piglia - teses sobre o conto e novas

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RICARDO PIGLIA Formas breves Tradução José Marcos Mariani de Macedo 1a reimpressão Companhia Das  L etra s

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  • R I C A R D O P I G L I A

    Formas breves

    Traduo

    Jos Marcos Mariani de Macedo

    1 a reimpresso

    C o m p a n h ia Da s L e t r a s

  • ento comear a decifrar de fato a escrita. Trancou-se em sua casa e trabalhou por duas semanas, doze horas por dia, sem ver ningum. O 14 de maro de 1822 terminara. Nessa noite, foi ao Instituto e se apresentou no escritrio de Kircher. No h mais segredos, disse-lhe, e no voltou a falar. O lingista mudo. Quando superou a crise, abandonou a egiptologia e o estudo das lnguas antigas. Foi viver em Nova York e abriu um negcio de compra e venda de mveis.

    Q U I N T A - F E I R A

    Em La Prensa, em abril de 1871, em plena febre amarela, publicou-se este anncio: Tabelio nacional. O subscritor desta oferece-se ao pblico para fazer testamentos, esteja ou no enfermo da epidemia o testador, e encontra-se disposio do solicitante a qualquer hora do dia ou da noite rua Chacabuco, 296.

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    Teses sobre o conto

  • INum de seus cadernos de notas, Tchekhov registra esta anedota: Um homem em Montecarlo vai ao cassino, ganha um milho, volta para casa, suicida-se. A forma clssica do conto est condensada no ncleo desse relato futuro e no escrito.

    Contra o previsvel e o convencional (jogar-perder-suicidar- se), a intriga se oferece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a histria do jogo e a histria do suicdio. Essa ciso a chave para definir o carter duplo da forma do conto.

    Primeira tese: um conto sempre conta duas histrias.

    I I

    O conto clssico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a histria 1 (o relato do jogo) e constri em segredo a histria 2 (o relato do suicdio). A arte do contista consiste em saber cifrar a

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  • histria 2 nos interstcios da histria 1. Um relato visvel esconde um relato secreto, narrado de um modo elptico e fragmentrio.

    O efeito de surpresa se produz quando o final da histria secreta aparece na superfcie.

    u i

    Cada uma das duas histrias contada de modo distinto. Trabalhar com duas histrias quer dizer trabalhar com dois sistemas diferentes de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lgicas narrativas antagnicas. Os elementos essenciais de um conto tm dupla funo e so empregados de maneira diferente em cada uma das duas histrias. Os pontos de interseo so o fundamento da construo.

    IV

    Em A morte e a bssola, logo no comeo, um lojista decide publicar um livro. Esse livro est ali porque imprescindvel na armao da histria secreta. Como fazer para que um gngs- ter como Red Scharlach esteja a par das complexas tradies judaicas e seja capaz de armar para Lnnrot uma cilada mstica e filosfica? Borges lhe arranja esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo, usa a histria 1 para dissimular essa funo: o livro parece estar ali por contigidade com o assassinato de Yar- molinsky e responde a uma causalidade irnica. Um desses lojistas que descobriram que as pessoas se resignam a comprar

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    qualquer livro publicou uma edio popular da Histria secreta dos Hassidim. O que suprfluo numa histria bsico na outra. O livro do lojista um exemplo (como o volume das Mil e uma noites em O sul; como a cicatriz em A forma da espada) da matria ambgua que pe em funcionamento a microscpica mquina narrativa que um conto.

    v

    O conto um relato que encerra um relato secreto. No se trata de um sentido oculto que dependa de interpretao: o enigma no outra coisa seno uma histria contada de um modo enigmtico. A estratgia do relato posta a servio dessa narrao cifrada. Como contar uma histria enquanto se conta outra? Essa pergunta sintetiza os problemas tcnicos do conto.

    Segunda tese: a histria secreta a chave da forma do conto e de suas variantes.

    VI

    A verso m oderna do conto, que vem de Tchekhov, Kathe- rine Mansfield, Sherwood Anderson e do Joyce de Dublinenses, abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tenso entre as duas histrias sem nunca resolv-la. A histria secreta contada de um modo cada vez mais elusivo. O conto clssico Poe contava uma histria anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histrias como se fossem uma s.

