poesia caiçara
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Seleção de poesias publicadas no site www.entrementes.com.br no período 2012/13.TRANSCRIPT
ATÉ PARECE POESIA
© Domingos Fábio Santos
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1
Poesia de memória
O bom da arquitetura pau-a-pique
é que a manhã vem sem convite,
entra casa adentro
pelos vãos dos telhados,
pelas frinchas das paredes,
trazendo a luz do sol
e a canção de pássaros
que estão na hit parade
dos sucessos musicais
desde tempos ancestrais.
2
Em risco de extinção:
Suçuarana, irara, ariranha,
araçari, arara, ararinha,
bacurau, curiango, urutau,
saracura, jaó, macuco,
caiçara, caipira, capiau.
3
Vestes do espírito
O chupim, o anu, o urubu
todos se vestem a rigor
em pretos paletós.
O tangará, o colibri, a arara
todos os dias se vestem
como quem vai para a folia.
Eu já fui urubu, hoje sou tangará,
amanhã é uma incógnita
e a que pássaro, então, minh'alma passará?
4
Voz das ruas
Tem gente que faz festa de aniversário
pra cachorro
e outros estão matando cachorro a grito;
tem pessoas que só bebem água importada
e outras sequer tem água tratada;
tem gente lutando pra viver,
outros defendem a pena de morte;
tem pouca gente com muita terra
e muita gente deserdada.
E ainda cantam que dos filhos deste solo és mãe gentil,
ópátria amada Brasil?
5
O que pode levar ao céu?
Já sabemos que o ouro não se leva,
mas entra o relógio
que marcaram as boas lembranças,
herança de família.
Entram gente irradiando luz
direto do amor cultivado no coração,
pessoas que o mundo imaginava
vivendo na escuridão.
Também não entram roupas de luxo,
mas são aceitos trajes de casamentos,
roupas de batizados,
e os pés perdidos
de pares de calçados.
6
Historinha
A menina Flavinha ficou encantada
quando João Barbudo
desenhou para ela
o tubarão-martelo, o peixe-rei, o peixe-espada
e o peixe-lua rodeado de estrelas no fundo mar.
E ela só foi descobrir
que a imaginação ficou aquém da realidade
quando descobriu
que esses peixes existem de verdade.
7
Parece até poesia
Santo Isidoro, pobrezinho,
mas com ouro no coração,
achou o caminho para a santidade
entre o arado e a enxada.
Enquanto, em oração, ele sobe aos céus,
os anjos descem à Terra
para fazer seu trabalho de arar e semear,
porque a colheita não pode atrasar.
E Nosso Senhor ri
ao saber dos anjos arteiros
tomando o lugar de Isidoro
no trabalho dos canteiros.
8
Oferendas
É bonito ver as árvores debruçadas sobre o mar
atirando ofertas às ondas
que as levam e trazem sob o influxo da maré.
Um bacupari pra lá,
um miriguito pra cá,
uma coroanha pra lá,
um jamelão pra cá,
uma moça bonita pra lá,
uma pontada no coração, cá.
9
Presente de pobre
Um favor é uma das poucas coisas
que os pobres podem dar,
assim dizia Vovó Martinha,
ao sair para mais um serviço de parteira
na Praia da Maranduba.
Quando contei essa história
ao professor Aziz Ab'Saber,
ele gostou e comentou:
Como seria fácil trilhar o caminho
para o coração das pessoas:
bastaria uma palavra afetuosa,
ou uma solidariedade simpática,
tão comuns antigamente.
10
O descobridor de manhãs
Antigamente era o canto do galo
nas fímbrias da madrugada
que franqueava os caminhos
às pessoas de bem:
pescadores partindo para o mar,
lavradores nas trilhas das roças,
ou viajantes partindo
(talvez por nomadismo atávico),
pois aqui não faltavam peixe pra comer
nem água boa de beber.
11
Terra de sonhos
Quem andou pela
Terra do Nunca e Ilha de Utopia
sentiu-se em casa quando,
do alto do último morro avistou,
por volta de 1970,
entre árvores e bananeiras,
a Vila Escondida dos Pescadores
da Praia da Fortaleza, Ubatuba.
