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PHILOSOPHICA n.° 29, Abril de 2007 ÍNDICE mmm \S EDITORIAL S^.-.-^Z.. 3 ARTIGOS A ESTÉTICA DO INVISÍVEL NA NATUREZA Cristina Beckert 7 KANT E A IDEIA DE UMA POÉTICA DA NATUREZA Leonel Ribeiro dos Santos 19 ORGANISMO E ARTE NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE Clademir Luís Araldi 35 PAISAGEM E COMPLEXIDADE ECOLÓGICA. A NECESSIDADE DAS NARRATIVAS Andreia Saavedra Cardoso 49 A HARMONIOSA PREGNÂNC1A VITAL DA PAISAGEM NATURAL EM GEORG SlMMEL Paulo Frazão Roberto 65 ESTÉTICAS DA PAISAGEM E ARQUITECTURA PAISAGISTA Maria Francisca Machado Lima 87 PAISAGEM - PERSPECTIVA DA ARQUITECTURA PAISAGISTA Manuela Raposo Magalhães 103 O JARDIM DA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN: A POÉTICA DA MATERIALIDADE E DA TEMPORALIDADE Aurora Carapinha 115 ÉTICA AMBIENTAL E RESPONSABILIDADE ANTROPOCÓSMICA Lourenço Zancanaro 125

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  • PHILOSOPHICA n. 29, Abril de 2007

    NDICE f mmm \S

    EDITORIAL S^.-.-^Z.. 3

    ARTIGOS

    A ESTTICA DO INVISVEL NA NATUREZA

    Cristina Beckert 7

    K A N T E A IDEIA DE U M A POTICA D A NATUREZA

    Leonel Ribeiro dos Santos 19

    ORGANISMO E ARTE N A FILOSOFIA DE NIETZSCHE

    Clademir Lus Araldi 35

    PAISAGEM E COMPLEXIDADE ECOLGICA.

    A NECESSIDADE DAS NARRATIVAS

    Andreia Saavedra Cardoso 49

    A HARMONIOSA PREGNNC1A VITAL DA PAISAGEM NATURAL

    E M GEORG SlMMEL

    Paulo Frazo Roberto 65

    ESTTICAS DA PAISAGEM E ARQUITECTURA PAISAGISTA

    Maria Francisca Machado Lima 87

    PAISAGEM - PERSPECTIVA DA ARQUITECTURA PAISAGISTA

    Manuela Raposo Magalhes 103

    O JARDIM DA FUNDAO CALOUSTE GULBENKIAN:

    A POTICA DA MATERIALIDADE E DA TEMPORALIDADE

    Aurora Carapinha 115

    T I C A AMBIENTAL E RESPONSABILIDADE ANTROPOCSMICA

    Loureno Zancanaro 125

  • 2 ndice

    DOCUMENTO

    Francisco PETRARCA, Carta do Monte Ventoso

    (Familiarium rerum libri IV, I) 145

    DISSERTAES

    REPRESENTAES DO UNIVERSO E DESTINO, U M A INTRODUO AO SIS-

    TEMA ESTICO E SUA INSERO NA PROBLEMTICA HELENSTICA

    Maria Gabriela Capucho Baio 155

    O CONCEITO DE JUSTIA POTICA EM M A R T H A NUSSBAUM

    Ana Isabel Gama e Silva 157

    RECENSES

    BERNARD HOUOT, Esta Vida de Professor

    Antnio Joaquim Pinto Ceclio 163

    A. N V O A , D. HAMELINE, Profisso Professor

    Diogo Ferreira Codinha dos Santos 170

    FRDRIC COSSUTTA, Elementos para a leitura dos textos filosficos

    Hitesh Chhaganlal 176

    R M U L O DE CARVALHO, Ser Professor -Antologia de Textos

    de Pedagogia e Didctica

    Pedro Cardim Ribeiro 182

    INFORMAES

    ACTIVIDADES DO CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA 189

    ACTIVIDADES DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE

    DE LISBOA 193

  • EDITORIAL

    Os estudos reunidos no nmero 29 de Philosophica debruam-se sobre um tema - a Esttica da Natureza - cujas origens radicam no pen-samento clssico e na reflexo filosfica que sempre acompanhou o sen-timento de admirao pela beleza do mundo natural. O horizonte questio-nador, os mtodos de abordagem e as vias de resoluo convertem-no porm num problema inteiramente novo que procura responder a interpe-laes assumidas com especial dramatismo nos dias de hoje.

    A novidade das recentes Estticas da Natureza reconhece-se pela conjuno de diferentes perspectivas. Em primeiro lugar, pela subtraco da Esttica hegemonia da filosofia da arte que durante os dois ltimos sculos concentrou o valor esttico nas obras humanas, lanando o belo natural para um grau inferior ao do belo artstico e, nessa medida, desti-tudo do interesse terico dos produtos espirituais. No difcil reconhe-cer nesta subordinao do natural esfera cultural a marca auto-afirmativa do humano e a reivindicao das suas capacidades, posio essa que, inversamente, a conscincia actual denuncia como manifestao de antropocentrismo e procura superar mediante formas de cooperao, e no de rivalidade, entre Homem e Natureza. O pressentimento, para mui-tos a certeza, de que a degradao da natureza em consequncia de erros acumulados do agir humano segue um caminho irreversvel que a afecta na diversidade qualitativa, situa a esttica numa estreita proximidade com a tica, ao valorizar uma esteticidade intrnseca que dever ser preservada tambm como um bem moral.

    Os primeiros sinais de uma nova orientao do pensamento esttico ocorrem nas ltimas dcadas do sculo XX, quando algumas vozes, pro-venientes embora de correntes heterogneas, despertam contra a margina-lizao, ou esquecimento, do belo natural. Na sua Teoria Esttica (1970), Theodor Adorno denuncia os efeitos negativos do pressuposto idealista que associa a beleza ao exerccio da liberdade humana, em cujas obras se rev a si mesma enquanto poder criador, pressuposto esse que acarretaria a instrumentalizao da natureza e o esvaziar do seu sentido. O filsofo italiano Rosario Assunto, profusamente referido neste nmero, publica em 1971 a sua monumental obra paesaggio e Vesttica, uma meditao pacientemente conduzida ao longo de anos que enlaa a experincia directamente vivida dos espaos naturais na dimenso metafsica de um "sentimento vital". Tomada de posio semelhante emerge no contexto cultural americano. Estimulada pelo artigo de Ronald W. Hepburn, "Contemporary Aesthetics and the Neglect of Natural Beauty" (1966), a importncia da requalificao da natureza em termos estticos reivindi-cada pelo movimento da "Environmental Aesthetics", que se forma em

  • 4 Editorial

    torno da tese central dos escritos de Alien Carlson e Arnold Berleant - ao contribuir para a formulao de juzos consistentes, a Esttica est em condies de intervir na defesa e proteco da natureza ameaada.

    Sem obedecer a uma planificao prvia, o presente nmero de Phi-losophica ilustrativo da pluralidade de abordagens que vm confluir sob a designao global de Estticas da Natureza.

    O artigo de Cristina Beckert mostra como a relao entre esttica da natureza e tica da natureza se pode colocar em diferentes termos de hie-rarquia, consoante se faz depender a apreciao dos juzos humanos, con-duzindo ao primado da tica, ou, inversamente, se adopta um ponto de vista holstico em que seria a natureza, na sua totalidade visvel e invisvel, a reclamar a sua prpria apreciao tico-esttica. Torna-se deste modo patente como a esttica da natureza remete para uma ideia tanto quanto possvel independente de categorias humanas e liberta de projeces antropomficas. A solidariedade da filosofia da natureza e da apreciao esttica matria de trs estudos, em cujo pano de fundo se surpreende um trao comum: a superao crtica das concepes mecanicistas que reduzem o natural a uma matria inerte sujeita a um modo de funciona-mento sequencial e previsvel.

    A ntima articulao de esttica e teleologia que sustenta a Crtica do Juzo de Kant interpretada por Leonel Ribeiro dos Santos como via aberta para uma relao harmoniosa, no conflitual, entre o plano subjec-tivo (o sentimento) e o objectivo (as formas naturais). Atravs dos senti-mentos de beleza e sublimidade, de favor e de respeito, mas igualmente da noo de "tcnica" da natureza, ou ainda das constantes analogias entre natureza e arte, a terceira Crtica lida luz da conscincia ecol-gica contempornea. O deslocamento do paradigma mecnico para o paradigma orgnico est bem presente na filosofia da arte de Nietzsche, se bem que com diferentes matizes. Como Ciademir Lus Araldi sustenta, a funo da arte como expresso da vontade de poder implica um organi-cismo no decalcado do modelo racional da finalidade consciente, mas perpassado, ao invs, pela dimenso do inconsciente e da luta de foras que concorrem pela afirmao e intensificao do seu poder. A organiza-o interna dos sistemas vivos tambm objecto de discusso por parte de diferentes reas cientficas, particularmente da biologia. Andreia Saa-vedra Cardoso percorre esse caminho da cincia que abandona a causali-dade linear e simples, prpria do mecanicismo clssico, para adoptar modelos que acolhem a imprevisibilidade, a instabilidade e a desconti-nuidade na dinmica dos sistemas complexos, auto-finalizados e perme-veis ao meio.

    A categoria de "paisagem" frequentemente escolhida para acentuar uma realidade integradora de elementos naturais, evitando o extremo de uma natureza como totalidade inacessvel ou, no outro extremo, a singu-

  • Editorial 5

    laridade de formas isoladas e destacadas dos contextos em que natural-mente habitam. O ensaio pioneiro de Georg Simmel, "Filosofa da Paisa-gem", de 1913, exaustivamente analisado por Paulo Frazo Roberto na polaridade entre a viso trgica do homem moderno, j separado da natu-reza, e a apropriao do movimento vital como experiencia esttica. A fecundidade da reflexo iniciada por Simmel, se bem que sujeita a crti-cas dada a parcialidade da perspectiva ptico-visual que a enforma, est presente no estudo de Maria Francisca Machado Lima, que, defendendo a validade do conceito de paisagem, acompanha a reviso e ampliao das suas componentes, levando-nos a compreend-la como "identidade est-tica do lugar". Por sua vez, Manuela Raposo Magalhes traa, em parale-lo com a gnese da Arquitectura Paisagista em Portugal, o quadro terico e a evoluo dos parmetros de urna semitica da paisagem na diversida-de das vertentes ecolgica, cultural e simblica.

    Se a paisagem natural, no entendimento generalizado dos seus teri-cos, no incompatvel com a presena e a interveno humanas, o Jar-dim, enquanto modelao de espaos naturais, o fruto, por excelncia, dessa colaborao entre arte e natureza. No Jardim da Gulbenkian, Auro-ra Carapinha descortina a materializao de princpios estticos que con-densam a essncia do jardim portugus.

    A dimenso tica que perpassa com maior ou menor nfase pela esttica da natureza aproxima-nos de uma tica que ultrapassa o mbito da esfera intrapessoal e se estende tica ambiental. Loureno Zancanaro aborda o sentido de um futuro comum, ao humano e terra, no quadro dos pressupostos de uma tica da responsabilidade de inspirao jonasia-na, que exige menos "poder" e mais "dever".

    A seco Documento publica a traduo, por Paula Oliveira e Silva, da Carta do Monte Ventoso de Francesco Petrarca, um dos primeiros textos a registar, segundo a opinio de muitos intrpretes, o relato de uma viagem de explorao e contemplao de um lugar natural determinado.

    O nmero 29 de Philosophica integra ainda as habituais seces: Recenses, Sinopses de dissertaes defendidas no Departamento de Filosofa e Informao das actividades do Centro de Filosofia e do Depar-tamento de Filosofia.