    A teoria do iceberg de Hemingway a primeira sntese desse processo de transformao: o mais importante nunca se conta. A

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  • histria construda com o no-dito, com o subentendido e a aluso.

    VI I

    O grande rio dos dois coraes, uma das narrativas fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto a histria 2 (os efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrio trivial de uma pescaria. Hemingway pe toda a sua percia na narrao hermtica da histria secreta. Usa com tal maestria a arte da elipse que logra fazer com que se note a ausncia do outro relato.

    Que teria feito Hemingway com a anedota de Tchekhov? Narrar com detalhes precisos a partida, o ambiente onde se desenrola o jogo, a tcnica que usa o jogador para apostar e o tipo de bebida que toma. No dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto como se o leitor j o soubesse.

    V I I I

    Kafka conta com clareza e simplicidade a histria secreta, e narra sigilosamente a histria visvel, at convert-la em algo enigmtico e obscuro. Essa inverso funda o kafkiano.

    A histria do suicdio na anedota de Tchekhov seria narrada por Kafka em primeiro plano e com toda a naturalidade. O terrvel estaria centrado na partida, narrada de modo elptico e ameaador.

    92

    IX

    Para Borges, a histria 1 um gnero e a histria 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a essencial monotonia dessa histria secreta, ele recorre s variantes narrativas que lhe oferecem os gneros. Todos os contos de Borges so construdos com base nesse procedimento.

    A histria visvel, o jogo na anedota de Tchekhov, seria contada por Borges segundo os esteretipos (levemente parodiados) de uma tradio ou de um gnero. Uma partida num armazm, na plancie entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilrio Ascasubi. O relato do suicdio seria uma histria construda com a duplicidade e a condensao da vida de um homem numa cena ou ato nico que define

    seu destino.

    x

    A variante fundamental que Borges introduziu na histria do conto consistiu em fazer da construo cifrada da histria 2 o

    tema do relato.Borges narra as manobras de algum que constri perversa

    mente uma trama secreta com os materiais de uma histria visvel. Em A m orte e a bssola, a histria 2 uma construo deliberada de Scharlach. O mesmo sucede com Azevedo Bandeira em O m orto, com Nolan em Tema do traidor e do heri, com

    Emma Zunz.

    Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em anedota os problemas da forma de narrar.

    93

  • XI

    O conto construdo para revelar artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experincia nica que nos permite ver, sob a superfcie opaca da vida, uma verdade secreta. A viso instantnea que nos faz descobrir o desconhecido, no numa remota terra incgnita, mas no prprio corao do imediato, dizia Rimbaud.

    Essa iluminao profana converteu-se na forma do conto.

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    Novas teses sobre o conto

  • Estas teses so na realidade um pequeno catlogo de fces sobre o final, sobre a concluso e o desfecho de um conto, e foram inspiradas desde o princpio em Borges e em sua maneira particular de rematar suas histrias: sempre com ambigidade, mas tambm sempre com um eficaz efeito de clausura e de inevitvel surpresa.

    Borges, sabemos, vrias vezes apontou diversos de seus contos como tendo sido o seu primeiro, e isso quer dizer, talvez, que os comeos so sempre difceis, incertos, que teve vrias partidas falsas como nas corridas de cavalo realizadas no campo, como na conhecida diatribe de Jos Hernndez contra seu amigo Estanis- lao dei Campo (parece que sem dar a largada cansaram-se em partidas); o fim, por sua vez, sempre involuntrio ou assim parece, mas premeditado e fatal.

    H um jogo entre a vacilao do comeo e a certeza do fim que foi muito bem definido por Kafka numa nota de seu Dirio. Escreve Kafka em 19 de dezembro de 1914:

    No primeiro momento, o comeo de todo conto ridculo.

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  • Parece impossvel que esse novo corpo, inutilmente sensvel, como que mutilado e sem forma, possa manter-se vivo. Cada vez que se comea, esquece-se de que o conto, se sua existncia justificada, j traz em si sua forma perfeita, e que s cabe esperar vislumbrar nesse comeo indeciso o seu visvel mas, talvez, inevitvel final.

    Essa noo de espera e de tenso rumo ao final secreto (e nico) de um relato breve h de ser o ponto de partida destas notas.

    talo Calvino conta uma histria em Seis propostas para o prximo milnio que pode ser vista como uma sntese fantstica da concluso de uma obra.

