ordenanças Eclesiásticas, concluídas para implementação das reformas

da Igreja em Genebra, quando chamado para voltar à cidade, em 1541. Elas

faziam parte dos seus escritos litúrgicos e catequéticos, pois entendia que uma das

formas eficazes de recuperar a vida espiritual e, conseqüentemente, moral do povo

era instruindo-o da melhor forma possível. Escreveu um Saltério, uma pequena

confissão de fé e um catecismo, a fim de complementar sua obra A Forma das

Orações (1542). Escreveu também Fórmula do juramento prescrita aos ministros

(1542); Ordem do casamento (1545); Visitação de Igrejas (1546); Ordem do

Batismo (1551); Ordenanças Eclesiásticas e Leis Acadêmicas (1561).480

O teólogo Ricardo Gouveia estabelece uma verdadeira síntese do

pensamento de João Calvino, a partir de suas obras, onde através de certas áreas

de sua caminhada teológica, percebe-se sua estrutura filosófica. Vejamos:

Alguns dos principais fundamentos filosóficos queestão presentes em estado germinal ou latente nas obrasde Calvino mostram que seu pensamento épressuposicional e antitético ante o pensamento apóstata,a heteronomia revelacional associada a pressupostosescriturísticos, a antropologia ptomática que inclui a dainfinita diferença qualitativa entre o Criador e suascriaturas, dos efeitos noéticos do pecado e do sensusdivinitatis, a escatologia palingenética que determina osrumos do pensamento sóciopolítico reformado.481

479 LESSA, Vicente Temudo, op. cit. p. 153.480 Ainda poderíamos citar outras inúmeras pequenas obras ou tratados, como eram chamados.Mas cremos ser suficiente para visualizarmos o quanto Calvino dedicou sua vida aos estudos e àmagnífica tarefa de escrever.481 GOUVEIA, Ricardo Quadros. A Importância de João Calvino na Teologia e no PensamentoCristão. In LEMBO, C. et al. O Pensamento de João Calvino. São Paulo: Mackenzie, Vol. 2,p.121; Segue um pequeno esclarecimento com respeito aos termos e conceitos filosóficosutilizados: pressuposicional – que parte de premissas não declaradas de um raciocínio e utilizadasno decorrer do mesmo raciocínio, mas que não foram previamente enunciadas, não havendo, pois,um compromisso definitivo em relação a ela; antitético – pressupõe um conflito de conhecimentosaparentemente dogmáticos, sem que se atribua a nenhum deles um direito predominante aoassentimento; heteronomia revelacional – lei de Deus ou estabelecida fora do homem, cujoconhecimento lhe é revelado; efeitos noéticos – derivados do estudo das leis do pensamento, quesão os quatro princípios: identidade, contradição, terceiro excluído e razão suficiente; sensusdivinitatis – senso comum da presença e existência da divindade gravado na mente humana;palingenética – segundo os estóicos, renascimento do mundo depois do término de um ciclo devida. Esse termo foi usado freqüentemente neste sentido ou sentido análogo e às vezes também emsentidos restritos ou particulares: para designar o renascimento da alma, ou, em sentido retórico,para indicar qualquer renovação radical.

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Ainda sobre a importância do corpo doutrinário de Calvino, o historiador

Timothy George declara o seguinte:

A grande realização de Calvino foi tomar osconceitos clássicos da Reforma (sola gratia, sola fides,sola scriptura) e lhes dar uma exposição clara esistemática, que nem Lutero nem Zwínglio jamaisfizeram, adaptando-os ao contexto civil de Genebra.Dessa cidade, tais conceitos assumiram vida própria edesenvolveram-se numa nova teologia internacional[...].482

482 GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores, op. cit., p. 166.

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Conclusão

Quando lançamos um olhar histórico sobre o período pré-reformado,

constatamos que a Reforma Protestante não aconteceu de repente, mas foi

resultado de uma série de acontecimentos políticos, econômicos, sociais e,

essencialmente, religiosos. Na verdade, houve uma fermentação que culminou

com tal evento. O que fizemos foi destacar alguns dos principais eventos e pré-

reformadores, como pano de fundo, preparando o caminho para a apresentação,

em seguida, do reformador francês, evidenciando uma biografia detalhada, seu

ardor como reformador e suas obras.

Diante do exposto, nosso maior interesse, a partir desse momento, é levantar

o pensamento do reformador francês, nas áreas antropológica, cristológica,

soteriológica e eclesiológica, a fim de que, posto isso, respondamos a seguinte

pergunta: em que tais paradigmas teológicos oferecem elementos para

fundamentar a temática da liberdade cristã, num contexto moderno e pós-

moderno? Eis nossa próxima caminhada.

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Terceiro Capítulo

3Calvino e a Liberdade Cristã: A Práxis Libertadora doCalvinismo em Genebra

Calvino foi um teólogo humanista,483 pregando, ensinando e escrevendo

uma teologia bíblica que expressava o valor do homem diante do seu Criador, mas

que, em função do seu distanciamento de Deus, causado pelo pecado, tornou-se

dependente da iniciativa salvífica de Deus em Cristo Jesus, único redentor do ser

humano. Esta era e é a situação do homem em estado de ruptura com Deus.

483 Podemos classificar o período dos grandes filósofos e da Idade Média como pré-modernos, oque já foi visto, no capítulo primeiro, sob a ótica de alguns paradigmas. Entretanto, este tempo foimarcado por um humanismo que existe apenas como pressuposto, como abstração, comoidealização, em que o homem é pensado e representado como pura idealidade, submetido aexigências universais. Assim, se a cultura clássica – grega e romana – é matriz de certo sentido dehumanismo, este tem aí, como principal característica, a idealização do humano. Isto éparticularmente forte no referente à representação do corpo humano. O corpo humano que osgregos esculpiram é a realização da beleza e da perfeição: as formas harmônicas, as proporçõesexatas, a exatidão nascida não da realidade fenomênica do corpo, mas do corpo ideal – a aspiraçãoda construção da beleza, da areté – o corpo mais saudável e belo, o corpo como reprodução dodivino. Assim, na cultura clássica, não há lugar para o corpo que padece, que trabalha, que édeformado pela ação das contingências. Exemplo disto é a maneira como Platão enxerga o homemque trabalha: tendo visto, certa vez, um ferreiro que era anão e corcunda, ele concluiu que essasdeformidades físicas eram inerentes ao exercício daquele ofício, denotando o lugar absolutamenteaviltado que o trabalho e seu sujeito ocupam no mundo platônico. Representa-se o corpo, é certo,mas aqueles volumes, aquelas formas são projeções ideais, são manifestações do máximo dabeleza e da grandeza de corpos que, na pedra, reproduzem as formas inefáveis dos deuses. Nessesentido, estamos longe dos corpos reais, que também são feitos de imperfeições, de desvios,cobertos pelas cicatrizes do trabalho e da doença. Durante toda a Idade Média, sobretudo pelainfluência bizantina, os corpos serão representados ideologicamente. Não há lugar, aí, para orealismo, para a reprodução do mundo, material e social, tal como ele é – as formas, as figuras, oscorpos devem reproduzir, no espaço da representação, a absoluta hierarquia cósmica, a supremaciado sagrado, em que o alto, o superior, o acima é sempre ocupado pelo sagrado em sua glóriaeterna. É esta a fundamentação conceitual tanto da arte bizantina, quanto da tradição gótica. OCristo Pantocrator, talvez a mais exemplar tradição do espírito bizantino, e as catedrais góticas esuas miríades de torres, vitrais, arcos ogivais, estátuas, apontando para o alto, são a escolástica emvidro e pedra. Nesse mundo, tal como no mundo clássico, o homem real está oculto, sua imagemou foi idealizada, como sublimação da beleza e da força, ou foi reduzida a um estereótipo como sefez nos mosaicos, ícones e vitrais bizantino-góticos. Já como marco do período moderno, omovimento humanista teve seu início na Itália, no século XIV (Ver “Humanismo” em N.Abbagnano, Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 493); “Humanismo”, emJosé Ferrater Mora, Diccionario de Filosofia, 5a Edição (Buenos Aires: Editorial Sudamericana,1965, Vol. I, p. 876). Seu esplendor se deu nos séculos XV e XVI (Ver “Humanismo”, em JoséFerrater Mora, Diccionario de Filosofia, Vol. I, p. 876. O pressuposto do HumanismoRenascentista formulava que o homem era o centro de todas as coisas, em face de sua grandeza ecapacidade, vendo-o sempre como centro de tudo, nunca como meio. Francis A. Schaeffer (1912-1984) aborda, com propriedade, o antropocentrismo do humanismo, declarando que o“Humanismo é a colocação do homem como centro de todas as coisas, fazendo-o a medida detodas as coisas.” (Cf. Francis Schaeffer em Manifesto Cristão. Brasília: Editora Refúgio. 1985, p.27).

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A graça salvadora ou graça especial provoca no homem uma nova vida,

através da regeneração, operada pela ação do Espírito Santo, resultando numa

nova consciência de vida. O Evangelho de Jesus Cristo traz verdadeira liberdade

ao homem. Inserido na realidade do Reino de Deus, o homem, agora, responde à

graça salvadora de Jesus Cristo, numa nova relação com Deus, consigo mesmo,

com o outro e com a própria criação.

Assim, desenvolve sua nova vida na Comunidade da Fé – a Igreja – onde

cresce no conhecimento das Escrituras, no exercício da comunhão, com todas as

implicações da alteridade e, conseqüentemente, é remetido à sociedade a fim de

que, na práxis da liberdade cristã, o Reino de Deus alcance os poderosos, os

pobres, os oprimidos e os opressores.484

484 No entanto, o humanismo de Calvino não contemplava o homem como o centro de todas ascoisas. Seu conceito humanístico partia das Sagradas Escrituras. Ele sempre foi um homeminteressado pelo ser humano. Sua primeira obra, um comentário de Sêneca, chamada De Clementia(1532), é tida por McNeill como “o principal monumento dos conhecimentos humanísticos dojovem Calvino.” (Cf. MCNEILL, John T. The History and Character of Calvinism, p. 104).Boisset diz que o livro de Calvino era “sólido trabalho de um humanista muito jovem e jábrilhante.” (Cf. Jean Boisset. História do Protestantismo. São Paulo: Difusão Européia do Livro.1971, p. 57). O que precisamos reforçar é que o humanismo de Calvino não pode ser visto doponto de vista secular. Sua expressão maior sobre sua visão humanística está em sua obra prima, AInstituição da Religião Cristã, onde ele revela a grandeza do ser humano como criação de Deus, aquem deve adorar e glorificar. Conquanto possuidor da imagem de Deus, este homem estámarcado pelo pecado adâmico, desfalecido em si mesmo de toda capacidade de voltar-se paraDeus, dependendo, portanto, de sua maravilhosa graça e misericórdia, na pessoa de Jesus Cristo,expressão plena e completa da revelação de Deus ao homem. (Cf. SILVESTRE, Armando Araújo,op. cit., p. 84). Nessa linha de pensamento, podemos ainda afirmar que Calvino rejeitou aautoridade papal absoluta e a hierarquia romana em assuntos religiosos (Cf. Institutas, livro III,cap. 9, e livro II, cap. 2). De igual modo, rechaçou o conceito da autonomia da razão humanacomo ponto de referência final do conhecimento. Portanto, é um erro atroz afirmar ter sido Calvinoum humanista no sentido lato do termo, não obstante ele ter sido criado num ambiente acadêmicohumanista e ter experimentado sua fascinante influência. Podemos ainda afirmar que o humanismoera filho do Renascimento. Substituiu a meta medieval teocêntrica pelo ideal pagão de que a almae o corpo eram o centro da reflexão, com ênfase na vida humana. Foi mais um movimentoestético-filológico do que propriamente filosófico. O homem era tido por medida de todas ascoisas. A forma foi glorificada em contraste com a essência ou conteúdo. O humanismo tambémcarecia de seriedade ética. Isto fica explícito na observação sobre seu maior representante, Erasmode Roterdã. Calvino utilizou argumentações e ferramentas humanistas, bem como apreciava suastécnicas, principalmente no tocante à educação, porém não é considerado um humanistapropriamente dito, já que o teocentrismo continuou sendo o fundamento da sua teologia. Esteteocentrismo de Calvino consiste no ponto focal para compreender que ele não era humanista nosentido literal. Para o reformador, o homem carece da graça salvadora de Deus em Jesus Cristo.Ver: MCGREGOR, R. K., A Soberania Banida: redenção para a Cultura Pós-Moderna (SãoPaulo: Cultura Cristã, 1998, p. 15). Além disto, o calvinismo consiste numa “filosofiacompreensiva que abrangia toda a vida” (DOUGLAS, J. D.: A Contribuição do Calvinismo naEscócia: em W. Stanford Reis, ed., Calvino e Sua Influência na Vida Ocidental, p. 290).

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Portanto, analisando seu pensamento sobre os paradigmas antropológico,

cristológico, soteriológico e eclesiológico, extraindo de tudo isso o elemento

essencial de nossa tese - a liberdade cristã - como proposta de vida oferecida por

Deus aos homens de todos os tempos, através de Jesus Cristo, o Evangelho

Encarnado. Verificaremos, também, a partir desse levantamento, os desafios cada

vez mais urgentes sobre a necessidade de uma proclamação do evangelho

significativa, relevante e capaz de estabelecer diálogo com seus interlocutores

atuais, bem como estabelecer uma sociedade mais justa e mais igualitária, na qual

os valores do Reino de Deus sejam vistos e vividos e o Seu nome glorificado.

Sendo assim, cremos que, uma vez tais princípios vividos por sua Igreja, foi

o de promover, de igual forma, libertação e liberdade na práxis cristã, através do

anúncio genuíno do Evangelho, provocando a desinstalação de uma religiosidade

pós-moderna árida, superficial, pragmática, com fortes evidências

fundamentalistas aqui e alhures, vencida pelas leis de mercado, que regem as

relações humanas, tornando-as vazias de sentido existencial. E ainda mais. Na

práxis do Evangelho libertador de Jesus Cristo, homens e mulheres não estarão

alienados do seu tempo, ao contrário, com os corações cheios de esperança

escatológica, serão agentes de transformação histórica, em que através da

semeadura das Boas Novas, frutos ético-sociais germinarão para glória do Pai. Eis

a responsabilidade e o desafio da liberdade obtida pela maravilhosa graça de Deus

em Cristo Jesus.

3.1A Antropologia de Calvino e a Liberdade Cristã dela decorrente

A questão antropológica é fundamental para a elucidação das questões

teológicas, pois o conhecimento de Deus e o conhecimento sobre o ser humano

apresentam uma correlação. É assim que pensa Paul Tillich, quando afirma ser o

conhecimento de Deus correlato àquele das questões imanentes ao ser humano.485

485 TILLICH, Paul, Teologia Sistemática, p. 60.

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Esta questão remonta também a Ludwig Feuerbach, quando este afirma que

o ser humano tem consciência do infinito, porque tem consciência da infinitude da

sua própria essência;486 e que este, na busca desta infinitude, a projeta a um ser

absoluto: Deus. Feuerbach afirma:

O ser absoluto, o Deus do homem é a sua própriaessência. O poder do objeto sobre ele é, portanto, o poderda sua própria essência. Assim, é o poder do objeto dosentimento, o poder do sentimento; o poder do objeto darazão o poder da própria razão; o poder do objeto davontade, o poder da vontade.487

Não obstante o caráter imanentista da relação com a Divindade estar

presente na concepção de Feuerbach, é verdade que a relação com o Divino tem

por pressupostos elementos imanentes, fazendo com que grande parte da

compreensão do Ente seja uma projeção daquilo que o humano tem, é ou deseja

ser. A relação entre o ser humano e o Divino tem, por parte do humano,

instrumentos imanentes e uma eterna busca de transcendência. Porém, esta idéia

despoja o elemento relacional, que faz com que a compreensão do mundo seja

amplificada. Martin Buber afirma que “encontros não se ordenam de modo a

formar um mundo, mas cada um te garante o vínculo com o mundo”.488 O ser

humano encontra a si e o seu sentido último quando encontra o Ser, e o entende

como uma presença, e não como se este fosse projeção de si mesmo. A cultura

humana, quando entendida como uma das expressões da sua natureza religiosa,

como forma da religião, adequa-se a concepção de que não é possível banir Deus

do mundo, nem entendê-lo como expressão da “prioridade axiológica do coração

sobre os fatos brutos da realidade”.489 A religião é mais que isto: é expressão

antropológica da necessidade da “fonte eterna de força, do eterno toque que nos

aguarda, da voz eterna que ressoa em nós, nada mais”.490

486 FEUERBACH, Ludwig, A Essência do Cristianismo, p. 44.487 Ibidem, p. 47.488 BUBER, Martin, Eu e Tu, p. 36.489 ALVES, Rubem, O Que é Religião, p. 19.490 BUBER, Martin, op. cit., p. 129.

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Conhecer-se é conhecer a Deus, o que não exclui a busca da Transcendência

e do Transcendente. Deus não pode ser tomado como símbolo poético, pois fazer

isto é manifestar certo tipo de ateísmo.491

3.1.1A Relação Entre o Conhecimento de Deus e o Conhecimento de SiMesmo em Calvino

É assim que Calvino assume relação entre o conhecimento de Deus e o

conhecimento de si mesmo. Para Calvino, os conhecimentos são correlatos, não

formando uma dicotomia, mas uma unidade que expressa a identidade da

revelação. Nessa linha de pensamento, o homem jamais conhecerá a Deus sem se

conhecer a si mesmo e vice-versa. Na verdade, conhecendo a nós mesmos,

conheceremos a Deus. Há uma vinculação estreita entre esses dois pressupostos.

Esse conhecimento mútuo sustentará, na verdade, a essência da liberdade humana.

Desde a criação, tal liberdade é responsável, firmada numa relação de amor, a

partir da aliança estabelecida por Deus, pois o sujeito só é formado a partir da

liberdade e da responsabilidade. Calvino mesmo diz que

[...] ninguém se pode (sequer a si próprio) mirarsem, de pronto, o pensamento volver à contemplação deDeus em Quem vive e se move (At 17.28), porquanto,longe de obscuro é que os dotes com que somosprodigamente investidos, de modo algum de nós provêm.Mais até, nem é o nosso próprio existir, na verdade, outra(cousa) senão subsistência no Deus único.492

491 “No nível mais elevado da negação do teísmo, o nome de Deus é usado como um símbolopoético ou prático, expressando um estado emocional profundo ou uma elevada idéia ética.” Ver:TILLICH, Paul, The Courage To Be, p. 181.492 Institutas, vol I, cap. 1, seção 1. André Biéler também corrobora com o pensamento doreformador, ao afirmar que a liberdade humana fundamenta-se em sua relação com Deus e naconsciência de sua submissão ao Criador. Ele diz: “O que o podia manter nesse estado em quetinha sido investido era que, em humildade, curvasse-se sempre diante da majestade de Deus,magnificando-o com ações de graças, e que não buscasse sua glória em si próprio, mas, vendo quetudo lhe provinha do Alto, tivesse suas vistas sempre voltadas para o Alto para, destarte, glorificara Deus, a Quem lhe cabia o louvor; a imagem de Deus compreende, em si, o conhecimentod’Aquele que é soberano bem; ser homem é [...] ser e permanecer unido com o seu Criador; ohomem foi investido mestre e senhor, na terra, com a condição de que estivesse sempre sujeito aDeus. Para tanto, Deus sujeitou o homem a que não comesse da árvore do bem e do mal [...] a fimde que não desejasse mais do que lhe era conveniente e não se constituísse, a si mesmo, juiz eárbitro do bem e do mal, sacudindo de sobre si o jugo de Deus e se fiando em seu próprio senso.”Cf. BIÉLER, André. op. cit., p. 263.

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A revelação é para o ser humano. Sem a iluminação do Espírito, o ser

humano não entende a revelação. Porém, sem assumir sua humanidade, não é

possível ao indivíduo compreender a Divindade. Idolatria consiste na projeção de

si mesmo como se fosse Deus, ou a atribuição de divindade àquilo que é inferior

ontologicamente à humanidade. A verdadeira religião consiste na identificação

deste elemento imanente da revelação: a correlação entre o conhecimento de Deus

e o conhecimento de si mesmo.

Por causa destes elementos, a antropologia de Calvino é fundamental para

que a sua idéia de liberdade se desvende. A liberdade tem início quando é

assumido o compromisso, por parte do fiel, de imergir no conhecimento de si

mesmo, encontrando, em si, as evidências da própria ação de Deus. Ver-se como

criatura, como alguém mantido e preservado pela ação soberana de Deus, e ver, na

própria essência, a imagem de Deus são algumas indicações da importância da

antropologia para a libertação.

Por essas razões, relevantes para a compreensão teológica, falar de questões

antropológicas é formular mais uma vez a pergunta primaz: o que é o homem? As

respostas divergem e apontam para pressuposições que tornam possíveis a

reflexão teológica ou que fazem desta subserviente às questões antropológicas,

sendo apenas reflexo das múltiplas manifestações de busca de superação. As

implicações não se concentram às esferas religiosas, mas abrangem, também, todo

o ethos humano e social.493

Diante das questões evocadas, percebe-se que a investigação em torno da

antropologia de Calvino parte da compreensão sobre o ser humano e a serventia

desta compreensão para a cosmovisão calvinista. Investigar esta concepção

consiste em investigar as pressuposições de Calvino, a descrição da sua

antropologia teológica e a implicação desta em seu contexto.

493 Lyotard afirma que o saber pós-moderno “não é somente o instrumento dos poderes. Ele aguçanossa sensibilidade para as diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável.”(LYOTARD, Jean-François, op. cit., p. 17). Por ser um instrumento relacional, o saber concentraem si, na sociedade pós-moderna, a capacidade de prover a sobrevivência dos modelos de mundo(cosmovisões), possibilitando a relação. Então as compreensões geram caminhos relacionais. Omundo de hoje é aquele que abandonou o projeto de “adiamento da satisfação” (BAUMAN,Zygmunt, Modernidade Líquida, p. 181) para a adoção de mentalidades que possibilitam a “éticada comunicação (Habermas, Apel), uma ética das redescrições (Rorty); uma ética da continuidade(Gadamer)” (Ver: PECORARO, Rossano, Niilismo e (Pós) Modernidade, p. 107.

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3.1.2Fontes

Em primeiro lugar, é necessário tratar das fontes do pensamento

antropológico de Calvino. As fontes seculares da antropologia calvinista são,

basicamente, duas: o humanismo e o direito.

Calvino, como humanista, assumiu o projeto de valorização da cultura. Para

ele, a educação e as ciências devem ser apropriadas como manifestações do favor

divino. Soma-se a estes a valorização do ser humano através do cuidado com este.

Originalmente, Calvino participou do movimento humanista, porém com

cautela, não participou de agitações religiosas e do fomento de levantes populares.

Ou seja: no que concernia às instituições eclesiásticas, Calvino se mostra

conservador. Calvino assumiu um tom aristocrático em seu humanismo, sendo

hostil àquilo que chamou de turba destituída de razão e discernimento.494

Na prática da cidade de Genebra, a posteriori, a educação foi apropriada,

por Calvino, da propagação do ideal humanista da adoção de um método de

ensino e da proliferação do conhecimento a partir deste. Seguindo a Marthurin

Cordier, Calvino assumiu seu método de ensino (discendi rationem)495 e fundou

uma universidade, onde tratou de educar ministros e mestres. As ciências naturais

também foram defendidas por Calvino, que afirmava serem estes dons de Deus

para uso da humanidade, sendo o Espírito Santo a fonte da verdadeira ciência.

Opunha-se, porém, à astrologia e ao humanismo que não levava em consideração

a doutrina evangélica. E Calvino pensava que as artes e ciências deveriam estar

presas à religião (non debere distrahi a religione scientia).496

494 OC, Tomo V, p. 16. Senecae Libri de Clementia Cum Commentario.495 KNUDSEN, Robert D., O Calvinismo como uma Força Cultural, p. 13.496 OC, 39, p. 516.

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Do direito, Calvino desenvolveu sua capacidade de tratar de questões

práticas. Calvino remodelou as instituições genebrinas a partir daquilo que

aprendeu, na sua formação, em Bourges. O cuidado com as pessoas, portanto, é

uma manifestação da prática de Calvino, que demonstra, além da sua capacidade

de praticar o bem social (princípio do direito), sua idéia sobre o ser humano e sua

natureza – Calvino também assumiu a idéia da justiça distributiva, em que cada

indivíduo recebe aquilo que necessita e, para isto, quem tem posses a mais, deve

se sujeitar a dividi-las com quem não tem – e o poder instituído deve garantir o

cumprimento deste preceito.497

Em seu ímpeto de executar suas idéias, Calvino estabeleceu um hospital em

Genebra, e diáconos que cuidavam dos enfermos. Nele, eram acolhidas pessoas

vindas de vários lugares, proporcionando-lhes condições para elas se instalarem e

terem assistência médica e educação e, assim, assumirem um ofício. Entendia ser

fundamental o cultivo da piedade e da vida religiosa, sendo os refugiados da

cidade e os demais cidadãos instigados a viver esta vida piedosa – e a piedade

passa necessariamente pela solidariedade.

Percebe-se, de maneira implícita na práxis de Calvino, a sua concepção

antropológica, a qual assume o projeto humanista de valorização do ser humano.

Mas, para entender esta práxis, é preciso perceber que Calvino também endossa as

matizes teológicas que influenciaram seu pensamento: o agostinianismo, o

nominalismo e o luteranismo.

Agostinho entende ser o homem formado de duas partes: corpo e alma.498

Para ele, a alma é imortal, proveniente de Deus e, por isso, retorna para Deus após

a morte.499 Outra característica do ser humano é a racionalidade, que o separa dos

outros seres viventes. A posse da alma racional constitui o privilégio do ser

humano em relação ao restante da criação. Mas, como criação, o ser humano se

deteriora, sofrendo mutações até o final do processo de deterioração.500

497 OC, IV, 20, 3. Para Calvino, é necessária a intervenção do Estado para que “os homensrespirem, comam, bebam e se mantenham aquecidos.”498 “Assim, não duvidas destes dois pontos: possuis um corpo e uma alma. Mas estás em dúvida senão existe outra coisa que seria, para o homem, um complemento de perfeição.” (AGOSTINHO,Santo. A Vida Feliz, II. 7).499 “Portanto, a Alma é imortal: creia em seus raciocínios, creia na verdade; ela clama que habitaem você e que é imortal e que sua sede não lhe pode ser tirada pela morte corporal. Afasta-se dasua sombra; volta-te para ti mesmo; não sofrerás destruição alguma a não ser esquecendo-se deque é algo que não pode perecer.” (AGOSTINHO, Santo. Solilóquios, II, 29, 33).500 “Se eles (seres criados) se deterioram é porque não possuem o bem na plenitude”(AGOSTINHO, Santo. A Verdadeira Religião, III, 19, 37).

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Do agostinianismo, Calvino extrai a idéia de que o ser humano, por si, não

pode se salvar, pois é totalmente depravado – o que explica o fato deste, mesmo

sendo imagem de Deus, deteriorar-se como o restante da criação. Para Agostinho,

o ser humano, após a queda, não conserva, em si, absolutamente nada que não

esteja corrompido. A partir disto, a salvação só pode ser ato de Deus, através da

graça. Essa visão sobre o ser humano e sua total incapacidade para a salvação

também se manifesta em outras esferas. É como afirma Agostinho:

A primeira deformidade da alma racional é avontade de executar o que a suma e íntima Verdade lheproíbe [...] a defectibilidade da alma vem de seus atos eda pena que padece pelas dificuldades – conseqüênciadessa defectibilidade. Todo mal se reduz a isso. Ora, oagir ou padecer não são substâncias. Portanto, asubstância não é um mal. Assim, não é da mesmanatureza da alma, o vício. É, sim, contra a sua natureza.O vício nada mais é que pecado e a pena de pecado.501

Uma das tríades agostinianas é “memória, vontade e intelecto”. As três estão

decaídas após a transgressão de Adão. O pecado original atinge o ser humano de

forma holística, porém, estas três dimensões, que abrangem a maneira como o ser

humano compreende o mundo, faz dele incapaz de conhecer, por si, algo sobre a

salvação. A ação de Deus, no campo da vontade, é tirar o ser humano da única

condição, que é desejar o pecado, para a condição de desejar resistir ao mal,

exercendo a bondade pela ação de Deus. Esta restauração da capacidade de fazer o

bem alcança também o intelecto, por si incapaz de apreender com a razão as

verdades e conhecimentos de Deus. E a memória, que não conseguia reter, em si,

as lembranças dos atos graciosos de Deus, é renovada.

A segunda influência, na antropologia de Calvino, foi o nominalismo

filosófico. A Reforma Protestante, devido à sua ligação estreita com o

Renascimento, esteve ancorada filosoficamente, entre outros, no nominalismo,

preponderantemente defendido por Guilherme de Ockham. O nominalismo foi

uma espécie de ruptura da hegemonia da síntese escolástica proposta por Tomás

de Aquino.

501 AGOSTINHO, Santo. A Verdadeira Religião, III, 11, 22; 20,38-39.

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Valorizando o particular em detrimento do universal, esta filosofia

recuperou a noção clássica de indivíduo, o que foi central para a Reforma, uma

vez que Lutero e Calvino desfrutaram de ambientes acadêmicos nominalistas nas

suas respectivas formações intelectuais.

A partir do pressuposto nominalista, entende-se a sacramentalidade ligada

não mais à superestrutura eclesiástica, mas nos indivíduos diante de Deus (coram

Deo). A particularização da religião torna evidente e explícita a atualização do

princípio, presente no Evangelho, e, proferido pelo próprio Jesus na confrontação

com o judaísmo: “o sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem

por causa do sábado” (Marcos 2.27). Funda-se, assim, o conceito protestante de

indivíduo.

O nominalismo, endossado por Calvino, traz a responsabilidade sobre o

cristão por assumir, em si, a vivência cristã e manifestar, pela sua vida em

relacionamento (e não interior), a sua vocação. A partir disto, o paradigma não é o

temor da morte e do inferno, mas a noção de vocação para o serviço. Neste

serviço, é manifesta a identidade do ser humano restaurado. Por isto, a

antropologia calvinista é fortemente influenciada pela concepção nominalista,

porque vê, no ser humano, potencial para expressar, pela vida, sua salvação, ainda

que esta expressão não seja o elemento salvífico, mas a expressão do mesmo.

Calvino também foi influenciado, em sua antropologia, por Lutero. Para

Lutero, a pergunta que emerge da realidade da queda é a seguinte: ainda há algum

ponto de contato entre Deus e o ser humano?

A resposta da teologia escolástica é que este ponto de contato existe, e o

ponto de contato é explicado pela sindérese: a vontade natural latente no ser

humano, ou seja, um desejo inato pelo transcendente, pelo próprio Deus, mesmo

estando a humanidade corrompida pelo pecado.

A doutrina escolástica entende que, mesmo em seu distanciamento de Deus,

arde, no ser humano, uma centelha pelo Divino, uma centelha da sindérese. Ela

possui uma relação íntima com a consciência. Lutero, a partir desta doutrina,

discorre e apresenta sua antropologia, marcada por pelo menos quatro concepções

distintas:

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Em primeiro lugar, ele afirma que há, no ser humano, o exercício de tal

faculdade. Isto é, há fragmentos da imago Dei no ser humano, provenientes do seu

estado antes da queda.502 Portanto, tal doutrina faz permanecer, visivelmente, a

relação de continuidade “entre o ser humano caído e o criador.”503

Em segundo lugar, Lutero afirma a dificuldade em revelar tal continuidade

na prática.504 Seria como se faltassem os atos equivalentes, ou seja, atuações que

correspondam à sindérese. A problemática não está entre Deus e o homem quanto

ao alvo, mas sim, em como atingi-lo. Em outras palavras, a questão de fundo

trata-se dos meios para alcançar o fim.505

Diante de tal conflito, mesmo admitindo que a vontade original, para o bem,

esteja na natureza constitutiva do homem, este não consegue efetivá-la. Dito de

outra forma, admitir que a vontade e a razão sejam mecanismos de compreensão,

ainda que palidamente, da vontade de Deus, tornam-se inúteis para tal, até porque

elas resistem à vontade de Deus, conseqüência do pecado.506

Lutero diz, então, em terceiro lugar, que a sindérese mostra-se inoperante na

prática.507 Ora, impossibilitada de se concretizar, questiona-se seu caráter de

realidade, pois, numa dimensão fenomenológica, ela “contradiz a coisa

hipostasiada em si.”508 Há uma redução da sindérese à simples postulação.509

Diante disso, Lutero conclui que “a natureza é ressuscitável.”510

Em outras palavras, a manifestação da graça de Deus acha seu ponto de

contato no homem impossibilitado de concretizar o bem. A graça exerce a função

de restauradora do homem. Este é o aspecto ou função positiva da sindérese para

Lutero, segundo Loewenich.511 Somente pela força vivificadora da graça é que a

razão e a vontade do homem são revigoradas e restauradas.512

502 FRANCO, Wislanildo Oliveira. Consciência: Obediência, Liberdade e Responsabilidade.STPRJ. Rio de Janeiro. 2001, p. 35.503 LOEWENICH, Walter Von. A Teologia da Cruz de Lutero. São Leopoldo-RS: Sinodal. 1987,p. 49. Ver ainda MOTA, Carlos Guilherme. A revolução religiosa: Lutero e a Reforma, emLutero e a Reforma. 480 anos depois das 95 teses, uma avaliação dos seus aspectos teológicos,filosóficos, políticos, sociais e econômicos. São Paulo: Ed. Mackenzie. 2000, p. 46.504 FRANCO, Wislanildo Oliveira, op. cit., p. 35.505 FRANCO, Wislanildo Oliveira, op. cit., p. 35.506 LOEWENICH, Walter Von. A Teologia da Cruz de Lutero, op. cit., p. 50.507 Ibidem, op. cit., p. 36.508 Ibidem, p. 36.509 LOEWENICH, Walter Von, op. cit., p. 50.510 Ibidem, p. 50.511 Ibidem, p. 50.512 FRANCO, Wislanildo Oliveira, op. cit., p. 37.

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Por último, Lutero desenvolve, em seu pensamento, a tese de que, se, por um

lado, “a sindérese é condição para a efetividade da graça,”513 por outro, pode

constituir-se em obstáculo para a mesma. Toda vez em que o homem orgulha-se

de sua própria e pretensa capacidade de praticar o bem, por si mesmo, lança-se em

uma perdição ainda maior. Cabe ao homem viver na dinâmica da sindérese-graça-

boa vontade”.514

A partir de sua Teologia da Cruz, Lutero não aceita a sindérese como

instrumento divino regulador, norteador, orientador da vida humana, visto que,

pela cruz, as obras ficam todas destruídas. Depreende-se, daí, uma tensão

dialética, pois a vontade natural, na busca do bem, choca-se com a vontade de

Deus. Então, segundo a Teologia da Cruz, o homem é visto como alguém

absolutamente impotente ou indiferente à vontade de Deus, mas uma vez tomado

pela graça, há encontro e experiência com o Cristo Ressuscitado.515 Há uma

predisposição no homem, visto ter sido criado para o exercício da relação Eu-Tu.

No entanto, tal predisposição é dádiva e acusação, ou seja, a graça desconstrói,

numa radical demolição, e gera total reconstrução e restauração das bases

constitutivas do ser humano.516

Em outras palavras, “a consciência precisa ser vista à luz da fé.”517 Cristo

deve reinar na consciência. Significa dizer que a Lei deve ser expurgada da

consciência pela força da graça de Deus em Cristo e, pela fé, “ser mantida fora

dela.”518 Ou seja, segundo Carl E. Braaten, toda vez que o homem busca viver na

insistência da autonomia, achando-se capaz de viver a partir de si mesmo,

conforme concepção moderna e pós-moderna, está fadado ao distanciamento de

Deus.519 A consciência humana foi feita para o bem, mas, destituída de sua

essência pelo pecado, tornou-se insaciável e arbitrária, conduzindo,

inevitavelmente, à morte. Longe da graça de Deus e entregue a si mesma, ela, a

consciência, é “imprevisível e enganosa com respeito à liberdade e à

emancipação.”520

513 Ibidem, p. 37.514 LOEWENICH, Walter Von, op. cit., p. 51.515 LOEWENICH, Walter Von, op. cit., p. 53.516 Ibidem, p. 53.517 FRANCO, Wislanildo Oliveira, op. cit., p. 39.518 Ibidem, p. 39.519 BRAATEN, Carl E. (Editor). Dogmática Cristã. São Leopoldo-RS: Sinodal. 1990, p. 424.520 Ibidem, p. 424.

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3.1.3A Imago Dei

Calvino desenvolve esta concepção de Lutero. Para Calvino, todo ser

humano foi criado a imagem e semelhança de Deus. Há, no ser humano, a imago

Dei, o que o torna capaz de estabelecer comunhão com o Criador, com o próximo

e com a criação. E, como conseqüência, estabelece relação consigo mesmo. A

imagem de Deus, no homem, fica evidente pela beleza de sua criação. Calvino

percebe o homem como a coroa de toda a criação, ao afirmar que:

Por conseguinte, com esta expressão (imagem deDeus) indica-se a integridade de que Adão foi dotadoquando o seu intelecto era límpido, as suas emoçõesestavam subordinadas à razão, todos os seus sentidoseram regulados devidamente e quando eleverdadeiramente atribuía toda a sua excelência aosadmiráveis dons do seu Criador. E conquanto a sedeprimária da imagem divina estivesse na mente e nocoração, ou na alma e em suas faculdades, não haviaparte nenhuma, mesmo no corpo, em que não fulgissemalguns raios de glória.521

Ele agrega ao conceito de imagem de Deus a concepção Agostiniana de total

depravação e de pecado original, entendendo ser o ser humano alguém incapaz de,

por si, obter a salvação. Para Calvino, de fato o homem tem a imagem de Deus,

porém está, em si, obnubilada pelo pecado, sendo impossível contemplar esta

imagem original a partir do atual estado da humanidade.

Para Calvino, a imago Dei residia originalmente em duas dimensões, ambas

no elemento não-físico: na dimensão metafísica (alma) e na dimensão ética.522

Na dimensão metafísica, o ser humano é a imagem de Deus por ser

espiritual, moral, racional e imortal. Nesta dimensão, a imagem de Deus se

mantém, mas está de tal maneira maculada que praticamente não pode ser

percebida, ainda que a sua existência exija que aquele que traz em si esta imagem,

por causa desta, seja preservado em sua dignidade.

521 Institutas, livro I, cap. 15, seção 3.522 Institutas, livro I, 15, 3-5.

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Na dimensão ética, a santidade, a justiça e os conhecimentos originais

manifestam a imagem de Deus. Após a queda, esta imagem foi fragmentada,

ofuscada do ser humano, só podendo ser restaurada através da graça de Deus em

Cristo.523

A dignidade do ser humano, como criatura e imagem de Deus, é mantida

através da preservação da vida e do suprimento de suas necessidades. Calvino não

via, na pobreza, um infortúnio, nem a manifestação da reprovação de Deus, mas a

possibilidade da expressão, por parte dos ricos, da solidariedade através da

distribuição dos seus recursos. Calvino faz a seguinte pergunta retórica: “Por que

é, então, que Deus permite a existência da pobreza aqui embaixo, a não ser porque

ele deseja dar-nos ocasião para praticarmos o bem?”524 A resposta é: para que

todos sejam solidários e tenham o privilégio de ser instrumento para a preservação

do próximo.

Calvino mesmo afirma que o homem deve ser contemplado como imagem

de Deus, devendo, portanto, ser respeitado e amado.525 O reformador mesmo

afirma que “a imagem de Deus nele é digna de dispormos a nós mesmos e nossas

posses a ele”.526

Em primeiro lugar, Calvino repudia qualquer capacidade de, por si, assumir

a consciência de Deus, devido ao estado após a queda. Os meios para o ser

humano obter acesso à graça são provenientes do próprio Deus. A ação do

Espírito, através da oração e da Palavra, torna eficiente aquilo que restou da

imagem de Deus no homem e na mulher. Como Lutero, Calvino pensa que para

nada serve esta imagem por si, exceto para a condenação, exceto na sua

concepção de dignidade humana: sendo ou não eleito, é obrigação a conservação

do ser humano por ser ele a imagem de Deus. A dignidade ontológica não é pelo

que há de exclusivo no ser humano, mas naquilo que o identifica a Deus: a sua

natureza metafísica e a sua ética.

A falta de solidariedade ou a indignidade do ser humano é um atentado

contra Deus para Calvino – e manifesta a não-regeneração. Esta falta de

solidariedade tem por motivação aquilo que, no ser humano, distorce a sua

identidade com Deus: sua tendência para o mal.

523 Institutas, livro I, 15, 4.524 OC, Sermão 95 sobre o Deuteronômio, 5, 11-15 (30 de outubro de 1555).525 CALVINO, João. Verdadeira Vida Cristã, pp. 37,38.

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Devido a esta tendência, somente pela ação poderosa e redentiva do Espírito

Santo, através da obra redentora de Jesus Cristo na Cruz, o homem é regenerado,

tendo sua imago Dei restaurada, retemporada, regenerada. O reformador afirma

que “somente pela iluminação do Espírito Santo se pode conhecer a Deus, e as

coisas de Deus”.527 Assim, fruto dessa ação gratuita de Deus em Jesus Cristo, pela

ação do Espírito, o homem entra novamente em comunhão com Deus e estabelece

uma nova relação com o seu próximo. A comunhão do novo homem com Deus

não pode desconsiderar sua relação com o próximo, visto ser este portador da

imagem de Deus. Calvino diz,

[...] topando com um homem necessitado, não tenso direito de recusar-lhe ajuda. Dizem, “ele é umestrangeiro”, mas o Senhor conferiu-lhe um sinal com oqual estás familiarizado [...]. Dizem mais é desprezível,um “traste”, mas o Senhor revela-o como sendo umdaqueles aos quais conferiu a beleza de Sua imagem.Objetam que não lhe ficaste devendo nenhumaretribuição, mas Deus, de algum modo, colocou-o emseu próprio lugar para que reconheças nele os múltiplos egrandes benefícios com os quais Deus relacionou-te comEle mesmo. Argúem ainda que aquele homem nãomerece nenhum serviço teu, mas a imagem de Deus queo recomenda a ti torna-o digno do dom de ti mesmo a elee de todos os teus haveres.528

Fica-nos claro que o fundamento da ética social de Calvino reside aqui. Ou

seja, nosso próximo carrega a imagem de Deus. Qualquer tipo de desprezo,

manipulação, abuso, importa cometer grande violência contra a pessoa de Deus,

visto que se manifesta em todo ser humano, mesmo apesar do seu estado de

ruptura com Deus, de seu pecado. Há uma co-responsabilidade mútua entre os

seres humanos e, principalmente, entre o nascido de novo, o cristão, em relação ao

outro. Temos, aqui, toda uma dimensão rica da alteridade, que trataremos no seu

devido tempo.

526 CALVINO, João. Verdadeira Vida Cristã, p. 38.527 Institutas, livro II, cap. 1, seção 8.528 Institutas, livro III, cap. VII, p. 6.

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Assim, cabe afirmar que a ética bíblica e reformada está longe da moral

naturalista, bem como das concepções profanas ou seculares de ética. Na verdade,

“a moral é considerada um auxílio conferido ao homem, permitindo-lhe realizar

sua vocação humana o mais completamente possível”.529 Diante do exposto até

aqui, afirmamos que a Reforma Protestante, a partir de Calvino, assume uma nova

visão antropológica, afirmando o valor do ser humano em sua profunda dignidade

como criação à imagem de Deus, numa concepção bíblico-teológica, na qual o

centro de todas as coisas não é o homem, mas Deus que se revela nas

Escrituras.530 Sem dúvida alguma que a Reforma valoriza muitos pressupostos

renascentistas, principalmente o esforço em retratar a dignidade do ser humano e

exaltar as suas virtudes. Além disto, com Erasmo de Roterdã e sua busca dos

primeiros textos bíblicos, submetendo-os a rigorosos estudos filológicos, indica-se

a origem da idéia da razão humana como autônoma e capaz para compreender a

revelação. Neste movimento, a Escritura é posta no centro da discussão, ainda que

analisada autonomamente. Esta é uma manifestação da nova antropologia daquele

tempo. Ora, a concepção calvinista provocou inevitavelmente uma ruptura com a

visão antropológica da Renascença, por afirmar justamente a total incapacidade

humana de, por si, compreender a Deus. Nisto há consenso com Lutero: ambos

chegam ao mesmo resultado, por caminhos distintos.

529 BIÉLER, André. O pensamento econômico e social de Calvino, op. cit., p. 293.530 GEORGE, Timothe. A Teologia dos Reformadores. São Paulo: Ed. Vida Nova, op. cit., p.312. O historiador francês Boisset afirma que “a preocupação do humanista, em suma, é afirmar edemonstrar a grandeza do homem; a do reformador, segundo a expressão de Calvino, é dartestemunho da ‘honra de Deus’.” Jean Boisset. História do Protestantismo. São Paulo. DifusãoEuropéia do Livro. 1971, p. 17 apud COSTA, Hermisten Maia Pereira. Raízes da TeologiaContemporânea. São Paulo: Cultura Cristã. 2004, p. 79 (ver nota 42).

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3.1.4O Sensus Divinitatis e a Semen Religionis

Calvino ainda pensa, em sua antropologia, que há no homem e na mulher

um sensus divinitatis ou semen religionis, dado pelo próprio Deus.531 Na verdade,

“Deus dotou os seres humanos de um senso ou pressentimento inato sobre sua

existência. É como se algo sobre Deus tivesse sido gravado no coração de cada

ser humano.”532 Sobre o sensus divinitatis, o reformador declara o seguinte:

Que existe na mente humana, e, na verdade, pornatural disposição, certo senso de divindade, damoscomo além de controvérsia. Ora, para que ninguém serefugiasse no pretexto de ignorância, Deus mesmoinfundiu, em todos, certa noção de Sua divina realidade[...] nação nenhuma há tão bárbara, povo nenhum tãoselvagem, em que não esteja profundamente arraigadaesta convicção: Deus existe! E (mesmo aqueles) que emoutros aspectos da vida parecem muito pouco diferir dosseres brutos, ainda assim retêm sempre certa semente dereligião.533

O senso de divindade é a explicação para o fenômeno religioso. Calvino

entende que, seja uma religiosidade idolátrica, seja uma religiosidade autêntica,

todas as expressões manifestam a necessidade que o ser humano tem de assumir

um Deus para si. Para Calvino, isto demonstra que não existe verdadeiro ateísmo.

E a explicação para alguns optarem pela religião idolátrica, que não é nada mais

que a projeção de seu egoísmo e/ou da sua corrupção e estado vexatório, é que os

homens e as mulheres distantes da graça estão sujeitos à corrupção e a decaírem a

um estado deplorável. A religião verdadeira é assumida por aquele que, uma vez

sendo eleito, tem em si a sua capacidade de juízo restaurada. A ação do Espírito

neste garante a compreensão da vontade de Deus.

531 Institutas, livro I, p. 67. A dignidade do homem está em ter sido criado à imagem de Deus. Vertambém: Francis A Schaeffer. A Morte da Razão. São Paulo: ABU / FIEL. 1974, p. 20 passim.Hermisten M. P. Costa. O Homem como Imagem de Deus. Revista Popular. São Paulo. 4ºtrimestre / 1989, lição 13, pp. 50-55. Cabe muito bem aqui a colocação do filósofo católico ÉmileBréhier (1876-1952): “A Reforma opõe-se tanto à teologia escolástica quanto ao humanismo.Nega a teologia escolástica, porque nega, com Ockham, que nossas faculdades racionais possamconduzir-nos da natureza ao seio de Deus. Renega o humanismo, menos por seus erros do que porseus perigos, posto que as forças naturais não podem comunicar qualquer sentido religioso.” (É.Bréhier. História da Filosofia. São Paulo: Mestre Jou. 1977-1978, I/3, p. 209).532 MCGRATH, Alister, op. cit, p. 179. Cf. Institutas, livro I, p. 113.533 Institutas, livro I, cap. 3, seção 1.

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Para o reformador, o ser humano, ainda que tenha se sujeitado à um estado

decaído, supera as demais criaturas, estando, na verdade, no ponto máximo da

criação.534 O reformador afirma:

Dentre todas as obras de Deus, é ele (o homem) aexpressão mais nobre e sumamente admirável de Suajustiça, e sabedoria, e bondade de Deus [...]. Deus nãopode ser clara e plenamente conhecido de nós, a não serque se acresça correlato conhecimento de nós (mesmos).Esse conhecimento é duplo: o conhecimento de Deus e ode nós mesmos, no estado original, cuja natureza éíntegra, quando criados.535

Ele tinha plena consciência de que a alma humana tem um anelo pelo

sagrado, intrinsecamente ligado ao seu coração.536 Sendo assim, os homens,

segundo Calvino, são “espelhos da glória divina.”537 Corroborando com a visão

de Calvino, Herman Bavinck afirma que:

O mundo inteiro é uma revelação de Deus, umespelho das suas virtudes e perfeições; cada criatura é, aoseu próprio modo e em sua própria medida, umapersonificação de um pensamento divino. Mas, dentretodas as criaturas, somente o homem é a imagem deDeus, a mais elevada e mais rica revelação de Deus e,portanto, cabeça e coroa de toda a criação.538

Quando refletimos sobre a temática da liberdade do homem, encontramos,

no relato da criação, uma de suas maiores fundamentações. Mais uma vez, ouvir

Calvino faz-se necessário:

534 OC, tomo IX, p. 791. Cf. Institutas, livro I, cap. 15, seção 22.535 Institutas, livro I, cap. 15, seção 1.536 CALVIN, Jean. Institution de la Religion chrestienne. Société les belles lettres. Paris. 1936.Vol. I, pp. 41ss.537 Instituição, livro I, pp. 205,206.538 BAVINCK, Herman. Dogmatiek. 2.566.

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Foi o homem criado por Deus com esta condição,que tivesse domínio sobre a terra, colhesse os seus frutose, dia a dia, pela experiência, aprendesse que o mundolhe está sujeito. O homem é o lugar-tenente de Deus,539 equando o sol brilha, por que é, senão para nos iluminar?A lua e as estrelas não são, elas também, ordenadas paranosso serviço? E, no entanto, são criaturas tão nobresquanto nada mais, de tal sorte que os pagãos as têmadorado, pensando que nelas algo da divindade estariaencerrado. Depois, quando abaixarmos os olhos,veremos os bens que Deus nos tem propiciado; e quandonutre Ele aos animais, é em consideração aos homensque o faz. Quando, pois, Deus nos tem aquinhoado, a fimde nos fazer possuir tantas benesses, além de que noscriou à sua imagem e semelhança, não está aí um beminestimável?540

Na concepção calvinista, estabelecer qualquer antropologia que não tenha

estes dois pressupostos, isto é, a compreensão de que o homem é criatura de Deus

e, como tal, absolutamente dependente do seu Criador; e que, como homem, está

ontologicamente ligado a Deus, pois foi criado como ser de relação é, no mínimo,

construir uma antropologia deficitária. Vejamos esta afirmação:

Ser criatura e ser pessoa são aspectos do serhumano que devem ser mantidos juntos e em tensão.Quando a teologia acentua o aspecto criatura e subordinao aspecto da pessoalidade, vem à tona um determinismoinflexível e o homem é desumanizado [...]. Quando o serpessoa é enfatizado à exclusão do ser criatura, o homemé deificado e a soberania de Deus é comprometida. OSenhor é abandonado nos bastidores, como se o homemtivesse o poder de vetar os planos e os propósitos deDeus.541

539 CALVIN, John. Commentary on Gênesis, vol. 1, about Gn 1.26 and 2.19 Disponível em:<http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.htm> Acesso em : 30 ago. 2005.540 CALVINO João. Sermão XLIII sobre a Epístola aos Efésios 6.1-4 Apud BIÉLER, André, op.cit., p. 263.541 BRINSMEAD, Robert D. Man as Creature and Person. Verdict. 1978, pp. 21,22.

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O reformador francês, muito embora não estivesse tomado pelo espírito

dominante da Idade Média, no que diz respeito às crises espirituais, ao profundo

sentimento de culpa e às práticas de autoflagelo, pode expressar sua visão do

homem do seu tempo. Assim ele afirma:

Incontáveis são os males que cercam a vidahumana, males que outras tantas mortes ameaçam. Paraque não saiamos de nós mesmos: como seja o corporeceptáculo de mil enfermidades e dentro de si, naverdade, contenha inclusas e fomente as causas dasdoenças, o homem não pode a si próprio mover, sem queleve consigo muitas formas de sua própria destruição e,de certo modo, a vida arraste entrelaçada com a morte.Que outra cousa, pois, hajas de dizer, quando nem seesfria, nem sua, sem perigo? Agora, para onde quer quete voltes, as cousas todas que a teu derredor estão nãosomente não se mostram dignas de confiança, mas até seafiguram abertamente ameaçadoras e parecem intentarmorte pronta. Embarca em um navio: um passo dista damorte. Monta um cavalo: no tropeçar de uma pata a tuavida periclita. Anda pelas ruas de uma cidade: quantassão as telhas nos telhados, a tantos perigos estás exposto.Se um instrumento cortante está em tua mão ou de umamigo, manifesto é o detrimento. A quantos animaisferozes vês, armados estão-te à destruição. Ou que teprocures encerrar em bem cercado jardim, onde nada,senão amenidade se mostre, aí, não raro se esconderáuma serpente. Tua casa, a incêndio constantementesujeita, ameaça-te pobreza durante o dia, durante a noite,até mesmo sufocação. A tua terra de plantio, como estejaexposta ao granizo, à geada, à seca e a outros flagelos,esterilidade se anuncia e, dela a resultar, a fome. Deixode referir envenenamentos, emboscadas, assaltos, aviolência manifesta, da parte nos assedia em casa, partenos acompanha ao largo. Em meio a estas dificuldades,não se deve o homem, porventura, sentir assaz miserável,como quem na vida apenas semivivo, sustenhadebilmente o sôfrego e lânguido alento, não menos quese tivesse uma espada perpetuamente a impender-lhesobre o pescoço? 542

542 Institutas, livro I, 17.10.

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3.1.5A Soberania de Deus e o livre-arbítrio

Um dos grandes pilares de todo arcabouço teológico de Calvino é a questão

da soberania de Deus. Toda elaboração doutrinária de Calvino tangencia, de

alguma forma, a doutrina da soberania de Deus. A expressão mais tangível de Sua

soberania está na manifestação de sua providência, através da qual não apenas

criou todas as coisas, mas também governa, dirige e sustenta toda a criação,

incluindo, conseqüentemente, o homem. Deus rege e sustenta todas as coisas e as

conduz para um fim proveitoso, que a de glorificar o seu próprio nome.543 Ele

mesmo diz:

Aprendam, portanto, de início, os leitores, que sedesigna Providência não [aquela] mediante a qual,passivo, Deus observa do céu [as cousas] que se passamno mundo; ao contrário, [aquela] pela qual, como que asuster o leme, governa a todos os eventos. Destarte, àsmãos, não menos que aos olhos, diz [Lhes] respeito.544

O próprio reformador afirma que o mundo foi criado por causa do ser

humano, estando este debaixo da soberania do Criador, mas exercendo sua

liberdade de forma responsável, por carregar em si a imagem de Deus, ou seja,

sendo ele um ser moral. Entretanto, a queda afetou diretamente a sua liberdade,

mas não o torna moralmente livre de responsabilidade. Significa dizer que há uma

tensão dialética entre a soberania de Deus e a liberdade do homem. Agostinho faz

a seguinte afirmação, citado por Calvino:

Porque não conhecemos tudo que, na melhordisposição [possível], Deus opera em relação a nós, emsó boa vontade agimos nós, segundo a Lei; contudo,segundo a Lei, em outras [cousas sobre nós] se age, poisque Sua providência é uma Lei imutável.545

Calvino entende o governo e a natureza do Reino de Deus como sendo

espiritual e eterno. Por isso o cidadão do Reino está sob o domínio espiritual e

eterno de Deus, na pessoa de Jesus Cristo. Assim ele se expressa:

543 Institutas, livro I, p. 215.544 Institutas, livro I, p. 217.545 Institutas, livro I, p. 229.

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Venho ao Reino, acerca do qual em vão se fazemconsiderações, a não ser que haja leitores que tenhamsido antes advertidos de que lhes é espiritual a natureza,porquanto daí se colige a quê valha e que nos confira, etoda a sua força e eternidade. [...]. Mas, esta [eternidadeé] também dúplice, ou se deve estatuir sob dois pontosde vista, pois uma diz respeito a todo o corpo da Igreja, aoutra é própria de cada um de [seus] membros.546

Portanto, a soberania de Deus é atestada na experiência da vida cristã como

no fato de que é Ele quem sustenta nossas esperanças, pois todo bem provém dele

mesmo. A dinâmica filosófica da oração cristã, por exemplo, passa por esse vetor,

ou seja, tornamo-nos humildes e dependentes diante de Deus. Ele é quem controla

o universo. Não está no homem nenhuma capacidade de satisfação de suas

próprias carências e necessidades espirituais.

Tendo como pressuposto a soberania universal de Deus, salvífica e

soteriologicamente, o homem só é salvo pela ação de Deus, por sua livre

intervenção, pelo seu sim salvífico.

Quando tratamos da soberania de Deus e a liberdade humana pode-se pensar

em uma contradição, mas, na verdade, trata-se de uma aparente contradição entre

duas verdades. Ou seja, o antinômio entre a soberania de Deus e a

responsabilidade do homem. Podemos dizer, então, que Deus como Rei ordena e

dirige todas as coisas, mas como Juiz, todo ser humano é responsável por suas

ações. Por exemplo, as reações do homem diante da voz do Evangelho que lhe

chegou ao coração são de sua responsabilidade, caso as Boas Novas sejam

rejeitadas. O homem é um ser moral, dotado pelo próprio Deus de liberdade, que

só existe na prática da responsabilidade.

Portanto, não devemos ir nem além e nem aquém acerca destas duas

grandiosas verdades bíblicas e teológicas. Em nosso tema particular, qualquer

ação meramente humana em sua busca pela salvação significa intrometer-se na

ação soberana do Espírito Santo na vida do indivíduo, convencendo-o de sua

miséria espiritual e carente da graça salvadora de Deus em Jesus Cristo e,

também, uma negação de seu estado de afastamento de Deus, de sua ruptura com

o Criador.

546 Institutas, livro II, cap. 15, seção 3.

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Assim, a providência de Deus, dentre outros aspectos, tem a ver com o

contínuo ato divino de relacionar-se com sua criação, explicitando sua

pessoalidade, poder, graça e misericórdia, especialmente para com o homem que,

no mau uso de sua liberdade, trouxe castigo para si e para toda a humanidade, na

pessoa de Adão.

Portanto, sobre a idéia de livre-arbítrio, é necessário retomar a questão

sobre a queda do gênero humano e suas conseqüências. A queda do ser humano

trouxe o pecado, e a natureza essencial da imagem de Deus, em sua vida,

expressa-se, agora, não mais na direção do verdadeiro Deus nem na direção do

próximo, mas, ao contrário, volta-se para si mesmo, em profunda atitude de

egoísmo, tornando-se amor de si mesmo.547 Sendo assim, a razão e a vontade do

homem encontram-se completamente pervertidos pelo pecado original de Adão,

transmitido a seus descendentes.548 Pelo pecado que infeccionou a natureza

humana, feito um vírus que procura destruir o brilho e o esplendor da glória de

Deus em sua obra prima, já não a temos mais perfeita na vida do homem, visto

que a essência do pecado é a auto-suficiência, a independência do Criador, achar-

se absolutamente autônomo. Diante da realidade da queda, em toda a sua

extensão, verifica-se o estado de miséria em que ficou o homem e, sem dúvida,

torna-se evidente a bondade e a misericórdia de Deus.549

547 Bettenson traz o seguinte comentário sobre a questão da Queda e suas conseqüências: “[...]Assim se vê que o Pecado Original é uma depravação hereditária e uma corrupção de nossanatureza, difundida em todas as partes da alma [...] pelo que, os que definiram o Pecado Originalcomo ausência da justiça original com que deveríamos ser revestidos, sem dúvida incluíram – porimplicação – toda a realidade, mas não exprimiram plenamente a energia positiva desse pecado.Com efeito, a nossa natureza não está simplesmente privada do bem, mas é tão fecunda em todaespécie de mal que não pode estar inativa. Os que o chamaram concupiscência usaram um termoque erra muito o alvo se acrescentam – coisa que muitos não concedem – que tudo o que há nohomem, do intelecto à vontade, da alma à carne, está inteiramente manchado e repleto deconcupiscência. Ou para dizê-lo brevemente: todo o homem em si nada mais é queconcupiscência.” BETTENSON, H. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1998, p.264.548 Institutas, livro 2, cap. 1, seções 7 e 8.549 Institutas, livro 2, cap. 1, seção 3.

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Segundo o reformador, o homem tornou-se espiritualmente incapaz de

procurar o seu Criador por si mesmo e completamente incompetente para alterar

seu estado e sua condição de pecado. O pecado alcançou todas as áreas da

existência humana. O que aconteceu foi que Adão perdera seu estado de dignidade

e integridade originais. Na verdade, a natureza original do homem fora tremenda e

profundamente afetada, permanecendo, ainda que enfraquecida, a sua razão ou

entendimento.

Portanto, qualquer ação do homem que vise a conquista de sua salvação

torna-se inócua. “As faculdades e dons humanos foram radicalmente

prejudicados”,550 segundo McGrath. Calvino avança em sua consideração sobre as

conseqüências do pecado ao declarar que

[...] a Escritura atesta com freqüência que ohomem é escravo do pecado; o que quer dizer que seuespírito é tão estranho à justiça de Deus, que nãoconcebe, deseja, nem empreende coisa alguma que nãoseja má, perversa, iníqua e impura; pois o coração,completamente cheio do veneno do pecado, não podeproduzir senão os frutos do pecado. Não pensemos,entretanto, que o homem peca como que impelido poruma necessidade incontrolável, pois peca com oconsentimento de sua própria vontade continuamente esegundo sua inclinação. Mas, visto que, por causa dacorrupção de seu coração, odeia profundamente a justiçade Deus; e, por outro lado, atrai para si toda sorte demaldade, por isso afirmamos que não tem o livre poderde eleger o bem ou o mal – que é o que chamamos livre-arbítrio.551

A liberdade humana ou o livre arbítrio não foi totalmente destruído, mas

tornou-se fraco e impotente para dizer “não” aos engodos do pecado. Calvino diz

que “não fomos privados do livre arbítrio, mas de um arbítrio são.”552 Quanto a

uma explicitação do livre arbítrio e das questões relacionadas à liberdade do

homem, Calvino faz uso dos conceitos agostinianos:

550 MCGRATH, Alister, op. cit, p. 183.551 Breve Instrucción Cristiana, p. 13. Cf. Institutas, livro I, cap 2, seção 8.552 Institutas, livro II, pp. 9, 53, 54.

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Agostinho, que não hesita em dize (-lo) servo. (Éverdade que,) em certo lugar, esbraveja contra os quenegam o livre arbítrio. A precípua razão (de assim agir)declara (-a), porém, quando diz: “Somente não ousealguém assim negar o arbítrio da vontade que queira(dessa forma,) excusar o pecado.” Confessa, entretanto,firmemente, em outro lugar, que, sem o Espírito, avontade do homem não é livre, uma vez que há sidosujeita a desejos que (a) acorrentam e (a) dominam. Deigual modo, vencida a vontade pela depravação em quecaiu, começou a natureza (humana) a carecer deliberdade.553

3.1.6A Antropologia de Calvino e a Liberdade

A teologia de Calvino era profundamente prática. Os homens e mulheres,

alcançados pela graça libertadora de Cristo, não podem viver interessados apenas

em sua própria salvação, pois tal atitude reflete egoísmo. A expressão da

verdadeira fé não está apenas na dinâmica da espiritualidade individual, mas

também acha seu espaço no exercício de uma ética solidária, com expressões da

alteridade, comunitária e social.

Uma objeção à perspectiva calvinista é que este apresenta uma perspectiva

dicotomizada do ser humano, tal qual Agostinho. Porém, o ser humano precisa ser

visto como um ser integral, a fim de que rompamos com todo e qualquer

dualismo. A perspectiva dualista do ser humano tende a lançar luz apenas sobre

determinado aspecto da realidade humana. Estabelece-se, portanto, uma tensão

antropológica. Ou seja, antropologias idealísticas, por exemplo, acentuam a

dimensão da alma ou da razão, ocultando, ou até mesmo, negando a estrutura

material do homem.554 Na outra ponta, as antropologias materialistas dogmatizam

a dimensão física do homem, negando-lhe a sua realidade espiritual.555 Nesse

sentido, temos que estabelecer uma distinção clara sobre tais antropologias. E, no

nosso caso, verificar os descompassos entre tais antropologias e a antropologia

cristã, que é o nosso foco de interesse. Lembrando sempre que as concepções

antropológicas não-cristãs, vez por outra, afetam e distorcem a visão escriturística

sobre as verdades do humano.