12
Jardim de Dona Eugênia
No piemonte da Serra da Fortaleza
há uma casa antiga
pintada de azul e branco
e cercada de flores
dos quatro cantos do mundo,
mais algumas do paraíso
(refiro-me às rosas de Nossa Senhora),
que foram parar,
não se sabe quando,
não se sabe como,
às mãos de Vovó Eugênia
que plantou e transplantou,
até ter um pedacinho do Céu
13
todo seu,
de enternecer e tornar crente
até coração ateu.
14
Não esqueça dos amigos
Leve de presente
uma penca de banana da terra,
ou um pedaço de torta,
ou abacates maduras,
ou um buquê de flores
a amigos ou amigas
que precisam de visitas como profilaxia
e para reencontrarem motivos
da alegria d-e-v-i-v-e-r.
15
História de pescador
Naquele dia, ao largo da Ilha Vitória,
um peixe (terá sido marlim?)
abocanhou isca, anzol
destinado às caçoas,
arrastou boia, pescador, canoa
rumo ao mar novo.
Somente depois de muito arrasto,
antes que chegasse a meio caminho
dos mares dos africanos,
a linha foi cortada com faca,
e o vento da viração fez o favor
de encher os panos
para empurrar de volta a canoa
à segurança da praia da Maranduba
16
e do bar do Pimenta,
onde a história foi narrada
por Francisco Félix,
neste canto do Brasil,
para descrédito geral,
do dia primeiro de abril.
17
Das pequenas grandes coisas
No quintal de meus avós
eu vi árvore balançar
a ponto de quase tombar
em dia sem ventos
e ouvi festa barulhenta
entre seus galhos
sem nenhuma maritaca
que pudesse justificar
tamanha algazarra.
Porém, tudo que é bom
um dia se acaba
e um dia um machado
cortou o pé de jabuticaba.
18
Técnica de pesca
Uma isca na ponta de uma vara
tira um guaiá da toca
e depois é preciso agilidade
para apanhá-lo,
ou tomar um beliscão
de sua potente tenaz...
descole se for capaz.
19
Disputa milenar
Antigamente,
quando as pessoas eram donas do tempo,
e não vice-versa,
como hoje acontece,
um típico dia de domingo começava
com jogo de futebol
de solteiros contra casados.
Os solteiros muito visados
pelas mulheres casadoiras
esperando marcar o definitivo tento
que conduz ao casamento.
Por sua vez, os rapazes
faziam todo o esforço contrário
20
para não vestir tão cedo a camisa
do time adversário.
21
Sinais dos tempos
O tempo de partir chega
e os amigos vão
em busca da universidade, do emprego,
do amor, do eldorado...
que pode estar em terras distantes,
ou aqui mesmo ao lado.
Os lugares ficam cheios de vazios
no outrora espaço de poetas errantes
e seus poemas ainda mais erradios.
No silêncio ainda ecoa
um acorde musical que restou só.
No muro um anúncio: troca-se versos livres
por gravata e paletó.
22
Vovó Zulmira
Más notícias de guerra em países distantes
atravessavam as escarpas
e seus esporões que isolavam nossa praia
trazendo inquietações para o cotidiano
da pequena vila de pescadores.
A pedido do padre rezávamos
pelas almas de tantas vítimas.
Mas Vovó Zulmira não se abalava e dizia:
por defunto que não conheço,
não rezo nem ofereço.
23
O segredo de João Alegre
O segredo pra fazer música bonita
é sair de casa e andejar
pra ver e ouvir as obras de Deus
e dos homens:
o pescador que retorna da pescaria,
um carinho de namorada,
um sol que se anuncia
no vermelho da alvorada
e mais um monte
de lições de rejuvenescer.
24
No Sertão do Ubatumirim
Antigamente, dizia Antonio Clemente,
era fácil encontrar Deus,
ele passava por aqui todo domingo,
na capelinha do bairro.
Mas a fé foi morrendo
e ninguém tinha tempo
para o compromisso mais importante da vida.
Na falta de onde ficar
foi que ofereci meu abrigo
e, desde então,
Ele está aqui comigo.
25
Nova e antiga lição
Sabe aquele pão
arrancado de sua despensa quase vazia
para dar a quem pedia?