    Entre muitas virtudes, Chuang-Ts tinha a de ser hbil no desenho. O rei lhe pediu que desenhasse um caranguejo. Chuang- Ts respondeu que precisava de cinco anos e uma casa com doze criados. Passaram-se cinco anos, e o desenho ainda no estava comeado. Preciso de outros cinco anos, disse Chuang-Ts. O rei os concedeu. Passados dez anos, Chuang-Ts tomou do pincel e, num instante, com um nico gesto, desenhou um caranguejo, o caranguejo mais perfeito que jamais se tinha visto.

    Antes de tudo, essa uma histria sobre a graa, sobre o instantneo e tambm sobre a durao. H um vazio, tudo fica em suspenso, e o relato se pergunta se a espera (que dura anos) faz ou no parte da obra.

    Como o relato trata de um artista, seu ncleo bsico o tempo e as condies materiais de trabalho: nesse sentido, o conto um tratado sobre a economia da arte. Firma-se um contrato entre o pintor e o rei: a dificuldade reside, recordemos Marx, em medir o tempo de trabalho necessrio numa obra de arte, e portanto a dificuldade de definir (socialmente) seu valor.

    A arte uma atividade impossvel do ponto de vista social, porque seu tempo outro, sempre se demora muito (ou muito pouco) para fazer uma obra.

    Quanto tempo, afinal, Chuang-Ts emprega para desenhar o quadro?

    Decididamente, o conto que Calvino conta uma fbula (moral) sobre a forma (uma fbula sobre a moral da forma), ou seja, uma parbola sobre o final e sobre o remate (uma parbola sobre o desfecho e sobre o que d forma a uma obra).

    Para comear, o relato de Chuang-Ts termina s avessas. H uma expectativa (no pode pintar), e uma soluo que o contrrio daquilo que o bom senso espera que acontea. A soluo parece um paradoxo (mas no ), porque no h relao lgica entre os anos perdidos e a rapidez da realizao.

    O final implica, mais do que um corte, uma mudana de velocidade. Existem tempos variveis, momentos lentssimos, acelaraes. Nesses movimentos da temporalidade se joga o remate de uma histria. Uma continuidade deve ser alterada: algo trava a repetio.

    Poderamos nos perguntar, por exemplo, como Kafka (que era um mestre na arte dos finais infinitos) teria narrado esse relato.

    Kafka manteria a impossibilidade da salvao num universo sem mudanas: o relato contaria a postergao incessante de Chuang-Ts. Os prazos so cada vez mais longos, mas a pacincia do rei no tem limites. Os anos passam. Chuang-Ts envelhece e est a ponto de morrer.

    Uma tarde, o velho pintor agonizante recebe a visita do rei.O soberano tem de inclinar-se sobre a cama para ver o rosto

    plido do artista: com gesto trmulo, Chuang-Ts busca debaixo do leito e lhe entrega o caranguejo perfeito que desenhara fazia anos, mas no se atrevera a mostrar.

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  • Kafka nos faria supor que, para todos, o quadro perfeito e est terminado, menos para Chuang-Ts.

    O que quer dizer terminar uma obra? De quem depende decidir que uma histria est terminada?

    Flannery OConnor, a grande narradora norte-americana, contava uma histria muito divertida.

    Tenho uma tia que pensa que nada acontece num relato, a menos que algum se case ou mate outro no final. Escrevi um conto em que um vagabundo se casa com a filha idiota de uma velha. Depois da cerimnia, o vagabundo leva a filha em viagem de npcias, abandona-a num hotel de estrada e vai embora sozinho, conduzindo o automvel. Bom, essa uma histria completa. E no entanto no pude convencer minha tia de que esse era um conto completo. Ela queria saber o que acontecia com a filha idiota depois de abandonada.

    Os finais so formas de encontrar sentido na experincia. Sem finitude no h verdade, como disse o discpulo de Husserl. E, pelo visto, a tia de Flannery no encontrou o sentido dessa histria.

    O final pe em primeiro plano os problemas da expectativa e nos defronta com a presena de quem espera o relato. No se trata de algum externo histria (no a tia de Flannery), mas de uma figura que faz parte da trama. No conto de OConnor (The Life You Save May Be Your Own), a velha sovina que quer se livrar da filha demente: ela quem recebe o impacto inesperado do final; a ela destina-se a surpresa que no se narra. E tambm certamente a moral. Perde o carro e no consegue se desvencilhar da filha.