    Como nota final, registamos com muito agrado a colaborao da Filosofia e da Arquitectura Paisagista, bem expressa neste nmero. Os textos de Aurora Carapinha, Andreia Saavedra Cardoso, Leonel Ribeiro dos Santos, Manuela Raposo Magalhes e Maria Francisca Machado Lima retomam contributos apresentados no seminrio interdisciplinar "A paisagem em perspectivas. Teoria, experincia, interveno" promovido pelo Departamento de Filosofia em Maio de 2006.

    Adriana Verssimo Serro

  • ARTIGOS

    A ESTTICA D O INVISVEL NA N A T U R E Z A

    Cristina Beckert Universidade de Lisboa

    No nossa inteno, neste texto, reflectir sobre o belo natural nem teorizar acerca da esttica da paisagem, mas to-s mostrar como a natu-reza pode servir de ncleo aglutinador da difcil relao entre tica e est-tica ou, dito de outro modo, at que ponto urna tica e urna esttica da natureza se implicam mutuamente, mediante a atribuio de um valor intrnseco a esta ltima. Questes como a da subordinao hierrquica da esttica tica ou vice-versa impor-se-o necessariamente, bem como a do cariz subjectivo ou objectivo dos valores tico-estticos, encontrando estas interrogaes respostas diversificadas nas diferentes abordagens axiolgicas da natureza, conforme partem de um ponto de vista mais antropocentrado ou mais holista. Assim, comearemos por dar conta das perspectivas que subordinam claramente a apreciao esttica da natureza dimenso tica polarizada no ser humano, fazendo depender deste a emisso de juzos respeitantes ao belo ou ao sublime da natureza, para, num segundo momento, intentarmos uma interpretao mais englobante, onde a sede do juzo reside, tendencialmente, na prpria natureza e os valores estticos e ticos so indissociveis, tal como defendido por algumas correntes mais ecocentradas da tica e da Esttica Ambientais.

    I

    A questo do valor intrnseco da natureza, independentemente de ser adjectivado como tico ou esttico, tomou-se de grande premncia, num mundo onde j nada, e muito em particular a natureza, tem valor em si

    Philosophica, 29, Lisboa, 2007, pp. 7-17

  • 8 Cristina Beckert

    mesmo, mas apenas como meio ou instrumento para qualquer outra coisa, nomeadamente, a satisfao dos mais diversos desejos e interesses do ser humano. Ora, justamente na discusso em torno do valor instrumental e do valor intrnseco que se encontra o ncleo, quer da esttica quer da tica, nomeadamente, no que toca ao estatuto da obra de arte e aco moral. Com efeito, desde os sculos XVII-XIX, comummente aceite a definio da obra de arte em termos do seu valor em si mesma, indepen-dentemente do contexto em que est inserida e da utilidade que possa ter, de tal modo que qualquer objecto adquire valor esttico quando retirado das coordenadas espcio-temporais que o enquadram e da funo prtica que habitualmente lhe conferida1. Por seu turno, numa concepo deon-tolgica da tica como a kantiana, tambm a aco vale por si prpria, contendo uma dimenso normativa que a eleva acima da sua utilidade meramente pragmtica. O problema com que nos confrontamos consiste em saber at que ponto a natureza partilha deste estatuto de autonomia conferido tanto obra de arte como aco tica, uma vez que estas so produtos directos da actividade humana, ao passo que quela falta qual-quer forma de intencionalidade tica ou esttica.

    Uma das acusaes mais comuns, dirigidas a quem pretende atribuir valor intrnseco natureza, a de antropomorfismo, isto , tratar-se-ia de uma mera projeco de valores, sentimentos e categorias humanas na natu-reza. Uma resposta possvel a esta acusao intentar um compromisso entre um subjectivismo axiolgico radical que desprovem a natureza de qualquer autonomia e valor intrnseco, e um objectivismo no menos radi-cal que, levado ao extremo, se transforma, paradoxalmente, naquilo mesmo que pretende pr em causa, a saber, a atitude antropomrfica.

    Esta postura, de origem kantiana, tem a sua expresso mais acabada na proposta defendida por Luc Ferry na obra La nouvelle ordre cologi-que e est consubstanciada na interpretao dada pelo autor afirmao de que a natureza imita a arte, a qual no conteria nada de antropomrfi-co, mas constituiria apenas a simbiose entre os valores estticos humanos e a natureza como ocasio de estes se manifestarem:

    "Tudo se passa como se a natureza [...] tendesse em certas circuns-tncias a tornar-se humana, como se ela se conformasse por si prpria com ideias s quais atribumos um valor quando se manifestam na humanidade. [...] E que realmente a prpria natureza que aponta para ideias que nos so caras, e no ns que as projectamos nela [...]. Da a sensao de que a natureza possui realmente esse valor intrnseco no qual se apoiam os

    A origem desta tendncia da arte contempornea, o readymade, remonta a 1917, quando Mareei Duchamp exibe pela primeira vez a sua obra "A fonte", constituda por um urinol.

  • A esttica do invisvel na natureza 9

    deep ecologists para legitimarem o seu anti-humanismo. Mas, por outro lado, e nisso que eles falham, so as ideias evocadas pela natureza que lhe do todo o seu valor. Sem elas, no atribuiramos o menor valor ao mundo objectivo. [...] Deve-se, assim, fazer justia ao sentimento de que a natureza no desprovida de valor, que temos deveres para com ela, sem que seja, no entanto, sujeito de direito."2

    H que realar trs ideias fundamentais nesta passagem que, a nosso ver, exprime exemplarmente as teses de Luc Ferry:

    1. A assuno de uma posio mediadora entre dois extremos, denunciados como antropomorfismo, por um lado, e anti-humanismo, atribudo ecologia profunda, por outro; 2. A negao explcita de qual-quer valor natureza; 3. A atribuio de deveres humanos para com a natureza e a negao a esta dos respectivos direitos.

    Exemplifiquemos a primeira postura indo sua origem, ou seja, a Kant, atravs da anlise da ideia esttica de sublime que, de algum modo, perpassa as diversas teorias que conferem valor esttico-tico natureza. Como sabido, nominalmente definido como o absolutamente grande3, o sublime representa, para Kant, a desproporo criada entre a razo como faculdade do infinito e a imaginao que, pela sua finitude, no tem poder para criar uma imagem sensvel correspondente. Assim sendo, aplicado natureza, o sublime s pode corresponder a um fenmeno natural cuja intuio seja capaz de, pela sua grandeza (esttica e no matemtica), suscitar a ideia da sua infmitude. Este sentimento de grandeza , por sua vez, descrito em termos de um poder sem fora, de tal modo que "a natu-reza, considerada no juzo esttico como poder que no possui nenhuma fora sobre ns, dinamicamente sublime"*. Ora, atendendo s definies

    2 "[...] Tout se passe comme si Ia nature [...] tendait en certaines circnstances se faire humaine, crame si elle s'accordait d'elle-mme avec des ides auxquelles nous atta-chons un prix lorsqu'elles se manifestent dans l'humanit. [...] Car c'est bien la nature elle-mme qui fait signe vers les ides qui nous sont cheres, et non pas nous qui les pro-jetons en elle. [...] De ta le sentiment que la nature possde bien cette fameuse vaJeur intrinsque sur laquelle s'appuient les deep ecologistes pour legitimer leur antihuma-nisme. Mais d'un autre ct, et c'est l ce qu'ils manquent, ce sont les ides voques par la nature qui lui donnent tout son prix. Sans elles, nous n'accorderions pas la moin-dre vateur au monde objectif [...] I I faut ainsi faire justice au sentiment que la nature n'est pas de nulle valeur, que nous avons de devoirs envers elle qui n'est pas, pourtant, sujet de droit." (L. Ferry, Le nouvel ordre cologique. L'arbre, l'animal et l'homme, Paris, Grasset & Fasquelle, 1992, pp. 208-209).

    3 "Erhaben nennen wir das, was schlechthin gross ist. [...] Das letztere ist das, was ber alle Vergleichung gross ist." (Kant, KU, 25). Para o comentario de Luc Ferry ao sublime matemtico kantiano, cf. Homo Aestheticus, Paris, Grasset & Fasquelle, 1990, pp. 141-151.

    4 "Die Natur, im sthetischen Urteile als Macht, die ber uns keine Gewalt hat, betrachtet, ist dynamisch-erhaben" (Kant, KU, 28).

  • 10 Cristina Heckert

    kantianas de poder e de fora, segundo as quais o primeiro representa a faculdade de ultrapassar obstculos e, a segunda, essa mesma faculdade quando confrontada com um poder que lhe oponha resistncia, o sublime na natureza significa um poder que no se traduz em fora porque no entra directamente em confronto com o nosso prprio poder (se fosse fora, aquele que contempla o fenmeno natural sentiria apenas temor e nenhum sentimento esttico).

    A contemplao de uma tempestade, a partir de um ponto seguro, exemplo expressivo desta dinmica do sublime5. Na verdade, ela suscita, no observador, sentimentos contraditrios: por um lado, a conscincia da sua fmitude, em face do poder imenso da natureza, mas, por outro, dada a distanciao do palco onde se desenrola o espectculo natural e no temendo pela vida nem pela sua segurana, o espectador pode livremente participar da grandeza do prprio espectculo. Toda a diferena reside, pois, no lugar ocupado pelo observador que condiciona integralmente a sua experincia: uma coisa estar no meio da tempestade (ser objecto da fora da natureza), outra estar num lugar seguro a contempl-la (ser um sujeito que abarca o todo do espectculo natural e participa do seu poder).

    A distino entre fora e poder, inerente experincia do sublime, retrata, a nosso ver, essa outra, entre o visvel e o invisvel. Com efeito, a fora est visivelmente presente nas imagens de destruio que o impacto das ondas ou das rajadas de vento, durante uma tempestade, pode ter sobre as construes e as vidas humanas, mas o poder que por detrs destas manifestaes de fora se esconde, esse no pode ser dado em cada expresso concreta de fora, antes aponta para algo de mais grandioso e de oculto que ultrapassa infinitamente a determinao imagtica da fora. Exemplo marcante desta relao entre a visibilidade da fora e a invisibi-lidade do poder o quadro de Turner, "Tempestade de neve", de 1842, onde a fora que se abate sobre um navio a vapor como que suspensa e integrada num turbilho informe que gira em torno do centro da tela, representando o poder da natureza no seu todo, muito mais vasto e radical do que uma representao fiel da cena jamais poderia ter traduzido6.

    No entanto, e passamos a integrar, na nossa anlise, o segundo aspecto fulcral do texto de Ferry em apreo, a natureza no tem, em si, qualquer valor esttico, uma vez que "a sublimidade no est contida em nenhuma coisa da natureza, mas s no nosso nimo, na medida em que podemos ser conscientes de ser superiores natureza em ns e atravs

    5 Cf. Ibidem. 6 Turner teria passado pela dupla experincia de presenciar "de dentro" a tempestade e de

    transform-la num fenmeno esttico sublime, reagindo s crticas que apelidavam o quadro de "espuma de sabo c gua de cal", com um "Haviam de l ter estado!". Cf. E. Shanes, Turner, trad. Isabel Santos, Estampa/Crculo de Leitores, Lisboa, 1995, p. 124.