553 Institutas, livro II, cap 2, seção 8.554 HOEKEMA, Anthony, op. cit., p. 14.555 Ibidem, p. 14.

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Logo, o ser humano possui uma realidade extremamente mais profunda e

mais complexa do que possamos imaginar. Ultrapassa o conhecimento que temos

do universo natural. Por isso é chamado de multidimensional, como afirma o

filósofo Juvenal Arduini.556 O ser humano possui, em si mesmo, uma

multidimensionalidade. Significa afirmar, então, que o homem não pode ser visto

apenas sob um determinado ponto, visto que uma dimensão do homem não reflete

sua totalidade.

“O homem apresenta dimensão somática, psíquica, racional, individual,

social, econômica, política, sapiencial, erótica, estética, histórica, técnica, ética”557, afirma o filósofo supracitado. Essas facetas não são excludentes. Ao contrário,

são complementares. Impõe-se, portanto, fugir de todo reducionismo de análise do

ser humano, pois agindo assim, corre-se o risco de praticar deformação do

humano, “hipertrofiando-lhe uma dimensão e atrofiando-lhe as demais”.558 Na

verdade, o grande desafio que temos na compreensão do homem é olharmos suas

múltiplas facetas antropológicas, exercendo um esforço conjuntivo, jamais

disjuntivo.

O ser humano existe enquanto exerce a capacidade de autocompreensão e de

auto-expressão, e não apenas enquanto exerce a capacidade de refletir sobre o

cosmos. A antropologia ganhou maior expressão na modernidade, visto que

passou a ser o elemento principal na formação sociocultural. Na essência do ser

humano, está a sede pela busca de sentido, que por sua vez provoca o

questionamento, gerando a coragem da interrogação e a beleza da resposta.

“Transforma dúvidas em certezas, e fratura certezas hereditárias para espalhar

dúvidas inéditas”.559

556 ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica. São Paulo: Paulinas. 1989, p. 9.557 Ibidem, p. 09.558 Ibidem. Tal afirmação não significa que não possamos analisar determinadas partes do serhumano. O que não podemos é proceder assim ocultando as demais. Entretanto, devemoscompreender, paradoxalmente, que cada dimensão analisada há de possuir caráter de totalidade.“Uma dimensão não contém a totalidade do ser humano, mas lhe marca a totalidade do ser”. Cf. p.10.559 Ibidem, p. 12.

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Na busca de sentido, o homem expressa sua consciência, seja moral,

psicológica, religiosa ou antropológica, que é o nosso caso. Pela consciência, o

homem consegue superar seus próprios limites. É possível, pelo exercício da

consciência, sonhar ser o que não se é, por condição natural e limitada, intrínseca

ao próprio ser humano, alvejado pelo pecado. A consciência é caminho da

liberdade, pois não permite ao homem dormir o sono da inércia. Na verdade, tanto

para o homem quanto para um povo, “o maior desastre é o funeral da

consciência”.560 Significa dizer, categoricamente, que a consciência é geradora e

formadora de identidade, pessoal e social. Portanto, “ser uma pessoa significa ter

alguma forma de independência – não absoluta, mas relativa”.561

Ser uma pessoa é mais do que ser uma criatura. Logo, a consciência traz ao

homem a capacidade de se perceber, de se saber homem. Ernst Bloch afirma que a

consciência “é o grande espaço reservado à vida aberta”.562 A consciência navega

os rios que deságuam nas águas profundas do sentido. Por isso, o ser humano,

conquanto criatura, não vive apenas, conduzido por uma força extrínseca a ele.

Há, no homem, a capacidade da autodireção e da autodeterminação.563 Temos,

aqui, um paradoxo da antropologia cristã, isto é, o homem como criatura, é

dependente do seu Criador, Deus; mas como pessoa, possui liberdade, elemento

constitutivo da estrutura humana.

560 ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, op. cit., p. 15.561 HOEKEMA, Anthony. Criados à Imagem de Deus, op. cit., p. 17.562 BLOCH, Ernst. Le Principe Espérance. Gallimard. Paris. 1976, p. 237.563 HOEKEMA, Anthony. Criados à Imagem de Deus, op. cit., p. 17. Leonard Verduin afirmaque o ser humano é uma “criatura de opção”. Cf. VERDUIN, Leonard. Somewhat less than God.Grand Rapids. Eerdmans, 1970. Ele trabalha bastante tal idéia no capítulo cinco.

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O ser humano encontra, nas vias da comunicabilidade da linguagem, seu

grande veículo de expressão. Na verdade, a linguagem possui a capacidade de

revelar a dinâmica existencial do homem. Afirma Dilthey que “é somente na

linguagem que a intimidade do homem mostra sua expressão completa, exaustiva

e objetivamente inteligível”.564 É através da linguagem que as profundezas do ser

humano são reveladas, tornando-se uma espécie de “epifania antropológica”.565

Ela é manifestação dos mistérios humanos. Ela é sinal de abertura, de relações, de

alteridade, de solidariedade, de solicitude, instrumento de ensino e aprendizagem,

iluminação do próprio do ser. Na sua maioria, as grandes dores do ser humano,

não importa qual seja a área, ganham agudeza ainda maior, pela falta de

comunicabilidade, pela incapacidade do homem de expressar seus conflitos ou

pela simples ausência de coragem em explicitá-los. É exatamente aí que nascem

os grandes monstros, que devoram a existência, provocando imensos e profundos

traumatismos na vida do homem. Exteriorizar seu mundo interior significa abrir

caminhos para a cura e alamedas para a liberdade.566 A liberdade é a

expressividade do ser, antes preso e acorrentado pelo silêncio e ocultamento. A

liberdade de ser, de se compreender, de se aceitar e de perceber a realidade ao seu

redor, tem seu ponto de partida na antropologia da linguagem.

Em outras palavras, a identidade do ser humano é construída na densidade

de sua comunicabilidade. Ainda citando o filósofo Juvenal Arduini, constatamos o

valor e o poder da linguagem, pois o verbo caracteriza o ser:

Por isso, o desrespeito à palavra emitida éinterpretado como ofensa à própria pessoa. Recusar apalavra é recusar o homem que profere. Adulterar apalavra de alguém é violar-lhe a dignidade.567

564 DILTHEY. Le Monde de l’Esprit. T. I, p. 321.565 ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, op. cit., p. 116.566 Ora, a linguagem é amplamente utilizada pelas ciências médicas, incluindo a psicologia e apsicanálise, para tratamento das doenças físicas e psicossomáticas.567 ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, op. cit., p. 17.

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183

A linguagem é ontológica, pois colabora efetivamente para a constituição do

homem e do próprio tecido social. “A linguagem é o fundamento da

intersubjetividade, e cada pessoa tem de se apoiar sobre ela antes de poder

objetivar a primeira manifestação vital”568, diz Habermas. Gadamer ainda afirma

que “é na ordem da linguagem que a consciência inserida no devenir histórico

exerce sua ação”.569 Isso significa que a linguagem se concretiza na práxis e que

esta pereniza aquela.

Temos, portanto, na linguagem diversas formas de manifestação. “Pode ser

verbal, física, emocional, lúdica, ética, religiosa, política, econômica, técnica,

jurídica, estética, individual e coletiva”.570 No entanto, a linguagem corporal

possui uma força exponencial do ponto de vista antropológico, visto que o corpo

expressa os mais variados significados. A expressividade do corpo é altamente

diversificada. Tal asseveração é confirmada pelas palavras de Merleau-Ponty.571

Assim, desfazendo qualquer tipo de dualismo, o corpo é expressão do ser humano.

Por isso Merleau-Ponty diz: “Je suis donc mon corps” (eu sou, então, meu

corpo).572

Vejamos o que diz o filósofo Arduini:

O corpo diz fenomenologicamente todo o meu ser.É nele que se manifestam a consciência, o pensamento, aintenção profunda, a liberdade, o projeto de vida, anecessidade e aspiração, o acolhimento e a recusa, a dor eo júbilo, o amor e a crueldade, a súplica e a prepotência.O corpo é palavra somática.573

Esta atribuição de valor ao ser humano holístico e a importância à sua

linguagem, como expressão do seu ser, são as contribuições que podem ser dadas

ao pensamento de Calvino. Porém, sua valorização do ser humano e exigência da

dependência de Deus é fundamento para uma concepção libertária: homens e

mulheres precisam depender do transcendente para assumir integralmente sua

humanidade, porém precisam assumir suas responsabilidades para transcender.

568 HARBEMAS, Jurgen. Cannaissance et intérét. Gallimard. Paris. 1976, p. 191.569 GADAMER, H. G.. L’Art de Comprendre. Aubier. Paris. 1982, p. 37.570 ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, op. cit., p. 18.571 Merleau-Ponty afirma: “le corps exprime l’existence totale, non qu’il en soit unaccompagnement extérieur, mais parce qu’elle se réalise en lui”. Phénomenologie de laPerception. Gallimard. Paris. 1945, p. 193.572 MERLEAU-PONTY, M.. Phénomenologie de la Perception, op. cit., p. 231.573 ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica, op. cit., p. 19.

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184

Esta é a principal contribuição da teologia calvinista para a construção de

uma reflexão que sirva à ação, à práxis libertária.

Apesar das suas categorias estarem inseridas num contexto distante, mudado

pela reflexão antropológico-filosófica a qual rejeita a figura da transcendência que

não parte do ser humano em sua imanência, Calvino é uma fonte importante para

a revalidação da concepção de que os projetos autônomos do ser humano são

fadados ao fracasso. A autonomia da razão leva à dependência em relação ao

transitório. A autonomia da dimensão corporal é negada pela óbvia limitação do

mesmo. Transcender começa por assumir a integralidade do ser humano, e

assumir que homens e mulheres, quando integrais, mostram-se dependentes do

Ser, da relação com Deus. Esta é uma questão antológica, explícita nas múltiplas

expressões do fenômeno religioso.

Calvino, ao reafirmar o senso religioso, exterioriza algo que pode ser

percebido historicamente: mesmo diante do desencantamento do mundo, foram

atribuídas marcas religiosas àquilo que outrora era profano. A relação do ser

humano com as suas construções culturais sempre manifesta um teor religioso. A

religiosidade é tão inerente ao ser, que até a negação do Transcendente, do

Totalmente Outro exige elencar substitutos para o papel que outrora este assumia.

A liberdade passa a ser tema fundamental em Calvino. Mas não a liberdade

como eliminação de vínculos, mas como fortalecimento destes, abandono de

outros e assunção do senso de responsabilidade com o próximo. A liberdade da

graça é liberdade em Deus, e não de Deus. É a capacidade de negar a própria

natureza pecaminosa, a própria vontade pervertida e decaída, para assumir algo

que só pode ser feito quando se experimenta a libertação plena: a vontade de

Deus.

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185

3.2A Eclesiologia de Calvino e a Liberdade Cristã dela decorrente

Quando ocorreu a Reforma Protestante, a Igreja Católica Romana foi

questionada. Entre as críticas feitas pelos seus opositores, está aquela que tange

sua eclesiologia. Porém, estas críticas geralmente não apresentavam modelos

eclesiológicos que substituíssem aqueles que pretensamente estavam equivocados.

Tratar da eclesiologia reformada, portanto, consiste em ir além das críticas

feitas à eclesiologia católica romana. É importante perceber quais os modelos

eclesiológicos propostos. E para identificar as questões que apontam para a

liberdade, é necessário analisar a introdução destas eclesiologias, na prática das

comunidades, e os resultados obtidos.

Entre os modelos eclesiológicos, surgidos no período da Reforma, o modelo

genebrino, estabelecido por Calvino, a partir das influências de Lutero e de Martin

Bucer, é o apresentado aqui, a fim de que configurem uma concepção promotora

da liberdade cristã. Estes dados são abordados na dimensão da práxis, mas

também da teoria que a fundamenta, de maneira a se entender a relação entre

ambas e onde estas não apresentam continuidade.

3.2.1Fontes

Em primeiro lugar, a eclesiologia Calvinista é encontrada em duas obras

principais: na obra Institutas da Religião Cristã, livro IV; e nas Ordenanças

Eclesiásticas, escritas por Calvino para a regência da Igreja Reformada em

Genebra. Estas são as principais fontes da eclesiologia, que também têm, como

evidências, as cartas, os comentários e os opúsculos, produzidos por João Calvino,

que tangenciam o tema. Este tema está vinculado à antropologia, à cristologia e à

soteriologia, já que a Igreja é mãe e lugar de plenificação dos mesmos; à

cristologia, já que a Igreja é vista por Calvino como o “corpo místico de Cristo”;

e à soteriologia, já que a Igreja é “mãe dos fiéis”, dos eleitos, e lugar obrigatório

dos mesmos.

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A maior testemunha desta vinculação é que a obra principal de Calvino

sobre a Igreja também trata das outras temáticas elencadas: As Institutas da

Religião Cristã. No IV livro das Institutas, o reformador afirma ser a Igreja o

instrumento externo de Deus, através do qual convoca os homens e as mulheres à

santa comunhão com o Cristo ressuscitado, bem como os faz permanecer nela,

Corpo de Cristo. Calvino não apenas possuía experiência para descrever sobre a

Igreja e sua organização, mas também foi capaz de desenvolver uma análise

teórica sobre sua natureza, seu modus vivendi, pela via dos ministérios e seus

sacramentos.574 Ou seja, a teologia eclesiológica de Calvino desembocava numa

via teológico-sociológica. Na verdade, sua eclesiologia contribuiu, e muito, para o

tema da liberdade e da democracia, sendo influente nas sociedades da Europa

Ocidental, atingidas pelas concepções calvinistas, preponderantemente a Holanda,

a Suíça, a França e a Inglaterra.

Entre os vários assuntos relacionados à Igreja no livro IV das Institutas está

a apresentação da Igreja como organismo vivo.575 Calvino, a partir dos dados

sedimentados na crítica humanística e luterana à eclesiologia católico-romana, e a

partir da sua experiência prática como pastor em Genebra e Estrasburgo, apresenta

uma teologia em que estão imbricadas as concepções teóricas da Igreja e a sua

epifania no mundo.

574 Institutas, livro IV, pp. 133-136. Calvino procura evitar ao máximo abstrações generalizadas.Se atentarmos bem para as Institutas, perceberemos, na verdade, um grande manual prático sobre anova sociedade que Deus está formando a partir e por meio de Jesus Cristo, pela ação poderosa doEspírito Santo, capaz de se tornar instrumento de transformação histórica. Ou seja, Calvinotrabalha praticamente todas as perspectivas da Igreja, o que modernamente podemos chamar deum projeto prático sobre plantação, crescimento, organização e disciplina da Igreja. Cf.MCGRATH, Alister, op. cit, pp. 197,198. McGrath diz que “as Institutas começam com umavigorosa análise teológica e terminam com a aplicação dessa análise às realidades do dia-a-dia doser humano”. Há algo muito interessante nessa afirmação, pois um dos grandes propósitos edesafios de nossa pesquisa é a atualização da visão teológica e eclesiológica, na perspectiva daliberdade cristã, com todas as suas implicações éticas.575 Talvez seja necessário estabelecer a diferenciação entre estes dois conceitos, que não sãooriginais em Calvino. A Igreja visível é uma organização de origem divina, através da qual Deusconcretiza o crescimento ou a santificação do seu povo. Calvino cita uma máxima de Cipriano deCartago a fim de confirmar tal doutrina: “Você não pode ter Deus como Pai, a menos que tenha aIgreja como mãe”. Cf. Institutas, livro IV, pp. 4,5. Por um lado, Calvino afirma que a Igrejavisível significa a comunidade dos cristãos, na verdade, um grupo concreto e histórico, acomunidade dos fiéis (Institutas, livro IV, pp. 09,10). Ela é formada ou composta por todos, salvose não salvos. Como Igreja Invisível significa a comunhão dos santos, a Assembléia dos Salvos, éconhecida apenas por Deus.

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Calvino apresenta concepções teológicas sobre a natureza da Igreja e as

relaciona com a visão de múltiplos ministérios e sacramentos.576 Esta imbricação

proporciona o evitar das especulações e abstrações destituídas de caráter prático.

Podemos, inclusive afirmar, em termos mais contemporâneos, que as Institutas

são um manual prático sobre plantação, organização, crescimento e disciplina da

Igreja. Ou seja, as Institutas têm, nos seus primeiros volumes, uma profundidade

teológica exponencial, e culmina, no quarto volume, sobre a aplicação de toda a

sua análise “às realidades do dia-a-dia do ser humano”.577 Sua teologia é exposta

agora, de forma prática, na medida em que o novo homem, em Cristo, está

inserido no contexto da Igreja e, como tal, precisa viver intensamente a

experiência da fé no meio onde está inserido, promovendo as transformações

necessárias, na sociedade, através do evangelho libertador de Jesus Cristo.

3.2.2Conceito de Igreja

Para Calvino, a Igreja é sinal concreto do Reino de Deus onde, através do

cumprimento da sua missão, realiza o Reino na vida de homens e mulheres,

anunciando e vivendo a radicalidade do Evangelho libertador de Jesus Cristo. A

Igreja é chamada a ser vanguarda da promoção da justiça social. Em um de seus

sermões, ele diz:

Devemos reconhecer que Deus almejou tornar-nosmembros de seu corpo. Quando nos encontramos uns aosoutros dessa maneira, cada um concluirá: vejo meupróximo necessitado de meu auxílio e se eu estivesse emtal desamparo, gostaria de ser socorrido: logo, devo fazerexatamente isto.578

576 Institutas, livro IV, p. 9.577 MCGRATH, Alister, op. cit., pp. 197,198.578 CALVINO, João. Sermão sobre I Timóteo 6.17-19.

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A Igreja vive um duplo desafio, ambas ligadas a sua essência: desenvolver

uma espiritualidade na relação com Deus e desenvolver uma espiritualidade na

relação com o próximo, transformado em práxis na sociedade e em

responsabilidade social na concretização da justiça do Reino. Não agir dessa

forma significa, segundo Calvino, uma prática incoerente com a própria natureza

da Igreja. Ouçamos a voz do reformador:

Reconheço que devoção para com Deus vem antesde amor de nossos irmãos; portanto, observar a primeiraparte (tábua) da lei é mais precioso diante de Deus, doque a observância da segunda. Mas já que Deus éinvisível, nossa devoção não pode ser vista pelos outroshomens. É verdade que as cerimônias religiosas foramestabelecidas para fornecer evidência de devoção. Mas aobservância delas pelos homens não era prova dafidelidade deles. Ocorre com freqüência que ninguém émais diligente e zeloso, em particular dessas cerimônias,do que os hipócritas. Portanto, Deus quis pôr à provanosso amor por Ele, exortando-nos a nos amar uns aosoutros como irmãos. Por esse motivo diz-se que o amor éa perfeição da lei (não apenas nessa passagem, mastambém em Romanos 13.8), não pode ser melhor do quea adoração de Deus, mas por ser a convincente evidênciadela. Tenho dito que não podemos ver Deus. Ele,portanto, apresenta-se a Si mesmo em nossos irmãos, e,na pessoa deles, exige o que Lhe devemos.

Assim, o amor ao irmão desabrocha a partir dotemor e do amor a Deus. Ora, não é para surpreender,pois, que nosso amor pelo irmão, sendo o sinal do amorde Deus, ainda que seja parte da lei, representa atotalidade da lei e inclui o culto a Deus. Com certeza estáerrado separar o amor a Deus do amor ao homem.579

A eclesiologia reformada, exposta por Calvino, tem, por princípio, a

luterana. Nesta, a Igreja é vista como justa e pecadora. A Igreja é entendida como

o resultado de uma severa tensão entre a tendência a pecar e a consciência do

dever em viver segundo a vontade de Deus. Os crentes, nesta concepção, são

simul justus et peccator. A Igreja se torna, para Lutero, a comunhão dos santos, a

reunião dos crentes que vivem sob esta tensão.

579 Gálatas, (5.13,14), pp. 55,56.

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A Confissão de Augsburgo afirma que a Igreja é a reunião de todos os

crentes, onde o Evangelho é pregado com pureza e os sacramentos são

administrados segundo o Evangelho. E esta confissão se mantém fiel ao preceito

de Lutero de que há apenas uma Igreja Cristã que deve permanecer para sempre.

Além disso, faz parte da eclesiologia luterana a doutrina do sacerdócio

universal de todos os crentes. Para Lutero, não existe a idéia de um sacerdócio

especial, mas de diferenças nos serviços. E a Igreja, neste aspecto, é a mãe de

todos os fiéis, aqueles que assumem seu sacerdócio, não obstante sua natureza

pecadora.

O Espírito é, para Lutero, o agente que faz dos crentes receptores dos meios

de graça: a ministração da Palavra de Deus e dos sacramentos. A Igreja é alvo da

ação do Espírito e responde a esta ação com o amor, sendo como um hospital para

enfermos incuráveis, em que os agentes de saúde também estão enfermos.

Para Calvino, a Igreja é vista como manifestação do pacto ou da aliança

entre Deus e o ser humano. Dentro desta visão pactual, a Igreja carrega marcas

distintivas, que possibilitam diferenciar aquela que, de fato, é manifestação deste

pacto e aquelas que não são autênticas.

Calvino concorda com Lutero que as marcas da verdadeira Igreja é a fiel

pregação da Palavra de Deus e a ministração dos sacramentos consoante a vontade

de Deus. Calvino procura estabelecer critérios que possam caracterizar a

autenticidade da Igreja. Ele afirma que “onde quer que vejamos a Palavra de

Deus, sendo pregada de forma plena e ouvida, e os sacramentos, ministrados

segundo o modelo de Cristo, não podemos duvidar de que exista uma Igreja.”580

Sem dúvida que o padrão da Igreja é estabelecido pela sua visão das Escrituras,

porém, sob a influência de Lutero.581

Soma-se a estes elementos comuns a importância da disciplina eclesiástica

na visão eclesiológica de Calvino. Portanto, distintamente de Lutero, Calvino

defende também ser fundamental para distinguir a verdadeira Igreja da falsa, a fé

correta e a correção na vida cristã.

580 Institutas, livro IV, p. 140.581 Institutas, livro IV, pp. 133,134.

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Além disso, na visão calvinista, a Igreja não é vista como universal apenas,

mas há uma distinção dentro da mesma. Para o teólogo, há uma Igreja visível,

formada por todos aqueles que vivem, aparentemente, pia e santamente a sua vida.

E existe uma Igreja invisível, formada pelos eleitos. Ele se apropria da concepção

agostiniana de que há pessoas, na Igreja, que não são cristãos autênticos, e há

cristãos autênticos fora da Igreja, para deixar claro que a eleição é supratemporal e

supra-espacial. Porém, Calvino afirma que aquele que é eleito invariavelmente

será parte da Igreja visível, e que o fato da Igreja invisível ser a verdadeira não

exclui a obrigação de fazer parte da imperfeita.

3.2.3A Relação entre a Igreja e o Estado

A relação entre a Igreja e o Estado é distinta, na Igreja Calvinista, em

relação à luterana. Para os luteranos, existem dois reinos: um governado pela

Igreja, cuja autoridade está nas Escrituras, instrumento para compreensão da fé e

dos critérios da mesma; e o governo secular, autônomo, cujo governante foi

instituído por Deus e sua autoridade deve ser obedecida e respeitada, inclusive

pela Igreja.

Para Calvino, a relação entre a Igreja e o Estado deve ser integral. Para ele, a

Igreja é autônoma, devendo ser respeitada em suas decisões, sem interferências do

Estado. De igual forma, o governo secular não deve sofrer interferências da Igreja.

Porém, a Igreja deve ser a consciência do Estado: a relação entre a Igreja e o

Estado é integralizada através da colaboração mútua, da preservação mútua e do

apoio mútuo. Esta relação entre Igreja e Estado é uma inovação calvinista. O

paradigma da relação entre as instâncias de poder em Genebra alcançou, no

segundo período da sua permanência na cidade, alta qualificação. Havia uma

organização na cidade, e cada uma destas instituições criadas, manifestava a

defesa de valores da Reforma, a ponto da cidade parecer – não obstante não ser –

uma cidade teocrática. Esta imersão nos valores da Reforma mostra a eficiência

do elemento ideológico na configuração administrativa da cidade, e a eclesiologia

calvinista era o fundamento ideológico para esta configuração.

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A Igreja visível, para Calvino, é, em primeiro lugar, uma comunidade

visível, que manifesta a graça de Deus através da pregação da Palavra (Palavra

que se ouve) e da ministração dos sacramentos (Palavra que se vê). A ministração

dos sacramentos constitui como que um drama cósmico, em que, pela apropriação

pública dos sacramentos, manifesta a vontade de Deus para o mundo. Além deste

drama sacramental, a comunidade de fé se manifesta ao mundo pelo

comportamento exemplar dos seus membros e pelas demais atividades da mesma,

incluindo os debates em torno de assuntos doutrinários, tão comuns naqueles

tempos de efervescência religiosa. Por isto, percebe-se que as fronteiras entre o

religioso e o profano foram em muito diminuídas, havendo um intercâmbio entre

ambos. Em Genebra, a dicotomia presente na época medieval, que vez ou outra se

manifestava, foi resolvida parcialmente – ora os membros da Igreja eram tolhidos

– e isso se fazia pela aplicação da disciplina; ora era assumida uma manifestação

secular – como os estudos humanísticos sobre autores clássicos.

3.2.4Os Sacramentos

Particularmente importante para entender a eclesiologia calvinista é a

dimensão sacramental da mesma. Calvino afirma que os sacramentos, que são a

Palavra visível, também são um dos sinais da Igreja – notae ecclesiae.582 Calvino

faz duas definições de sacramento, afirmando ser “um símbolo exterior, através do

qual o Senhor sela, em nossa consciência, as suas promessas de boa vontade em

relação a nós, para sustentar a fraqueza de nossa fé”;583 e ainda “um sinal visível

de algo sagrado, ou a forma visível de uma graça invisível”584.

582 Institutas, livro IV, pp. 16-20.583 Institutas, livro IV, p. 259.584 Institutas, livro IV, p. 259.

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No entanto, a primeira afirmação é de autoria do próprio Calvino, enquanto

que a segunda pertence a Agostinho.585 Para Calvino, os sacramentos são meios

externos necessários para a operação da fé. Ele afirma:

Porque pela nossa obtusidade e indolência, e euacrescento também a frivolidade de nosso espírito,necessitam de meios externos, mercê dos quais seja emnós operada a fé, e aí cresça, e avance passo a passo, nãose esqueceu Deus de prover a isso, a fim de nos assistir àfraqueza. E para que a pregação do evangelho tivesse seucurso, à sua Igreja propiciou, como em depósito, esteprecioso tesouro; instituiu pastores e mestres pela bocados quais nos ensinasse (Ef 4.11); enfim, nada deixoupara trás de tudo o que próprio era para nutrir um santoconsentimento de fé e uma boa ordem entre nós.Sobretudo, instituiu os sacramentos, que por experiênciasabemos serem meios mais do que úteis para nutrir efirmarmos a fé.586

Os sacramentos são dois: o batismo e a Ceia do Senhor. O batismo consiste

no sacramento através do qual o ser humano aprende o que ele é, objetivamente, e

em que ele descobre sua natureza e essência. Como sinal da nova criação, o

batismo constitui o sacramento através do qual o crente recebe o selo indelével da

graça e que testemunha os símbolos do seu estado.

585 Tal período fora marcado por muita controvérsia sobre a doutrina dos sacramentos. Calvinoinsistia em afirmar que o sacramento tem seu fundamento em “uma promessa e um mandamentodo Senhor”. Cf. Ibidem, livro IV, p. 423. O reformador recusou-se, então, a aceitar cinco dos setesacramentos da Igreja Católica Romana. Cf. Ibidem, livro IV, pp. 419,420. Houve ainda acirradacontrovérsia entre Lutero e Zwínglio no que diz respeito a natureza dos sacramentos. Cf. McGrath,Reformation Thought (Oxford/Nova York, 1988), pp. 117-130. Calvino ocupava uma posiçãointermediária entre Lutero e Zwínglio. Ele dizia, cristologicamente, que no sacramento eucarísticohá uma sutil separação entre o sinal e o significado, mas que não deveria existir distincto sed nonseparatio, ou seja, deve haver distinção entre o sinal visível e o significado nele representado,ainda que não devam ser separados. Cf. Ibidem, livro IV, pp. 380-382. Ver também MCGRATH,Alister, op. cit, p. 200. Para o reformador, os benefícios da eucaristia – beneficia Christi – sãoconquistados pelo próprio Cristo e são oferecidos aos cristãos, homens e mulheres que a Ele sesubmetem pela prática da fé e da obediência. É pela fé que participamos de todos os benefíciosconquistados por Cristo na cruz, tais como a redenção, a justificação, a vida eterna etc,. Noentanto, precisamos estabelecer aqui outra distinção, pois quando Calvino usa o termo matéria ousubstância da eucaristia, nada tem a ver com o sentido aristotélico, visto que tal sentidofundamenta ou embasa a teoria medieval da transubstanciação. Ver Institutas, livro IV, pp. 349-358.586 Institutas, livro IV, p. 351.

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Pelo batismo, o ser humano toma conhecimento de que o pecado o fez

indigno, mas que, pelo favor imerecido de Deus, seus pecados são perdoados e ele

adquire, por Jesus Cristo, a condição de ser recriado. A ação do Espírito manifesta

a mortificação da carne e a destruição do velho ser humano, fazendo do batizado

parte da nova criação.587

O batismo é sinal e selo. O é da purgação, carta assinada e carimbada pela

qual Deus confirma que os pecados foram perdoados e esquecidos. O selo não

está na água, mas em Jesus Cristo, que, pelo seu sangue, garante o lavar dos

pecados.

O recebimento do sacramento do batismo mediante a fé garante a

manifestação da eficiência do sacrifício de Jesus na mortificação da carne do

batizando, já que se é sepultado com Cristo pelo batismo. O batismo exige,

portanto, uma nova vida em Deus, o Pai, em Cristo, sob os auspícios do

Espírito.588

Sobre isto, o reformador afirma:

O batismo, sem dúvida, nos promete que nossoFaraó foi submerso e nossa carne mortificada, não,entretanto, de tal forma que não mais nos moleste, massomente que não nos sobrepuje. Enquanto vivemosenclausurados nesta prisão do nosso corpo, em nóshabitarão os restos e remanescentes do pecado; se,porém, pela fé retemos a promessa que por Deus nos foidada no batismo, não dominarão eles e não reinarão.Impõe-se-nos, então, saber e reter que fomos batizados namortificação de nossa carne, que começou em nós desdeo batismo e todos os dias perseguimos; perfeita, noentanto, só será ela quando desta vida houvermos partidopara estar com o Senhor nosso.589

587 Institutas, livro IV, XV, 5.588 BIELÉR, André, O Pensamento Econômico e Social de Calvino, p. 354.589 Institutas, livro IV, XV, 11.

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194

O outro sacramento apresentado por Calvino, é a Ceia do Senhor. Para este,

a questão central em sua doutrina sacramental continua a ser o fato de o

sacramento ser sinal e selo. Porém, no tocante à Ceia do Senhor, Calvino afirma

que a questão importante a ser respondida na Ceia é como ocorre a comunicação

da carne e sangue de Jesus no sacramento.590 Interpretar o significado da

expressão de Jesus “este é o meu corpo” é o desafio para a Igreja naquele

momento histórico.

Esta questão era alvo de disputas entre os reformados: em 1529, no chamado

Colóquio de Marburgo, Zwínglio e Lutero concordaram em quatorze pontos sobre

suas doutrinas referentes ao sacramento, porém não chegaram a um consenso.

Para Lutero, o pão e o vinho são literalmente a carne e o sangue de Jesus, mas não

transubstanciados, e sim consubstanciados (então em, por e sob o pão e o vinho).

Para Zwínglio, o pão e o vinho não são naturalmente unidos como corpo e

sangue de Cristo: o corpo e o sangue de Cristo não são ligados nem

materialmente, nem sensivelmente aos elementos, sendo eles apenas símbolos ou

sinais através dos quais se tem comunhão no corpo e sangue de Cristo.

A posição de Calvino está situada entre a luterana e a zwingliana. Para o

reformador, a idéia da consubstanciação não corresponde à verdade. Porém,

Calvino entendia que o corpo e o sangue de Cristo são dados na Ceia, conforme

pensavam os luteranos.

Para Calvino, o corpo de Cristo permanece no céu, retendo suas

propriedades humanas. Cristo não vem até a Igreja, quando esta se reúne para

participar do sacramento, mas o Espírito eleva os participantes do sacramento aos

céus e, de forma espiritual, participa dos benefícios do corpo e sangue de Jesus.

Há uma presença real de Jesus, na Ceia, mas esta presença real é celestial.

Para Calvino, quando os incrédulos participam da Ceia, eles não participam

dos benefícios da mesma, já que a condição para desfrutar do dom é a fé. E esta

fé possibilita participar do grande benefício do sacramento, que é a manifestação

visível das promessas através de um sinal. Afirma o reformador:

590 OC, IX, 31-32. Ele afirma: “[...] nenhum de nós nega que o corpo e o sangue de Cristo nos sãocomunicados. Porém a questão é [...].”

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195

Ora, uma vez que somos tão obtusos que não Opodemos receber em verdadeira confiança de coração,quando nos é Ele apresentado por simples ensino epregação, o Pai de Misericórdia, não desdenhandocondescender com a nossa fraqueza, neste particular, quisajuntar, à Sua Palavra, um sinal visível pelo qualrepresentasse a substância de suas promessas, para nosconfirmar e nos fortalecer, livrando-nos de toda a dúvidae incerteza.591

Pela Ceia, proclama-se a corrupção da sociedade dos homens pelo pecado, o

perdão concedido a ela através do sangue e corpo de Jesus, o reencontrar com a

nova vida em Deus e o exercício contínuo da mesma. Portanto, a Ceia é um

convite a toda sociedade humana para que, no encontro com o Cristo ressurreto,

esta seja regenerada.

Para Calvino, o sacramento do batismo precede ao da Ceia, sendo este

último o sacramento daqueles que “passaram da primeira infância”.592 Ela é

conferida e renovada para que aqueles que, estando em idade de fazê-lo, possam

discernir o corpo, provando e anunciando a morte do Senhor, e os benefícios da

mesma.

Tanto o batismo quanto a Ceia prefiguram o destino da pessoa e da

sociedade. Através do batismo, a Igreja anuncia aquilo pelo qual todo homem e

mulher devem passar para estar em paz com Deus e em comunhão verdadeira com

seu próximo. Pela Ceia, é anunciado o melhor destino para a sociedade, que é a

vida em harmonia em torno de Cristo.

3.2.5A Igreja Visível e a Invisível

Calvino entende, por outro lado, ser a Igreja invisível o lugar em que os

eleitos, reunidos diante de Deus, formam o “corpo místico de Cristo”. A principal

distinção entre a Igreja visível e a invisível é escatológica: estas serão distinguidas

no juízo final.

591 OC, Trois Traités, V, p. 435.592 Institutas, livro IV, XVI, 30.

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Uma questão fundamental para Calvino, principalmente por ser uma das

marcas da verdadeira Igreja, é a questão da disciplina eclesiástica. Calvino propõe

uma comunidade cristã que vele por sua conduta e a de seus membros.593 Em

situações sérias, Calvino entende que é adequado perguntar se os infratores

realmente podem continuar pertencendo a comunidade. Neste ponto, Calvino

encontra sua justificativa em Mateus 18, onde o evangelho trata das faltas dos

membros da comunidade.594

A Igreja constitui, entre os seres humanos, uma nova sociedade, que aponta

para a sociedade secular a condição desta se plenificar e alcançar a dignidade.

Embora não sendo definitiva, a Igreja visível manifesta ao mundo o caminho para

sua redenção: assumir o senhorio de Cristo em suas ações pelo comportamento

ético e pelo recebimento dos dons de serviço. Afirma Calvino:

A comunhão dos santos [...] exprime muito bem aqualidade da Igreja; como se fosse dito que os santos sãocongregados à sociedade de Cristo sob tal condição, quedevam mutuamente comunicar entre si todos os dons quelhes são conferidos por Deus. Contudo, nem por issoimpedida é a diversidade de graças.595

Por ser a Igreja, ainda que imperfeita na sua dimensão visível, o centro da

restauração da sociedade humana, a sua ação encontra repercussão em todos os

lugares em que ela está inserida. Por isto ela deve se ocupar em preservar sua vida

cúltica, e os membros, individualmente, devem honrá-la com seu procedimento, e

as fronteiras da Igreja devem se estender até os confins cumprindo, assim, sua

missão de paradigma da sociedade humana.

593 Para Calvino, os magistrados devem estar debaixo da jurisdição espiritual do consistório nasquestões espirituais – ou seja: o Estado é formado por cidadãos cristãos, sendo a vida pessoalregida pela religião. Ver: A. Dakin, Calvinismo (Filadelfia, 1946), p. 162.594 “Foi em meados de 1541 que Calvino regressou a Genebra. Uma de suas primeiras ações foiredigir as Ordenanças Eclesiásticas, que foram aprovadas, pouco meses depois, pelo governo dacidade, se bem que com algumas emendas. Segundo se estabelecia nelas, o governo da Igrejaficava principalmente nas mãos do Consistório, que era formado pelo pastores e por doze leigosque recebiam o nome de "anciãos". Visto que os pastores eram cinco e os leigos eram a maioria noConsistório. Porém, apesar disso o impacto pessoal de Calvino era tal que quase sempre esse corposeguia suas orientações e seus desejos.” Gonzalez, Justo, A Era dos Reformadores, p. 174.595 Institutas, livro IV, I, 3.

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197

A manifestação parcial do reino de Cristo através da Igreja deve começar já,

sendo esperado pela Igreja e sociedade humana a manifestação do reino

escatológico.596

3.2.6Eclesiologia e Missiologia Calvinista

Para o reformador, Jesus Cristo é a única e definitiva solução para todo ser

humano. Em Genebra, Calvino envida todos os esforços para proclamar a fé no

genuíno evangelho. Usou abundantemente a imprensa, na qual, onde em 1557

autorizou que seus sermões fossem publicados, o que aconteceu em diversas

línguas. O teólogo inglês John Stott corrobora com a posição de Calvino, quando

observa que “uma das melhores maneiras de compartilhar o evangelho com os

homens e as mulheres de hoje é apresentá-lo em termos de liberdade”.597A Igreja

de Genebra foi moldada pela proclamação de um pastor: Calvino. Através das

pregações, foram resolvidos uma a uma as questões necessárias para a

implantação da Reforma, em Genebra, como Calvino a idealizou. Após anos de

serviço religioso e manifestação das suas concepções pelo púlpito da principal

Igreja da cidade, havia, em Genebra uma identidade eclesial particular em suas

texturas, mas identificada com a Reforma Protestante nos seus valores basilares.

Isto deixava a porta aberta para a vinda de reformados de vários recantos da

Europa para Genebra, que se tornou cidade de refúgio para estes.

596 “De tal natureza é o Reino de Cristo, que cresce todos os dias e aumenta mais e mais;entretanto, não é ainda perfeito, e não o será antes do final do dia do Juízo. Destarte, verdadeirossão um e outro, a saber, que desde agora todas as coisas estão sujeitas a Cristo e, todavia, que estasujeição não será completa, até o dia da ressurreição, pois que será perfeito, então, o que não estáagora, senão apenas começando.” Pastorais, 2.10.597 STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo: como ser um cristão contemporâneo. SãoPaulo: ABU, 1998, p. 50. Para Stott Jesus Cristo é retratado no Novo Testamento como o supremolibertador do mundo.

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198

Calvino possuía uma consciência missionária, pois, sabedor de que a Igreja

era e é sinal do Reino de Deus na História, o anúncio do evangelho libertador de

Jesus Cristo era a missão da Igreja e precisava alcançar as extremidades da terra.

Falando sobre a Grande Comissão, ele diz: "O Senhor ordena aos ministros do

evangelho que preguem em lugares distantes, com o propósito de espalhar a

salvação em cada parte do mundo."598

Há inúmeras evidências dessa posição de Calvino. Por exemplo, refletindo

sobre 1 Tm 2.4, ele declara: "Nenhuma nação da terra e nenhum segmento da

sociedade está excluído da salvação, porque Deus deseja oferecer o evangelho a

todos e sem nenhuma exceção."599 A universalidade da mensagem de Cristo

permite entender melhor que a concepção calvinista de eleição, não obstante

parecer restringir a ação evangelística, não surtiu este efeito, na teologia do

Reformador, pelo contrário, a ação missionária, por parte dos protestantes, teve

um impulso inicial a partir da pregação e estímulo de Calvino com seus alunos da

Academia de Genebra.

Para se compreender a perspectiva missionária de Calvino dentro da sua

visão eclesiológica, é importante ter por pressuposto que o ensino calvinista sobre

o método ordinário de “tornar coletiva a Igreja” é por meio da voz exterior dos

homens – a pregação da Palavra; “porque Deus mesmo pode trazer por sua secreta

influência, no entanto, ele ainda emprega a agência do homem e desperta, em nós,

uma ansiedade sobre a salvação um do outro”.600 Portanto, ao estimular o trânsito

de membros da Igreja genebrina e das outras nações que iam estudar em Genebra

pelo mundo não reformado, Calvino procurou, pela pregação destas pessoas,

despertar os eleitos e disseminar o ideal Reformado, não só na Europa, mas

também em todo o mundo conhecido.601

598 Comentário aos Sinóticos, p. 384.599 Comentário às Pastorais, pp. 54-55.600 Comentário em Isaías 2:3.601 Por isto, Calvino afirma que Deus não irá mostrar “[...] apenas em um canto, o que a verdadeirareligião é, mas Ele enviará Sua voz aos limites extremos da terra”. (Ver: Comentário em Miquéas4, 3). Para Calvino, o evangelho “não cai das nuvens como chuva”, no entanto, ele é “trazido pelasmãos de homens que vão aonde Deus os mandou” (Comentário em Romanos 10,15). Calvinoainda afirma ser uma “honra de constituir Seu Filho governador do mundo inteiro” (Comentárionos Salmos 2,8).

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199

3.2.7A Eclesiologia e a Liberdade Cristã

Dentro destas idéias, proclamadas dominicalmente por Calvino, a

eclesiologia foi unida e relacionada às doutrinas (já difundidas por Lutero) de

liberdade cristã. O exercício para a compreensão da relação entre a doutrina

eclesiológica de Calvino e sua concepção de liberdade cristã passa, também, pela

compreensão do tema e da natureza da Igreja.

A Igreja deve, para manter sua condição, promover o correto ministério dos

sacramentos, a fiel pregação da Palavra e a aplicação da disciplina eclesiástica.

Estes três elementos sugerem, num primeiro momento, o tolher das liberdades

civis na cidade de Genebra.

De fato, não havia possibilidade, em Genebra, de assumir uma postura

eclesiástica que ferisse princípios basilares da doutrina cristã e reformada:

questões controversas sobre Trindade, temas soteriológicos e da ortopraxia eram

vistos com rigor, pois eram entendidos como distintivos. A tensão entre a

necessidade de promover a liberdade e a libertação das pessoas das doutrinas

escravizantes, da pobreza e de outras marcas do seu tempo, contrastavam com o

rigor doutrinário e a vigilância quanto à observância dos mesmos.

Neste aspecto, a liberdade é compreendida como realidade obtida pela

obediência: em primeiro lugar, é necessário ser da Igreja, e depois é que a

liberdade é possível. A liberdade tem, por ponto de partida, Deus e nada fora dEle

é possível. A Igreja se transforma, assim, no local que promove a liberdade à

medida que promove a submissão das pessoas a Deus.

A disciplina exercia um papel importante nesta manutenção da liberdade:

visava a promover a liberdade a partir da repressão à impiedade. Calvino entendia

que aqueles que agiam com impiedade, o faziam, porque eram escravos do

pecado, distintamente daqueles que agiam piedosamente, porque eram livres para

agir ou não assim. O ser humano “em Cristo” é aquele verdadeiramente livre para

obedecer a Deus, pois, ontologicamente, esta é a única possibilidade de liberdade.

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200

Na prática, quando reunido, o consistório não agia na liberdade dos

indivíduos como cidadãos. Mas, quando membros da Igreja de Genebra, estes

deveriam se sujeitar ao código de conduta da mesma, sob pena de ter sua

liberdade individual cerceada – como se o estado de escravidão, que é ontológico,

fosse, pela ação disciplinar, retratado para o arrependimento do culpado e

conscientização do mesmo. Se isso não acontecesse, ele era julgado no tribunal e

condenado, algumas vezes à morte – como se estivesse dizendo que, por esta

atitude, não há possibilidade de vida para aqueles que transgridem o código de

ética da Igreja genebrina.

É claro que este sistema não era adequado, se analisado segundo o nível de

comprometimento religioso e de poder de cerceamento da Igreja nas atuais

sociedades ocidentais. Mas vê-se que a Igreja e suas autoridades eram vistas como

um dentre os poderes de cerceamento da liberdade individual – e era vista sob

uma perspectiva medieval.

Por outro lado, o sistema de gestão eclesiástica de Genebra promovia o

indivíduo através da assistência multifacetada: assistência médica, educação,

promoção de moradia etc. Esta conduta de promoção do indivíduo objetivava

promover a sua liberdade. As ações, em Genebra, objetivam tornar o indivíduo

capaz de gerir sua família e sua casa. Dentro desta perspectiva, o poder

eclesiástico era duo: promovia não só a coerção social, mas também a

reintegração do indivíduo através da ressocialização. Portanto, fica claro que há

certas tarefas que devem ser cumpridas em cada comunidade local. Algumas

pertenciam ao âmbito do governo e outras focavam dimensões diaconais.

A sociedade genebrina não era despótica e intolerante. Por esta razão,

tornou-se uma cidade de refúgio. Isto é a demonstração de que a liberdade era

entendida como coerência confessional, sendo esta tolerância estendida até o dia

em que ocorriam convulsões sociais.

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201

Esse novo homem, reconciliado com Deus, através de Jesus Cristo, mediante

a fé, agora é inserido na vida do Cristo, vivendo em novidade de vida, como nova

criação de Deus.602 Por meio de Jesus Cristo, o homem recriado passa a fazer

parte do seu Corpo visível, a Comunidade da Fé, a Igreja, lugar a partir do qual

vai exercitar o seguimento de Cristo, no fiel cumprimento da missão que lhe foi

confiada.603 Mesmo vivendo a dialética de sua natureza, sua nova vida tem início,

benefícios, desafios e implicações desde agora, visto que, mesmo sendo nova

criatura, tirado do mundo, é imediatamente enviado ao mundo, a fim de que seja

agente de proclamação do espaço de libertação e de liberdade.604

Nas palavras do reformador, encontramos o seguinte:

Cristo veio para restaurar à sua integridade tudoquanto havia sido corrompido por Adão [...] Cristo,então (cujo mister é devolver-nos o que perdemos emAdão), é-nos causa de vida, e Sua ressurreição é asubstância e o penhor da nossa ressurreição.605

É no espaço eclesial, em sua dimensão de mundaneidade, que o cristão

comprova e atesta sua justificação, visto que vive, agora, para glória de Deus,

demonstrando-a através de sua nova vida.606 “O objeto da regeneração [...] é

manifestar, na vida dos crentes, uma harmonia e concordância entre a justiça de

Deus e a obediência deles e, assim, confirmar a adoção que eles receberam como

filhos”607, diz o reformador. A ação regeneradora do Espírito Santo, no indivíduo,

é ato e processo608, restaurando a imagem de Deus em sua vida.609 As boas obras

são o resultado final na vida cristã, como resposta à justificação.610 As boas obras

hão de ser praticadas na ambiência da vida, na concretude da história humana,

sempre na direção do outro, do próximo, razão pela qual a liberdade cristã ganha

verdadeiro significado.

602 BIÉLER, André. op. cit., p. 279.603 Ibidem, p. 280.604 Ibidem, p. 282.605 CALVINO, João. Comentários ao Novo Testamento, 1 Co 15.20.606 Institutas, livro III, caps. 6 a 10.607 Institutas, livro III, cap. 6, seção 1.608 CR, 77:312.609 CR,79:208.610 Institutas, livro III, cap. 18.

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202

Em outras palavras, implica afirmar que a nova vida em Cristo é,

essencialmente, uma vida social, tendo a Igreja como primeiro espaço e a

sociedade como extensão de tal espaço.611 A missão da Igreja de Cristo nasce

exatamente nesse contexto.612 A Igreja é, portanto, a continuação da missão de

Cristo, proclamando e vivendo o Evangelho.613

Na verdade, Calvino lutava por uma liberdade fundamentada no Evangelho

de Jesus Cristo, que trazia em si grandes e profundas implicações éticas no

seguimento de Jesus, mas que, ao mesmo tempo, tal Evangelho conduziria o

homem à verdadeira liberdade.

Mesmo tendo que considerar toda moldura sociocultural-religiosa de sua

época, Calvino não pode ser considerado, como em nossos dias, um

fundamentalista radical, nem um liberal, mas um homem à frente do seu tempo,

obcecado pela vivência de um cristianismo capaz de transformar integralmente o

ser humano, libertando-o completamente, a fim de que este – ser humano -

pudesse influenciar todos os setores da sociedade, desde a cultura até as questões

religiosas, conseqüentemente passando pela dimensão ética. E foi isso que

aconteceu. Genebra experimentava uma revolução religiosa, com seus templos

cheios e a fé cristã praticada pelas famílias. O ensino da Palavra de Deus era uma

tônica do reformador. “A cidade progrediu debaixo de seus conselhos”.614 Desde a

urbanização até as políticas públicas de saúde e trabalho, passando pela criação de

asilos, hospital e o combate à ociosidade, providenciando trabalho para todos.

Percebia-se, então, que as leis, vazadas pelo conteúdo do evangelho, ainda que

rígidas, resultaram em justiça social e elevado nível de vida moral. Genebra

tornou-se um verdadeiro refúgio para os perseguidos de toda parte.

A Igreja genebrina ainda assumia a posição de influência junto às outras

Igrejas Protestantes, espalhadas pela Europa. Calvino pessoalmente fez esforços

para reunir diferentes correntes evangélicas. Em 1549, procurou um consenso com

os zuriquenses no que tange à Santa Ceia (Consensus Tugurinus ou Consenso de

Zurich).

611 BIÉLER, André. op. cit., pp. 334-335.612 BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. op. cit., p. 600.613 Ibidem, idem, p. 600.614 LESSA, Vicente Temudo, op. cit., p. 169.

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É neste consenso que nasce, de fato, a concepção Reformada da

eucaristia.615 Ao vislumbrar a Igreja nesta perspectiva universal, o reformador

demonstra que, além dos guetos confessionais, está o interesse comum na

promoção do Evangelho, conseqüentemente, da liberdade proporcionada por este.

Quando o movimento faz concessões sem relevar pontos fundamentais da

confissão, esta flexibilização doutrinária prepara o diálogo inter-religioso,

incipiente manifesto nas missivas do reformador. Apenas uma mentalidade sujeita

às perspectivas de benefícios universais a partir das crenças teônomas, fazendo

dela uma teonomia flexível, e não restritiva, poderia operar influências em

culturas por vezes díspares, respeitando manifestações locais da fé e piedade. Este

exercício libertário é uma contribuição importante do calvinismo e explica a sua

propagação como força cultural.

Porém, cabe afirmar que as instituições eclesiásticas genebrinas não eram

perfeitas, em conexão com a imperfeição doutrinária do Reformador. O

sacramento da Ceia nunca pôde ser celebrado, como gostaria o reformador,

semanalmente. Por mais que isto fosse desejado, a sujeição da Igreja ao Estado

produziu o impedimento a isto. A instituição democrática impediu o exercício

livre do direito do pastor de celebrar o sacramento da Ceia com a periodicidade

que desejava.

615 Esta é a concepção reformada calvinista de sacramento: "Deus nos deixou um legado para nosassegurarmos de sua constante benevolência. Por tal motivo, ele deu aos seus filhos o segundosacramento, através da mão do seu Filho Unigênito: a Santa Ceia em que Cristo dá testemunho deque é o Pão da Vida, o pão pelo qual nossas almas são alimentadas até a verdadeira e ditosaimortalidade. Primeiro: os símbolos de que este sacramento fala são o pão e o vinho: eles são oalimento invisível que recebemos do corpo e do sangue de Jesus Cristo. Segundo: o único alimentoda nossa alma é Cristo, e por isto o Pai celestial nos dirige para que sejamos parte dEle, para quesejamos consolados e possamos reunir nossas forças até que cheguemos à imortalidade celestial. Omistério da união secreta de Cristo com os fiéis, sem dúvida, é incompreensível por natureza, porisso é que Deus nos revela uma imagem ou representação do mistério em sinais visíveis, adaptadosmaravilhosamente ao nosso baixo nível. De certo modo, dá-nos legados e indícios que nos dão amesma certeza como se o víssemos com nossos próprios olhos. Porque é uma parábola conhecidaque penetra nas mentes sensíveis: nossas almas são alimentadas por Cristo da mesma forma que opão e o vinho mantém a vida do corpo. Com isto fica claro qual o objetivo desta bênção secreta:ela nos assegura que o corpo do Senhor foi sacrificado para nós, para que, agora, o conheçamoscomo alimento celestial e para que este gozo seja vivenciado na força deste sacrifício único. E queSeu sangue foi derramado por nós, de maneira que seja sempre nossa bebida. Por isto chama ocálice de ‘aliança do meu sangue’ (Lucas 22.20; 1 Coríntios 11.25). Porque cada vez que nos dá debeber Seu santo sangue, renova-se a aliança que confirmou com Ele, melhor dizendo: é como sereforça a fé. As almas piedosas podem receber numerosos frutos de confiança e amor destesacramento, porque têm o testemunho de que somos um só corpo com Cristo, e que o todo que eleé, podemos entender como sendo parte de nós.” Institutas, livro IV, 17, 1 e 2.

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204

Além disto, percebe-se, em Genebra, uma cisão entre poder religioso e

secular que nem sempre operou eficientemente a promoção da liberdade. As

discordâncias doutrinárias, quando culminam no cerceamento da liberdade e até

no ceifar da vida, é a manifestação da intolerância. Mas cabe, aqui, o

questionamento de Max Weber: “Se o sistema eclesiológico genebrino tolhia

liberdades individuais, porque as pessoas se sujeitavam a ele?”616 A resposta dada

por Weber é adequada: “Porque havia consonância e concordância. Havia o

desejo, por parte dos grupos sociais, na promoção desta Reforma, já que o

paradigma anterior a esta era muito pior.”617

Ainda é necessário entender se a dicotomia entre Igreja visível e invisível é

manifestação de liberdade. Certamente ela apresenta uma distinção conceitual que

vai culminar numa distinção prática. A impossibilidade de identificação desta

Igreja, que é “corpo místico”, de forma última leva a religiosidade ao nível

meramente simbólico. Este nível simbólico impede a definição de lastros que

gerem segurança, o que permite a manifestação de outros sistemas eclesiológicos

com caráter mais imanente. Foi o caso do movimento anabatista, que, através da

prática do rebatismo de católicos, do anúncio escatológico e da estrita ética social

comunitarista, foi rechaçada por Calvino.

Em contraste a estes elementos, temos outros que corroboram com a idéia de

liberdade. A primeira concepção é a liberdade vocacional: não é mais pelo direito

consuetudinário, nem pela indicação por razões particulares, nem mais pela

formação que os ofícios são exercidos. O critério para assumir um ofício, em

Genebra, é a vocação. Qualquer pessoa, sentindo-se vocacionada, poderia se

inserir na vida pública através dos ofícios, fossem eclesiásticos, fossem seculares.

É um avanço apenas obtido no século XX pela maior parte das instituições e

Estados. Havia nisto um lugar privilegiado para a mulher, que podia exercer o

diaconato e exercer seu ofício livremente. Mesmo não havendo estímulo para a

vocação do ministério pastoral ordenado para as mulheres, não havia outro grupo

que valorizava demasiadamente a mulher como o grupo de Igrejas Reformadas. A

obra de educação religiosa e secular, o exercício da administração civil e religiosa

e o ministério ordenado tinha, na mulher, a sua possibilidade de expansão.

616 WEBER, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, p. 44.617 Ibidem.

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205

Um dos grandes elementos libertários na práxis calvinista é o exercício da

educação. O educador é visto como uma figura autoritativa, e esta autoridade está

ligada não meramente ao ofício, mas também ao exercício do mesmo, que

possibilitava a ascensão social dos membros da sociedade genebrina mais

privilegiadas. Havia, em Genebra, a disseminação do ensino, fazendo desta

localidade um dos principais centros educacionais da época, alcançando o respeito

dos nascentes Estados nacionais.

Porém, a concepção da Igreja como paradigma do mundo, manifestando a

este o favor de Deus e apontando o caminho para a solidariedade e verdadeira

devoção, é a maior contribuição eclesiológica de Calvino para a concepção de

liberdade. Quando são derrubadas as barreiras físicas e a Igreja é entendida como

o lugar em que, pela vida ou pela pregação, o Reino se manifesta, Calvino retoma

uma concepção neotestamentária de Igreja, em que esta não está circunscrita ao

seu corpo institucional ou à sua edificação física, mas esta é uma “maneira de ser

no mundo”. A partir da sua compreensão eclesiológica de Igreja como lugar de

restauração da sociedade, esta assume uma natureza dialogal. Os sacramentos

como modelos de posição diante de Deus – fé, e diante da sociedade – justiça –

constituem mais uma evidência da intercontextualidade e atualidade do

pensamento calvinista. Através desta dinâmica relacional, é possível perceber que

até a Igreja Visível, imperfeita, tem profundo valor. Rompe-se, aqui, o problema

da dicotomia entre Igreja visível e invisível como concepção meramente abstrata e

especulativa, e passa este conceito a ser uma condição inerente à própria natureza

transitória da Igreja. Calvino, em sua eclesiologia, oferece a possibilidade da

Igreja, pela ética do evangelho, ser não apenas a consciência do Estado, mas

também da sociedade como um todo.

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206

3.3A Cristologia de Calvino e a Liberdade Cristã dela decorrente

A cristologia de Calvino é o ponto de encontro entre a sua antropologia e a

sua eclesiologia. No pensamento do reformador, o ser humano decaído e

totalmente depravado encontra, em Cristo, sua redenção e seu modelo. A Igreja é

corpo místico de Cristo, sendo a manifestação terrena de seu governo. Pela

cristologia de Calvino, analisaremos a sua visão de liberdade e a sua perspectiva

sobre a liberdade manifesta em Jesus.

A importância da cristologia calvinista reside no fato de que ela apresenta

três elementos que manifestam sua eficiência como corpo de doutrinas que

produzem a liberdade. Em primeiro lugar, a cristologia calvinista está em

consonância com a tradição cristológica da Escritura e da tradição. Em segundo

lugar, esta cristologia apresenta implicações práticas para o exercício da vida

cristã individual ou comunitária. Em terceiro lugar, esta cristologia manifesta o

propósito redentivo que guiou a práxis religiosa em Genebra. Calvino era

promotor de uma cristologia conservadora, porém o seu entusiasmo estava

dirigido, concentrado e direcionado a uma causa: espalhar, entre todos, o

conhecimento de Deus e de Seu filho Jesus.

A observação sobre a cristologia passa pela visão calvinista de que Cristo

exerce uma função soteriológica: Ele é o Mediador. E além da mediação, é

possível perceber, em Sua manifestação, duas áreas importantes de análise: a

pessoa de Cristo e Sua obra que é, necessariamente, de redenção e/ou juízo.

Para a observação da cristologia calvinista, o primeiro passo é, porém, o

destacamento das fontes e sua classificação, de onde são extraídas as doutrinas

pelas quais se desenhará a perspectiva de liberdade no reformador.

3.3.1Fontes

As fontes para a compreensão da cristologia de Calvino são diversas, já que

este é um tema caro para o teólogo.

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207

Em primeiro lugar, as Institutas tratam, em seu segundo livro, sobre o

conhecimento de Deus como Redentor e inclui a queda, o pecado, a lei, o AT e o

NT e Cristo, o mediador – Sua pessoa e obra. Estas temáticas são encadeadas para

demonstrar a visão que o reformador tinha sobre Cristo: toda a história converge

para Ele, de tal maneira que todos os fatos que precederam à encarnação apontam

para a necessidade do Redentor. Vê-se o centro cristológico na teologia calvinista,

que entende que a humanidade, as sociedades humanas e as Escrituras apontam

para o necessário relacionamento com Cristo.

Em segundo lugar, os comentários de Calvino, principalmente os seus

comentários sobre os evangelhos e epístolas, revelam a importância do tema

cristológico, porém aqui de uma maneira aplicada à vida das comunidades, de

uma maneira não tão abundante como nas Institutas. A partir de sua visão sobre

quem é Jesus, Calvino propõe implicações do evento Cristo e da Sua pregação.

A terceira fonte são as cartas, que vez ou outra tratam de temáticas

cristológicas, mas de forma menos enfática e menos densa. Majoritariamente, a

questão é tratada num contexto em que outras temáticas também são.

3.3.2.Cristologia Calvinista e Tradição

As concepções cristológicas cristãs são resultado da compreensão da Igreja

sobre o evento Cristo. Ao tentar entender a figura histórica de Jesus, Sua

profundidade, Sua natureza, origem e destino, a Igreja formulou, no decorrer dos

séculos, explicações, dogmas, doutrinas, assertivas. A partir do evento Cristo, a

Igreja elaborou suas reflexões e se colocou diante do mundo como Igreja Cristã.

Urge entender, em primeiro lugar, que as doutrinas cristológicas tradicionais

tiveram início com o próprio Cristo, mediante Seu ensino. Este foi interpretado

pela Igreja, que se apropriou dos Seus ensinos e assumiu o querigma, ou seja, a

proclamação dos mesmos. Esta proclamação está exposta nos escritos que a

Igreja, mais tarde, definiu serem canônicos, autoritativos para a fé.

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208

A cristologia, nestes documentos, é uma cristologia complexa, ainda não

definida em muitas das suas nuances, lacunar em seus desenvolvimentos.618

Porém apresenta a maior parte das questões fundamentais, ainda que de maneira

incipiente.

O período dos chamados Pais da Igreja é fundamental, pois, mediante a

recepção desta tradição de origem apostólica presente no NT, os primeiros autores

cristãos refletiram sobre Cristo com o claro objetivo de divulgar a fé e torná-la

conhecida – mas também corrigir aspectos doutrinários que aviltavam a Pessoa e a

Obra de Cristo, principal preceptor da Igreja Cristã.

Neste ímpeto em preservar a doutrina dos aviltamentos ou subserviências

diante das filosofias e concepções com as mais distintas motivações e origens,

sedimentou-se uma cristologia que, não obstante não possa reconhecer muito mais

elementos imanentes e humanos em Jesus, afirma Sua glória e exaltação.

As decisões conciliares, nos Concílios da Igreja, ocorridos em diferentes

localidades (Nicéia, Constantinopla, Éfeso, Calcedônia),619 demonstram que a

questão cristológica teve, nestes momentos essenciais de solidificação da fé,

importância fundamental.

618 Estas deixam de fora, ou então tratam de forma assistemática, as questões posteriormentetratadas pela Igreja. Este fato fica comprovado na elaboração, desde muito cedo, de credos: osmais antigos são o Credo Apostólico e o Batismal. O Credo Apostólico se desenvolveu a partir dasafirmações antigas, usadas no Batismo. Quando os candidatos, em sua incorporação na Igreja,eram levados diante da assembléia, confessavam sua fé em Deus, Pai e Criador; em Jesus, o Filhode Deus e Senhor, que nasceu da Virgem Maria, morreu na Cruz e ressurgiu, o qual viránovamente em glória para julgar todas as coisas e no Espírito Santo. O credo batismal é umaexpressão simples e direta da fé e é ainda usado, hoje em dia, na Liturgia Batismal e nos Ofíciosdiários da Manhã e da Tarde.619 Os concílios realizados pela Igreja, os chamados ecumênicos (universais), somam 21,importantíssimos na sua História, tendo em vista as definições da doutrina. Os mais importantespara as Igrejas Reformadas são os oito primeiros, a saber: Concílio de Nicéia I, que ocorre entre 29de maio e 25 de julho de 325, sob a direção do Papa Silvestre I (314-335); o Concílio deConstantinopla I, ocorrido entre maio e junho de 381, sob a direção do Papa Dâmaso I (366-384);o Concílio de Éfeso, com data entre 22 de junho e 17 de julho de 431, sob a direção do PapaCelestino I (422-432); o Concílio de Calcedônia, com duração entre 8 de outubro e 1 de novembro,sob a direção do Papa Leão I, o Grande (440-461); o Concílio de Constantinopla II, ocorrido entre5 de maio e 2 de julho de 553, sob a direção do Papa Virgílio (537-555); o Concílio deConstantinopla III, ocorrido entre 7 de novembro de 680 a 16 de setembro de 681, sob a direçãodos Papas Agato (678-681) e Leão II (662-663); o Concílio de Nicéia II, ocorrido entre 24 desetembro a 23 de outubro de 787, sob a direção do Papa Adriano I (772-795); e o Concílio deConstantinopla IV, datado entre 5 de outubro de 869 e 28 de fevereiro de 870, sendo dirigido pelosPapas Nicolau I (858-867) e Adriano II (867-872). Porém, para a cristologia de Calvino, éfundamental o resultado dos seis primeiros concílios ecumênicos.

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As teologias surgidas na Reforma, portanto, precisavam considerar todo este

desenvolvimento cristológico: o desenvolvimento escriturístico, o patrístico e,

especificamente neste, o conciliar – pelo menos dos Concílios ecumênicos, em

que os dados majoritários da tradição cristológica foram sedimentados.