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    H um resqucio da tradio oral nesse jogo com um interlocutor implcito; a situao de enunciao persiste cifrada e o final que revela sua existncia.

    Na silhueta instvel de um ouvinte, perdido e deslocado na fixidez da escrita, encerra-se o mistrio da forma.

    No o narrador oral quem persiste no conto, mas a sombra daquele que o escuta.

    Estas palavras, preciso ouvi-las, e no l-las, diz Borges na concluso de A trama, em O fazedor, e nessa frase ressoa a altiva e resignada certeza de que algo irrecupervel se foi.

    Haveria muito a dizer sobre a tenso entre ouvir e ler na obra de Borges. Uma obra vista como o xtase da leitura, que no entanto tece sua trama no avesso de uma mitologia sobre a ora- lidade e sobre o dizer um relato.

    A arte de narrar, para Borges, gira em torno desse duplo vnculo. Ouvir um relato que se possa escrever, escrever um relato que se possa contar em voz alta.

    Nesse ponto, Borges se ope ao romance, e a que se deve entender sua indiferena em relao a Proust ou Thomas Mann (mas no em relao a Faulkner, em quem percebe a entonao oral da prosa, o carter confuso e digressivo de um narrador oral que conta uma histria sem entend-la de todo).

    Borges considera que o romance no narrativa, porque demasiado alheio s formas orais, ou seja, perdeu os rastros de um interlocutor presente, a possibilitar o subentendido e a elipse, e portanto a rapidez e a conciso dos relatos breves e dos contos orais.

    A presena de quem escuta o relato uma espcie de estranho arcasmo, mas o conto como forma sobreviveu porque levou em considerao essa figura que vem do passado.

    Seu lugar muda a cada relato, mas no muda a sua funo: est l para assegurar que a histria parea a principio levemen

    101

  • te incompreensvel, como se feita de subentendidos e de gestos invisveis e obscuros.

    Um exemplo a um s tempo inquietante e perfeito dessa estrutura o conto de Borges O Evangelho segundo Marcos, no qual camponeses analfabetos e crentes ouvem a leitura da Paixo de Cristo, transformam-se em protagonistas fatais do poder da letra e resolvem trazer para a vida (como verses enfurecidas de Dom Quixote ou Madame Bovary) tudo o que compreenderam das palavras profticas dos livros sagrados.

    Borges usou com grande sutileza as possibilidades da situao oral, e em vrios de seus contos (desde Homem da esquina rosada, de 1927, at A noite das ddivas, de 1975) ele mesmo ocupa o lugar daquele que recebe o relato.

    Um homem solcito e absorto chamado Borges est num bar de espelhos altos no sul da cidade ou num ptio de terra num sobrado ou no fundo jardim de uma chcara de Adrogu, e um amigo ou desconhecido se aproxima e lhe conta uma histria que ele compreende pela metade e que misteriosamente o implica.

    Em seus melhores contos, Borges trabalha essa estrutura at o limite, complicando-a e convertendo-a no argumento central.

    Em A morte e a bssola, Lnnrot demora para compreender que a sucesso confusa de assassinatos que pretende decifrar no seno um relato que Scharlach construiu para ele, e quando o compreende j tarde. O mesmo ocorre a Benjamn Otalo- ra em O m orto: vive com intensidade e paixo uma aventura que o exalta e enobrece, e ao final, numa brusca e sangrenta revelao, Azevedo Bandeira faz com que ele veja que apenas o pobre destinatrio de um conto contado por um louco repleto de sarcasmo e fria. Emma Zunz tece com perversa preciso, e em seu corpo, uma trama criminal destinada a um interlocutor futuro (a lei), a quem engana e confunde e para quem constri um relato que ningum mais poder compreender.

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    A mesma relao est certamente em O jardim dos caminhos que se bifurcam, em Tln, Uqbar, Orbis Tertius e em A forma da espada, mas no Tema do traidor e do heri que Borges leva esse procedimento perfeio. Os patriotas irlandeses, rebeldes e romnticos, so os destinatrios de uma lenda herica urdida a toda a pressa pelo abnegado James Alexander Nolan, com o auxlio do acaso e de Shakespeare, e essa fico ser decifrada muitos anos depois por Ryan, o assombrado e incrdulo historiador que reconstri a duplicidade da trama.