Sabe aquele dinheiro
tirado de seu saldo devedor
emprestado a um conhecido?
Sabe aquela palavra de ouro
tirada do rico veio de seu coração
pra dar a um necessitado de afeição?
No final se verificará
que são pequenos atos de sapiência:
tudo leva a conclusão que a eternidade
tem alicerces na solidariedade.
26
Olhos atentos
Quando as gaivotas se reúnem
e voltam para suas ilhas
é sinal que vai soprar a tormenta.
Quando os golfinhos se ajuntam,
desnorteados, à tona d'água,
é preciso procurar porto seguro.
Quando as formigas fazem correição
barranco acima,
é presságio de enxurrada e inundação.
E o que a gente faz
quando os jornais noticiam
que chegou o tempo
de um irmão contra o outro
e dos filhos contra os pais?
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Além das aparências
Eu podia ser egocêntrico
e teimar que o mundo gira
em torno do meu umbigo,
mas só os loucos
escutariam o que digo.
Eu podia ser ateu e dizer
que uma explosão numa sopa de letrinhas
pode formar uma biblioteca
com todos seus livros mais as entrelinhas.
Eu podia por fé nos luminares da moderna ciência
Leslie Groves, Robert Oppenheimer, Enrico Fermi,
se não produzissem uma péssima rima
para a solução final na cidade de Hiroshima.
28
Por isso tudo prefiro acreditar
em Mário Quintana, Robert Frost,
Manuel de Andrade, São Francisco,
Santa Teresinha, Dom Bosco, Clube da Esquina,
que fizeram uma farofa de realidade com poesia,
enquanto Nossa Senhora dos Artistas
a tudo isso bendizia.
29
Dica:
No mês de janeiro
convém prestar atenção
para onde se dirigem as revoadas
de maritacas e periquitos.
Convém segui-los para investigar,
no final da trilha pode ter um prêmio,
uma fruteira carregada de cambucá.
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Sabedoria de avô
Quando meu avô perguntou
o que eu tinha aprendido de bom,
naquele dia, na escola,
eu respondi que a professora ensinou
que a baleia é mamífero
e não peixe como se pensava.
Mas, consolou-me o velho,
com aquela cara de peixe,
a qualquer um enganava.
31
O índio Juruquivi
Um pingo de chuva
infiltrou-se pela palha do sapé
e caiu no rosto de Juruquivi
despertando-o para espiar
a chuva em todos os quadrantes
e lembrá-lo da luta pela subsistência.
Sem condições para luta nenhuma
ele teve uma ligeira refrega
com uns pés de inhame,
fez o desjejum e voltou para a rede.
Pra que ir contra as vontades celestiais?
Tupã é mais.
32
Casa antiga
Na casa de meu avôs
havia muitos tesouros:
um rádio de válvulas
que irradiava Lamartine Babo
e Orlando Silva
que a gente não se cansava de escutar.
Um retrato que, visto de frente,
mostrava Nosso Senhor Jesus,
olhando de viés via-se, à direita, São João Batista
e, à esquerda, São Lázaro
que a gente não cansava de olhar.
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Na cozinha um velho fogão
fumegava cheiro de pirão de peixe
que a gente não cansava de paladar,
de tal modo, que até esse substantivo
virou verbo defectivo.
34
Estação da chuva
Eu sei das minhas responsabilidades
que preciso ir à luta
que tenho uma família pra sustentar...
Mas, meu bem, ouça a chuva a tamborilar.
Eu sei que tem trabalho pra fazer,
que sou assalariado
e o dinheiro é contado...
Mas, meu bem, ouça a chuva no telhado.
Eu sei que tem contas a pagar,
que há um preço a pagar
pra viver em sociedade...
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Mas, meu bem, ouça a chuva nos convidando
a retornar à normalidade.
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Anchieta de Ubatuba
O dinâmico Padre Anchieta,
segundo conta a história,
andava pelas serranias e praias
da nossa região,
com os pés no chão
e a cabeça nas coisas do céu
que a distância não o cansava,
a chuva não o molhava
e obstáculos se arredavam
conforme o Santo passava.
( pois, como se aprende na academia,
uma boa história tem que ser
pelo menos 50% verdade,
o restante é poesia).