  • A esttica do invisvel na natureza 11

    disso tambm natureza que nos exterior (na medida em que exerce influencia sobre ns) [ . . . ] " 7 . Como se pode concluir das palavras de Kant, o sublime no pertence natureza, mas a ns, e, precisamente, quela parte de ns que est para alm da prpria natureza (em ns e fora de ns), a saber, a razo como faculdade do infinito, mas, sobretudo, como legisladora universal. Assim sendo, o sentimento do sublime no constitui verdadeiramente, um "fim em si mesmo", mas desempenha uma funo moral, a de elevar o homem acima das inclinaes sensveis, ao seu ver-dadeiro destino racional, constituindo o efectivo poder, no tanto o da natureza, mas o da prpria razo quando nega as determinaes sensveis da vontade e se auto-determina, tendo como motivao exclusiva a pr-pria lei moral. Da mesma forma que a natureza surge enquanto anologon da razo, tambm o sublime um anologon do respeito moral como representante da tenso entre a finitude da natureza humana, protagoniza-da pelas inclinaes sensveis, e a infinitude da razo, consubstanciada na lei moral8.

    Finalmente, a afirmao avanada por Ferry de que a natureza no sujeito de direitos, mas objecto de deveres, por parte do ser humano, , tambm ela, kantiana e remete para a noo de deveres indirectos9. Na verdade, se a natureza no possui valor em si mesma, mas apenas suscita no homem a actividade avaliativa e judicativa, s poder auferir do esta-tuto de mediadora, como causa ocasional para a elevao moral do pr-prio homem, mas nunca como objecto directo dos seus deveres. Para tal, seria necessrio que possusse direitos, os quais assentam, fundamental-mente, na ideia da liberdade, ou seja, na livre iniciativa de entrar num contrato entre iguais e no reconhecimento da reciprocidade entre direitos e deveres por todos os contratantes.

    A crtica que Luc Ferry dirige ecologia profunda baseia-se nesta hipostasiao da natureza como sujeito de direitos, qual o homem se dever submeter incondicionalmente, em detrimento da liberdade como movimento de transcendncia que separa e emancipa o homem da nature-za, assinalando a sada deste da menoridade e a entrada na idade adulta. A

    7 "Also ist die Erhabenheit in keinem Dinge der Natur, sondem nur in unserm Gemte enthalten, sofern wir der Natur in uns, und dadurch auch der Natur (sofern sie auf uns einfliesst) ausser uns, berlegen zu sein uns bewusst werden knnen." (Kant, KU, 28).

    8 "Das intellektuelle, an sich selbst zweckmssige (das Moralisch) Gute, sthetisch beur-teilt, nicht sowhol schn, als vielmehr erhaben vorgestellt werden msse, so dass es mehr das Gefhl der Achtung (welches den Reiz verschmht), als der Liebe und vertrau-lichen Zuneigung erwecke; weil die menschliche Natur nicht so von selbst, sondern nur durch Gewalt, welche die Vernunft der Sinnlichkeit antut, zu jenem Guten zusammen-stimmt." (Kant, KU, A 120).

    9 Para a distino kantiana entre deveres directos e indirectos, cf. Kant, Die Metaphysik der Sitten. Metaphysische Anfangsgrnde der Tugendlehre, 17.

  • 12 Cristina Beckert

    tentativa de manter o homem nesse estatuto de menoridade , assim, clas-sificada como dogmtica e politicamente totalitaria, na medida em que ignoraria as conquistas da razo levadas a cabo pelas Luzes, preconizan-do um retorno ao romantismo acrtico e mistificador10.

    Deste modo, perante a evidncia de que "j no habitamos um mun-do a priori comum"1 1, Luc Ferry pretende um compromisso entre urna tica e urna esttica clssicas - ambas dominadas pela ideia de excelencia e por urna forte estruturao do mundo e da obra de arte, em funo do elo entre o modelo e a cpia - e o Weltlosigkeit do ps-modernismo, onde impera o individualismo exacerbado, presente quer na tica da autentici-dade quer no eclectismo esttico. Para tal, a construo de um espao comum, fundado no sensus communis kantiano, permitiria, por seu turno, superar a rigidez do apriorismo moral e a contingncia de um acordo meramente emprico, de onde emergida o juzo de gosto como sanciona-dor da obra de arte e o mrito como critrio tico determinante numa sociedade democrtica 1 2. Nesta proposta, o valor esttico da natureza encontra-se ainda subordinado a um acordo intersubjectivo que, embora exprima aquilo que mais genuinamente caracteriza o homem, ainda est dependente de algo mais elevado do que o prprio homem, a saber, a pura racionalidade (moral). Porm, preciso no esquecer que, na medida em que a experincia kantiana do sublime vinca o confronto entre a finitude humana e a grandeza da natureza, constitui o primeiro passo para o reco-nhecimento do valor intrnseco daquela e da dependncia em que dela se encontra o ser humano,

    1 0 Para a crtica de Ferry ecologia profunda como nostlgica do romantismo e refract-ria s conquistas da modernidade, cf. La nouvelle ordre cologique, pp. 29-34.

    1 1 "Les idologies du dclin traduisent mal une observation juste: nous n'habitons plus un monde a priori commun. [...] La cohesion doit dsormais rsider dans 1'interindividualit (pour ne pas dire 1'intersiibjectivit), non plus dans la transcendance d'une raht cosmique qui choirait en partage Fhumanit." (L. Ferry, Homo Aesthe-ticus, p. 343).

    1 2 " [ . . . ] On assiste aujourd'hui, si je ne me trompe, un retour du prncipe d'exccllence au sein de 1'univers democratique, tandis que le prncipe mritocratqnc n'a, de son ct, vraiment cess d'agir. De plus en plus, en effet, 1'authenticit tend n'etre valori-se que lorsqu'elle s'accompagne soil du courage de la verlu, soit d'une puissance de seduction, done, lorsqu 'elle est 1'authenticit d'une richesse intrieure dont la manifes-tation suscite Vassentiment ou I'admiralion d'autrui." (L. Ferry, Homo Aesihelicus, p. 362).

  • A esttica do invisvel na natureza 13

    TT

    Se, na perspectiva anterior, a natureza bela e boa porque a julga-mos tal, naquela que desenvolveremos em seguida, julgamo-la bela e boa porque ela o , de facto. Encontramo-nos, assim, em face de uma concep-o objectiva dos valores inerentes natureza que o ser humano sim-plesmente apreende quando a contempla e que fundam uma tica cujo lema fundamental se traduz no imperativo do respeito e preservao da integridade natural. Esta forma holista de encarar a natureza, onde o todo precede em valor as partes, e estas a ele esto subordinadas, foi defendi-da, pela primeira vez em 1948, por Aldo Leopold, em A Sand County Almanac, e s pode ter como consequncia o primado do esttico sobre o tico, bem patente na sobejamente citada definio de bem e mal: "uma coisa est certa quando tende a preservar a integridade, estabilidade e beleza da comunidade bitica. errada quando produz o contrrio." 1 3

    Esta definio levanta, no entanto, uma dificuldade dificilmente super-vel, pois, enquanto a integridade e a estabilidade so objectivamente observveis e susceptveis de aferio cientfica, a beleza no . Basta, para o comprovar, ter em conta a distncia abissal que separa a teoria ondulatria da cor e a sensao de cor, experimentada quando contem-plamos, por exemplo, uma tela de Van Gogh. Porm, justamente o franquear deste abismo que nos proposto, com a afirmao de que os critrios estticos esto assentes nos cientficos, os quais lhes conferem uma outra dimenso, a da invisibilidade.

    Por surpreendente e paradoxal que possa parecer, uma esttica do invisvel representa o culminar de um processo que se tem vindo a desen-volver desde o sc. X V I I I at aos nossos dias. Com efeito, depois da visi-bilidade geomtrica dos jardins setecentistas, como o de Versailles, e da visibilidade pictrica do romantismo, em que a natureza surge enquadra-da em cenas mais buclicas, da ordem do belo, ou mais grandiosas, da ordem do sublime kantianos, a arte contempornea passou a valorizar esteticamente o feio, o grotesco e mesmo o repulsivo14. O que Leoplod prope uma esttica da natureza que ultrapasse a imediatez do visvel, na sua fealdade e repulsa, em prol do que no imediatamente patente, mas que sabemos estar presente pelos dados cientficos disponveis (geo-

    1 3 "A thing is right when it tends to preserve the integrity, stability, and beauty of the biotic community. It is wrong when it tends otherwise." (A. Leopold, A Sand County Almanac, Oxford et at, Oxford University Press, pp. 224-225).

    1 4 O culto do horrvel e do grotesco bem exemplificado pela pintura de Francis Bacon e, mais recentemente, pelas obras de Gina Pane, Serrano e Hermann Nitsch que utilizam a auto-mutilao como forma de produzir efeitos estticos.

  • 14 Cristina Heckert

    lgicos, biolgicos, ecolgicos, paleontolgicos, etc.). Deste modo, a contemplao de um pantano, por exemplo, aparentemente desprovido de vida e desagradvel aos sentidos, pela consistencia viscose e o odor fti-do, esconde um ecossistema rico e variado, onde abundam seres vivos que, embora no imediatamente visveis, contribuem para a integridade, estabilidade e, neste caso, tambm para a beleza daquela comunidade bitica 1 5.

    Esta tese reforada por Holmes Rolston I I I , ao enfatizar a necessi-dade de uma viso holista da natureza, mediante a qual seja possvel dis-tinguir entre a beleza do todo e a das partes. Na verdade, enquanto a con-templao de uma parte ou de um indivduo pode, por si s, constituir um espectculo destitudo de qualquer beleza visvel, como acontece com a carcaa abandonada de um animal, em que ressalta a desfigurao do corpo, o odor nauseabundo, o sangue, a mirade de insectos que dele se apropriam, j a reconstituio da funo que a carcaa desempenha no todo, a saber, o facto de ter servido de alimento para os predadores, de ir entrar na composio do solo e enriquec-lo, dando origem a novos insectos que, por sua vez, iro alimentar aves etc, confere-lhe valor tico e esttico, na medida em que permite e refora o equilbrio do ecossiste-ma em que se integra. Ora, a capacidade de reconstituir o todo invisvel a partir das partes visveis, constitui o novo sentido da beleza, onde a inte-leco substitui a viso:

    "A beleza natural pode ser dispendiosa e trgica, no entanto, a nature-za constitui uma cena de beleza que continuamente se restabelece em face da destruio. Quando os diversos aspectos da paisagem so inte-grados num ecossistema evolutivo dinmico, as partes feias no empobrecem o todo, antes o enriquecem. A fealdade contida, supe-rada e integrada numa beleza positiva e complexa. Porm, depois de se ter atingido uma compreenso ecolgica bem dirigida, isto no tanto visto, mas mais experienciado. No tanto uma questo de viso (sight) como de inteleco (insighi) no drama da vida. Em muitas das mais ricas experincias estticas da natureza, no h nada para pr numa tela, nada para fotografar."16

    1 5 Paradigma desta attitude a clebre frase de John Muir: "None of Nature's landscapes are ugly so long as they are wild," {Our Natural Parks, 1901 in The Great New Wil-derness Debate, Athens (Georgia), 1998, p. 50).

    1 6 "Nature's beauty can be costly and tragic, yet nature is a scene of beauty ever reasserting itself in the face of destruction. When the various items in the landscape are integrated into a dynamic evolutionary ecosystem, the ugly parts do not subtract from but rather en-rich the whole. The ugliness is contained, overcome, and integrates into positive, complex beauty. Yet this is not so much viewed as experienced after one reaches ecologically tu-tored understanding. It is not so much a matter of sight as of insight into the drama of life.