    O relato se dirige a um interlocutor perplexo, que vai sendo perversamente enganado e termina perdido numa rede de fatos incertos e palavras cegas. Sua confuso decide a lgica intrnseca da fico.

    O que compreende, na revelao final, que a histria que tentou decifrar falsa e que h outra trama, silenciosa e secreta, a ele destinada.

    A arte de narrar se baseia na leitura equivocada dos sinais.Tal como as artes divinatrias, a narrao desvela um m un

    do esquecido em pegadas que encerram o segredo do futuro.A arte de narrar a arte da percepo errada e da distoro.

    O relato avana segundo um plano frreo e incompreensvel, e perto do final surge no horizonte a viso de uma realidade desconhecida: o final faz ver um sentido secreto que estava cifrado e como que ausente na sucesso clara dos fatos.

    Os contos de Borges tm a estrutura de um orculo: h algum que est ali para receber um relato, mas at o final no compreende que aquela histria a sua e que ela define seu destino.

    H, ento, uma fatalidade no fim, e um efeito trgico que Poe (que havia lido Aristteles) conhecia bem.

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  • A experincia de errar e desviar-se num relato se baseia na secreta aspirao de uma histria que no tenha fim; a utopia de uma ordem fora do tempo, na qual os fatos se sucedem, previsveis, interminveis e sempre renovados.

    No fundo, todos somos a tia de Flannery, queremos que a histria continue... sobretudo se a noiva acabou abandonada num posto de gasolina.

    Todas as histrias do mundo so tecidas com a tram a de nossa prpria vida. Remotas, obscuras, so mundos paralelos, vidas possveis, laboratrios onde se experimenta com as paixes pessoais.

    Os relatos nos defrontam com a incompreenso e com o carter inexorvel do fim, mas tambm com a felicidade e com a luz pura da forma.

    A tia de Flannery est na vida, e na vida h encruzilhadas, redes, crculos, e os finais se associam ao esquecimento, separao e ausncia. Os finais so perdas, cortes, marcas num territrio; traam uma fronteira, dividem. Escandem e cindem a experincia. Mas ao mesmo tempo, em nossa convico mais ntima, tudo continua.

    Borges construiu um dos melhores textos sobre o carter imperceptvel da noo inevitvel de limite, e esse o ttulo de uma pgina escrita em 1949, escondida em O fazedor e atribuda ao obscuro e lcido escritor uruguaio Julio Platero Haedo. Diz assim:

    H um verso de Verlaine que no tornarei a lembrar. H uma rua prxima que est vedada a meus passos. H um espelho que me viu pela ltima vez. H uma porta que fechei at o fim do mundo. Entre os livros de minha biblioteca (c os vejo) h algum que j no abrirei.

    Baseado no oximoro e no desdobramento, Borges narra o fim como se o vivesse no presente: est alm e remoto, mas j est aqui, inesquecvel, despercebido.

    104

    Com certeza, essa marca no tempo, esse revs, a diferena entre a literatura e a vida. Cruzamos uma linha incerta que sabemos existir no futuro, como num sonho.

    Projetar-se para alm do fim, para perceber o sentido, algo impossvel de se conseguir, salvo sob a forma da arte.

    O poeta Carlos Mastronardi escreveu:No temos uma linguagem para os finais. Talvez uma lin

    guagem para os finais exija a total abolio de outras linguagens.

    Para evitar confrontos com essa linguagem impossvel (que a linguagem que os poetas utilizam), na vida se praticam os finais estabelecidos. Os horrios em que nos movemos cortam o fluxo da experincia, definem as duraes permitidas. Os cinqenta minutos de Freud so um exemplo desse tipo de final.

    A literatura, ao contrrio, trabalha a iluso de um final surpreendente, que parece chegar quando ningum espera para cortar o circuito infinito da narrao e que, no entanto, j existe, invisvel, no corao da histria que se conta.

    No fundo, a trama de um relato esconde sempre a esperana de uma epifania. Espera-se algo inesperado, e isso vale tam bm para quem escreve a histria.