37
Canção
Estudar o que o mar
tem a ensinar e aprender
os nomes dos seres
dos haveres
e de outras riquezas
dos rasos
e profundezas.
Eh, eh, eh, enguia, enguiá,
que é preciso ser amigo do mar.
Mergulhar até virar anfíbio
e familiarizar-se
com os quelônios,
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equinodermos,
moluscos,
crustáceos
e outros peixes.
eh, eh, eh, emborês,
por favor não nos deixes.
Envolver-se até tornar-se
caiçara,
pescador,
profissional
ou amador,
suas histórias,
cantorias
e no lanço da rede
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pescar até poesias.
Eh, eh, eh, espadarte
que viver é uma arte.
40
A fé e a rabeca
Compadre Maneco Almiro,
venho cá pedir emprestada
a vossa rabeca
para a festa do Divino
que a minha está estragada
por um tombo que levou,
quando me atrevi a tocá-la
em seresta desbragada.
Foi castigo, disso sei eu,
mas o caso é que preciso
da vossa rabeca emprestada
para tocar para o Divino Espírito Santo
pois sem ela, meu compadre,
a música e a minha alma
41
Outras riquezas
Na praia da Fortaleza
o Dario pescador é mestre da viola
e seu filho Elias faz o cavaquinho chorar;
Maneco Almiro do canto da praia
aprendeu sozinho a tocar rabeca
para ser um astro da folia de reis
e o cego Doquinha tem pão e pouso
em troca de modinhas.
A gente é pobre,
o lugar é acanhado,
a alma é rica,
o coração desmesurado.
42
Visão
Vós trocastes as vestes de aurora
por trajes comuns
e viestes andar na praia.
Apreciastes a cor do céu,
o cheiro do mar,
o voo das gaivotas,
as crianças brincando
e tudo ficou mais bonito.
O caranguejo guaruçá
foi esconder-se na toca
e eu, pobre de mim,
o que poderia fazer
senão colher todas as flores bem-me-queres
43
para vos presentear
com a louca esperança de vos agradar
e aqui permaneceres.
44
Evolução
Antigamente nos ensinavam
Que é preciso proteger a nação
Com paus e pedras,
Com mosquetes e bombardas,
Com bombas e canhões.
Felizmente os tempos mudaram,
E todo esse belicismo acabou
E agora defendemos a Pátria
Com chutes e bolas ao gol.
45
Da amizade
Pessoa amiga mesmo
a gente não chama pelo nome,
mas sim pelo apelido:
Tiona, para Tia Apolônia,
Tiúta, Tia Teresa,
Zé Grande, meu avô José Almiro,
José Amorim é Cação,
Clóvis Gilberto é Verdura,
Leovigildo Félix é Carpinteiro,
e Jajá é um mistério,
até ele próprio esqueceu o nome verdadeiro.
46
Até parece poesia
São Francisco falou com os bichos,
São José de Cupertino andou nos ares,
Santa Clara de Assis enxergava à distância,
Santo Pio de Pieltrecina desviou bombas no ar,
São Paulo ressuscitou um jovem,
Santa Rita de Cássia conversou com anjos.
São Simão do Egito fez a montanha mover,
São Pedro curou um coxo,
São João Bosco multiplicou pães
e Santa Bernardete virou bela adormecida.
E ainda há quem diga
não ter espaço pra poesia
na rotina do dia-a-dia.
47
Santo cozinheiro
Nesse momento
tem um pescador
que mora no canto de lá
da praia deserta
preparando seu almoço.
O mar deu o peixe,
a terra deu a farinha de mandioca,
e São Benedito,
o padroeiro dos cozinheiros,
ao notar que faltava tempero
foi lá na horta do céu,
trouxe folhas de coentro graúdo
e acertou o gosto do pirão.
48
Fábula
Duas míseras lagartas
comiam couve na minha horta
e discutiam metafísica:
- Tem vida após a morte, dizia uma.
- Não seja idiota, respondia a outra.
Em teimosia típica de lagarta
mastigavam mais um pouco de couve
e voltavam ao mesmo assunto:
- A vida não acaba aqui, dizia uma.