Neste particular, Calvino, em sua cristologia, não tem como tema

fundamental o conhecimento à respeito da essência do ser de Jesus, mas sim a

compreensão do seu papel como Mediador dos seres humanos, especificamente

dos eleitos. O reformador afirma:

O que nós temos dito a respeito de Cristo estáreferido com um objetivo: condenados, mortos e perdidose nós mesmos, nós precisamos de justificação, libertação,vida e salvação nEle, segundo aquilo que a nós afirmaPedro: “E não há outro nome debaixo dos céus dado entreos homens pelo qual nós seremos salvos.”620

O conceito de revelação através de Cristo é um dos múltiplos exemplos de

que existe um componente relacional, pretendido através da cristologia.

Por não entender que a sua cristologia era propriamente sua, mas uma

exposição da sua compreensão a partir das Escrituras, Calvino afirma ser

necessário um Mediador que se acomode à finitude e limitação humanas, tanto de

entendimento quanto de aporte ontológico. É impossível o finito compreender o

infinito. O limitado, o ilimitado. Por isto, em sua relação com o ser humano, Jesus

se manifestou como homem, tornando possível assim a relação com a

humanidade. Este pensamento de Calvino está em perfeita consonância com a

tradição da Igreja. Percebe-se, aqui, a apropriação, na teologia calvinista, da

afirmação do símbolo de Calcedônia, na expressão dogmática o finito não é capaz

do infinito (finitum non capax infinitum est).

Calvino aplica a doutrina da dupla natureza de Cristo e da manutenção da

mesma, após a ressurreição, à doutrina da concepção sacramental ao afirmar que,

por estar nos céus, o Espírito, para que os crentes tenham comunhão verdadeira

com Cristo no sacramento, tem sua natureza soerguida, conduzida espiritualmente

para o lugar em que Cristo está. Portanto, percebe-se, aqui, os passos na

apropriação calvinista dos dados cristológicos traditivos: apropriação, atualização,

aplicação.

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A questão das duas naturezas de Cristo, neste particular, é muito importante.

Calvino tinha uma perspectiva por demais ortodoxa das duas naturezas. Ao

contrário dos maniqueus e dos marcionitas,621 Calvino afirmava ter Jesus uma

natureza carnal e ter também a natureza divina.

Pensava assim contrariamente também aos arianos, monofisistas e

nestorianos, pois afirmava que Jesus procedia eternamente do Pai, sendo gerado,

não feito, e dotado após a encarnação de duas naturezas distintas e

indissolúveis.622 Calvino também reúne no livro II, capítulo 13, capítulos 1 e 2,

refutações às idéias de Menno Simons – marca evidente do caráter apologético da

sua reexposição da ortodoxia anteriormente exposta nas decisões dos concílios

ecumênicos.623

620 Institutas, livro II, 16, 1.621 Calvino fala sobre os maniqueus em Institutas, livro II, 13. 1. Estes são ligados a Mani, persanascido no terceiro século, que combinou elementos do zoroastrismo com outras religiões persas eo cristianismo. A principal característica dos maniqueus é seu dualismo: o universo está sob aconstante influência de duas forças: o bem e o mal. Quanto à Marcion, este viveu em Roma em150, e é conhecido por ter rejeitado o Antigo Testamento e ter construído um cânon do NovoTestamento com 10 epístolas paulinas e o evangelho de Lucas modificado: com a exclusão decitações/referências veterotestamentárias. Ele rejeitou todas as alegorias (TERTULIANO,Adversus Marcion, II, 19, 21, 22; IV, 15, 20; ORÍGENES, Commentaries in Matthew, XV, 3).622 Calvino é contrário ao arianismo, ao monofisismo e ao nestorianismo, seguindo integralmente atradição calcedoniana. Segundo a definição do Concílio de Calcedônia, Cristo possui as duasnaturezas, a humana e a divina, sem que a união anule a diferença. Essa definição ataca omonofisismo, que afirmava ter Cristo apenas uma natureza. A definição também é contrária aoarianismo, principalmente no símbolo quando afirma: “[...] nascido do Pai, antes de todos osséculos, segundo a Sua divindade [...]”. Também é contrária ao nestorianismo quando afirmaserem as duas naturezas distintas, mas unidas indissoluvelmente. Ver: ESPINOSA, Fernanda.Antologia de textos históricos medievais, p.59.623 Na primeira parte do capítulo 1, Calvino começa declarando que Jesus é verdadeiro homem,refutando heresias antigas do Novo Testamento, como o dualismo gnóstico. Após isto, passa arefutar seus contemporâneos. Destes, o principal é seu contemporâneo Menno Simons (1496-1561), que tem tendências marcionitas. Calvino conhece as posições de Simons, que forampublicadas, na Alemanha, em dialeto do norte, porém foram combatidas em panfletos publicadospor Martin Micron. As obras de Menno Simons sobre a encarnação (WENGER, J.C. (ed),Complete Works of Menno Simons, traduzida do alemão por L. Verduin, com biografia escrita porHarold Bender, p. 25) foram refutadas por John a Lasco, obra cujo título é Defensio verae...doctrinae de Christi incarnatione, foi enviado para Calvino por Albert Hardenberg de Bremen em1545. Menno argumentou contra seus opositores pelas obras The Incarnation of Our Lord (1554),op. cit., pp. 783-943; Reply to Martin Micron (1556); Epistle to Martin Micron (1556).

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Como no Concílio de Nicéia, ele afirma ser Cristo inteiramente Deus e

Homem. A disputa em Nicéia foi gerada a partir do pensamento de Ário,

presbítero de Alexandria, nascido em 250 e morto em 336, que explanou sobre a

doutrina trinitária num concílio em Alexandria, em 318. Nesta situação, ele

afirmou ser o Filho (Cristo) um ser criado. Teve início com isto uma grave

discussão cristológica sobre a eternidade, consubstancialidade e,

conseqüentemente, sobre a Trindade. Atanásio de Alexandria, nascido em 250 e

morto em 373, opôs-se às concepções arianas. Com a aquiescência de Alexandre,

bispo de Alexandria, a doutrina ariana foi refutada. Porém, a questão foi tratada

no Concílio Ecumênico de Nicéia. O consenso a que chegaram os membros do

Concílio foi que Jesus é consubstancial com o Pai (homoousias), e não

coessencial (homoiousias). O fato de muitos serem ainda tendentes ao credo que

tinha uma visão coessencial, esvaziou a aplicação prática da doutrina formulada, o

que culminou em múltiplos exílios sofridos por Atanásio.

No entanto, entre 325 e 337, a decisão ainda foi mantida satisfatoriamente,

porém com a aquiescência de Constantino, a partir de 337, o arianismo passou a

ser favorecido, mantendo-se, assim, até 361. A partir de 381, há um reavivamento

da compreensão nicena, principalmente com a aquiescência a ela dos três Pais

capadócios (Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa e Basílio de Cesaréia).

Houve a adição pneumatológica à discussão, sendo defendida que o Pai, o Filho e

o Espírito eram três pessoas (hypostases) em um único ser (essência ou

substância). Calvino defende a posição nicena e, nisso, assume a ortodoxia

católico romana do seu tempo. Subscreve as decisões deste Concílio em diversas

passagens das Institutas, nas quais ataca diretamente o pensamento ariano.624

624 Ário dizia que Cristo é Deus, mas murmurava que Ele foi criado no princípio. Ele dizia queCristo é um com o Pai, mas sussurrava secretamente nos ouvidos dos seus partidários que Ele eraunido com o Pai como qualquer outro crente, sem ter nenhum privilégio (Institutas, livro I, 13,5);Ver também: Institutas, livro I, 13, 29; IV, 4; II, 14, 1; IV. 5. 6.

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Também é significativo, para Calvino, o Concílio de Constantinopla,

ocorrido em 381. Este foi o segundo Concílio ecumênico, e Calvino conhece e

subscreve seu credo. Este Concílio ocorreu sob o reinado de Teodósio, sendo

neste reafirmada a decisão de Nicéia e adicionada a questão pneumatológica,

sendo resolvida a primeira grande e profunda questão cristológica universal da

Igreja.625 Porém, esta discussão, retomada por Calvino em oposição aos arianos do

seu tempo, particularmente Servetus, demonstra a fidelidade de Calvino à tradição

cristológica da Igreja.626

O reformador afirma que a Humanidade e a Divindade são integrais em

Jesus, insistindo na concordância com o Concílio de Calcedônia.627 Calvino

entendia não haver distinção constitutiva entre o corpo de Cristo e o do restante da

humanidade, sendo nisto opositor do apolinarianismo.628 E o reformador assume

até a posição final de Calcedônia sobre a pessoa de Cristo e subscrevendo

inclusive a doutrina da communicatio idiomatorum.

625 Antes da sua ocorrência, em 379, Teodósio tornou-se imperador e decretou ser o cristianismo areligião oficial do Império Romano. O imperador favorecia a formulação nicena, principalmentepela sua oposição ao paganismo e, conseqüentemente, ao esvaziamento cristológico implícito noarianismo. Ao falar no Concílio, Teodósio defendeu a posição nicena.626 “Calvino estabeleceu o intento de estudar durante a Escritura e publicou seu excelentecomentário sobre João. Nesta, nós conhecemos suas declarações e assertivas contra Servetus, quepensava como aqueles a quem os antigos Pais da Igreja, pela sua experiência, combateram porserem dois monstros: Paulo de Samósata e Ário de Alexandria, que comandaram deflagrações eatearam fogo em todas as Igrejas do mundo cristão. Servetus foi justamente punido em Genebra,não como um secretário, mas como um monstro, e sucumbiu devido à sua impiedade e blasfêmiashorríveis, com efeito, lançadas pelos seus discursos e escritos, num espaço de trinta anos, com osquais ele infestou o céu e a terra.” Ver: BEZA, Theodore, The Life of John Calvin, p. 36.627 No Concílio de Calcedônia foram combatidas concepções cristológicas já condenadas emNicéia, Constantinopla e Éfeso, e mais o eutiquianismo e o monofisismo. O eutiquianismo foiapregoado por Eutiques, que afirmava a preponderância da natureza divina de Cristo, que absorveua natureza humana: ou seja, Cristo não é plenamente homem. Em 448, um Concílio localcondenou Eutiques. Em 449, Dióscoros, patriarca de Alexandria, foi até Éfeso defender opensamento eutiquiano. Em sua defesa, ele declarou a doutrina da única natureza de Cristo: adivina (monofisismo). O papa Leo opôs-se a ambos (Eutiques e Dióscoros), porém o imperadorTeodósio II tolerava o pensamento eutiquiano e monofisista. Em 28 de Julho, Teodósio II falece,sendo sucedido por Pulcheria, convocando o Concílio de Calcedônia. Neste Concílio, a definiçãofoi: “duas naturezas unidas em uma hypostasis (pessoa). Mani no Egito, a Síria e outraslocalidades não aceitaram a decisão, constituindo esta a primeira divisão na tradição Cristã.628 A concepção de Apolinário era definida na suguinte concepção teológica: “Christum corpusassumpsisse sine anima, quod pro anima ei fuerit deitas illudque corpus consubstantiale fuissedeitati, nec ex substantia Martin efformatum” – ou seja, que Cristo assume um corpo sem umaalma, porque a Divindade fora posta nele no lugar da alma, e seu corpo era coessencial com aDivindade, e não fora formada com a substância de Maria.” O apolinarianismo defende que, aoassumir a alma humana (yuchv - aneu), a natureza divina assume a posse da inteligência e darazão.

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Portanto, a doutrina da comunicação ou comunhão das naturezas versa sobre

o intercâmbio das propriedades entre as naturezas humana e divina em Cristo. A

doutrina encontrou expressão inicial na controvérsia nestoriana (entre 428 e 452),

tendo já sido inadequadamente expressa por Tertuliano, Orígenes, Gregório de

Nissa, Epifânio e outros Pais da Igreja.629

Particularmente, no tocante à humanidade de Jesus, Calvino defendia que

esta cumpria o duplo propósito de satisfazer toda a justiça requerida do ser

humano e estabelecer o ponto de contato com o ser humano. Já a Divindade,

inescrutável como mistério e revelada como realidade atestada no ministério de

Jesus, manifesta a distância existente entre Cristo e o ser humano. Calvino afirma:

Não é sem razão que Paulo, quando inquirido amostrar Cristo no caráter de um Mediador,expressamente fala dEle como um homem “porque há sóum Deus e um só Mediador entre Deus e os homens,Jesus Cristo homem” (1 Timóteo 2.5). Ele poderia tê-lochamado Deus, ou poderia de fato haver omitido adesignação de “homem”, tanto quanto a de Deus; masporque o Espírito, que falou através dele conhece a nossadebilidade, ele proveu-nos um medicamento muitoapropriado contra tal fraqueza, ao colocar o Filho deDeus familiarmente entre nós como se ele fosse um denós. Portanto, que ninguém se perturbe quando e aondeprocurar o Mediador, ou de que forma possa seaproximar dEle. O apóstolo, ao denominá-lo homem,alerta-nos de que Ele está próximo, e perto mesmo denós, já que Ele é a nossa própria carne. Certamente quesua intenção é a mesma, em Hebreus 4.15.630

629 HEFELE, C. J., ConciUengeschichte II (1856). 127 f.; Hefele-Leclercq II. 1. 231 f.; VVAA,History of the Councils III. 8, 9. Cf. TERTULIANO, Of the Flesh of Christ v (CG II. 880; tr. ANFIII. 525); Calvino aprova e explana a doutrina, mas rejeita a maneira como Lutero advoga aubiqüidade de Cristo (Ver: Institutas, livro IV. 17. 29,30; e LUTERO, Werke WA XXV. 309.Servetus é atacado continuamente por Calvino em suas doutrinas cristológicas, principalmentenaquilo que está na sua obra SERVETUS, De Trinitatis erroribus I. 15, fo. 20b; III. 12 até 761b.630 Institutas, livro II, 15, 3.

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Calvino se apropria da idéia de que Jesus não se tornou vero Deus, vero

homo pela confusão das naturezas, mas pela unidade da pessoa – e o faz contra os

monofisistas e contra os nestorianos. A partir do dado extraído da tradição cristã,

aceito universalmente, Calvino afirma quem pela constituição de Cristo infere-se

que é necessário que não haja confronto nem oposição entre a conduta e a

doutrina cristã confessada – elas podem se relacionar. E os cristãos são, por isto,

admoestados a viverem uma fé encarnada, ou a sua vida humana sob a perspectiva

da sua eleição. Toda a cristologia calvinista se atrela à uma questão prática.631

Para não incorrer neste risco, é preciso perceber e reassumir sempre que, em

tese, Calvino afirma ser Cristo verdadeiro homem e verdadeiro Deus, sendo

gerado do Pai antes de todas as eras. Em sua encarnação, a Divindade de Jesus

fica oculta sob o véu da Sua natureza carnal. Porém, esta Divindade se manifesta

nas obras de Jesus, e a encarnação não limita a pessoa de Jesus, já que o Filho de

Deus também tem uma existência fora da carne.632

Num outro desenvolvimento da cristologia tradicional, Calvino afirma que,

após o juízo escatológico, Jesus se despojará da Sua natureza humana. O

reformador afirma: “Então cessará Deus de ser cabeça de Cristo, porque a

Divindade de Cristo brilhará por si mesma, porém agora está, todavia, coberta

com um véu”.633 Através destas concepções, Calvino demonstra, inicialmente, o

desenvolvimento da cristologia tradicional, tratando de um campo pouco

explorado da mesma. E manifesta o desejo de, pela sua teologia, manter o máximo

possível a natureza divina unida à humana – atendendo à exigência calcedoniana –

, porém não se reduzindo a esta. Quando afirma que o limite da natureza divina é

a humana, e esta será sobrepujada por aquela, esta idéia, mais o conceito de que a

natureza divina age fora do corpo de Jesus (extracalvinisticum), demonstra que,

para Calvino, não é concebível algo finito ser portador e sacramento do Divino a

ponto de limitá-lo. Por esta sua concepção, Calvino foi acusado por Servetus de

nestoriano.634

631 Institutas, livro II, 16.5.632 Institutas, livro II, 13, 4.633 Institutas, livro II, 14, 3.634 Ver SERVETUS, On the Errors of the Trinity, que apareceu ao público em 1531, mas que foiescrita pelo autor 20 anos antes do seu lançamento (Cf. BAINTON, R.H., Hunted Heretic, p. 217).Na obra SERVETUS, Christianismi restitutio (1553), ele fala contra o batismo (pp. 372-373). Elesubstitui o termo geralmente usado de sacramentos “símbolos” para a expressão “signos”. Em1559, Calvino é atacado em suas opiniões por Servetus na obra SERVETUS, Christianismirestitutio (1553), pp. 564-568, com referências detalhadas em Opera Serveti, V. 336-340.

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Cabe aqui a inevitável reflexão se esta acusação condiz ou não, mediante o

reconhecimento por Calvino da unidade do ser de Cristo. Calvino assume a

doutrina cristológica da tradição, porém trata – como Nestório, diga-se de

passagem – de diferenciar as duas naturezas. Porém, distintamente de Nestório, a

resposta sobre as naturezas passa pelo conhecimento das lições bíblicas sobre a

natureza de Cristo.

Segundo Calvino, a Bíblia nos dá lições sobre a natureza de Cristo,

apresentando três tipos diferentes das passagens. As passagens que falam sobre

Cristo podem ser divididas em: 1) pessoais (idiomaticum); 2) genus; e 3) o genus

majestaticum.635 A partir de Romanos 1,3-4, Calvino entende ser bíblica a

doutrina das duas naturezas636 e, a partir das narrativas evangélicas, ele percebe a

manifestação de cada uma das naturezas. Neste exercício, Nestório estava em

consonância com as Escrituras, não obstante se manifestar contrário noutra parte

(sobre a unidade ontológica em Jesus). O árbitro final nas questões, inclusive da

tradição conciliar é, para o reformador, a Escritura. Esta visão de Calvino é parte

da sua resposta a Miguel de Serveto, que o acusou de nestorianismo e, nas

Institutas, livro II, capítulo XIV, recebe a resposta do reformador. Uma vez que

Calvino estabeleceu sua visão das duas naturezas de Cristo, e as aferiu nas

Escrituras, passou a aplicar esta doutrina à vida dos crentes da maneira apontada

acima, possibilitando, pela doutrina, a manifestação da liberdade ou estimulando a

ânsia pela obtenção da mesma.

Uma outra concepção calvinista é que Jesus desceu ao Hades. Esta doutrina,

presente no Credo Apostólico, foi interpretada por Calvino. Para o reformador, a

descida ao Hades foi a terrível experiência de angústia, de dor e de maldição,

equivalente às dores do inferno na alma de Jesus, enquanto o Seu corpo ainda

estava pendurado na cruz. Esta experiência, necessária para satisfazer a ira de

Deus contra o pecado, foi suportada por Jesus no lugar dos seres humanos.

635 MCGRATH, Alister, Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: uma introdução à teologiacristã, p. 92.636 Romanos, p. 34.

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Na cruz, a dor da punição que o povo deveria assumir foi assumida pelo

redentor. Calvino defende esta doutrina contra Servetus637, já que este, escrevendo

a Calvino, "[...] observou que Cristo não desceu à sepultura ou ao lugar onde os

corpos dos mortos são colocados, mas na corte mais interior do inferno, onde as

almas são tornadas cativas."638 Estas idéias de Calvino foram transmitidas a

alguns segmentos da Igreja da Inglaterra, no período do rei Eduardo VI, através

dos ensinos do bispo anglicano John Hooper, que assim comentou a cláusula

descendit ad inferna do Credo Apostólico, por volta de 1549:

Eu creio também que enquanto ele estava sobre adita cruz, morrendo e entregando o seu espírito a Deus,seu Pai, Ele desceu ao inferno; isto quer dizer que provouverdadeiramente e sentiu a grande aflição e peso damorte, e igualmente as dores e tormentos do inferno, oque quer dizer a grande ira de Deus e o seu severojulgamento sobre Si, até ter sido totalmente esquecido porDeus [...]. Este é simplesmente o meu entendimento deCristo em sua descida ao inferno.639

Este último exemplo serve para demonstrar a importância de Calvino, na

divulgação das doutrinas e disseminação de concepções teológicas, naquele

momento histórico. Neste caso, é particularmente importante o fato de que, ao

assumir doutrinas tidas há séculos como ortodoxas, Calvino não rompe

definitivamente com a Igreja Católica Romana, mas se apropria da parcela dos

seus tesouros mais preciosos: os conceitos eclesiológicos. Esta é uma

particularidade da doutrina calvinista que faz dela uma doutrina radicada nos

fundamentos que mantiveram a confissão da Igreja até o seu tempo. Cabe, porém,

mencionar que as crises sucessivas pelas quais o corpo de doutrinas da tradição

eclesiástica conciliar passou interfere, também, no corpo de doutrinas calvinistas.

E o fato da doutrina calvinista ser encadeada faz com que o corpo de doutrinas

esteja comprometido, e torna obrigatória a atualização segundo conceitos

filosóficos e leituras assumidas hodiernamente e que eram desconhecidas de

Calvino.

637 Essas informações sobre Serveto são encontradas em sua obra Christianismi Restitutio (Vienne,1553), 621-622 (citada por Friedman, Ibid., 227-228).638 Institutas, livro II, 16, 8-12.639 Later Writings of Bishop Hooper, Together with his Letters and Other Pieces, ed. CharlesNevinson, Parker Society nº 21 (Cambridge: Cambridge University Press, 1852), 30.

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Cabe também perceber que a afirmação destas doutrinas tradicionais, com

suas atualizações e aplicações, ainda padecem da análise particular de Calvino de

Jesus como Mediador e as implicações disto. Isso se vê pela análise da obra de

Cristo.

3.3.3A Obra de Cristo

Para o reformador, mais importante que conhecer a essência de Cristo, é

conhecer com que propósito Ele foi enviado pelo Pai. Calvino explicou a obra de

Cristo em conexão com a sua idéia de ofícios, e o faz a partir da Escritura. Faz-se

necessário falar sobre o tríplice papel de Cristo – o munus triplex Christi640 – de

profeta, sacerdote e rei,641 no qual o elemento fundamental dessa conceituação

está no fato de que Jesus Cristo personifica, em Sua pessoa, as três grandes

funções do AT. Provavelmente Calvino extraiu esta doutrina de Martin Bucer, de

Estrasburgo, onde passou o período entre sua primeira e segunda jornada na

condução da Igreja de Genebra.642

Desta forma, a base pela qual a fé encontra uma base firme para a salvação

em Cristo, e para ter segurança em si, é o princípio que não pode ser desprezado:

os ofícios recebidos por Cristo, pelo Pai, consiste em três. Para ele foram dados os

ofícios de profeta, sacerdote e rei.643

Como profeta, Ele ofereceu perfeito testemunho da oferta da graça de Deus

ao homem. Ele foi ungido pelo Espírito para ser arauto e testemunha da graça de

Deus, fazendo-o através do seu ministério de ensino e pregação. Foi o mestre fiel,

que exerceu Seu ministério com autoridade e sabedoria divinas.

640 Sobre os três ofícios assumidos por Cristo, consultar JANSEN, J.F. Calvin’s Doctrine of theWork of Christ. Nesta obra, Jansen apresenta as fontes que Calvino utilizou para a concepção dasua doutrina (pp. 20-38). Ele afirma que o ofício profético de Cristo apresenta, em Calvino,particular destaque. Nos trabalhos típicos de teologia Reformada, a estrutura de três ofícios émantida. Cf. HEPPE, R. D., pp. 452-487; HODGE, C., Systematic Theology, II. 459-609;CUNNINGHAM, W., Historical Theology II, 238; MORRIS, E. D., Theology of the WestminsterSymbols, pp. 322-343; Confissão de Fé de Westminster, VIII; Catecismo Maior de Westminster,43-45; Breve Catecismo de Westminster 24-26; TORRANCE, T. F., The School of Faith,Introdução, pp. LXXVII-XCV, CIII.641 Institutas, livro II, pp. 261,262.642 Cf. Bucer: “Rex regum Christus est, summus sacerdos, et prophetarum caput.” Enarrationes inEvangelia (1536), p. 607. Benoit sugere que Calvino extraiu esta doutrina de Bucer. (BENOIT,Institution II. 267, note 8).643 Institutas, livro II, 15,1.

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Sobre o ofício de profeta, Calvino aplica a doutrina, afirmando a

necessidade dos crentes a aceitarem, e aceitar a doutrina é aceitar a Palavra de

Cristo. Calvino afirma:

Esta é uma grande verdade, porque não há lei queimpeça a simplicidade do evangelho. E a dignidadeprofética, em Cristo, está em nós conhecermos o sumo deSua doutrina como Ele nos deu e aceitemos todas aspartes, tendo uma perfeita visão do seu conteúdo.644

Como rei, Ele inaugurou a chegada do Reino de Deus (Mc 1.14,15), de

perspectivas espirituais e não materiais, com dimensão escatológica.645 Na

qualidade de Rei, Cristo atua como o vice-regente do Pai no governo do mundo;

um dia, Sua vitória e senhorio se manifestarão plenamente. Enquanto não se

manifesta escatologicamente, o reinado de Jesus torna-se realidade sobre aqueles

que, tocados pela graça, pela ação do Espírito Santo, disponibilizam o coração

para crer em Jesus Cristo, recebendo-O como Senhor e Salvador. Cabe aqui dizer

que Calvino declara que o domínio do Reino de Deus, inaugurado por Jesus

Cristo, também se estende sobre os maus.646

A implicação direta do fato de Jesus Cristo ser rei é a certeza que os seus

devem ter do Seu cuidado, que está manifesto no fato dEle, após a ressurreição,

ter subido à destra do Pai. De lá, Ele rege e governa a vida dos que são Seus, que

não devem se preocupar, porque sempre estarão debaixo do seu cuidado. Calvino

afirma:

Por isto é necessário que nós passemospacientemente por esta vida pela miséria, frio, contenção,reprovações e outras tribulações – contentes com umaúnica coisa. Que o Rei nunca largará ou destituirá osseus, mas providenciará sempre o que necessitamos,nossas angústias tem fim, nós somos tomados de júbilo.Tal é a natureza de sua lei, que Ele parte de todos nós e érecebido pelo Pai. E, a partir disto, Ele ocupa os seus comseu poder, adornos de Sua beleza e magnificência [...].647

644 Institutas, livro II, 15,2.645 Institutas, livro II, pp. 262-265.646 Institutas, livro II, pp. 265,266.647 Institutas, livro II, 15, 4.

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Como sacerdote, tornou-se Ele mesmo em oferta sacrificial, através de Sua

morte, a fim de realizar a redenção humana.648 Como sacrifício vivo oferecido a

Deus, agora todos podem apresentar-se diante do Criador como sacrifício vivo e

aceitável.649 Em seu ofício sacerdotal, Ele é Mediador puro e imaculado que

aplacou a ira de Deus e fez perfeita satisfação pelos pecados humanos.

Agora nós vamos falar brevemente sobre opropósito e função do ofício sacerdotal de Cristo: comoum puro e resplandecente Mediador, Ele provêsantificação e reconciliação com Deus. Mas Deusjustamente bloqueia nosso acesso a si, e Deus, em Suacapacidade de julgar, está irado conosco. Daqui, umaexpiação representa a expiação provida por Cristo comosacerdote, que obtém para nós o favor de Deus e o acessoa Ele.650

A implicação do ofício sacerdotal é a manifestação de confiança requerida

pelo crente que, diante de tal ato da misericórdia de Deus para si, deve devotar sua

vida a Deus e agir com confiança no mundo. Percebe-se que a concepção

calvinista de ofícios abre espaço para a vida destituída de temores inerentes à

relação com Deus, sendo estas concepções geradoras de confiança e devoção.

Além dos ofícios, a obra de Cristo é entendida sob o referencial de pietas

para Calvino. No primeiro Catecismo de Calvino (publicado em francês, em 1537,

e, em latim, em 1538), João Calvino definiu a palavra pietas, intraduzível em seu

sentido pleno, como um símbolo taquigráfico para a compreensão e prática da fé

cristã sob o paradigma crístico. Calvino afirma:

Verdadeira devoção não consiste no temor dequem, de boa vontade, realmente foge do julgamento deDeus, o qual, por não podermos fugir, gera pavor. Averdadeira devoção consiste bastante em um sentimentosincero de quem ama Deus como Pai, por isso, o teme eo reverencia como Deus, abraça a sua retidão e evitaaquilo que o ofende. E quem não esteve dotado com estadesafiante devoção acaba por se precipitar em toda sortede ofensas a Deus. Os piedosos buscam o conhecimentodo verdadeiro Deus e o concebem da mesma maneiraque Ele, de fato, mostra-se e declara ser.651

648 Institutas, livro II, pp. 267,268.649 Institutas, livro II, cap. 15.650 Institutas, livro II, 15, 5, 6.651 Catecismo de Genebra. (Pittsburgh: Pittsburgh Theological Seminary, 1972), p. 2.

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Calvino afirma, mais sucintamente, sobre piedade nas Institutas como

"aquela reverência unida com carinho a Deus, que o conhecimento dos benefícios

dEle induz."652 Ao lado de pietas, ele apresenta a religio, que é a "fé unida com

sério temor de Deus, de forma que este medo abraça a reverência e leva, com isto,

a adoração legítima como é prescrita na lei."653 Notam-se, nestas definições de

pietas e religio, várias outras condições básicas, que são: fé, medo, reverência,

amor, conhecimento.

O conceito ainda é tratado em muitas referências que se espalham pelos

comentários e outros escritos. No Comentário, Salmos (1l9:78f.), Ele ensinou que

pietas traz duas marcas nos crentes: (1) honra, pois a obediência faz o crente se

aproximar do Pai; (2) temor, ao executar o serviço requerido por Deus.654 Distinto

disto, é o medo do incrédulo, que não descansa na fé (fides), mas permanece em

incredulidade (diffidentia).655 O conhecimento também está inserido no conceito

de pietas. No Comentário de Jeremias (10:25), Calvino afirma que o

conhecimento de Deus (cognitio Dei) é o início de pietas. Ao chamar pelo nome

de Deus (invocatio), o fruto do conhecimento de Deus é evidência de pietas.656

Nas Institutas, Calvino falou que o primeiro passo para pietas é "saber que Deus é

um Pai para nós."657 Em outro lugar, afirmou que não há nenhuma piedade sem a

verdadeira instrução, como o termo discípulos indica.658 A "verdadeira religião e

adoração de Deus," ele disse, é aquilo que “surge a partir da fé, de forma que

ninguém que propriamente serve a Deus exceto aquele que foi educado na escola

do Senhor."659

Esta pietas, em suas manifestações, tem em Jesus seu paradigma, sendo um

conceito inicialmente cristológico. A compreensão do reformador parte da idéia

de que, se a natureza humana de Jesus é idêntica àquela que os seres humanos

carregam, uma vez resgatados, estes podem manifestar as obras crísticas em si,

manifestando, assim, seu compromisso com Deus. E Jesus passa a ser padrão

também de outras concepções que constituem exigências éticas.

652 Institutas, livro II, 1.2.1.653 Institutas, livro II, 1.2.2.654 OC, 32: 249; cf. Institutas, livro III. 2.26.655 Institutas, livro III, 3.2.27.656 OC, 38:96.657 Institutas, livro II, 6.4.658 Comentário Sobre Atos (Atos 18:22), em OC, 48:435.659 Comentário sobre Salmos (sobre o Salmo 119:781.), em OC, 32:249.

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Entre estas, há duas que tem particular destaque: devoção e amor (caritas).

Nas preleções, em Ezequiel (18,5), ele falou de pietas como a raiz da caritas.660

Pietas significa o medo ou reverência a Deus (Salmo 16,10). Esta referência à

nossa atitude reverente para com Deus e nossa atitude para com os outros é

desenvolvida, mais adiante, em um sermão sobre Deuteronômio 5,16. Na verdade,

o crente deve ser dotado de piedade sob o referencial de Jesus, que manifestou a

verdadeira piedade.

Calvino observa que Deus poderia resgatar os seres humanos de outra

maneira, mas quis fazê-lo através do seu Filho. Ele dá ênfase não tanto à justiça de

Deus, mas à Sua ira e amor, ambas ilustradas na obra de Cristo. Não somente a

morte de Cristo tem efeito redentor, mas toda a Sua vida, ensinos, milagres e Sua

contínua intercessão nos céus, à destra do Pai. A obra expiatória de Cristo tem

também um aspecto subjetivo, pelo qual somos chamados a uma vida de

obediência.

Para Calvino, toda relação entre Deus e o homem passa pelo paradigma da

encarnação. Na verdade, a questão central no pensamento teológico de Calvino

era cristológico. Jesus Cristo era central em sua teologia. Ou seja, o único

paradigma normativo sobre o qual se estabelece toda a relação de Deus com a

humanidade é a pessoa de Jesus Cristo. É na união, sem qualquer perspectiva de

fusão, “da divindade e da humanidade de Jesus Cristo”,661 que o homem é

chamado a se relacionar com o Criador. Nesse sentido, toda ética da relação, seja

com Deus, consigo mesmo, com o próximo e com a criação, passa,

indubitavelmente, pelo paradigma cristológico.

Através de sua encarnação, vida, ministério, morte e ressurreição é que o

homem encontra sua libertação, alcançando uma nova humanidade. Para Calvino,

o conhecimento de Deus focaliza-se única e exclusivamente em Jesus Cristo.662

660 OC, 40:426.661 MCGRATH, Alister, op. cit., p. 175.662 Institutas, livro I, pp. 83-88.

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Como já discutimos no item anterior, sobre a antropologia de Calvino, a

imagem de Deus, no ser humano, tem seu ponto central no estabelecimento de

uma relação, em primeiro lugar, de Deus com o homem e, este, com o seu criador.

Tal relacionamento se estende ainda do homem consigo mesmo, com o seu

semelhante e com a criação. No entanto, na teologia bíblico-calvinista, após a

queda do homem, que gerou a ruptura deste com o seu Criador e todas as

deformidades decorrentes em sua natureza, como já vimos sobejamente, o

paradigma central para a restauração da imagem de Deus, no homem, é Jesus

Cristo, desde a encarnação, vida, morte, ressurreição, ascensão e parusia,

incluindo aí, certamente, Sua divindade e Sua humanidade, coexistindo na mesma

e única pessoa.

Portanto, Calvino enfatiza a distinção entre as duas pessoas – divina e

humana – em Jesus, mas não abre mão da unidade. Logo, toda relação de Deus

com o ser humano, o paradigma da encarnação não só lança luz, mas também

tangencia esse relacionamento. Portanto, Jesus Cristo é o centro – único mediador

– dessa nova relação do homem com Deus, como oferta do próprio Deus, sendo,

então, expressão absoluta do Seu amor ao homem, outorgando-lhe comunhão não

apenas com Ele, mas agora, na relação consigo mesmo, com o próximo e com

toda a criação. Digna de anotação é a percepção de que a ética da relação passa

indubitavelmente pelo paradigma cristológico, o que veremos no último capítulo.

A partir daí, Calvino vai tratar da questão daquilo que chamamos de

revelação especial de Deus, que se dá através das Escrituras. “O conhecimento de

Deus, o qual é claramente revelado na ordem do universo e em todas as criaturas,

é explicitado, de forma ainda mais clara e familiar, através da Palavra”.663 Dessa

forma, o homem toma conhecimento das intenções e ações redentoras de Deus na

história, tendo seu ápice no Logos Deus – Palavra – encarnado, incluindo sua

vida, morte e ressurreição.664 Ora, concluímos, então, que, para Calvino, o centro

da revelação é Jesus Cristo, através de quem nosso conhecimento de Deus agora é

mediado.665

663 Institutas, livro I, p. 111.664 Institutas, livro I, pp. 84-86.665 Institutas, livro I, p. 83.

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“As Escrituras tornam-se, portanto, indispensáveis para o conhecimento de

Jesus Cristo como expressão redentora de Deus ao homem, mas certamente tal

conhecimento escriturístico só alcançará sua eficácia pela inspiração e iluminação

do Espírito Santo”, afirma Calvino.666 No entanto, para o reformador, as

Escrituras não são verba Dei, mas sim o verbum Dei.667 Logo, a criação estabelece

apenas pontos importantes de contato para o conhecimento de Deus, mas são

apenas parciais, opacos, difusos, incapazes. Só e exclusivamente através de Jesus

Cristo, Deus pode ser plenamente conhecido, e Jesus Cristo, através da revelação

escriturística. Para Calvino, as Escrituras do AT e do NT revelam a ação redentora

de Deus na pessoa de Jesus Cristo, sendo o último a expressão mais clarividente

do mesmo pacto da graça.

Na verdade, a compreensão de Calvino sobre o conhecimento de Deus e do

pecado do homem revela os elementos fundamentais de sua cristologia, tendo

Jesus Cristo como único, exclusivo e universal salvador e mediador entre o Pai e o

homem. Para tal, constata-se a primordial necessidade de que Jesus Cristo fosse

divino e humano.668 Deus veio até nós, posto que era e é impossível que nos

voltemos para Deus, face ao pecado que contaminou nossa natureza. Calvino

afirma:

O Filho de Deus tornou-se o Filho do Homem,recebendo o que é nosso, de tal forma que transferiu paranós o que era Seu, fazendo com que aquilo que pornatureza Lhe pertence se torne nosso, por meio dagraça.669

666 Institutas, livro I, pp. 88,89.667 Significa dizer que as Escrituras representam o registro da Palavra, mas elas não são a própriaPalavra. Temos, aqui, um certo paralelo com a encarnação, no qual o divino e o humanocoexistem, sem qualquer comprometimento ou aniquilamento de um em relação ao outro. Ou seja,as Escrituras evidenciam a palavra de Deus, plasmada na linguagem humana, sobre a qual repousatoda a autoridade divina, face à sua própria origem que é inspirada pelo Espírito Santo.668 Institutas, livro II, pp. 230,231.669 Institutas, livro II, pp. 230, 231.

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Calvino diz, então, que o ato original de desobediência do ser humano

precisava ser substituído por um ato de obediência humana, o que aconteceu

através de Jesus Cristo. Ou seja, através de sua obediência a Deus, como um

verdadeiro ser humano, sem pecado, Jesus Cristo ofereceu ao Pai um sacrifício

tal, cumprindo toda Escritura do AT, que redimiu todo o pecado, outorgando ao

homem, novamente, o caminho da liberdade, fruto da libertação alcançada na cruz

e na ressurreição.670 Por sua morte, Ele pagou a dívida do pecado; por sua

ressurreição, Ele libertou o homem dos grilhões da morte.

A partir deste procedimento de Jesus, que acaba por satisfazer a lei, os seres

humanos passam a ser salvos por Ele. Porém, num segundo plano, está a idéia de

que, à semelhança de Cristo, é necessário viver em obediência. A questão da

liberdade está necessariamente diante desta outra questão fundamental em

Calvino: a liberdade não pode ser livre, irrestrita e irresponsável, já que esta é

conseqüência do viver à semelhança da vida de Jesus.

3.3.4A Cristologia Calvinista e a Liberdade

A cristologia calvinista apresenta, em primeiro lugar, a tensão entre a

sujeição e a liberdade em relação à tradição da Igreja. Calvino segue a tradição

eclesiástica, reafirmando, praticamente, todos os dogmas contidos nela,

manifestando ortodoxia e conhecimento teológico. Porém, Calvino não se

restringe a isto: ele atualiza os conceitos através da aplicação dos mesmos à vida.

Esta dimensão prática constitui o segredo para a proliferação da doutrina

calvinista na Europa, e a promoção da liberdade nos Estados em que se instalou.

A cristologia, por não ser meramente especulativa, mas ter uma forte marca

prática, constituiu uma maneira de conceder segurança e liberdade pelo avanço da

idéia de desapego e despreocupação com a ordem (ou desordem) vigente, diante

dos cuidados do Cristo exaltado. Porém, isto não significa alienação: justamente

para se inserir no mundo com ofícios que manifestem a glória de Deus é que os

calvinistas se tornam parte fundamental da sociedade para o estabelecimento de

uma ética social justa, consciente e dependente de Deus.

670 Institutas, livro II, p. 232.

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Porém, Calvino apresenta diferenças, chegando até a oposições entre eleitos

e réprobos. Neste sentido, a opção de Calvino tem certo teor maniqueu, inclusive

em sua estrutura: ele opta pela oposição, e não pela complementação entre estes,

sendo os réprobos destituídos de relação com Cristo no sentido positivo de seus

ofícios. Esta oposição e reserva de todos os aspectos laudatórios na relação com

os réprobos manifesta o conjunto reificado de fenômenos, que interferiram na

concepção do reformador no tocante às outras esferas vivenciais, inclusive nas

que não são necessariamente religiosas.

Em Calvino, percebe-se, quando este trata dos réprobos, que há uma

tendência de inumanização, de afastamento do homem de si mesmo, a partir da

idéia de obediência com fundamento cristológico. E isto, associado com uma

concepção soteriológica determinista, acaba por perfazer o cerne da questão da

liberdade cristã numa perspectiva cristológica: esta liberdade envolve a

despersonalização do ser humano, já que ele deve se tornar à semelhança de Jesus,

que é Deus.671

Porém, cabe ressaltar que o ponto de partida de Calvino dentro da sua

cristologia é a humanidade de Jesus. Ele o faz em vista da necessidade do ser

humano de ser salvo e de ter o exemplo de Jesus para a sua conduta. A

soteriologia de Calvino e a cristologia se ligam de forma mais íntima nesse ponto.

E ambos manifestam particular relevância para a doutrina da liberdade cristã. O

ser humano pode assumir a sua humanidade, pois Cristo assumiu a humanidade e

a dignificou. O ser humano pode estar sujeito às adversidades porque, pelos

ofícios, Cristo garante provisão e cuidado ao crente.

O ser humano pode assumir sua vocação e seu ofício, porque poderá contar

com o Cristo exaltado, cuja ação está além do próprio corpo e alcança o

necessitado.

Neste escopo é que Calvino afirma ter Jesus três ofícios: profeta, sacerdote e

rei, nos quais se ligam o AT e o NT. E cada um deles adquire relevância

fundamental dentro da questão. As implicações de cada ofício são manifestações

de implicações de liberdade.

671 GABEL, J. Sociología de la alienació. Amorrortu, Buenos Aires, 1973, p. 183.

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226

A implicação do ofício de profeta, exercido por Jesus, na doutrina da

liberdade cristã, foi a afirmação de que, no exercício deste ofício, Jesus expôs as

doutrinas da graça e cumpriu a lei para fornecê-la aos santos. A liberdade do

crente está em poder ouvir e aprender estas doutrinas sem a obrigação do

cumprimento da lei para obter a sua salvação.672

O tolher da liberdade de aprender começa a ser demolido nesta concepção

calvinista, pois a idéia de Calvino sobre Cristo, como profeta, constitui a garantia

de apreensão da vontade de Deus independente da nossa condição como

receptores. Porém não se deve entender ser o homem e a mulher passivos neste

processo, pois estes agem recebendo os benefícios da comunhão com Cristo.

A implicação direta do ofício de Jesus como Rei, na doutrina da liberdade

cristã, é que o Seu reino se estabelece, em primeiro lugar, entre os crentes. Desta

forma, a liberdade surge a partir da crença neste reino, a partir do dirimir de

“qualquer dúvida de que o Deus de promessas será, pelas mãos de seu Filho, o

regulador e o defensor eternal da Igreja."673 Ser protegido por Deus, através de

Jesus, possibilita ao crente inserir-se no mundo sem os medos das forças opostas a

Deus, cridas no período medieval. Não há necessidade de atos honoríficos e

autojustificatórios para obter a graça da proteção: basta estar em Cristo.674

A proteção em Cristo abrange todas as áreas da vida. Afirmar isto

corresponde a dizer que não é preciso temer qualquer coisa durante o exercício de

qualquer ação em qualquer condição. A certeza do cuidado e proteção, ou da

soberania de Deus em permitir o mal – que é controlado pela soberania divina – é

a garantia de liberdade no exercício da missão, da vocação, do ofício.

A implicação direta do ofício de sacerdote na doutrina de Calvino, para a

questão analisada da liberdade cristã, está vinculada ao fato de que Jesus é um

Mediador perfeito, sendo o caminho para chegar até à vontade de Deus, porém

não contra a própria vontade. O ímpeto de buscar a Jesus como sacerdote implica

a idéia dEle desejar fazer as pessoas que O buscam livres para encontrar a Deus,

sem mediação de sacerdotes ou outros mediadores humanos. O calvinismo

promove a democratização do acesso à divindade.675

672 CONNER, W. T., Doctrina Cristiana, p. 22.673 Institutas, livro II, 13, p. 121.674 CONNER, W. T., Doctrina Cristiana, op. cit., p. 72.675 Institutas, livro III, 2, p. 25.

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Esta democratização do acesso a Deus possibilita a emergência de uma

Igreja feita de pessoas autônomas, mas que se submetem por ato livre, e não por

coação, nem pelo tolhimento da liberdade. O cerceamento não é eficaz, quando a

dimensão vivencial interior é tratado e, mesmo assim, sob o leve fardo da

compreensão de ser Jesus sacerdote, Aquele que compreende fraquezas humanas,

porque se fez homem.

Por fim, a idéia de piedade exposta por Calvino leva o crente a entender ser

necessária a adoção de um padrão de conduta. A piedade não é íntima, mas é uma

postura do crente no mundo – isto o faz, para ser coerente, sujeitar-se aos valores

cristãos professados, pois eles são as fontes e as expressões da piedade cristã.

Nisto há o restringir da liberdade diante da necessidade de manutenção da

confissão religiosa. Calvino entende ser a piedade o veículo que possibilita a

liberdade por ser uma série de restrições sociais que impedem que os cristãos

sujeitem uns aos outros à escravidão. Percebe-se, portanto, que a restrição à

liberdade objetiva a solidificação desta. A liberdade calvinista é uma liberdade

calcada em valores expostos no escopo de sua doutrina.676

3.4A Soteriologia de Calvino e a Liberdade Cristã dela decorrente

Finalmente, nosso propósito é abordar a questão soteriológica, evidenciando

a visão calvinista sobre único e universal paradigma salvífico, que é a ação de

Deus na história, promovendo a salvação do homem por meio de seu Filho, Jesus

Cristo. Buscaremos, a partir de sua visão soteriológica, em que tal paradigma

promove a liberdade na vida do homem.

676 Institutas, livro III, 2, p. 26.

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3.4.1Lei e Evangelho

A partir da queda, o ser homem foi marcado pelo pecado e,

conseqüentemente, pela ruptura com seu Criador. Mas, paradoxalmente, Calvino

percebe que toda a existência humana é tangenciada pela ação de Deus. Ao

homem foi permitido, desde então, conhecer o misterioso e maravilhoso plano

redentor de Deus, na pessoa de Jesus Cristo, seu unigênito Filho. O desenrolar

desse propósito divino aparece na própria consciência humana, o que conhecemos

como lei natural, e estendeu-se pelas alianças estabelecidas com Noé, os patriarcas

e o povo de Israel.677 Através das promessas promulgadas e, tendo a Lei, como

prefiguração da chegada do Messias.678 Sobre essa linha de pensamento, Calvino

afirma:

E a fim de ainda mais os confirmar, de todas asformas, na longa expectação deste Messias, Deus lhesoutorgou Sua lei escrita, na qual se compreendiammuitas cerimônias, purificações e sacrifícios, coisas quenão eram, senão figuras e sombras das grandes benessesa virem por Cristo, que, só, lhes era o corpo e a verdade,pois que a Lei não podia levar ninguém à perfeição, massomente indicava e, como um pedagogo, dirigia econduzia a Cristo, que (como diz São Paulo) lhes era ofim e o cumprimento. Quando, porém, veio a plenitudedo tempo, e o termo pré-ordenado de Deus venceu,apareceu este grande Messias tão prometido e tãoesperado e levou a cabo e cumpriu tudo o que eranecessário para nossa redenção e salvação. E foi Eledado não somente aos israelitas, mas a todos os homens,de todas as raças e regiões, a fim de que a naturezahumana fosse por Ele reconciliada com Deus.679

677 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op.cit., p.272.678 Ibidem, p.272.679 CALVINO, João. Prefácio do Novo Testamento, em Obras Escolhidas, p. 190; OC, tomo IX,p. 801. Apud BIÉLER, André, op. cit., p. 272.

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A partir dessa citação de Calvino, constatamos que “Lei e Evangelho são

verdades que se harmonizam em toda a Escritura.”680 “Há uma linha de unidade e

continuidade entre AT e NT”, afirma o reformador.681 Na verdade, mesmo no AT,

a fé savífica está centralizada em Cristo, o mediador da nova aliança.682 Ou seja,

“os sacrifícios da Lei ensinavam claramente que a salvação seria pela expiação

completa do sacrifício de Cristo”.683 A ação de Deus, na História, sempre fora

soteriológica, mesmo na antiga dispensação. Vejamos as palavras do reformador:

Sem dúvida que, depois da queda do primeirohomem, nenhum conhecimento de Deus valeu para asalvação sem o Mediador, pois que Cristo, quando dizque a vida eterna é esta: conhecer ao Pai (como) o únicoDeus verdadeiro e a Jesus Cristo, a Quem Ele enviou (Jo17.3), fala não apenas de Seu tempo, pelo contrário,compreende a todos os séculos.684

A relação entre a Lei e o Evangelho, que Calvino estabelece, não é de

antagonismo, mas de convergência soteriológica,685 sendo, portanto, uma relação

de continuidade,686 na qual o foco maior é seu conteúdo salvífico na pessoa de

Jesus Cristo. Daí a fundamental importância do conhecimento da vontade de Deus

mediante a manifestação de sua graça. Para o reformador a lei possui abrangência

na vida humana, podendo afetar todas as áreas de sua existência. Significa dizer

que sua visão sobre a Lei ultrapassa a mera concepção dos Dez Mandamentos,

mas ele a vê como um modus vivendi integral dado por Deus ao homem.687 Na

verdade, toda a Palavra de Deus é fonte da verdade cristã, posto que “a Escritura é

a escola do Espírito Santo, na qual, já que nada que é necessário e útil ao

conhecimento é omitido, também nada é ensinado que não se precise saber.”688

680 ANDRADE, Eugênio. Liberdade Cristã, op. cit., p. 65.681 As Institutas, livro II, cap. 10.682 Institutas, livro II, cap. 6, seção 2 e 3.683 FERREIRA, Castro., op.cit., p. 270.684 Institutas, livro II, cap. 6, seção 1.685 Institutas, livro II, cap. 7, seção 1.686 GONZALEZ, J. L. Uma História do Pensamento Cristão, op. cit., p. 152.687 Institutas, livro II, cap. 7, seção 1.688 Institutas, livro IV, cap. 20, seção 3. “Para Calvino, o valor da Lei está diretamente ligado à suaautenticidade. Ele declara, explicitamente, que Deus é o Legislador, ou o Autor da Lei. Oreformador francês atribui caráter divino às Escrituras; e o único motivo para isto é que ele asconcebe como Palavra de Deus. Ele compara a Lei a um espelho que revela os nossos pecados e ajustiça manifesta de Deus, cobrando toda a nossa consagração a Ele. Por este motivo, ela tem tantaautoridade.” Cf. ANDRADE, Eugênio. Liberdade Cristã. 2005, p 24.

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Calvino faz uso da Lei numa tríplice perspectiva, sendo a primeira delas

evidenciar a perfeita justiça de Deus, na qual o pecado e toda a miserável

condição humana são percebidos. Ou seja, a Lei desmascara toda e qualquer auto-

afirmação humana, pois, diante das exigências do Eterno, o homem percebe suas

limitações. A Lei de Deus, originalmente, não tem o propósito de que o homem

alcance a salvação pelo seu esforço, mas nos aponta a necessidade da graça e da

misericórdia de Deus.689

Na visão de Calvino, há uma segunda perspectiva da lei, que se traduz no

cerceamento da ação do perverso690, sem qualquer intenção soteriológica, mas

fundamental à ordem social.

Uma derradeira perspectiva da lei – tertium usus legis – é evidenciar a clara

vontade de Deus para aqueles que crêem.691 Sendo assim, o peso da lei ou sua

maldição, foi completamente abolido na pessoa de Jesus Cristo, mas o seu

conteúdo revelacional da vontade de Deus permanece. Aqui há um forte ataque

aos antinominalistas. “Na verdade, a lei não pode ser abolida, pois ela expressa a

vontade de Deus, que nunca muda. O que foi abolido, além da maldição da lei

moral, é a lei cerimonial.”692

3.4.2Soteriologia e Cristologia

Em decorrência do colossal rompimento entre o homem e Deus,

ocasionando ao homem a perda de sua retidão, santidade e, conseqüentemente,

sua liberdade, fruto de seu pecado, este se tornou incapaz, a partir de seu novo

estado, de conhecer a vontade de Deus e conduzir sua vida com dignidade moral.

Com a perda de tantos diferenciais em relação ao restante da criação, o abismo

maior, na verdade, foi a perda de seu ethos mais intrínseco, que é sua estreita

relação com o Criador, com o Eterno.

689 Institutas, livro II, cap. 7, seções 6 a 9.690 Institutas, livro II, cap. 7, seções 10 e 11.691 Institutas, livro II, cap. 7, seção 12 e livro II, cap. 8, seções 6 e 7.692 GONZALEZ, J. L. Uma História do Pensamento Cristão, op. cit., p. 150.

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Tal fosso existencial, com repercussões morais, relacionais e espirituais, o

distanciou cada vez mais de Deus, de si mesmo, do próximo e da própria criação.

Somente por iniciativa de Deus, numa ação completamente extrínseca, é que o

homem poderia recuperar sua condição original.

Assim, segundo a perspectiva do reformador, “ainda que o homem esteja

corrompido, o Criador celestial, não obstante, sempre tem diante de Si o propósito

de Sua criação”.693 Significa afirmar que o Eterno Deus estabeleceu, em sua

soberana graça e misericórdia, um plano de restauração do homem. O que

equivale dizer que o estado pós-queda do homem não carrega em si a tragédia da

palavra final sobre a história humana. À semelhança do relato da criação, na qual

a terra era sem forma e vazia e o caos fazia parte daquele cenário, o Eterno Deus

haveria de intervir na história humana, a fim de transformar o trágico em

restauração. O pecado não venceria o propósito para o qual Deus criara o

homem.694

Portanto, a solução clara, inquestionável e absolutamente única para a

regeneração do homem e, conseqüentemente, sua libertação de toda forma de

pecado, encontra-se na pessoa de Jesus Cristo, pois “a grandeza da graça

adquirida por Ele é bem mais vasta que a magnitude da condenação em que o

gênero humano foi envolvido pelo primeiro homem”.695 Através do Filho, a

parede de separação existente entre o homem e Deus é destruída, e o milagre da

reconciliação com Deus alcança seu ápice na cruz do calvário, sendo Ele o

redentor e o libertador do homem e de toda a criação.696 Pela mediação de Jesus

Cristo, o homem é resgatado de sua trágica condição, colocado em relação de

comunhão com Deus, consigo mesmo, com o próximo e com a criação. Calvino

declara:

693 CALVIN, John. Commentary on Gênesis, vol 1, about Gn 9.3, disponível em 30 de agosto de2005 em http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.html.694 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., p. 269.695 CALVINO, João. Comentários ao Novo Testamento. Edição francesa de 1561. 4 Volumes.Paris, 1854, comentário de Romanos 5.15.696 Institutas, livro II, cap. 6, seções 1 a 4; cap. 16, seções 1 a 5; cap. 17, seções 1-6.

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Uma vez que, na pessoa de Adão, haja perecidotodo o gênero humano, em verdade, nada nosaproveitaria aquela excelência e nobreza de origem quehavemos rememorado, assim que, antes, ceda a maiorignomínia, até que Deus, Que por obra Sua nãoreconhece a homens poluídos e corrompidos pelopecado, Se mostre Redentor na pessoa de Seu FilhoUnigênito. Portanto, depois que decaímos da vida àmorte, inútil seria todo esse conhecimento de Deus(como) o Criador, de que havemos dissertado, a não serque adviesse também a fé, pondo diante de nós em Cristoa Deus (como) o Pai.697

A cristologia de Calvino tem como ênfase principal o conhecimento de

Cristo como o messias redentor. Em outras palavras, o pressuposto cristológico de

Calvino era a soteriologia crística, tendo Jesus Cristo como verdadeiro Deus e

verdadeiro homem.698 Portanto, sob a condição de ignorância diante de Deus, o

homem precisa receber, pela fé, o dom da regeneração e receber o gracioso

Evangelho de Jesus Cristo. Sobre tal verdade, Calvino afirma o seguinte:

[...] ignoramos as grandes benesses e promessasque Jesus Cristo nos tem feito, a glória e a bem-aventurança que nos há preparado, não sabemos o queDeus nos há ordenado ou proibido, não podemosdiscernir o bem do mal, a luz das trevas, o mandamentode Deus das constituições dos homens. Mas, peloconhecimento do Evangelho nos fazemos filhos de Deus,irmãos de Jesus Cristo, compatriotas dos santos,cidadãos do Reino dos Céus, herdeiros de Deus comJesus Cristo, por Quem os pobres se tornam ricos, osfracos fortes, os tolos sábios, os pecadores justificados,os desolados consolados, os dubitantes seguros, osservos livres.699

697 Institutas, livro II, cap. 6, seção 1.698 Institutas, livro II, caps. 12, 13 e 14.699 CALVINO, João. Prefácio do Novo Testamento In: Obras Escolhidas, p. 195. Cf. OC, tomoIX, p. 807.

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Numa perspectiva de satisfação, Calvino percebe a obra da redenção em

Jesus Cristo como aceitável diante de Deus, visto que, mediante sua completa e

cabal obediência sacrificial, Cristo mereceu ou obteve o perdão de nossos

pecados700, tendo, assim, a justiça e o amor de Deus satisfeitos. “Nessa cruz,

percebemos um triunfo mais do que magnífico triunfo que aos maus está oculto,

pois que nós aí reconhecemos que, apagados estando os pecados, foi o mundo

reconciliado a Deus, a maldição abolida, Satanás derribado”,701 diz Calvino. Logo,

encontramos, na obra redentora de Jesus Cristo, os aspectos da unicidade e

universalidade salvíficas, sendo Cristo o iniciador, sustentador e consumador da

nossa salvação, na qual o ser humano não exerce qualquer influência e, muito

menos, é digno de qualquer mérito. O reformador assim se expressa:

Que espécie de fundamento temos nós em Cristo?Porventura, (um fundamento) que nos foi (apenas) oinício da salvação, para que de nós se seguisse acomplementação? E abriu (Ele) apenas o caminho peloqual houvéssemos [nós] próprios de avançar por nossospróprios recursos? De modo algum, realmente. Como,porém, estabeleceu (Paulo) pouco antes, foi-nos Ele dadopara justiça, quando (assim O) reconhecemos (I Co1.30). Ninguém, portanto, está bem alicerçado em Cristo,senão (aquele) que em (si) próprio tem integral justiça,uma vez que o Apóstolo não diz haver (Cristo) sidoenviado para ajudar-nos a efetuar justiça, mas, aocontrário, que (Ele) Próprio seja a justiça nossa (I Co1.30), com efeito, que “havemos sido nEle eleitos desdea eternidade, antes da formação do mundo”, (não) pornenhum mérito nosso, “mas segundo o propósito dobeneplácito divino” (Ef 1.4,5); que, mediante Sua morte,fomos nós redimidos da condenação da morte e livradosda perdição (Cl 1.14) que nEle havemos sido pelo PaiCeleste adotados por filhos e herdeiros (Rm 8.17; Gl 4.5-7); que fomos a Este reconciliados através de Seu sangue(Rm 5.9,10); que a Ele entregues à guarda, somoseximidos do perigo de perecer e perder (-nos) (Jo 10.28);que a Ele assim enxertados (Rm 11.19), já, de certomodo, somos partícipes da vida eterna, ingressos noReino de Deus mediante esperança.702

700 Institutas, livro II, cap. 17, seção 4.701 CALVINO, João. Comentários ao Novo Testamento sobre João 17.1 Apud BIÉLER, A., pp.350-351.702 Institutas, livro II, cap. 17, seção 4.

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3.4.3Soteriologia e o Espírito Santo

Verifica-se, então, o ato salvífico de Deus, em Cristo, como pura oferta de

Deus ao homem, que acolhe o dom da salvação pela fé, operada de forma eficaz

pelo poder do Espírito Santo. Esta é a única trilha para restauração da

humanidade.703 Calvino diz que, “como o Pai misericordioso nos oferece Seu

Filho mediante a Palavra do Evangelho, também nós, pela fé O abraçamos e O

reconhecemos como dado a nós”.704 Se por um lado o pecado prejudicava todas as

dimensões da vida humana, por outro, a nova vida ofertada ao mesmo, em Cristo,

Jesus reconstrói todo o seu ser.705 Para Calvino, a ação do Espírito Santo, na

regeneração do homem é absolutamente fundamental:

A isto se reduz a síntese (desta matéria): o EspíritoSanto é o elo pelo qual Cristo nos vincula efetivamente aSi. [...] Porque, entretanto, é a fé a principal obra Sua, aela se referem, em grande parte, (as asserções) que, acada passo, ocorrem (nas Escrituras) para expressar-Lheo poder e a operação, porquanto somente através dela(Ele) nos conduz à luz do Evangelho, como João Batistaensina: aos crentes em Cristo foi dado o privilégio deserem filhos de Deus, os quais não hão nascido da carnee do sangue, mas de Deus (Jo 1.12,13), onde, opondoDeus à carne e ao sangue, afirma ser um domsobrenatural que mediante a fé, recebam a Cristo, osquais, de outra sorte, permaneceriam entregues à suaincredulidade.706

Constata-se, portanto, a total dependência do homem diante de Deus, não

sendo este nem autônomo e, muito menos, auto-suficiente para conhecer a

Deus.707 Somente pela ação do Espírito Santo no coração do homem é que este

recebe todos os benefícios da obra redentora de Cristo.

703 Institutas, livro III, cap. 1, seção 34.704 CALVINO, João. Catecismo de 1537, p. 33. Cf. OC, tomo XXII, p. 46.705 Institutas, livro II, cap. 2, seção 9.706 Institutas, livro III, cap. 1, seção 1 e 4.707 Institutas, livro II, cap. 2, seção 18.

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Por isso Paulo afirma que o Espírito é “o espírito de adoção” e também “a

garantia e selo” da nossa bendita herança.708 “Portanto, faz-se necessário uma

intervenção sobrenatural do Espírito Santo para que o homem, de novo, torne-se

verdadeiramente homem e recobre sua natureza autêntica.”709

Para tal, o Espírito Santo gera, no homem, fé e arrependimento, sem os

quais não há imersão do Reino de Deus. 710 Para Calvino, o arrependimento, para

a salvação, nasce da verdadeira fé em Cristo Jesus. Fé e arrependimento estão

intrinsecamente inseparáveis, como duas faces da mesma moeda. O reformador

entende o arrependimento como completa e radical conversão a Deus, na qual o

ser humano parte de onde obteve sua experiência salvífica em direção a Deus,

numa nova realidade de vida.711 Calvino faz a seguinte definição sobre fé:

Agora nós possuiremos uma definição certa da fé,se nós a chamarmos de um conhecimento firme e certoda benevolência de Deus em relação a nós, baseada sobrea verdade da promessa livremente dada em Cristo, tantorevelada às nossas mentes quanto selada em nossoscorações por meio do Espírito Santo.712

3.4.4A Fé, a Graça e a Santificação

O grande teólogo von Allmen afirma que arrependimento e fé têm profundas

imbricações na realidade histórica do homem, ou seja, “o arrependimento implica

na grande mudança, no retorno, na inversão do homem, no seu abandono de sua

realeza e justiça próprias; a fé implica a aceitação e o reconhecimento da realeza

de Deus e de Sua justiça.”713 Portanto, para Calvino, “todo aquele que se encontre

em Jesus Cristo e, por meio da fé, participe como membro de Seu corpo, já está

seguro de sua salvação.”714

708 Institutas, livro III, cap. 1, seção 3.709 BIÉLER, André. op. cit., p. 277.710 VON ALLMEN, J. J. Vocabulário Bíblico. 2a. Edição. São Paulo: ASTE, 1972, p. 358. Anarrativa de Marcos 1.15 confirma tal fato.711 Institutas, livro III, cap. 3, seção 5.712 Institutas, livro III, cap. 2, seção 7.713 VON ALLMEN, J. J. op. cit., p. 358.714 ANDRADE, Eugênio, op. cit., p. 34.