    Bergman contou muito bem como lhe ocorreu o final de um argumento (isto , como descobriu o que queria contar).

    Primeiro, vi quatro mulheres vestidas de branco, sob a luz clara da aurora, num quarto. Movem-se e falam-se ao ouvido, extremamente misteriosas, e eu no consigo entender o que dizem. A cena me persegue durante um ano inteiro. Por fim compreendo que as trs mulheres esperam que m orra uma quarta,

    105

  • que est no quarto ao lado. Revezam-;e Para vel-la. Gritos e sussurros.

    O que um relato quer dizer ns P entrevemos no final: de pronto, aparece um desvio, uma mudin a de ritmo, algo externo; algo que est no quarto ao lado. E1^ 0 conhecemos a histria e podemos concluir.

    Cada narrador narra sua manei"a tlue v'u a-Hemingway, por exemplo, contar? uma conversa trivial en

    tre as trs mulheres, sem jamais dizer cue se reuniram para velar uma irm moribunda.

    Kafka, ao contrrio, contaria a h i ria do Ponto de vista da mulher que agoniza e que j no p o ^ suportar o m urm rio ensurdecedor das irms que cochicha11 e a^ a^m dela no quarto vizinho.

    Uma histria pode ser contada de maneiras distintas, mas sempre h um duplo movimento, algo incompreensvel que acontece e est oculto.

    O sentido de um relato tem a estriltura do segredo (remete origem etimolgica da palavra: se-cernere P possibilitando enfim o entendimento.

    O sonho est em Sete noites, e sua frma perfeita. Conta Borges:

    Encontrava-me com um amigo1 um amig clLie no sei quem : eu o via e ele estava muito rrlu dado. Muito mudado e muito triste. Seu rosto estava a tr a v e s s a 1^ 0 pelo pesar, pela enfermidade, talvez pela culpa. Tinha a mo* direita dentro do capote.

    Eu no podia ver a mo que ele oc:u^ ava ao a^d do corao.Ento o abracei, senti que prcis'*'3 de minha ajuda: Mas,

    106

    meu pobre amigo, disse-lhe, o qiue aconteceu com voc? Como est m udado!.

    Respondeu-me: Sim, estou muito mudado.Lentamente foi tirando a m-^o para fora. Pude ver que era

    a garra de um pssaro.At que se revele o que se esco)nt]eU) a histria apenas o rela

    to de um encontro, melanclico & trivial, entre dois amigos. Mas depois, com um gesto, tudo muda^ se acelera e se torna ntido.

    O estranho, por certo, que. 0 homem tenha desde o p rincpio a mo escondida. Que tenlha uma garra de pssaro e que Borges, no sonho, veja perto do final o terrvel de sua m udana, o terrvel de sua desdita, j que est se convertendo num pssaro.

    O argumento, num instante,? d Um giro e encontra sua forma, o relato est nessa mo ocult[a

    A forma se condensa numa imagem que prefigura a histria completa.

    H algo no final que estav% na origem, e a arte de narrar consiste em posterg-lo, mant-lo, em segredo, at revel-lo quando ningum o espera.

    Kafka tem razo: o comea cje Um relato ainda incerto e impreciso adensa-se num ponto \qUe concentra o que est por vir.

    Borges, num momento de ^Ua conferncia sobre Nathaniel Hawthorne, em 1949, narra o nqcieo primeiro de um conto, antes que o argumento se desenvc,iva e ganhe vida (como queria Kafka).

    Sua morte foi tranqila e hiisteriosa, pois ocorreu durante o sono. Nada nos impede de imaginar que morreu sonhando, e podemos at inventar a histria qUe sonhava a ltima de uma srie infinita e de que modq a morte a coroou ou dissipou.

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  • Algum dia, quem sabe, eu a escreverei, na tentativa de resgatar com um conto aceitvel esta palestra deficiente e assaz digressiva.

    Esse conto, na verdade, veio a ser O sul e, para escrev-lo (em 1953), Borges teve de se debruar sobre a microscpica trama inicial e inferir da a vida de Dahlmann, que, morrendo de septicemia num hospital, sonha uma morte feliz, a cu aberto. Teve, quero dizer, de imaginar a vvida cena em que o tmido e gentil bibliotecrio Juan Dahlmann empunha a faca que porventura no saber manejar, e ganha a plancie.

