pieper - as virtudes cardeais revisitadas

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    International Studies on Law and Education 11mai-ago 2012

    CEMOrOc-Feusp / IJI-Univ. do Porto

    As virtudes cardeais revisitadas

    Josef Pieper1(Tt. orig.:Menschliches Richtigsein

    trad.: Jean Lauand)

    Resumo: Nesta conferncia, Josef Pieper resume suas pesquisas de dcadas sobre as quatro virtudescardeais e as apresenta ao homem contemporneo.Palavras Chave: Josef Pieper. Virtudes Cardeais. Toms de Aquino.

    Abstract:In this lecture, Josef Pieper summarizes decades of his research on cardinal virtues, focusingon their relevance to contemporary man.Keywords: Josef Pieper. Cardinal virtues. Thomas Aquinas.

    1. Introduo: o mximo

    O ltimo grande mestre da cristandade ocidental ainda no dividida, Toms deAquino, designou a virtude humana como ultimum potentiae, ou, em linguagem dehoje, o mximo daquilo que uma pessoa pode ser. evidente que a concepoexpressa nessa breve sentena nem sequer permite o aparecimento das famigeradasdeformaes que, de diversos modos, costumamos associar palavra virtude. Nemvale a pena falar muito a respeito delas. O que sim vale a pena procurar compreenderde forma mais exata alguns elementos que a definio de Toms traz consigo e, primeira vista, talvez tambm esconda em si.

    Quem, por exemplo, fala do ultimum e, portando, do mximo, j pensou ao

    mesmo tempo que h tambm um penltimo e um primeiro. Com isso, afirma-setambm algo a respeito do homem: que a sua vida quotidiana se situa em meio a essesdiferentes graus de realizao, procurando, certo, o mximo do poder-ser, mas nonecessariamente atingindo-o. Que o ser humano , no seu ncleo mais profundo, umser-que-se-torna; em todo caso, no meramente um ser conformado desta ou daquelamaneira, no algo pura e estaticamente existente, mas sim um sujeito do acontecer,realidade dinmica, como alis todo o Cosmos.

    Naturalmente, isto no uma concepo especificamente crist. O poeta gregoPndaro j h mais de dois mil anos formulou-a na famosa frase: "Torna-te aquilo ques!" - com o que, na realidade, se diz (e parece to estranho) que ns ainda no somoso que, no entanto, somos. Disto tambm est convencida a sabedoria teolgica docristianismo, quando reconhece verdadeira virtude somente naquele que realiza omximo do que lhe possvel ser.

    J algo especificamente cristo se encontra na resposta pergunta sobre comose dever pensar o primeiro comeo desse processo de auto-realizao: assume-seclaramente que o incio j vem dado previamente. O homem - quando com liberdadefaz o bem - no est pondo os ps pela primeira vez num caminho ainda no trilhadoou sequer aberto; o agir moral (isto , todo agir humano baseado em deciso eresponsabilidade) vem a ser antes uma continuao, um levar adiante pelo caminhoalgo j comeado e que se encontra em processo. Muito antes de se decidir livremente,

    1. Renomado filsofo, catedrtico da Universidade de Mnster, falecido em 06-11-97.

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    j h algo que orienta o homem para seu alvo; como uma seta disparada, ele j est acaminho. A teologia fala aqui de um querer natural, de um impulso que nos inerentepor natureza e que seguimos quando fazemos o bem. No entanto, essa afirmao arespeito da natureza humana e do querer natural precria e, por assim dizer,provisria. Somente a compreendemos bem quando entendemos a "natureza humana"como aquilo que o homem em funo da Criao. No ato de Criao, foi o homemposto por Deus a caminho, num caminho ao final do qual est aquele mximo que

    pode chamar-se, em sentido pleno, Virtude: a realizao do projeto divino incorporado criatura.

    Quem pensa nisto consegue entrever a exigncia quase inatingvel que resideno conceito de virtude. E talvez se lhe torne clara, de repente, aquela sentena umtanto enigmtica do Novo Testamento: "Ningum bom seno s Deus" (Mc 10, 18).