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Há, na fé, uma dimensão cognitiva, embora seja dom de Deus, jamais

conquista do ser humano.715 Assim, para Calvino, fé possui um conteúdo

específico – Jesus Cristo. A fé salvífica fundamenta-se nas Escrituras, na Palavra

de Deus e na consciência de Sua soberana vontade.716 Sua eficácia e realidade

acontecem somente nos corações receptíveis à oferta de Deus, isto é, aos crentes

verdadeiros.717 Em outras palavras, somente pela oferta do dom de Deus, em Jesus

Cristo, através da mensagem do Reino, que os homens podem alcançar a

verdadeira liberdade.718

A graça salvífica só pode ser obtida através da pessoa de Jesus Cristo,

mediante a fé, oferta de Deus ao homem, ou seja, “é mediante a fé que aquele que

crê toma posse desses benefícios”719 soteriológicos. Calvino, então, define a fé

como “um conhecimento estável e específico da vontade divina em relação a nós,

o qual, estando baseado na verdade da graciosa promessa em Cristo é, ao mesmo

tempo, revelado a nossas mentes e selado em nossos corações pelo Espírito

Santo”.720 A fé, como dom de Deus, volta-se para o conhecimento de Sua vontade,

bem como Sua obra aplicada ao coração do homem. Ele mesmo afirma que,

[...] nossa preocupação não é tanto a de descobrirquem é Deus em Si mesmo, mas o que Ele deseja ser, emrelação a nós [...], acreditamos que a fé é umconhecimento da vontade de Deus em relação a nós,alcançado por intermédio de Sua Palavra.721

Ele demonstra, ainda, que o objeto da fé não é a Palavra de Deus

propriamente dita,722 mas a fé está fundamentalmente sustentada em Suas infinitas

promessas de misericórdia. Calvino cria firmemente que a fé de um ser humano se

faz evidente em suas obras.723

715 GONZALEZ, Justo. L. Uma História do Pensamento Cristão, op. cit., p. 156.716 Institutas, livro III, cap. 2, seção 6.717 Institutas, livro III, cap. 2, seção 12.718 VON ALLMEN, J. J. op. cit., p. 358.719 MCGRATH, Alister, op. cit., p. 191. Calvino trata da doutrina da redenção em suas Institutas,no livro III.720 Institutas, livro III, p. 14.721 Institutas, livro III, ii.6722 Institutas, livro III, pp. 12-14.723 “Pelo poder de Deus, somos reduzidos a obedecer à justiça, voluntariamente continuamosseguindo a graça, então, não me oponho, porque é assunto bem esclarecido que onde reina a graçade Deus, há tal prontidão em obedecer” (Institución II, 3.11, p. 211).

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Porém não vinculava a salvação a estas, já que elas apenas refletem a

eleição, mas não são provas incontestes desta. Além disto, enfatizava Calvino que

se regozijava naquilo que chamava de bendita segurança, dada por Deus, ao

predestinar pessoalmente cada um, e este conhecimento gera uma resposta por

parte do eleito, isto é, ele se dispõe a fazer a vontade de Deus. Vejamos suas

próprias palavras:

Uma vez que nem toda palavra, vinda de Deusdesperta o coração humano para a fé, devemos ir além,na busca daquilo que há na Palavra, que está relacionadoà fé. A declaração de Deus a Adão: “você certamentemorrerá”, e a Caim: ‘a voz do sangue de seu irmão clamaa mim desde a terra.’ Estas declarações, contudo, estãomais propensas a atrapalhar a fé, em lugar de consolidá-la! Isso não significa negar que seja legítimo que a féaceite a existência da verdade divina quando quer, o quequer e como quer que Deus possa falar; ao contrário,significa questionar aquilo que a fé encontra na Palavra,sobre a qual possa se apoiar e descansar.724

Tocados pelo evangelho da graça, o homem responde ao chamado de Deus,

pela ação do Espírito, sendo, portanto, justificado e santificado, desembocando,

necessariamente, em uma dinâmica vida cristã, vivendo, agora, para glória de

Deus.725

724 Institutas, livro III, p. 13 Na verdade, a fé está alicerçada na graciosa promessa de misericórdiaem relação aos homens e mulheres, de tal maneira que a fé e o evangelho de Jesus Cristo sejamconsiderados como termos similares. Cf. Institutas, livro III, pp. 37,38.725 McGrath diz que a doutrina da justificação, pela graça mediante a fé, é largamente consideradacomo uma das principais doutrinas da Reforma, sendo, na verdade, a tese pela qual a Igreja sesustenta ou se desmantela. Lutero foi quem mais defendeu tal doutrina, fazendo parte da primeirageração dos reformadores. Cf. McGrath, Luther’s Theology of the Cross (Oxford/Nova York,1985); idem, Iustitia Dei: A History of the Christian Doctrine of Justification (2 vols: Cambridge,1986), vol. 2, pp. 3-20. Ver ainda MCGRATH, Alister, op. cit, p. 192.

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3.4.5A Soteriologia Calvinista e a Liberdade

Quando Calvino trata da liberdade cristã em seu comentário aos Romanos,

especialmente na perícope de Rm 2,14-16, ele afirma que nada nem nenhuma

nação pode estar contrária a tudo quanto é humano, que não esteja circunstanciado

por algumas leis. Em outras palavras, há fragmentos de justiça e retidão no

coração do ser humano, ainda que pecador, com a imagem de Deus em sua vida

manchada. No comentário de Calvino, os gentios possuem em seus corações,

certo senso de discriminação e juízo, resultando, daí, a consciência entre justiça e

injustiça, honestidade e desonestidade. Há, em sua consciência, tal

discernimento.726

Entretanto, Calvino também afirma que, embora os homens tenham

consciência de seu potencial para as boas obras, são afligidos em sua interioridade

quando praticam o mal. Por isso que há um aforismo pagão que diz que a boa

consciência é um grande teatro, e a má consciência é um dos grandes opressores,

atormentando o pecador com fúria feroz.727

Para Calvino, a doutrina da liberdade cristã está intrinsecamente atrelada à

doutrina da justificação, jamais podendo ser suprimida, pois, uma vez

acontecendo, há um sério comprometimento da verdade do Evangelho. Ou seja,

para o reformador, a liberdade cristã é parte e decorrência da doutrina da

justificação.728 O que jamais podemos prescindir é o fato de que a liberdade cristã

não nos absolve da obediência a Deus nem nos lança à licenciosidade. Não é

ausência de “moderação, ordem e discernimento das coisas”.729 Numa linguagem

mais literal de Calvino, a liberdade cristã, como apêndice da doutrina da

justificação, importa contemplar uma reflexão, ainda que resumida, sobre a

mesma, a fim de que nos sirva de pano de fundo para melhor compreensão da

liberdade cristã. Do ponto de vista da consciência, Calvino afirma que a liberdade

possui três estágios.730

726 Romanos, pp. 89-93.727 Romanos, p. 91.728 Institutas, livro III, p. 298.729 Institutas, livro III, p. 298.730 Institutas, livro III, pp. 298-313.

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Em primeiro lugar, a liberdade cristã tem o propósito de libertar o homem do

jugo da Lei, trazendo à consciência cristã o fato de que a doutrina da justificação a

substitui. Dito de outra forma, a liberdade cristã, como resultado da justificação

pela graça mediante a fé é a libertação de todo e qualquer tipo de servidão da

Lei.731 Em outras palavras, a justificação pela graça mediante a fé exclui toda e

qualquer idéia de justiça legal. O que significa que o ser humano nada pode fazer.

Ele não tem condições para pagar sua salvação mediante a lei, pois já está de

posse da graça por meio de Jesus Cristo. Vejamos as próprias palavras do

reformador:

Neste gonzo, resolve-se quase todo o argumentoda epístola aos Gálatas. Ora, insulsos intérpretes serem(os) que ensinam que nela Paulo está a pugnar apenasliberação das cerimônias, das passagens dos arrazoadosse pode provar, quais são estas: “Que Cristo se haja feitomaldição por nós, para que nos redimisse da maldição daLei” (Gl 3.13); igualmente: “Estais firmes na liberdadecom que Cristo vos libertou e não vos enredilheis denovo no jugo de servidão. Eis, eu, Paulo, digo, se voscircuncidais, Cristo nada vos aproveitará. E (aquele) quese circuncida, devedor é da Lei inteira. Cristo se vos háfeito supérfluo, quantos e quaisquer que sois justificadospela Lei; da graça haveis decaído” (Gl 5, 1-4),(passagens) nas quais, certamente, algo mais sublime secontém que a (mera) liberação das cerimônias.732

Ao contrário da Lei, o Evangelho da graça anuncia uma nova vida em Jesus

Cristo, na qual o ser humano encontra verdadeira libertação, resultando em paz,

segurança e vida abundante. Calvino afirma:

731 Institutas, livro III, p. 299.732 Institutas, livro III, p. 3.

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A liberdade cristã, como eu, de fato, sinto, estácontida em três partes. A primeira, que as consciênciasdos fiéis, enquanto (sic) confiança de sua justificaçãodiante de Deus, há de buscar-se e acima da Lei se alceme transladem, e esqueçam toda a justiça da Lei. Ora,como já foi demonstrado em outro lugar, uma vez que aLei a ninguém deixa justo, ou somos excluídos de todaesperança de justificação, ou dela nos importa serlibertados, e, assim, por certo, que nenhumaconsideração de obras de todo se tenha. Ora, (aquele)que pensa que para obter justiça deve trazer ao menosum poucochinho de obras, não pode prefixar (-lhes) amedida ou limite; pelo contrário, constituiu-se devedorda Lei inteira. Portanto, alijada a menção da Lei e postade lado toda cogitação de obras, quando de justificaçãose trata impõem-se abraçar a só misericórdia de Deus e,o olhar desviado de nós, só a Cristo contemplar. Pois, aínão se indaga como sejamos justos, mas, ao contrário,como, embora injustos e indignos, sejamos tidos porjustos, cousa de que, se as consciências querem alcançaralguma certeza, nenhum lugar devem dar à Lei.733

Diante dessa nova realidade, inaugurada por Jesus Cristo, no anúncio do

Reino de Deus, somos constrangidos a abandonar toda justiça da Lei, apegando-

nos unicamente à justiça de Deus. Calvino diz que

[...] uma vez que a Lei a ninguém deixa justo, ousomos excluídos de toda esperança de justificação, oudela nos importa ser libertados, e, assim, por certo que,nenhuma consideração de obra de todo se tenha.734

Significa dizer que, segundo o Evangelho, não há salvação, libertação, e,

conseqüentemente, liberdade, através dos méritos das obras, posto que devemos

fixar-nos única e exclusivamente nas misericórdias de Deus, deixando de olhar

para nós mesmos, e “só a Cristo contemplar”.735

733 Institutas, livro III, p. 299.734 Institutas, livro III, p. 299.735 Ibidem, p. 299. Tal posição, que, em primeiro lugar, tem seu fundamento nos evangelhos,choca-se com o conceito de salvação pós-moderno, no qual a salvação, de modo geral, estácentrada no homem, e não na pessoa e obra redentora de Jesus Cristo. A unicidade e auniversalidade salvíficas de Cristo tornam-se um dos grandes desafios soteriológicos do nossotempo.

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A questão se impõe da seguinte forma: o princípio não é como sejamos

justos, pelo contrário, como conscientes de nossa injustiça e indignidade diante de

Deus, somos por Ele “tidos por justos”,736 certeza que só podemos ter pela força

da fé, nunca pela força da Lei.737

Calvino demonstra enfática e claramente que o tema da libertação da

servidão da Lei é tratado na carta aos Gálatas, onde ali temos a visão paulina

sobre a liberdade cristã, o que veremos mais detalhadamente no terceiro capítulo

de nosso trabalho (Gl 3,13; 5,1-4).

Na verdade, Paulo trata na carta da libertação que ultrapassa os rituais

cerimoniais, visto que “as velhas sombras da Lei foram abolidas pela vinda de

Cristo”.738 Paulo está combatendo as falsas doutrinas que tentam reintroduzir no

seio das Igrejas, por judeus supostamente convertidos, insistindo na ação meritória

das obras da Lei diante de Deus.

Em segundo lugar, a liberdade cristã tem o propósito de libertar o homem da

obediência obrigatória à Lei, pois o Evangelho da graça promove livre e amorosa

obediência à Palavra de Deus. Tal obediência é resposta livre ao amor de Deus,

pois é a força do amor que provoca a decisão de obedecer.739 Calvino insiste no

fato de que, agora justificados em Cristo pela graça, mediante a fé, nossa

obediência a Deus se dá não mais pela força da Lei, mas pela força do amor, da

liberdade de amar, como resposta à ação primeira de Deus em nossa direção.740

Ou seja, não há mais obediência compulsória. Calvino diz:

736 Institutas, livro III, p. 299.737 Institutas, livro III, p. 299.738 Institutas, livro III, p. 299.739 BULTMAN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, op. cit., p. 418.740 Institutas, livro III, pp. 300,301.

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A segunda (função da liberdade cristã), quedepende dessa primeira, (é) que as consciências guardema Lei não como se coagidas pela necessidade da Lei,mas, ao contrário, livres de jugo da própria Lei,obedeçam espontaneamente à vontade de Deus. Pois,visto que vivem em perpétuos terrores por quanto tempoestão sob o domínio da Lei, jamais estarão dotados deálacre prontidão para com a obediência a Deus, a menosque antes brindadas com liberdade desta natureza. Mercêde um exemplo, não só mais sucinta, mas ainda maisperspicuamente, compreenderemos a que fim tendamestas (cousas) preceito é da Lei que “amemos ao nossoDeus de todo o coração, de toda a alma, de todas asforças” (Dt 6.5).741

Tomado pela graça em Jesus Cristo, o cristão não obedece a Deus sob a

pressão da lei, ao contrário, sua obediência segue o caminho da gratuidade, da

voluntariedade, como homem liberto em Cristo Jesus. Nele, não há espaço para

qualquer tipo de obediência por obrigação. A graça exige amor, como resposta ao

amor de Deus. Daí surge a liberdade para servir a Deus e ao próximo. A liberdade

alcançada pela libertação, operada pela obra redentora de Cristo, acontece agora

no campo da reciprocidade amorosa, pelo estabelecimento da comunhão que se

rompera pelo pecado. Em Cristo, somos livres para amar. Amar a Deus, a nós

mesmos, ao próximo e à criação. Perspicuamente haveremos de compreender,

inclusive, o próprio princípio da Lei, que “amemos ao nosso Deus de todo o

coração, de toda a alma, de todas as forças” (Dt 6,5).742 Por isso que André Biéler

afirma:

741 Institutas, livro III, p. 300.742 Institutas, livro III, p. 300.

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A vida em Cristo é, então, a um tempo, libertaçãoe cumprimento da lei. Se não está mais sob o julgo da leimoral, da qual está totalmente liberado, o cristão, longede rejeitá-la, ao contrário, obedece a ela livremente,voluntariamente, e sem qualquer coerção, pois vive comJesus Cristo, que cumpre perfeita e integralmente estalei.743

Em outras palavras, a consciência cristã não precisa submeter-se ao jugo da

lei, de forma obrigatória e compulsória, como já dissemos acima. Sua obediência

nasce da consciência de sua relação gratuita com Deus, fruto de sua graça e da

consciência de que faz parte da aliança com o Senhor. Ou seja, sua obediência é

voluntária, em resposta ao amor de Deus. O desafio da liberdade cristã, na relação

com Deus, é buscar uma intimidade tal, que os desejos e egoísmos, ainda próprios

do ser humano, sejam desalojados do coração, e o caráter de Cristo esteja sendo

forjado em nós, nascendo daí um novo ethos do vital humano744 - segundo o

conceito de Nilo Agostini - visando ao exercício contínuo do amor a Deus.

Ao contrário da obediência servil, a liberdade cristã produz obediência filial.

Logo, relacional, prazerosa, não mais compulsória. Se a nossa relação com Deus

passa a ser paternal, Calvino afirma:

743 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. p. 294. Ver BULTMANN,Rudolf. Teologia do Novo Testamento. p. 415. “Claro está que Cristo é o fim da lei na medida emque a lei tinha a pretensão de ser o caminho da salvação ou na medida em que foi entendida peloser humano como meio para estabelecer a justiça própria. Pois, na medida em que contém aexigência de Deus, ela continua em vigor”. Cf. Robson da Costa de Souza. Vocação paraLiberdade. Uma Reflexão Teológica da Doutrina Cristã Acerca da Libertação. Trabalhomonográfico apresentado no Seminário Teológico Presbiteriano do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.2004. Robson faz parte de um grupo pequeno de alunos que, encorajados por mim, como professorde Ética, tem procurado desenvolver sua linha de pesquisa nessa área não apenas pertinente erelevante, como também escassa no Brasil.744 AGOSTINI, Nilo. Ética Cristã e Desafios Atuais, op. cit., pp. 16-32.

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Os filhos, no entanto, que são tratados pelos paismais generosamente e em moldes mais consentâneoscom as pessoas livres, não vacilam em lhes oferecerobras incompletas e feitas pela metade, até mesmo tendoalgo de imperfeição, confiados em que lhes haverá de seraceitável sua obediência e disposição de ânimo, aindaque hajam feito menos exatamente o que os paisqueriam. Tais filhos nos importam ser, que confiemos,com certeza, que nossos atos de obediência, porinsignificantes que sejam e por mais grosseiros eimperfeitos, haverão de ter sido aprovados pelo PaiIndulgentíssimo, como, aliás, nos confirma através doprofeta: “Poupá-los-ei como um pai costuma poupar aofilho que o serve” (Ml 3.17), onde poupar se evidencia,posto por ser indulgente ou fechar humanamente osolhos para com as faltas, enquanto, ao mesmo tempo,faça menção de serviço. Nem pouco necessária nos é estaconfiança, sem a qual tudo tentaremos em vão, por issoque de nenhuma obra nossa Deus se considera servido, anão ser aquela que, realmente, para seu serviço de nós sefaça. Como, porém, possa isto ser entre essessobressaltos, quando se duvida se, porventura, Deus sejaofendido, ou seja, reverenciado pela nossa obra?745

A liberdade cristã só pode ser compreendida e vivida, por aqueles que

tiveram a experiência, pela fé, com o Cristo ressuscitado, posto que, na dinâmica

da vida cristã, a liberdade anima o indivíduo a praticar o bem, uma vez que não

está mais debaixo da Lei, mas sob a graça (Rm 6,12-14).746

Segundo o Evangelho, a fé em Jesus Cristo implica em obediência a Deus e

no próprio seguimento de Jesus Cristo, em sua humildade e amor. O pressuposto

teológico da obediência é a graça de Deus derramada nos corações dos homens.

Em seu livro Discipulado, Bonhoeffer assevera que

[...] o verdadeiro chamado de Jesus e a resposta emforma de obediência total tem uma relevânciairrevogável. É somente a esta obediência que é dada apromessa da comunhão com Jesus.747

745 Institutas, livro III, pp. 301,302.746 Institutas, livro III, p. 302. Cf. ALLMEN, J. J. Von. Vocabulário bíblico, op. cit., p. 301. Vertambém: BURGE, G. M. “Obediência”. In: Ethic III, p. 37. PACKER, J. I. “Obediência”. In: ONovo Dicionário da Bíblia. Vol. II, p. 1134.747 BONHOEFFER, D. Discipulado, op. cit., p. 36.

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Na relação entre obediência e Lei, Jesus Cristo é aquele que rompe com todo

tipo de casuísmos e legalismos, desafiando homens e mulheres a uma obediência

do coração, capaz de discernir a verdadeira exigência de Deus. A obediência

exigida por Jesus está fundada no amor, concretizada numa ética de atitude,

sendo, portanto, uma obediência reflexiva dos livres, e não submissão absoluta e

cega dos escravos. Com isso, entendemos a superação da Lei na imersão do

mistério da graça, através da experiência com o Cristo ressuscitado, promovendo,

no homem, uma nova consciência, capaz de julgar e agir segundo o Evangelho da

graça.748 Bultman traz uma contribuição significativa quando afirma:

A obediência radical existe somente quando umhomem dá seu assentimento íntimo àquilo que é pedidodele [...]. Quando o homem inteiro está por trás daquiloque faz; ou melhor, quando o homem inteiro está dentrodaquilo que faz, quando não está fazendo algo de modoobediente, mas é essencialmente obediente.749

A liberdade de consciência, produzida pela libertação do Evangelho, conduz

o homem a viver e a agir segundo suas novas convicções, resultado de sua fé em

Cristo. Por isso que, para o apóstolo Paulo, a consciência livre em Cristo é o

espaço para sua reflexão e seu agir éticos. É o lugar da avaliação

comportamental.750 A consciência cristã torna-nos sensíveis de nós mesmos, do

mundo no qual habitamos, do outro com quem nos relacionamos e convivemos, o

que é fundamental em nosso devir. É a partir da percepção dessas realidades que

atestamos que, ainda segundo o apóstolo Paulo, a consciência fraca jamais pode

invalidar a verdadeira obediência à Palavra de Deus, visto que, nas questões

adiáforas, como também afirma Calvino, o parâmetro do agir cristão é a Lei do

amor ao próximo.

Só por isso Paulo deixa valer a forma de vida dos“fracos” que não conseguem se livrar do seu passado enão conseguem, ainda, tirar as conseqüências corretas daconfissão do único Deus e Senhor, portanto ainda nãoenxergam na carne sacrificada aos ídolos, um alimentocomo outro qualquer.751

748 SCHRAGE, Wolfgan. Ética do Novo Testamento. São Leopoldo-RS: Sinodal. 1994, p. 48passim.749 BURGE, G. M. “Obediência”. In: Ethic. Vol. III, pp. 37,38.750 SCHRAGE, Wolfgan. Ética do Novo Testamento, op. cit., p. 199 passim.

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246

Na verdade, tanto Paulo como Calvino falam que o agir cristão, na prática da

liberdade do amor, seja para com os mais fracos ou mais fortes, promove o

crescimento do homem, tornando-o mais adulto, maduro e responsável, em todas

as dimensões. Mais especificamente, na teologia de Calvino, a consciência não se

submete à Lei, posto que sua obediência é livre e voluntária a Deus. Ou seja, a

bondade de Deus reconhece nossa imperfeição, mas aceita nossas atitudes de

obediência.752 Ao comentar Romanos 13,5, ele afirma que:

Não devemos obedecer só porque não podemosresistir aos que se acham amados e são mais poderosos[...]. Ao contrário, devemos voluntariamente aprender asubmissão à qual nossa consciência se acha jungida pelaPalavra de Deus.753

Depreendemos desse comentário que, mesmo a consciência jungida pela

Palavra de Deus, o desafio à obediência não significa um comportamento

incoerente.

Em terceiro lugar, a liberdade cristã tem o propósito de libertar o homem de

tudo que não é proibido nem ordenado, ou seja, ele está livre do uso das coisas

indiferentes, como afirmamos agora pouco. O cristão está livre para agir, sempre

conforme sua consciência libertada pelo Evangelho de Jesus Cristo, sempre dentro

de cada contexto, agarrado aos valores do Evangelho. Em outras palavras, a

liberdade cristã confere à consciência o direito livre de usar as coisas chamadas

adiáforas (indiferentes). O cristão não vive a vida religiosa dominado por qualquer

circunstância que lhe esteja externa ou adiaphora,754 mesmo que a lei ensine a

perceber as verdadeiras obras, mas que não passam de obediência a Deus. Nas

palavras de Calvino podemos ver que,

751 Ibidem, p. 200.752 Institutas, livro III, pp. 298 passim.753 Romanos, p. 454.754 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Volume III. 1989, p. 89.ADIÁFORO é uma linguagem usada na teologia luterana, que quer dizer “indiferente”. Pode serusado desde que não entre em conflito com a centralidade de Cristo. Isto é, referindo-se àscerimônias religiosas, espiritualidade, qualquer costume ou prática que se arraste ao longo dotempo, que não venha a obscurecer a luz de Jesus Cristo nos evangelhos.

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247

[...] ora, porquanto o Senhor, ao ensinar a normada perfeita justiça, sujeitou-lhe todas as partes à suavontade, nisto se indica nada ser-lhe mais agradável que aobediência. Isto é de se observar tanto maisdiligentemente quanto mais propensa é a intemperança damente humana a excogitar, vezes muitas, variadasexpressões cultuais, mercê das quais granjear-lhe as boasgraças. Pois em todos os tempos, esta irreligiosaafectação de religião, por isso que é, de natureza, ínsitana mente humana, se tem manifestado, e ainda hoje semanifesta, porque os homens sempre se comprazemefusivamente em engendrar forma de alcançar justiça àparte da Palavra de Deus. Daí, entre as que se contamcomumente como boas obras, mais reduzido lugar têm ospreceitos da Lei, aquela incontável multidão de(preceitos) humanos ocupando quase todo o espaço.755

Uma consciência livre pelo poder libertador do evangelho, pelo mover do

Espírito, por meio de quem chamamos Deus de Pai (Rm 8, 14-16), pois se trata do

Espírito do Senhor (Rm 8, 11), Ele, o Espírito, há de conduzir-nos a uma vida

com discernimento e leveza, diante das coisas sobre as quais não há regulamentos

tácitos e muito menos fechados.756 Quanto a isso Calvino, declara:

Com efeito, quando uma vez no laço seenredilharam as consciências, entram em um longo einextricável labirinto de onde, ao depois, não fácil semostra a saída. Se alguém haja começado a duvidar se,porventura, lhe seja lícito usar linho nos lençóis,camisas, lenços, guardanapos, nem do cânhamo, aodepois, estará seguro, finalmente, até de estopa incidirádúvida, pois consigo revolverá se possa, porventura,jantar sem guardanapos, se, porventura [possa]prescindir de lenços. Se a alguém houver parecido ilícitoalimento um pouco mais refinado, por fim nem pãoordinário e iguarias comuns comerá tranqüilo diante deDeus, enquanto à mente vem que pode sustentar o corpocom víveres ainda mais baratos. Se em vinho mais suavehaja hesitado, a seguir, nem zurrapa beberá com boa pazde consciência; por fim, nem ousará tocar em água maisdoce e mais limpa que outras. Finalmente, a tal pontovirá, afinal, que, como se diz, julgue ilícito caminhar porsobre uma palha atravessada no (caminho).757

755 Institutas, livro II, p. 05.756 Institutas, livro III, p. 303.757 Institutas, livro III, p. 303.

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Para o reformador, a liberdade cristã é uma realidade espiritual, capaz de

pacificar a consciência do ser humano diante de Deus, seja “quanto à remissão dos

pecados”,758 seja por algum tipo de práticas imperfeitas pela realização de coisas

adiáforas. Ou seja, a liberdade cristã não favorece a prática de qualquer tipo de

ostentação e de luxo, como se fossem práticas de coisas indiferentes.759 Paulo diz:

“Todas as coisas são puras para os puros; todavia, para os impuros e descrentes,

nada é puro. Porque tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas”

(Tt 1,15). Calvino argumenta dizendo que,

[...] certamente que marfim, e ouro, e riquezas, sãocriações boas de Deus permitidas, de fato, destinadaspela providência de Deus, aos usos dos homens. Nem foijamais proibido rir, ou fartar-se, ou adjungir novaspropriedades às antigas e ávitas, ou deleitar-se em umconcerto músico, ou beber vinho. Verdadeiro é isto,certamente. Mas, onde está à mão abundante de coisaspara chafurdar-se em deleites, e neles engurgitar-se, amente e o coração inebriar de prazeres do momento eestar sempre anelante por prazeres novos, estas coisasmuitíssimo distanciadas estão do legítimo uso dos donsde Deus.760

A grande beleza e leveza da liberdade cristã, nesse particular, está tanto no

abster-se quanto no usar ou fazer. Isto é, quando a liberdade é estabelecida diante

de Deus, tendo o entendimento de que nada importa diante dEle, no que tange a

alimentação, vestuário, “é o suficiente, a consciência está liberada”.761

Cometemos erro quando não respeitamos a debilidade ou fraqueza dos irmãos

(Rm 14.1), afirma Calvino.762

758 Institutas, livro III, p. 305.759 Institutas, livro III, p. 305.760 Institutas, livro III, p. 305.761 Ibidem, idem, p. 43.762 Institutas, livro III, p. 307.

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Segundo a teologia de Calvino, a partir do conhecimento da teologia

paulina, a liberdade cristã deve buscar sempre o bem do próximo, sua edificação.

“Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, mas nem

todas edificam. Ninguém busque o seu próprio interesse, e sim o de outrem” (I Co

10, 23,24). Contudo, é mister afirmar, diz o reformador genebrino, “que a

liberdade cristã, conquanto busque o amor ao próximo, não pode ela comprometer

a pureza da fé763, visto que a consciência não pode sujeitar-se a qualquer tipo de

preceitos humanos e, inclusive, suas imposições.”764

Para Calvino, há um grande desafio à liberdade cristã, que é trafegar entre a

dimensão espiritual, que chama de reino espiritual, e a dimensão temporal, que

chama de reino temporal, visto que o homem está sujeito aos dois reinos.765 Ou

seja, há um duplo regime no homem. O primeiro, que é espiritual, conduz a

consciência instruída pela Palavra “à piedade e ao culto de Deus”.766 O segundo,

chamado por Calvino de político, é aquele através do qual “o homem é educado

aos deveres de humanidade e civilidade, que se têm de observar entre os

homens”.767

Tais regimes podem ser chamados também de jurisdição espiritual e

jurisdição temporal. Ao meu ver, reside aqui um dos desafios da liberdade cristã,

qual seja, produzir, na vida cristã, um ser humano não alienado do seu tempo, mas

conectado com as realidades vigentes de sua época e pronto para responder aos

seus mais diversos interlocutores e, ao mesmo tempo, ser um indivíduo cristão

aberto ao transcendente, às questões últimas de sua alma. A dimensão espiritual

ocupa moradia na mente interior, no coração mesmo, já a dimensão temporal

ocupa a moradia exterior, através dos costumes e práticas externas.768 No entanto,

Calvino diz que:

763 Institutas, livro III, p. 309.764 Institutas, livro III, p. 310.765 Institutas, livro III, p. 311.766 Institutas, livro III, p. 311.767 Institutas, livro III, p. 311.768 Institutas, livro III, p. 311.

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Mas, estes dois reinos, como os havemos dividido,devem ser sempre examinados separadamente, um a um,e, enquanto se considera um, importa refocar-se eabstrair-se a mente da cogitação do outro. Pois há nohomem como que dois mundos, aos quais podem presidirnão só reis distintos, mas também leis diversas. Com estadistinção acontecerá que não tragamos, indevidamente, àordem política o que o Evangelho ensina a respeito daliberdade espiritual, como se, no que tange ao regimeexterno, menos sujeitos às leis humanas estivessem oscristãos, porque libertada lhes há sido a consciênciadiante de Deus, como se, por isso, eximidos estivessemde toda servidão da carne pelo fato de que estão livres notocante ao espírito.769

A liberdade oferecida por Deus, na pessoa de Jesus Cristo, e operada na

ação do Espírito Santo no coração do homem, como já dissemos, torna a pessoa

justificada diante de Deus. A fé exerce papel preponderante nessa dinâmica da

justificação. A justificação possui alcance sobremodo abrangente, incluindo a

totalidade do homem e todas as suas obras, inclusive as injustas.770 Sobre isso,

Calvino destaca que,

[...] quando Paulo diz que a Escritura haviaprevisto que pela fé haja Deus de justificar aos gentios(Gl 3.8), que outra (cousa) devas entender (senão) queDeus imputa a justiça pela fé? Igualmente, quando dizque Deus justifica o ímpio que é de Cristo pela fé [Rm3.26], qual pode ser o sentido, senão pelo benefício dafé libertá-(los) da condenação que sua impiedademerecia?.771

769 Institutas, livro III, p. 311.770 Calvino diz que “[...] a sociedade de Cristo vale tanto que, por esta razão, somos não sógraciosamente recebidos como justos, mas também nossas próprias obras são havidas como justiçae recompensadas de eterno galardão [...] Recebido à comunhão de Cristo [...] Apagada, destarte, aculposidade das transgressões que impedia que produzissem os homens algo que fosse agradável aDeus, sepultados também os vícios de imperfeições de que são tisnadas e maculadas todas as boasobras, então estimadas por justas as boas obras que os fiéis praticam, ou, melhor, que a tantoequivale, são imputadas para justiça.” Cf. CALVINO, João. Catecismo de 1537, pp. 46-47. Vertambém: OC, tomo XXII, pp. 51-52. Cf. Institutas, livro III, cap. 17, seção 7.771 Institutas, livro III, cap. 11, seção 3.

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251

Na visão de Calvino, a doutrina da justificação não diz respeito a qualquer

mérito humano. Ou seja, é na justiça de Cristo que Deus declara o homem

justificado. Em outras palavras, o homem é revestido pela justiça de Cristo, por

meio da fé, e inserido na vida de Cristo, Deus o declara justo. Aqui temos a

grande diferença entre justificação pela fé da justificação pelas obras. Assim,

Calvino e Lutero pensam concordemente. O reformador francês discorrendo sobre

a justificação pela fé, diz que:

Em contraposição, será justificado pela fé aqueleque, excluído da justiça das obras, apreende pela fé ajustiça de Cristo, revestido da qual aparece à vista deDeus não como pecador, pelo contrário, como justo.Destarte, interpretamos nós a justificação simplesmente[como] a aceitação mercê da qual, recebidos à Sua graça,Deus nos tem por justos. E a dizemos haver consistido naremissão de pecados e na imputação da justiça deCristo.772

Em outras palavras, a função da fé é selar a união do homem a Deus, por

meio de Jesus Cristo. A justificação se dá exatamente nesse momento de união

com Cristo, diz Calvino. A genuína liberdade é resultado dessa santa vocação de

Deus, através da qual o homem é declarado justo e, capacitado pelo Espírito, vive

a plenitude dessa vocação.773 Qualquer outra posição diferente pode, com

facilidade, conduzir a todo tipo de orgulho.774

Percebe-se pela sua soteriologia que o objetivo final dos atos redentivos é

promover a liberdade do ser humano, livrando-o e restaurando-o na sua

capacidade de viver com integridade.

772 Institutas, livro III, cap. 11, seção 2.773 CR, 74:23.774 Institutas, livro III, cap. 12, seção 7.

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Conclusão

Afirmamos desde o início deste capítulo, que a liberdade cristã é, na

verdade, a grande temática da Reforma. Tal afirmação tem como pressuposto a

genuína experiência com o Cristo ressurreto, através da justificação pela graça

mediante a fé. Percebeu-se em Calvino a fragmentação do ethos humano, fruto de

sua ruptura com o Criador. Mas mesmo em processo de ruptura, o homem carrega

em si elementos da imagem e semelhança de Deus, o que o reformador chama de

sensus divinitatis ou semem religionis. Ou seja, para Calvino, apesar do pecado

que afetou a constituição do vital humano, este é visto por Deus com dignidade e

a ele é oferecido o dom da salvação, em que o próprio Deus é quem o chama para

uma nova experiência de vida, que resultará na formação de um novo homem, de

uma nova comunidade – eklesia tou théou – a assembléia de Deus e,

conseqüentemente, na formação de uma nova sociedade. A Igreja de Cristo torna-

se assim sinal do Reino de Deus.

Na verdade, partimos para uma investigação acerca dos paradigmas

antropológico, eclesiológico, cristológico e soteriológico e constatamos o centro

de nossa tese, qual seja, a liberdade emergente de tais conceitos bíblico-teológicos

em Calvino, liberdade esta fundamental para o resgate do verdadeiro querigma,

cujo conteúdo é o anúncio das boas novas de libertação, tendo Jesus Cristo como

paradigma único e universal de salvação, mediação do Pai com os homens.

A Reforma Protestante é considerada uma volta às origens

neotestamentárias. Por isso que, em certo sentido, não há nenhum elemento

teológico novo, visto que se buscou, nas Escrituras, os elementos fundantes da

Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Sendo assim, nossa próxima empreitada

trata-se, exatamente, de olhar os fundamentos da liberdade cristã a partir da

proclamação do Evangelho por meio de Jesus Cristo, este que aproxima o Reino

de Deus e outorga a libertação do homem, no encontro com o próprio Cristo,

consigo mesmo, com o próximo e com a criação. Verdadeiramente, a liberdade

emerge do encontro com o Cristo redivivo e com toda a sua mensagem libertária e

libertadora. Faz-se necessário, também, contemplar São Paulo, especialmente em

sua carta aos Gálatas, quanto à sua visão de liberdade. Eis o nosso próximo

desafio.

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Quarto Capítulo

4O Reino de Deus e a Liberdade Cristã

Nossa intenção, neste capítulo, é analisar a liberdade cristã dentro do

contexto da vocação de Deus na gratuidade de seu Filho, Jesus Cristo, quanto ao

estabelecimento do Reino nos corações sensíveis ao seu chamado; a formação da

Igreja na dinâmica do Espírito Santo, como espaço da práxis da liberdade; seu

comissionamento, dado pelo Senhor Jesus aos seus discípulos, a fim de que

dessem continuidade à Sua missão, vivendo e proclamando o Evangelho, que

convida à liberdade, e agindo, concretamente, na história,775 para promoção de

uma nova sociedade com sinais tangíveis do Reino do Pai. Faz-se necessário, por

força do próprio tema de nosso trabalho, verificar a teologia paulina sobre a

liberdade cristã, especialmente em sua carta aos gálatas.

4.1Jesus Cristo e a Chegada do Reino de Deus

Como pano de fundo ao irrompimento do Reino de Deus na pessoa de Jesus

Cristo, podemos trazer algumas considerações breves sobre o contexto histórico.

Sendo assim, podemos afirmar que a Palestina é uma pequena região, marcada

pela pobreza, porém, era geopoliticamente estratégica, devido à confluência de

interesses políticos sírio-fenício-palestinos. Os elementos físicos, característicos

da região, era o deserto, o Rio Jordão e os oásis. E, geopoliticamente, era

caracterizada pelos interesses comerciais e políticos, contrastados com a

consciência religiosa dos judeus e sua compreensão de ser um povo liberto por

Deus.

775 Podemos afirmar que Deus inculturou-se na pessoa de Jesus Cristo, que exerceu seu ministériono horizonte da história, buscando fazer do Reino do Pai um fermento lançado à massa, capaz deprovocar profundas e radicais mudanças. Por isso, entendemos “inculturação” na mesmaperspectiva do processo de Encarnação de Jesus Cristo (Cf. Jo 1, 1ss; Heb 1,1ss). O termo é novoe, no dizer do Pontífice da Igreja Católica Romana, João Paulo II, “significa a íntimatransformação dos valores culturais autênticos, pela sua integração no cristianismo, e oenraizamento do cristianismo na várias culturas”. Ou seja, pelo processo de inculturação, a Igrejaencarna o Evangelho nas diversas culturas e simultaneamente introduz os povos, com todo o seuethos cultural, nas suas próprias comunidades. Cf. REB 53 N. 212/DEZ. 93, p. 194.

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254

A prática religiosa judaica fundamentava as relações sociopolíticas na

Palestina do tempo de Jesus. A concepção de ser Jerusalém a cidade escolhida por

Deus e ser a Palestina a terra prometida por Yahweh, constituíram os dois legados

que marcaram os episódios religiosos do AT e do NT.

O governo de Herodes, o Grande, durou entre 37 e 4 a.C.. Ele governou

sobre os territórios da Judéia, Samaria, Iduméia, Galiléia e Peréia. Herodes, o

Grande, teve o poder, delegado por Roma, de governar a Palestina, embora não

fosse judeu.776

Após a morte de Herodes, seu reino foi dividido entre seus filhos. Herodes

Arquelau herdou de Herodes, o Grande, a Judéia, a Samaria e a Iduméia, que

governou até o ano 4 d.C.; e Herodes Antipas governou as regiões da Galiléia e

Peréia, de 4 a.C. até 39 d.C. Este último é, dentre os soberanos herodianos, o mais

mencionado no NT.

Do ano 6 até 41 d.C, a Judéia, a Samaria e a Iduméia passaram a ser

administradas diretamente por procuradores romanos. Agripa, descendente de

Herodes, governou esta região entre 41 e 44 d.C.. Após este período, a

administração voltou às mãos dos procuradores romanos.

No tempo de Jesus, a Palestina está imersa numa crise de identidade. De

Alexandre, o Grande, e no decorrer dos trezentos anos que se seguiram, a

perseguição cultural contra os judeus foi constante. Houve uma forte emigração

de judeus que se conformaram com os costumes e hábitos mediterrâneos orientais

e egípcios – emigração esta chamada Diáspora.777

A configuração social da Palestina proporcionou a emergência de partidos e

movimentos de natureza religiosa e política. Na sociedade judaica, existiam duas

correntes religiosas que expressavam maior influência na religião judaica: os

saduceus e os fariseus. Junto a elas existiam movimentos de natureza messiânica

com posicionamento oposto ao status quo religioso ou civil: os sicários, os

zelotas, e os essênios.

776 KIPPENBERG, H. G., Religião e formação de classes na antiga Judéia, São Paulo: Paulus,1988, pp. 109-116.777 “A expressão mais clara desse desenvolvimento é a concentração da posse da terra na mão depoucos latifundiários. Ela determinava - talvez com uma exceção parcial na época hasmonéia - a

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4.1.1O Reino de Deus no Novo Testamento

Quando o período neotestamentário surge, as expectativas messiânicas

fazem parte do quotidiano dos principais grupos religiosos da época. Esta idéia é

assumida sob o enfoque imanente pela ideologia dos essênios, fariseus, saduceus e

zelotas.

A mensagem central de Jesus Cristo sempre girou em torno do Reino de

Deus, cujo propósito era o domínio de Deus sobre o coração do homem.778 A

pregação falava não só de um Reino sem qualquer dimensão temporal ou espacial,

mas também sobre a soberania de Deus sobre todas as coisas e sua ação redentora

na vida integral do ser humano. Não se tratava também de um novo Reino, mas

tão somente do advento, da chegada, do aparecimento, do desvelamento do Reino

sempre existente. Não era um Reino futuro, mas presente, inaugurado, chegado

“em” e “com” sua presença e mensagem.779 Biéler afirma que

“[...] por certo que a vinda do Reino de Deus já semanifestou no drama de que a cruz do gólgota e aressurreição da Páscoa são os atos culminantes. Acriação toda recebeu aí, o penhor de sua reconciliaçãocom Deus e consigo mesma, representando o fim de suaalienação.780

Logo, constata-se a perfeita vontade de Deus no centro da mensagem de

Jesus Cristo.781 Jesus Cristo é o único mediador dessa experiência salvífica.782 Em

Cristo, não há mais barreiras entre Deus e o homem, e sua soberana vontade é

executada pela ação do Espírito Santo.783

situação econômica da Palestina inclusive no período romano.” STEGEMANN, Ekkehard W. eSTEGEMANN, Wolfgang, p. 131.778 GNILKA, J. Jesus de Nazaré – Mensagem e História. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,2000, p. 83.779 GOPPELT, L., p. 86.780 BIÉLER, André. op. cit., p. 350.781 GARDNER, E. C., op. cit., pp. 86-89.782 Institutas, livro II, cap. 12, seções 1 a 4.783 BRUNNER, E. Teologia da Crise. São Paulo: Novo Século, 2000, p. 78.

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256

Portanto, pertencer ao Reino784 significa viver sob o senhorio de Deus

através de Jesus Cristo.785 A realidade do Reino de Deus é maior do que qualquer

prática cristã, mas a verdadeira prática cristã é vivida por aqueles que fazem parte

do Reino. Jesus Cristo é aquele que traz a realidade do Reino à vida humana.

O especialista em NT, o exegeta Goppelt, declara que “a atividade de Jesus

gira em torno de um conceito fascinante. Tudo se relaciona com Ele e tudo

provém Dele. Esse centro é a basiléia tou theou, o reino de Deus”.786 Schmidt diz

que “o Reino de Deus é a totalidade da mensagem de Jesus Cristo e de seus

Apóstolos”.787

Na verdade, o Reino de Deus diz respeito aos que são inseridos em uma

nova aliança, pela própria vocação do Pai, como expressão de sua graça, através

de Jesus Cristo, vivendo agora sob o senhorio de Cristo.788 “O Reinado de Deus

deve exercer-se na história e o reino de Deus deve ser uma realidade dentro

dela”.789

O Reino de Deus, apresentado por Jesus Cristo, é dom gratuito de Deus, ou

seja, é o dom do amor, que tem sua iniciativa no próprio Deus. Como dom, o

Reino de Deus é recebido pelo homem através da abertura e da receptividade sem,

contudo, perder a dimensão de sua inabilidade quanto a sua auto-salvação.790

Sendo assim, o Reino é o poder dinâmico de Deus que se torna visível por meio

de sinais concretos que mostram que Jesus é o Messias.

O Reino, anunciado e vivido “em” e “por” Jesus, não tem como fundamento

a violência nem a força das armas, visto que a realeza de Jesus não estava

vinculada a este mundo. Ao contrário, a força de sua realeza está no fato de que

ele comunica liberdade e vida pela força do Espírito na vida interior do homem.791

784 Segundo Karl L. Schimidt, os termos “Reino de Deus”, “Reino de Cristo” e “Reino dos Céus”mostram o mesmo sentido primário de “realeza divina” ou “autoridade régia”. Ver SCHIMIDT, K.L. Rei e Rei. In: KITTEL, G. AIgreja no Novo Testamento. São Paulo: ASTE, 1965, pp. 91-97.785 CROSSAN, J. Reino e Sabedoria. In:_______, Jesus Histórico: a vida de um camponês judeudo Mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994. cap. 12, pp. 302-339.786 GOPPELT, L., op. cit., p. 80.787 SCHMIDT, K. L. Rei e Reino. In: KITTEL, G. op. cit., p. 96.788 YODER, John Howard. A Política de Jesus. São Leopoldo – RS. Sinodal. 1988, pp. 19-27.789 MATEOS, Juan. A Utopia de Jesus. São Paulo. Paulus. 1994, pp. 13,14.790 AZEVEDO, Marcello S. J. op. cit., pp. 35,36.791 BARRETO, J. O Evangelho de São João. Análise Linguística e Comentário Exegético. SãoPaulo: Paulinas. 1989, pp. 741,742.

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257

Portanto, a esperança cristã consiste muito mais que uma utopia da fé.

Consiste num processo em direção à verdade, desapegada ao desespero das

esperanças terrenas, capaz de produzir confiança no Deus que proporciona todo

bem e toda justiça. Na dimensão do Reino, a esperança do cristão ultrapassa as

fluidas expectativas desse mundo, pois ele foi criado e recriado em Jesus Cristo

para uma realidade supramundana.

Crossan declara o seguinte sobre o tema:

O Reino de Deus é povo sob governo divino - eisto, como ideal, transcende e julga todo o governohumano. O foco da discussão não está em reis, mas emgovernantes; não no reino, mas no poder; não no lugar,mas no processo. O Reino de Deus é o que o mundopoderia ser se Deus estivesse direta e imediatamente àsua frente. Mas mesmo dentro dessa compreensão daexpressão, é possível e necessário imaginar umatipologia quádrupla básica do Reino de Deus no usojudaico da época de Jesus. Imaginem-se quatroquadrantes ou tipos criados pela intersecção de doiseixos. Um eixo é uma distinção de tempo, com o futuroou presente em cada extremidade. O outro eixo é umadistinção de classe, baseada mais uma vez no modelo deLenski, com os Arrendatários ou elites de escribas emuma extremidade, e os Camponeses ou pessoas comunsna outra.792

O Reino de Deus torna-se uma realidade histórica na pessoa de Jesus Cristo.

Por isso que o propósito central do NT é mostrar que, com a vinda do Messias, um

novo tempo é instaurado e, através da pessoa de Jesus Cristo e de sua obra, o

Reino de Deus tornou-se uma realidade.793 Portanto, Reino de Deus e cristologia

estão inseparavelmente ligados, pois, segundo Leonardo Boff, “Jesus prega,

presencializa e inaugura este reino”.794 Na verdade, em Jesus se cumpre toda a

esperança messiânica.

792 CROSSAN, John Dominic. Jesus: Uma Biografia Revolucionária. São Paulo: Imago. 1995, p.70. Cf. PADILLA, C. René. Missão Integral. Ensaios sobre o Reino e a Igreja. São Paulo:Temática Publicações. 1992, p. 142. Cf. BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis –Rio de Janeiro: Vozes. 1985. Ver John Howard Yoder. A Política de Jesus. São Leopoldo: Sinodal.1988, pp. 9-18.793 PADILLA, C. René. op. cit., p. 197.794 BOFF, Leonardo, op. cit., p. 62. Gottfried afirma que “L. Boff indiscutivelmente merececonsentimento ao embasar o falar sobre o reino de Deus na cristologia. Reside aí uma das maisvaliosas contribuições de seu livro”. Cf. BRAKEMEIER, Gottfried, p. 18.

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Em A Santíssima Trindade, Boff declara que “Ele é a total expressão do

Pai”.795 Boff ainda declara sobre a realidade do Reino de Deus que:

Reino de Deus é a revolução e a transfiguraçãototal, global e estrutural desta realidade, do homem e docosmos, purificados de todos os males e repletos darealidade de Deus [...]. No Reino de Deus, a dor, acegueira, a fome, as tempestades, o pecado e a morte nãoterão mais vez [...]. Cristo veio para sanar toda arealidade em todas as suas dimensões, cósmica, humanae social [...]. A intervenção de Deus já (foi) iniciada, masainda não totalmente acabada [...]. A pregação do Reinose realiza em dois tempos, no presente e no futuro.796

Não sem razão a pregação apostólica traz a mensagem do Reino. Esta

pregação ou testemunho apostólico se faz pelos evangelhos, pelas cartas paulinas,

pelas cartas gerais e pelos textos joaninos, que tratam do Reino de Deus sob

enfoques distintos, porém sob o fundamento da pregação ou anúncio feito por

Jesus.

4.1.2O Testemunho Apostólico do Reino de Deus nos Evangelhos

Os evangelhos apresentam, como a chave para a compreensão do Evangelho

de Jesus, o significado dinâmico de Reino (basiléia). O Reino que ele proclama é

o poder de Deus em ação entre os homens por meio de sua pessoa e seu

ministério. Orígenes disse que Jesus Cristo era o autobasiléia, ou seja, o Reino em

pessoa.797

795 Id., A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. Petrópolis – Rio de Janeiro: Ed. Vozes.2000, p. 129.796 BOFF, Leonardo, op. cit., pp. 62,66,67,69,74.797 Comentário de Mateus 14.7 de Orígenes.

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Entre os evangelhos, é em Marcos que o termo Reino de Deus aparece

catorze vezes. O termo798 é enfatizado, começando no batismo de Jesus Cristo. O

próprio evangelista interpreta este batismo como sendo a evidência da chegada do

Messias. Temos em Marcos o anúncio do Reino de Deus, como dissemos acima, a

irrupção do tempo de Deus. Em Jesus Cristo, Deus concretiza o seu projeto de

estabelecimento de seu Reino na vida do ser humano. O Reino de Deus, que é

transcendente, aproxima-se dos homens pecadores, ainda que não pertença à

realidade imanente.

Na verdade, “o Reino de Deus é a totalidade da mensagem de Jesus Cristo e

de seus Apóstolos”799 afirma Schmidt. Goppelt declara que “a atividade de Jesus

gira em torno de um conceito fascinante. Tudo se relaciona com ele e tudo provém

dele. Esse centro é a basiléia tou theou, o reino de Deus”.800

Em Marcos, a história torna-se, na verdade, o palco onde o Deus eterno

inaugura e instala seu Reino e seus propósitos através do Messias801 prometido,

Jesus Cristo. O evangelho de Marcos é a primeira fonte preservada sob a forma

escrita entre os evangelhos, e encontramos nele a afirmação da messianidade de

Cristo.

Neste aspecto da messianidade, os zelotas e os essênios nutriam grandes

expectativas no advento do filho de Davi, e esta esperança era grandemente

difundida em Jerusalém (Mc 11.10). 802

Já o evangelho de Mateus apresenta o testemunho da messianidade de Jesus

através das suas citações de reflexão, do seu propósito apologético, da sua

compreensão histórico-salvífica e dos predicativos messiânicos. O conceito que

une todos estes testemunhos é o de Reino dos Céus.803

798 Aland, Kurt, Black, Matthew, Martini, Carlo M., Metzger, Bruce M., ad Wikgren, Allen, TheGreek New Testament, (Deutsche Bibelgesellschaft Stuttgart) 1983. Cf. ROLOFF, Jürgen, op. cit.,pp. 31-38.799 SCHMIDT, K.L. Rei e Reino. In: KITTEL, G. A Igreja no Novo Testamento. São Paulo.ASTE. 1965, p. 96.800 GOPPELT, Leonhard, op. cit., p. 80.801 No tempo de Jesus Cristo as expectativas messiânicas eram as mais diversas possíveis. Osvários grupos religiosos alimentavam esperanças messiânicas de acordo com suas crenças.Denizete Scardelai em Movimentos Messiânicos no Tempo de Jesus – Jesus e outros Messias -,esclarece bastante esse assunto. Ver pp. 109-204.802 GETZ, Gene A. Igreja: Forma e Essência. O Corpo de Cristo pelos Ângulos das Escrituras, daHistória e da Cultura. São Paulo: Vida Nova. 1994, pp. 53-55.803 KÜMMEL, Werner Georg. Síntese Teológica do Novo Testamento: de acordo com astestemunhas principais: Jesus, Paulo, João. São Leopoldo: Sinodal, 1983. p. 35.

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260

O termo Reino dos Céus ocorre 31 vezes em Mateus. E é notável que não

apareça em nenhuma outra parte do NT. Em contraste, o termo Reino de Deus

ocorre 63 vezes no NT.804 A explicação mais corrente para Mateus preferir usar a

expressão Reino dos Céus, e não Reino de Deus, é que Mateus, ao escrever para

leitores especificamente judeus, introduziu o termo céus para não chocar seus

leitores ao mencionar o termo Deus. Porém, Mateus usa o termo Deus 50 vezes, o

que torna difícil crer ser esta a razão da troca.805

Quando é feita a comparação entre os evangelhos de Mateus e Lucas,

Mateus utiliza Reino dos Céus exatamente no mesmo contexto em que Lucas

utiliza Reino de Deus. Assim não paira nenhuma dúvida que são termos diferentes

que descrevem a mesma coisa. O Reino dos Céus e o Reino de Deus são

sinônimos.806

O Evangelho de Mateus trata deste Reino, o Reino dos Céus,

contextualizadamente, tendo como pano de fundo uma realidade social que tinha

por característica, segundo Andrew Overman, a hostilidade da liderança judaica

contra os cristãos, acrescida da sensação de ruína nacional, advinda da falência

das tentativas de vivenciar a vontade de Deus através das revoluções armadas e da

violência.807 Esta violência gerou as guerras judaicas, que culminaram na

desolação de Israel.

Dentro desta concepção, a comunidade que recebeu o evangelho de Mateus

estava sofrendo uma dupla afronta: a perseguição dos adeptos do judaísmo

formativo e a realidade social desprivilegiada e fragmentada, que gerou

desagregação e disputas internas na Igreja.808

804 CROSSAN, John Dominic, p. 70.805 LADD, George Eldon, op. cit., p. 69.806 JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento: a pregação de Jesus. São Paulo:Paulinas, p. 152.807 OVERMAN, Andrew. O Judaísmo Formativo. São Paulo: Loyola, 2002. p. 54.808 MORACHO, Félix. Como Ler os Evangelhos: para entender o que Jesus fazia e dizia. SãoPaulo: Paulus. 1994, p. 60. Cf. MANSON, T. W. O Ensino de Jesus. São Paulo: ASTE. 1965, p.155. Ver Também: BROWN, Raymond. As Igrejas dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas. 1986, p.189.

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261

Já no evangelho de Lucas, há uma curiosa tensão entre as palavras de Jesus

que falam do Reino de Deus, como se tivesse irrompido já no momento presente,

e aquelas outras que parecem considerá-lo um acontecimento futuro. Como

conciliar, por exemplo, o “chegou a vocês o Reino de Deus” (Lc 11, 20) com a

petição “Pai, venha teu Reino” (Lc 11, 2)? O verbo phthanein, em aoristo

(ephthasen) só pode significar “tem chegado”; mas para quê pedir que venha o

que já chegou? E quanto às freqüentes exortações à vigilância e à paciência (Lc

12, 35-40), por que seria necessária a paciência se já chegou o que se espera?

Alguns propuseram explicações psicológicas para este fenômeno em Lucas.

Jesus sabia que o Reino, ainda que próximo, ainda não tinha chegado; mas seu

entusiasmo lhe fazia falar como se o Reino já estivesse presente. “Para ele – diz

Bousset – já não havia separação entre o presente e o futuro; pois o presente e o

futuro, o ideal e a realidade, estão conjugados”.809 Já para Feine, Lucas destaca

que Jesus teria oscilações de ânimo, e o mesmo via o Reino, já presente, como se

estivesse infinitamente afastado.810 Também foram propostas explicações

biográficas para isto. Essas afirmações contraditórias de Jesus corresponderiam a

diferentes momentos de sua vida. Segundo Wernle, quando Jesus começou sua

atividade, o Reino estava ainda longe e falava dele na perspectiva da esperança;

mas, conforme ia decorrendo o tempo, começou a apresentá-lo como uma

realidade presente.811 Já Weiss considera que são os anúncios do Reino como

realidade presente que correspondem ao começo da pregação de Jesus, e aqueles

que falam do Reino como realidade para o futuro são conseqüência da decepção

de Jesus, no decorrer do seu ministério.812

809 BOUSSET, Wilhelm. Jesu Predigt im Gegensatz zum Judentum, Göttingen, p. 63. 810 Cf. FEINE, P. Theologie des Neuen Testaments. 8ª ed. Leipzig, 1950, p. 73. 811 WERNLE, P. Jesus. Tubingen. 1916, pp. 237 passim.812 WEISS, Johannes. Die Predigt Jesus vom Reiche Gottes. 2ª ed. Góttingen, 1900, pp. 100passim.

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Através da teologia dos escritos joaninos, vê-se que, por meio de Jesus

Cristo, uma nova imagem de Deus começou a ser mostrada e formada, ou seja,

Jesus revelou a graça, a misericórdia, a bondade, o amor e o perdão de Deus,

sendo, Ele mesmo, a concretização e a historificação desse Deus.813 Jesus Cristo

encarnado é a luz nas trevas do mundo, o Eterno Filho “que nos faz filhos,

abrindo-nos”814 o caminho para o mistério da Trindade. Ele mesmo disse:

“Aquele que crê em mim, não crê em mim, mas naquele que me enviou” (Jo 12.

44). Afirma ainda que “ninguém pode vir a mim, se não atrair o Pai que me

enviou” (Jo 6. 44). Sendo o próprio Deus, agora encarnado em Jesus, pôde afirmar

“eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim” (Jo

14. 6). Não há como escapar à constante afirmação de que, somente em Jesus

Cristo, Deus realiza a verdadeira libertação do homem a fim de que este possa

viver em liberdade.

O Reino da liberdade se concretiza definitivamente, ainda que não

plenamente, “em” e “por” Jesus Cristo. Nesse sentido, Bruno Forte afirma que,

[...] a Palavra Encarnada pede para sertranscendida, não no sentido que possa ser eliminada ouposta entre parêntesis, porque isto impediria todo acessoàs profundezas divinas, mas no sentido que ela é verdadee vida justamente enquanto é caminho (Jo 14,6), limiarque dá passagem para o Mistério eterno.815

A chegada do Reino irrompe o silêncio de Deus, pois segundo as palavras de

Bruno Forte, “Jesus é a Palavra que saiu do Silêncio”,816 ou seja, “o Verbo se fez

carne e veio habitar entre nós” (Jo 1, 14), o Eterno Filho de Deus saiu do Pai, por

amor ao próprio Pai e ao homem, abrindo caminho ao maravilhoso mistério da

Trindade. Bruno Forte ainda afirma que Deus está sempre em êxodo de si mesmo,

encontrando tempo para a humanidade e que, livre e graciosamente, estabeleceu

uma aliança com o homem, “abrindo caminho de seu povo rumo ao Reino

prometido, sempre maior que qualquer realização efetuada”.817

813 GREEN, Michael. Evangelização na Igreja Primitiva. São Paulo: Vida Nova. 2000, pp. 58-61.814 FORTE, Bruno. op. cit., p. 50.815 Ibidem, p. 52.816 Ibidem, p. 49.817 Ibidem, p. 49.

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Portanto, Deus é aquele que, além de comunicar-se na história através das

Escrituras e nos eventos históricos, construindo o que chamamos de história da

salvação, jamais esteve sob qualquer dominação humana. “Por isso a sua vinda é

‘revelação’: um des-velar-se que vela, um vir que rompe caminho, um mostrar-se

no retrair-se, que atrai”.818 Na verdade, há uma constante dialética no mistério

trinitário. Mas o seu momento epocal se dá em sua autocomunicação na pessoa

encarnada de seu bendito filho, Jesus Cristo. O Deus que se aproxima da realidade

histórica é o Deus da vinda, da promessa, do êxodo, que sai de si mesmo, é o

Deus do Reino.819

4.1.3Implicações Teológicas da Concepção Bíblica de Reino de Deus

Alfonso Garcia Rubio, em seu livro O Encontro com Jesus Cristo Vivo, faz

algumas colocações muito claras acerca da realidade do Reino de Deus e da

relação desse Reino com Jesus Cristo:

A expressão “Reino dos céus” era bastanteutilizada no judaísmo. Este distinguia o Reinado de Deussobre Israel, no tempo presente, do Reinado sobre todosos povos, no final dos tempos [...]. Havia uma notóriaexpectativa judaica quanto ao estabelecimento do Reinode Deus no Antigo Testamento [...]. Por isso que, quandoJesus anuncia o Reino, encontra ouvintes receptivos. Apregação de Jesus sobre o Reino estava inserida numalonga tradição de expectativa desse Reinado [...]. Defato, o Reino constituía o centro de toda a vida deJesus.820

818 Ibidem, p. 49.819 “Ele, então, liga o Reino de Deus a sua comunidade dos discípulos, sem perder da vista todoIsrael.” LOHFINK, Gerhard, Como Jesus Queria as Comunidades: a dimensão social da fé cristã.São Paulo: Paulinas, 1987. p. 47.820 RUBIO, Alfonso Garcia. O Encontro com Jesus Cristo Vivo. São Paulo: Paulinas. 2003, pp.33,34. Cf. Mc 1,15; Mt 4,23; Lc 4,43; 8,1 etc. Cf. também L. Goppelt, vol. 1, pp. 101-104.

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Como conseqüência da chegada do Reino através da encarnação do Messias,

o NT nos informa que a Igreja é a extensão do Reino ou a comunidade do Reino,

ou seja, “a comunidade que reconhece a Jesus como o Senhor do universo e por

meio da qual, numa antecipação do fim, o Reino se manifesta concretamente na

história”.821 Quando Jesus fala em Mateus 16,18 minha Igreja, há uma perfeita

harmonia entre sua missão e a comunidade messiânica que nascia a partir dele

mesmo. “Sua intenção de rodear-se de uma comunidade própria, sua, na qual as

promessas do pacto de Deus com Israel fossem cumpridas, tem verdadeiro início

no momento em que seus discípulos o reconhecem como o Messias”.822 É a partir

desse momento que Ele anuncia sua intenção.

A Igreja é a comunidade que nasce como desejo do novo entre as pessoas.823

Sendo assim, é óbvio que a Igreja nunca deve ser equiparada com o Reino. Como

descreve Ladd:

Se o conceito dinâmico do Reino estiver correto,nunca deverá ser identificado com a Igreja (...). Naterminologia bíblica, o Reino não se identifica com seussujeitos. Estes são o povo de Deus que ingressa noReino, vive sob seu mando e é governado por ele. AIgreja é a comunidade do Reino, mas nunca o próprioReino (...). O Reino é o Reinado de Deus; a Igreja é umasociedade de pessoas.824

4.2Jesus Cristo e a Formação do Espaço de Liberdade

Jesus é o paradigma maior da temática da liberdade. A liberdade é cristã,

porque sempre remonta a Jesus como inspirador da práxis libertária. A vida e

ministério de Jesus não são apenas inspiradores de uma atividade libertador-

libertária, mas consistem na própria encarnação da manifestação da liberdade

proveniente de Deus. O Cristo encarnado encarna o projeto de Deus de fazer

manifestar ao mundo sua vontade: a liberdade do ser humano e as manifestações

destas como respostas à sua ação.

821 PADILLA, C. René, op. cit. p. 200.822 Ibidem, p. 200.823 MEEKS, Wayne A. op. cit., pp. 120-148.824 LADD, George E. A Theology of the New Testament. Grand Rapids: William B. Eerdmans.1974, p. 111. Em português: Teologia do Novo Testamento. Rio de Janeiro: JUERP. 1985.

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4.2.1Jesus Cristo e a Mensagem da Liberdade

A base pela qual Jesus avança em sua proposta de libertação encontra-se

no judaísmo. Significa dizer que a missão de Jesus foi a encarnação da compaixão

de Deus que buscava e busca a libertação dos homens. O fundamento ou

referência neotestamentária sobre a liberdade é Jesus Cristo. Todos os escritores

neotestamentários que tratam sobre a temática da liberdade partem não de meras

abstrações teóricas, mas do paradigma histórico, Jesus Cristo. A novidade da

liberdade mostrou-se plena “em” e “por” Jesus Cristo. Dessa forma, Jesus Cristo

como manifestação da vocação de Deus no homem, exerce seu ministério a partir

da história de Israel.825 Ele assumiu o verdadeiro modelo messiânico, sendo o

libertador esperado, não com a força da espada, mas com a força de si mesmo, de

sua mensagem e do poder do Espírito Santo.

Segundo Marcello Azevedo, a missão de Jesus, como se depreende dos

evangelhos, gira em torno de dois eixos fundamentais e mutuamente relacionados:

O primeiro é a Revelação, que nos faz Jesus desteDeus de sempre que se manifestou a Israel, Deus do qualJesus nos apresenta um perfil mais detalhado, novo eoriginal (diferente de todo conceito de que Deus existe).Em relação a este Deus, Jesus vive e transmite umasurpreendente experiência, filial e profunda (Mt 11,25-27; Lc 10,20-22).