    A idia de um final aberto que como um sonho, como um resto que se acrescenta histria e lhe d fecho, est em vrios contos de Borges, e percebe-se claramente a forma quando se analisa o final de uma histria que , para Borges, o modelo exemplar de desfecho, o desfecho da literatura argentina, poderamos dizer. Refiro-me ao final de O gacho Martin Fierro. uma cena que Borges contou e recontou vrias vezes (melhor seria dizer recitou e citou em diversas ocasies). Diz, como todos sabemos, assim:

    Cruz y Fierro de una estancia una tropilla se arriaron por delante se la echaron como criollos entendidos y pronto sin ser sentidos por lafrontera cruzaron.

    Y quando la haban pasao una madrugada clara le dijo Cruz que mirara las ltimas poblaciones

    108

    y a Fierrojs lagrimones le rodarotor la cara*

    A obra ctlui com duas figuras que se afastam e se esfumam rumo a t incerto futuro. E essas duas lgrimas silenciosas choradas r^urora, ao empreender a travessia terra adentro, impressionarr^ais do que uma queixa, constituindo uma cifra da perda e d o n da histria.

    Junto ibresso inesquecvel desses dois gachos que ao amanhecer se rdem na distncia, a chave desse final a apario de um naidor que estava oculto na linguagem.

    Todo o i;ma narrado por Martin Fierro, como uma espcie de au^iografia popular, mas, de sbito, no desfecho, surge outro: a^m que foi na verdade quem contou a histria e que esteve a|esde o princpio.

    A voz qustancia e d fecho ao relato a marca que, na forma, permit cruzamento final. Permanece deste lado da fronteira, e eles se 0.

    Y siguien elfiel dei rumbo, se entranen e\ desierto, no s si loiabrn muerto en alguniorrera, pero espeque algn dia sabr de t)S algo cierto.

    * C ru z e Fierro 1 fUga puseram/ um a tropilha de um a estncia/ adiante a

    tocaram/ com o c ulos entendidos/ e logo cruzaram a fronteira/ sem ser per

    cebidos.// E quan haviam passado/ um a m adrugada clara/ C ru z lhe disse que

    olhasse/ os ltim p0voacios/ e duas lagrim onas rolaram/ pelo rosto de Fierro. (N. T.)

    109

  • Y ya con estas noticias mi relacin acab, por ser ciertas las cont, todas las desgracias dichas: es un telar de desdichas cada gaucho que ust v*

    A irrupo do sujeito que construiu a intriga define um dos grandes sistemas de desfecho na fico de Borges.

    Vou usar o exemplo de dois relatos que j citei: em A morte e a bssola, no momento em que o argumento est para se duplicar, quando Lnnrot cruza o limite que divide a trama e parte rumo ao sul e morte, surge de pronto, como um fantasma, a voz de quem, invisvel, narrou a histria.

    Ao sul da cidade de meu conto flui um cego riacho de guas barrentas, infestadas de curtumes e imundcie. Do outro lado h um subrbio fabril onde, ao abrigo de um caudilho bar- celons, medram os pistoleiros. Lnnrot sorriu ao pensar que o mais afamado deles Red Scharlach teria dado qualquer coisa para conhecer essa clandestina visita.

    Quem narra est para abandonar Lnnrot prpria sorte e prepara, desse modo velhaco e ardiloso, a irrupo final e insus- peitada de Scharlach, o Dndi. Quem narra diz a verdade. Lnnrot tem a a chave do enigma, mas a entende ao avesso, e o narrador o observa desviar-se e seguir obstinado rumo morte.

    * E seguindo o fiel do rum o,/ entraram no deserto,/ no sei se tero sido

    m ortos/ em algum a correria,/ m as espero qu e algum dia/ saiba deles algo

    certo.// E j com essas notcias/ acabei o m eu relato,/ p or ser certas as co n

    tei,/ todas as ditas desgraas:/ um tear de desditas/ cada gacho q u e voc v. (N. T.)

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    Lnnrot considerou a remota possibilidade de que a quarta vtima fosse Scharlach. Depois a afastou.