    2. A prudncia: ver aquilo que

    Se perguntarmos, ento, sbria e objetivamente, o que se pode exigir e esperarem termos de "ser-bom" do homem comum - e, portanto, de cada um de ns -, logopede a palavra a antiga sabedoria que fala do espectro de quatro cores em que se

    desdobra a luz da perfeio. a doutrina das "Virtudes Cardeais": Prudncia, Justia,Fortaleza e Temperana. O termo latino cardussignifica gonzo, que abre o portal davida.

    Esses quatro nomes certamente j foram ouvidos muitas vezes, sem que seusignificado fosse levado a srio. No momento, porm, em que isto se faa, a situaotorna-se complicada. Por exemplo cabe j perguntar: como pode a Prudncia servirtude? E a compreenso tornar-se- ainda mais difcil quando nos disserem que aseqncia no casual, mas obedece a uma lgica de significado e de hierarquia: Prudncia, cabe, portanto, o primeiro e mais elevado posto. E mais ainda, talformulao nem ao menos precisa; a rigor, a Prudncia no ocuparia um lugar comoelo dessa srie: ela no algo assim como a irm das outras virtudes; ela a sua me e

    j foi designada literalmente como "genitora das virtudes" (genitrix virtutum).Desse modo, ningum poderia - e, por estranho que possa parecer, de fato

    assim - praticar a Justia, a Fortaleza ou a Temperana a no ser que seja ao mesmotempo prudente. Ao mesmo tempo, e at antes.

    Pelo uso comum da linguagem e pelos hbitos de pensamento, temos algumadificuldade no s para concordar com o afirmado, mas at para entend-lo. Pois nodizemos na lngua alem que "prudente" (Klug em alemo significa prudente eesperto) quem esperto e com gil inteligncia logo percebe como "levar vantagem"?E no dizemos que Fulano ou Sicrano "prudente" demais e, portanto, no defendecom determinao e coragem suas convices? Tudo isto, sem dvida, certo. Noentanto, devemos esquecer estes casos, deix-los de lado e lembrar-nos de outras

    situaes que nos so igualmente familiares - por exemplo, de que, digamos, em casode conflito, ningum pode tomar uma deciso justa se no conhece a realidade: comoas coisas so e em que p esto. O mais puro desejo de Justia, a "melhor das boasvontades", a "boa inteno", tudo isto no basta. Antes, a realizao do bem concretopressupe sempre o conhecimento da realidade.

    Isso se pode exprimir tambm do seguinte modo: o agir humano bom eordenado quando procede da verdade, que afinal de contas nada mais que o vir-a-encarar a realidade. E precisamente este o sentido da prudncia e de sua posioprivilegiada: que - tanto quanto possvel - vejamos a realidade, que eu veja comorealmente so os elementos que compem a situao que exige de mim uma deciso.

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    Este "ver as coisas", entretanto, no de modo algum um assunto acessrioque se possa considerar com ligeireza. Alm do mais, a capacidade de "ver arealidade" ameaada de diversas maneiras. Pois no se trata de uma neutracontemplao da natureza, mas da incorruptvel "busca da verdade" a respeito desituaes nas quais costumam estar fortemente envolvidos fatores de interesse pessoal.O que importa, portanto, fazer calar nossos interesses - e, talvez tambm ouvir ooutro, possivelmente um oponente. Quem no consegue isto, ou no est disposto a

    isto, jamais chegar a ver a realidade como ela .Mas isso apenas o comeo e a primeira metade da Prudncia. A outra, bem

    mais difcil, consiste em transformar aquilo que foi visto, a verdade das coisas, emdiretriz do prprio querer e agir. S ento se perfaz a virtude da Prudncia, que comrazo foi definida como "a arte de decidir-se corretamente". S quem domina esta artepode ser considerado um homem moralmente maduro e adulto. Para ele foi cunhada apalavra da Sagrada Escritura: "Se o teu olho simples (simplex), ento todo teu corpoestar na luz" (Mt 6,22).