O segundo eixo da missão de Jesus é orestabelecimento em nós da possibilidade de uma real eprofunda Comunhão. Ou seja, é a refontização de nossaliberdade, para que ela se possa abrir plenamente a Deuse aos nossos irmãos. Isso se chama processo de salvação,de redenção, de libertação integral e de uma verdadeirahumanização [...]. Ele no-la confia ao enviar-nos a todasas nações, para nelas fazer-lhes discípulos (Mt 28,18-20). Somos por isso credenciados por Ele, pelo dom epela força de seu Espírito, no seio da comunidade queEle quis e que o acolhe na fé, comunidade quechamamos Igreja.826

825 COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo. Paulus. 1998, p. 39.826 AZEVEDO, Marcello S. J. pp. 34-36.

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Por outro lado, devemos também compreender que a revelação de Deus, em

Jesus Cristo, não expressou a totalidade de Deus, mas que a Palavra encarnada

“abre acesso às sendas abissais do Silêncio, crise de toda presunçosa construção

ideológica fechada”.827 São João da Cruz diz que “uma palavra disse o Pai, que

foi seu Filho; e sempre no eterno silêncio e em silêncio ela há de ser ouvida pela

alma”.828 Diante de tais afirmações, colocamos em xeque todo tipo de

religiosidade moderna ou pós-moderna que nutra a pretensão da manipulação do

sagrado. Por isso que, sabiamente, Bruno Forte afirma o seguinte:

O Deus da vinda não é o Deus das respostasprontas a todas as perguntas, nem o Deus das certezasbaratas, mas o Deus exigente que, amando e dando-se asi mesmo, esconde-se e chama a sair de si mesmos emum êxodo, sem retorno que conduza aos abismos do seuSilêncio, último e primeiro.829

Assim, a liberdade cristã nasce concretamente da gratuidade que Deus faz

de si mesmo através de Jesus Cristo que, historicamente, acontece na sua vocação.

Significa dizer, em outras palavras, que a liberdade cristã chega até aos homens de

fora, pois é proveniente de um apelo, de um chamado. Portanto, a verdadeira

liberdade nasce no coração de Deus. A oferta de Deus ao homem está exatamente

no dom de participar de sua liberdade.

O Evangelho, vivido e anunciado por Jesus Cristo, é o evangelho que busca

o homem concreto, promovendo sua inteira libertação. Na força e na ação do

Espírito Santo “todo sistema tem que mudar”,830 abrindo caminho para a

libertação do homem, a fim de que pudesse viver a liberdade do evangelho. A

mensagem do evangelho é o núcleo central de todo chamamento para a liberdade

humana, ponto inicial para formação de uma nova humanidade e,

conseqüentemente, para uma nova sociedade.

827 FORTE, Bruno, p. 55.828 CRUZ, São João. Ditos de Luz e Amor. Número 98. In: Obras completas. Petrópolis: Vozes.2002, p. 102.829 FORTE, Bruno, op. cit., 55.830 COMBLIN, José, op. cit., p. 316.

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Portanto, “liberdade é assumir a libertação do povo, sair de si próprio

movido pela compaixão, como Yahweh, e arriscar a vida no serviço ao

próximo”.831 Foi assim que Jesus viveu e agiu no cumprimento de seu ministério.

Saiu de si, encarnou-se, viveu a compaixão do Pai, sendo a própria compaixão do

Pai. “Veio para chamar, para comunicar a vocação a fim de que cada um dos

chamados conquistasse sua libertação”.832

Através da senda do amor ao Pai, da obediência incondicional à vocação do

Pai, da humilhação, do sofrimento, da doação, do amor-serviço, do próprio

esvaziamento, Jesus Cristo não apenas contrapôs-se ao primeiro Adão, no seu

estado de ruptura de Deus, mas também abre o novo caminho de volta à

comunhão com Deus, o caminho de volta para casa e ainda a exaltação que recebe

da parte do Pai. O clímax da existência histórica de Jesus foi a ressurreição, o

evento pascal, sendo o acontecimento que concretiza seu senhorio absoluto, o faz

único e universal mediador salvífico entre Deus e os homens, tornando real e

presente a experiência histórica da salvação e a sua futura e total plenificação.833

A mensagem de Jesus tem por objetivo final a formação de uma nova

sociedade, mas para que tal aconteça, é imprescindível a formação de um novo

homem. Jamais existirá uma sociedade nova sem a existência de um homem novo.

Enquanto isso não acontece, o homem continuará despersonalizado e a sociedade

destinada à falência. Nenhuma sociedade nova triunfará pela imposição da Lei,

visto ser incapaz de mudar o interior do homem. Jesus é e traz a mensagem de um

Deus libertador, e não dominador, que coloca o homem numa relação de graça,

tendo Deus como Pai e o homem como filho.

Assim, livre da imposição externa como meta de vida, o homem torna-se

livre para viver a liberdade do evangelho, no vínculo do amor, em sua relação

com Deus e com o próximo.834

831 Ibidem, p. 35.832 Ibidem, p. 40. Cf. RIDDERBOS, Herman Nicolaas. El Pensamiento del Apostol Pablo. GrandRapids, Michigan: Libros Desafio, 2000, pp. 80-81.833 Ver mais em WRIGHT, N. T. Christian Origins and the Question of God, vol. 2: The NewTestament and the People of God (London: SPCK; Minneapolis: Fortress, 1992), pp. 189-99.834 GOPPELT, Leonhardt, op. cit., p. 366.

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A mensagem de Jesus traz a semente da liberdade, sendo um chamado, um

convite à ruptura com todo tipo de sistema opressor e injusto, desafiando o

homem a criar novas relações humanas, resultado de sua nova relação com Deus.

Com isso, Jesus evidencia inexoravelmente que Deus, o seu Pai, era contrário à

opressão, à injustiça e à sujeição.835

O teólogo Bruno Forte, em sua obra A Essência do Cristianismo, trata com

maestria a questão da manifestação do Reino em três dimensões: o êxodo de Jesus

do Pai; o êxodo de Jesus de si; e o êxodo de Jesus para o Pai.836

A liberdade para a qual Jesus Cristo nos chamou é a liberdade para viver e

agir como construtores do Reino de Deus. Qualquer tipo de liberdade cuja práxis

caminhe apenas na direção de uma vida de contemplação, por exemplo, há de ser,

na verdade, uma liberdade negativa, visto que carece da outra dimensão, qual seja,

a liberdade para agir na história como discípulo de Jesus Cristo. “Ao fugir da

sociedade, tornava-se – o monge – incapaz de agir nela e sobre ela”.837 A vocação

de Deus, em Jesus Cristo, não apenas liberta o homem, resgatando-o de um

mundo opressor, mas a vocação de Deus o devolve ao mundo, a sociedade, para

ali promover a sua libertação também.

4.2.2Aspectos Fundantes da Igreja Neotestamentária

Antes de qualquer afirmação acerca da Igreja, precisamos verificar, a partir

das Escrituras Sagradas, os seus fundamentos ou suas bases imutáveis, sobre as

quais nasce a Igreja neotestamentária. É sobre esses sólidos fundamentos que a

Igreja existe. Eles são inegociáveis. Há, no Evangelho de Jesus Cristo, segundo

narrou o evangelista Mateus, um texto que explicita o seu maior fundamento:

“Respondendo Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt

16.16). Ou seja, o primeiro e maior fundamento da Igreja é cristológico. Sua base,

primeiramente, não é antropológica, mais sim Jesus Cristo.838

835 SCHELKLE, Karl Hermann, v. II, op. cit., p. 139.836 FORTE, Bruno, op. cit., pp. 49, 57 e 68.837 COMBLIN, José, op. cit., p. 307.838 D’ARAÚJO, Caio Fábio Filho. Igreja: Evangelização, Serviço e Transformação Histórica. Riode Janeiro / São Paulo. VINDE / SEPAL. 1987, pp. 92,93.

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Quanto à formação da Igreja, é preciso ressaltar que são as Escrituras que

nos fornecem as bases teológicas da Comunidade Cristã. A Igreja

neotestamentária é uma extensão do povo de Deus do AT, o povo de Israel. Sendo

assim, a Igreja é o novo povo de Deus (I Pe 2,9,10).839

A imagem mais profunda que temos no NT quanto à relação entre Jesus e a

Igreja é que ela é vista como o Corpo de Cristo. Tal imagem expressa a realidade

espiritual e funcional da Igreja (Ef 1,13; 4,7-16; Gl 3,28;).840

Assim, o primeiro elemento fundante da Igreja neotestamentária é o

cristológico. Senão vejamos a expressão tu és o Cristo, que é a fonte do

nascimento da Igreja. A sua base não é antropológica, conquanto seja uma

instituição com dimensões humanas, mas o Senhor Jesus. Ela é e será sempre

cristocêntrica.841 Portanto, podemos afirmar que a Igreja é uma instituição divino-

humana.842

O segundo elemento basilar da Igreja neotestamentária é o cumprimento da

promessa do Espírito Santo. A vida e o dinamismo da Igreja tornam-se realidade

na pessoa do Espírito. Quando os doze e os demais discípulos retornam para

Jerusalém, na obediência à palavra de Jesus, tem-se o cumprimento da promessa

do derramamento do Espírito Santo, numa experiência temporal e definitiva sobre

o novo Israel de Deus, que estava nascendo no exercício da fé no Cristo

ressuscitado e na dinâmica do Espírito, que trazia vida e força à nova Comunidade

da Fé.843 Por isso, afirmamos que a Igreja é pneumatológica, pois carrega em si o

dínamis do Espírito. Temos a seguinte declaração de Horrel:

839 COSTAS, Orlando E. Hacia una Teologia de la Evangelizacion. Buenos Aires – Argentina.:Ed. La Aurora. 1973, p. 132. Cf. Deut 7, 7; Heb 13,13; I Pe 5,10,11.840 Ibidem, pp. 133,134.841 D’ARAÚJO, Caio Fábio Filho, p. 92.842 Para muitos escritores, o Jesus pré-pascal não fundou a Igreja. Sendo assim, a Igreja só teria seuinício com a ressurreição de Jesus. Cf. ROLOFF, Jürgen, p. 62. Veja a afirmação de G.Bornkamm: “A fundação da Igreja, portanto, não é obra já do Jesus terreno, mas do ressurreto”.BORNKAMM, G. Jesus von Nazareth. 1956, p. 171. Encontramos ainda E. PETERSON.Theologische Traktate. München. 1951, pp. 409-429; H. SCHLIER, Die Entscheidung für dieHeidenmission in der Urchristenheit, in: id., Die Zeit der Kirche, Freiburg, 1958, pp. 129-147; N.A. DAHL, Das Volk Gottes, pp. 176, 278; H. von CAMPENHAUSEN, Kirchliches Amt undgeistliche Vollmacht, pp. 10-12. Sem dúvida que a páscoa é o ponto de partida para todacristologia explícita.843 ROLOFF, Jürgen, pp. 65-74. Cf. BOFF, Leonardo, pp. 141-145.

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O derramamento do Espírito Santo aconteceucomo cumprimento profético num contexto de oração. OEspírito Santo [...] veio trazer vida e capacitação paralevar o testemunho de Jesus até os confins da terra,redundando, assim, no estabelecimento de Igrejaslocais.844

A novidade do Evangelho chega ao coração do homem pela ação do Espírito

Santo, visto que é o Evangelho da liberdade. Por isso, Karl Barth afirma que é

[...] no mistério eterno do ser de Deus que se devebuscar a razão pela qual ninguém pode ir ao Pai a não serpor meio do Filho; porque o Espírito, mediante o qual oPai atrai a si os seres humanos, é, desde toda aeternidade, também o Espírito do Filho e é por seu meioque o Pai nos faz participantes da filiação divina emCristo.845

Outro elemento fundante da Igreja, tido como paradigma teológico de sua

ação querigmática, é a Palavra de Deus, a doutrina dos apóstolos. Perder a noção

de que as Escrituras são a Palavra de Deus é correr o risco de uma anunciação

evangélica superficial acerca do Jesus histórico e do Cristo da fé. Atos 2, 42 diz:

“E perseveravam na doutrina dos apóstolos [...]”. A fé no Cristo ressuscitado era

algo basilar para a vida da comunidade primitiva.846

844 HORREL, J. Scott (Org.). Ultrapassando Barreiras. Novas Opções para a Igreja Brasileira navirada do século XXI. Armando Bispo Cruz. Os Dons Espirituais. Despertando o Potencial Divinoda Igreja Local. São Paulo: Ed. Vida Nova, 1989, pp. 94-96. Cf. PACKER, J. I.. Na Dinâmica doEspírito. Uma Avaliação das Práticas e Doutrinas. São Paulo: Vida Nova. 1991, p. 62. Cf.AGOSTINHO, Santo. De Trinitate. 5, 11, 12: Pl 42, 919.845 BARTH, Karl. Die kirchiliche Dogmatik. I/2. Zürich: Evangelister Verlag. 1942, p. 273.

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271

4.3O Espírito Santo como Agente Capacitador da Missão

O homem, por meio de Jesus Cristo, recebe a oferta de Deus, a vocação no

novo nascimento, a real possibilidade de nascer da água e do Espírito, tendo sido

recriado para uma viva esperança. Recriado pela graça de Deus, o homem torna-se

habitação do Espírito Santo, cuja vida no homem o orienta e o ilumina para uma

nova vida.

O Espírito Santo, além de operar, no homem, a nova vida, realiza nele a

confiança de que, agora, é filho de Deus.847 O Espírito Santo foi dado ao homem

renovado como penhor e garantia da glória e o acompanha em toda a sua

trajetória. Como penhor e garantia (Ef 1, 13,14), Ele é convite permanente à

esperança na ressurreição. O Espírito do Senhor ou do Ressuscitado é a energia

que dinamiza o coração do cristão, potencializando alegria, esperança, capacidade

de testemunho e suficiência no processo de conformar-se com a pessoa de Jesus

Cristo e, ainda mais, sinal da eterna comunhão com Ele que, no éschaton, será

plena e definitiva. Discorrendo sobre o referido tema, Moltmann argumenta que,

[...] esperamos que o Espírito da nova criaçãoderrote a violência humana e o caos do universo; mais doque isso: esperamos que a força do tempo e da morteserão derrotadas também; finalmente, esperamos a eternaconsolação [...] esperamos alegria eterna na dança docompanheirismo com todas as criaturas e com o Deustrino.848

846 RUBIO, Alfonso Garcia. O Encontro com Jesus Cristo Vivo. São Paulo: Paulinas, 1994, pp.96-106. Cf. KITTEL, Gerhard. A Igreja no Novo Testamento. São Paulo: ASTE, 1965, pp. 17-36.847 “[...] a nova vida, que passa a existir com o nascimento a partir do Espírito de Deus, justamentenão é nenhum nascimento repetido, mas é o novo nascimento único e definitivo de uma vidahumana para a nova e eterna criação do céu e da terra, sendo o começo do cumprimento dapromessa de Deus: ‘Eis que faço novas todas as coisas’ (Ap 21: 5)” Ver: “[...] a nova vida, quepassa a existir com o nascimento a partir do Espírito de Deus, justamente não é nenhumnascimento repetido, mas é o novo nascimento único e definitivo de uma vida humana para a novae eterna criação do céu e da terra, sendo o começo do cumprimento da promessa de Deus: ‘Eis quefaço novas todas as coisas’” (Ap 21: 5). MOLTMANN, Jürgen. A Fonte da Vida: O Espírito Santoe a Teologia da Vida. São Paulo: Loyola, 2002. p. 31.

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272

A I Guerra Mundial provocou uma das maiores crises no pensamento

moderno, visto que, praticamente, todas as propostas, anunciadas pelos quatro

cantos, de que a modernidade, sobretudo a partir do Iluminismo, trariam tempos

de prosperidade e de paz, ruíram ante os horrores da Guerra. Ou seja, os limites de

confiança no homem e nas pretensões da razão desabaram. A partir de então, o

século XX passou a ser considerado “o século da Igreja”849, dizia Dibelius.

Guardini afirma que houve a oportunidade para o que ele chamou de “despertar

da Igreja nas almas”.850 De fato foi um tempo marcado pela desilusão e pela

desesperança e com a II Guerra Mundial, o quadro ficou ainda pior.

A Igreja teve a oportunidade de se tornar a grande alternativa. Houve uma

grande crise de confiança, nas instituições, com suas ideologias. A Igreja passa a

ser vista não como mera instituição religiosa, mas como uma comunidade viva,

provocadora de esperança e de sentido de vida, através de sua missão

proclamadora das Boas Novas. O idealismo fascista morria e cumpria à Igreja ser

a comunidade real, que vivia a dinâmica da existencialidade humana concreta.

Nascia um novo senso de missão exatamente no seguimento de Jesus Cristo. Em

sua missão ela é o espaço da experiência comunitária, do exercício da comunhão,

fruto da oferta do dom de Deus na pessoa de Jesus Cristo. Por isso que Bruno

Forte afirma:

Contra a massificação obsessiva das ideologias, oevangelho da Igreja sublinha a infinita dignidade de cadapessoa em particular diante de Deus e diante dahumanidade, independentemente da sua história e desuas posições. Contra o niilismo, ele proclama a realpossibilidade do encontro com o outro e a vitória sobre asolidão, graças ao diálogo e à solidariedade, que sãogerados e mantidos pelo amor que procede de Deus.851

848 Cf. MOLTMANN, Jürgen. Deus na criação. Petrópolis: Vozes, 1993. O caminho de JesusCristo. Petrópolis: Vozes, 1993. Teologia da Esperança. São Paulo: Herder, 1971.849 DIBELIUS, O. Das Jahrhundert der Kirche. Berlin: Furche Verlag, 1926, p. 46.850 GUARDINI, R. La Realtà della Chiesa. Brescia: Morcelliana, 1967, p. 21. O texto de ondeextraí a citação - intitulado O sentido da Igreja (Von Sinn der Kirche), - saiu em primeira ediçãoem 1922.851 FORTE, Bruno, op. cit., pp. 133,134.

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273

Na verdade, a Igreja é sempre chamada a viver a experiência trinitária em

sua dinâmica eclesial. Por isso que comunhão, graça e amor, uma vez

relacionados com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, aplicados à vida da Igreja,

resultam na comunhão concreta pelo Espírito, na comunidade reunida pela graça

do Filho e na expressão do amor, requerido pelo Pai.852 Em outras palavras a

Igreja vive, na história, a experiência trinitária. O evangelista João é quem, de

maneira particular e peculiar, trata dessa comunhão trinitária que deve se

expressar na vida eclesial. É pela ação do Espírito que a Igreja dá testemunho do

Cristo ressuscitado.853

A Igreja é chamada a ser e a viver como ícone da Trindade. Ela é a Igreja

pneumática, portanto, carismática, no seu sentido mais bíblico e teológico. Daí o

comentário de Le Fort sobre a comunhão da Igreja:

A fórmula mais comum, mediante a qual Joãoexprime a realidade escatológica da Igreja é a simplesconjunção “como” (kathôs). Ela não apenas estabeleceum vínculo de semelhança entre Cristo e os seusdiscípulos, mas indica, também, que aquilo que está emDeus deve estar igualmente naqueles que lhepertencem.854

A presença do Espírito Santo, na vida da Igreja, exercerá a missão de ser a

memória de Jesus (Jo 14, 26). Ou seja, ele não só oferecerá testemunho constante

do Cristo ressuscitado, mas também capacitará a Igreja a dele testemunhar (Jo 16,

13). É o Espírito que ministrará a graça do perdão na vida eclesial (Jo 20, 22).

Bruno Forte afirma o seguinte:

Graças a esta continuidade da fé no tempo e noespaço, a Igreja é una, santa, católica e apostólica, povode Deus, unido no Espírito santificador, nauniversalidade e na plenitude da comunhão que se baseiasobre o fundamento dos apóstolos e que vive da fétransmitida pela tradição apostólica [...]. Aquele ao qualcompete atualizar a presença salvífica do Senhor Jesus,através do ministério dos pastores protoparentes do Israelescatológico, e através de toda a vida do povo da novaaliança, é o Espírito Santo.855

852 Ibidem, p. 134.853 Cf. Jo 15. 12; 13.34; 17.21,22; II Co 13.13; Jo 15.26s.854 LE FORT, P. Les Structures de l`église Militante selon Saint Jean. Etude d`ecclésiologieconcrète appliquée au IV évangile et aux épîtres johanniques. Genève: Labor et Fides. 1970, p.172.855 FORTE, Bruno, op. cit., pp. 137,139.

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Ainda na perspectiva trinitária, encontramos, à guisa da beleza poética e

teológica, a brilhante oração de Santo Agostinho:

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A narrativa do livro dos Atos evidencia que o Espírito Santo não é só uma

força divina, impessoal, que atua de maneira continuada em Jesus e de forma

passageira nas demais pessoas. Pelo contrário, o Espírito tem uma realidade

extremamente pessoal, concreta e distinta.857 Portanto, é a partir da descida do

Espírito que a Igreja começa a espalhar a glória de Deus através de sua ação

querigmática por meio de sua vida pneumatológica.858 O Espírito Santo, como

pneuma, significa a força de Deus necessária para a realização de ações

específicas de Deus.

Portanto “O Espírito é o catalisador e a força guiadora da missão

expansiva da comunidade”.859 Este tema nos serve como a mais forte ligação

entre os Atos e os Evangelhos, entre a história de Jesus e a história da Igreja (Lc

24, 49; At 1, 4,5,8; 2, 33), pois o Espírito mantém a presença e as diretrizes de

Cristo ressurreto na Igreja como o impulso para o universalismo e o poder que

possibilita a intrepidez da comunidade860. Por ter o Espírito Santo uma

característica missionária, seu desejo é que a Igreja também tenha como finalidade

principal, a obra missionária.

856 AGOSTINHO, Santo. De Trinitate. 15, 28, 51: Pl 42, 1098.857 BOFF, Jenura Clotilde. Espírito e Missão na obra de Lucas-Atos. Para uma Teologia doEspírito. Dissertação de Pós-Doutorado, defendida pela Pontifícia Universitas Gregoriana. 1995,p.80.858 COSTAS, Orlando E., op. cit., pp. 134-136.859 CARRIKER, Timóteo Charles, op. cit., p. 210.860 Ibidem, p. 210.

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A Igreja, portanto, é a comunidade na qual Jesus continua vivo, nesta terra,

operando sua missão libertadora através do Espírito Santo. É através do Espírito

que os discípulos recebem autoridade espiritual para continuarem a missão do

Senhor Jesus. Na verdade, a Igreja de Atos é a Comunidade Testemunha.861 É pela

ação poderosa do Espírito que os discípulos entenderam o último mandato de

Jesus: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome

do Pai e do Filho e do Espírito Santo [...]” (Mt 28, 19).862 Ora, nesta perspectiva,

após a ressurreição de Jesus, o evangelho de Lucas (24, 46-48) nos informa que o

mandato missionário é renovado e a pregação do Evangelho, por parte dos seus

seguidores, vai crescendo e ganhando espaço na sociedade. Tal pregação é

compreendida pela fé no Senhor Ressuscitado, que constitui a plenitude do

querigma da comunidade primitiva.863

Anunciar Jesus ressuscitado, no poder do Espírito Santo, significa anunciar a

plenitude do Reino de Deus. Fica claro, em Atos, capítulo primeiro, que há uma

conexão entre Jesus e a pessoa do Espírito, ou seja, Ele ensina pelo Espírito (At 1,

3); promete o batismo no Espírito Santo (At 1, 5); e é com o poder do Espírito que

os homens serão testemunhas do Ressuscitado até os confins do mundo (At 1,

8).864

Há outro aspecto relevante da ação do Espírito Santo como agente

capacitador da missão da Igreja que é o que podemos chamar do derramamento da

força-dom de Deus, ou seja, a capacidade de descer na dimensão vertical para o

mundo daqueles que não têm força (mulheres, os doze, samaritanos) ou que

perderam sua força (Paulo, “caído do cavalo”), e de se projetar na dimensão

horizontal, ou seja, para longe, destruindo barreiras, cercas e preconceitos,

vencendo as fronteiras da religião e da cultura, de raças e de nacionalidades. Isso,

porque o seu limite são “os confins do mundo”, gerando acolhimento,

hospitalidade e aceitação.865

861 ROBERTI, Carlos. O Espírito Santo na Obra de Lucas. Revista Estudos Bíblicos 45 - OEspírito Santo - Formador de Comunidades. Rio de Janeiro.Vozes. 1991, p. 52.862 D’ARAÚJO, Caio Fábio Filho. Igreja: Comunidade do Carisma. Rio de Janeiro. VINDE.1994, pp. 30-32.863 BOFF, Jenura Clotilde, op. cit., p. 79.864 Ibidem, p. 80.865 ROBERTI, Carlos, op. cit., p. 53.

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Segundo Valdir Steuernagel, pensar o vento do Espírito Santo, numa

dimensão missionária, é extremamente relevante para a ação querigmática da

Igreja. Ele diz:

Missão, compreendida numa linguagempneumatológica, é um só ato com duas facetas. É,primeiro, perceber o sopro do Espírito e a sua direção. E,depois, é correr na direção em que o Espírito estásoprando. Quem já não viu uma pipa solta, dançandopelo espaço e sendo levada de um lado para outro, nadireção em que o vento vai e para onde o vento quer?[...] Missão é deixar-se levar pelo Espírito, comoacontece com a pipa levada pelo vento. Mas é tambémperseguir a orientação do Espírito, assim como ameninada persegue a pipa carregada pelo vento. Com adiferença de que o Espírito tem direção certa, por serguiado por Deus na direção de quem está longe Dele.Missão é, portanto, e simultaneamente, um ato deinterpretação e de obediência.866

A experiência de Pentecostes (At 2), por si só, alarga a missão para que seja

ouvida pelas várias populações da Diáspora. Não tenho dúvida de que o Espírito

inicia uma ação missionária inculturada naquele momento especial da Igreja

nascente. O Espírito é sumamente ecumênico, visto que ele fala e cada qual

entende na sua própria língua materna.867 Afirma Carlos Roberti:

As culturas são presença das “sementes do Verbo”.Ele não massifica, não uniformiza, mas une deixando atodos sua personalidade [...] inculturar o Evangelho édeixar que a força do Espírito faça brotar e desenvolvaaquelas sementes no seu chão-cultura. É crer num sóEspírito sem necessariamente crer numa só lei [...]grande desafio para a grande comunidade e para aspequenas também.868

866 STEUERNAGEL, Valdir. Obediência Missionária e Prática Histórica. Em Busca deModelos. São Paulo: ABU. 1993, pp. 92-94.867 ROBERTI, Carlos, op. cit., pp. 51-53.868 Ibidem, p. 54.

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A experiência de Filipe com o eunuco etíope é pela mediação do Espírito

(Atos 8, 29,30), e a aceitação última de Pedro, de Cornélio e sua família (Atos 10,

44-48; 11, 12-18) é confirmada pelo derramamento do Espírito sobre esta casa.

Observando um pouco mais adiante, verificamos a ratificação deste fenômeno

pela Igreja em Jerusalém, que, por sua vez, também é realizada pelo impulso do

Espírito (Atos 15, 28,8). O Apóstolo Paulo sempre foi guiado pelo poder do

Espírito (Atos 13, 2,4; 16,6-10; 19, 21; 20, 22; 21,11) em todas as suas direções e

no chamamento para a missão universal (9,15.16; 22,21; 26,16-18). O Espírito é

quem guia a caminhada da Igreja e de seus discípulos, no seu ministério, entre os

gentios (11.24; 13.2-4; 19.6).869

O verdadeiro significado do Pentecostes era que Deus, a partir daquele

momento, não se revelaria apenas por meio dos judeus. A Igreja do Senhor Jesus

seria o Seu instrumento. A Igreja ficaria tão cheia do poder do Espírito Santo, que

seria capaz de cruzar qualquer barreira racial, cultural ou lingüística e penetrar na

idiossincrasia de cada povo com o evangelho das boas novas. Seria uma Igreja

decidida a penetrar na própria vida de cada sociedade, com o evangelho sendo

pregado na língua materna de cada povo e de forma inculturada.

E o Espírito Santo, que é missionário inculturado, seria o grande agente

condutor desse plano, estabelecendo Igrejas em cada grupo étnico da terra.870

Sendo assim, o plano do Espírito Santo era transformar o mundo com o evangelho

de Jesus Cristo, usando a Igreja. O seu desejo é que cada Igreja compreenda a

necessidade de uma ação evangelizadora inculturada, na qual os preconceitos são

vencidos pela força do Evangelho.871

869 CARRIKER, Timóteo Charles, op. cit., p. 210870 PATE, Larry, op. cit., pp. 23-24.871 Ibidem, p. 26.

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Percebe-se que o agir do Espírito Santo, na vida da Igreja e dos apóstolos,

no que tange à expansão das Boas Novas além das fronteiras culturais, étnicas,

sociais, raciais, promoveu uma inculturação da fé cristã, ainda que com

dificuldades e desafios.872 Os apóstolos foram percebendo que os gentios não

tinham a menor necessidade de tal prática e a mensagem cristã foi inculturada,

sendo traduzida e expressa a partir de determinados valores culturais, sem,

contudo, perder o seu conteúdo bíblico-teológico. Entretanto, muitos cristãos

faziam parte do movimento de classe social baixa, sobretudo aqueles que

moravam na Galiléia. Pode parecer paradoxal, mas o movimento cristão

conseguiu atingir os mais diversos segmentos da sociedade exatamente por ser um

movimento das ruas, das esquinas, e que vivia e crescia fora da institucionalização

da religião.873

4.4A Liberdade Cristã na Teologia de Paulo

Paulo soube sintetizar a essência do evangelho: “Cristo nos libertou para

que vivêssemos em liberdade” (Gl 5, 1). “Foi para a liberdade que vocês foram

libertados” (Gl 5, 13). Como somente Deus é absolutamente livre, criou o homem

para viver em liberdade. Esta é, na verdade, a grande vocação do ser humano. A

vocação de Deus, em Jesus Cristo, a cada indivíduo é exatamente libertá-lo, a fim

de que possa viver o desafio da construção e a conquista da liberdade, sempre em

resposta à graça de Jesus Cristo, pela poderosa ação do Espírito Santo.

872 STEUERNAGEL, Valdir, op. cit., pp. 94-96.873 Quando comparamos o ministério de Jesus Cristo, realizado na Galiléia com toda areligiosidade vivida na Judéia, sobretudo aquela do templo, constatamos que Jesus não cabiadentro desta religião do templo, visto ter Ele vivido na perspectiva de uma proposta nova, na qualo seu lugar era nas ruas, vivendo e convivendo com o povo em geral, sem qualquer discriminação,oferecendo vida e vida em abundância. Jesus era aquele que sentava à mesa com publicanos epecadores (Lc 5, 29-32). E é precisamente a partir dessa perspectiva que vai se estabelecendo umaconstante tensão entre a Sua vida e a religião dos escribas e fariseus. Cf. C. René Padilla, op. cit.,pp. 47-49.

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Podemos chamar Paulo de “O apóstolo da liberdade cristã”, sabendo que em

sua teologia não havia espaço para libertinagem nem anarquia. A liberdade de que

trata o apóstolo não é autonomia absoluta, mas liberdade promovida pelo

evangelho, que produz a consciência de que o novo homem, em Cristo, vive a

continuidade de Seu ministério como servo de todos.874 O Apóstolo Paulo

aparece, na história eclesiástica, como sendo o homem que, pela força do Espírito

Santo, conseguiu uma das maiores façanhas do cristianismo até os nossos dias,

qual seja, promover a passagem do cristianismo de uma cultura semítica para uma

cultura helenista.875

O interessante na vida de Paulo é que ele não viveu dentro de uma

instituição religiosa fechada, sem qualquer visão do todo. Não, ele veio para “fora

dos quadros preestabelecidos e trabalhou sempre fora dos quadros.”876 Isso deu

ao Apóstolo uma liberdade de ação sem precedentes na história do cristianismo.

Diante do grande desafio de realizar uma nova evangelização em nossos dias,

portanto, jamais podemos deixar de analisar o exemplo de Paulo, visto ser ele o

grande modelo, depois de Jesus Cristo, de evangelizador de culturas.877 Paulo foi

tremendamente inculturado no seu processo evangelizador. Vejamos um pouco de

sua caminhada.

O escopo aqui proposto é contar, ainda que de forma resumida, a história de

Paulo em sua caminhada antes do encontro com o Cristo ressuscitado, que, como

veremos, mudaria todo o rumo de sua vida.878 Portanto, “Paulo descende de uma

rígida família judaica da Diáspora."

874 COMBLIN, José, op. cit., pp. 43-54.875 Id., Paulo - Apóstolo de Jesus Cristo. Rio de Janeiro. Vozes. 1993, p. 07.876 Ibidem, p. 08.877 MEEKS, Wayne A., op. cit., pp. 21-42. Conforme o autor descreve, Paulo era um homem dapólis, da cidade. Portanto, é a partir da cidade que ele lança o seu programa de evangelização. Elesabia ser cristão na cidade grande. Sua missão de levar o evangelho aos gentios era uma missãoessencialmente urbana. Como veremos, era sempre a partir das cidades, com o seu ethos culturalpróprio, que Paulo buscava inserir o Evangelho.878 BITTENCOURT, B. P. A Personalidade viva de Paulo. São Paulo. Publicação da AssociaçãoAcadêmica “João Wesley” - Faculdade de Teologia Rudge Ramos. s/d, p. 23.

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"A cidade de Tarso, onde nasceu entre os anos 5-10 (At 21,39;22,3; 26, 9-

11), era a capital da região e da província romana da Cilícia”.879 Tarso era um

grande centro comercial, possuindo uma linha divisória de duas culturas: a

civilização greco-romana do Ocidente e a civilização semítico-babilônica do

Oriente.880 Sua cidade natal era famosa pelas suas escolas de filosofia e pela

fabricação de “cilício”, uma espécie de tecido rústico feito de pêlo de cabra para

as tendas dos nômades.881

O ambiente em que Saulo nasceu e cresceu, portanto, era dominado pela

civilização grega em praticamente todas as dimensões _ a cultura helênica era

dominante na época.882 Josef Holzner diz:

Este mundo espiritual, moral, artístico e culturalexistia por toda a parte, e ninguém podia subtrair-se àsua influência. O homem que havia de escrever:“Examinai tudo e abraçai o que for bom” (I Tess 5,21),com toda a certeza, examinou bem cedo todas asdoutrinas que se difundiam à sua volta.883

Saulo nasceu como cidadão romano, pois seu pai era cidadão romano. Ao

nascer, o menino recebeu o nome de Saulo, devido ao rei Saulo _ Paulo era,

provavelmente, seu cognome latino.884

Seus genitores eram judeus muito religiosos, pertencentes à seita dos

fariseus, ou, pelo menos, fortemente influenciados por esse grupo. Pertenciam à

tribo de Benjamim. Ele, Paulo, fazia questão de salientar sua pertença à nação de

Israel: “Fui circuncidado no oitavo dia, sou israelita da tribo de Benjamim,

hebreu, filho de hebreus” (Fl 3,5). “São hebreus? Eu também. São israelitas? Eu

também. São descendentes de Abraão? Eu também” (II Co 11,22). “Eu também

sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim” (Rm 11, 1).

Assim, “tanta insistência na pertença a Israel pode ser um sinal de que ele se

sentia atacado por esse lado e sentia a necessidade de se defender. Essa pertença

foi questionada, pelo menos a sinceridade da sua adesão ao judaísmo”.885

879 BORNKAMM, G. Paulo. Vida e Obra. Rio de Janeiro: Vozes. 1992, p. 31.880 HOLZNER, Josef. Paulo de Tarso. São Paulo. Quadrante. 1994, p. 07.881 Ibidem, p.10.882 HOLZNER, Josef, op. cit., p. 8.883 Ibidem, p. 15.884 CHAMPLIN R. N. & J. M. Bentes. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. Vol. 5. SãoPaulo. Candeia. 1991, pp. 120,121.885 COMBLIN, José, op. cit., p. 13.

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À guisa de informação, podemos observar duas fases na educação paulina: A

primeira ocorreu em Tarso e a segunda em Jerusalém. Quando examinamos suas

cartas, verificamos que ele foi bastante influenciado pela cultura grega.886 É bom

observar que a cultura helênica já se infiltrara profundamente no judaísmo

Palestino desde o início do século IV a.C.. Sendo assim, “os judeus da diáspora,

como Saulo, por exemplo, eram influenciados por esta cultura”.887 Por outro lado,

Paulo teve uma formação judaica, cuja tradição era milenar. “Ele aprende à

sombra do AT”.888 Desde muito cedo, Saulo começou a aprender a história do seu

povo.889 Segundo Atos 22, 3 ele diz: “Eu sou judeu, nasci em Tarso da Cilícia,

mas criei-me nesta cidade e aqui fui instruído aos pés de Gamaliel, segundo a

exatidão da lei de nossos antepassados, sendo zeloso para com Deus, assim como

todos vós o sois no dia de hoje”.

Digno de registro são as palavras de G. Bornkamm sobre a vida de Paulo:

[...] Paulo se transformou num apaixonadoentusiasta da Lei, como o demonstra precisamente a suaopção e decisão pela corrente dos fariseus. Os Atos dosApóstolos estão certamente corretos quando afirmamque ele recebeu a sua formação em Jerusalém, centroespiritual do movimento. A este período, com certeza,faz referência quando afirma que “progredia, nojudaísmo, mais do que muitos compatriotas da minhaidade, distinguindo-me, no zelo, pelas tradiçõespaternas” (Gl 1,14) e que era “irrepreensível quanto àjustiça que há na Lei” (Fl 3,6).890

886 Ibidem, pp. 16,17.887 CARRIKER, Timóteo Charles, op. cit., p. 224.888 HOLZNER, Josef, op. cit., p. 17.889 Ibidem, p. 19.890 BOMKAMM, G., op. cit., p. 40.

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Digna de nota também é a percepção de que toda a influência judaico-

religiosa na formação de Saulo tenha, sem sombra de dúvida, contribuído para

uma mentalidade nacionalista e sem qualquer visão do outro e do novo.891 Daí,

lançar-se ele cegamente à perseguição dos judeus convertidos ao cristianismo. 892

Neste contexto, Saulo vive uma religiosidade do tipo intramuros, ou seja, o

judaísmo fechado que ele vivia não admitia qualquer outro tipo de religião.893 A

partir daí, houve uma espécie de inquisição, da qual ele foi nomeado inquisidor-

geral. Espiões, soldados do Templo, plenos poderes, tudo se encontrava à sua

disposição. 894

Ao lançar-se como perseguidor da Igreja, Saulo traz para si a palavra zelo.

Diz ele: “No zelo, perseguidor da Igreja” (Fl 3,6). “No zelo pelo judaísmo,

ultrapassava muitos dos companheiros de idade da minha nação, mostrando-me

extremamente zeloso das tradições paternas” (Gl 1,14). “Esse mesmo zelo

inflamava o coração dos ‘zelotes’, que se rebelaram contra os romanos e se

lançaram numa guerra santa contra o seu domínio”.895 “Perseguia ferrenhamente a

Igreja de Deus e procurava exterminá-la” (Gl 1,13). “Nem sou digno de ser

chamado apóstolo, pois persegui a Igreja de Deus” (I Co 15,9). “Chamou-me ao

ministério, a mim, que outrora era blasfemo, perseguidor e violento” (I Tm

1,12,13).

891 ASHERI, Michael. O Judaísmo vivo. As Tradições e as Leis dos Judeus Praticantes. Rio deJaneiro. Imago. 1995, pp. 27-31.892 Ibidem, p. 24. O referido autor comenta o seguinte: “A Lei judaica, contida no pentateuco, que,na sua essência, é obra de Moisés, foi-se desenvolvendo mais tarde entre os Profetas e adquiriuuma importância histórica mundial quando Esdras, no ano de 445 a.C., por ordem do rei dospersas, a tornou obrigatória para os judeus que tinham regressado do cativeiro na Babilônia.Privado de autonomia política e de qualquer política exterior, o povo judeu concentrou todas assuas apaixonadas energias em si próprio. Os dois pólos em torno dos quais girava toda a vidanacional de Israel passaram a ser a Lei, que regulava até os menores detalhes da vida humana,tinha os olhos fixos no passado e estava vinculada à tradição e à esperança messiânica expressadano anelo pelo estabelecimento definitivo do ‘reino de Deus’ e da soberania judaica sobre as naçõespagãs. Este foi o começo do que entendemos propriamente por judaísmo”.893 É exatamente a partir daí que ele se lança contra os do “Caminho”. É perfeitamente aceitável oargumento de que, até então, Saulo não tivesse qualquer visão inculturada quanto ao processo deevangelização que ele colocaria em prática a partir de sua conversão. Sua formação judaico-religiosa não fora suficiente para dar-lhe tal percepção quando de sua conversão. Por isso, seuencontro com o Senhor Jesus possui muito mais brilho, visto não se tratar apenas de mudança devida, mas de visão.894 ASHERI, Michael, p. 39.895 HOLZNER, Josef, p. 40.

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Atos diz mais acerca do ódio de Saulo:

Saulo, porém, só respirava ameaças e morte contra osdiscípulos do Senhor. Apresentou-se ao Sumo Sacerdotee lhe pediu cartas de recomendação para as sinagogas deDamasco, com o fim de levar presos para Jerusalémtodos os homens e mulheres que achasse seguindo taldoutrina.896

4.4.1Paulo: sua Missão e o Processo de Evangelização Inculturada

Sem dúvida alguma, o paradigma do processo de evangelização do apóstolo

Paulo foi Jesus de Nazaré, Aquele que havia mudado toda a sua vida.897 Sua

motivação missionária, portanto, sempre foi a sua vocação. Ela era determinante,

pois desde o momento de sua conversão, Paulo sabia de sua missão entre os

gentios (Gl 1, 15 ss.).898

É preciso esclarecer que, no processo de inculturação da fé através da

missão paulina, não havia qualquer conceituação ou mesmo conhecimento sobre o

termo inculturação.899

Entretanto, percebemos com clareza que esta estratégia missionária estava

presente em toda a ação missionária de Paulo. Sem dúvida, um dos fatores

preponderantes do seu sucesso missionário foi evangelizar a partir das culturas

existentes.900

896 Cf. Gl 1, 13; I Cor 15,9; I Tm 1,12,13; At 9,1,2.897 FOULKES, Ricardo B. Motivos Paulinos para La Evangelizacion. In.: Costas OrlandoCostas, op. cit., p. 71.898 FOULKES, Ricardo B., op. cit., p. 68.899 Por inculturação, entende-se o processo pelo qual a evangelização se faz a partir de dentro doselementos culturais pré-existentes. Significa tomar os valores culturais da cultura subjacente. JesusCristo, por exemplo, agiu exatamente assim, ou seja, a partir de dentro de sua cultura, Ele iniciouseu processo de evangelização, falando da chegada do Reino de Deus e pregando a sua desafiadoramensagem. Podemos, ainda, afirmar que inculturação é o processo pelo qual a semente da Palavraé lançada na terra da cultura, e a terra produz uma nova planta. Por isso, conforme o tipo daterra/cultura, haverá um tipo de evangelização. No próximo capítulo deste trabalho (O Desafio deSer Igreja no Mundo Urbano) daremos outras definições sobre o termo inculturação. Ver asseguintes obras: Culturas e Evangelização. Paulo Suess (Org.). São Paulo: Loyola;Entroncamentos & entrechoques. Vivendo a Fé em um Mundo Plural. Marcello Azevedo S. J. SãoPaulo: Loyola; Inculturação - Desafios de Hoje. Márcio Fabri dos Anjos (Org.). Rio de Janeiro:Vozes; A Utopia Possível - Em Busca de um Cristianismo integral. Robinson Cavalcanti. MG:Ultimato.900 GREEN, Michael, pp. 240-242.

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Podemos citar aqui, em linhas gerais, alguns episódios vividos por Paulo que

caracterizam muito bem essa questão de sua ação kerigmática “inculturada”. Por

exemplo, em Atos 16, 13, ele aparece de modo informal, realizando uma reunião

de oração à beira de um rio. Logo em seguida, ou seja, em Atos 16, 15, ele se

expressa de forma familiar, entrando na casa de Lídia, iniciando ali uma célula

cristã. Em Atos 16, 16-18, já o vemos intrépido, confrontando “demônios” em

nome de Jesus Cristo, causando grande impacto à comunidade. Em Atos 16, 24,

25, ele é capaz de cantar na prisão a ponto de incomodar tremendamente o

carcereiro, após um terremoto. Paulo era criativo.

Em Atenas sua estratégia era dinâmica, usava assinagogas para falar aos religiosos, usava praças parapregar a quem interessasse, a quem estivesse passandolá, e usava o teatro universitário e o Areópago, o lugardos grandes oradores, na dinamicidade da implantaçãoda Igreja de Jesus naquele lugar (At 17, 19-23).901

Observando Atos 18 e 19, 8,9, deparamo-nos com um homem lógico e

sistemático. Os verbos utilizados por Lucas para descrever as características da

evangelização e do ensino, empreendidos por ele são todos associados à

inteligência, à lógica, como por exemplo: “Ele persuadia (três vezes), discorria

sobre as Escrituras, ensinava com método na escola de Tirano. Paulo era um

homem aberto para o extraordinário, e Deus, através de suas mãos, realizava

coisas maravilhosas” (At 19,11).

Não pode haver dúvidas de que os primeiros missionários foram

influenciados pela importância estratégica de certas cidades, nas quais se tornaram

alvos prioritários no contexto mais amplo de pregar o evangelho a todo o mundo.

Paulo foi o exemplo mais explícito dessa estratégia. Ele escolheu lugares que

eram centros da administração romana, da civilização grega, da influência judaica,

e de importância comercial.902

Paulo escrevendo aos Gálatas, cerca de 20 ou 25 anos depois de sua

conversão, diz:

901 Id., Como Começar um Ministério Novo. São Paulo. Ed. Abba. 1995, pp. 30,31.902 GREEN, Michael, p. 317.

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Imediatamente parti para a Arábia, sem recorrer anenhum conselho humano, sem ir a Jerusalém ver os queantes de mim eram apóstolos. Da Arábia voltei aDamasco. Três anos depois, subi a Jerusalém paraconhecer Cefas e fiquei com ele quinze dias. Dos outrosapóstolos não vi mais nenhum, mas somente Tiago,irmão do Senhor. Em seguida fui para as regiões da Síriae da Cilícia. Ainda era pessoalmente desconhecido dascomunidades da Judéia. Elas só tinham ouvido dizer:“Aquele que antes nos perseguia, agora prega a fé queoutrora combatia”. (Gl 1,16-23).

Paulo foi avistar-se com Pedro porque este era decerto modo o representante dos Doze. Não foi para fazerato de submissão, mas para que houvesse como umreconhecimento mútuo das missões. Paulo reconhecia aqualidade de apóstolos de Pedro e dos Doze, e esperavaser também reconhecido como apóstolo por eles.903

Atos nos informa que, quando voltou para Damasco, depois de um tempo

cuja duração não se sabe, Paulo passou imediatamente a pregar o evangelho. A

resposta dos judeus foi imediata, ou seja, quiseram matá-lo. Ele teve que fugir (At

9,25).904

Sem dúvida, o ponto de partida das missões cristãs foi a Igreja

neotestamentária. Temos as palavras do Senhor ressuscitado em Atos 1,8: “[...]

mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas

testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até aos

confins da terra”.

Assim,

Os discípulos, assustados e inseguros, que haviamfugido durante as horas de agonia do seu mestre na cruz,haviam sido capacitados com o Espírito Santo no Dia dePentecostes, nascendo, assim, o movimentomissionário.905

903 COMBLIN, José, p. 32.904 BITTENCOURT, B. P., p. 47.905 TUCKER, Ruth A. p. 28.

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O apóstolo Paulo, indiscutivelmente, fez jus ao título de maior missionário

da primeira Igreja. Nas palavras de Scott Latourette, “ele tem sido, ao mesmo

tempo, o protótipo, o modelo, e a inspiração de milhares de sucessores”.906 Paulo

tornou-se o evangelista mais ativo do cristianismo do primeiro século. Suas

viagens missionárias o levaram a diversas cidades através de todo o mundo

mediterrâneo, onde pôde implantar, eficazmente, a partir do conjunto cultural,

social, moral, econômico, espiritual etc., as Igrejas nativas de cada local. Em todo

o seu processo de evangelização, através de suas viagens missionárias, ele nunca

utilizou um modelo eclesial fechado, um pacote eclesiástico, ou uma estrutura

eclesiástica rígida. Ao contrário, as Comunidades iam nascendo a partir do seu

ethos cultural.907 Vejamos ainda o testemunho de José Comblin acerca de Paulo:

Paulo foi a irrupção do imprevisível na Igreja.Ninguém tinha pensado nele. Ninguém o preparou.Quando ele se tornou cristão, não souberam o que fazerdele e o mandaram de volta para Tarso. No entanto,quase toda a história cristã desde então teve a sua origemnele, enquanto quase nada permaneceu das obras dosDoze escolhidos por Jesus.908

Quando olhamos para o contexto do NT, percebemos que o apóstolo Paulo,

o grande missionário inculturado e plantador de Igrejas, pensava e agia

estrategicamente.909 Quando foi enviado, já tinha sido convertido havia pelo

menos doze anos e havia se tornado um dos líderes da Igreja de Antioquia, uma

das principais Igrejas daquela época e que se tornou o centro das missões.

Não se pode negar que Paulo se beneficiou do grande conhecimento que

adquirira do judaísmo, apreendido aos pés de Gamaliel. No entanto, percebemos

com muita clareza que seus planos e estratégias estavam sempre conduzidos pelo

vento do Espírito Santo. Por isso, “não eram planos superplanejados, inflexíveis e

devidamente executados, mas consistiam num agir inteligente, flexível sob a

orientação do Santo Espírito”.910

906 LATOURTTE, Kenneth Scott. The First Five Centuries. Vol. 1. A History of the Expansionof Christianity. Grand Rapids: Zondervan. 1970, p. 80.907 CARRIKER, Timóteo Charles, op. cit., p. 228.908 COMBLIN, José, op. cit., p. 08.909 MEEKS, Wayne A., op. cit., pp. 21-26.910 VELLOSO, Ary. Iniciando Novas Igrejas. In.: HORREL, J. Scott, op. cit., p.111.

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Penetrante e de grande ajuda, quando se trata de implantação de Igrejas, é a

observação que Roland Allen faz do ministério de Paulo:

Em pouco mais de dez anos, Paulo estabeleceu aIgreja em quatro províncias do Império: a Galácia, aMacedônia, a Acaia e a Ásia. Antes de 57 a.D., Paulo jápodia falar do seu trabalho ali como tendo sidocompletado e podia planejar viagens extensivas para oextremo ocidente sem a preocupação de que as Igrejasque fundara pudessem perecer na sua ausência pela faltade sua orientação e apoio. O trabalho do apóstolodurante esses dez anos pode, portanto, ser tratado comouma unidade. Seja qual for a assistência que ele tenharecebido da pregação de outras pessoas, é inquestionávelque o estabelecimento das Igrejas nessas provínciasrealmente foi o trabalho dele. Nas páginas do NT, ele, esomente ele, destaca-se como fundador delas. E otrabalho que ele realizou foi realmente completo.911

O apóstolo Paulo usou uma estratégia basicamente simples, ou seja, “ele só

tinha uma vida, e estava decidido a usá-la o máximo possível, tirando dela o

melhor proveito no serviço de Jesus Cristo”.912 Sua visão missionária possuía as

perspectivas pessoal, urbana, provincial e global.

911 ALLEN, Roland. Missionary Methods: St. Paul’s or Ours? (Grand Rapids, MI: Eerdmans,1962). Apesar do autor afirmar que o ministério de Paulo durou pouco mais de dez anos, vale dizerque seu ministério teve uma extensão de aproximadamente vinte anos.

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4.4.2Paulo e sua Concepção de Evangelho

Na concepção paulina o termo evangelho busca evidenciar o conteúdo e a

forma de sua própria missão. O Evangelho significa a proclamação da mensagem

e o seu próprio conteúdo. E o conteúdo central do Evangelho é Jesus Cristo.913 A

sensibilidade de Paulo não permite identificar o Evangelho com qualquer anúncio

que não se refira a Cristo.914 Para Paulo o Evangelho não é uma mera mensagem

discursiva. O Evangelho promove relação indispensável com a História e

comportamento dos homens e mulheres de Deus.915 O Evangelho anda par e passo

com o anúncio e transformação de vida (2 Co 6.4-10). De igual forma as

comunidades de fé devem viver.916

Paulo percebe o mesmo paradigma na teologia de Calvino. A compreensão

sobre a Lei e o Evangelho é o grande liame que produz o novo cidadão do Reino

de Deus vivendo na história dos homens. Cada discípulo é desafiado a viver de tal

maneira que glorifique a Deus.917 Para Calvino, há um princípio fundamental da

vida cristã, descrito da seguinte forma:

Os cristãos não pertencem a si mesmos, mas aoSenhor. Isto os leva, inclusive, à autonegação, tanto emrelação a outros quanto em relação a Deus. Em relação aoutros, os cristãos negam a si mesmos perdoando esendo humildes, bem como servindo a outros em amor.Em relação a Deus, autonegação significa sujeitar-se aosSeus julgamentos, procurando não fazer outra coisasenão a vontade divina, e carregando a cruz. O carregarda cruz não é algo que acontece para alguns cristãosdesafortunados, mas é um sinal necessário da vida cristã.A atitude cristã para com a cruz, entretanto, é muitodiferente da atitude estóica. O estóico busca o controlede si mesmo e a firmeza; o cristão simplesmente confiaem Deus e admite a fraqueza. Assim, as provaçõesestóicas acumulam orgulho e pecado, enquanto que acruz cristã nos afasta da autoconfiança e nos leva para aconfiança em Deus.918

912 GREEN, Michael, op. cit., p. 318.913 GOPPELT, L, op.cit., p. 355.914 Ibidem, p. 356.915 Ibidem, p. 359.916 Ibidem, p. 360.917 Institutas, livro III, cap. 10.918 Institutas, livro III, cap. 8, seção 9.

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Todo cristão alcançado pela graça de Deus em Cristo Jesus, torna-se liberto

do pecado e, por conseguinte, liberto da Lei. “Em Cristo, o problema religioso do

pecado é resolvido, e o homem restabelece sua comunhão com Deus. A

desobediência é transformada em obediência; a imagem de Deus no homem é

renovada e ele deixa a escravidão”.919 Assim, a nova vida é uma vida em

comunidade, a Igreja. E esta, é chamada e enviada para o cumprimento de sua

missão.920

919 FERREIRA, E. M., p. 33.920 Resposta ao Cardeal Sadoleto, p. 32.

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Conclusão

Verificamos, de forma muito prazerosa, a presença de Deus no palco da

História, através da encarnação de Jesus Cristo, que inaugurou a chegada do

Reino e trouxe definitivamente a mensagem da liberdade cristã, tendo os

evangelhos como nossa fonte primária e a carta de são Paulo aos Gálatas e,

fundamentalmente Jesus Cristo como seu principal interlocutor, como presença

real e histórica do Reino e o anúncio da liberdade, que vem acompanhado de suas

atitudes, que são sinais da atuação deste Reino.

Vimos que Jesus revoluciona todo o conceito acerca da lei, mesmo sendo o

cumprimento da mesma, demonstrou absoluta e total liberdade em relação a tudo

àquilo que oprimia o homem. Na verdade, para Jesus, a lei deveria estar a serviço

do homem, e não o contrário. Viu-se Jesus como a nova e única proposta de Deus

ao homem, a fim de humanizá-lo, tornando-o livre da força opressora do mal, do

pecado e de todo tipo de religiosismos. A expressão de Jesus Cristo “e

conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8.32), tem, em sua própria

pessoa e existência, sua corroboração, pois, Ele fala a verdade e põe em ação a

verdade libertadora, que é a manifestação da liberdade absoluta com que Deus

partilha conosco sua vida, sua verdade e seu amor.

Finalmente, vimos que, na perspectiva paulina Deus, é absolutamente livre

e, portanto, criou o homem para viver em liberdade, sendo esta a Sua maior

vocação. A vocação de Deus possibilita ao homem, ao mesmo tempo, a conquista

e a construção da liberdade, sempre como acolhida e resposta à graça de Jesus

Cristo, pela poderosa ação do Espírito Santo.

Posto isso, nosso último desafio é articular as concepções teológicas de

Calvino, naquilo que empreendemos realizar, tendo o terceiro capítulo como

elemento escriturístico, basilar dentro da temática proposta, estabelecendo um

diálogo com os interlocutores modernos e pós-modernos, oferecendo alguns

caminhos de atualização da teologia calvinista, como viabilização de encontro,

vivência, práxis e anúncio do Evangelho que promove a liberdade do homem. Eis

o nosso próximo labor.

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Quinto Capítulo

5Ação Querigmática da Igreja e a Liberdade Cristã

Sociologicamente, a liberdade humana, nos tempos modernos, dá-se na

medida em que a população mundial pratica uma migração para os grandes

centros urbanos. O vetor da liberdade moderna passa, sem dúvida alguma, do

campo tradicional para a vida nas grandes cidades, marca irrefutável da

modernidade dos últimos 100 anos, pelo menos. Entretanto, precisamos entender

que a modernidade prometeu a liberdade pela via da produção de bens materiais,

onde “a abundância levaria à liberdade”,921 mas, lamentavelmente, a fartura não

foi capaz de trazer a tão esperada liberdade. Pelo contrário, fortaleceu e instigou

ainda mais o desejo de uma pequena minoria que, pelo poder do monopólio das

indústrias que produzem, reafirma a grande frustração da maioria. Na verdade, diz

Comblin, “a dominação não vem da escassez, e sim da má distribuição”.922 Ou

seja, intuímos e concluímos que a liberdade, na modernidade, não chega pelo

caminho da produção.

O caminho da verdadeira liberdade, proposta pelo Evangelho libertador,

vivida e anunciada por Jesus Cristo, trata-se da busca do outro. Mais uma vez

Jesus é o paradigma absoluto dessa via que ultrapassa todos os tempos e barreiras

culturais, ideologias religiosas, interesses econômicos. Esta é a resposta do

cristianismo. No caminho da autodoação, da entrega, do serviço ao outro, do

assumir o lugar do homem excluído e em atitude de ruptura constante com Deus, é

que Jesus chama e envia Seus discípulos a viverem e a proclamarem.

921 COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus. 1998, p. 309.922 COMBLIN, José, op. cit., p. 309. A política também não foi capaz de produzir a liberdade, poisviu-se atrelada e submissa aos caprichos do poder econômico.

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Nosso foco de interesse, neste último capítulo, passa pelo desafio de

interpelar o pensamento estudado de Calvino, estabelecendo conexões com os

atuais interlocutores. Os paradigmas estudados em Calvino e tratados neste

trabalho servirão de nexos com a contemporaneidade, numa busca de atualização,

desafios e práxis do genuíno Evangelho de Jesus Cristo. À luz dos temas

elencados em Calvino, buscaremos uma proposta integral da vida cristã.923

Quando pensamos numa Igreja exercendo sua vocação histórica de forma

relevante na sociedade e na expansão do Reino de Deus, temos que considerar a

possibilidade de uma atualização calvinista como proposta e resposta para o

mundo contemporâneo, a fim de que estabeleçamos diálogo com nossos

interlocutores.

A célebre frase Ecclesia reformata et semper reformanda est - A Igreja

reformada está sempre se reformando – expressão formulada após a Reforma e

vastamente utilizada no século XIX, precisa ser a tônica da Igreja na pós-

modernidade, frente a tantos e urgentes desafios, que exigem da Igreja uma

postura cada vez mais adequada aos novos tempos e, ao mesmo tempo, sem abrir

mão de seus pressupostos bíblico-teológicos. Especialmente com Calvino, na

chamada Segunda Reforma, era expressão comum e desejada. Há certo paradoxo

protestante, ou seja, a Reforma do Século XVI nasceu com a proposta de

contestação, de mudanças radicais nas bases da fé cristã, apresentando-se como

revolucionária e libertadora, como uma via alternativa, o que de fato aconteceu.

Porém, com o passar do tempo, sofre com o perigo, sempre iminente, de um

tradicionalismo rígido, extremamente conservador, paralisante, fechado,

descolado da realidade.

923 WURTH, G. Brillenllenburg. “Calvin and the Kingdom of God”, John Calvin:Contemporary Prophet (editado por Jacob T. Hoogstra), p. 122. Cf. FERREIRA, Edijéce Martins.A Ética de Calvino. Edição comemorativa do centenário do presbitério de Pernambuco. Recife:1988, p. 13.

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Portanto, cremos que se faz necessário e oportuno buscar uma constante

reforma e, em nosso caso, retornar aos fundamentos basilares da fé cristã,

encontrados nas Escrituras e nas grandes doutrinas exposadas não apenas pelos

reformadores, mas também pelos pais da Igreja e tantos outros homens de Deus, a

fim de não perdermos nossa identidade reformada e influenciarmos,

positivamente, sem imposição, a Igreja Evangélica Brasileira, tão sem rumo e sem

conhecimento bíblico e, conseqüentemente, sem firmeza doutrinária. Influenciar

também nossa sociedade, buscando transformações em todas as suas dimensões e

oportunando, ao homem, uma vida melhor, mais humana.

Nesse sentido, o princípio reformado autoriza-nos resgatar o pensamento de

Calvino e atualizá-lo diante das demandas atuais naquilo que houver, de fato,

necessidade. Significa, em outras palavras, retomar a proclamação genuína da

Palavra de Deus, visto que “a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual, já

que nada que é necessário e útil ao conhecimento é omitido, também nada é

ensinado que não se precise saber”.924 O cristianismo “é um poder

reconstrutivo.”925 Como falaremos mais adiante, numa sociedade repleta de

carência das Escrituras na vida social e individual, no meio de uma Igreja

Evangélica Brasileira, em muitos segmentos, beirando às raias do misticismo e do

relativismo escriturístico, retomar os princípios reformados parece-nos uma

necessidade urgentíssima.

5.1O Querigma Libertário: Libertação da Igreja Diante dos Desafios daPós-Modernidade

O querigma da Igreja pós-moderna precisa trazer, mais do nunca, os sinais e

a presença plenos do Reino de Deus (Mc 1,15), que tem a ver com a realeza de

Deus, atuando nos corações dos homens e mulheres desse tempo, provocando

verdadeira liberdade interior e nas dimensões externas do ser humano e no meio

onde ele habita.

924 Institutas, vol. IV, XX, 3.925 GUTHRIE, Shirley C. Sempre se Reformando. A Fé Reformada em um Mundo Pluralista.São Paulo: Pendão Real. 2000, p. 7.

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A ação da Igreja, na história, concretiza o Reino na medida em que o

anúncio do Evangelho libertador produz a plenitude salvífica futura, resultado da

salvação presente, como resposta à oferta graciosa de Deus.926 Paradoxalmente,

submeter-se ao senhorio desse novo reino é encontrar a verdadeira liberdade, pois

a graça de Deus nos convida a uma resposta de amor, de relação, de entrega,

jamais de totalitarismo. Na verdade, o domínio de Deus é de amor. Experimentar

a realidade do reino é fazer a própria experiência salvífica, é encontrar as sendas

da liberdade. A experiência de salvação oferecida por e em Jesus é integral,

permeando todas as dimensões do ser humano.

A práxis de Jesus expressa muito mais preocupação com o homem do que

com tradições e prescrições. Sua liberdade era sempre capaz de relativizar todo

tipo de religiosidade opressora de sua época, fundamentalmente resultado de sua

experiência com o Pai. Ou seja, Jesus Cristo revelou um Deus sem preocupações

em avaliar as ações meritórias do homem – religiosas – para com Ele, mas “um

Deus que aceita o homem como é, que o ama e perdoa sem impor condições”.927

A beleza do ministério de Jesus como paradigma eclesiológico é a sua

capacidade em revelar, concretamente na história, o mistério de Deus de forma

compreensível e tangível aos homens e mulheres de seu tempo, sobretudo, os mais

simples e marginalizados. Ao demonstrar quem era Deus para Ele – Jesus -,

concretiza-se a relevância do Reino de Deus, pois sua intervenção no mundo não

acontece pela via de qualquer programa ético-moral, mas pela nova e graciosa

forma de relacionamento com Deus, ofertada ao homem. Eis o Evangelho

libertador, que não apenas perdoa e justifica o imperdoável, mas propicia uma

nova relação com o doador da liberdade, o Pai, por meio do Filho, pela ação do

Espírito Santo. Aí está a Trindade agindo na redenção do homem.

926 MIRANDA, Mário de França. Libertados para a Práxis da Justiça. A Teologia da Graça noAtual Contexto Latino-Americano. São Paulo: Loyola, 2002, p. 26.927 Ibidem, p. 28.