  • A esttica do invisvel na natureza 15

    Trata-se, em ltima instncia, da reduo do belo ao sublime, da harmonia grandeza do todo que de modo algum se resume soma das partes, antes a ultrapassa infinitamente17. Mas esta inteleco do sublime na natureza que, em si mesmo, no da ordem do visvel, s seria poss-vel mediante a superao da dicotomia entre facto e valor, instaurada na tradio filosfica ocidental, a partir do sc. XVIII , com David Hume e que est presente na concepo kantiana do sublime, ao torn-lo um ana-logon da lei moral. Ao invs, o que nos proposto que procuremos surpreender a emergncia simultnea dos factos cientficos e dos valores tico-estticos, ou seja, a descrio cientfica da natureza em termos de "unidade, harmonia, interdependncia, estabilidade" e a avaliao tica e esttica da mesma, como boa e sublime, seriam indissociveis, num objectivismo axiolgico em que o objectivo e o subjectivo se tocam, mas cuja unidade provm do valor intrnseco da prpria natureza18. Haveria, assim, que fazer a distino entre dois tipos de qualidades estticas: as capacidades estticas, apenas presentes no sujeito que experiencia, e as propriedades estticas, pertencentes objectivamente natureza, dado que "em certo sentido, a natureza sistmica at tem um poder esttico, visto que capaz de produzir propriedades estticas, embora no tenha - at a produzir no ser humano - a capacidade para experincias estticas. Quan-do os humanos avaliam esteticamente a natureza selvagem, esto, por vezes, mais a avaliar uma natureza projectiva por eles descoberta, do que a projectar os seus valores na natureza."19. a natureza que projecta valo-res e no o homem, ela a arquitecta, limitando-se aquele a contemplar e a imitar as obras por ela produzidas.

    O pressuposto holista de onde parte esta concepo bem claro: se o homem produto da natureza e dotado de experincia esttica, ento a natureza tem o poder de criar qualidades estticas e, poderamos mesmo

    In many of life's richest aesthetic experiences there is nothing to put on canvas, nothing to take snapshots of." (H. Rolston III, Environmental Ethics. Duties to and Values in the Natural World, Philadelphia, Temple University Press, 1988, p. 241).

    Cf Ibidem, p. 244. 1 8 Exemplo desta dependncia da avaliao humana do valor intrnseco natureza seria o

    modo como o fogo foi encarado ao longo dos tempos. Com efeito, a apreciao esttica e tica do fogo variou com o conhecimento dos benefcios que este pode trazer em ter-mos da possibilidade de renovao da vida, passando a ser visto, no apenas como algo terrvel, mas como um factor benfico para o equilbrio e revitalizao da natureza.

    1 9 "In a sense, a systemic nature even has an aesthetic power, since it is able to produce aesthetic properties, even though nature does not have - till it produces it in humans -the capacity for aesthetic experience. When humans arrive and value wild nature, we are sometimes valuing a projective nature that we are discovering, more than we are projecting our values onto nature. Nature carries aesthetic properties objectively, and these are ignited in the subjective experience of the arriving beholder." (H. Rolston III, Environmental Ethics, pp. 234-235).

  • 16 Cristina Heckert

    afirmar, de experienci-las, no e atravs do homem, fazendo deste, ins-trumento da sua prpria realizao. Perguntar-se- que natureza esta e a resposta inequvoca: a natureza selvagem, prstina, livre da interveno humana, mas que, simultaneamente, daria forma conscincia e at linguagem, refutando a ideia que esta impe ordem onde reina o caos e a desordem. Com efeito, se '"selvagem' alude a um processo de auto--organizao que gera sistemas e organismos [e se] os produtos da mente humana, no que tm de mais rico, reflectem esta auto-organizao selva-gem, ento, a linguagem no impe ordem num universo catico, mas reflecte a sua natureza selvagem", a qual "nos permite ter uma pequena janela para um mundo independente, mas [que] tambm configura [...] o modo como vemos esse mundo"20.

    Esta identificao entre natureza selvagem e auto-organizao pade-ce, no entanto, de uma contradio lgica que vicia a argumentao. De facto, afirmar que aquela independente do homem, mas que simulta-neamente determina a viso que este tem do mundo, significa, em ltima instncia, que todas as mundividncias humanas tm o seu fundamento numa natureza autnoma e auto-criadora, o que legitima uma de duas hipteses: ou a destruio da natureza selvagem a que assistimos tem origem nessa mesma natureza, como que num acto suicida, o que seria auto-contraditrio, ou o homem tem autonomia suficiente para decidir se quer a sua destruio ou preservao. Neste ltimo caso, ao decidir pela preservao da natureza selvagem, est a faz-lo a partir de uma configu-rao mundana cultural e no apenas natural, mesmo que se afirme como negadora de toda a interveno da cultura na natureza, na medida em que a abstraco da cultura ainda um produto cultural. Assim sendo, o valor tico-esttico da natureza no estar exclusivamente nela nem no sujeito que a contempla e sobre ela age, mas como que "a meio caminho", isto , as propriedades naturais do poder criador e auto-organizador daquela esto nela, so-lhe intrnsecos, mas o acto avaliativo da sua beleza e bon-dade no mero reflexo de tais propriedades estticas, mas da respon-sabilidade humana, dependendo deste a escolha entre respeit-la e imit-la ou instrumentaliz-la e extingui-la.

    20 "'Wild' alludes to a process of self-organization that generates systems and organisms, all of which are within the constraints of - and constitute components of - larger sys-tems that again are wild [. . .] . As reflected in consciousness, it can be seen as a kind of open awareness - full of imagination but also the source of alert survival intelligence. The workings of the human mind at its very richest reflect the self-organization wild-ness. So language does not impose order on a chaotic universe, but reflects its own wilderness back. In doing so it goes two ways: it enables us to have a small window onto an independently existing world, but it also shapes via its very structure and vo-cabularies - how we see that world." {G. Snyder, A Place in Space: Ethics, Aesthetics, and Watersheds, New York, Counterpoint, 1995, p. 174).

  • A esttica do invisvel na natureza 17

    Porventura, a atitude mais sbia consistir em encontrar um meio termo entre a projeco antropocntrica dos valores na natureza e a anu-lao do homem perante ela, atitude essa de que uma outra sabedoria - a do budismo Zen - nos d exemplo na forma como respeita a essncia de todas as coisas, inclusive a humana:

    "A essncia do Zen a simplicidade, a no-resistncia, a no-interven-o e a percepo. ateno para com a natureza essencial de todas as coisas e ser e agir em harmonia com isso. Pois faz parte da natureza da vida da planta criar razes e crescer. Faz parte da natureza da rocha e da pedra reter a gua e os solos. Faz parte da natureza essencial do homem pensar, planificar, aprender, fazer escolhas, criar e organizar. Acontece que, por vezes, levamos demasiado longe esta parte da nossa natureza essencial, esquecendo-nos de permanecer em harmonia com todas as outras essncias naturais que nos cercam, mas igualmente destrutivo negligenciar a nossa prpria natureza essencial e o contri-buto positivo que pode trazer para tudo o resto."21

    ABSTRACT

    THE AESTHETICS OF THE INVISIBLE IN NATURE

    This paper aims at showing the interdependence between aesthetic and ethic values in appreciating nature. The Kantian concept of sublime guides us in the first part, exhibiting the primacy of ethics over aesthetics, as the sublime reveals itself to be an analogon of the moral law and the respect due to it.

    The second part, based on the holistic tendency in Environmental Ethics hold by Holmes Rolston III and others, analyses how the relation is inverted by means of an aesthetic of the invisible, where the sublime in nature refers to the whole and is hidden under the apparent ugliness of the parts.

    2 1 "The essence of Zen is simplicity, nonresistance, nonintervention, and awareness. It is mindfulness of everything's essential nature and being and acting in harmony with that. It is part of the essential nature of plant life to take root and grow. It is part of the es-sential nature of rock and stone to hold back water and soil runoff. It is part of the es-sential nature of humans to think, plan, learn, chose, design, and organize. Some times we carry this part of our essential nature too far, forgetting to be in harmony with all the other essential natures around us, but it's equally destructive to neglect our own es-sential nature and the positive contribution it can make to everything else." {V. Ray, Zen Gardening, New York, Berkley Books, 1994, pp. 7-8).

  • K A N T E A IDEIA DE UMA POTICA DA NATUREZA*

    Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa

    1. No Apndice sua obra principal, Die Welt als Wille und Vorstel-lung (1818), Schopenhauer faz uma apreciao crtica das mais importantes obras filosficas de Kant e dedica a tambm algumas pginas Crtica do Juzo, obra onde Kant aborda os problemas estticos e os problemas da natureza orgnica, por conseguinte, a esttica e a teleologa. Referin-do-se ideia que Kant teve de unir na sua terceira Crtica, sob um mesmo princpio filosfico, essas duas realidades que sempre haviam sido trata-das separadamente pelos filsofos, o filsofo de Danzig diz tratar-se de uma unio barroca (barocke Vereinigung) de dois domnios heterog-neos, no que v mais uma prova da irresistvel tendncia de Kant para forar a realidade a entrar nas suas simetrias arquitectnicas.1 O autor das trs Crticas podia assim ver por fim todos os princpios da sua filosofia reconduzidos s trs faculdades fundamentais do esprito - o entendimen-to, a razo e o juzo reflexionante - , cabendo a esta ltima dar conta no s da apreciao esttica da arte e da natureza como tambm da conside-rao teleolgica da natureza, mediante o seu princpio de finalidade (Zweckmssigkeit).

    *Este ensaio a verso portuguesa da comunicao apresentada (sob o ttulo Da expe-rincia esttico-teleolgica da natureza conscincia ecolgica. Uma leitura da Crtica do Juzo de Kant) no X. Congresso Internacional Kant (X. Internationaler Kant--Kongress) de So Paulo, 4-9 de Setembro de 2005. A respectiva verso alem foi enviada para publicao nas Actas do Congresso, a cargo da Editora Walter de Gruyter, Berlin/ New York (com sada prevista para o corrente ano de 2007). Uma verso muito ampliada do mesmo, sob aquele mesmo ttulo, foi publicada na revista da Faculdade de Filosofia e Cincias da Universidade Estadual Paulista - UNESP, Marlia (SP) -Trans/form/ao, n 29 (1), 2006, pp. 7-29 (tambm em suporte electrnico; http://www.scielo.br/trans).

    1 A. Schopenhauer, Die Weit ah Wille und Vorslellung, Anhang: Kritik der kantischen Phdosophie, Digenes, Zrich, 1977, p. 647.