    3. A justia: dar o que devido

    Quem hoje pensa em justia, sobretudo se jovem, logo se lembrar doestribilho "sociedade". A sociedade parece-lhe a injustia encarnada, com o que,talvez, no deixe de ter razo. No entanto, deve deixar-se lembrar de que estamosagora falando da justia como virtude, portanto de uma atitude que s pode ser exigidada pessoa singular e por ela realizada.

    A Justia j foi chamada tambm "arte de conviver", uma formulao que porsua vez pode tambm ser mal-interpretada, como se no se tratasse de nada mais doque de arranjar-se com os outros. No isso, no entanto, o que se quer dizer, esim, mais propriamente, um conviverem que cada um recebe o que lhe devido: "Acada um o que seu", como diz a antiga sentena.

    Precisamente isto - assim o tem afirmado o clssico pensamento ocidental

    desde os antigos gregos at as encclicas sociais dos papas -, precisamente isto aJustia: a vontade, constante de dar a cada pessoa, com quem nos relacionamos, aquiloque lhe devido.

    A Justia pois, como vemos, algo que est emsegundolugar; ela pressupealgo diferente de si mesma: a saber, que, primeiro, haja algum a quem algo devidoe que aquele que convidado a exercer a Justia aceite esse dever.

    Agora, quanto pergunta sobre se e por que razo algo devido ao outro (e,naturalmente, tambm a mim), e sobre o que se lhe deve dar ou conceder - a estapergunta no se responde facilmente. Que ao trabalhador devido o justo salrio,ainda o mais fcil de evidenciar (ainda que na poca dos campos de trabalhosforados isto no seja to evidente quanto parece).

    No que deve residir, ento, a causa de que a todo aquele que porta uma facehumana, simplesmente pelo seu ser-homem, algo lhe seja devido inalienavelmente?Por exemplo, que a sua honra como pessoa seja respeitada. O conceito de pessoa, defato, aqui decisivo - enquanto se compreende "pessoa" como um ente que existe paraseu prprio aperfeioamento e realizao. Mesmo assim, em caso de conflito, ao sechegar aos extremos, no basta retroceder ao mero ser-pessoa (como supunham algunsfilsofos idealistas). necessrio nesses casos, poder colocar em jogo uma instnciaabsoluta, mais alm de qualquer instncia humana, ou, dito de outro modo: o outrodeve ser-me intocvel por eu o ver como ente criado por Deus como pessoa.

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    No se pense ser esta uma concepo especificamente crist ou teolgica. Foium chins confuciano quem declarou - aos seus colegas da comisso da UNESCOpara a reformulao dos direitos humanos, presumivelmente atnitos -, que lhe haviasido transmitido por tradio, como fundamento dos direitos humanos, que "O Cuama o povo e quem exerce o poder deve obedecer ao Cu". E Emanuel Kant - que noera l propriamente um telogo cristo - diz: "Temos um santo regedor e o que Ele deuao homem de sagrado o direito dos homens".

    Garantir e proteger esse direito o sentido intrnseco do Poder. E quer se tratedo poder poltico ou da autoridade em crculos menores (famlia, unidade militar,empresa) sempre vale: quando o Poder no cuida da Justia, ocorre invariavelmente ainjustia, e no h injustia mais desesperadora no mundo dos homens do que o usoinjusto do poder. E, no entanto - e uma idia to desagradvel - poder do qual no sepode abusar, no fundo no poder...

    Mas aquele que aprofundar mais deparar com uma nova condio, ainda maisradical, no tema da Justia. Pois o mundo dos homens est feito de tal maneira que,em alguns casos determinados e altamente significativos impossvel darefetivamente ao outro aquilo que - sem sombra de dvida - lhe devido. Os antigospensavam aqui, antes de mais nada, nas relaes com Deus; a Ele no podemos, na

    verdade, dizer, nem mesmo a respeito de um nico instante: "J te dei o que te devia,agora estamos quites". Por isso, por essa incapacidade da Justia, os grandes mestresdo cristianismo afirmavam que no caso das relaes com Deus, deveria entrar, em vezda Justia, como substituto, como Ersatz, a modo de recurso improvisado, a religio:entrega, adorao, disposio para o sacrifcio, atitude de reparao.