    Em Emma Zunz, h uma cena vertiginosa eim que a histria muda e outra, mais antiga e mais enigmtica.. Emma entrega seu corpo a um desconhecido para vingar-se d

  • Se usarmos a conhecida metfora do realismo, poderamos dizer que h uma fissura na janela que duplica e cinde o que se v do outro lado do jardim. O grande vidro est rachado, h uma luz na casa, e no rombo dos losangos, amarelos, vermelhos e verdes, vislumbra-se a vaga sombra de um rosto.

    Compreendemos que h outro que estava ali desde o princpio e que quem definiu os fatos do mundo, As runas circulares uma verso temtica desse procedimento: quem sonha foi sonhado, e essa revelao j clssica na obra de Borges...

    A epifania est baseada no carter fechado da forma; uma nova realidade descoberta, mas o efeito de distanciamento opera dentro do conto, no por meio dele. Em Borges, assistimos a uma revelao que parte da trama. O estranhamento, a ostra- nenie, a viso pura intrnseca estrutura: O Aleph , nesse sentido, um modelo exemplar.

    Nesse universo em miniatura, vemos um acontecimento que se modifica e se transforma. O conto conta uma encruzilhada, uma passagem, um experimento com o marco e com a noo de limite.

    H um mecanismo mnimo que se esconde na textura da histria e sua margem e centro invisvel.

    Trata-se de um procedimento de articulao, um levssimo engaste que d fecho dupla realidade.

    A verdade de uma histria depende sempre de um argumento simtrico que se conta em segredo. Concluir um relato descobrir o ponto de interseo que permite entrar na outra trama.

    Essa a ponte que Borges teria buscado, se tivesse tido de contar a histria de Chuang-Ts.

    A princpio teria corrigido o relato, com um toque preciso e tcnico teria se apropriado da intriga e inventado outra verso,

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    sem se preocupar com a fidelidade ao original(e>se conhecem o Borges tradutor, sabero o que quero dizer).

    Um caranguejo visvel demais e lento dmais Para a velocidade dessa histria, teria pensado Borges, e cter>a trocado, primeiro por um pssaro e depois, na verso d a t i v a , por uma borboleta.

    Chuang-Ts (teria escrito Borges) desenlou uma borboleta, a borboleta mais perfeita que jamais se tinia visto.

    O adejar frgil da borboleta fixa a fugaci^de da histria e seu movimento invisvel. Borges teria entrevito> nesse latejo lateral, a luz de outro universo. A borboleta o Pr 'a levado ao sonho de Chuang-Ts.

    Vocs se recordam:

    Chuang-Ts sonhou que era uma b o rb o ta e, ao despertar, no sabia se era um homem que sonharaier uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava ser um lomem.

    Borges teria duas histrias e poderia, en:ao> comear a escrever a narrativa.

    Mas qual a histria secreta? Ou seja, 3nde concluir? Se vem primeiro a histria do sonho, ento o juadro decide seu sentido e corta a ambigidade. Chuang-Ts scnha uma borboleta e depois a pinta. Mas o que acontece (teria fensado Borges) se inverto a ordem?

    Chuang-Ts pinta a borboleta, sonha e ,ao despertar, no sabe se um homem que sonhou ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonha ser um homem. Dtsse modo, a histria do quadro maneira da metamorfose ce Kafka, mas tam bm maneira do retrato de Dorian Gray de ^scar Wilde a histria de uma mutao e de um destino.

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  • O quadro um espelho do que est para acontecer e o anncio de uma mudana aterradora. Chuang-Ts tarda e posterga porque sente ou delira que se transforma no que quer pintar.

    Borges teria concludo o relato com uma meditao sobre a amplitude da experincia e sobre os crculos do tempo. Cito-o agora em sua conferncia sobre Hernndez:

    Dizem que perguntaram a Whistler quanto tempo levara para pintar um de seus noturnos, e ele respondeu: Minha vida inteira.

    E minha vida inteira deve ser entendido de modo literal: deu sua vida, entregou-a em troca da obra e converteu-se no objeto que tentou representar.

    A arte de narrar uma arte da duplicao; a arte de pressentir o inesperado; de saber esperar o que vem, ntido, invisvel, como a silhueta de uma borboleta contra a tela vazia.

    Surpresas, epifanias, vises. Na experincia renovada dessa revelao que a forma, a literatura tem, como sempre, muito que nos ensinar sobre a vida.

    Eplogo