    Philosophica, 29, Lisboa, 2007, pp. 19-34

  • 20 Leonel Ribeiro dos Santos

    Pela mesma poca, houve um outro contemporneo de Kant que ter intudo com agudeza o que teria tido em mente o autor da Crtica do Ju-zo ao associar nela a arte e a natureza sob um mesmo princpio de com-preenso, e que ter percebido as fecundas consequncias dessa aparen-temente estranha associao. Esse contemporneo foi Goethe. Num apontamento acerca da influncia que sobre ele exercera a filosofia da sua poca e no contexto de uma avaliao da sua relao com a filosofia de Kant, escreve o autor do Fausto: Chegou depois s minhas mos a Crti-ca do Juzo, qual devo um dos perodos mais felizes da minha vida. Aqui vi as minhas ocupaes mais dspares postas uma junto da outra; os produtos da arte e da natureza considerados do mesmo modo; o juzo esttico e o juzo teleolgico iluminando-se mutuamente... Alegrava-me que a arte potica e a cincia natural comparada fossem to afins uma da outra, e que ambas estivessem subordinadas mesma faculdade de jul-gar. 2

    Com muito raras excepes, as inteipretaes da terceira Crtica de Kant no seguiram a pista sugerida por Goethe, mas antes confirmaram o juzo de Schopenhauer. Os que dela se ocuparam ora se fixaram na sua primeira parte (crtica do juzo esttico), ora na segunda parte (crtica do juzo teleolgico), como se se tratasse de facto de dois domnios realmen-te distintos e no comunicveis entre si, ou cuja comunicabilidade era to problemtica que t-la em conta s dificultava a abordagem de cada um dos respectivos problemas. A questo da relao entre as duas partes, que Kant tenta esforadamente justificar nas duas longas introdues que escreveu para a obra, quando expressamente abordada, -o com descon-forto, como se estivesse envolta numa certa obscuridade, o que, de resto, tambm o prprio filsofo parece reconhecer no enigmtico penltimo pargrafo do Prefcio da sua obra. Os efeitos desta estratgia hermenuti-ca tm-se feito sentir no s na impossibilidade de aceder verdadeiramen-te compreenso da sistematicidade duma obra que tem justamente a dimenso e a pretenso sistemtica (tanto a da prpria filosofia como a da natureza e a do esprito humano) por tema nuclear, como impediu tam-bm que se compreendesse a peculiar pertinncia da viso kantiana da teleologa da natureza e at a singularidade da doutrina esttica de Kant. Nomeadamente, perdeu-se quase por completo o sentido da importncia dum tpico que realiza a mediao entre as duas partes da obra, o qual o reconhecimento da primazia matricial e do privilgio que, no contexto da sua anlise do juzo esttico, o autor da Crtica do Juzo atribui expe-rincia esttica da natureza como proto-experincia humana.3

    2 J . W. von Goethe, Einwirkung der neueren Philosophie (1817), publicado em Zur Morphologie, 1,2,1820, in Werke, Hamburger Ausgabe, Bd. 13, p. 26.

    3 S recentemente este tpico se tomou objecto da ateno de alguns intrpretes. Para um

  • Kant e a ideia de uma potica da natureza 21

    No presente ensaio, seguindo a pista indicada por Goethe, eu gosta-ria, em primeiro lugar, de tentar perceber o que ter levado Kant a asso-ciar, na sua terceira Crtica, os dois referidos domnios sob um mesmo princpio e uma mesma faculdade do esprito; seguidamente, de reconhe-cer as consequncias que tem essa associao, seja para a sua doutrina esttica, seja para a viso da natureza que assim se torna possvel; final-mente, de avaliar o interesse que pode ter isso para iluminar os actuais debates em torno da conscincia ecolgica, na medida em que eles reque-rem uma nova filosofia da natureza a qual no s no deve fazer econo-mia da vivncia esttica da natureza como pode at ser extraordinaria-mente potenciada por esta vivncia.

    2. Mais do que qualquer outra obra de Kant, a Crtica do Juzo tenta estabelecer pontes e mediaes e gerir desequilbrios e compensaes (entre o belo e o sublime, entre esttica e teleologa, entre arte e natureza, entre teleologa da natureza e teleologa moral, entre uma esttica sete-centista e barroca que se move em torno do gosto e uma esttica romnti-ca que gira em torno do gnio, entre uma esttica da socialidade e do sensus communis e uma esttica da individualidade, entre uma esttica do juzo reflexionante e uma esttica da imaginao criadora), e est cons-truda como uma complexa rede de raciocnios analgicos, sob o modo do como se (ais ob). Partindo da evidncia do processo intencional da aco racional, de que se tem experincia na fabricao humana de arte-factos (arte humana), Kant aplica esse mesmo procedimento como esquema para poder pensar o modo como a natureza produz as suas for-mas a que chamamos belas e sobretudo os seres organizados, embora esteja consciente de que a natureza no pode ter uma inteno na sua produo ou que, pelo menos, no podemos saber se a tem e qual ela seja. Pelo contrrio, precisamente porque natureza, presumimos que ela age espontaneamente, ao passo que o homem, enquanto ser racional, realiza as suas aces propondo-se fins. O filsofo d-se conta de que certos produtos da natureza s podem ser pensados, quanto sua forma e apa-rncia, como se a natureza imitasse a arte humana ou antes uma arte sobre-humana, como se ela mesma fosse artista, ou como se um secreto artista atravs dela produzisse as suas obras que reputamos como verda-deiras obras de arte da natureza, as quais apreciamos tambm pela sua bela forma no juzo esttico. Mas Kant d um passo mais e estende a analogia prpria produo interna dos seres naturais, considerando-os no j apenas na sua forma e aparncia mas tambm na sua estrutura e

    estado da questo, veja-se o nosso ensaio: Kant e o regresso natureza como paradig-ma esttico, in: Cristina Beckert (coord.), Natureza e Ambiente. Representaes na Cultura Portuguesa, CFUL, Lisboa, 2001, pp. 169-193.

  • 22 Leonel Ribeiro dos Santos

    possibilidade interna e, nesse caso, teramos de pensar a natureza como se ela tivesse uma intencionalidade ou finalidade objectiva e real como con-dio da possibilidade de tais seres.

    Na base desta complexa rede de analogias est um conceito funda-mental, desenvolvido por Kant sobretudo na primeira Introduo sua Crtica do Juzo e tambm presente nesta obra - o de tcnica da faculdade de julgar (Technik der Urteilskraft) - a ideia de que a faculdade de julgar tem como caracterstica uma modalidade de procedimento a que Kant chama tcnico e que aplica natureza sob a designao de tcnica da natureza (Technik der Natur). Esta singular expresso, criada por Kant e bem pouco estudada pelos comentadores do seu pensamento esttico4, evoca hoje um significado que est nos antpodas daquele que Kant lhe atribuiu. Faz-nos pensar num procedimento ou modo de produo mecni-cos, ao passo que com ela Kant pretendia precisamente nomear um modo de produo no mecnico e identificar o tipo de procedimento que est envolvido na criao potica ou artstica.5 Por isso, Kant aplicava esse con-ceito produo artstica e compreenso da sua lgica especfica ou s produes da natureza que so de tal ordem que parecem revelar uma intencionalidade (como se visassem um fim na sua produo, pois o resul-tado dessa produo se revela pertinente) e, ao mesmo tempo, manifestam uma total espontaneidade, como se a natureza livremente inventasse os seus produtos (no seguindo nenhum esquema ou conceito predetermina-do). E este peculiar procedimento de uma finalidade espontnea ou no intencional que Kant designa pelo oximoro Zweckmssigkeit ohne Zweck: uma conformidade a fins sem um fim, isto , uma espontnea e recproca convenincia dos elementos de um todo que revela a forma ou a estrutura deste como sendo pertinente, rica de sentido e sobretudo vivel. A ideia de uma tcnica da faculdade de julgar e de uma tcnica da nature-za est, pois, associada directamente experincia da criao, da inveno ou produo espontneas, aconteam elas na arte humana ou na arte da natureza (no sentido em que s conseguimos pensar os produtos desta como sendo-o de um procedimento anlogo ao da arte). A diferena reside em que na arte humana essa tcnica consciente, pelo menos parcialmente, na medida em que o artista tem alguma ideia, por vaga que seja, do que pretende realizar e, por isso, a sua produo tambm intencional e finali-zada (isto , ele dispe os meios para atingir a realizao da sua ideia). Nas produes da natureza, porm, essa tcnica , pelo menos tanto quanto

    4 Entre as excepes: G. Lehmann, Die Technik der Natur, in Idem, Beitrge zur Ges-chichte und Interpretation der Philosophie Kants, Berlin, 1969, pp. 289-294.

    5 Erste Einleitung in die Kritik der Urteilskra, VII, Ak, XX, 219. As obras de Kant so citadas pela edio dos Kants gesammelte Schriften, Akademie-Ausgabe (Ak), Berlin, 1902 sgs (reimpr. Walter de Gruyter, Berlin, 1968).

  • Kant e a ideia de uma potica da natureza 23

    podemos presumi-lo, inconsciente e no intencional. E, todavia, para o sujeito que as aprecia, ela s pode ser pensada como se fosse intencional, como se a natureza procedesse superiormente dirigida pelo princpio da Zweckmssigkeit der Natur (da teleoformidade - ou conformidade a fins - da natureza), embora saibamos que esse princpio to somente um prin-cpio da faculdade humana de julgar, a qual, na sua reflexo, o aplica aos produtos da arte humana e aos da suposta arte da natureza.6 em tomo deste pressuposto que se move toda a Crtica do Juzo e daqui que nas-cem as analogias entre a arte e a natureza, que nos levam a interpretar a natureza como arte e a arte como natureza.

    Graas ao seu novo conceito de uma tcnica da natureza (que pre-ferimos traduzir por potica da natureza), Kant resolve uma antiga anti-nomia que percorre toda a histria do pensamento, protagonizada por Plato e Aristteles, a qual opunha a arte e a natureza, atribuindo-se a primazia ontolgica e lgica ora a uma ora a outra. Resolve-a, porm, de uma forma paradoxal, pois os dois termos se tornam paradigma um do outro e servem, vez, para reciprocamente se explicarem: a arte autnti-ca, para o ser, deve parecer natureza ou como se fosse natural, mesmo que saibamos que produto do artifcio intencional de um agente; e a natureza, seja no juzo esttico ou no juzo teleolgico, tem de ser apre-ciada como se fosse artstica e produto de uma arte (por certo no huma-na), ou como sendo ela mesma artista. O que permite esta convertibilida-de dos termos arte e natureza? Na verdade, Kant opera aqui com a ambiguidade do conceito de natureza: o modo de produzir que atribu-mos natureza o que Kant transpe para o modo de entender a produo da arte humana, da mesma forma que o modo segundo o qual pensamos a produo da arte humana o que atribumos natureza. Ora, natureza e arte trocam entre si modalidades de produo antitticas: a natureza d arte a espontaneidade da produo, enquanto a arte empresta natureza a intencionalidade. Tudo isto, claro, se passa no plano de um juzo de analogia e do como se. Escreve Kant: Num produto da bela arte temos de estar conscientes de que ela arte e no natureza; mas, contudo, deve a conformidade a fins na sua forma parecer to livre de toda a coaco de regras voluntrias como se ela fosse um produto da mera natureza. sobre este sentimento da liberdade no jogo dos nossos poderes de conhe-cimento, que ao mesmo tempo tem de ser conforme a fins, que se funda aquele nico prazer que pode ser universalmente partilhado sem se fundar em conceitos. A natureza bela, se ao mesmo tempo ela parece como arte; e a arte s pode ser chamada bela, se estamos conscientes de que ela arte, e todavia nos parece como natureza.7

    Ibidem. 1 Kritik der Urteilskraft [KdU] 45, Ak V,306.