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A presença da Igreja, no mundo, como continuação do ministério de Jesus

Cristo, firma-se pela sua práxis e anúncio do Reino de Deus, que carrega em si o

chamado à liberdade e a quem responde a vocação da graça, livra-se da escravidão

do pecado, das forças meritórias de qualquer religiosidade, da opressão do diabo,

de si mesmo e abre-se à nova vida, ofertada pelo único capaz de promover tal

libertação – a experiência com o Cristo de Nazaré. Ou seja, não existe salvação

sem a experiência da liberdade.928

A Igreja é chamada por Deus, enviada por Jesus Cristo e capacitada pelo

Espírito Santo a viver historicamente a experiência trinitária, estando

fundamentalmente a serviço do ministério da reconciliação. À semelhança de

Jesus Cristo, a Igreja, comunitária e individualmente, exerce seu ministério de

contínuo êxodo, saindo de si mesma e caminhando na direção dos outros, dos

pobres, dos rejeitados, dos injustiçados, dos pecadores em geral. Ou seja, como

parte da natureza eclesial, ela vive voltada para fora de si mesma, jamais

endogenamente, fechada em si mesma.929

Se entendermos este fato, compreenderemos que a vida total da Igreja está

relacionada e envolvida no que Deus está fazendo no mundo.930 Por isso, a Igreja

vive para a sua missão.931 A missão da Igreja é a razão de ser da sua existência.

Não como uma de suas atividades, mas como a sua atividade específica, a sua

vocação especial, pois não há participação em Cristo sem participação na Sua

missão no mundo.932

928 Ibidem, p. 59.929 CARRIKER, Timóteo Charles. Missão Integral. Uma Teologia Bíblica. São Paulo: SEPAL.1992, p. 202.930 CAVALCANTI, Robinson, op. cit., pp. 16-27.931 FOX, H. Eddie & George E. Morris. Anunciemos o Senhor. A Evangelização na Virada doSéculo. São Paulo: Imprensa Metodista. 1994, pp. 125-139.932 PADILLA, C. René, op. cit., pp. 139-142. Cf. V.V.A.A. A Missão da Igreja no Mundo deHoje. Principais Palestras do Congresso Internacional de Evangelização Mundial Realizado emLausane, Suíça. Howard A. Snyder. A Igreja como Agente de Deus na Evangelização. SãoPaulo: ABU. 1984, pp. 87-91. Ver também: CÉSAR, Élben Magalhães Lenz. Missões eTentações. In.: CARRIKER, Timóteo (Org.). Missões e a Igreja Brasileira. A VocaçãoMissionária. Vol. 1. São Paulo: Mundo Cristão. 1993, pp. 41-43. Ver ainda: CARRIKER, TimóteoCharles. Missões e a Igreja Brasileira. A Vocação Missionária. Vol. 01. São Paulo: MundoCristão. 1993, pp. 1-10.

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A Igreja precisa saber como ela deve ser e o que ela deve fazer.933 Ela

precisa, para realizar a obra de evangelização, sentir-se parte efetiva do

movimento do Espírito Santo de Deus, do contrário ela não faz missões. Assim,

evangelizar é participar com Deus no processo de redenção e salvação dos Seus

escolhidos. É participar da Missio Dei.934

Portanto, “sem a missão da Igreja a história nada mais é do que a história

humana, cujo progresso consiste, na melhor das hipóteses, na intensificação de

sua catástrofe. Mas se sabemos da vinda do Reino nos alegramos em proclamá-

lo”.935 Karl Barth descreve a missão da Igreja da seguinte maneira:

Entendida no sentido mais estrito da palavra - oqual, contudo é o sentido real, original - “Missão”significa “enviar”, enviar às nações com o propósito detestificar o Evangelho, o qual representa a raiz daexistência e ao mesmo tempo a raiz também de toda atarefa do povo de Cristo. Na “Missão”, a Igreja sedescobre e se põe no seu caminho (Poreuthentes - Mt28,19) e, para tanto, dá o passo necessário nasprofundezas do seu próprio ser, passo além de seupróprio ser e além de seu próprio ambiente, para dentrodaquela humanidade que está aprisionada a tantascrenças falsas, obstinadas e impotentes, e sujeita a tantosdeuses falsos de invenção e autoridade mais antigas emais recentes - para aquele mundo dos homens que aindasão estranhos à Palavra de Deus, concernente à Suagarantia de misericórdia que os inclui, à palavra que emJesus Cristo também lhes foi enviada [...].936

O conteúdo da evangelização é Jesus Cristo, Evangelho do Pai, que

anunciou com gestos e palavras que Deus é misericordioso para com todas as suas

criaturas, que ama o homem com um amor sem limites e que quis entrar na sua

história por meio de Jesus Cristo, morto por nós, para nos libertar do pecado e de

todas as suas conseqüências e para nos fazer participar de sua vida divina.937 Nas

palavras de Paulo VI, evangelizar é anunciar “o nome, a doutrina, a vida, as

promessas, o Reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus”.938

933 Isso era algo que devia estar muito claro na mente e no coração da Igreja. Era uma novasociedade com uma nova mensagem. Cf. C. PADILLA, René, op. cit., pp. 24-37.934 PATE, Larry. Missiologia: A Missão Transcultural da Igreja. São Paulo: Vida. 1987, pp. 4-26.935 BLAUW, Johannes, op. cit., p. 110.936 Ibidem., p. 117. Cf. “Relatório do Conselho Consultivo do Principal Tema da SegundaAssembléia - Cristo, a Esperança do Mundo”, p. 18. In The Christian Hope and the Task of theChurch, Nova York: Harper Bros, 1954.937 Cf. João Paulo II. Homilia em Veracruz. México: 7.5.90.938 EN, 22.

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Todo processo de evangelização inculturada passa pelo desafio de não

resumir a mensagem cristã em um discurso meramente tradicional, anacrônico,

muitas vezes, e, pior, centrado na autoridade da Igreja. A evangelização precisa

considerar o tempo no qual ela se dá. O caminho da evangelização tem que passar

pela consciência e sensibilidade de seus interlocutores. Todo processo de

evangelização não pode abandonar a racionalidade. Uma racionalidade capaz de

desmascarar a idolatrização da pós-modernidade.939

Aspecto importante da realidade da Igreja é o fato definitivo e total da obra

redentora de Jesus Cristo, ou seja, ato decisivo e básico da reconciliação de toda a

criação, que longe de enfraquecer o ímpeto missionário da Igreja, é a certeza que

constitui o fundamento legítimo para uma proclamação urgente e séria a todos os

homens.940 A missão da Igreja é parte integrante da obra final de Jesus Cristo e a

missão é cristã, na medida em que sua motivação reside na certeza de que a

salvação do homem foi realizada em Cristo e que nEle a nova humanidade foi

inaugurada.941

5.1.1O Espírito Santo e o Anúncio do Querigma Libertário

Jamais poderemos considerar o Evangelho e seu anúncio como sendo algo a

atingir partes do ser humano. Ao contrário, a liberdade promovida pelo Evangelho

é profunda e integral. Profunda, porque o liberta de si mesmo, de seu egoísmo, de

sua auto-independência. Integral porque o liberta para a entrega radical a Cristo,

para o outro, para o amor-serviço, para um novo relacionamento com o Criador e

a criação, alterando seu ethos existencial. Esta liberdade profunda e integral é

operada pelo Espírito Santo, pois, no espaço da ação do Espírito, a liberdade se

concretiza (2 Cor 3,17).942

939 STEUERNAGEL, Valdir. Obediência Missionária e Prática Histórica. São Paulo: ABU.1993, pp. 154-155.940 STAGG, Frank. Atos - A Luta dos Cristãos por uma Igreja Livre e sem Fronteiras. Rio deJaneiro: JUERP. 1994, pp. 44-55.941 PADILLA, C. René, op. cit., pp. 202-206.942 ARANA, Pedro. Bases Bíblicas da Missão Integral da Igreja. A Serviço do Reino. UmCompêndio sobre a Missão Integral da Igreja. In.: STEUENAGEL, Valdir (Editor). BeloHorizonte: Missão Editora. 1992, pp. 84-86.

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A força do Espírito Santo é elemento fundante da Comunidade Cristã, da

Comunidade de Jerusalém e de qualquer Igreja, e nos é concedido pela adesão à

Palavra. A força do Espírito se revela na palavra, na koinonia, nos sinais e nos

prodígios realizados. Tais sinais eram realizados por Jesus. Hoje, são sinais do

Espírito do Senhor na Comunidade Cristã e na obra de evangelização.

A força – dynamis - do Espírito Santo, dada aosdiscípulos, não é mediado por instituições, nem pelacapacidade das pessoas, mas é uma força gratuitaincontrolável, que dá ânimo e coragem frente ao poderestabelecido e capacita as pessoas a enfrentar e atransformar.943

O evento do Pentecostes foi a oportunidade que os homens tiveram de ver e

ouvir as maravilhas de Deus e de captar a mensagem universal do Evangelho. O

Pentecostes nada mais foi do que a ação do Espírito Santo em evangelizar,

inculturando o Evangelho em outras línguas (culturas).944 Ora, aqui está a grande

pista para o caminhar da Igreja hoje, ou seja, ela precisa, na dimensão do Espírito,

diversificar a mensagem do único Evangelho de Jesus Cristo, para que alcance os

mais diferentes povos, línguas e culturas. Ancorados pelo espírito de Pentecostes,

com a abundância do Espírito, a Igreja Evangélica Brasileira precisa redescobrir

sua vocação maior, ser diaconal na ação missionária, com uma práxis libertadora

do Evangelho, coerente com a realidade pós-moderna.945

A evangelização toma sentido e impulso fundamentados na obra que Cristo

realizou, ou seja, na sua entrada no processo histórico através de sua encarnação e

doação de vida ao homem perdido, que estava e está em processo de ruptura com

Deus.946 Isto significa resistir à tentação de não se constituir em valor mais

elevado daquilo que já foi feito por Jesus Cristo e que continua sendo feito

mediante o Espírito Santo.947

943 ROBERTI, Carlos. O Espírito Santo na Obra de Lucas. Revista Estudos Bíblicos 45 - OEspírito Santo - Formador de Comunidades. Rio de Janeiro: Vozes, p. 57.944 ROBERTI, Carlos, op. cit., p. 58.945 RAMOS, Ariovaldo. Veja Sua Cidade Com Outros Olhos. Ação da Igreja na Cidade. SãoPaulo: SEPAL. 1995, p. 25.946 KIVENGERE, Festo. A Cruz e a Evangelização Mundial. A Missão da Igreja no Mundo deHoje. São Paulo: ABU. 1982, p. 231 passim. Todo o artigo é dedicado à fundamentação daevangelização na obra redentora de Jesus Cristo na Cruz do calvário, que teve como objetivosalvar e libertar os oprimidos e cativos. Portanto, a cruz não pode ser vista e analisada como sendoum fim em si mesma. A cruz pela cruz não tem significado algum para a realidade existencial dohomem.947 STOTT, John. A Cruz de Cristo. São Paulo: Vida. 1990, p. 149 passim.

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O que se verifica, hoje, é uma preocupação muito positiva no que diz

respeito às Igrejas no Brasil demonstrando um impulso evangelizador bastante

acentuado e agressivo. Vivemos, hoje, a possibilidade real de comunicar as Boas

Novas de salvação, conduzindo homens e mulheres a viverem a verdade

libertadora de Jesus Cristo.948 Entretanto, não podemos deixar de dizer que,

muitas vezes, este impulso evangelizador tem sido manchado por uma exagerada

preocupação com os interesses econômicos em detrimento do seu serviço

vocacional.949 Harms-Wiebe afirma:

A nossa vivência do evangelho em Cristo nosautoriza a comunicar as boas novas à sociedade (Jo. 17,20-23). Tendo uma paixão por Deus e tendo sentido oamor da comunidade, sentimos uma compaixão profundapelos que não conhecem a Deus (Rm 10, 14-15). Porisso, cada membro do corpo é um sacerdote e tem comofunção colocar pessoas em contato com Deus ediscipulá-las (1 Pe 2, 9-10; 3, 15-16; Mt 28, 16-20).Como Igreja, servimos como liame entre Deus e ahumanidade (2 Co 5, 16-19). Pela maneira de ser,refletimos a semelhança de Deus para o mundo e aomesmo tempo transformamos a sociedade.950

A natureza missionária da Igreja é redescoberta na dimensão do serviço aos

outros. Ela é Igreja quando acontece para os seres humanos, como possibilidade

de recebimento da verdade da ressurreição de Jesus Cristo. Ela acontece no

caminho da graça de Deus, manifestada em Cristo e sustentada pelo poder do

Espírito Santo, que funda, edifica e a faz crescer e viver. Conforme o Concílio

Vaticano II, a Igreja possui uma natureza intrinsecamente missionária, quando

afirma: “A Igreja que vive no tempo, é por sua natureza missionária, enquanto que

é da missão do Filho e da missão do Espírito Santo que essa, segundo o plano de

Deus Pai, deriva a sua origem”.951

948 Institutas, Edição Especial, pp. 105-107.949 KIRK, Andrew. Igreja: Comunidade do Serviço. Rio de Janeiro: VINDE. 1989, p. 9 passim.950 HARMS-WIEBE, Ray. Estrutura Criativa no Contexto Metropolitano - Passos de um processode Transformação. In.: HORRELL, J. Scott (org.). Ultrapassando Barreiras. São Paulo: VidaNova. 1995, p. 31.951 AG, 2; cf. LG, 1. Vaticano II.

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300

Portanto, sem a missão histórica da Igreja, a história nada mais é do que a

história humana, cujo progresso consiste, na melhor das hipóteses, na

intensificação de sua catástrofe.952 Mas, se sabemos da vinda do Reino, não

podemos nos alegrar com apenas a promessa sem deixar de, apaixonadamente,

proclamá-la.953 O Evangelho e sua mensagem não existem separadamente de seu

envolvimento histórico, isto é, eles se vivificam precisamente no confronto

missionário da Igreja com o mundo.954

A obra evangelizadora da Igreja, portanto, deverá aperceber-se lucidamente

das condições concretas do homem pós-moderno, contingenciado ao seu tempo e

espaço, inteirando-se competentemente do seu novo ethos cultural, que subjaz às

turbulências e ao dinamismo da história de cada povo.955 Sem que se perca essa

visão mais ampla, é necessário sentir e meditar em sua repercussão nas nossas

próprias fronteiras.

Jesus Cristo é o cumprimento do AT e o primogênito da nova criação, o fim

de um mundo, o começo de outro novo, “o ponto central da História.”956 Diante da

grandiosidade da obra que Cristo realizou, a proclamação do Evangelho é a forma

do Reino de Deus tornar-se realidade na História. No Espírito Santo, é o próprio

Cristo quem testifica, mas, ao mesmo tempo, são os discípulos que testificam e

modificam as estruturas através do anúncio do Evangelho.957 Blauw afirma que:

À luz deste novo começo, a proclamação doEvangelho entre as nações deve ser entendida como aconcretização das expectativas escatológicas. O novomundo já existe, mas existe apenas para aquele que vê arealidade do domínio de Cristo na proclamação doEvangelho no mundo.958

952 BLAUW, Johannes. A Natureza Missionária da Igreja. São Paulo: ASTE. 1966, p.110.953 LOEFFLER, Paul. Apostilas Sobre Evangelização Urbana. 1980.954 HOUTART, François. A Igreja e o Mundo. Petrópolis: Vozes. 1965. Cf. HORRELL, J. Scott.Ultrapassando Barreiras. Novas opções para a Igreja Brasileira na virada do século XXI.São Paulo: Vida Nova, p. 9. Cf. RENÉ, Padilla C., op. cit., pp. 197-200.955 AZEVEDO, Marcelo S.J. Entroncamento e Entrechoques. Vivendo a Fé em um MundoPlural. São Paulo: Loyola. 1991, p. 81 passim. O autor é Dr. em Missiologia e trabalha muito bema questão do processo de uma evangelização inculturada. É profundo conhecedor da nossarealidade, sendo, sem dúvida, um referencial nesta questão do agir da Igreja nos grandes centrosurbanos e de como deve ser a articulação entre a Igreja e o ethos cultural do homem moderno eurbano.956 Esta é expressão de Jean Daniélou em Essai sur le mmystère de l’histore. 1954, p. 193.957 CAVALCANTI, Robinson. Igreja: Agência de Transformação Histórica. Rio de Janeiro:VINDE. 1987, p. 49 passim.958 BLAUW, Johannes, op. cit. p. 106. Cf. CAVALCANTI, Robinson, op. cit., pp. 59-61. Cf.V.V.A.A. Evangelização no Brasil. Documento preparado pelos participantes do Simpósio deEvangelização, promovido pela ASTE, em São Paulo, em 1967.

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A de se combater o perigo da domesticação de Deus que parece acompanhar

esses movimentos e se manifesta, sobretudo, na ação sobrenatural condicionada,

alardeada sem reserva por alguns grupos. Pode-se dizer que um deus do qual se

faz objeto de manipulação e que é contido nos limites do interesse de indivíduos e

grupos religiosos é precisamente o Deus de todas as religiões, mas não é o Pai de

Jesus Cristo, Sujeito da História e que conduz livremente todas as coisas rumo ao

seu cumprimento. De certo modo, tais movimentos vivem exatamente do

confinamento de Deus na esfera cada vez menos central e vital dos interesses

religiosos.959

5.1.2Igreja: Promotora de Liberdade e de Esperança

Nesta sociedade pós-moderna, tendo como destaque algumas de suas

principais marcas, tais como a perda de valores éticos, a relativização de valores

tidos como absolutos, o consumismo, a desumana competitividade, o utilitarismo

como conseqüência do pragmatismo, o domínio do poder econômico e outros

mais, urge uma vivência eclesial saudável, capaz de promover relações mais

fraternais, mais afetivas, mais solidárias, na verdade, mais humanas. Diante da

Igreja está o desafio de resgatar o valor das relações humanas. O desafio da

convivência. Como já afirmamos, nessa crise aguda do vital humano, que está

completamente enfermo, necessitamos de uma liberdade equilibrada, onde haja

uma fé reflexiva aliada a uma fé afetiva, pela via da vivência do verdadeiro

Evangelho de Jesus Cristo.

959 KIVITZ, Ed René. Pequenos Grupos, uma Velha Novidade. In.: HORRELL, J. Scott (Editor).Ultrapassando Barreiras. São Paulo: Vida Nova, p. 59 passim. Cf. HORRELL, Scott. AEssência da Igreja. São Paulo: Vida Nova, pp. 10,11,27. Cf. com a obra: Evangelização eResponsabilidade Social. Série Lausanne. São Paulo: ABU. Vol. 2, pp. 38-42. Esta obra faz partede uma série de dez volumes sobre o Congresso Mundial de Evangelização, ocorrida emLausanne, Suíça, em 1974.

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Inserido numa sociedade movida pelo poder econômico e assumidamente

consumista, em que se valoriza mais o ter, a aparência, do que o ser, o conteúdo, o

homem é alimentado pela ilusão de que seu valor como pessoa está ancorado

apenas nessa cultura. Busca-se a todo custo o ter em detrimento do ser, tornando o

indivíduo altamente competitivo, encontrando sempre no outro um forte

adversário. Resultado: isolamento planejado e autodestruídor, com evidente

comportamento egoísta, sem a prática da bondade e da generosidade.

As relações assumem uma dimensão de descartabilidade jamais vista. O

utilitarismo e o pragmatismo tornam as pessoas descartáveis. Se associarmos a

incapacidade da pessoa de produzir, o mercado se encarrega de descartá-la.

Subjugado à cultura da descartabilidade, o homem vive o que podemos chamar de

doença do século, a depressão, com todos os seus sintomas de ansiedade, de

medo, estresse, insegurança. Vivemos a era dos tranqüilizantes. Fruto dessa

sociedade descartável, com relações e inter-relações superficiais, vamos encontrar

o núcleo familiar desintegrado, não ocupando mais o centro integrador e gerador

de caráter e da identidade do indivíduo.

O fato de haver menos técnicos e políticos competentes para transformar a

situação mediante aumento de produtividade e uma justa distribuição de renda,

certamente subtrai, cada vez mais, a esperança aos despojados e ameaça a paz

social. E a necessidade de que esses profissionais competentes retornem ao

cenário é, certamente, um estímulo à luta pelo progresso social. É nesse contexto

em que a Igreja Evangélica Brasileira apresenta-se um tanto confusa e, não raro,

dividida, como bem reflete sua maneira de interpretar e de proclamar o

Evangelho. Algumas vezes, ela se limita a denunciar a tendência iconoclasta que

acompanha a crise, já que esta pressupõe o desmoronamento de uma organização

social com a qual a Igreja está habituada, para não dizer identificada.

Nas palavras de Miranda, “a salvação de Cristo consistia em libertar a nossa

liberdade para o amor (a Deus e ao próximo)”.960 Ele ainda afirma que,

960 MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 102.

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[...] no ponto em que chegamos, podemosprecisar mais esta afirmação: a salvação de Cristoé a nossa liberdade, libertada na doação concretado amor fraterno; de fato, a graça só é realidade nohomem quando aceita, e esta aceitação se dá nocompromisso com o próximo; só no amor concretotriunfa a ação salvífica de Deus e,simultaneamente, liberta-se nossa liberdade.961

Sem dúvida, o Evangelho que nos foi confiado proclamar é Evangelho de

esperança, que corresponde às esperanças e aos anseios de todos os homens. Por

isso, a Igreja deverá saber ouvir e compreender o grito de esperança, que é

também um grito de desespero e de protesto, que explode do coração de muitos

filhos da família brasileira. Num sentido muito profundo e preciso, o Evangelho é

dirigido, fundamentalmente, aos pobres e constitui o anúncio da libertação dos

oprimidos e do estabelecimento de uma nova ordem de relações humanas mais

fraternas e mais justas.962 Não se pode negar o poder transformador do Evangelho

na vida dos homens e nas relações.

A evangelização que não salienta essas verdades bíblicas é uma

evangelização prejudicada e que não corresponde aos desafios daquele que se fez

carne e veio para trazer verdadeira e integral libertação e salvação. O povo de

Deus é constituído para viver Cristo nas relações. Nesta perspectiva, toda ética

cristã é ética social, ou seja, uma nova forma de viver com os homens e para os

homens nas complexas estruturas da sociedade moderna. A vida da Igreja do

Senhor Jesus é, portanto, uma vida de testemunho de sua fé em Deus, como

Senhor da História e, conseqüentemente, Senhor das transformações estruturais de

nossa terra.963

A esperança cristã, vista dentro da realidade do Reino de Deus, contém uma

dimensão social extremamente importante, que não pode ser dissociada de seu

cumprimento eterno. Jesus Cristo é, portanto, ao mesmo tempo, o julgamento e o

destino final de todas as aspirações humanas. Primar pela seriedade dessa verdade

talvez seja a mais difícil, mas também a mais promissora tarefa da Igreja, no que

tange à sua missão em nosso país.

961 Ibidem, p. 102.962 PADILLA, C. René, op. cit., pp. 202,203.963 CAVALCANTI, Robinson, op. cit., p. 55.

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Seu resultado pode levar muitos homens a renovar sua confiança no

Evangelho e na Igreja que o prega, e possibilitará aos sofredores ver, sob nova luz,

o verdadeiro sentido de seu sofrimento e da luta por superá-lo. Ao mesmo tempo,

exigirá da Igreja que se propõe a anunciar a Boa Nova, disposição sacrificial para

aceitar o desconforto da incompreensão e da hostilidade, preço da fidelidade de

uma Igreja que quer ser obediente a Jesus Cristo e que quer ser livre no seu

serviço ao homem.964

Portanto, a Igreja é expressão histórica da graça salvífica de Deus em Cristo

Jesus e, sobretudo, nesse contexto pós-moderno, portadora da mensagem

libertadora e promotora dessa experiência salvífica pela mediação única de Jesus

Cristo.965 Nessa sociedade, marcada pelo pecado e repleta de sinais de opressão,

com a proclamação de uma cultura cada vez mais hedonista, consumista e niilista,

constitui-se em grande desafio um compromisso pela construção de uma

sociedade mais humana, em que o vital humano, alvejado pela graça libertadora,

conduza o homem ao verdadeiro sentido da vida. Cabe a Igreja e a cada cristão a

vivência e a proclamação dos valores do Reino.

5.2A Cristologia Calvinista e o Querigma Libertário diante dos Desafiosda Pós-Modernidade

Toda a teologia calvinista possui uma centralidade cristocêntrica, tendo o

seu papel salvífico como único mediador entre Deus e o homem. A doutrina

cristológica não diz respeito apenas ao conhecimento que o homem precisa ter

acerca do salvador, mas também, segundo Calvino, Jesus Cristo é o Verbo eterno

de Deus, eternamente gerado do Pai, existindo antes da encarnação, “fora da

carne”,966 em sua linguagem.

964 KIRK, Andrew, op. cit., p. 27 passim.965 Não queremos assumir, aqui, nenhuma forma reducionista de que, fora da Igreja, não hásalvação, mas evidenciar a vocação eclesial e de cada discípulo, individualmente, na tarefaquerigmática de anunciar as Boas Novas, que promovem a verdadeira liberdade humana.966 Institutas, Vol. II, 13.4.

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A cristologia, segundo Calvino, serve como poderoso instrumento de

combate às novas cristologias pós-modernas que afirmam que não houve morte

expiatória por parte de Cristo, apenas que, morrendo, deixou-nos sua vida como

paradigma a ser seguido.

No mundo altamente plural, verificamos a cristologia cativa de uma

soteriologia, ou de várias soteriologias, uma vez que a salvação encontra, nesse

ambiente, diversos caminhos salvíficos. Nesse sentido, Jesus Cristo é apenas mais

um caminho colocado ao lado de tantos outros. O paradigma central é o

soteriológico, e a cristologia cumpre a vontade de um teocentrismo, pois nesse

cenário, Deus está acima de Cristo. Jesus Cristo não encerra a revelação máxima e

especial de Deus, visto que há outras revelações de igual valor. Cristo está ao lado

de tantos outros, como mais um produto soteriológico no grande supermercado da

fé pós-moderna.

Portanto, nosso propósito é resgatar a cristologia bíblico-reformada na

perspectiva calvinista, evidenciar as questões fundamentais de e em Jesus Cristo e

evidenciar Sua permanente contemporaneidade e colocá-lO em diálogo com a

pós-modernidade.

5.2.1A Atualização da Cristologia Calvinista: Aplicação na CristologiaEclesial

Não há dúvida do enorme desafio diante do contexto socioreligioso em

nosso país, sobretudo com o enraizamento da chamada teologia da prosperidade

nos setores pentencostal e, com muito maior ênfase, no movimento

neopentencostal. Enraizamento que, na prática, acompanha o nascedouro desse

setor evangélico. O ethos evangélico foi tremendamente afetado e alterado, na

qual tais Igrejas são movidas por uma teologia de mercado, causando sérios danos

à imagem da Igreja Evangélica Brasileira e nos trazendo uma crise de

plausibilidade.

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Uma das conseqüências diretas trata-se do surgimento de uma massa de

evangélicos que, em sua relação com a Igreja e com Deus, estabeleceram uma

aliança de troca, ou seja, quanto mais a pessoa consome aquela religião – significa

dizer, seus produtos – mais obterá retorno espiritual e material da parte de Deus,

tudo segundo as promessas dos seus líderes. Na verdade, a teologia de mercado

transformou a fé num grande produto a ser comercializado, com toda a sua linha

de produção, e aqueles que deveriam ser verdadeiros discípulos de Jesus Cristo,

tornaram-se clientes potencialmente vocacionados para o consumo religioso.

Estabelecida esta conexão, significa afirmar que o poder econômico

capitulou o verdadeiro sentido da fé cristã. Os discípulos-clientes, consumidores

que são, não conseguem estabelecer relacionamento duradouro em suas Igrejas,

posto que as exigências sejam muitas, os resultados esperados não surgem e as

frustrações só fazem crescer. Resultado: os consumidores da fé tornam-se

migratórios, os chamados “nômades da fé”.967 Nessa movimentação transitória,

encontramos um significativo comentário:

No Brasil, como em outras partes do mundo, o fieljá não é mais tão fiel assim à sua religião, ele transita emdiversas expressões religiosas. O perfil religioso dohomem e da mulher contemporâneos pode ser altamentecambiante, favorecendo um aspecto religioso numdeterminado momento, e outro logo depois [...]. A idéiade ‘trânsito religioso’ admite o ‘passeio’ por diversasreligiões (mesmo, em alguns casos, havendo predileçãopor uma ou outra) não demanda mudanças intestinais naforma de vida dos transeuntes e dispensa ou atenua ocompromisso com uma instituição específica. Isso podeser mais bem verificado entre aqueles que, apesar deadmitirem uma pertença religiosa, transitam e seapropriam dos mais variados aspectos simbólicos. Nãoque isso não acontecesse anteriormente, mas estamosfalando de uma intensificação disso.968

Vencida pelo poder econômico, processo que se dá, fundamentalmente, pela

trilha midiática, muitas Igrejas ainda demonstram fôlego para continuar esse

caminho. Em Fast Food Gospel, Lourenço Stelio Rega traça um perfil bastante

elucidativo dos crentes migratórios:

967 ROMEIRO, Paulo. Decepcionados com a Graça. Esperanças e frustrações no BrasilNeopentecostal. São Paul:. Mundo Cristão. 2005, p. 158.968 SOUZA, Sandra Duarte. Trânsito religioso e construções simbólicas temporárias: Umabricolagem contínua. São Paulo. UMESP. 2001, pp. 164,165.

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Vivemos numa sociedade do entretenimento, naqual a diversão, o imediatismo e a superficialidade sãoos fios condutores de uma espiritualidade fácil,instantânea e medíocre. Tudo é movido por uma buscaansiosa por qualificação imediata e sensações cada vezmais intensas. A própria vida espiritual virou projeto deentretenimento. No passado, buscava-se a salvação, avida em comunhão com os irmãos na fé; hoje, busca-seum projeto de ‘boa vida’, em que Deus se transformanum mero garçom e o Evangelho, em moeda de trocapara se alcançar o bem-estar [...]. O fast food gospel nosleva a uma espiritualidade sem compromissos, a não ser,apenas, com nossas paixões e impulsos, em que sãodescartados atos significativos do Evangelho autêntico,tais como compartilhamento e camaradagem entre osirmãos. Somos levados por uma cultura de massa.Estamos deixando de ser sal da terra e luz do mundo.969

Compete a Igreja atual, através de sua vivência e proclamação, expressar

uma das maiores verdades de sua própria existência, ou seja, Deus pela sua livre e

soberana vontade, resolveu entrar na história humana, sendo completamente auto-

suficiente e auto-existente e estabelecer uma relação pactual com o ser humano,

única e exclusivamente através de Jesus Cristo, o seu Filho. O texto bíblico diz:

“Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais,

pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho” (Hb 1.1,2). A partir

destas palavras, Calvino afirma o seguinte:

O que ele declarou com essas palavras foi que daípor diante Deus não falaria mais como antes, por estesou por aqueles, e que não juntaria profecias a profecias,nem revelações a revelações, mas que ele completou detal modo toda a perfeição dos seus ensinamentos em seuFilho que devemos reconhecer que este é o derradeiro eeterno testemunho que teremos dele.970

Não resta dúvida de que Jesus Cristo encerra a plenitude da revelação de

Deus, visto ser Ele a Palavra Viva que tabernaculou com o homem. Por mais

sábio que possa parecer o homem, como poderia superar a eterna sabedoria

divina? Por isso vocifera Calvino: “Digo de novo, pois, que é necessário que um

só Cristo fale e que todo o mundo se cale; que só Cristo seja obedecido e todos os

outros sejam abandonados. Porque ele fala como quem tem poder”.971

969 REGA, Lourenço Stelio. Fast Food Gospel, Eclésia n. 45, p. 45.970 Institutas. Edição Especial, p. 109.971 Institutas. Edição Especial, p. 110.

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308

5.2.2Unicidade e Universalidade em Jesus Cristo

Na pós-modernidade, são muitos os desafios feitos ao cristianismo, muitos

dos quais envolvem diretamente duas questões: a cristológica e a soteriológica,

duas faces de uma mesma moeda.972 A grande pergunta de fundo é a seguinte:

podemos considerar Jesus de Nazaré o único paradigma de salvação para toda a

humanidade? É aqui que toda a questão cristológica vem à tona e,

conseqüentemente, encontra o seu maior obstáculo, como já vimos no primeiro

capítulo: fora de Jesus Cristo, não há salvação.973

Na pós-modernidade, nenhuma religião tem o direito de se achar a correta e

a verdadeira e as demais falsas, nem inferiores. Todas têm a mesma presunção de

verdade. A ação da Igreja é afetada pelo pluralismo religioso em sua abordagem e

em seu conteúdo teológico. A estrutura teológica corre o sério risco de ser

solapada; não há conceito de moralidade; não há contato com a pessoa de Jesus

Cristo. Na verdade, o que temos são experiências superficiais. Deus foi

transformado em algo absurdamente a ser consumido e portátil, de uso apenas

pessoal. Cristo não vive, sobrevive. Jesus Cristo não é mais a verdade, o caminho,

a vida, mas apenas mais um colocado ao lado de muitos outros.

No entanto, França de Miranda postula firmemente que a salvação só pode

ser encontrada em Deus através de Jesus Cristo, seu Filho, sendo ofertada aos

homens e mulheres pela poderosa e misteriosa ação do Espírito Santo.974

972 Na verdade, são dois grandes desafios teológicos diante do Diálogo Inter-Religioso.973 No entanto, na cristologia de corte pluralista, a encarnação de Jesus deve ser interpretada nãocomo um fato histórico absoluto, mas como um mito da fé cristã, tendo, no teólogo John Hick, suamaior expressão. Cf. Hick é um teólogo muito produtivo e sua obra é muito vasta. Para maioraprofundamento do seu pensamento, citamos, aqui, apenas seus trabalhos relacionados à temáticado DIR. HICK, John. The Myth of God Incarnate, London: SCM Press, 1993; God Has ManyNames, London: Macmillian, 1980; Whatever Path Man Choose is Mine, In: J.HICK and B.HEBBLETHWAITE. Christianity and Other Religions, Fortress. Philadelfia, 1980.974 MIRANDA, M. F. O Cristianismo em face das religiões. São Paulo: Loyola. pp. 96-104.

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309

Segundo Amaladoss é possível haver várias manifestações ou revelações

crísticas nas outras tradições religiosas. Ou seja, ele diz que Jesus é o Cristo, mas

Cristo não é só Jesus, citando Panikkar.975 “O Jesus humano limita a ação divina

do Cristo universal, que pode revelar-se, de outras formas, nas diferentes tradições

religiosas”, diz Amaladoss. Nessa linha de pensamento, ele ainda afirma que, da

mesma forma que Cristo é o caminho para os cristãos, assim também são Buda

para os budistas, e Krisna ou Rama para os hindus.

A meu ver, há um paradigma bem mais sério que Amaladoss parece

quebrar, que é o dogma de Calcedônia, de Jesus Cristo como Verdadeiro Deus e

Verdadeiro Homem. Para Ele, ser único e universal se dá exatamente no fato de

Jesus não poder conter a plenitude do Cristo. Ou seja, o Cristo está muito além do

Jesus de Nazaré.976

Já E. Schillebeeckx situa a unicidade de Jesus dentro da linha da eleição de

Israel, colocando Jesus Cristo como portador único e universal da salvação,

aceitando, portanto, o dogma de Calcedônia, de que Jesus Cristo é Vero Deus e

Vero Homem.977

No entanto, quanto à dimensão soteriológica, a teologia paulina diz: “Ele,

Jesus Cristo, é a ‘Imagem do Deus invisível’ (Col 1,15). ‘Além disso, o plano

divino de salvação é único e seu centro é Jesus Cristo’”.978 Na verdade, o

ministério do homem só se torna verdadeiramente claro no mistério do Verbo

encarnado.979 Ou seja, o primeiro Adão era figura daquele que haveria de vir,

Jesus Cristo. Ele “é o homem perfeito, que restituiu, aos filhos de Adão, a

semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado”.980 Já não temos

problemas com o fato de que o Espírito Santo opera e salva fora da Igreja, mas

sempre em Jesus Cristo.

975 Ibidem. op cit. p. 411.976 GUTHRIE, Shirley C. Sempre se Reformando. A Fé Reformada em um Mundo Pluralista.São Paulo : Pendão Real. 2000, pp. 34-41.977 SCHILLEBEECKX, E. Universalité unique d’une figure religieuse historique nommée Jésusde Nazareth. (universidade única de uma figura religiosa histórica chamado Jesus de Nazaré).Artigo selecionado pelo professor da matéria para intercambiar com outros autores na elaboraçãodo trabalho. Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, Sacramento do Encontro com Deus. Petrópolis.Vozes. p. 10.978 DA 28.979 GS 22.980 GS 22.

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310

O senso religioso do homem é reorientado em Jesus, tendo agora seu foco

central e único no próprio Deus. Cristo, como representante de toda humanidade,

promoveu sua libertação e abriu caminho para a plena e verdadeira realização

religiosa do homem. A cruz, a ressurreição e a glorificação do Cristo são ápice de

toda obra redentora do Filho, mas seu início fora na Encarnação. Sem a

Encarnação não haveria salvação.981 Na verdade, a Encarnação encontra sua

culminância nos eventos finais da vida de Jesus, que o fizeram Senhor sobre todas

as coisas. Ele fez-se sinal do Pai e ao mesmo tempo oferta cúltica a Deus. Eis o

grande mistério da salvação: Jesus, o Servo de Deus, que viveu plena e

obedientemente Sua vocação, garantindo-nos a redenção, é glorificado junto ao

Pai, vive como Cristo e Senhor.

Dentro dessa dimensão, não podemos perder de vista que todo valor

soteriológico, em Jesus Cristo, reside na teologia da aliança ou teologia do pacto

que Deus estabeleceu com seu povo. A teologia do pacto concentra-se em um

grande pacto geral conhecido como pacto da graça. Alguns o tem denominado

pacto da redenção.982 Ele é definido por muitos como um pacto eterno entre os

membros da Trindade, incluindo os seguintes elementos: (1) o Pai escolheu um

povo para ser Seu; (2) o Filho foi designado, com seu consentimento, para pagar o

preço desse povo; e (3) o Espírito Santo foi designado, com seu consentimento,

para aplicar a obra do Filho ao seu povo escolhido. Ou seja, a Trindade

completamente envolvida em toda a extensão da obra redentora, não apenas do

homem, mas também de toda a criação.983

Creio que o grande desafio é integrar sem perder a identidade cristã.

Concordo, ainda que, em parte, com o teólogo acima quando este declara que o

cristianismo deve ter duas posturas adequadas diante da cultura religiosa pós-

moderna: em primeiro lugar, a mantença de que o cristianismo tem a revelação

definitiva de Deus em Jesus Cristo, mas que precisa aprender com as demais

tradições religiosas; em segundo lugar, a verificação em que as demais tradições

religiosas têm a oferecer ao cristianismo em termos de verdade salvífica.984

981 Institutas, Edição Especial, Vol. II, pp. 209-211.982 Institutas, Edição Especial, Vol. II, pp. 172,173.983 Institutas, Edição Especial, Vol. II, p. 170.

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311

Caminho também na direção do postulado da Igreja Romana que diz que o

diálogo em nada substitui o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo. O documento

Diálogo e Anúncio afirma que a missão evangelizadora da Igreja se expressa

através da presença e testemunho, empenho pela promoção social e pela libertação

do ser humano, por uma vida litúrgica, incluindo oração e contemplação, diálogo

inter-religioso, anúncio e catequese.985

5.3O Querigma Libertário: Libertação do Ser Humano diante dosDesafios da Pós-Modernidade

A teologia como um todo e, especialmente, a reformada tem profundo

interesse com a questão antropológica, visto que fazer e refletir teologia significa

exatamente tratar sobre a revelação de Deus e suas relações com o universo e,

especificamente, com o homem. Deus deu ao Seu povo a Sua Palavra, a revelação

escriturada e enviou-nos a Palavra Encarnada, Jesus Cristo, que se tornou o centro

da vida e da mensagem cristãs. Portanto, o querigma libertário, vivido e anunciado

pela Igreja, carrega em si o poder de libertar o ser humano de todas as estruturas

que o oprimem, em todos os tempos, inclusive nesse tempo epocal chamado pós-

moderno.

Assim, nas próximas páginas, veremos o homem como ser alienado de

Deus, no contexto da pós-modernidade e, ato contínuo, alvo do Evangelho

libertador que é Jesus Cristo, este mesmo homem como nova criação de Deus,

agora tirado do mundo e devolvido ao mundo para viver a nova realidade do

Reino.

984 Ibidem. p. 123.985 DA, pp. 5,6.

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5.3.1O Homem como Ser Alienado de Deus

Primeiramente queremos afirmar que, da condição de criatura íntima de

Deus, criado à sua imagem e semelhança, após a queda, o homem rompeu sua

relação com Deus, tornando-se um errante. Saiu da condição de aliado de Deus

para viver alienado de Deus e em constante rebeldia. No homem, residia o

resplendor da glória do Criador, bem como de toda a criação. Muitas qualidades

de Deus eram perfeitamente refletidas no homem.

Ao homem foi dada a função de administrador, de guardião da terra. Sujeito

a Deus e administrador da terra. Sua liberdade estava nessa tensão dialética, ou

seja, na dinâmica da absoluta sujeição a Deus pela via da graça e mordomo das

coisas criadas por Ele. “O homem foi investido mestre e senhor na terra com a

condição de que estivesse sempre sujeito a Deus”.986

Sabemos, pelas Escrituras, que o homem procedeu das mãos de Deus sem

mácula, marcado tão somente pela imagem e semelhança do Criador. No entanto,

sua natureza sofreu terrivelmente pela queda, que afetou todas as suas faculdades,

rompendo-lhe, sobretudo, sua capacidade de reconhecer o Criador e estabelecendo

uma ruptura abissal com Deus. Ao pecar, o primeiro homem destruiu os dons

sobrenaturais, como por exemplo “a fé, o amor de Deus, a caridade, o zelo pela

santidade e a retidão”.987 Não apenas sua saúde espiritual foi afetada, mas também

sua saúde física. A imagem de Deus, no homem, foi destruída, não aniquilada,

mas encontra-se num estado de fragmentação, estando ela enfraquecida, na

linguagem de Calvino.988

Calvino é bastante contundente em suas assertivas quanto ao estado do

homem, afirmando que “todas as partes da alma foram possuídas pelo pecado

depois que Adão desertou da fonte de justiça”.989 Ainda mais, “o homem todo está

inundado – como por um dilúvio – da cabeça aos pés, de modo que nenhuma de

suas partes está imune ao pecado e tudo o que dele procede deve ser atribuído ao

pecado”.990

986 BIÉLER, André. O Pensamento Social e Econômico de Calvino, op. cit., p. 264.987 FERREIRA, Edijéce Martins. A Ética de Calvino. op. cit., p. 25.988 Institutas, livro II, ii, 12.989 Institutas, livro II, i, 9.

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313

Assim, mesmo possuído de valor diante de Deus, salvificamente esta é a sua

triste situação. Ora, não podemos afirmar que Calvino tenha negado qualquer bem

no homem, apenas que a imagem de Deus, em sua existência, tornou-se

estilhaçada.991

Ao mesmo tempo em que Calvino traz severas afirmações sobre a realidade

do homem, ele afirma que o pecado não pertence à natureza original do ser

humano, não sendo um elemento intrínseco à constituição humana. Ele afirma que

o homem é pecador e está “sujeito à necessidade de pecar”,992 o que “não significa

que a substância do seu corpo e da sua alma é má, pois somos criaturas de

Deus”.993 Temos aqui, paradoxalmente, uma beleza teológica. Ou seja, o mal

precisa ser visto como algo ex depravatione, e não ex creatione; ex natura

corruptione, e não ex natura.994 As precisas palavras de Niebuhr são elucidativas,

pois afirma que a queda não tornou a natureza boa do homem em “má, como algo

que não devia existir, mas pervertida, torta e sem direção”.995 O pecado diz

respeito a uma esfera estritamente religiosa, ou seja, trata da relação do homem

com Deus, sendo uma terrível ofensa contra o Criador. Daí sua preferência pela

palavra desobediência, aproveitando-se, também, de Agostinho, quando trata do

pecado como orgulho, mas não abre mão de que “a desobediência foi o começo da

queda”.996

Entretanto, Calvino jamais classificou o pecado humano como apenas uma

deformação moral ou fruto de sua ignorância. Impõe-se, portanto, em nossos dias,

uma antropologia restaurativa, que não apenas denuncie o estado em que se

encontra o homem, revelando que o pecado diz respeito à vontade humana, mas

que aponte o caminho da redenção, da remissão, na pessoa de Jesus Cristo.997

990 Institutas, livro II, i, 9.991 Institutas, livro II, i, 9.992 Institutas, livro II, ii, 11.993 Institutas, livro II, iii, 5.994 WARFIELD, Benjamim Breckinridge. Calvin and Calvinism, p. 292.995 NIEBUHR, H. Richard. Christ and Culture, p. 194.996 Institutas, livro II, i, 4.

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314

A alienação do homem de Deus se dá pela sua condição de pecador, não

sendo um pecado meramente moral, mas essencialmente espiritual, que é a

deliberada vontade de viver independente de Deus, desprezando-O. Após o

rompimento da aliança com Deus, o homem lançou sobre toda a sua descendência

a condição de pecadora, por natureza. Logo, todo ser humano está alienado de

Deus. No entanto, a condição atual do homem trata-se não de sua natureza

original. Por mais que esta tenha sido afetada pelo pecado, Calvino não o nega, ao

contrário, o reafirma, pois evidencia o acidente cometido, mas, ao mesmo tempo,

a graça restauradora. O próprio Calvino diz:

Esta perversão não é de sua natureza. Negamosque seja ela de natureza, a fim de mostrar que é antesuma qualidade sobrevinda ao homem e não umapropriedade de substância, que nele haja sido arraigadadesde o princípio.998

Importante ressaltar que o pecado humano não suprime o homem de sua

responsabilidade, visto que é um ser moral. Antes da Queda, “o entendimento era

são e integral, a vontade livre para escolher o bem”.999 Sendo assim, o pecado

afeta todo o homem: inteligência, vontade, corpo e espírito, sem qualquer

dualismo.

Por outro lado, mesmo alvejado pelo pecado, o homem ainda reúne

condições de organizar-se socialmente pela via dos dons naturais. Nessa

dimensão, temos “a doutrina política, a maneira de bem governar a casa, as artes

mecânicas, a filosofia e todas as disciplinas que se chamam liberais”.1000 Nasce

daí a noção de Estado. Com os dons naturais, mesmo sendo dados por Deus,

continua o homem necessitado de uma ação especial de Deus. Do contrário,

caminha ele na direção da morte, alienação definitiva de Deus. “Agora, temos

horror à morte, primeiramente, porque é um aniquilamento no que concerne ao

corpo e, depois, porque a alma sente a maldição de Deus”.1001 O reformador faz o

seguinte comentário:

997 Institutas, livro II, ii, 27.998 Institutas, livro II, cap. 1 § 11.999 Institutas, livro II, cap. XV § 8.1000 Institutas, livro II, cap. II § 13.1001 Pentateuco, (Gn. 2.17).

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Ainda que o homem esteja corrompido, contudo oCriador celeste retém sempre diante de Si o fim de Suacriação. Verdade é que, se apenas para os homens seatenta, não são eles dignos de que Deus deles faça caso.Mas, em razão do fato de que neles está gravada aimagem de Deus, Deus considera o mal e a violênciafeitos à pessoa deles como feitos a Si Próprio. Assim,embora os homens nada tenham próprio para granjear agraça de Deus, atenta Ele para Seus dons e benessesneles subsistentes, para ser incitado a amá-los e ter-lhessolicitude.1002

Embora condenado à morte, resultado de seu pecado, Deus manifesta a sua

graça salvadora, sendo, portanto, a antropologia bíblica e calvinista extremamente

realista, mas essencialmente esperançosa.

Na esteira no niilismo pós-moderno, em que a sociedade vive o ideal

consumista absoluto, encontramos, para tristeza do bom testemunho do

cristianismo, muitas vertentes evangélicas que sacrificam o conteúdo do

Evangelho em busca de poder. As forças do mercado afetam diretamente a ação

proclamadora do Evangelho. É exatamente nesse momento de perda de sentido

existencial que os cristãos são chamados, antes de tudo, a centralizar Cristo em

suas vidas, a fim de que sejam, de fato, vistos como discípulos do Cristo

ressurreto, único capaz de revelar o amor e a verdade de Deus, que salva e liberta

integralmente o ser humano. Somos desafiados a confrontar esse tipo de mercado

religioso que temos hoje. Constatando tal realidade, Comblin afirma que,

[...] atualmente, há um mercado religioso. Hámuita demanda religiosa e muitas religiões oferecemmétodos de terapias religiosas ou caminhos para afelicidade. Daí a tentação de entrar nessa competição.Quem quer fazer sucesso procura temas cristãos quepossam triunfar no mercado, satisfazendo a umademanda. Há uma tendência muito forte nesse sentidopor parte dos movimentos carismáticos e mesmo dosmovimentos nascidos na geração passada. Oferecem umevangelho ‘ao gosto do consumidor’ – como dizia umsacerdote missionário ancião que viveu muitos anos noBrasil.1003

1002 Gênesis, (Gn 9.3).1003 COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus. 1998, p. 10.

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O Evangelho anunciado não pode ter a pretensão de suprir apenas as

carências e desejos superficiais do homem atual. É imperioso alcançar o ethos

mais profundo do ser humano, que clama por uma verdadeira libertação.1004

Necessitamos urgentemente de cristãos alcançados por esse Evangelho, com uma

profunda vivência de libertação e transformação, a fim de que sejam eles

instrumentos de Deus na história, agindo como fermento “de uma nova sociedade

no mundo”.1005

Calvino possuía um grande conceito acerca do homem, como criatura de

Deus, a despeito de seu distanciamento do Criador, por conta do pecado. Embora

possa parecer aqui e acolá, Calvino nunca foi um nacionalista ou sectário. Para

ele, todos os homens traziam, em si, a imagem do Pai. Pensando assim, ele enviou

missionários protestantes em 1556 ao Brasil, ainda que com um grupo de

colonizadores.

5.3.2O Homem como Nova Criação de Deus na Sociedade

A liberdade do homem consiste no cumprimento da vontade de Deus. A

liberdade por meio da dependência a Ele, entretanto, não lhe foi suficiente, posto

que deseje a autonomia sem submissão. No entanto, “ser homem é primária e

essencialmente viver para Deus, viver por Deus, viver com Deus, ser e

permanecer unido com seu Criador”.1006

Uma das grandes belezas do pensamento do reformador genebrino é o fato

de que, ao contrário do que dizem, sua teologia enaltece o valor do homem diante

de Deus, pela obra da redenção. Ele afirma: “A grandeza da graça adquirida por

Jesus Cristo é bem mais vasta que a magnitude da condenação em que o gênero

humano foi envolvido pelo primeiro homem”.1007

1004 SOLONCA, Paulo. Inovando uma Igreja Tradicional. In.: J. Scott Horrell (Editor).Ultrapassando Barreiras. São Paulo: Vida Nova, p. 121.1005 COMBLIN, José, op. cit., p. 11.1006 BIÉLER, André. O Pensamento Social e Econômico de Calvino, op. cit., p. 263. Cf.Institutas, livro II, cap. I § 5.1007 Romanos, (Rm 5.15).

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O homem por sua livre vontade fracassou, mas Deus jamais fracassou e, por

Sua misericórdia, buscou restabelecer a primeira condição humana. Lemos então

que era

[...] necessário que uma nova aliança fosse feita,certa, segura e inviolável. E para estabelecê-la econfirmá-la, necessidade havia de um mediador queintercedesse e se interpusesse entre as duas partes parafazê-las entrar em acordo, sem o que permaneceriasempre o homem sob a ira e indignação de Deus enenhum meio havia de livrar-se de Sua maldição, misériae confusão em que se havia chafurdado. Era NossoSenhor e Salvador Jesus Cristo, verdadeiro e únicoeterno filho de Deus, que devia ser enviado e dado aoshomens pelo Pai, para ser restaurador do mundo, deoutra sorte derruído, destruído e desolado, em quemdesde o principio do mundo tem sempre residido aesperança de recobrar-se a perda sofrida em Adão.1008

Por isso, desde a Queda do primeiro Adão até a chegada do segundo Adão,

Deus revelou-se ao homem, dando-lhe condições de conhecê-lO, até que chegasse

a plenitude dos tempos. Mostrou-Se à humanidade através de homens escolhidos,

estabelecendo com estes um pacto, uma aliança, até que, com o povo de Israel,

pactuou-Se de modo particular.

Vejamos tal fato:

Fez Deus ouvir Sua voz de maneira especial adeterminado povo, ao qual, de Seu próprio bem querer ede Sua graça liberal, elegeu dentre todos os povos daterra. São os filhos de Israel, aos quais, por Sua Palavra,mostrou claramente quem Ele era e, por Suas obrasmaravilhosas, declarou que haveria de fazer, pois que osretirou da sujeição [...]. Sustentou-os no deserto. Fê-lospossuidores da terra prometida; deu-lhes vitórias etriunfos. E como se nada tivesse sido às demais nações,quis ser expressamente chamado o Deus de Israel e sereste constituído Seu povo [...]. E essa aliança foiconfirmada e passada sob instrumentos autênticos dotestamento e testemunho que lhes conferiu.1009

1008 OC, tomo IX, p. 797.

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Numa sociedade cada vez mais antropologizada, onde a mediação salvífica

começa e termina no homem, faz-se necessário e urgente anunciar a salvação

como essencialmente ação de Deus. Sob o domínio do pecado, somente através do

dinamismo de Deus é que o homem encontra genuína salvação e,

conseqüentemente, libertação. Portanto, há uma imprescindível e absoluta ação de

Deus. A salvação do homem se dá pela ação Divina, pela sua graça. A ela o

homem responde numa relação de amor e compromisso, tornando-se verdadeiro

discípulo de Jesus Cristo. O pecado traz a conseqüência da escravidão (Rm 6, 15-

23; 7, 14-25), pois potencializa a prática do egoísmo, que aprisiona a liberdade “e

a faz impotente para o amor”.1010 Por isso o homem pecador torna-se servo do

pecado, pois nele perdeu a sua liberdade.

Uma das grandes conseqüências da salvação, realizada por Deus e

mediatizada por Jesus Cristo e atomizada pelo Espírito Santo, é a libertação da

liberdade humana, a sua salvação, sendo o primado da salvação de Deus, que o

tira de toda sorte de egoísmo e o remete à consciência de que a sua volta há um

mundo acontecendo e de que o exercício de olhar para o próximo torna-se uma

chave exegética de liberdade, na medida em que sua vida é canalizada para a

prática da justiça e da solidariedade. O homem não é livre para se achegar à

salvação, mas, justificado por Deus, encontra o caminho da liberdade

soteriológica e, assim, torna-se um colaborador de Deus na expansão do Reino,

que envolve o desmantelar das sutilezas do pecado, a prática da justiça, a vivência

do amor-solidariedade, resultado direto da mudança do seu ethos humano pelo

doce poder do Evangelho.

Uma das grandes belezas de Calvino que precisamos resgatar e atualizar é o

fato de que ele não vê o homem como sendo o fim da história, ao contrário,

embora tenha convicção, como já afirmamos, da pecaminosidade humana e que

nele ainda há a imagem de Deus, o homem pode ser restaurado em seu ethos

original, voltar à bem-aventurança. Há diversas menções sobre a bondade do

homem, fruto dos dons concedidos por Deus.

1009 OC, tomo IX, p. 795. Cf. Oeuvres Choises, op. cit., p. 186.1010 MIRANDA, Mário de França. Libertados para a Práxis da Justiça. A Teologia da Graça noAtual Contexto Latino-Americano. São Paulo: Loyola, 2002, p. 76.

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Entretanto, somente através da redenção, realizada por Cristo Jesus, é que o

homem emerge das cinzas da desumanização, tendo uma nova atitude para com a

vida. Na verdade, através de Cristo, pela operação do Espírito Santo, Deus

restaura a vontade inclinada ao mal, a redireciona e realiza, em nós, o seu querer.

Ou seja, a imagem de Deus no homem é completamente restaurada em e através

de Cristo.1011

A visão antropológica de Calvino é tremendamente influenciada pelos ideais

do NT. No que diz respeito ao amor, ele afirma que o discípulo de Jesus Cristo

não deve praticar o amor próprio, que seria o amor egoísta, egocentralizado.

Chega a dizer que tal amor é uma “peste terrivelmente moral”.1012 Por isso que “é

muito claro que nós guardamos os mandamentos, não amando-nos a nós mesmos,

mas amando a Deus e ao próximo”.1013

Para o reformador genebrino, o amor dos discípulos deve ser primeiro a

Deus, ao próximo e, só depois, amor pessoal. E mais, nosso amor a Deus é

demonstrado no serviço ao próximo. Calvino ainda afirma que “vive a vida

melhor e mais santa quem vive e luta por si mesmo o menos que pode; e ninguém

vive pior e de modo mais pecaminoso do que quem vive e luta só por si, ou pensa

e busca apenas seus interesses”.1014 O reformador francês ainda declara o

seguinte:

Devem colocar-se no lugar daqueles que vêemnecessitar de sua assistência, e terem misericórdia do seuinfortúnio, como se eles mesmos o experimentassem, demodo a se sentirem compelidos pelo sentimento de amore humanidade e ajudá-los, como se o fizessem a simesmos.1015

1011 FORTE, Bruno. A Essência do Cristianismo. Petrópolis: Vozes. 2003, p. 71.1012 Institutas, livro II, vii, 4.1013 Institutas, livro II, vii, 54.1014 Institutas, livro II, vii, 54.

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A vocação da Igreja é para sair de si mesma e caminhar na direção dos

homens e mulheres, carecentes da graça maravilhosa de Jesus Cristo, anunciando

a verdadeira mensagem do Evangelho, única capaz de ofertar sentido de vida,

num mundo sem sentido, vivendo o seu niilismo pós-moderno. Portanto, “a Igreja

não pode esquivar-se de apresentar todo o evangelho ao homem todo e a todo

homem”.1016 A Igreja é um resultado e ao mesmo tempo uma participante do

projeto de salvação de Deus. Assim, a missão da Igreja é, essencialmente, a sua

participação no processo redentivo que Deus está executando na História.1017

Segundo a Palavra de Deus, o homem precisa ser visto pela Igreja numa

perspectiva integral. O Evangelho, pregado pela Igreja Primitiva, era holístico, ou

seja, integral, cujo objetivo era alcançar o homem em todas as suas dimensões.1018

Esta é a razão pela qual precisamos entender que a ação querigmática da

Igreja implica falar do Libertador que liberta os cativos; implica falar de paz, mas

apontando sempre para o Príncipe da Paz.1019 Se não for assim, a Igreja estará

oferecendo algo sub-cristão. De igual forma, uma evangelização que não

considera o homem como ser responsável pelas suas ações, proclama um

Evangelho mutilado.1020 O Evangelho que Jesus pregou conclama as pessoas a

serem mais humanas, a se tornarem mais o que Deus deseja que elas sejam, não

somente na vida futura, mas aqui e agora. A tarefa precípua da Igreja, a

proclamação das Boas Novas só terá verdadeiro significado e resultado quando

realizado por cristãos que tiveram verdadeiramente um encontro pessoal com a

pessoa de Jesus Cristo. Portanto, se o alvo da Igreja é fazer novos discípulos,

somos desafiados a viver, em primeiro lugar, como verdadeiros discípulos.

1015 Institutas, livro II, iii, 7.1016 Tal expressão é fruto do Congresso Internacional de Evangelização Mundial realizado emLausane, Suíça, em 1974. Posteriormente foi reafirmada em novo Congresso realizado em Manila,nas Filipinas, em 1991. Cf. A Missão da Igreja no Mundo de Hoje. São Paulo: ABU / VisãoMundial.1017 NASSER, Antonio C. A Igreja Apaixonada por Missões. Uma Aplicação da Teoria doÓbvio ao Relacionamento das Igrejas e Agências Missionárias. São Paulo: Abba. 1995, pp. 11-25.1018 CAVALCANTI, Robinson, op. cit., pp. 42-45.1019 CAVALCANTI, Robinson, op. cit., p. 44.1020 Ibidem, pp. 87 passim.

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Pelo Evangelho de Jesus Cristo, o homem encontra o dom de Deus, ofertado

em Cristo, que, recebido pela fé, o conduz à liberdade cristã – liberdade que é o

caminho que conduz à vida cristã. Por sua vez, o novo homem redimido assume

compromisso com a Palavra de Deus, que não o condiciona à reclusão espiritual,

ao contrário, numa ação de fluxo e refluxo, a Palavra que o liberta, o liberta para a

prática da Palavra, testemunhando o Cristo ressurreto, fundamentalmente na

demonstração de amor ao próximo.1021

Portanto, segundo Calvino, este novo homem, livre pela libertação alcançada

em Cristo, já não é mais prisioneiro de qualquer instituição ou sistema religioso,

que venha, porventura, descaracterizar o Evangelho a ponto de transformá-lo em

uma lei camuflada. Apreender e experimentar tal liberdade torna-se vital para o

homem, visto que sem este conhecimento, as superstições não terão fim.1022

Assim, na linguagem de Calvino, o mais importante é “que de nossa

liberdade se impõe usar, se à edificação do nosso próximo [isso] conduz; se, no

entanto, assim ao próximo não convenha, então, dela há de abster-se”.1023

Portanto, a liberdade outorgada àquele que nasceu de novo é “para que mais

pronto esteja para todos os deveres da caridade”.1024 A nova criação de Deus, em

Cristo Jesus, vive a liberdade na medida do seu comprometimento com o

próximo, na dinâmica do amor.

Na verdade, o Evangelho libertador promove o ser humano, restaurando o

seu ethos antropológico, alcançando todas as áreas de sua vida, fazendo-o

experimentar o verdadeiro amor, resultado de sua transformação interior e

exterior, dando-lhe, assim, condições de exercitar a liberdade sempre na direção

do amor e da responsabilidade. Nessa linha de pensamento, Croato afirma que:

Quando nos libertamos da lei, crescemos no amor.O Homem Novo é livre de dentro (pelo amor quedesaloja o egoísmo), de fora (da lei-limitação e nãocriativa) e para diante (da morte como limiteontológico).1025

1021 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Vol 2. op.cit. p. 435.1022 Institutas, livro III, cap. 19, seção 7.1023 Institutas, livro III, cap. 19, seção 12.1024 Institutas, livro III, cap. 19, seção 12.1025 CROATO, Severino. Êxodo: uma hermenêutica da liberdade. São Paulo: Paulinas, 1981, p.169. Cf. FORTE, Bruno. A Essência do Cristianismo. Petrópolis: Vozes. 2003, p. 56.

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Dessa forma, alcançado pela graça salvadora de Jesus Cristo, o homem,

livre do pecado e de suas amarras, vive, agora, na liberdade do amor e da justiça.

Na verdade, a salvação operada por Deus, em Cristo Jesus, desemboca numa

práxis comprometida com o Reino de Deus. O cenário onde a salvação se

desenvolve é o palco da existência humana. O Reino emerge em meio as

contradições da história humana, com suas marcas de amor e justiça. Sendo a

salvação do homem puro dom de Deus, tendo a mais clara iniciativa de Deus, por

meio de Jesus Cristo. Há, no homem, toda sorte de capacitação, operada pelo

Espírito Santo, a fim de que ele viva na perspectiva de Cristo, evidenciando o

Reino acontecido e acontecendo em sua vida e na história humana.1026

Toda ação do ser humano regenerado na direção do próximo torna-se

expressão concreta da ação salvífica de Deus em Cristo Jesus. Nesse sentido

podemos afirmar, mais uma vez, que a Igreja, na visão reformada, possui uma

dimensão sacramental, como sinal do Reino e de todo ministério de Jesus Cristo e

na medida em que mediatiza a graça de Deus no amor ao próximo. Visto que

Jesus Cristo foi mediação humana da salvação ofertada pelo Pai ao homem, somos

também a continuação do ministério de Cristo, como seu Corpo, entre os homens

e as mulheres que, desprovidos da graça de Deus, são apresentados ao dom

inefável, possibilitados, igualmente, a libertação da liberdade a fim de que vivam

a liberdade do Evangelho.

1026 MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 86.

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323

5.4A Soteriologia Calvinista sob o Paradigma do Querigma Libertáriodiante dos Desafios da Pós-Modernidade

A soteriologia enfrenta sérios desafios no mundo pós-moderno, visto que

hoje a salvação não depende exclusivamente de Jesus Cristo, pois Deus, segundo

a atual concepção, há de salvar os homens independentemente de Jesus Cristo. A

ação salvífica de Deus acontece em todos os credos religiosos, mesmo que seja

fora do paradigma cristológico.1027 Portanto, a fé salvadora em Jesus Cristo já não

é mais o único caminho de salvação. Portanto, na perspectiva soteriológica,

veremos alguns desafios pós-modernos que precisam ser superados.

5.4.1A Soteriologia e os Desafios da Pós-modernidade

Contra todo possível fracasso da modernidade e da pós-modernidade, não

podemos abrir mão de nossa maior utopia, ou seja, anunciar as Boas Novas

capazes de libertar total e integralmente o homem. Na falência das ideologias

modernas e pós-modernas, eis a grande oportunidade da Comunidade da Fé: viver

e proclamar a mensagem do Reino de Deus. Do contrário, praticaremos uma fé

imobilizadora e imobilizante.1028 Diante dos desafios da pós-modernidade, o

anúncio da mensagem tem sofrido muitos ataques em seu conteúdo, em que o

Evangelho acaba sendo relativizado, diluído demasiadamente.