    Mas tambm no mbito do convvio humano h dvidas que, por natureza, nopodem realmente ser pagas e quitadas. Tambm minha me, a meus professores, aosjustos administradores das funes pblicas no posso, em sentido estrito, restituir namedida em que lhes devo; se atentarmos bem, repararemos que no sou capaz de"pagar", de modo que recebam tudo o que lhes devo, sequer a amabilidade de umgarom ou a lealdade de uma empregada domstica. E assim, nos casos devidos, deve

    novamente entrar no lugar da Justia (impossibilitada de realizar-se) outra coisa: apiedade. A atitude de honra e de respeito (no realizado apenas interiormente) que diz:"Devo-te algo que no posso pagar, e manifesto que estou consciente disso atravsdessas atitudes".

    Quando nos sabemos assim agraciados e endividados diante de Deus e doshomens, no pautamos to facilmente nossa vida pela atitude de reivindicaes quepergunta: "O que me devido?".

    4. A fortaleza: o mais fraco resiste

    Fortaleza, herosmo, vitria: tais conceitos sempre so pensados em bloco.

    Isto pode no estar errado, mas simplifica demais a realidade. J um dos primeirosescritores da Igreja chama a ateno para esse fato: "Vencemos quando nos matam". Equando ouvimos um dos grandes mestres do cristianismo medieval dizer que talvez ossoldados menos fortes - bem entendido, no sentido da terceira virtude cardeal - sejamos melhores soldados, ento a dificuldade do tema se mostra bem surpreendente. E setudo isto no bastar, considere-se ainda a sentena de S. Ambrsio: "A Fortaleza nodeve fiar-se de si mesma". Apresento estas sentenas a ttulo de prefcio para abalarum pouco convices demasiado arraigadas.

    O ncleo daquilo que verdadeiramente est implicado na virtude da Fortaleza exposto pela ironia de Bertold Brecht. Esse autor afirma que desconfiaimediatamente quando ouve dizer que um navio precisa de uma tripulao de heris:

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    nestes casos pergunta-se sempre se no haver algo de errado com esse navio, se noestar meio velho ou podre. Provavelmente, Brecht no imaginava que, quinze sculosantes dele, algum j havia dito quase exatamente o mesmo. Este algum ningummenos do que S. Agostinho que, bem verdade, no fala de um navio mas do mundocomo um todo: com o mundo realmente h algo de errado, j que nele h o mal e omau. E precisamente por isso necessria a Fortaleza. Pelo fato nu e cru de que preciso existir Fortaleza, atesta-se o poder do mal no mundo.

    Em outras palavras: o bem no se impe por si mesmo, como opinam osliberalismos, para que isto ocorra, h necessidade do empenho da pessoa. Empenhar-se pela realizao do bem contra o poder do mal (que s vezes tambm poder ser umsuper-poder), eis a circunscrito de forma bem completa aquilo que perfaz o ato davirtude da Fortaleza. "Empenhar-se": com isto no se indica um agir qualquer, mas umagir pelo qual o agente est disposto a sofrer um prejuzo. Com estouvados saltos deesqui ou perigosas escaladas de montanha (com o que, no h muito tempo, tentou-seexplicar - de modo exaustivamente inadequado - a virtude da Fortaleza na televisoalem) consegue-se perfeitamente no atingir aquilo que decisivo nessa virtude.Com um tal enfoque, por um lado, exige-se demais, se, de fato, a Fortaleza deveintegrar os elementos do "estar-certo" de todo homem (pois como pretender que tais

    proezas sejam realizadas pelo "homem comum"?); por outro lado, pede-se de menos.Em uma palavra: falta seriedade. Na verdade, em geral, o ato de virtude algototalmente sem brilho, como, por exemplo, assumir ser publicamente ridicularizadopor tomar o partido de uma causa justa.