  • 24 Leonel Ribeiro dos Santos

    No sistema das artes do seu tempo, Kant encontra uma forma de arte que realiza esta simbiose de natureza e arte. Trata-se da arte dos jardins (Gartenkunst, Lustgartnerei), que ele classifica j entre as belas artes como uma espcie de pintura, feita no com objectos naturais representa-dos, mas com os objectos mesmos da natureza (rvores, arbustos, relva e flores da floresta e do campo, regatos, lagos, cascatas, etc), com a finali-dade de produzir um quadro para a contemplao dos olhos e do esprito.8

    Kant pensa nos jardins segundo o gosto ingls, onde a natureza, sendo embora obra da arte, no contudo submetida violncia de uma estrita regularidade geomtrica, como nos jardins segundo o gosto francs, mas trabalhada como se fosse deixada sua prpria espontaneidade e lei de desenvolvimento interior, e assim oferecida como espectculo ao mero jogo livre da imaginao. E graas a isso que ela proporciona ao esprito de quem a contempla uma constante fonte de gratas surpresas. Pelo con-trrio, a rgida regularidade e a uniforme simetria so contrrias ao ponto de vista esttico e, em vez de proporcionarem ao esprito um verdadeiro prazer, provocam-lhe antes cansao e aborrecimento. A percepo de que no objecto da contemplao h vestgios da coaco e da violncia das regras segundo as quais foi produzido inviabiliza mesmo qualquer expe-rincia esttica.9 Somente na medida em que a natureza nos aparece reve-lando-se espontnea e prdiga em toda a sua variedade e at na sua opu-lncia e aspectos selvagens, sem que nisso parea estar submetida regularidade de um mecanismo ou coaco de regras artificiais, que ela pode proporcionar um alimento inesgotvel para o gosto e prazer est-ticos de quem a contempla, No jardim, tudo tem de ser no s natureza como tambm parecer natural, mesmo que saibamos que somente um produto da arte humana em que a matria a prpria natureza. A potica kantiana do jardim condensa toda a esttica kantiana e pode dar-nos tam-bm uma amostra da filosofia da natureza que a partir da experincia esttica se torna possvel. E isto torna-se mais claro ainda se confrontar-mos a filosofia da natureza que se depreende desta potica kantiana do jardim com a filosofia mecnica da natureza e do prprio homem que Descartes expe no seu L'Homme, servindo-se de exemplos tirados dos artefactos mecnicos e respectivos mecanismos, que bem conhecia de frequentar os jardins dos reis. 1 0

    H assim, no pensamento esttico de Kant, uma inequvoca prepon-derncia da natureza sobre a arte, a qual se revela ou insinua por muitos modos. Mas esta preponderncia ou no tem sido notada pelos comenta-

    *KdU,5l, Ak V, 323. 9 Kd, Allgemeine Anmerkung, Ak V, 242-243. 1 0 R. Descartes, L'Homme. Oeuvres Philosophiqiies I (1618-1637), Garnier, Paris, 1988.

    p. 390.

  • Kant e a ideia de uma potica da natureza 25

    dores, ou, quando notada por alguns, tem sido interpretada como algo perturbador e negativo que prejudica a coerncia da proposta kantiana, como um resduo duma teologia da criao, que ameaa a autonomia da arte e do juzo esttico que o filsofo crtico por outro lado pretendia legitimar.11 Aqui, em contrapartida, tomamo-la como um elemento per-turbador sim, mas igualmente como representando um antdoto contra a reduo da esttica s malhas duma subjectividade fechada sobre si mes-ma e sobre as suas vivncias ou arbitrrias criaes. Mas encaramo-la sobretudo pela fecundidade que revela para iluminar a complexidade dos problemas relativos arte e natureza. E um deles a concepo do gnio. Para o filsofo, a genuna arte humana a arte do gnio e, por gnio, entende ele aquele que produz a sua obra graas a um talento inato que atribumos natureza. O gnio um favorecido da natureza (Gnstling der Natur), que possui uma disposio inata do nimo (ingenium) mediante a qual a natureza d a regra arte. 1 2 Mas, se a natureza ilumina a arte, tambm a arte ilumina a natureza. Porventura, tudo nesta se produz apenas mediante o mero mecanismo, sem que a essa produo presida a representao de um fim e, todavia, para podermos pensar certos produ-tos da natureza, seja na sua forma ou na sua estrutura, segundo o nosso modo de representao, s podemos faz-lo supondo que a natureza pro-cede artisticamente, ou seja, finalizadamente. E isso ainda mais neces-srio se no falamos apenas das formas belas da natureza que se oferecem nossa contemplao, mas dos seus produtos orgnicos que se oferecem nossa apreciao teleolgica. A, diz Kant, a natureza no s apre-ciada enquanto parece como arte, mas na medida em que ela realmente arte (embora sobre-humana). 1 3 A tal ponto que no pode sequer ser imi-tada pela arte humana.14 Num outro passo da obra, Kant prolonga esta ideia da analogia entre a natureza e a arte, sublinhando ainda mais a van-tagem da natureza: Diz-se muito pouco da natureza e da faculdade que ela revela nos seus produtos orgnicos, quando designamos esta como analogon da arte; pois a se pensa o artfice (um ser racional) como estando fora dela.f...] Talvez alcancemos uma perspectiva mais correcta desta propriedade impenetrvel se a designarmos como um analogon da vida.f..] Para falar com rigor, a organizao da natureza no tem nisso nenhuma analogia com qualquer causalidade que conheamos. A beleza da natureza pode com razo ser designada como um analogon da arte, j que ela atribuda aos objectos somente em relao reflexo sobre a intuio externa dos mesmos, por conseguinte, somente por causa das

    1 1 Hans-Georg Gadamer, Die Aktualitt des Schnen, Reclam, Stuttgart, 1977, pp. 39-40. 12 KdU, 46, Ak V, 307. 13 KdU, 48, A k V , 3 I l . ^ KdU, 64, AkV, 371.

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    formas superficiais. Mas a ntima perfeio natural, tal como a possuem aquelas coisas que so possveis apenas enquanto fins naturais e que, por isso, se chamam seres organizados, essa no pode ser pensada e explicada segundo nenhuma analogia com qualquer propriedade fsica, isto , natu-ral, que conheamos e nem mesmo atravs de uma analogia perfeitamente adequada com a arte humana, j que ns prprios pertencemos natureza no mais amplo sentido. 1 5

    Movemo-nos, pois, num paradoxo: como pretende aquele, que apenas uma parte, aplicar a lgica do seu modo peculiar de produzir ao todo de que ele mesmo produto? Em suma, Kant acaba por reconhecer que a analogia tirada da arte humana, que serviu de base construo da terceira Crtica, apesar de todo o seu potencial heurstico, claudica por fim. E assim se afirma a transcendncia da natureza relativamente s nossas capacidades de a compreender nos processos internos da sua po-tica. A natureza permanecer para os homens sempre uma Isis velada.16

    Ainda assim, Kant no deixa de realar o significado que a experincia esttica da beleza da natureza tem para nos dar acesso a uma mais vasta compreenso da prpria natureza, nomeadamente pela extenso que per-mite considerao teleolgica da natureza. Escreve filsofo: A bele-za autnoma da natureza [selbstndige Naturschnheit] descobre-nos uma tcnica da natureza, que a torna representvel como um sistema segundo leis cujo princpio no encontramos em todo o nosso poder de entendi-mento, a saber o de uma teleoformidade [Zweckmssigkeit] relativamente ao uso da faculdade de julgar tendo em vista os fenmenos, de tal modo que estes tm de ser apreciados no apenas como pertencentes natureza no seu mecanismo destitudo de finalidade, mas tambm como pertencen-tes natureza pensada por analogia com a arte. Por certo, ela realmente no amplia o nosso conhecimento dos objectos da natureza, mas sim o nosso conceito da natureza, nomeadamente o que a representa como mero meca-nismo, at precisamente ao conceito da mesma como arte: o que convida a profundas investigaes acerca da possibilidade de uma tal forma.1 7

    Nisso, a experincia do belo natural muito mais fecunda do que a experincia do sublime da natureza, pois nesta a natureza revela-se no como um poder de inesgotvel produo finalizada de belas formas e de incontveis seres vivos, mas como um catico e incomensurvel poder de destruio, como a negao de toda a conformidade a fins.18 Se, perante o belo da natureza, somos estimulados a admirar e a amar a natureza, perante aquilo a que chamamos o sublime da natureza, esta impe-se ao

    15 KdU 65, Ak V, 374-375. ^ KdU, AkV, 316. *7 KdU 23, Ak V, 246. 18 KdU 23, Ak V, 246.

  • Kant e a ideia de uma potica da natureza 27

    homem como objecto de admirao ou respeito (Bewunderung oder Achtung), suscitando uma espcie de respeito (eine Art von Achtung)1 9

    ou um temor reverenciai (Ehrfurcht)20, expresses que, no contexto da sua filosofia prtica, Kant nos ensinara a reservar apenas para pessoas ou para o prprio objecto da moralidade.21 Embora o filsofo declare que sublime a natureza naqueles seus fenmenos cuja intuio leva consi-go a ideia da sua infinidade2 2, tenta mostrar, por outro lado, que impro-priamente que atribumos a sublimidade natureza. Porque, na verdade, a sublimidade que experimentamos perante certos fenmenos da natureza a que chamamos sublimes uma sublimidade do prprio esprito, ao qual, precisamente na violncia que a natureza lhe impe, dado experimentar sob forma sensvel a sua condio supra-sensvel.2 3 Nos seus fenmenos a que chamamos sublimes, a natureza, pela sua grandeza e poder, aniqui-la-nos, mas precisamente nisso descobrimos que a nossa grandeza e poder no est na natureza, mas na destinao e condio moral do nosso espri-to, para alm da natureza, isto , sentimos a sublimidade do nosso esprito enquanto seres morais. E assim, nesta economia de mediaes e de com-pensaes que gere a terceira Crtica, a experincia do sublime revela a sua fecundidade e pertinncia no tanto para ampliarmos o conceito de natureza como um sistema de fins, quanto para nos permitir, sob o modo esttico, um vislumbre do mundo supra-sensvel e, graas a ela, tambm a prpria natureza no seu todo se torna para ns, pela incomensurvel grandeza e poder com que se nos manifesta, a exposio de algo supra--sensvel (Darstellung von etwas bersinnlichen)2 4, o esquema ou o smbolo estticos do Infinito que para ns um abismo (Abgrund)25, mas por certo apenas uma mera exposio negativa do Infinito (eine blosse negative Darstellung des Unendlichen).26

    Apesar de constiturem experincias estticas subjectivas de sinal contrrio, tanto a vivncia do belo natural como a do sublime da natureza representam j em si mesmas a superao do sujeito e dos seus interesses. Como escreve Kant, o belo predispe-nos para amar algo, mesmo a natureza, sem termos nisso qualquer interesse; o sublime predispe-nos para estim-la altamente, mesmo contra o nosso interesse (sensvel). 2 7

    '9 Kd, Ak V, 245, 249, 257 20 KdU, Ak V, 264. 21 KpV, Ak V, 76. 22 KdU 26, Ak V, 255 23 KdU 28, Ak V, 262. 2 4 KdU 29, Ak V, 268. 2 5 KdU 29, AkV, 265. 26 KdU, AUg. Anmerkung, V, 274. 27 KdU, Allg. Anmerkung, Ak V, 267.

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    3. Como Kant expressa e reiteradamente o diz, a experincia da beleza da natureza e no a experincia da beleza artstica que constitui a proto-experincia esttica. E ela que nos faz descobrir em ns uma nova faculdade - a faculdade de julgar reflexionante - e um novo princpio transcendental meramente subjectivo - o da conformidade a fins da natu-reza (teleoformidade da natureza) - Zweckmssigkeit der Natur - que constitui o prprio juzo esttico ou de gosto na sua peculiar autonomia.28

    E na economia da esttica kantiana e da terceira Crtica verdadeiramen-te a experincia do belo natural que constitui o problema fundamental que desencadeia toda a meditao kantiana, sendo o problema da arte humana pensado j como uma extenso da soluo encontrada para aquele. Mas se a apreciao esttica da natureza abre caminho apreciao teleolgi-ca da mesma natureza, tambm esta, por sua vez, reverte sobre a viso esttica. Pois a natureza poderia ser um sistema de fins e conforme a fins na sua produo e, todavia, no ter em conta o prazer esttico. Ora, na sua peculiar potica, como se a natureza tivesse tido tambm em conta esse aspecto a nosso favor. O filsofo no admite por certo um realismo est-tico da finalidade da natureza, que nos levasse a considerar esta como tendo na base das suas produes, para alm da ideia de um fim de utili-dade e de compatibilidade de uns seres com os outros, tambm uma ideia de beleza qual aquelas produes se adequassem e tendo ainda em vista que isso pudesse vir a ser contemplado e apreciado por algum e preci-samente pelo homem. No 58 da Crtica do Juzo, Kant considera, toda-via, que inmeras belas formaes que se encontram em todos os reinos da natureza (mineral, vegetal e animal) falam muito alto a favor dessa hipte-se, embora por outro lado devamos pensar que todas essas belas formaes so apenas o efeito de fortuitas e caticas combinaes qumicas e de meros processos mecnicos. Mas isso s torna o fenmeno ainda mais surpreendente e digno de admirao. A finalidade esttica que atribumos natureza meramente ideal e no real e o juzo esttico sobre a beleza da natureza meramente subjectivo e no determinante, mas reflexionante.