O querigma anunciado pela força do Espírito Santo tem o poder de quebrar

todo tipo de pessimismo da cultura pós-moderna, sobretudo a frustração das

emoções, em que essas vias se tornaram novos caminhos até Cristo. Nessa

trajetória pós-moderna de profundas mudanças culturais, encontramos, com muita

freqüência, cristãos em busca de um Jesus alienado de nossa realidade histórica,

ou seja, um Jesus que satisfaça os desejos imediatos e superficiais do homem.

Busca-se um Jesus cada vez mais afetivo, uma espécie de objeto do desejo

religioso, capaz de exercer a dinâmica da retribuição, compensando todas as

necessidades e frustrações humanas.1029

1027 OKHOLM, Dennis. Four Views on Salvation in a Pluralistic World. Inter-varsity Press, 1997,p. 12.1028 SUNG, Jung Mo. Deus numa economia sem coração. São Paulo: Paulus. 1992, p. 122.1029 COMBLIN, José, op. cit., p. 37.

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A religião pós-moderna é tipo produto de consumo. Vive-se uma

religiosidade que descarta o transcendente, inclusive Deus.1030 Trata-se, na

verdade, de uma religião da emoção, que a tudo descarta, sempre em busca de

uma nova sensação, norteada, é claro, pela força do econômico.

Temos o desafio de assumir uma das maiores – senão a maior – verdade do

cristianismo, ou seja, Jesus Cristo como o Messias, que irrompeu a história e não

só revelou, mas demonstrou, em atos e palavras, os sinais concretos da presença

do Reino de Deus no palco da Humanidade. A experiência da ressurreição de

Jesus é o fundamento de toda esperança cristã. É uma esperança que se concretiza

na história, mas que só alcançará sua plenitude na parusia.1031

Diante desse tempo epocal, o cristianismo tem a tarefa de, mais do que

nunca, reafirmar o eixo central de sua história da salvação. Mas não só reafirmar.

É preciso encontrar os caminhos mais viáveis para anunciar tal declaração de fé.

Ou seja, o cristianismo como religião da cruz e da ressurreição através de Jesus

Cristo encerra definitivamente dois grandes mistérios de Deus na história: sua luta

e vitória contra o mal na realidade humana e, oferecido ao homem, que deve ser

acolhido pela fé no Cristo ressuscitado. Eis a tarefa principal de tornar o

cristianismo uma religião singular entre todas as outras.1032

Por sua vez, Gaudium et Spes afirma que “os homens nunca tiveram um

sentido de liberdade tão agudo como hoje.”1033 Há uma declaração tremenda de

um teólogo e filósofo russo, Nicolas Berdiaeff que diz:

A liberdade levou-me a Cristo e não conheço outrocaminho que possa levar a ele. Não sou o único que tenhapassado por essa experiência. Todos os que deixaram ocristianismo-autoridade somente poderão voltar a umcristianismo-liberdade.1034

1030 Cf. Revista Esprit (Paris), junho de 1997: Le temps des religions sans Dieu. Ver tambémGianni Vattimo, em Credere di credere, Garzanti, 1996.1031 SUNG, Jung Mo. Deus numa economia sem coração. São Paulo: Paulus. 1992, pp. 123,124.1032 QUEIRUGA, Andrés Torres. Fim do Cristianismo Pré-Moderno. São Paulo: Paulus. 2003,pp. 125-127.1033 GS 4d.1034 BERDIAEFF, Nicolas. Esprit et Liberté. Paris: Desclée. 1984, p. 27.

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Sabemos que o pluralismo pós-moderno é caracterizado pelo

desmantelamento das estruturas tradicionais, numa quebra de praticamente todos

os paradigmas do passado, numa total inversão de valores. Há muito que

comemorar na sociedade pós-moderna, com muitos aspectos libertadores, como

por exemplo, a questão do Diálogo Inter-Religioso. Entretanto, é preciso um olhar

crítico sobre tal fenômeno, como qualquer outro, a fim de que percebamos suas

luzes e suas sombras.

No entanto, há muitos perigos gerados pela civilização pós-moderna. Como

já afirmamos, um deles é que não há mais verdade, mas verdades, nas quais cada

pessoa busca adequar-se à verdade que lhe convém. Constatamos, com isso, uma

inconsistência constante por parte do ser humano e, no campo teológico, acontece

exatamente a mesma coisa.

Outra questão séria também comentada no primeiro capítulo, é a questão do

pragmatismo. Busca-se, em nossa sociedade, o que funciona e não

necessariamente o que funciona como fruto da pesquisa, mas apenas com aquilo

que é politicamente correto. Setores da religiosidade atual aderiram a esse tipo de

pragmatismo, pois o que se percebe não é a busca pela verdade do Evangelho,

mas simplesmente os resultados que as pessoas podem alcançar com tal prática

religiosa. O importante e válido é a performance em função dos métodos

aplicados. Veja um importante depoimento sobre a proposta pós-modernista:

Não mais verdade, mas realização — não maisaquela pesquisa que conduz à descoberta de fatosverificáveis, mas aquela espécie de pesquisa quefunciona melhor, onde o funcionamento melhor significaproduzir mais [...]. A universidade ou a instituição deensino não pode, nestas circunstâncias, estar preocupadaem transmitir conhecimento em si mesmo, mas ela deveestar presa, sempre mais estreitamente ao princípio darealização — de forma que a questão levantada peloprofessor, pelo estudante ou pelo governo, não deva sermais esta: Isto é verdadeiro? Mas funciona? Ou qual é oproveito disso?1035

1035 CONNOR, Steven. Postmodernist Culture. Blackwell, 1989, pp. 32-33.

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O problema do pragmatismo é a dogmatização da experiência, sobretudo

aquela que funciona. Com isso, as verdadeiras doutrinas da fé cristã vão perdendo

seu valor, pois o importante nesse cenário religioso, genuinamente utilitarista, são

as experiências, ainda que em detrimento da tradição cristã. Há uma relativização

de tais verdades em função do derretimento da fé. Sabemos de sua importância,

mas quando ela se torna paradigmática, eis o grande perigo, principalmente pelo

fato de que o ser humano, vivendo sob essa nova cultura, só consegue enxergar os

resultados finais ou os supostos benefícios.

Outro grande desafio a ser enfrentado pelo querigma libertador do

Evangelho é a prática de um sentimentalismo em detrimento de qualquer tipo de

racionalidade. A sociedade pós-moderna quis romper radicalmente com o

racionalismo do Iluminismo e caiu no extremo oposto, o sentimentalismo. A razão

já não é mais a medida de todas as coisas. O axioma agora é: se eu sinto, logo

existo. Decorre daí uma prática muito comum, ou seja, o que importa é que o

indivíduo sinta-se bem em tudo que realiza. Então, a oferta religiosa parte desse

pressuposto, ancorado na cultura consumista, que afirma que adquirimos para o

nosso bem estar.

Como conseqüência direta do sentimentalismo, num mundo marcado pelo

pluralismo, onde vivemos o reino das opções, com ofertas para todos os paladares,

encontramos o consumismo, tendo como uma de suas causas e conseqüências, ao

mesmo tempo, o superficialismo em que vive o homem. A sociedade é movida

também pelo poder do econômico que gera uma cultura altamente utilitarista.

Podemos atribuir essa dimensão da sociedade pós-moderna a ausência de verdade

objetiva. "O pós-modernismo encoraja uma mentalidade de consumismo,

fornecendo às pessoas o que elas gostam e querem."1036

Como não poderia deixar de ser, tal verdade tem afetado diretamente a

dimensão teológica e, por que não dizer, os estilos litúrgicos. A subjetividade

alcançou também a dimensão da fé cristã. Os estilos litúrgicos e os aspectos

teológicos tornaram-se produtos do grande supermercado religioso. Como não há

uma aderência verdadeira à fé cristã, os produtos religiosos precisam mudar

constantemente para atender as exigências dos novos consumidores, que cativos à

nova cultura, vivem numa busca constante de novas experiências.

1036 VEITH, Gene Edward. Postmodern Times. Crossway Books. 1994, p. 212.

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Na verdade, muitos segmentos evangélicos têm relativizado o conteúdo do

Evangelho, prostituindo-se, criando com isso, uma eclesiologia deformada e um

Evangelho sem seu verdadeiro conteúdo bíblico.1037

Portanto, a doutrina da salvação é elemento intrínseco ao ser humano, desde

a sua queda. O termo grego soter significa salvação. Tal palavra vem de sotería,

cujo significado é salvação, livramento. Trata-se, portanto, da teologia da

salvação. Em outras palavras, a soteriologia designa a restauração do ser humano

como fruto da graça de Deus em sua vida e da nova vida que o homem estabelece

com Deus, por meio de Jesus Cristo, pela ação do Espírito Santo. Nessa

perspectiva, podemos afirmar que há duas dimensões da doutrina soteriológica, ou

seja, uma que trata de toda obra redentora de Jesus Cristo, conhecida como

soteriologia objetiva. A outra dimensão diz respeito à ação do Espírito Santo na

vida do ser humano, ou seja, seria a aplicação da obra redentora realizada por

Cristo, chamada de soteriologia subjetiva.1038

Embora tendo uma formação humanista, Calvino rejeitou duramente o

humanismo meramente da Renascença, que separado da doutrina bíblica,

transformava o homem no centro de todas as coisas, fazendo dele uma grande

apoteose, como separado, independente de Deus e auto-suficiente. O grande

símbolo do Renascimento pode ser o quadro de Miguel Ângelo, pintado no teto da

Capela Sixtina do Vaticano: O homem recém criado, saindo da mão do Criador,

para a sua independência!

Mesmo Calvino apreciando grandemente as realizações da cultura humana,

para ele as criações culturais do homem merecem correções quando ficam

distorcidas, pois o fim da cultura é também glorificar a Deus e realizar os

propósitos que Deus estabeleceu para o homem.1039

1037 COLSON, Charles. The Body: Being Light in Darkness (Dallas, Texas: Word, 1992), pp. 44-47.1038 Apenas para esclarecimento, a doutrina cristológica discute sobre a pessoa de Jesus Cristo,enquanto a doutrina soteriológica versa sobre a ação redentora de Jesus Cristo.

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Segundo Calvino, somente a obra redentora de Cristo Jesus é capaz de

promover verdadeira libertação da liberdade e do pecado. Ele ainda afirma que a

soteriologia trata-se da aplicação da obra redentora de Cristo, pelo movimento do

Espírito, na vida do ser humano, e que a obra redentora de Cristo começou

historicamente na encarnação, vida, obras, ensinos, milagres, morte expiatória.1040

A doutrina da justificação pela fé reforça, na verdade, a tese soteriológica de

que o homem, à parte de Jesus Cristo, permanece no pecado e que jamais

encontrará caminho de volta ao Pai. A justificação pela fé, ao mesmo tempo,

denuncia tal realidade humana e emerge deste fato, ou seja, a natureza do homem

está decaída e, na sua essência, corrompida pelo pecado original e que, por sua

própria vontade, nada pode realizar para alcançar o favor de Deus, muito menos

pela prática das boas obras, visto que são apenas sinais da fé e não promotoras da

fé. A salvação só pode ser alcançada pela graça mediante a fé.

A proclamação de tal verdade recoloca o homem no seu devido lugar, revela

a graça salvadora de Deus em Cristo Jesus e revaloriza a pessoa humana, que

salva pela graça, tem a imagem e semelhança de Deus restaurada em sua vida.

Num contexto de plena avalanche religiosa, com claros sinais de manipulação do

sagrado, a doutrina essencialmente bíblica, reformada e calvinista, ganha

importância significativa e urgente necessidade em proclamá-la.

Então, somente olhando para Cristo Jesus é que será percebida a verdadeira

natureza do homem. Calvino mesmo define o pecado da seguinte forma:

[...] uma depravação e corrupção hereditária denossa natureza, difundida em todas as partes da almaque, em primeiro lugar, nos torna sujeitos à ira de Deuse, depois, também produz em nós aquelas obras que aEscritura chama de “obras da carne".1041

1039 Tradução-adaptação feita pelo Rev. Dr. Claude Emanuel Labrunie de artigo do Dr. Allan L.Ferrir, publicado na revista Reformed World, de setembro de 1974, pp. 107-115.1040 GEORGE, Timothy. A Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova. (Original eminglês: Theology of the Reformers (Nashville: Broadman, 1988), pp. 185-223.1041 Institutas, Vol. II, 2.1.8.

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Por isso que o homem necessita de uma consciência plena de sua

pecaminosidade a fim de que possa ouvir as boas novas de libertação do pecado

através de Jesus Cristo, o que se dá pela ação interior do Espírito Santo em sua

vida.1042

Do ponto de vista soteriológico, Calvino afirma que a relação entre Deus e o

homem tem como base o conhecimento que o homem tem do Criador, ou seja,

quando ele se conhece à luz do conhecimento que tem de Deus, na pessoa de

Jesus Cristo. O conhecimento acerca de Deus é obtido pelo homem através da

revelação escriturística, viabilizada pela iluminação do Santo Espírito. Sem

dúvida alguma que a liberdade do homem, alcançada pela redenção em Cristo

Jesus, atinge também sua relação com a cultura bem como suas realizações

culturais. Em outras palavras, a verdadeira humanidade acontece quando o

homem se relaciona com Deus através da redenção.1043

Como já discutimos anteriormente a questão da unicidade e universalidade

salvíficas em Jesus Cristo, no item da cristologia, pois soteriologia e cristologia

caminham juntas, entendemos que, além disso, a importância soteriológica de

Calvino para os nossos dias trata-se exatamente de combater todo tipo de

movimento religioso meramente humano, cuja força salvífica está centrada no

homem e não na força da graça.

Assim, desde a encarnação e com a chegada do Messias, a irrupção do Reino

de Deus, pela própria força do Evangelho de Jesus Cristo, o homem está

desautorizado a forjar e a aceitar qualquer tipo de novidades soteriológicas,

fabricadas pelo próprio homem. Vejamos as sábias asseverações do reformador de

Genebra quanto a esta verdade insofismável:

1042 GEORGE, Timothy. A Teologia dos Reformadores, op. cit., pp. 185-223.

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Por isso, não sem motivo, o Pai, enviando-nos SeuFilho como um privilégio singular, proclamou-O nossoMestre e Preceptor, ordenando-nos que a Ele ouçamos, ea homem nenhum. Evidentemente, Ele nos recomendouCristo como Mestre e Senhor em poucas palavras,quando disse: “a Ele ouvi” (Mt 17.5). Mas, nessaspoucas palavras, há mais força e mais importância doque parece. Porque é como se, tirando-nos da doutrina detodos os homens e declarando-a nula, Ele nos ligasse aSeu Filho e nos mandasse receber e aprender dele toda adoutrina da salvação, depender exclusivamente dEle, eapegar-nos somente a Ele – em resumo, o que a palavracomporta: obedecer unicamente a Cristo.1044 (grifonosso)

A dimensão soteriológica em Calvino destina-se a recolocar o ser humano

no seu devido lugar, como criatura de Deus, criação máxima de Deus, receptáculo

de sua imagem e semelhança. Mas destina-se, também, em evidenciar que o

homem não é um ser autônomo, senhor de seu próprio destino. Embora possuidor

de liberdade, Deus é o seu soberano Senhor. Não sem motivos, o reformador de

Genebra descreveu tal realidade em seus escritos, principalmente nas Institutas.

Um dos grandes desafios à Igreja Evangélica Brasileira é quebrar o

paradigma de uma fé de mercado, completamente vencida pelo poder econômico,

em muitos de seus segmentos. Trazer os consumidores da fé à condição de

verdadeiros discípulos de Jesus Cristo, pela via do discipulado – ensino –

fazendo-os conceber o verdadeiro conceito do Evangelho da graça, da fé, de Igreja

e, sobretudo, do próprio Deus, torna-se hoje um imperativo. Numa sociedade

enferma, adoecida, solitária, sem foco existencial, em que suas relações são

superficiais, necessitamos de uma Igreja menos realizadora e mais relacional, com

mais consciência de sua vocação como comunidade terapêutica.

A missão integral da Igreja na sociedade passa, fundamentalmente, pela

dimensão de sua ação koinônica. Importa proporcionar um ambiente eclesial onde

o homem tenha condições de se relacionar com Deus, consigo mesmo e com o

próximo de forma saudável e significativa. Por isso que, falando acerca do

conhecimento que o homem precisa ter si mesmo à luz do conhecimento de Deus,

o que é imprescindível, Calvino afirma o seguinte:

1043 Este parágrafo é uma tradução-adaptação feita pelo Rev. Dr. Claude Emanuel Labrunie, deartigo do Dr. Allan L. Ferrir, publicado na revista Reformed World de setembro de 1974, pp. 107-115.1044 Institutas, Edição especial. Vol. I, pp. 109,110.

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Ora, a verdade de Deus nos manda procurar outracoisa, quanto à nossa estima própria. Manda-nos buscarum conhecimento que nos afaste para longe de todapresunção quanto à nossa virtude pessoal e nos despojede todo tipo de glória para nos levar à humildade. Essa éa regra que devemos seguir, se desejamos conseguir oobjetivo do bem-sentir e do bem-fazer. Sei quanto éagradável ao homem que o levem a reconhecer seustalentos e suas qualidades elogiáveis, em vez de serlevado a entender e a enxergar a sua pobreza, a suainfâmia, a sua torpeza e a sua loucura. Porque não há, noespírito humano, maior apetite que o de que lhe passemmel na boca, dizendo-lhe doces palavras e lisonjas.1045

Calvino não nega existir o que ele chama de “alguma semente de nobreza

em nossa natureza, a qual nos deve incitar a seguir a justiça e a honestidade”.1046

Entretanto, na medida em que busca um exame mais acurado de si mesmo, o

homem depara-se com a dura realidade de sua condição diante de Deus, vendo-se

“esvaziado de toda esperança”1047 soteriológica. Cabe ao homem perceber o

motivo para o qual foi criado e, certamente, dotado por Deus com dons e talentos

a fim de que viva para glorificar o seu Criador. Esta é uma parte essencial do

conhecimento que o ser humano deve ter de si mesmo.1048

Como conseqüência natural dessa avaliação, nascerá o desejo de servir a

Deus, pois como criatura recebeu a imagem e semelhança do seu Criador.

1045 CALVINO, João. As Instituas. Edição especial com notas para estudo e pesquisa. Vol. I. SãoPaulo: Ed. Cultura Cristã. 2006, p. 8. A partir desta nota, será usado como Institutas, Ediçãoespecial.1046 Institutas, Edição especial. Vol. I, p. 83.1047 Institutas, Edição especial. Vol. I, p. 82.1048 “A luz desse fato aprendemos, também, que os que são responsáveis pelo presunçoso uso dabondade divina se aproveitam dela para orgulhar-se da excelência que possuem, como se apossuíssem por sua própria habilidade, ou como se a possuíssem por seu próprio mérito; enquantoque sua origem deveria, antes, lembrá-los de que ela tem sido gratuitamente conferida aos que são,ao contrário, criaturas vis e desprezíveis e totalmente indignas de receber algum bem da parte deDeus. Qualquer qualidade estimável, pois, que porventura virmos em nós mesmos, que ela nos

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A generosidade de Deus na vida do ser humano se verifica, também, no fato

de que este recebeu das mãos do Criador inúmeros bens espirituais e elevadíssima

preeminência.1049 Contudo, pela força do pecado, afastado da comunhão com

Deus, o homem perdeu tais bens, o que poderá reavê-los somente pelo caminho da

reconciliação com Deus, pela mediação de Jesus Cristo.1050

A necessidade de salvação impõe-se exatamente nesse ponto, visto que o

homem fora desprovido de qualquer capacidade de se voltar para Deus, tornando-

se completamente incapaz de promover sua própria salvação. Por isso Calvino faz

a seguinte declaração:

Ora, se não há dúvida nenhuma de que a graça deCristo é nossa por comunicação e que por ela temos vida,segue-se paralelamente que, tendo uma e outra sidoperdidas em Adão, em Cristo as recuperamos, e como opecado e a morte foram gerados em nós por Adão, porCristo foram abolidos.1051

O grande mistério da graça salvadora de Deus em Cristo Jesus está na

consciência assumida pelo homem de que não há nele nenhum bem capaz de

promover-lhe a salvação ou o seu livramento espiritual, estando apenas rodeado

de miséria e de necessidade, privado, portanto, de verdadeira liberdade.1052 Ora, o

inclinar-se diante de Deus em humildade significa encontrar a própria grandeza do

homem, pois é voltado para Ele que encontrará o que lhe falta.

estimule a celebrarmos a soberana e imerecida bondade que a Deus aprouve conceder-nos”. In.:CALVINO, João. O Livro de Salmos. São Paulo: Parakletos, 1999. Vol. I, (Sl 8.4, pp. 165,166).1049 CALVINO, João. O Livro dos Salmos, Vol. I, (Sl 8.5), p. 167.1050 “Quando de seu estado original decaiu Adão, não há a mínima dúvida de que, por estadefecção, se haja alienado de Deus. Pelo que, embora concedamos não haja sido nele aniquilada eapagada de todo a imagem de Deus, foi ela, todavia, corrompida a tal ponto que, o que quer queresta, é horrenda deformidade” (Institutas, Vol. I, 15,4). “Pelo pecado estamos alienados de Deus”(CALVINO, João. Efésios, (Ef. 1.9), p. 32); “Como a morte espiritual não é outra coisa senão oestado de alienação em que a alma subsiste em relação a Deus, já nascemos todos mortos, bemcomo vivemos mortos até que nos tornamos participantes da vida de Cristo.” (CALVINO, João,Efésios, (Ef 2.1), p. 51). “Tão logo Adão alienou-se de Deus em conseqüência de seu pecado, foiele imediatamente despojado de todas as coisas boas que recebera”. CALVINO, João, Exposiçãode Hebreus, (Hb 2.5), p. 57.) Todos os homens estão “totalmente alienados de Deus”. (CALVIN,John. Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan, Baker Book House Company, 1981, Vol.XVIII, (Jo 14.22), p. 97.1051 Institutas, Edição especial. Vol. I, p. 86.1052 Institutas, Edição especial. Vol. I, p. 90. “Os homens jamais encontrarão um antídoto para suasmisérias, enquanto, esquecendo-se de seus próprios méritos, diante do fato de que são os únicos aenganar a si próprios, não aprenderem a recorrer à misericórdia gratuita de Deus.” (CALVINO,João. O Livro dos Salmos, Vol. I, (Sl 6.4), pp. 128,129).

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O arcabouço teológico da Reforma Protestante, especialmente a teologia

calvinista, nos aspectos elencados neste trabalho, uma vez atualizados e aplicados

no contexto da pós-modernidade, contribuirá para uma presença eclesial mais

relevante e significativa na sociedade. Significa dizer que se faz necessário e

urgente anunciar a justificação somente pela graça mediante a fé, denunciando,

pelo caminho do ensino, da compaixão, qualquer tipo de religião meramente

humana, antropocentralizada, pelagiana ou, a melhor das hipóteses,

semipelagiana. Todo homem liberto pela graça é liberto do pecado e também da

Lei, visto que, em Cristo, “o problema religioso do pecado é resolvido e o homem

restabelece sua comunhão com Deus”.1053 A liberdade humana só é alcançada pela

justificação e “Deus justifica perdoando”,1054 sendo, portanto, uma ação de Deus

no homem, uma ação heterônoma, salvificamente falando, vinda de fora,

extrínseca ao homem, pois sua fonte é Deus.

A religiosidade brasileira foi cooptada pela religião de mercado, facilitando

toda sorte de manipulação do sagrado. Somos uma sociedade religiosa, mas sem o

verdadeiro conhecimento de Deus, sem a experiência com o Cristo ressuscitado e,

conseqüentemente, sem vidas transformadas e transformadoras da sociedade. As

pessoas buscam uma salvação meramente terrena, de seus problemas financeiros,

emocionais, familiares, profissionais, afetivos, dicotomizando a existência, as

relações, a própria caminhada cristã, que é feita com lutas, muitas vezes, e jamais

com sua isenção. A fé tornou-se produto de consumo, quando deveria ser vista e

recebida como dom, oferta da graça de Deus.

Portanto, pensar na liberdade cristã no contexto de nossa sociedade significa

enfrentar dois desafios: o primeiro é interpelar o homem pós-moderno, à luz do

Evangelho, de sua real condição diante de Deus, pecador separado da graça

salvadora do Pai. Creio que o homem vive um antropocentrismo absurdo, em que

os seus movimentos religiosos são de baixo para cima, como diz Barth.1055

1053 FERREIRA, Edijéce Martins. A Ética de Calvino. op. cit., p. 33.1054 Institutas, livro III, xi, 11.1055 BARTH, Karl. Die Kirchliche Dogmatik. Zürich, 1950, I/2, p 135.

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334

Em outras palavras, o homem vive sob a constante tentação de dominar todo

e qualquer processo de salvação. Atitude paradoxal, pois o homem vive marcado

pelo pecado, cuja força atinge sua mente e sua vontade. O segundo desafio é

denunciar que, como resultado da pecaminosidade humana, a sociedade com suas

instituições evidenciam, de igual forma, toda sorte de egoísmo, injustiça e a

própria desumanização do indivíduo. Portanto, a presença da Igreja precisa ser

profética, denunciatória, conflitiva.

A liberdade ofertada por Deus, como fruto da justificação, significa que “as

consciências dos crentes, em buscar a convicção da justificação perante Deus

deveriam ser levadas além e adiante da Lei, esquecendo toda a justiça

legalista”.1056 Ou seja, o paradigma de nossa liberdade é Cristo, não devendo o

homem viver mais sob qualquer jugo de escravidão. A lei moral continua com seu

valor, interpelando o homem a caminhar segundo o que é bom e correto, mas

perdeu seu valor como instrumento de opressão e condenação.

Segundo Calvino, compreender a sociedade passa, fundamentalmente, pela

compreensão bíblico-teológica da queda do homem, ou seja, seu processo de

ruptura com Deus e, conseqüentemente, consigo mesmo, com o outro, e com a

natureza.1057 É aqui que encontramos a chave hermenêutica para entender este

processo de enfermização do ser humano e, portanto, sua conseqüente via de

salvação – Jesus Cristo.

5.4.2Em Busca de uma Salvação Integral e Integrada

Na linguagem de Agostini, o vital humano fora tremendamente afetado,

alterando completamente seu ethos e trazendo danosas conseqüências à vida

pessoal e em comunidade. A ruptura com Deus trouxe uma desintegração do ser

humano, pois a relação criatura-Criador deixou de existir em plenitude. “A

desobediência do primeiro homem trouxe como conseqüência, morte espiritual ou

separação de Deus, o que também inclui morte física, que por sua vez também

está relacionada com enfermidade, dor e perda da vida".1058

1056 Institutas, livro III, xix, 2.1057 Institutas, livro III, viii, 51.1058 ZANDRINO, Ricardo. Curar também é tarefa da Igreja. São Paulo: CPPC, 1986, p. 38.

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335

Portanto, a chamada Ordo Salutis, ou Ordem da Salvação, significa a

descrição e a forma como se dá todo processo salvífico em Cristo Jesus na vida

dos homens e mulheres por Ele alcançados. Berkhoff afirma que “a soteriologia

reformada tem como ponto de partida a união estabelecida no pactum salutis entre

Cristo e aqueles que o Pai lhe deu, por meio do qual há uma imputação eterna da

justiça de Cristo aos que são seus”.1059 A justificação se dá pela fé em Cristo

Jesus. Na verdade, a Ordo Salutis tem seu início na regeneração e que, portanto,

toda a aplicação da obra redentora de Jesus Cristo é manifestação da graça de

Deus.

Na visão querigmática de Calvino, o evangelho libertador de Jesus Cristo

promove a salvação integral do ser humano, estabelecendo uma íntima conexão

entre salvação e cura, ou seja, a obra redentora de Deus em Cristo Jesus, resgata

todas as dimensões do ser humano. Traz ao homem a consciência de dependência

de Deus, em que o centro do universo deixa de ser ele mesmo e, doravante, vive

não mais para si, mass para o outro, para Deus mesmo. Na verdade, a salvação

ofertada por Deus pode e deve ser vista, também, como experiência de saúde,

como cura de suas enfermidades, morais, emocionais, espirituais, sociais etc.

Significativo é o conceito bíblico de shalom, por exemplo, que expressa não

apenas a idéia de paz, mas também de saúde, podendo chegar à renovação

espiritual e reabilitação social, num sentido ainda mais amplo. No grego,

podemos citar novamente a palavra soteria, que significa salvação, apontando

para a totalidade da pessoa ou também saúde, indicando que, na soteriologia de

Deus, não há espaço apenas para uma salvação espiritual, como se a mesma

possuísse somente uma dimensão, mas aponta para a totalidade do ser humano.

Lamentavelmente, em nossa cultura ocidental, é que encontramos esta

dicotomia entre saúde e salvação, visto que a nossa teologia aderiu ao dualismo

grego entre matéria e espírito. O verdadeiro evangelho não salva a pessoa apenas

para um futuro distante, desprezando sua vida aqui e agora, ao contrário, o

evangelho libertador de Jesus Cristo promove salvação integral do ser humano e o

devolve à sociedade, transformado, para agir como novo homem, promotor do

Reino de paz e de justiça.

1059 BERKHOF, Luis, op. cit., p. 496.

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336

Portanto, a práxis soteriológica da Igreja deve ser no sentido de promover

não apenas salvação, mas também saúde. A salvação de Jesus Cristo implica

salvação do homem, do seu status quo e do seu modus vivendi, ou seja, as pessoas

são salvas de sua condição de ruptura de Deus, mas também transformadas, dia

após dia, de sua forma de vida.

A verdadeira liberdade cristã só alcança sentido plenamente, quando trilhada

pela senda da justificação. Significa dizer que tanto a justificação quanto a

liberdade cristãs possuem um caráter essencialmente prático, pois dizem respeito

diretamente à vida humana. A justificação como ação direta de Deus e a liberdade

restaurada, promovendo santificação, mudanças éticas e transformações sociais.

Os discípulos de Jesus Cristo “não deveriam ser enleados por nenhuma malha de

observações, em matérias das quais o Senhor os desejou livres”, visto que “estão

livres do poder dos homens”.1060

Encontramos, na teologia paulina, clara indicação de que, pela ação livre e

soberana do Espírito de Cristo, o homem torna-se livre da lei do pecado e da

morte, outorgando-lhe uma nova vida e alterando seu ethos constitutivo, ou seja,

modificando seu comportamento. Tudo isso faz parte do imperativo da conversão,

do encontro com o Cristo ressuscitado. Encontramos,s nas palavras de França de

Miranda, uma excelente síntese sobre o pensamento de Calvino no que diz

respeito ao resultado soteriológico. “Logo toda experiência autêntica de Deus

supõe seguimento de Cristo, docilidade a seu Espírito, abertura ao irmão,

compromisso da própria vida com o amor e a justiça”.1061

Sendo assim, na visão paulina, a salvação é vista como justificação, ou seja,

graça ofertada ao homem, não apenas escatologicamente, mas presente. A

justificação de Deus tem uma dimensão forense (declarar justo), sendo “uma não-

imputação”.1062 Trata-se de um veredicto de salvação, “maravilhosamente

gratuito, pronunciado pelo Deus fiel à sua aliança”.1063

1060 Institutas, livro III, xix, 14.1061 MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 142.1062 Ibidem., p. 89.

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337

Tal justificação ocorre somente pela fé, sem qualquer efetivação de obras

humanas (Rm 3,28; Gl 2,16; Ef 2,8-10). Isso significa dizer que não há qualquer

possibilidade por parte do homem em promover sua autojustificação.

“Naturalmente essa fé não é um assentimento intelectual a certas verdades

salvíficas, mas a fé-compromisso, a fé-doação, que se identifica como atitude

profunda do homem com a esperança, a caridade, a metanóia”.1064 Ou seja, a

justificação implica na dimensão forense e transformativa, na qual a justiça de

Cristo é imputada ao homem, mas também a ação regeneradora do Espírito Santo

o faz nova criatura (II Co 5,17).1065

5.5Implicações Éticas Diante dos Desafios da Pós-Modernidade

Quando pensamos sobre a liberdade cristã e suas implicações éticas, estamos

falando da forma como devemos ordenar a nossa caminhada, a vida mesmo. O

Evangelho que chegou até nós e provocou a quebra das cadeias que nos

aprisionavam, requer profundo amor pela justiça, pela retidão. Este é o primeiro

princípio estabelecido por Calvino no que diz respeito à verdadeira vida cristã. O

segundo tem a ver com o estabelecimento de certos parâmetros ou princípios de

conduta, a fim de que não nos percamos e vivamos sem direção e meta.1066

Sem dúvida alguma que a teologia reformada deixou-nos um legado muito

rico e, especialmente para os nossos dias, a ética ganha destaque. Tal constatação

se dá exatamente pelo fato de que a Igreja Evangélica Brasileira tem sofrido

demasiadamente nessa área. Notoriamente as últimas décadas têm revelado uma

crise ética em diversos setores da Igreja, seja por parte de líderes, seja por parte de

seus membros. Sexo, dinheiro e poder são os casos mais comuns. Mais tão sério

quanto essa questão é a falta de sensibilidade e a incapacidade de enfrentar os

gritantes e dantescos problemas sociais. Por isso veremos, aqui, dois aspectos

importantes sobre as implicações éticas e o anúncio da Igreja.

1063 Ibidem., p. 89.1064 MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 89.1065 Institutas, Edição Especial, p. 90.1066 Institutas, Edição Especial, Vol. IV, pp. 177,178.

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5.5.1A Ética na Vida de Serviço

Discípulos de Jesus são aqueles que tiveram uma libertadora experiência

com Cristo, através do genuíno Evangelho. A estes, a Palavra do Evangelho

chega-lhes com interpelações a uma vida cristã autêntica, repleta de implicações

ético-sociais, a fim de que sejam vividas no tempo e no espaço onde atuam. Paulo

chama de vida cristã autêntica o despojar do velho homem e o revestir-se do novo

homem, alcançando, assim, o verdadeiro conhecimento de Cristo.1067 Calvino,

então, vai afirmar categórica e enfaticamente que, lamentavelmente, há cristãos

nominais, “não tendo nada de Cristo, exceto o título”.1068 Para o reformador, o

evangelho não é apenas uma questão de religião meramente moral, muito menos

um corpo doutrinário discursivo, mas fundamentalmente uma experiência com o

Cristo ressurreto, transformada em um novo estilo de vida. “Felizes, porém, são

aqueles que abraçaram o evangelho e firmemente permanecem nele! Porque ele –

o evangelho – fora de qualquer dúvida, é a verdade e a vida”.1069

Significa dizer, à luz das Escrituras e da visão ética de Calvino, que aqueles

que não vivem para glória de Deus envergonham-nO com seu estilo de vida. Ou

seja, o dom da fé possibilita-nos crer na Palavra e a potencializa em nosso

coração, tornando-a frutífera, sendo evidenciado “o seu poder em nossa vida”.1070

Diante de tais asseverações, constatamos a contemporaneidade das Escrituras e

das palavras de Calvino, pois o mundo pós-moderno carrega a marca da

superficialidade, inclusive na esfera religiosa. O cristianismo, estatisticamente

falando, têm mais cristãos nominais do que verdadeiramente evidenciando a

prática de sua fé. Daí, uma das primeiras implicações éticas do anúncio do

evangelho é que quem o anuncia o faz porque foi por ele liberto. Nesse sentido, as

palavras de Calvino são apropriadas:

1067 Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 181.1068 Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 181.1069 Efésios, (Ef. 1.13), pp. 35,36.1070 Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 182.

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339

Não exijo que a vida do cristão seja um evangelhopuro e perfeito, embora o devamos desejar e esforçar-nospor esse ideal. Não exijo, pois, uma perfeição cristã detal maneira estrita e rigorosa que me leve a nãoreconhecer como cristão quem não a tenha alcançado.Porque, se fosse assim, todos os homens do mundoseriam excluídos da Igreja, visto que não se encontranem um só que não esteja bem longe dela, por mais quetenha progredido. E a maioria ainda não avançou nada ouquase nada. Todavia, nem por isso os devemosrejeitar.1071

Uma das conseqüências da teologia reformada é a construção de um perfil

ético tanto na pessoa, quanto na comunidade eclesial, gerando, portanto, uma ética

individual e social.1072 Segundo o pensamento calvinista, o homem alcançado pela

graça de Deus em Jesus Cristo, recebe uma nova vida repleta de contornos

comunitários. A Igreja é a nova sociedade no mundo, pois através dela Deus

realiza Seu propósito e cumpre Sua vontade soberana. No fiel cumprimento de sua

vocação ela proclama o Evangelho de salvação, faz novos discípulos e busca

transformar a sociedade na qual está presente, ou seja, “na comunidade cristã as

relações sociais naturais são-no na perspectiva da restauração”.1073 Haja vista o

que aconteceu na cidade de Genebra.1074

Uma das principais conseqüências da doutrina da imago Dei, restaurada na

vida do ser humano, está na perspectiva da ética. Na verdade, essa dimensão

expõe uma implicação teológica na pregação. Apesar de sua grandiosa visão de

uma humanidade restaurada, Calvino era um realista. Sabia que credos e

comportamentos não raro estão muito distanciados, assim como os princípios e as

práticas na comunidade cristã. Tratou, então, de orientar sua pregação no sentido

de aproximar as duas realidades, os dois pólos. Entre os ouvintes sentados na

congregação de Genebra, havia cristãos professos que estavam incluídos na

categoria de exploradores de seus próximos.

1071 Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 182. Tais palavras de Calvino são libertadoras eevidenciam um homem consciente das limitações humanas, mesmo alcançado pela graça salvadorade Jesus Cristo.1072 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. São Paulo: Casa EditoraPresbiteriana. 1990, pp. 334-339.1073 Ibidem, pp. 334-335.1074 MATOS, Alderi Souza de. Resgatando Aspectos Essenciais da Fé Reformada. In.: FidesReformata III/1, 86.

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340

Para Calvino, a riqueza implicava em perigos e sérias responsabilidades. “Os

que são ricos considerem que sua abundância não se destina a ser usada em

intemperança e excessos, mas em aliviar as necessidades dos irmãos”.1075 Calvino

fustigava publicamente aqueles que procuravam o controle monopolítico dos bens

de consumo básico. Por exemplo, aqueles que armazenavam trigo para provocar

escassez e assim alcançavam altos preços. Fulminava crentes desse tipo ao pregar.

“Tais pessoas sepultam a graça de Deus, como se estivessem em guerra aberta

contra Sua bondade e contra Sua solicitude para com todos”.1076 Em outra ocasião,

o reformador chamou os manipuladores do preço do trigo de “assassinos, bestas

selvagens, mordedores e devoradores dos pobres, sugadores de seu sangue”.1077

Outra questão preocupante sobre a qual Calvino emitiu sua opinião foi a taxa

de juros. Emprestar dinheiro a outrem para iniciativas produtivas era permitido.

Contudo, o limite era não cobrar mais do que 5% de juros. Mas não se deve cobrar

juros quando se empresta ao pobre. Na verdade, diante do desespero do pobre, o

certo é dar-lhe imediatamente o necessário. E também não se deve negligenciar a

responsabilidade da caridade a ponto de só ter disponibilidades para emprestar ao

comerciante que remunera o capital emprestado. Além disso, aquilo que as leis da

sociedade permitem, em termos de juros, se injusto, é inadmissível para o

cristão.1078

De acordo com Calvino, a fé cristã deveria permear todas as áreas da vida. O

dinheiro, a propriedade e o trabalho do homem destinam-se não a despojar o

próximo, mas a servi-lo. O enfoque que Calvino deu ao trabalho, conferiu-lhes

nova dignidade. Deixou de ser considerado como maldição causada pelo pecado:

é antes um meio para servir a Deus e ao próximo. O trabalho do homem provém

do trabalho e da vontade de Deus. Implica, de algum modo, em participação na

criatividade Divina. A arte, arquitetura, ciência e agricultura humanas são

possíveis mediante a operação dos poderes criativos de Deus.

1075 Comentário, 2 Coríntios 8.15.1076 Sermão 96 sobre Deuteronômio 15.16.23. Os sermões de Calvino sobre o livro deDeuteronômio são particularmente ricos em revelar o seu pensamento social.1077 Comentário ao Evangelho de Mateus, 3.9-16.1078 Este parágrafo é uma tradução-adaptação feita pelo Rev. Dr. Claude Emanuel Labrunie, deartigo do Dr. Allan L. Ferrir, publicado na revista Reformed World ,de setembro de 1974, pp. 107-115.

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341

Há de se afirmar, também, que a ética cristã nos interpela a uma vida

sensível a bênção de Deus, na inteira dependência de sua provisão. Em seu

comentário na segunda carta aos Coríntios, o reformador faz a seguinte

observação:

Quando o Senhor nos abençoa, também nosconvida a seguirmos Seu exemplo e a sermos generosospara com o nosso próximo. As riquezas do Espírito nãosão para serem guardadas para nós mesmos, mas sempreque alguém as recebe deve também passá-las a outrem.Isto deve ter uma aplicação especial aos ministros daPalavra, mas também tem uma aplicação geral a todos oshomens, a cada um em sua própria esfera.1079

O trabalho, além disso, é um dos meios pelos quais Deus em sua providência

cuida das necessidades da sua criatura. A sociedade que não der a um homem

condições de trabalhar, está a roubar-lhe um de seus direitos humanos

fundamentais. Mediante o trabalho humano, Deus atende às necessidades de um

homem e de sua família. Subtrair de alguém a possibilidade de trabalhar, declarou

Calvino, é equivalente a “cortar sua garganta”.1080

Não satisfeito com isso, Calvino afirma que o trabalho é um instrumento

para desincumbirmo-nos de nossas responsabilidades para com o nosso próximo.

O reformador, como já exposto, era um líder preocupado com a solidariedade da

vida humana. Os homens não constituem uma coleção de indivíduos; é uma

comunidade de gente mutuamente dependente. Para Calvino, a ética pessoal deve

ser ética social, e esta última tem a ver com meu próximo. Percebe-se, pois, que o

fim, o objetivo, a intenção com que o homem trabalha, é de importância decisiva.

O trabalho pode ser a expressão de um espírito egoísta e açambarcador, ou pode

ser um meio de expressar minha nova vida com Cristo, que requer não apenas

honrar a Deus, mas também amar meu próximo em quem, por mais distorcida que

seja, reflete-se a imagem de Deus. Mediante meu trabalho, eu me torno capaz de

expressar de maneira concreta meu amor por meu próximo.1081

1079 Coríntios, (2 Co 1.4), p. 17.1080 Sermão em Deuteronômio 24.14-18.

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342

Portanto, quando pensamos em implicações éticas no contexto da pós-

modernidade salta-nos aos olhos a necessidade, por exemplo, do ensino, da

educação, como meio de tornar os princípios e parâmetros éticos e morais

conhecidos de todos. Ou seja, a educação moral torna a pessoa consciente de que

ela é um sujeito moral e, alcançada pelo Evangelho libertador, torna-se livre como

sujeito moral, capaz de viver com liberdade e responsabilidade. Não sem motivos,

para Aristóteles e Kant, a ética era vista como ciência prática, um conhecimento

que conduz à práxis.1082 Ou seja, a ética como estudo crítico da moralidade, ela

questiona acerca dos fundamentos basilares que devem orientar a práxis humana,

nas suas relações pessoais, sociais, religiosas etc. O pano de fundo do pensamento

de Aristóteles e de Kant, neste campo em particular, diz respeito,

fundamentalmente, à ética vivida no contexto limitado da Polis ou do Estado

Democrático.1083

Segundo a teologia paulina, por exemplo, a liberdade para a qual Cristo nos

libertou diz respeito a dois aspectos: o primeiro declara que a salvação é graça de

Deus e não resultado de esforço humano; o segundo afirma que o propósito da

salvação operada em nós é para a nossa liberdade, ou seja, “esta liberdade é a

meta da ação libertadora de Cristo, implicando que o homem se encontra num

estado salvífico estável, possibilitado (Rm 8,2) e conservado pelo Espírito (II Co

4,7)”.1084 Miranda afirma que o resultado dessa liberdade ontológica viabiliza a

liberdade ética, na qual o agir do humano reflete o pressuposto da ação de Deus

em sua vida, potencializando o imperativo ético dos homens e mulheres que

seguem a Jesus Cristo.1085

1081 Tradução-adaptação feita pelo Rev. Dr. Claude Emanuel Labrunie, de artigo do Dr. Allan L.Ferrir, publicado na revista Reformed World de setembro de 1974, pp. 107-115.1082 Para um maior aprofundamento da questão ética, sugere-se a leitura de duas obrasfundamentais para a filosofia prática ocidental, cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo:Nova Cultural, 1987 e KANT, I. Crítica da Razão Prática / CRPr, (A 167-185). São Paulo:Martins Fontes, 2002.1083 Ibidem, pp. 239,241.1084 MIRANDA, Mário de França, op. cit., p. 98.

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343

A ética desenvolve sua reflexão crítica acerca da moralidade sempre a partir

de determinadas condutas humanas. Por outro lado, a moral é compreendida como

a formação de determinado conjunto de normas e condutas conhecidas e

reconhecidas como próprias ao comportamento humano por um grupo social, num

determinado tempo e espaço. Seu objetivo último é oferecer segurança e

estabilidade às relações humanas e sociais. “Em cada cultura, a articulação do

ethos, da moral e da ética faz com que um determinado povo construa um modo

próprio de habitar um espaço e tempo, com regras e valores próprios”.1086

Por outro lado, ela carrega também o desafio da resposta, através da

reflexão, às perguntas vitais ao ser humano,1087 tais como: sobre que bases ético-

morais o indivíduo deve fundamentar sua conduta? Que tipo de relações o ser

humano deve estabelecer com a criação, com o próximo, consigo mesmo e com

Deus? Há gradação hierárquica no que diz respeito a valores que devem ser

priorizados e, portanto, seguidos? A verdadeira cidadania é caracterizada por

quais atitudes e comportamentos?1088

É aí que nasce a liberdade, resultado do sujeito moral. Poderíamos, então,

dizer que ética seria a liberdade responsável por escolher e construir a própria

história humana a partir do legado adquirido, de tal maneira que o faça para

tornar-se mais humano e contribuir para uma sociedade mais justa e mais

humanizada.1089

Há um grande desafio para a Igreja atual, pelos claros movimentos de

opostos, que é não pender nem para a intolerância e nem para o liberalismo, ora

tolhendo a liberdade responsável, ora favorecendo ao relativismo dogmático,

afetando diretamente a consciência das pessoas. A linha por onde se deve

caminhar é tênue, mas este também é um dos desafios. Calvino faz um comentário

pertinente sobre o assunto, utilizando-se de Santo Agostinho: “Queixava-se ele de

que a Igreja, que a misericórdia de Deus quis seja livre, estava a tal ponto

oprimida, que mais tolerável haja sido a condição dos judeus.”1090

1085 Ibidem, p. 98.1086 AGOSTINI, Nilo. Ética e Evangelização, op. cit., p. 21.1087 CORBISIER, R. Introdução à filosofia, tomo1, Rio de Janeiro: Ed.Civilização Brasileira,1991, pp. 125-127.1088 COTRIM, G. Fundamentos da Filosofia – História e Grandes Temas, op. cit., p. 264.1089 COTRIM, G. op. cit., p. 265.1090 Institutas, livro IV, cap. 10, seção 1, p. 173.

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Na visão de Calvino, a Igreja deveria ser um centro de reprodução e

irradiação dessa nova concepção de liberdade, vivendo como comunidade

restaurada e renovada, a fim de que dela saísse o conceito de uma nova

sociedade.1091 Daí a necessidade de engajamento histórico. Em um de seus

sermões, Calvino faz o seguinte comentário:

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5.5.2Desafio de Construção de uma Sociedade Humanizada

Em primeiro lugar, gostaria, aqui, de estabelecer um paradigma de conduta

para todos os cristãos – Jesus Cristo. Deus não apenas nos reconciliou através do

Filho, mas O constituiu nosso modelo de vida, pois viveu aqui como verdadeiro

homem, a quem, pois, devemos imitar, vivendo, assim, o Evangelho do Reino,

fazendo-nos capazes de nos humanizar e promover uma sociedade mais humana.

Para o reformador, Deus deu-nos Seu Filho como o Messias, o Salvador, mas

também como modelo ou imagem que “deve ser representada em nosso viver”.1093

Comentando Hebreus, ele diz o seguinte:

Tudo quanto os filósofos têm inquirido sobre osummum bonum revela estupidez e tem sido infrutífero,visto que se limita ao homem em seu ser intrínseco,quando é necessário que busquemos felicidade fora denós mesmos. O supremo bem humano, portanto, se achasimplesmente na união com Deus. Nós o alcançamosquando levamos em conta a conformidade com suasemelhança.1094

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345

Sendo assim, o cristão é aquele que exerce sua fé não apenas na dimensão da

contemplação, mas também no contexto histórico no qual se encontra. Segundo

Calvino, o que Deus deseja para seus filhos, antes de qualquer coisa, é

integridade, caracterizada pela nobreza de coração, singeleza e sinceridade de

alma.1095 Somos, portanto, desafiados e encorajados pelo próprio Cristo a

prosseguir na caminhada cristã, perseguindo a maturidade e a estatura do segundo

Adão, Cristo. Para o cristão comprometido com as implicações do Evangelho,

haverá de perceber que o hoje superou o ontem. A ética cristã importa em que

sejamos melhores do que somos, pois com o nosso ethos restaurado seremos mais

humanos e melhores nas nossas relações interpessoais, com a criação e com o

próprio Deus. Na verdade, uma coerência entre ortodoxia e ortopraxia.

Vejamos as palavras do próprio Calvino:

Piedade para com Deus, confesso é maispreeminente do que o amor devido aos irmãos; e assim aobservância da primeira tábua é mais valiosa à vista deDeus do que a segunda. Mas como Deus pessoalmente éinvisível, assim piedade é algo oculto aos sentidoshumanos. E embora as cerimônias sejam destinadas atestificar dela, todavia não são provas infalíveis. Àsvezes sucede de ninguém ser mais zeloso e sistemáticoem observar as cerimônias do que os hipócritas. Deus,portanto, quer fazer prova de nosso amor para com eleatravés do amor devido ao nosso irmão, o qual ele nosrecomenda. Eis a razão por que não só aqui, mas tambémem Romanos 13.8,10, o amor é chamado aocumprimento da lei, não porque seja ele superior ao cultodivino, mas porque ele é a prova deste. Deus, como jádisse, é invisível; mas Ele se nos representa nas pessoasdos irmãos, e nessas pessoas requer o que é devido a Elemesmo. O amor para com os homens flui tão-somente dotemor e do amor de Deus. Portanto, não causariasurpresa se por meio de sinédoque, o efeito de incluir emsi a causa da qual ele é o sinal. Seria, porém, errôneoseparar o amor a Deus do amor aos homens.1096

1095 Salmos, Vol. II (Sl 58.1), p. 517.5�6/�D "�����.�5E�5F����������������5/E�5/F�

Page 346: Pontifícia Universidade Católica Do Rio do Janeiro

346

Segundo o pensamento calvinista, há três princípios com os quais o cristão

mantém contato, qual sejam: Deus, o próximo e o mundo. A ética cristã não

enxerga um mundo demonizado e a Igreja como único lugar sagrado, mas o vê

como espaço pertencente à vida, criado por Deus, sem separações e qualquer

forma dualista. Ao contrário, a ética cristã reformada reconhece Deus no mundo.

Assim, há um duplo benefício: primeiro a valorização do homem como imagem

de Deus e o segundo benefício é olhar o mundo como criação divina. Seria a

manifestação da graça comum, através da qual o mundo é mantido pelo Criador e

a “graça particular que opera a salvação”.1097

Assim, recupera-se o devido papel ou vocação do cristão e da Igreja na

sociedade. Louva-se a Deus na Igreja e o serve no mundo. A obra da redenção

possibilita ao homem verificar, inclusive, liberdade no mundo, visto que toda

maldição que pairava sobre ele é agora restringida pela graça, o que importa

descobrir suas potencialidades naturais e usá-las para glória de Deus.

Outro ponto fundamental da ética libertária de Calvino é o fato de que todas

as barreiras raciais, culturais e sociais são suprimidas pelo poder do Evangelho

libertador. Em Cristo, somos todos um, formando o Seu Corpo, inserido na

sociedade para agir na dinâmica do acolhimento e do amor-serviço.1098

Assim, a liberdade cristã, segundo Calvino, precisa atingir todas as

dimensões da vida humana, não podendo tornar-se veículo de agressão. A vida

cristã integra as dimensões espirituais, sociais, econômicas, políticas.1099 Para

Calvino, esta nova condição humana deve conduzi-lo à simplicidade e jamais

provocar os mais fracos. Ele afirma que “mui perniciosamente erram, porém,

porque de nenhum peso tem a fraqueza dos irmãos, [fraqueza] que assim convém

de nós suster-se que algo não admitamos inconsideradamente, com tropeço

deles.”1100 Na verdade, tal liberdade possui, inclusive, dimensões de renúncia, a

exemplo da postura paulina: “porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de

todos” (1 Co 9,19). No entanto, este paradoxo não pode conduzir o cristão a

nenhuma atitude de alienação.

1097 KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 38.1098 Ibidem, p. 249.1099 Institutas, livro III, cap. 19, seção 15.1100 Institutas, livro III, cap. 19, seção 10.

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Segundo a visão de Calvino uma das tarefas da Igreja na sociedade é tornar

as leis humanas o mais próximo das leis de Deus. Na verdade, seu desejo era criar

uma sociedade governada pelas leis de Deus, jamais confundindo o Estado como

representação do reino de Deus, muito menos criar qualquer tipo de teocracia.1101

Aos magistrados cabia a função de zelar pelo cumprimento das leis, a solução de

problemas de ordem geral e a preservação das mesmas. A Igreja era essencial na

vida da sociedade. “Não que lhes competisse ensinar na Igreja ou decidir sob o

conteúdo do ensino, mas lhes cabia supervisionar a vida da Igreja e punir os

blasfemadores e hereges”.1102 Fundamentalmente, nessa perspectiva, o papel da

Igreja é educativo.1103

O cristão é chamado, pelo evangelho que o atingiu, a construir uma nova

sociedade, mais humana, levando para todas as esferas da sociedade uma

consciência moral responsável. Cabe a Igreja ser fomentadora dessa liberdade e

promotora de esperança e de sentido de vida. A liberdade cristã é a liberdade da

responsabilidade, do compromisso, do engajamento, da inserção no mundo,

expressando a imagem de Deus recriada em nós. É, paradoxalmente, a liberdade

da submissão a Deus, da obediência a Deus.1104 Tudo isso é fruto de uma relação

essencialmente alicerçada no amor. Calvino diz:

Portanto, quem quer que seja dos homens queagora se te depare que careça de tua ajuda, causa nãotens por que te furtes a assisti-lo. Dize que é [ele] umestranho: o Senhor, no entanto, imprimiu-lhe um traçoque te deve ser de um membro da família, em razão deque veda desprezes tua [própria] carne [Is 58.7]; dize queé [ele] desprezível e sem valor: o Senhor, no entanto,mostra ser ele [um] a quem dignou da honra de Suaimagem; dize que de nenhum serviço seu estás em dívida[para com ele]: Deus, no entanto, como que osubestabelece em Seu lugar, [...]. No entanto, é a imagemde Deus, pela qual se te recomenda [ele], a que teofereças [a ti próprio] e a tudo que tens.1105

1101 TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE, 2000, p. 269.1102 Ibidem, p. 269.1103 Ibidem, p. 269.1104 Institutas, livro III, cap. 19, seção 14.1105 Institutas, livro III, cap. 7, seção 6.

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Nilo Agostini fala-nos, também, da grandeza dessa ética, que busca o resgate

da alteridade, sendo esta um dos grandes desafios na pós-modernidade. Alteridade

significa a dinâmica do saber ouvir para a práxis do saber servir.1106 O cristão

deve valorizar a sua vida, o seu tempo, o seu corpo, o seu trabalho como meio de

sobrevivência e de serviço em prol da coletividade.

O princípio escriturístico da liberdade cristã está no exercício de sair de si

mesmo e envidar todo esforço do nosso ser ao serviço de Deus, que, na verdade, é

a construção do Seu Reino através da sociedade provisória, a Igreja, segundo a

linguagem de Calvino. Tal serviço consiste não apenas a obediência à Palavra de

Deus e submissão ao Espírito Santo, mas também o desempenho dos dons

recebidos em benefício do próximo. Diferentemente dos filósofos que ensinam

que devemos seguir apenas a razão, como instrumento de governo da vida,

Calvino declara que “a filosofia cristã pretende que a razão ceda e se afaste, para

dar lugar ao Espírito Santo”.1107

Torna-se imperativo no contexto da pós-modernidade resgatar a consciência

ético-cristã acerca da vocação de cada servo de Deus, a fim de que não sejamos

absorvidos pela cultura atual, que valoriza desenfreadamente a busca constante

das opções oferecidas. Ao contrário, saibamos ordenar nossa conduta pela via da

vocação que Deus deu a cada um de nós. Portanto, é no exercício de nossa

vocação que encontraremos o caminho da liberdade.1108

Biéler, percebendo a importância do papel da Igreja na sociedade, declara

que as relações sociais naturais sofrem substancial transformação pela presença da

Comunidade Cristã, resultado da obra regeneradora na vida de cada cristão.

Vejamos suas próprias palavras:

A obra de regeneração realizada por Jesus Cristo,manifesta-se no aparecimento de novas relações sociaisentre os homens. É na Igreja que a ordem primitiva dasociedade, tal qual havia Deus estabelecido, tende a serrestaurada.1109

1106 Ibidem, pp.42-44.1107 Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 184.1108 Institutas, Edição Especial, Vol. IV, pp. 224,225. Cf. CALVINO, João. A Verdadeira VidaCristã, op. cit., p. 77.1109 BIÉLER, A. op. cit., pp. 335,336. “Tem-se, por muito tempo, debatido a questão de saber se aordem natural de que se percebem traços no mundo de hoje, após a Queda, era a ordem da criação,ou se decorria ela de uma ordem estabelecida posteriormente, a ordem de conservação, que Deusteria instituído após a Queda para manter a vida humana e impedir que o mundo se precipite nocaos a que o arrasta o poder destrutivo do pecado. De fato, porém, a ordem natural não pode serreconhecida agora senão a partir da ordem que Cristo restabelece entre os homens; não podemos

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5.6Impactos de uma Teologia Libertária na Sociedade

Para o reformador de Genebra, a restauração da sociedade tem seu início no

seio da Igreja, estendendo-se à sociedade, alcançando suas mais diferentes áreas

através de uma prática cristã autêntica, disciplinada e voltada para a glória de

Deus e expansão do seu Reino entre os homens dependentes da graça salvadora e

libertadora de Jesus Cristo.

A concepção reformada acerca da ação do ser humano no exercício de sua

cidadania é extremamente interessante pelo fato de que a visão calvinista

recuperou a idéia de santidade em toda atividade humana, considerando-a

legítima. O pano de fundo é o fato de que o homem restaurado realiza a vontade

de Deus através de todas as suas atividades, servindo ao Pai e ao próximo, uma

vez que Deus distribuiu uma diversidade de dons entre os homens, possibilitando

a multiplicidade de funções que beneficiam a todos.

Em resposta ao chamado de Deus ou à sua vocação, entende-se, por um

lado, que tudo que envolve a vida humana diz respeito à vocação universal de

Deus, através da qual a vontade soberana de Deus alcança todas as coisas e sua

providência se estende em cada detalhe da vida humana. Por outro lado,

compreende-se, também, que a resposta humana é viabilizada pelas chamadas

vocações particulares ou específicas. Segundo Kuyper, tudo que o homem realiza,

realiza dentro da cultura, servindo-se da cultura e servindo à cultura.1110 O serviço

do ser humano à sociedade tangia sua vocação universal e específica, incluindo

também seus bens, pois, segundo o pensamento reformado, todas as coisas são

espirituais.1111

saber, fora desta revelação, qual era a ordem social natural primitiva”. Quanto ao debate teológicoreferente a esta questão, cf. CHENEVIÈRE, Marc. La pensée Politique de Calvin. Genève.Editions Labor 1937, p. 91, e CONORD, Paul. Le Problème d’Une Sociologie Chrétienne. Paris,1936, pp. 57-77.1110 KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 80.1111 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., p. 410.

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5.6.1Impacto na Política

A política era um assunto fundamental no período da Reforma, sendo o tema

a partir do qual brotavam outras questões fundamentais. Neste sentido, a

influência da Reforma foi católica – universal – em seu impacto sobre a vida de

toda a sociedade, ainda que majoritariamente a sociedade ocidental. Ainda que a

restauração da Igreja seja a meta principal, a glória da obra de Deus, em Cristo,

alcançou sua amplitude na direção de todas as esferas da vida humana.1112

O impacto das idéias de Calvino, na esfera política, inaugurou uma nova era,

pois suas concepções concederam à sociedade uma nova direção à compreensão

de nacionalidade, em muitos lugares, e ao cerceamento das idéias despóticas e

absolutistas.1113 Por exemplo, o estado grego havia sido totalitário e nele a religião

era obrigatoriamente um meio para um propósito específico, ou seja, a própria

glorificação do Estado.1114 Já na Idade Média, foi estabelecida a concepção de

Igreja-Estado, sendo a suprema autoridade conferida ao Papa, que delegava o

poder temporal ao governante terreno para o serviço da Igreja.

Calvino passou a olhar a Igreja e o Estado como entidades interdependentes,

cada uma delas recebendo sua própria autoridade do Deus soberano.1115 Nesta

concepção, o Estado nunca é secular, nem estão a Igreja e o Estado separados

totalmente, porém recebem sua autoridade do Deus soberano. A democracia atéia

e a soberania absolutista não têm por teórico Calvino. Para ele, era fundamental

salvaguardar a independência espiritual da Igreja contra as interferências

constantes do poder público. Igreja e Estado devem ser autônomos, cada qual

cuida dos assuntos pertinentes à sua natureza.1116

1112 Ao enfatizar a soberania e glória de Deus em sua obra, Calvino entendia ser ela “certaorientação e ajuda, para saber que deva nela buscar a fim de não vaguear incerta, ao contrário,alcance rota segura que lhe faculte atingir sempre o fim a que a convoca o Santo Espírito”. In.:Institutas, livro I, p. 49. Ou seja: a vocação religiosa não se expressa apenas no espectroeclesiástico, mas se manifesta em toda a vida, em todas as esferas vivenciais.1113 Cf. DAVIES, A. Mervn. O pensamento da Liberdade Americana, (New York, 1955), queafirma que “Ao vencer o Absolutismo emergente, quando este ameaçava devorar toda Europa, este(i.e., o Calvinismo) tornou possível o surgimento de uma comunidade de homens debaixo dasoberania de Deus. Assim, pois, foram postos os fundamentos da nossa liberdade,” p. 24.1114 CANTU, Cesare. História universal. São Paulo: Ed. das Américas, 1967-1968. p. 121.1115 SABINE, George H. História das Teorias Políticas. Rio de Janeiro / Lisboa: Editora Fundode Cultura, 1964. pp. 189-190).1116 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., p. 152.

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Segundo Calvino, a Igreja e o Estado devem viver em paz e devem cooperar

juntos em sujeição à Palavra de Deus. Cada um há de ter sua própria jurisdição. O

Estado tem autoridade nos assuntos puramente civis e temporais; a Igreja, nos

assuntos espirituais. Calvino aboliu a cláusula da lei canônica do beneficio do

clero, colocando os associados ministeriais debaixo da autoridade e em obediência

aos magistrados em todos os assuntos civis. Os magistrados, muito importantes

para Calvino, deviam estar debaixo da jurisdição do consistório nas questões

espirituais.

É claro que Calvino pensava num Estado constituído exclusivamente por

cidadãos cristãos, porque entendia que a vida individual prospera quando tal fato

ocorre, pois é baseada na verdadeira religião. Além disto, Calvino sustentava que

a vida social e política são impossíveis quando estão dissociadas da verdadeira

moralidade, que é vinculada à verdadeira religião.1117

Os governantes não têm o direito de fazer leis sobre temas referentes à

adoração a Deus e sobre assuntos religiosos; suas responsabilidades não alcançam

tamanho grau. Para Calvino, as responsabilidades religiosas estão acima das leis

feitas pelos magistrados. Qualquer interferência dos magistrados nas questões

religiosas consistiria na diminuição e aviltamento da religião, conduzindo a Igreja

ao mesmo paganismo que era marcado, na antiguidade, pela interferência dos

filósofos. Por isto, é uma idéia absurda para os magistrados cristãos abandonar os

assuntos religiosos ou então fazer destes meramente assuntos humanos.1118

Calvino desejava que o governo mantivesse as formas públicas da religião entre

os cristãos e a conservação da humanidade entre os humanos. As autoridades

civis, sendo elas cristãs, devem guardar a verdadeira religião contida na lei de

Deus, de ser violada e contaminada pela blasfêmia pública.1119

1117 KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo. Ed. Cultura Cristã. 2002, pp. 85-92.1118 Institutas, livro IV, seção 20, 9.1119 Institutas, livro IV, seção 20, 3.