- Guarde seu fôlego pra comer couve, respondia a outra.
Enquanto isso borboletas multicores
pairavam acima de toda essa discussão
e sorviam o néctar das flores.
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Lição de amanhecer
Toda manhã,
surpreendendo o sol
ainda sonolento,
o pescador Júio Barbosa
espia o céu
repara no vento
sente na pele
a meteorologia
do ventochuvasol.
Quem tem juízo o escuta
antes de começar o dia.
50
Consertada
Nas festas juninas de antigamente
os homens tomavam quentão
ou cachaça em grandes talagadas.
Para as mulheres sobrava chá quente -
ou pelo menos assim pensavam os marmanjos -
sem saber que a bebida estava consertada
com um boa dose de aguardente.
Ingredientes: 5 litros de água, 1 litro de pinga, 1 kg de
açúcar, 1 pacote de canela, 1 pacote de cravo, casca de 6
laranjas (preferência curtida) e capim cidrão.
Preparo: Pôr no fogo o açúcar, a canela, o cravo, o capim
e as cascas. Mexer até dourar. Em seguida, colocar a água
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e deixar ferver até reduzir a mais ou menos 3 litros.
Colocar a pinga e deixar ferver mais um pouco.
52
Receita de Quintana
Em dias nublados
procurem janelas no céu
para surpreender
os anjinhos que as abrem
procurando arejar o ambiente.
Procurem apanhar um sorriso de anjo,
como dizem que aconteceu outrora
a Quintana que marchou para o crepúsculo
imaginando ser a aurora.
53
História de bem-te-vi
Igual ao minúsculo bem-te-vi
que enfrenta e afugenta o carcará,
a menina Malala Yousafzai
enfrentou a barbárie
e vai pintando de luz do sol
a ignorância sob a escuridão
nas terras do Paquistão.
54
Tal e qual
Todo pescador que com linhas de pesca em cada bordo da
canoa
Vai tenteando os peixes em profundidades e lugares
diferentes
É a imagem do poeta
Tenteando entre os dias
Pescando imagens e palavras
Enquanto sua rede de tresmalhos
Captura, em alguns dias, uns pobres pampos,
Em outros, grandes robalos.
55
Paula e Régis
Foi a irmã maior que,
de tanto assistir filme românticos,
ajeitou o menino para a foto
com o chapéu de feltro antigo,
um lenço no pescoço,
os olhos azuis matreiros
parecendo mais um artista de cinema
do que um menino arteiro.
E o resultado ficou bom
porque o rosto do menino
refletiu a alma pura
e a bondade de seu coração,
confirmando a lição da esperança:
56
quem quiser o reino dos céus
tem que se tornar criança.
57
Sonho bom
Quando eu, afinal, acordar
com os primeiros raios de sol
varando as telhas vãs,
com o cheiro de café quentinho,
que vem da cozinha,
com o cacarejar
das galinhas no quintal,
com o rumorejar das ondas
quebrando no lagamar,
terei chegado
onde minha história começou
e para onde,
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em todos esses anos,
eu procurei retornar.
59
Lição de homem do mar
Quando o marinheiro embarcou
Pela primeira vez
para pescar no mar de fora
a bordo do barco Taurus
foi o Mestre Benedito quem o recebeu:
- Veio preparado, moço?
Pediu bênção à sua mãe e ao seu pai?
Se não, comigo não vai!
60
Visita
Esta é minha casa, entre
e seja bem-vindo, veja
seu retrato na parede, beba
essa garapa, coma
esse peixe assado, ganhei
do Senhor seu pai, descanse
seu corpo ferido na tarimba, deixe-me
passar esse unguento, pagar-me?
Só com um quinhão de sua luz,
pouco pra você,
demasiado pra mim, Jesus.
61
O cego Doquinha
Doquinha era cego
porque esse era seu destino.
Ficou cego paulatinamente,
Primeiro perdeu os pequenos detalhes,
depois deixou de ver as cores mais suaves
e, por fim, objetos e pessoas foram afundando em
abismos.
Um dia ele me revelou que gostava de trovoadas
porque podia ver a luz dos relâmpagos.