    Poderamos pensar que a natureza ganharia mais se lhe atribusse-mos um realismo esttico, se considerssemos que realmente ela se pro-pe a produo de formas objectivamente belas e que essas formas so belas apenas porque so o efeito de uma produo esttica intencional da natureza. Mas no assim. O idealismo esttico kantiano aplicado natu-reza no se limita a este ou quele produto ou forma naturais que revelas-sem certas qualidades objectivas de beleza. Mas precisamente porque no est limitado por isso, pode ele sublimar esteticamente qualquer aspecto da natureza. No se trata de considerar o mundo ou a natureza como sen-

    28 Erste Einleitung, XII, Ak XX, 251. Cf. Ibidem, 244.

  • Kant e a Meia de uma potica da natureza 29

    do realmente belos, mas de dispor o esprito para embelezar o mundo.29

    Como diz Kant, na apreciao esttica que sobre a natureza fazemos, no est em causa o que ela ou o que para ns um fim, mas o modo como a acolhemos, pois poderia at dar-se o caso de haver uma conformidade a fins objectiva da natureza, segundo a qual ela tivesse produzido as suas formas belas para o nosso prazer, sem que ns captssemos essas formas com uma teleoformidade subjectiva que nos desse prazer e que se fundas-se apenas no jogo da nossa imaginao deixada em plena liberdade. No juzo esttico sobre a natureza somos ns que acolhemos a natureza com favor, sem que pela sua parte ela nos indique o menor favor (wo es Gunst ist, womit wir die Natur aufnehmen, nicht Gunst, die sie uns erzeigt).30 E, todavia, noutro passo da obra, Kant reconhece que esse favor que fazemos natureza de a considerar bela, , por assim dizer, a recproca resposta ao livre favor que a natureza prodigamente nos faz de, para alm de nos ser realmente til, ainda se nos mostrar generosamente bela: Podemos considerar como um favor que a natureza teve em rela-o a ns, o facto de ela ter distribudo to ricamente, para alm do til, ainda a beleza e o encanto [Schnheit und Reize], e por isso am-la, tal como por causa da sua incomensurabilidade a contemplamos com respei-to e nos sentimos ns prprios enobrecidos nesta contemplao: precisa-mente como se a natureza tivesse montado e adornado o seu majestoso teatro precisamente com esta inteno. 3 1

    Graa e amabilidade com amabilidade e graa se pagam! Em nota a esta passagem, Kant formula ainda mais explicitamente esta nova relao graciosa entre o homem e a natureza, entre a natureza e o homem, mos-trando como a contemplao esttica e a apreciao teleolgica da natu-reza se completam na sua reciprocidade: Na parte esttica foi dito: ns olhamos a bela natureza com favor, na medida em que na sua forma temos um prazer completamente livre (desinteressado). Pois neste sim-ples juzo de gosto no se tem de modo nenhum em ateno para que fins estas belezas naturais existem: se para nos despertarem um prazer, ou se sem qualquer relao a ns como fins. Num juzo teleolgico, porm, temos tambm em ateno esta relao e por isso podemos considerar como um favor da natureza o facto de ela, mediante a exibio de tantas formas belas, ter querido ser favorvel cultura. 3 2

    O privilgio da experincia esttica da natureza no pensamento est-tico de Kant revela-se ainda a outros nveis. Nomeadamente, na sua ori-

    2? Refi. zur Logik, Reil. 230, Ak XV, 88. Refl.231, Ibidem: idealism: dass alles im dem Menschen liege, e.g. Schnheit der Welt.

    30 KdU, 58, Ak V, 350. 31 KdU,% 67,AkV, 380. 3 2 Ibidem.

  • 30 Leonel Ribeiro dos Santos

    ginria e essencial solidariedade com o sentimento moral e at com o sentimento religioso. O 88 da terceira Crtica sugere uma gnese moral do juzo esttico a respeito da natureza. Kant diz a que com toda a pro-babilidade foi o interesse moral que, a princpio, despertou a ateno para a beleza e os fins da natureza e, depois, esse interesse moral viria a ser fortalecido por essa considerao esttica. 3 3 E, noutro lugar da mesma obra, aponta a semelhana que a experincia esttica e teleolgica da natureza - a admirao da beleza da natureza e a emoo despertada pela considerao da grande diversidade de fins da natureza - tem com um sentimento religioso e com um sentimento moral: A admirao da bele-za [Bewunderung der Schnheit] bem como a emoo [Rhrung] suscita-da pelos fins to diversos da natureza que um esprito que reflecte est em condio de experimentar antes mesmo de possuir uma clara representa-o de um autor racional do mundo, tm em si qualquer coisa de seme-lhante a um sentimento religioso. Elas parecem agir sobre o sentimento moral (de gratido e de venerao [der Dankbarkeit und der Verehrung] relativamente quela causa de ns desconhecida) por uma espcie de apreciao desta beleza e destes fins que seria anloga apreciao moral da mesma [durch eine der moralischen analoge Beurtheilungsart], susci-tando no esprito ideias morais, quando causam aquela admirao que est ligada a um interesse que de longe muito maior do que aquele que pode produzir uma contemplao simplesmente terica. 3 4

    Kant, que apresentara justamente a experincia da beleza natural, a de uma flor selvagem ou a de uma concha de molusco, como exemplos de uma beleza livre (frei) e autnoma (selbstndige), parece comprometer agora a autonomia do juzo esttico associando-o assim to intimamente ao sentimento moral e at ao sentimento religioso. Na verdade, porm, o que ele deste modo pe em evidncia a organicidade do esprito na espontnea harmonia das suas faculdades.

    O pargrafo 42 da Crtica do Juzo o mais enftico na explcita afirmao da primazia da vivncia esttica da natureza sobre a vivncia esttica da arte. Nos primeiros pargrafos da Analtica do belo, Kant tinha caracterizado o sentimento esttico da beleza como um sentimento desin-teressado, mas defronta-se agora com uma particularidade que a beleza da natureza revela relativamente beleza da arte, a saber, que, ao contrrio desta, aquela suscita no homem um interesse imediato de natureza inte-lectual e isso, quando habitual e quando associado contemplao da natureza, constitui um sinal distintivo de uma boa alma ou, no mnimo, indica uma disposio de esprito favorvel ao sentimento moral. 3 5

    33 KdU, Ak V, 459. 34 KdU, Ak V, 482. 35 KdU, Ak V, 298; Grundlegung, Ak IV, 459-460.

  • Kant e a ideia de uma potica da natureza 31

    Pginas adiante, insiste na mesma ideia: O esprito no pode meditar sobre a beleza da natureza sem ao mesmo tempo se achar interessado nisso. Este interesse, porm, moral por parentesco [der Verwandtschaft nach], e aquele que toma interesse no belo da natureza s o toma enquan-to tem j bem fundado o seu interesse no moralmente bom. 3 6 Alis, esta arqueologia moral do sentimento esttico da natureza j havia sido abun-dantemente exposta por Kant a respeito do sentimento do sublime: O prazer do sublime da natureza [...] pressupe um outro sentimento - o da prpria destinao supra-sensvel - , o qual, por obscuro que possa ser, tem um fundamento moral. 3 7

    A experincia esttica da natureza - seja a da sublimidade seja a da beleza - torna-se assim revelao, em registo sensvel, duma mensagem que da ordem do supra-sensvel. Pela mediao da vivncia esttica e da contemplao teleolgica, a natureza como que sublimada, adquire dimenso de transcendncia e torna-se epifania do Absoluto na sua forma moral. E o filsofo crtico no tem sequer receio de restaurar, em pleno sculo das Luzes, uma linguagem que muito prxima da que encontra-mos em certos pensadores medievais, lendo as formas da natureza (e at nas variaes da luz, das cores e dos sons) como se fossem um vesti-gium dei, como vestgio (Spur) ou sinal (Wink) de algo transcen-dente, como uma escrita cifrada mediante a qual a natureza nos fala figuradamente (Chiffreschrift... wodurch die Natur ... figrlich zu uns spricht), como uma linguagem que a natureza nos dirige e que parece ter um sentido mais elevado (gleichsam eine Sprache, die die Natur zu uns fuhrt, und die einen hhem Sinn zu haben scheint), que interpretamos como sendo um sentido moral.3 8

    Neste mesmo pargrafo, o filsofo transgride ainda outros pressu-postos da sua doutrina esttica. Para Kant, o juzo esttico, alm de ser desinteressado, meramente subjectivo, na medida em que uma vivn-cia do sujeito, a qual consiste na mera apreenso da forma do objecto, abstraindo no s do que o objecto em si mesmo como at da sua pr-pria existncia, que nos , enquanto tal, indiferente. Ora, na experincia esttica da natureza essa abstraco e indiferena so impossveis. E como se a dimenso meramente subjectiva do juzo esttico ganhasse aqui uma dimenso objectiva, graas qual o nosso interesse intelectual pela bela natureza nos leva no s a admirar, a respeitar e a amar a natu-reza, que objecto da nossa contemplao, mas tambm a querer que dela nada se perca, a deix-la na sua existncia e autonomia.

    36 KdU, Ak V, 300. 3 7 KdU, Ak V, 292. 38 KdU 42, Ak V, 302.

  • 32 Leonel Ribeiro dos Santos

    A passagem que a seguir se transcreve , porventura, em toda a obra de Kant, aquela onde melhor se mostra o modo como, numa perspectiva kantiana, se poderia entender a fecundidade da contemplao esttica da natureza, que se coloca no ponto de vista do sujeito, para aquilo a que hoje chamamos uma perspectiva ecolgica, que se colocasse no ponto de vista da natureza. Escreve Kant: Aquele que solitariamente (e sem a inteno de querer comunicar as suas observaes a outros) contempla a bela forma de uma flor selvagem, duma ave, dum insecto, etc, para os admirar, para os amar, e num esprito tal que ele no admitiria de bom grado a sua perda na natureza em geral, mesmo quando, longe de que a existncia do objecto lhe faa ver alguma vantagem, ele disso tirasse antes prejuzo, esse toma um interesse imediato e a bem dizer intelectual pela beleza da natureza. Isso significa que no s o produto da natureza lhe apraz pela sua forma, mas tambm que a existncia dele lhe apraz, sem que qualquer atractivo sensvel tome parte neste prazer ou que a isso se associe um qualquer fim. 3 9

    4. A citada passagem mostra como a perspectiva esttica se excede e se pode transformar em conscincia ecolgica. Mas deixa ver tambm o quanto a perspectiva ecolgica pode aprender da fecunda lio do pensa-mento esttico de Kant. A atitude esttica em relao natureza, tal como Kant a concebe, parece cuidar melhor da natureza, amando-a e respeitan-do-a, do que qualquer outra. Porque no se funda numa qualquer teoria acerca da natureza ou no que se sabe ou julga saber a respeito dela, mas na atitude humana, numa peculiar disposio do esprito em relao natureza. Ora esta mediao humana e at a presena humana que em certas formas de pensamento ecolgico se pretende excluir, como se o homem no fosse tambm ele prprio um ser da natureza e um elemento dos seus sistemas ecolgicos!