    Mas quem resiste ao poderio do mal como empiricamente mais fraco, talvezarrisque coisas que tocam j mais perigosamente a existncia: a liberdade, a sade e avida. No final das contas, toda a verdadeira Fortaleza baseia-se na disposio para amorte; ou, mais precisamente, na disposio para o testemunho de sangue. Overdadeiro smbolo da Fortaleza o mrtir. Mas a ausncia de brilho permaneceatravs de todos os graus de sua realizao, como uma caracterstica praticamentedistintiva: nada se diz de ousadia, de risco, nem de "empenho herico" (alis, quandodisto se fala, j se trata, quase com certeza, de um sinal de que nem existe a situaoque exigiria autntica Fortaleza).

    precisamente ao extremo teste da virtude, ao prprio martrio, que costumafaltar completamente o brilho do "herico". A ousadia, a disposio de partir para aluta, o esprito vital de ataque do primeiro momento desvaneceram-se, e a dvidatalvez esteja penetrando at prpria conscincia a tal ponto que o sacrificado -quando, digamos, a porta da masmorra se fechou definitivamente atrs dele -, assaltado pela pergunta de se, afinal, no seria ele o idiota. Do mrtir, afinal de contas,se falapost festum; as coroas de flores da venerao s vm depois. Antes, na prpriaconsumao do martrio, nada h seno um prisioneiro, um solitrio, um objeto de risoe, sobretudo, um emudecido. S lhe fica ento a pacincia que, ao longo de toda atradio espiritual, tem sido considerada parte fundamental da Fortaleza. Hildegard

    von Bingen chama pacincia coluna "que por nada se deixa amolecer". E ns, tardenascidos, comeamos a perceber porque os antigos consideravam como a parteessencial da Fortaleza o resistir, e no o atacar.

    5. A Temperana: defender-se da auto-destruio

    Um autor to moderno como James Joyce, cuja obra principal foi chamada -no sem razo - de "missa negra", considerou durante toda a sua vida o ato sexualcomo algo vergonhoso. Um fato inesperado, mas que s surpreende primeira vista.Um significativo contraponto desse fato que, por um lado, nenhum dos grandes

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    telogos catlicos jamais falou to negativamente da sexualidade; como tambm, poroutro lado, afirmaram que justamente por ser o sexo uma fora natural fundamental dohomem, proveniente do ato criador de Deus, uma fora necessria e boa, deve tambmser controlada pelo homem de modo especial. E o sentido da quarta virtude cardeal, daTemperana, precisamente a realizao da ordem interna da pessoa.

    Mas tudo isto ainda est formulado de maneira excessivamente inofensiva:

    ainda nem se manifestou o carter extraordinrio, ou melhor, at mesmo misterioso davirtude da Temperana. Trata-se, na verdade, de que justamente as foras do ser dohomem orientadas por natureza para a autoconservao, aperfeioamento e realizao,so aquelas mesmas foras que podem tambm desnaturar-se para a autodestruio.Todas elas e, talvez, somente elas. A sexualidade apenas uma dessas foras e delaque menos se precisa falar especificamente, na medida em que o cristo entenda que acastidade no visa represso da fora sexual mas a defender-se da autodestruidoraperverso dessa fora. Como tambm, naturalmente, nem o prazer nem a retaafirmao de si parecem condenveis ao cristo. Mas - tema tambm da Temperana -encontrar uma compreensvel fundamentao antropolgico-tica para o jejum e paraa abstinncia, como tambm para a virtude da humildade, j parece mais difcil.