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352

Em suas idéias sobre a ordem política, é determinante o princípio básico de

Calvino da soberania de Deus.1120 Estava fortemente oposto a toda forma de

absolutismo estatal, de autocracia e de monarquia absoluta. Os reis e os

presidentes deviam ter seu poder limitado por legisladores e pela lei

constitucional.1121 O Estado é liderado por todos aqueles que são submetidos à

aceitação do povo e são aceitos por eles para o desempenho do poder.1122

Assim, os cidadãos podem, em verdade, recusar a obediência ao governante

quando este ordenar qualquer coisa contrária à vontade de Deus, pois é preciso

obedecer a Deus antes de obedecer aos homens. Porém, fora deste caso específico,

os cidadãos não devem se rebelar contra as autoridades legalmente constituídas.

Os cidadãos devem ao governo honra, obediência, serviço militar e outros

serviços, além do pagamento de impostos e orações pelo bem dos governantes.

Quanto aos governantes injustos, estes são levantados por Deus para castigar

as iniqüidades do povo e por isto devem ser obedecidos. O único recurso em tais

casos é a oração, para que Deus julgue entre as nações e dê Sua justa retribuição e

para que não seja usurpado o direito das viúvas e dos pobres.1123

Aqui se evidencia outra vez o abrangente impacto da idéia da soberania de

Deus na teologia de Calvino. Não somente o governante está debaixo das

restrições advindas da soberania de Deus, mas também os cidadãos, que são

obrigados a cumprir suas responsabilidades e cumprir suas obrigações por causa

de Deus.1124

1120 Ver também DAVIES, A. Mervn, em O pensamento da Liberdade Americana, (New York,1955), que afirma que “Ao vencer o Absolutismo emergente, quando este ameaçava devorar todaEuropa, este (i.e., o Calvinismo) tornou possível o surgimento de uma comunidade de homensdebaixo da soberania de Deus. Assim, foram postos os fundamentos da nossa liberdade,” p. 24.1121 Para um tratamento mais detalhado do tema da graça comum e da cultura, Cf. BAVINCK, H.,“Calvino e a Graça Comum,” Calvino e a Reforma, pp. 117- 30, donde Bavinck sustenta queCalvino, apesar de “sua convicção da majestade e caráter espiritual da lei moral,” é mais generosoem seu reconhecimento do que é verdadeiro e bom, onde quer que se encontre, do que qualqueroutro reformador.” p. 120.1122 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. São Paulo: Casa EditoraPresbiteriana. 1990, p. 147.1123 Institutas, livro IV, seção 20, 1732.1124 VIGUERIE, Jean de. L’institution des enfants - L’éducation en France - XVIe - XVIIIe siècle.Paris: Calmann-Lévy, 1978. 331p. Cf. Viguerie, 1978:42.

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353

Em outras palavras, o que podemos asseverar sobre tal afirmação é que,

para o reformador genebrino, qualquer autoridade deve ser acatada na medida em

ela permanece fiel a Deus e obediente às Escrituras Sagradas. “Esse ensino de

Calvino, segundo Skinner, é o pressuposto fundamental da construção e

florescimento da democracia em alguns países da Europa Ocidental, tais como

França, Inglaterra e Escócia, só para citar alguns”.1125 Para Calvino, as

autoridades são ministros de Deus e como tais devem cumprir a sua vontade, pois

são provedores para toda a sociedade1126. Ele afirma:

Por que quanta é a integridade, prudência,clemência, moderação e inocência que deve possuiraquele que se reconhece como ministro da justiçadivina? Com que confiança buscarão realizar sua sedede justiça sobre qualquer iniqüidade, sabendo quejulgam por delegação do trono do Deus vivo? Com queatrevimento pronunciarão sentença injusta com sua bocasabendo que esta foi consagrada para ser instrumento daverdade de Deus?1127

Nessa mesma linha de pensamento, ele ainda faz a seguinte afirmação:

[...] se existirem magistrados do povo, não é partede minhas intenções proibi-los de agir em conformidadecom seu dever de resistir à licenciosidade e ao furor dosreis; ao contrário, se eles forem coniventes com aviolência desenfreada e suas ofensas contra as pessoaspobres em geral, direi que tal negligência constitui umainfame traição de seu juramento. Eles estão traindo opovo e lesando – o daquela liberdade cuja defesa sabemter-lhes ordenada por Deus.1128

1125 GOMES, Antônio M. de Araújo. O Pensamento de João Calvino e a Ética Protestante deMax Weber, Aproximações e Contrastes. São Paulo: FIDES REFORMATA 7/2 (2002), p. 6.1126 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., pp. 446-450.1127 CALVINO, Juan. Institución de la religion cristiana. Traducida y publicada por Cipriano deValera en 1597 por Luis de Usoz y Río en 1858. Nueva edicion revisada en 1967. Países Bajos:Fundacion Editorial de Literatura Reformada, 1967. Livros I e II. p. 1.172.1128 Ibidem, p. 1.193.

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5.6.2Impacto na Cultura

Embora a separação entre a Igreja e o Estado tenha se realizado em Genebra

durante a vida de Calvino, é possível dizer que se converteu em uma realidade

histórica devido aos seus labores em instituir a disciplina espiritual na Igreja. A

batalha pela jurisdição espiritual do Consistório, com o direito de excomungar, era

o ponto focal na disputa travada pelo poder eclesiástico, que foi uma batalha dura

e às vezes amarga, que Calvino pelejou com o conselho de Genebra. Isto, segundo

Warfield, foi um conflito “travado entre a Igreja e o Estado, que tinha por

propósito separar um do outro.”1129 E ainda que todos os filhos espirituais de

Calvino não tenham apreciado isto suficientemente, ele queria uma Igreja

autônoma em sua própria esfera espiritual.

Este juízo de Warfield se confirma pela pregação de que Calvino também

libertou toda a esfera da cultura da tutela da Igreja. Calvino rechaçou o esquema

da natureza e graça de Aquino, no qual o mundo está dividido em duas metades, a

superior e a inferior, dadas respectivamente ao domínio da fé e da razão.1130 Nesta

visão, a graça inclui a religião, a ética, a teologia e a Igreja; porém, a natureza está

no âmbito da cultura, incluindo todas as atividades naturais do ser humano.

Dando-se conta da inadequação em colocar ambas as esferas no mesmo patamar,

estas são colocadas em níveis de importância distintos, estando as atividades

naturais postas num âmbito inferior. Aquino e a Igreja colocaram toda a esfera da

cultura debaixo da tutela da Igreja, convertendo-se em serva da teologia.

Guilherme de Ockcam, o filósofo nominalista, opondo-se a este senhorio,

enfrenta antiteticamente os dois âmbitos, pondo um contra o outro. Ele, na

verdade, liberta a arte, a agricultura, o comércio e a indústria do poder papal, e

transfere tudo isto às mãos dos duques e reis.

1129 DAKIN, A, op. cit., p. 18.1130 Calvino compreendeu os efeitos radicais da queda, inclusive o efeito noético do pecado, quetornou a razão humana incapaz de chegar ao conhecimento da verdade por si mesma (Tt 1,15). Euma vez que a queda é primordialmente uma tragédia ética, a desobediência é a característica detudo o que fazemos, dizemos ou pensamos. Mas Calvino também compreendeu o sentido radicalda redenção em Cristo, que restaura o homem palingeneticamente, em todos os aspectos do seu serDeus é o criador do cosmos e das leis que o regem, e não está sujeito às leis cósmicas, nem mesmoàs leis da lógica. Cf. Knudsen, Calvinistic Philosophy, 8-9.

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Desta forma, converteu-se em pai de uma concepção da cultura controlada

pelo Estado, sendo o primeiro filósofo moderno a conceder abertura àquilo que se

transformou posteriormente na base filosófica do totalitarismo.1131

Agora, Calvino proclamou junto à Igreja e o Estado, uma terceira dimensão,

uma área da vida que teria existência e jurisdição separada. É chamada de

“adiáphora”, ou seja, as coisas referentes à mente, à consciência. O tribunal da

consciência é o lugar onde a moral prospera. E a mente é o local onde nenhum rei

ou soberano humano pode governar, exceto Deus, que conduz o cristão à

obediência.

Esta área não está restrita a uns poucos assuntos insignificantes de gosto e

opinião entre os indivíduos, mas inclui a música, a arquitetura, o conhecimento

técnico, as ciências, as festividades sociais e questões de todos os dias. Além de

apresentar, em suas doutrinas, as dimensões da Igreja e do Estado, Calvino

apresenta a liberdade cristã na dinâmica vivencial, da vida interior do ser humano,

sendo este responsável de prestar contas somente a Deus em sua consciência.1132

Portanto, esta doutrina da liberdade cristã se constitui uma das pedras

fundamentais da filosofia cultural de Calvino.1133

A liberdade cristã, como base da vocação cristã consiste, segundo Calvino,

no apêndice da doutrina da justificação, pois sem ela não pode haver “o correto

conhecimento de Cristo ou da verdade evangélica, ou da paz interna da

mente”.1134 Porém, quando se menciona esta doutrina, reações inapropriadas

ocorrem, segundo Calvino, devido às características das pessoas pois que,

“debaixo do pretexto da liberdade, abandonar toda obediência a Deus,

precipitando-se na mais desenfreada libertinagem; e alguns, supondo ser ela

subversiva a toda a moderação, estabelecem distinções morais.”1135

1131 DE LIBERA, Alain, A Filosofia Medieval, p. 430.1132 Esta consciência é fruto da ação do Espírito. No comentário do Salmo 73:23, Calvino declara opapel do Espírito na preservação dos eleitos. Ele diz “a razão de não sucumbirmos, mesmo entreos severos conflitos, nada mais é que, recebemos o cuidado do Espírito Santo. Realmente, Ele nemsempre põe sobre nós o Seu poder de um modo evidente e notável, (pois Ele nos aperfeiçoa emnossa fraqueza), mas é suficiente que Ele nos socorra, ainda que sejamos ignorantes einconscientes disto, que Ele nos sustenta quando nos humilhamos, e ainda nos levanta quandocaímos” (John Calvin, in loci, The Works of John Calvin. In.: Ages Digital Library).1133 Para Calvino, a liberdade espiritual do cristão não suprime os tribunais, as leis e osgovernadores, e é perfeitamente consoante com o serviço civil (Ibid., IV, 20, 1).1134 Institutas, livro III, p. 19.1135 Institutas, livro III, capítulo 3.

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Estas são as reações do mundano e do asceta. Calvino se opõe igualmente a

estes males, à mundaneidade e à fuga do mundo. Sem dúvida, isto o converte num

neutralista, não no sentido de que não assume uma posição definida, mas opondo-

se rigorosamente a estes dois extremos.

Está claro, na sua abordagem da essência da liberdade cristã, que esta é

espiritual. Consiste na liberdade em relação à escravidão da lei e a restauração da

obediência voluntária à vontade de Deus, fruto da oferta de sua graça, na pessoa

de Jesus Cristo, que insere o homem numa relação de aliança com Deus. Posto

que o ser humano esteja livre da lei, como instrumento de salvação ou

condenação, a resposta à graça de Deus é a obediência vinculada à nova adoração

ao Deus de toda graça e à alegria em servir.1136 A liberdade consiste num caminho

de fé, marcada pela virtude. Porém, as mentes ainda servas que se inclinam para

as luxúrias e demais obras reprováveis, não têm parte na liberdade que Deus

concede aos seus filhos.1137

Entretanto, se todo o esforço cultural é possível devido à liberdade, porém,

pode se converter em prejuízo, dependendo da fé de cada um, pois tudo o que

provém de fé consiste em um ato benéfico e positivo. E tudo o que não está

edificado sobre a fé consiste em pecado. Toda a cultura apóstata é egoísta, por ser

baseada nas concepções de que o ser humano pode ser salvo pelos próprios

méritos e acaba exaltando a glória humana que, para Calvino, não existe por si,

mas só pode ser dada por Deus. Porém, a doutrina da justificação pela graça

mediante a fé, com seu apêndice na liberdade cristã, faz o ser humano livre para

servir a Deus em seu chamado cultural.1138

1136 Cf. Institutas, op. cit., p. 230.1137 A doutrina da expiação reflete isto, segundo Calvino: “Para um sacerdote, cuja função eraapaziguar a ira de Deus, socorrer os desventurados, restaurar os caídos, libertar os oprimidos, seuprimordial e extremo requisito era demonstrar misericórdia e criar em nós tal senso de comunhão.Pois é muito raro que aqueles que sempre vivem afortunadamente simpatizem com os sofrimentosalheios. O Filho de Deus não tinha necessidade de passar por alguma experiência a fim deconhecer pessoalmente a emoção da misericórdia. Entretanto, Ee jamais nos teria persuadido desua bondade e prontidão em socorrer-nos não fosse Ee provado pelos nossos próprios infortúnios.Fiel significa verdadeiro e justo. É o oposto de um impostor ou alguém que não cumpre o seudever. A experiência de nosso infortúnio faz de Cristo Alguém tão pleno de compaixão, que omove a implorar o auxílio divino em nosso favor. Que mais podemos desejar? Para fazer expiaçãopor nossos pecados, Ele se vestiu de nossa natureza, para que pudéssemos ter, em nossa própriacarne, o preço de nossa reconciliação. Em uma palavra, para que pudesse nos levar consigo, paradentro dos Santos dos Santos de Deus em virtude de nossa comum natureza.” Cf. Hebreus, op. cit.,pp. 78-79.1138 Enquanto Zwinglio estabeleceu os primeiros fundamentos religiosos, seu trabalho foicontinuado e aperfeiçoado pelo seu sucessor em Zurique Henrique Bullinger (1504 - 1575) e porJoão Calvino, em Genebra, os quais uniram os dois caminhos religiosos de Zurique e Genebra à

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357

Kuyper, em suas Conferências Stones, assinala este ponto quando recorda

que a liberdade do ser humano, após a mentalidade medieval, consistia em ganhar

a salvação pelas obras, e isto possibilitou a emergência do mundo moderno com

suas ciências, indústrias e inventos.1139 Porém, a ênfase de Calvino sobre o uso

apropriado dos bens deste mundo tornou possível o pensamento de que, aqueles

que são cristãos, são agentes culturais que têm domínio sobre a terra e devem

exercer este domínio de forma consciente para poder expressar em sua vida a

verdadeira vida em liberdade, usando-a para glória de Deus.1140

Calvino sustenta que a vocação de todo ser humano é concedida por Deus,

da qual se deriva uma consolação peculiar, ou seja, que “não há obra alguma tão

humilde e tão baixa que não resplandeça diante de Deus, e será muito preciosa em

sua presença.”1141 Com isso em mente, consideremos agora algumas das

contribuições de Calvino no campo da economia.

5.6.3Impacto na Economia

Quando pensamos na influência da Igreja nas esferas da vida, o sistema

calvinista torna-se imprescindível para o nosso tempo, visto que, na sua

concepção, a vocação da Igreja possui uma dimensão integral. Não poderia ser

diferente sua visão acerca do mundo econômico, ou seja, para Calvino, o uso

cristão dos bens tem a ver com a forma como ordenamos a vida, visto que “se

temos que viver, também precisamos utilizar os recursos necessários à vida”.1142

salvação, ou seja, o Zwinglianismo e o Calvinismo, e estabeleceram a base comum da confissãocalvinista na Suíça: a Confessio Helvetica (prior,) de 1536, o Consensus Tigurinus, de 1549 e,afinal, a Confessio Helvetica (posterior), de 1566. Nestas está presente a idéia da justificação queencaminha o homem ao seu chamado cultural. Cf. Locher, p. J 91-94. LOCHER, G.; ZWINGLI,W. Und die schweizerische Reformation [= Z. e a Reforma na Suíça] ihrer Göttinen: Vandenhoek& Ruprecht, 1982. (Die Kirche in ihrer Geschichte, v. 3).1139 KUYPER, Abraham. Calvinismo. As seis palestras dadas por Kuyper constituem a referidaobra traduzida para o português, pelo Dr. Ricardo Gouvêa.1140 KUYPPER, Abraham. Calvinism: Six Stone Foundation Lectures, (Grand Rapids, 1943), pp.117-130.1141 Institutas, livro III, 10, 6.1142 Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 218.

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Nesse sentido, o reformador genebrino estabelece o princípio da mordomia

cristã, ou seja, cada cristão é um administrador dos recursos dados por Deus,

como frutos de sua misericórdia, a quem devemos prestar contas no devido tempo,

bem como ter a consciência de que o que temos não nos pertence, pois tudo

pertence a Deus.1143

Assim, do ponto de vista do mundo da economia, chama-se ciência da

economia porque ela estuda a satisfação das necessidades físicas, em busca do

bem-estar material do ser humano, tanto como indivíduo, quanto na dimensão da

sociedade.1144

Calvino tem muito a dizer em todos os seus comentários sobre este amplo

tema, já que os seus sermões estão repletos de referências sobre as necessidades

físicas do ser humano. O elemento particularmente notável acerca da pregação de

Calvino sobre questões econômicas é seu caráter existencial, ou seja, grande parte

do que diz está vinculado a situações concretas. Calvino, por exemplo, não

somente condena a mendicância, mas também admoesta os crentes a tratarem de

forma amorosa e bondosa aqueles que foram submetidos a tal situação

vexatória.1145

Três temas chamam nossa atenção quando se mede o impacto econômico

das idéias e práticas de Calvino em Genebra, principalmente no tocante às

questões referentes à renda, quando cruzadas às idéias primitivas de

comunismo.1146

1143 Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 223.1144 “Pela gratuita misericórdia de Deus a vontade é convertida ao bem, e convertida, perseveranEle. Que, quando a vontade do homem é guiada ao bem, e que, depois de ser encaminhada, sejatambém constante nEle, tudo isto depende unicamente da vontade de Deus, e não de algum méritoseu” (Institución, vol II.3.14, p. 213).1145 Sermões, Deut. 15:1112; 26:16). Ver também P. A. Diepenhorst. Calvijn en de Economie,(Wageningen, 1904). O que segue no texto é um extrato da dissertação do Dr. Diepenhorst, queconsultou as obras de Calvino no Corpus Reformatorum. Apesar das referências nos sermões e noscomentários, a teoria de Calvino sobre este assunto é apresentada em seu Concílio.1146 Calvino entende que o uso das benesses da criação é válido. Ele afirma: “Prescindamos, pois,daquela inumana filosofía que não concede ao homem o uso das criaturas de Deus que éestritamente necessário, e nos priva sem razão do lícito fruto da liberalidade divina, e que somentepode ter aplicação despojando o homem de seus sentidos e reduzindo-o a um pedaço de madeira.”(Institutas, livro III, 10, 3).

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A proibição da existência de rendimentos foi um dos fatores mais

importantes da vida econômica da Idade Média. Esta proibição estava sustentada

pela Escritura.1147 Ainda no século dezesseis, essa era a opinião comum, da qual

não se desviaram nem reformadores e nem humanistas.

Portanto, em primeiro lugar, Calvino se tornou exceção à regra. Ainda que

tenha percebido os perigos que a prática da usura e da ilegalidade econômica

trariam para o seu tempo, ele proibiu que isto fosse impedimento para desenvolver

concepções bíblicas para a utilização de recursos financeiros.1148 A autoridade da

Palavra e a liberdade cristã foram o binômio a partir do qual Calvino estabeleceu

novos critérios para a vida econômica.

O que é ainda mais significativo é a afirmação de que Calvino defende o

lucro e a exploração dos recursos, a fim de torná-los ainda mais produtivos. Nesse

aspecto, Calvino refuta a idéia de Aristóteles de que o dinheiro é improdutivo e

assinala as inúmeras possibilidades quando utilizado na indústria, visando ao

bem-estar social. No entanto, enfatiza que os recursos financeiros devem servir ao

pobre, a quem devemos emprestar sem esperar devolução.1149 Em resumo,

Calvino distingue entre a caridade cristã e os negócios, o que abriu as portas para

grandes investimentos no comércio e na indústria.1150

Por isso, Calvino recebeu louvor, no tocante a esta marca da sua teologia,

por parte de muitos economistas.1151 Além dos economistas, sociólogos, como

Max Weber, seguido por R. H. Tawnee, dão crédito a ele por estabelecer os

fundamentos das modernas relações capitalistas.1152 Não há razão para negar ou

depreciar esta conexão, já que é inegável que o espírito do capitalismo está de fato

invariavelmente ligado aos preceitos calvinistas, com sua elevada consciência

ética e sua cautela contra o abuso da liberdade, responsável pelos excessos do

duro individualismo do século XIX, ainda que produzisse o fortalecimento do

conceito de liberdade religiosa, que culminou, também, no fortalecimento das

concepções de liberdade política.

1147 Cf. Lucas 6:35; Deut. 23:19; Salmo 15 etc.1148 DIEPENHORST, P. A. Calvin en de Economie, (Wageningen, 1904), p. 123.1149 Comentários, sobre Êxodo 22:25; Lev. 25:25-28; Deut. 23:19, 20.1150 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., pp. 215-220.1151 DIEPENHORST, P. A. op. cit., pp. 139, 153-71.1152 A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (New York, 1931) 2 vols. A Religião e oSurgimento do Capitalismo, Holland Memorial Lectures, 1922, (Penguin Books, Inc. New York).

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A comunidade influenciada pelo calvinismo era marcada pelo senso de

cooperação mútua e pela busca do bem comum. Ainda que Calvino desse ênfase

ao indivíduo no sentido de apreciar e estimular a pessoalidade, ele falou menos

disto do que da vida comunitária da Igreja e do Estado.1153

Neste aspecto, Weber analisa não a teologia de Calvino propriamente, mas

os escritores puritanos como sua fonte, já que a idéia individualista e materialista

da obtenção da segurança da salvação por meio das boas obras não se encontra no

reformador de Genebra.1154 Um exemplo disso foi a resistência dos ministros de

Genebra, que inequivocamente se opuseram à proposição dos mercadores em

estabelecer um banco na cidade em 1580. Os ministros usaram o argumento de

que não queriam que Genebra se tornasse um lugar forte a partir da pobreza

alheia.

Em segundo lugar, é necessário considerar o conceito calvinista da vocação

para o comércio em particular. Os comerciantes, durante a Idade Média, eram

considerados uma classe estéril, enquanto a agricultura era exaltada e os

agricultores, tidos em maior estima.1155

1153 Calvijn Als Mensch En Hervormer, pp. 122-125.1154 Calvino afirma que “é uma notável e brilhante prova de seu inestimável amor, que o Pai nãohesitou em entregar seu Filho para a nossa salvação.” Ver Romanos, p. 300. A implicação disto é“porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas”. Para Calvino, não há lugar paraas boas obras naquilo que é fundamental para garantir a salvação, já que Cristo foi-nos dado comomeio revelador do amor de Deus (Jo 1:14; 3:16; Hb 1:3). A obra realizada por Cristo, foi realizadaem nosso favor, e em nosso lugar, como também uma dádiva graciosa para desfrutarmos (Rm5:10). Se em Cristo, o Pai reconciliou-nos com Ele, afirmar a eficácia das boas obras seria perdertoda a obra do seu amado Filho. Calvino ainda afirma: “quando o cristão olha para si mesmo, elenão vê motivo para ansiedade, na verdade, nenhum desespero; mas, visto que ele foi chamado àcomunhão com Cristo, então não pode pensar de si mesmo, no tocante à segurança da salvação, denenhuma outra forma senão como membro de Cristo, fazendo, assim, suas todas as bênçãos deCristo. Dessa forma, ele se assegurará da esperança da perseverança final (como é chamada) comoalgo garantido, caso ele se considere um membro de Cristo, Aquele que jamais pode falhar.” (In:comentário de 1 Coríntios, p. 40).1155 Nisbet, em seu sugestivo livro “História de la idea de progreso", assinala a etimologia dapalavra progresso citando trecho do poeta latino Lucrécio, no qual o autor de "De Natura Rerum"(Sobre a natureza das coisas) fala a respeito da evolução técnica e cultural: E a navegação, aagricultura, a construção de paredes, a invenção das leis, e as armas, as estradas, os vestidos e todaclasse de invenções semelhantes, e também todas as que não proporcionavam senão gosto, acanção, a pintura, e a escultura, foram inventadas à força de experiências, de necessidade e dededicação. E assim, pouco a pouco, avançando passo a passo ("pedetentim progredientes") (grifomeu) as foram aprendendo e melhorando. Deste modo, o tempo, pouco a pouco, provoca osdescobrimentos das coisas, que a razão eleva à luz. Viram, pois como as coisas, umas após outras,iam tornando-se mais claras em suas mentes, até que graças ao seu engenho chegaram ao mais altonível. In.: NISBET, Robert. História de la idea de progreso. Barcelona: GEDISA, 1981, p. 71).Nesta citação, percebe-se que o progresso está vinculado ao desenvolvimento agrícola e daproteção das terras.

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Calvino não estima em demasiado uma, em detrimento da outra.1156 Sobre o

comércio, afirmou Calvino, que este não levou à queda de Tiro, mas apenas ao

deleite excessivo em relação às coisas mundanas. A Babilônia não foi condenada

pelo reformador por causa da sua prosperidade e luxo produzidos pelo comércio,

mas pela arrogância e orgulho.1157

Indubitavelmente, as idéias de Calvino sobre os limites e liberdades no

comércio refletiram na evolução das relações econômicas do seu tempo. Porém,

foi especialmente sua compreensão de que toda vocação é uma honraria concedida

por Deus, que consiste no fundamento da sua apreciação pelos comerciantes.1158

Desde que a Igreja havia glorificado o martírio e posto seus olhos em

direção às realidades celestes, o trabalho havia sido depreciado, apontado como

tendo uma natureza inferior, mundana.

A perfeição cristã há de ser buscada dentro da vocação cristã, jamais fora

dela. Calvino não rechaça totalmente a concepção de perfeição cristã, mas afirma

que a busca desta acaba tornando as pessoas facilmente inclinadas às

superstições.1159 Isso ocorre quando fazemos uma obra, crendo ser ela necessária

ou imprescindível para a salvação.

1156 Cf. Comentários sobre Oséias 12:8; Gen 47:19-23; João 2:16b; Isa. 23:2.1157 Comentários sobre Isaías 47.1158 Um exemplo: Babilônia não foi condenada pela prosperidade e luxo produzidos pelo comércio,mas pela arrogância e orgulho. Cf. Comentário sobre Isaías, p. 47.1159 Calvino entende que a perfeição não pode ser alcançada por méritos humanos, já que Jesus é oúnico que é perfeito e apresenta perfeitamente Sua vida em nosso favor. Ele afirma: “Para umsacerdote, cuja função era apaziguar a ira de Deus, socorrer os desventurados, restaurar os caídos,libertar os oprimidos, seu primordial e extremo requisito era demonstrar misericórdia e criar emnós tal senso de comunhão. Pois é muito raro que aqueles que sempre vivem afortunadamentesimpatizem com os sofrimentos alheios. O Filho de Deus não tinha necessidade de passar poralguma experiência a fim de conhecer pessoalmente a emoção da misericórdia. Entretanto, Elejamais nos teria persuadido de sua bondade e prontidão em socorrer-nos, não fosse Ele provadopelos nossos próprios infortúnios. Fiel significa verdadeiro e justo. É o oposto de um impostor oualguém que não cumpre o seu dever. A experiência de nosso infortúnio faz de Cristo Alguém tãopleno de compaixão, que O move a implorar o auxílio divino em nosso favor. Que mais podemosdesejar? Para fazer expiação por nossos pecados, Ele se vestiu de nossa natureza, para quepudéssemos ter, em nossa própria carne, o preço de nossa reconciliação. Em uma palavra, para quepudesse nos levar consigo, para dentro dos Santos dos Santos de Deus em virtude de nossa comumnatureza.” João CALVINO – Exposição de Hebreus, 1997, pp. 78-79.

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Calvino rechaçou a cruel e inumana filosofia dos estóicos no que defendia e

apreciava os prazeres sensuais e mentais ordinários da vida. Para ele, pecado não

residia na matéria, senão que tem seu assento no coração. O mal não está no

mundo formado de cores, sons, alimentos, bebidas ou vestes, concedidas pela

bondade de Deus, mas está no abuso e exagero, na libertinagem desenfreada. A

santidade não se alcança por se evitar certos benefícios e prazeres ou por rechaçar

os dons de Deus, mas por aceitá-los pela fé e usá-los para a sua glória e para a

edificação da Igreja.1160

Finalmente, é apropriada uma palavra a respeito da atitude de Calvino

concernente ao comunismo. Naturalmente, não é possível usar este termo segundo

a concepção desenvolvida por parte dos teóricos socialistas e comunistas do

século XIX. Nos dias de Calvino, é possível encontrar uma comunidade de bens

apoiada por alguns anabatistas e pelos libertinos. Os primeiros negavam a graça

comum e a autoridade final da Palavra.1161

Para concluir estes comentários acerca da influência de Calvino no campo

da economia, é necessário observar que Calvino estava profundamente interessado

na justiça social.1162 Quando se afirma que ele tenha introduzido o socialismo em

Genebra, esta afirmação se baseia no fato de que ele

1160 Cf. Sermões sobre Deut. 11:15; 12:15; 22:5; ver também comentários sobre I Sm. 25:26-43;Amós 6:4; Tiago 5:5; Isa. 3:16; e muito mais sobre este mesmo tema nas Institutas, op. cit., vol.III, 19, 9, 10; III, 10.1161 Os anabatistas surgiram nos cantões suíços como conseqüência importante do debate, de ondesurgiram conflitos entre Zwínglio e os seus partidários radicais, como Conrado Grebel (1498 -1526), que não somente defendeu uma separação clara da Reforma e da autoridade secular, mastambém realizou, em janeiro de 1525, o primeiro batismo de um adulto no cantão de Zurique einiciou, dessa maneira, o movimento dos anabatistas suíços. A partir desses dois debatesreligiosos, uma multiplicidade de reformas referindo-se a todas as áreas do Estado e da sociedadefoi realizada na cidade. O próprio Zwinglio defendeu a sua posição em diversos escritos novos,entre eles a sua obra principal de 1525 com o título De vera et falsa religione [...] commentarius[Comentário sobre a verdadeira e a falsa religião].In: Zwingli: Schriften. Vol. 3, pp. 31-452. paraos anabatistas, também conhecidos como representantes da reforma radical, a disciplina tinha umcaráter quase sacramental e radicalizaram, à semelhança dos puritanos ingleses, a teologia luteranado sacerdócio universal de todos os crentes, que rompia com toda hierarquia clerical, a favor dolivre-exame da Escritura e da liberdade da consciência. (HILL, C. Intelectuals Origens Of EnglishRevolution: Revised Edition). A versão brasileira, publicada pela Companhia das Letras, é baseadana antiga edição inglesa. Nessa nova edição revisada, Hill destaca a influência de Tyndale naformação intelectual da revolução inglesa, citando como fonte deste novo entendimento suabiografia escrita por David Daniell. Hill entende que Tyndale lançou bases para a contestaçãopolítica puritana durante o reinado de Charles I. Cf. HILL, C. O Eleito de Deus. Companhia dasLetras). Soma-se a estas características a idéia de que os cristãos não estavam sujeitos à obediênciaao governo civil, tese esta combatida por Calvino (Institutas, livro IV, xx, 5).1162 Calvino sempre se mostrou preocupado com a situação do próximo, sobretudo osdesprivilegiados e os pobres. Sobre isto, afirma Wallace: “Do púlpito, ele muitas vezes saía de seuestilo para incitar a consciência de seus ouvintes sobre seu dever para com os desprovidosfinanceiramente ao seu redor. Quando ele pregava sobre a proibição do Antigo Testamento de

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[...] emprestou o talento de sua mente econhecimento legal para uma codificação das leis dacidade, e para o melhor ajuste de seus impostos [...]. Asaúde da cidade era a melhor por sua ajuda na construçãode hospedarias e hospitais. Interessou-se nos métodos decalefação e de proteção contra os incêndios; graças a elefoi reavivada a indústria de tecelagem.1163

Doumergue afirma que “ao reabilitar o trabalho artesanal e ao prescrever a

educação para todos, Calvino diminui, em grande medida, as distinções de classe

na sociedade.”1164 Sem dúvida, ainda que possamos reconhecer que Calvino não

estava oposto à legislação social, seria um abuso falar de seus esforços para

estimular a empresa e a iniciativa privada, significando literalmente o socialismo.

Calvino não era um coletivista em nenhum sentido da palavra.1165

Finalizando este ponto, encontramos nas palavras de Biéler uma excelente

afirmação contra qualquer tentativa de atribuir a Calvino a responsabilidade

primeira de ser ele o pai do capitalismo. Vejamos:

Pelo fato de que outorgava à fé o campo inteiro daatividade humana, que o cristão deve submeter aosenhorio de Cristo, conferiu Calvino,incontestavelmente, ao trabalho, ao labor econômico e aodinheiro, um lugar que não tinham até então e que deviapermitir aos calvinistas aí engajar todas as virtualidadeshumanas e sociais.1166

despojar o devedor pobre de um penhor insuportável por seu débito, ele falava em voz alta quepode ser ouvida hoje como um reclamo de que nenhuma sociedade deve privar qualquer homemda oportunidade de trabalhar para seu sustento.” In.: WALLACE, Ronald. Calvin, Geneva and thereformation. Grand Rapids: Baker Book House Company, 1990, p. 123.1163 TAYLOR, Henry Osborn. Pensamento e Expressão no Século Dezesseis. (New York, 1920),Vol. I, pp. 423, 424.1164 WALLACE, Ronald, op. cit., p. 142.1165 A Religião foi um fator importante para favorecer ou obstaculizar o desenvolvimento dacidadania. A versão calvinista do protestantismo reforçou o individualismo e favoreceu a cidadaniacolocando ênfase na sociedade, e não no Estado. Ver: HERMET, G. (1991) “Des Concepts de laCitoyenneté dans la Tradition Occidentale”. Métamorphoses de la Représentation Politique auBrésil et en Europe. Paris. Edit. Centre National de la Recherche Scientifique.1166 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., p. 661.

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Diante de tal fato, não podemos afirmar que Calvino foi o pai do

capitalismo em sua evolução histórica e como o temos hoje nem podemos negar

que sua visão não o fazia prisioneiro de nenhum “sistema fechado de moral

econômica e social”.1167 Pela capacidade de colocar a fé no exercício integral da

vida, por outro lado, o reformador contribuiu para o desenvolvimento de tal

sistema, mas sempre sob a soberania de Deus e os princípios do amor e da justiça

para com os homens, jamais com suas próprias regras, e ainda dentro do contexto

histórico no qual estava inserido.1168

1167 Ibidem, p. 661.1168 Ibidem., p. 661.

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Conclusão

A modernidade e a pós-modernidade se caracterizam pela grande evolução

tecnológica, científica, social, cultural, e também pela quebra de grandes

paradigmas. O impacto da modernidade sobre a fé foi avassalador, sobretudo, no

auge do Iluminismo. Na pós-modernidade, a fé cristã se vê desafiada a integrar

sem perder-se, fruto da pluralidade e da subjetividade, do derretimento da própria

racionalidade.

Nesse sentido, a Igreja se vê com o compromisso de enfrentar muitos

gigantes, entre os quais, ela mesma se constitui em um de seus grandes algozes.

Responder a esse tempo, repleto de interpelações, tem sido o grande desafio da

Igreja. Neste tempo, proclamado como o tempo da liberdade absoluta,

paradoxalmente, do ponto de vista religioso, avistamos certo retorno ao

fundamentalismo, até como forma de assegurar sentido de vida, diante da

realidade niilista em que se encontra o homem.

É diante desse cenário que a Igreja emerge para estabelecer uma conexão

sólida entre a proclamação do Evangelho e a liberdade. A Igreja carrega, no

cumprimento de sua vocação, a mensagem libertadora do Evangelho de Jesus

Cristo, pela via da inculturação. Portanto, o que enfatizamos neste derradeiro

capítulo foi exatamente o resgate daqueles paradigmas contemplados no capítulo

terceiro, iniciando com a fundamental importância do querigma libertário, que não

apenas liberta o homem, mas a própria Igreja como anunciadora. O querigma à luz

das Escrituras não pode ser viabilizado sem os elementos cristológico e

soteriológico, desvelando a pessoa do ser humano, como imagem e semelhança de

Deus, mas também separado do seu Criador pelo pecado. Posto isso, verificamos

o novo homem em Cristo Jesus e as implicações éticas a partir do Evangelho para

a sua nova realidade de vida no contexto da pós-modernidade. Por isso,

verificamos algumas das influências de uma teologia libertária na sociedade, fruto

da ação da Igreja.

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6CONCLUSÃO

A proposta de nossa pesquisa objetivou levantar a questão da Liberdade

Cristã à luz do reformador João Calvino no contexto na modernidade e da pós-

modernidade. Em face de tal cultura, repleta de luzes e de sombras, a vocação da

Igreja no cumprimento de sua missão querigmática e a relação com a Liberdade

Cristã são vitais para o processo de humanização do homem. As tensões sempre

existiram, existem e existirão no exercício do anúncio do evangelho e na liberdade

que o próprio evangelho carrega, sobretudo no atual contexto em que vivemos,

com grandes exacerbações de fundamentalismos, por um lado, e de liberalismos

na outra ponta. Por isso o objetivo da tese é discutir o tema da Liberdade Cristã

em João Calvino, na busca de oferecer uma resposta cristã e protestante ao nosso

tempo.

Para tanto, no primeiro capítulo, fez-se necessário uma leitura descritiva do

nosso tempo, verificando o atual momento histórico, sobretudo o seu ethos, vital

na constituição e formação da cultura. Por isso, contemplamos a modernidade e a

pós-modernidade em suas dimensões sociocultural, econômica, antropológica e

religiosa, estabelecendo uma definição para cada um dos seus paradigmas.

A via pela qual percorremos foi de fundamental importância não apenas para

análise do nosso tempo, mas também para obter elementos de aferição sobre o

pluralismo religioso que campeia nossa cultura, inserir o objeto de nossa tese, a

partir do lugar em que estamos e apresentar como a proposta do evangelho tem

sido apresentada no cenário evangélico brasileiro.

Um dos elementos focais da tese foi constatar o caldo religioso pluralista no

qual a cultura religiosa está inserida e como a sociedade está marcada pela

desesperança e por um vazio existencial muito grande, afetando diversos setores

da sociedade e, conseqüentemente, da vida humana, fruto de uma cultura

predominantemente marcada pelo poder do econômico, no qual as leis do

mercado é que ditam as normas das relações humanas e do próprio homem com a

criação, tornando a nossa casa um lugar praticamente inabitável.

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Como decorrência dessa questão, trouxemos à tona as questões crísticas,

com suas implicações teológicas para o cristianismo, tendo como pano de fundo o

Diálogo Inter-religioso, visto que, como resultado da pluralidade, constatamos que

nenhuma religião pode arvorar-se de se ver absoluta em suas verdades, sobretudo,

em detrimento das demais. Na outra ponta, verificamos o fato de que todas têm o

mesmo direito à verdade. O cristianismo encontra-se nessa fluidez de verdades e

absolutos, carregando em si verdades absolutas. Verificamos os desafios de se

viver a fé cristã nesse contexto, tendo que transitar e se colocar entre os

paradigmas exclusivista, inclusivista e o pluralista no diz respeito às questões

cristológicas e soteriológicas.

Ainda pior foi constatar uma presença evangélica na sociedade alienada e

alienante, em muitos dos seus segmentos, vencida, também, pela cultura de

mercado, oferecendo um evangelho descaracterizado, uma fé tornada produto e

comercializada – e com ela toda uma linha de produtos que anunciam a

felicidade. Nesse contexto, mais do que nunca, as portas se abriram para a perda

dos valores morais, éticos, religiosos, com sua máxima relativização e com sérias

conseqüências para as estruturas familiar, social, cristã, educacional, apenas para

citar algumas.

E mais, o grande paradoxo pós-moderno é que o homem não deixou de ser

religioso, ao contrário, mas agora é adepto de uma religião de consumo, alinhada

aos ditames mercadológicos cujo centro é antropológico. É uma religião em

detrimento de uma espiritualidade integral, relevante, significativa e marcante. Eis

o grande desafio para intercambiar o querigma da Igreja e a liberdade cristã, tendo

como interlocutores os homens e as mulheres vencidos por essa cultura.

Emergem desse paradigma da pluralidade, como marca tangível da

modernidade e da pós-modernidade, as diversidades cristológicas, crísticas e,

conseqüentemente, soteriológicas. E o resultado final é uma multiplicidade

eclesiológica. Portanto, cremos na importância da pesquisa não só para levantar

tais questões, mas também para reforçar o papel da Igreja como agente de

transformação histórica, expressão e sinal do Reino de Deus, instrumento na

promoção de libertação no profundo serviço de resgate do vital humano pela ação

libertadora e libertária do genuíno evangelho de Jesus Cristo.

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Entendemos que a temática da Liberdade Cristã em João Calvino só

ganharia ainda mais relevância tendo, como pano de fundo, esse quadro

sociocultural-econômico e antropológico-religioso.

No segundo capítulo, fizemos uma incursão de cunho histórico sobre o

período preparatório à Reforma do Século XVI e o Movimento propriamente dito,

que foi muito além das fronteiras religiosas, tendo repercussões na vida política,

social, econômica e cultural, bem como fornecendo caminhos para a segunda

geração de reformadores, que foi o caso de João Calvino.

Em seguida, contemplamos, de forma bem detalhada, a vida e a formação de

Calvino, os caminhos percorridos como humanista e homem dedicado aos mais

diversos estudos. Verificamos que a Reforma Protestante do Século XVI nasceu

na Alemanha, com o grande reformador Martinho Lutero (1517). Entretanto, no

contexto na Reforma, surgiu o que chamamos de Movimento Reformado, na

Suíça, num primeiro momento com Ulrico Zuínglio e, mais tarde, com João

Calvino, em Zurique e Genebra, respectivamente.

Fato importante de destaque é a constatação de que Calvino foi um dos

principais líderes e articuladores de todo o Movimento Reformado, sistematizando

as grandes concepções teologais e a estruturação da forma de governo que

marcam indelevelmente as Igrejas reformadas ou conhecidas como

presbiterianas.1169

Nada na Reforma foi conquistado ou construído com facilidade. Na verdade,

quebrar paradigmas sempre exigiu grandes esforços. Lamentavelmente a Reforma

provocou muitas baixas entre católicos e protestantes. Digo isso, porque, quando

Genebra abraçou a Reforma, em 1535, pelas mãos de Guilherme Farel, Calvino,

após ter lançado sua 1ª edição das Institutas, resolveu viajar a Paris para visitar

seus irmãos, mas, em função do período de guerras, teve que tomar outro

caminho, passando por Genebra e encontrando-se, então, com Guilherme Farel.

1169 O professor de História da Igreja, José Roberto da Silva Costanza, traz uma nota explicativaacerca do governo da Igreja reformada ou presbiteriana, em sua apostila sobre “Os FundamentosDoutrinários de Calvino”. “O governo da Igreja presbiteriana é comumente chamado de sistemamisto de democracia e elementos hierárquicos, porque o poder é balanceado entre pastores e leigose entre congregações e os corpos de governo maiores da Igreja. Embora a estrutura de governo daIgreja presbiteriana varie, usualmente consiste de um sistema conciliar ascendente. Cadacongregação é governada por um conselho ou consistório, composto pelo pastor e por presbíteros,que são eleitos representantes da congregação. A congregação pertence ao presbitério, ou classe,que coordena e governa as atividades das congregações dentro de uma determinada áreageográfica. São membros de um presbitério todos os pastores e os presbíteros representantes decada congregação”.

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Genebra lutava bravamente contra a tirania do duque chamado Charles III e

do bispo, Pierre de La Baume. Assim, Farel persuadiu Calvino veementemente a

ficar e lutar ao lado da Reforma. O seu pedido fora tão contundente que Calvino

aquiesceu e aderiu ao desafio.

No entanto, depois de muitas lutas, a resistência a Calvino foi aumentando e,

em 1538, os partidos oposicionistas ganharam terreno. Calvino sofreu acusações

de que adotara posições heréticas. Como vimos, Calvino e Farel foram proibidos

de pregar no Domingo da Ressurreição, mas eles pregaram e, assim, foram

destituídos dos cargos e tiveram de deixar a cidade. Vejam como a Reforma foi

sendo construída.

Calvino passou um tempo exilado, dedicando-se ainda mais aos estudos,

mas consciente e seguro de que Deus o havia chamado para a tarefa de reformar a

Igreja daqueles dias. Genebra o quis de volta e ele aquiesceu ao chamado e foi

capaz de vencer toda a oposição devido a sua dedicação e obstinação. Pela graça

de Deus pode ser vitorioso. Este foi o segredo do seu êxito, acrescentado a sua

disposição, sua disciplina e sua infatigável energia. Tinha plena convicção de que

estava fazendo a obra do Senhor em Genebra.

Foi assim, debaixo de muitas lutas que, definitivamente, Genebra tornou-se

um centro de refugiados, uma cidade modelo, no acolhimento e na prática dos

ideais da Reforma. O coroamento do trabalho do reformador genebrino foi a

criação da Academia de Genebra, organizada em junho de 1559. Seu grande

amigo e sucessor, Teodoro Beza, foi o primeiro reitor.

Vimos, também, que, como fruto de seu vasto conhecimento, produziu

muitas obras, catalogadas e chamadas de Corpus Reformatorum, com 59 volumes,

tendo As Institutas especial destaque.

Já no terceiro capítulo, dedicamo-nos, em parte, à vida, obra e pensamento

de João Calvino. E utilizamos o mesmo espaço para o fulcro de nossa tese, que é a

temática da Liberdade Cristã, na qual verificamos o seu conceito de liberdade,

especialmente seu pensamento teológico nas dimensões antropológica,

cristológica, soteriológica e eclesiológica e a liberdade decorrente desses

paradigmas a partir do contexto da Reforma.

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Quando tratamos das dimensões teologais em Calvino e a Liberdade Cristã

delas decorrentes, constatamos, por exemplo, que o cristianismo vem enfrentando

sérios desafios de plausibilidade, no contexto da pós-modernidade, especialmente

em seu paradigma cristológico. Nesse contexto histórico, Deus não ocupa mais o

centro, mas sim o homem.

Portanto, o verificamos, nesse novo mundo, que Deus tem sérios problemas

de habitação, pois o homem, por ter alcançado sua maioridade, já não mais precisa

de Deus e O lança cada vez mais para a margem da existência, com sérias

conseqüências éticas para o próprio homem, envolvido agora pelas religiões de

consumo, tendo, muitas vezes, o próprio cristianismo como protagonista dessa

nova modalidade.

Na verdade, o centro de nossa tese – a Liberdade Cristã – foi extraída a

partir da reflexão dos paradigmas antropológico, eclesiológico, cristológico e

soteriológico. Para o paradigma antropológico, Calvino não abre mão do fato de

que, no homem, reside a imagem de Deus, embora esteja numa situação de

alienação do Criador, vivendo em processo de ruptura consigo, com o próximo,

com a criação e, principalmente, com Deus, fruto da Queda, de sua livre atitude de

desobediência, o que o fez escravo do pecado. Portanto, somente conhecendo a

Deus é que poderá conhecer a si mesmo e vice-versa. Mas, no homem, reside a

glória do Criador, pois é o ápice, a coroa da criação.

Para o paradigma eclesiológico, temos o quarto volume das Institutas como

centro desta reflexão, no qual o reformador a apresenta como organismo vivo,

sinal do Reino de Deus, proclamadora da mensagem libertadora, agente de

transformação histórica e espaço para vivência e convivência daqueles e daquelas

alcançados pelo evangelho libertador de Jesus Cristo. Há dois aspectos

fundamentais a destacar na visão eclesiológica em Calvino, ou seja, primeiro a

busca pelo desenvolvimento de uma espiritualidade na relação com o próximo,

transformado em práxis na sociedade e, o segundo, a responsabilidade social na

concretização da justiça do Reino. Na verdade, a Igreja é chamada também a ser

vanguarda da promoção da justiça social.

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No que diz respeito ao paradigma cristológico, o reformador busca, nele, o

seu ponto de encontro entre sua visão antropológica e eclesiológica. Para Calvino,

a redenção do homem e sua conseqüente liberdade, estão na pessoa e na obra de

Jesus Cristo. Em Cristo reside todo o propósito redentor de Deus e toda a

plenitude da graça do Pai. Verificamos três princípios na cristologia calvinista:

Primeiro, ela está em harmonia com a Escritura Sagrada e toda a tradição

cristológica. Segundo, sua cristologia traz implicações práticas para o exercício da

vida cristã individual e comunitária. Terceiro, ela revela de forma clara o projeto

redentor que norteou toda a práxis cristã em Genebra.

E, por fim, do paradigma soteriológico concluímos que somente Jesus Cristo

possui valor salvífico único e universal. Mesmo em pecado, a vida humana é

marcada pela ação de Deus, ou seja, para Calvino, foi dado ao homem conhecer e

experimentar a maravilhosa obra de redenção de Deus, na pessoa bendita de Jesus

Cristo, seu unigênito Filho, que desde os tempos mais antigos foi sendo revelado

ao homem, como Aquele que haveria de vir e que, na plenitude dos tempos, veio e

revelou em Sua face todo esplendor da graça do Pai.

Dessa forma, Deus insistiu em trazer a liberdade de volta ao homem, o que

significa dizer que o estado pós-queda do mesmo, pela graça de Deus, não carrega

em si a tragédia da palavra final sobre a história humana. Como dissemos no

corpo do terceiro capítulo, à semelhança do relato da criação: “Na qual a terra era

sem forma e vazia e o caos fazia parte daquele cenário, o Eterno Deus haveria de

intervir na história humana, a fim de transformar o trágico em restauração”. O

pecado não venceria o propósito para o qual Deus criara o homem.

Vimos, também, que a liberdade cristã, segundo o pensamento do

reformador de Genebra, é liberdade que plenifica o homem, que humaniza o

desumanizado, e que gera relações saudáveis em todas as dimensões da existência

humana. O elemento fundamental à liberdade está na oferta que Deus faz de Si

mesmo na pessoa e obra de Jesus Cristo e operada pelo Espírito Santo, outorgando

ao homem a justificação.

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Assim, impõe-se o desafio de resgatar o conteúdo do verdadeiro do

evangelho de Jesus Cristo, sobretudo pelas Igrejas Cristãs históricas, seja

Católica, sejam Protestantes, pois cremos que a grande alternativa viável para esse

tempo será a proposta genuína do evangelho libertador, capaz de oferecer sentido

de vida ao homem, pela mediação salvífica de Jesus Cristo, com uma eclesiologia

teológica e focada nas necessidades do homem pós-moderno, não de uma

eclesiologia que atenda às exigências de uma sociedade de mercado, marcada pelo

consumismo, inclusive religioso.

Quando partimos para o quarto capítulo, buscamos uma investigação

detalhada acerca da liberdade cristã, a partir da vocação de Deus, que Se deu e Se

dá, cotidianamente, na gratuidade de Jesus Cristo, que trouxe definitivamente o

Reino de Deus e com Ele a verdadeira liberdade pelo seu estabelecimento nos

corações dos homens, através do próprio senhorio do Filho, operado pela ação do

Espírito Santo. Tudo foi verificado nas páginas dos evangelhos, desde a

Encarnação até a morte e ascensão de Jesus Cristo. Verificamos, também, o

nascimento da Igreja, espaço de vivência e convivência dos alcançados pela oferta

do Pai, tornando-se o espaço primeiro para a práxis da liberdade, pela contínua

dinâmica do Espírito Santo.

Oportuno destacar que o comissionamento do Senhor Jesus à Igreja visava a

devolvê-los à sociedade a fim de que pudessem viver a liberdade ofertada por

Deus com tal intensidade, que a missão do Filho obtivesse continuidade através de

Seus discípulos, vivendo e proclamando o evangelho, que convida à liberdade, e

agindo, concretamente, na história, para promoção de uma nova sociedade com

sinais tangíveis do Reino do Pai.

No quarto capítulo, fomos buscar, também, o conceito mais profundo de

liberdade cristã a partir da pessoa, obra e mensagem de Jesus Cristo. Na verdade,

a liberdade cristã a partir do Reino de Deus anunciada e vivida por Ele. Como

dissemos, desde a encarnação até a sua ascensão, encontramos em Jesus os

verdadeiros traços da liberdade que o Pai deseja que Seus filhos vivam. Ou seja, a

vocação de Deus para cada um de seus filhos é a liberdade em Cristo Jesus, Seu

bendito Filho, que, livremente, encarnou-se para o estabelecimento do Reino do

Pai e para salvação do homem perdido, completamente afastado do seu Criador.

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Portanto, a grande mensagem extraída dos evangelhos é o Reino de Deus,

que, na verdade, tem culminância histórica através do Seu domínio sobre os

corações dos homens. Ou seja, o Reino anunciado e vivido por Jesus trazia como

centro da soberania do Pai sobre todas as coisas e sua ação deliberada em redimir

integralmente o ser humano. Verificou-se que Jesus não trazia um novo Reino,

mas a irrupção, a chegada, o desvelamento deste Reino que sempre existiu.

Fundamental observação é destacar que tal Reino não possuía nem possui

dimensões apenas escatológicas, mas presente, inaugurado em e com a presença e

a mensagem libertadora de Jesus Cristo.

Analisamos, de igual forma, que a Igreja nascente no contexto

neotestamentário era e é o espaço para a vivência da verdadeira liberdade,

ofertada por Deus em Cristo, tornando-se, também, um valioso instrumento de

proclamação do evangelho libertador e de ação transformadora na sociedade na

qual ela está inserida, a fim de que os sinais do Reino de Deus sejam cada vez

mais visíveis na história.

Digno de nota é a profunda relação entre Jesus e a Igreja, pois ela é vista

como o Seu Corpo. Há uma identidade espiritual e funcional da Igreja com Jesus

Cristo. Urge, portanto, destacar na pós-modernidade, que o primeiro e basilar

elemento fundante da Igreja é o cristológico. Sendo assim, emerge de tal

afirmação o fato de que a salvação é um ato exclusivo e por excelência de Deus na

pessoa de Jesus Cristo. Como dissemos, “a presença humana de Jesus Cristo e os

seus atos libertadores são a presença e os atos do próprio Deus no meio do povo e

para o povo”.

Revelamos, também, que o Espírito Santo compõe a base da Igreja

neotestamentária. Na verdade, ela só ganha vida e dinamismo pela força e ação do

Espírito. Por isso ser ela chamada de Igreja Pneumática. Somente pelo Espírito é

que a Igreja pode viver a verdadeira liberdade, expressando sua real identidade,

autenticidade, autoridade e conquistando o que mais tem faltado, plausibilidade.

Importa reafirmar mais uma vez que a Igreja está fundamentada sobre a

Palavra de Deus, que é um paradigma teológico de sua ação querigmática. No

ambiente de derretimento dos valores e da relativização de todas as verdades,

impõe-se o desafio da genuinidade da Palavra de Deus, a fim de que não tenhamos

uma anunciação evangélica superficial acerca do Jesus histórico e do Cristo da fé.

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Assim como Igreja de Jesus Cristo, nós vivemos o tempo do anúncio e do

testemunho, sendo a continuação do Reino jamais sua totalidade, mas sinal do

Reino de Deus na história da humanidade.

No quinto e último capítulo de nossa tese, buscamos articulá-lo com todos

os demais capítulos com a intenção de confrontar a realidade pós-moderna com as

verdades bíblicas no que tange à liberdade cristã e resgatar dimensões importantes

da teologia de João Calvino, a fim de que verifiquemos a atualidade de seus

escritos e de seus pressupostos teológicos, face aos desafios inerentes à pós-

modernidade.

Lamentavelmente a constatação a que chegamos foi de que, de modo geral, a

sociedade atual procura a liberdade pelo caminho do individualismo, vivendo

drasticamente a síndrome de narciso, equivocadamente confundida como

liberdade. Fruto de uma sociedade egocentralizada.

No entanto, propusemos como encontro da verdadeira liberdade, a graciosa

oferta da Boa Notícia – o Evangelho libertador –, vivida e anunciada por Jesus

Cristo, que não apenas liberta o homem, mas o torna cada vez mais livre na

medida em que vive na dimensão do outro. Tomamos Jesus Cristo como modelo

absoluto dessa via, que, como dissemos, “ultrapassa todos os tempos e barreiras

culturais, ideologias religiosas, interesses econômicos”. Aqui, encontramos a

grande resposta do cristianismo ao mundo em que vivemos.

A beleza doutrinária do reformador pode ser vista, também, na capacidade

de olhar a Palavra de Deus como sua ação contínua na história, transformando a

vida individual, a social e a eclesiástica. O homem é desafiado a perceber-se,

diante de Deus, como pecador e alvo da graça do Senhor, como “destinatário de

uma vida nova”,1170 ao mesmo tempo.

Do ponto de vista eclesiástico, seu desafio constante, foi discernir a

realidade à sua volta, fossem realidades sociais, políticas, econômicas e

espirituais, e responder à luz da viva e dinâmica Palavra de Deus. Eis uma postura

ético-cristã sincrônica, em evolução com as novas demandas humanas. Sua ética

social é surpreendente pelo não engessamento das regras morais e pela constante

interpelação ao homem de viver a justiça do reino, imutável que é, à luz das novas

circunstâncias que vão surgindo no cenário da vida.

1170 BIÉLER, André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino, op. cit., p. 668.

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A partir da célebre frase Ecclesia reformata et semper reformanda est - A

Igreja Reformada está sempre se reformando –, há um grande desafio à Igreja

Protestante Reformada e, porque não dizer, ao cristianismo de modo geral, em

todos os lugares, com maior ou menor ênfase, de que esta precisa ser a tônica da

Igreja na pós-modernidade diante dos gritantes e urgentes desafios que requerem

da Comunidade de Fé uma postura cada vez mais adequada aos novos tempos e,

ao mesmo tempo, sem abrir mão de seus pressupostos bíblico-teológicos.

Reconhecemos que a Reforma do Século XVI nasceu com a proposta de

contestação, de mudanças radicais nas bases da fé cristã, apresentando-se como

revolucionária, libertadora e alternativa, mas, paradoxalmente, vem sofrendo os

golpes sutis de uma ortodoxia engessada, para não dizer um tradicionalismo

fechado, anacrônico, alienado de sua realidade. Ou seja, o princípio reformado

vem sendo esquecido. Eis o nosso desafio e grande tarefa eclesiológica na pós-

modernidade.

Assim, a presença e a ação querigmática da Igreja na história, evidenciam e

concretizam a realidade do Reino de Deus, uma vez que o anúncio das Boas

Novas do evangelho libertador realiza a salvação presente e plenitude salvífica

futura.

Mais do nunca a ação querigmática da Igreja precisa olhar para a práxis de

Jesus como modelo último de ação na história, pois tradições e prescrições

meramente humanas eram sempre relativizadas em função do ser humano, ou seja,

qualquer tipo de religiosidade opressora era questionado, diante de sua autoridade

e liberdade, visando a promover a liberdade do homem, na medida em que revela

a face de um Deus sem qualquer intenção de aferir as ações meritórias do homem

– religiosas – para com Ele, mas seu desejo sempre foi demonstrar a expressão

acolhedora do Pai, que chama, ama e perdoa, sem requerer nada em troca, senão a

resposta do amor. Contemplar o ministério de Jesus como modelo eclesiológico

foi perceber, claramente, sua capacidade em revelar o mistério de Deus aos

homens e mulheres de seu tempo, sobretudo, os mais simples e marginalizados.

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376

Resgatar a Liberdade Cristã, no contexto da pós-modernidade, significa

ressaltar que, na verdade, toda a teologia calvinista é essencialmente cristológica,

mediada, conseqüentemente pela unicidade e universalidade salvíficas em Jesus

Cristo. Tal verdade ultrapassa a concepção teológica de que Jesus é o único

mediador entre Deus e os homens, mas concretiza a verdade da eternidade do

Verbo encarnado, eternamente concebido ou gerado do Pai, como afirma a

tradição dos primeiros e grandes Concílios.

No entanto, entendemos que tal asseveração acontece sem perder a

dimensão do diálogo religioso, o que não significa, por exemplo, que teremos que

abrir mão do que cremos. Trata-se do desafio de integrar sem se perder, anunciar,

mas estar aberto em aprender e apreender. A Liberdade Cristã abre-nos a visão

para o fato de que o Espírito Santo age livremente na história a fim de realizar o

plano redentor de Deus na pessoa de Jesus Cristo.

Os paradigmas cristológico e soteriológico são fundamentais a fim de que

combatamos, em muitos segmentos religiosos, a religião de mercado da pós-

modernidade, completamente vazada pelo poder econômico, na quais a graça de

Deus tem sido esquecida e, em seu lugar, erguida uma religiosidade

antropocentralizada e a fé comercializada.

A Liberdade Cristã transita, também, pela concepção antropológica,

demonstrando a natureza do homem antes da Queda, em profunda e constante

relação de intimidade com Deus, tendo sido criado à Sua imagem e semelhança.

No entanto, após a Queda, tornou-se um errante e em constante processo de

ruptura com o Criador. Deixou sua condição de aliado de Deus para viver

alienado dele. Como afirmamos, “a ruptura com Deus trouxe uma desintegração

do ser humano, pois a relação criatura-Criador deixou de existir em plenitude”.

Vimos que, na sábia visão de Nilo Agostini, “o vital humano fora tremendamente

afetado, alterando completamente seu ethos e trazendo danosas conseqüências à

vida pessoal e em comunidade”. Mas, para Calvino, mesmo pecador, o homem

reflete ainda traços da glória de Deus, embora em estado de morte espiritual,

portanto, carecente da graça salvadora de Jesus Cristo, único capaz de restaurar o

seu vital humano.

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Portanto, no cumprimento de sua missão, compete a Igreja anunciar a

verdadeira e integral salvação em Jesus Cristo, única capaz de promover e integrar

o homem, restaurando-lhe todas as dimensões da vida, ou seja, salvação que atinja

seu status quo e seu modus vivendi.

Do ponto de vista das implicações éticas e da práxis libertadora da Igreja

diante dos desafios da pós-modernidade, destacamos o fato de que, para o

reformador genebrino, há muitos cristãos nominais, “não tendo nada de Cristo

exceto o título”.1171 Sendo assim, o evangelho jamais pode ser visto apenas como

uma religião meramente moral ou um amontoado de doutrinas discursivas. Ao

contrário, o evangelho libertador passa, necessariamente, por uma profunda e

radical experiência com o Cristo ressurreto, causando ao homem uma nova visão

de vida e um novo estilo de vida.

Finalmente, não podíamos deixar de falar sobre as influências do reformador

na sociedade, a partir de uma teologia libertária. Assim, temos que destacar a

grande contribuição de Calvino para a transição da Idade Média para a Era

Moderna. O reformador foi capaz de conjugar a questão da visão econômica com

a visão moral, integrando-as, embora sendo uma tarefa difícil, sobretudo para o

seu tempo, visto que a separação era comum entre os pensadores modernos e

antigos. Articulou as novas mudanças econômicas do seu tempo numa prática

diferenciada da existente até então.

Nesse sentido, Calvino enxergou as mudanças sociais a partir da Igreja,

alcançando suas mais diversas áreas, por meio de uma vida cristã autêntica e

disciplina, visando sempre à glória de Deus e a expansão do Seu Reino. Ora, se a

transformação da sociedade se dá a partir da Igreja, deduz-se a atividade de

homens e mulheres regenerados pelo Evangelho libertador, que os tornou livres

em Cristo, e que, portanto, passaram a nutrir uma nova visão de mundo,

entendendo, por exemplo, todas as atividades humanas como espirituais, visto que

o homem, nascido de novo, pratica a vontade de Deus em todas as dimensões da

vida, posto que recebesse do Pai capacitação para tal, através dos dons naturais e

espirituais. Como bem afirmou Kuyper, não há dicotomia na vida cristã, pois tudo

que ele realiza, o faz dentro da cultura, utilizando-se da cultura e servindo à

cultura.1172

1171 Institutas, Edição Especial, Vol. IV, p. 181.1172 KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 80.

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Quando pensamos na influência do calvinismo, não podemos deixar a sua

relação com a cultura, extremamente positiva. Segundo o calvinismo, não há

separação ou dicotomia entre cristianismo e cultura, visto que a vida cristã é

integral e integrada com a cultura, pois todas as coisas estão sujeitas às Escrituras,

ao governo de Deus. Portanto, em última análise, são teonômicas. Daí termos

destacado a influência da fé reformada na sociedade, mormente nas áreas da

política, da cultura e da economia.

Em outras palavras, o que podemos aprender de Calvino, é uma teologia

extremamente articulada com a realidade histórica, sendo, portanto, dinâmica,

pronta a dialogar e a responder aos seus interlocutores à luz da Palavra de Deus, a

fim de que a presença da Igreja na sociedade fosse atual, relevante e jamais

anacrônica.

Ao concluir este trabalho, importa registrar a relevância e a rica experiência

de que o labor da reflexão de um teólogo da envergadura de João Calvino é, na

verdade, por um lado, um exercício profundamente desafiador e por outro, um

imenso investimento no labor teológico, que desemboca no enriquecimento do

conhecimento e amplia os horizontes para a continuação da pesquisa teológica.

Esperamos, como acontece em outros lugares, que venhamos conhecer,

aprofundar e a usufruir mais da teologia deste importante reformador. Soli Deo

Gloria!

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