    E assim podemos entender o que escreve Kant num pargrafo da sua Doutrina da Virtude, onde discute o tpico dos supostos deveres do homem para com a natureza: No que respeita ao belo da natureza, ainda que inanimado, a tendncia para o mero destruir {spiritus destructionis) contrrio ao dever do homem para consigo prprio; porque enfraquece ou extermina no homem aquele sentimento, que, embora no sendo por si apenas j [um sentimento] moral, prepara todavia este, na medida em que promove muito aquela disposio da sensibilidade que nos leva a amar algo mesmo sem ter em vista a utilidade (por ex., as belas cristalizaes, a indescritvel beleza do reino vegetal). 4 0

    39 KdU 42, Ak V, 299. Metaphysik der Sitten, Tugendlehre 17, Ak VI, 443.

  • Kant e a ideia de uma potica da natureza 33

    Como facilmente se reconhecer, esta passagem ganha todo o seu alcance se colocada no contexto da ampla reflexo kantiana sobre o juzo esttico a respeito da natureza e da ntima solidariedade que a se reco-nhece existir entre a experincia da beleza e da sublimidade da natureza e o sentimento moral, a qual nos leva a tomar interesse pela natureza - um interesse que por certo intelectual e moral, mas de matriz esttica - e at nos sentimos legitimados a pressupor que todos os seres humanos devem tomar o mesmo interesse, ao ponto de considerarmos como grosseira e ignbil a maneira de pensar daqueles que no tm qualquer sentimento para a bela natureza. 4 1

    Estas indicaes mostram a ntima relao que no esprito de Kant liga a viso esttica da natureza com a sua viso da responsabilidade moral e dos deveres do homem para com os animais e a natureza em toda a sua diversidade.42 A moral e o direito, confinados embora a um espao de relaes entre seres humanos, alargam-se pela mediao humana e inter-humana ao mundo natural numa vasta solidariedade antropocsmi-ca. Kant no seria um defensor de uma tica da Terra ou de uma tica da natureza que nos impusesse o dever de a respeitar e conservar. Para ele, aquilo a que impropriamente se chama deveres relativamente aos animais e a outros seres e coisas da natureza algo que tem sempre em vista indi-rectamente os deveres para com a humanidade. Mas, ao mesmo tempo, Kant indica-nos um modo possvel segundo o qual a ordem tica e jurdi-ca, sendo embora propriamente uma ordem humana e entre humanos, pode alargar-se natureza, sem incorrer em sub-repes ou em falcias naturalistas ou antropologistas, porque consciente dos limites dessa extenso. Esse modo o que se abre pela apreciao teleolgica e pela vivncia esttica da beleza e da sublimidade da natureza.

    41 KdU, 42, Ak V, 303. 4 2 Veja-se o desenvolvimento deste tpico, no meu ensaio Kant e os limites do antropo-

    centrismo tico-jurdico, in Cristina Beckert (org. e coord.), tica Ambiental Uma tica para o Futuro, CFUL, Lisboa, 2003, pp. 167-212, sobretudo pp. 200-210.

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    RESUME

    KANT ET L'IDEE D'UNE POETIQUE DE LA NATURE

    Noire propos c'est de mediter le rapport reversibie d'analogie qui, d'apres ia Critique du Jugement de Kant, on doit supposer entre Tart et la nature (entre l'esthetique et la teleologie), et de voir en quel sens cette idee, si blamee par Schopenhauer comme appreciee par Goethe, peut encore donner a penser autrement les problemes qui pose la conscience ecologique contemporaine, dans la mesure ou elle nous devoile une relation de l'homme vis-a-vis de la nature qui n'est plus seulement de maitrise et de possession, mais plutot d'admiration profonde et de respect gracieux.

    Seront themes majeures de notre exposition la notion kantienne d'une "technique de la nature" (qu'on propose de traduire par "poetique de la nature") et surtout le role qui joue l'experience esthetique (du beau et du sublime) de la nature dans Feconomie de l'esthetique kantienne et dans Tarchitectonique meme de la troisieme Critique.

  • ORGANISMO E A R T E NA FILOSOFIA DE N I E T Z S C H E

    Clademir Lus Araldi Universidade Federal de Pelotas

    Os vnculos que Nietzsche estabelece entre organismo e arte so determinantes para a construo de uma nova 'interpretao' da natureza, ali includa a vida humana. Pretendemos mostrar, inicialmente, que j no pensamento do jovem Nietzsche h um esforo para ir alm dos pres-supostos da metafsica tradicional (em sua vertente platnica, ou idealis-ta-moderna) e do mecanicismo moderno.

    No pensamento do jovem Nietzsche, o organismo serve de modelo para a considerao da vida natural, como uma totalidade constituda de partes. Apoiando-se na distino kantiana entre coisa em si e aparncia, ele pondera que o mecanicismo s se refere s aparncias, graas s noes e aos esquemas projetados pelo entendimento nas coisas. O que garante a relativa coeso e organizao do mundo s pode ser, no entanto, um impulso inerente ao mundo. diferena de Schopenhauer, que via no mundo fenomenal apenas a manifestao da vontade de viver cega, gera-dora de mltiplos sofrimentos, o jovem filsofo-fillogo v nas relaes de 'foras - desde as combinaes qumicas do mundo inorgnico at as mais elaboradas formaes orgnicas - um jogo artstico de coeso e separao, de construo e destruio.

    Aps criticar os modelos de organismo modernos, como o de Espi-nosa, o de Kant e os do idealismo romntico, Nietzsche visa construo de uma nova compreenso de organizao, que admite o caos como estofo insuprimvel para a criao. A arte, entendida como forma da von-tade de poder, possibilita configurar o caos do mundo natural e do mundo humano. A vontade artstica de potncia , desse modo, a sua tentativa mais elaborada de suplantar o modelo teleolgico do organismo.

    Buscamos investigar, por fim, se essa perspectiva nietzschiana est isenta de qualquer implicao teleolgica, e at que ponto ela fornece um

    Philosophien, 29, Lisboa, 2007, pp. 35-47

  • 36 Clademir Lus Araldi

    modelo de interpretao da organizao e desorganizao dos processos efetivos do devir mundano. Questionamos, nesse sentido, se a criao de cunho artstico expressa efetivamente a relao de foras do mundo, e do mundo do homem, ou se ela manifestao da vontade de poder, enquanto vontade de iluso e de engano.

    1. Organismo e vida natural

    Num escrito pstumo de setembro de 1870-janeiro de 1871, Nietzsche afirma: "O mundo, um organismo descomunal que gera e con-serva a si mesmo" (KSA VI I , 5 (79)).

    Trata-se, nessa citao, do mundo unitrio da vontade, raiz de todos os fenmenos e formas. No h propriamente uma separao do mundo da vontade em relao ao da representao. O mundo da representao deriva da necessidade e da limitao do nosso pensamento consciente superfcie das coisas. A representao seria um mecanismo ilusrio (enganoso), que no corresponde essncia das coisas:

    Assim que a vontade vem a ser fenmeno, tem incio esse mecanismo. Somente atravs da representao h multiplicidade e movimento da vontade. Um ser eterno torna-se somente por meio da representao em devir, em vontade, ou seja, o devir, a vontade mesma como efi-ciente, so aparncia" (KSA VII , 5 (80)).

    nesse sentido que surge instintivamente a crena de que "o mundo da representao mais real do que a efetividade (Wirklichkeit)" (KSA VII , 5 (78)). Essa teria sido a crena de Plato e de todos os gnios produ-tivos: a sua natureza de artista {Knstlernatur) leva-os a essa posio. Enquanto indivduos dotados de intelecto, rgo do conhecimento cons-ciente, vivemos numa contnua iluso. Precisamos a todo o momento da arte para viver, para ordenar, classificar, avaliar, medir, estabelecer liga-es entre as coisas. O mundo da representao , portanto, obra do instinto intelectual humano, da qual poderamos nos orgulhar:

    Nossa prerrogativa nobre de artista poderia regalar-se de ter criado esse mundo. (KSA XI , 25 (318)).

    O instinto (vontade) potncia geradora no s de representaes, mas tambm de organismos. O que propriamente um organismo? A semelhana de Schopenhauer, tambm para o jovem Nietzsche todos os fenmenos do mundo - desde as foras do mundo inorgnico at os orga-nismos mais bem estruturados dos reinos vegetal e animal - expressam uma mesma vontade. H, assim, um parentesco, uma afinidade entre

  • Organismo e arte na filosofia de Nietzsche 37

    todas as aparies da vontade na natureza orgnica, graas ao tipo funda-mental (a Idia) que subjaz a todas elas1.

    Se no h um mundo organizado de modo finalista e unitrio, por uma inteligncia superior e independente dele; se no mundo reina uma completa desrazo (vllige Unvernunft), como compreender a relativa organizao e ordem no mundo? A primeira resposta, esboada no texto de 1867-1868 : "A vida orgnica, para ns, propriamente um milagre." (FS I I I , p. 375).

    A existncia humana tambm permeada de 'milagres' {Wunder). Apesar de reinarem o acaso e a desrazo no mundo, o ser humano neces-sita ordenar e dar forma a esse 'caos'. A vida natural est eternamente em fluxo; em si mesma no h nenhuma finalidade. Contudo, poder-se-ia pensar que a vida em geral existe de modo semelhante ao homem. Have-ria, assim, um parentesco entre os processos orgnicos e as percepes humanas. Esse parentesco no seria constitutivo, mas projetado pelo inte-lecto do homem, para sua conservao e afirmao. Nada na natureza ocorre sem causa - Nietzsche parece concordar com Goethe nesse ponto. Mas as causas eficientes no mundo natural assentam em algo para ns desconhecido. E uma necessidade humana, artisticamente desenvolvida, supor uma conformidade a fins interna na natureza. Queremos ressaltar que a admisso de 'causas internas' da natureza permite a Nietzsche criti-car o mecanicismo, a reduo da conexo dos fenmenos por meio da presso e do choque (Druck und Sto). O mecanicismo pode 'explicar' as conexes no mundo inorgnico, a partir de uma conformidade a leis projetada pelo intelecto humano na matria. A vida orgnica no pode surgir, nem ser explicada, pelo mecanicismo. Nietzsche arrisca a hiptese de que a vida se formou de uma cadeia infinita de ensaios malogrados2. impossvel apreender o conceito 'vida', compreender a vida em sua cons-tituio essencial. Contudo, pode-se investigar as formas em que a vida se desenvolve, a partir do conceito de fim natural. O organismo nada mais seria do que "vida enformada"3: o que o move a vontade.

    Se no perodo militar de 1867-68 Nietzsche se recusa a subsumir a vida Idia do todo, nos anos subseqentes ele aproxima o organismo do todo, atravs da vontade de viver schopenhaueriana. Segundo Schopen-hauer, a 'vontade' se objetiva desde os graus mais inferiores do mundo inorgnico at os mais elevados e adequados - no mundo animal e huma-no. A cada grau de objetivao da vontade corresponde uma idia. Trata-se da nica e idntica Vontade, que aparece em todas as idias, aspi-

    1 Cf. SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e representao (MCVR); Werke in fnf Bnden, I , 27.

    2 Cf. FS III, Die Teleologie seit Kant (outubro de 1867 - abril de 1868), p. 381.