    Pior ainda que provncias inteiras do reino dessa fora fundamental chamada

    Temperana se tornaram quase sem nome no pensamento contemporneo. Comoexpressar, por exemplo, a fora da ira, a capacidade de irar-se, que, nos ensinamentosvitais da grande tradio crist pertence tambm aos impulsos fundamentaisimprescindveis do ser humano, e que foi considerada sua real capacidade deresistncia? Sem a fora para a ira - o que se diz no pensamento cristo o homempermanece passivo e inerte diante das injustias que acontecem no dia-a-dia. Mas, aomesmo tempo, essa mesma fora, se no controlada, pode destruir totalmente aconvivncia - por exemplo, sob as formas, conhecidas por todos, deirreconciliabilidade e amargor, que envenenam o clima de relacionamento com osoutros, sobretudo se espicaadas ideologicamente.

    triste encontrar o reto controle sobre a fora da ira, a virtude crist da

    mansido, equivocadamente confundida com essa plida incapacidade para a ira que,como todos sabem, navega sob essa mesma bandeira. Na verdade, mansido nosentido original significa aquela fora interior (atualmente incapaz de ser denominadapor uma palavra com vida, frescor e vigor) da qual a Escritura diz que por ela que ohomem guarda sua alma (Ecli 10,31).

    O mais surpreendente, entretanto - e algo simplesmente inacreditvel -parece-me ser o fato de que uma determinada fora fundamental do homem - da qualos antigos, com justeza, tratam exaustivamente - seja simplesmente silenciada eomitida no pensamento cristo atual sobre a Temperana. E isto, apesar de essa foradizer respeito, mais do que nunca, precisamente vida dos nossos dias. Refiro-me nsia, concupiscncia de ver. Poder-se-ia, nesse caso, como o fazem os grandesmestres, antes de mais nada, falar do caso geral de concupiscncia do saber; e no pouco o que haveria a para dizer. Naturalmente, ao contrrio dos Antigos, nofalaramos, dentre as formas de perverso do desejo de saber, de magia; mas apergunta sobre se no estamos dispostos a pr em jogo o bem a integridade daHumanidade pela resoluo de um problema cientfico - ou se at j no o estamosfazendo - bem que pode ser atual.

    Mas, permaneamos no desejo de ver com os prprios olhos, em sentidoliteral, que realmente constitui um dos mais fortes impulsos do homem: "Preferimos over a qualquer outra coisa" lemos j no primeiro captulo daMetafsicade Aristteles.Para mostrar at que ponto isso verdade, no nos custaria muitas palavras; como

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    tambm no seria difcil evidenciar que a autonomia da vida intelectual se baseia - emboa medida - justamente em assegurar-se da verdade pelo "ver com os prprios olhos".

    Mas tambm aqui claramente vale o contraponto: que esta fora fundamentalnecessita de maneira especial de controle, porquanto ela pode, como quase nenhumaoutra, degenerar autodestruidoramente. E aqui acontece que, literalmente, nodispomos de nome para a virtude nem para o vcio.

    Pois se encontramos o descontrole do desejo de ver, nos Antigos, sob o nomede "curiosidade" (curiositas), pensamos antes na perdovel fraqueza da vizinha e nono verdadeiro e profundo mal que a "concupiscncia dos olhos", este "ver por ver",pode causar na existncia humana. E, quanto ao vocbulo tradicional para oharmnico controle do querer ver, studiositas, ele simplesmente no significa maisnada.

    Martin Heidegger designou por "curiosidade" (Neugier) aquilo que realmentequeriam dizer os Antigos com curiositas: o que interessa curiosidade no acaptao da realidade, mas a "possibilidade de abandonar-se ao mundo".

    Penso que deveria ser possvel mostrar claramente a um contemporneocrtico da "gerao TV", o perigo - que to profundamente atinge a existncia (e do

    qual estamos aqui tratando): o de perder, no meio do barulho ensurdecedor, tico eacstico, de vazias baboseiras, a capacidade original de captar a realidade. O controledo "desejo de ver", to vital hoje como antigamente, poderia alcanar um valor quasesalvador na medida em que, por uma ascese do conhecimento, conservssemos aquiloque desde sempre perfaz uma existncia humana plena de sentido: ver a realidadecriada por Deus tal como ela , e viver e agir da verdade assim apreendida.

    Recebido para publicao em 02-10-11; aceito em 08-11-11