62
Labirinto
Comecei tão bem a jornada
entre o mar e a terra,
princípio de vida caiçara,
mas acabei por me desviar
não sei em qual curva da estrada,
quando fecharam as possibilidades
de viver da pesca e da roça.
Desde então guio-me
mais pelo que ouço e vejo
sem dar atenção ao que sinto
e eis-me aqui perdidinho
neste labirinto.
63
Receita caiçara
Com 1 kg de mangarito,
2 kg de galinha do quintal,
2 xícaras de arroz,
1 xícara de óleo,
1 litro de água quente,
e mais 2 tomates, 2 pimentões,
1 dedo de açafrão, Gengibre,
Manjericão, Louro,
Cheiro-verde, Alho, Cebola
Sal e Pimenta a gosto,
mais um toque de alecrim,
tudo isso rematado com um copo de mucungo,
o que será de mim?
64
Modo de Preparo: Cozinhe o mangarito e tire a casca.
Refogue a cebola, o alho, o gengibre e o açafrão. Ponha
os pedaços de galinha com um litro de água quente.
Quando a carne começar a amaciar, coloque mais 1 litro
de água quente e misture o arroz e o mangarito. Mexa
para não grudar. Quando o arroz estiver no ponto, ponha
o resto dos temperos e aguarde o cozimento se completar.
E o mucungo, para quem não sabe, é vinho de garapa.
Antigamente deixava-se a garapa fermentar dentro de um
pote de barro debaixo da terra por três dias, depois coava-
se, devolvia-se a bebida ao pote sob o solo para fermentar
mais três dias e boa carraspana.
Recomenda-se comer e beber como antigamente, isto é,
fazendo a sesta após a refeição.
65
Quintal de infância
O quintal de meus avós
tinha tamanho suficiente
para jogar bola,
brincar de esconder,
pular corda e
jogar malha.
Cabia ainda
um jardim de rosas de todas cores
(as flores preferidas de Vovó
e de Nossa Senhora),
um bananal nos fundos,
laranjeiras, cafezal, jabuticabeiras
uma horta protegida
66
das aves do quintal
e outros seres rapaces
(nós, inclusive).
Era um quintal tão grande
que até hoje ocupa
quase todo o meu coração.
67
Homenagem a Zeev Frajnovits
Zeev Frajnovits, húngaro, tinha 10 anos de idade quando
foi levado para Auschwitz. Seu crime? Pertencer à
religião judaica. Com a esperteza de criança e certamente
com a proteção dos anjos ele escapou da câmara de gás
nazista e foi resgatado, segundo suas próprias palavras,
apenas com a pele por cima dos ossos. Se os soldados
aliados demorassem mais um dia para libertar os
prisioneiros daquele campo de concentração certamente o
encontrariam morto pela fome.
Seus pais e irmãos não tiveram a mesma sorte, o menino
se viu órfão ao voltar para sua cidade de origem onde
ficou algum tempo. Mudou para o recém-formado Estado
de Israel. Mas lá não encontrou a paz.
68
A Terra Prometida, onde haveria a paz e o pão em
abundância ele só veio encontrar no Brasil. Com uma
risadinha ele costumava dizer: Será que o bom Abrahão
não parou antes, por falta de um bom barco para chegar
até à verdadeira terra prometida?
Mas toda essa experiência triste não tornou Zeev um
homem amargo, era um homem expansivo e com modos
alegres até que veio a falecer em 2005.
Guardo até hoje as suas palavras que mais me
impressionaram: “Eu sofri o ódio, por isso dou valor ao
amor; eu conhecí a guerra, por isso dou valor à paz; eu
conhecí a morte, por isso dou valor à vida.”
69
Homens de dura cerviz!
A paz vencerá a guerra,
O amor sufocará o ódio,
A vida vencerá a morte,
Quando a fragilidade valer mais do que a força,
Quando o carinho ganhar da agressão,
Quando o ouro for encontrado nos corações,
Quando a luz vencer as trevas,
Quando a mão parar a espada,
Quando a descrença der lugar à fé
E quando os castelos tiverem a riqueza
De uma casinha de Nazaré.
70
No meu quintal
Em troca de um braço forte,
um abraço suave,
uma chuva de ouro
e uma parceria para a vida inteira:
orquídea na laranjeira.
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