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texto sobre antropologo frances

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  • Philipe Descola e a Virada Ontolgica na Antropologia

    Luiz Csar de S JniorUniversidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil

    E-mail: [email protected]

    DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-8034.2014v16n2p7

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    Luiz Csar de S Jnior

    Abstract

    This article aims at introducing the reader to the ongoing set of anthropo-logical theories that are part of a more general philosophical movement called ontological turn. After performing the synthesis of some fundamental assumptions, it moves onto the main work of the French anthropologist Philippe Descola, Par-del nature et culture, in which emerges a theoretical elaboration that combines historical and ethnographic materials with structuralist theories. In conclusion, it is argued that this model may be useful for other disciplines of the Humanities.

    Keywords: Philippe Descola. Ontological Turn. Symmetric Anthropology. Multinaturalism.

    Resumo

    Este artigo pretende mostrar ao leitor um conjunto de teorias antropol-gicas, em vias de produo, que se inscreve num movimento filosfico geral chamado de virada ontolgica. Aps realizar a sntese de alguns pres-supostos fundamentais, ser tratada a principal obra do antroplogo Philippe Descola, Par-del nature et culture, na qual desponta uma elaborao teri-ca que concilia materiais histricos e etnogrficos a teorias estruturalistas. Argumenta-se, por fim, que esse modelo pode ser proveitoso para as demais disciplinas do campo das hu-manidades.

    Palavras-chave:Philipe Descola. Virada Ontolgica. Antropologia Simtrica. Multinaturalismo.

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    Philipe Descola e a Virada Ontolgica na Antropologia

    1 Do Multiculturalismo ao Multinaturalismo

    A expresso antropologia simtrica1, como todas as etiquetas acad-micas, porta um sentido que, do momento de sua confeco at agora, isto , na passagem das ltimas quatro dcadas (Latour, 2007, p. 11), comea a exibir certo desbotamento2. Ainda assim, ela pode nos servir de ponto de partida para adentrar o universo da chamada virada ontolgica na antropologia, de que Par-del nature et culture, livro de Philippe Descola, representante distinto, e ao qual me re-portarei neste artigo.

    O trabalho de romper com o dualismo que apartava as antro-pologias social e cultural, tradicionalmente caa de culturas, e as antropologias fsicas e biolgicas, interessadas pela natureza, partiu da reconsiderao desses conceitos por parte da antropologia simtrica. A multiplicidade de culturas que autorizava o exerccio antropolgico dependia, afinal, da estabilidade oferecida pelo conceito de natureza, homogneo, frio e objetivo e, portanto, apto a exercer o papel de ter-cium comparationis. A natureza figurava tambm como meta a alcanar, algo que definiu o papel determinante da Cincia como instrumento medidor do progresso ocidental (para Bruno Latour, particularmente o europeu) e termmetro de prticas a ele desconhecidas. Se estaria diante de uma natureza geral, exterior ao homem, da qual no se sabe tudo, mas pode-se eventualmente saber, e o homem, em suas proprie-dades particulares, as quais, se bem que variadas e quase indecifrveis no espelho das mltiplas culturas, poderiam em, todo caso, recair em modelos essencialistas e determinveis. Latour oferece um exemplo claro quanto ao ltimo aspecto: [...] algum pode registrar com mui-to mais facilidade as vrias maneiras de compreender a concepo

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    se souber que a fisiologia pode prover a nica definio da maneira biolgica de se ter filhos.3

    Essa situao clssica, ou melhor, moderna (Latour, 2007, p. 13), culmina no estrangulamento da noo de multiculturalismo pela antropologia simtrica, pois ela no chegaria a qualquer ponto efetivamente profundo e no faria mais do que refratar apenas um regime de discurso4 ou, na formulao mais recente de Latour, um nico modo de existncia; a saber, o cientfico, embora este convo-que para si o patrimnio inerente ao desvendamento de toda a reali-dade. No fundo, o multiculturalismo entendido como eco regular e inspido da noo de natureza, esvaziada, ela mesma, de qualquer multiplicidade conceitual.

    Indo alm, seria legtimo argumentar que o impasse deriva de inconsistncias de tipo ontolgico. A antropologia tradicionalmente assumiu que cada cultura tinha vinculada a si a Natureza, explicada segundo vises de mundo, que poderiam transform-la em uma natureza particular. A questo se complica a partir da necessidade de que essa natureza fosse entabulada em um conceito de cultura que aglutinasse a perspectiva de natureza e de cultura que, unificadas, da-riam o tom de uma sociedade. O sentido mais geral dessa sociedade, em seguida, s se veria explicado por uma concepo de natureza superior e estvel, acima de todo o conjunto, e assim por diante, numa cadeia referencial potencialmente interminvel. (Sztutman, 2009, p. 89)

    O imbrglio acaba por desembocar na polmica entre relativistas e universalistas. Eles optariam por compreender o conjunto de culturas humanas naquilo que lhes prprio em conjunto, ou seja, sua Natu-reza comum. J aqueles apostariam que cada cultura teria demarcada independncia das demais, sendo incomparvel s restantes devido a sua construo particular de natureza. No caso dos Modernos, teria prevalecido sua crena na prpria modernidade (uma modernidade em-si), refletida por sua inclinao universalista, emaranhada do incio ao fim fora absoluta da objetividade inerente Cincia. Latour defende posio contrria, mas no relativista, no sentido esprio que a crtica das humanidades lhe impingiu, qual, revertida aos univer-salistas, render-lhes-ia o ttulo de absolutistas,5 mas outra. Em vez

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    de relativismo como impossibilidade imanente da busca do verdadeiro ou do real melhor seria dizer, do nico Verdadeiro e do nico Real , irrastrevel no multiverso de naturezas e associaes, organizao relativista do pensamento, no sentido de traar correspondncias e associaes num mundo ontologicamente plural (Latour, 2007, p. 16), o que no significaria, de modo algum, descartar as condies de verificabilidade de asseres cientficas:

    A tese essencial no seria tanto a de que h tantos mundos quanto pontos de vista, mas a de que esses mundos so reais, ou mais exatamente so a realidade, na falta desse mundo absoluto que s poderia ser captado desde um ponto de vista absoluto, o de Deus. Se tal opo filosfica pode ser pouco palatvel para positivistas profissionais, no deveria ser difcil de assumir para os antroplogos e os humanistas em geral. O postulado, aparentemente extraordinrio, de que cada ponto de vista define um mundo diferente se traduz na experincia singela de que cada sujeito age em funo do que v, e com isso realiza o que v. O verdadeiramente extraordinrio seria esperar que ele agisse de acordo com estruturas ou princpios gerais que no v. E, no entanto, isso que esperam outras epistemologias: que as aes obedeam a regras gerais ou que, devidamente interpretadas, possam se fundir num horizonte comum. (Sez, 2012, p. 15)

    Crendo na soluo relativista h pouco esboada, h quem insista que toda a querela entre relativistas e universalistas faria pouco ou nenhum sentido, uma vez que, antes de tudo, suas definies de natureza e cultura difeririam, sendo mesmo impossvel alcanar consenso. Uma soluo para isso residiria no entendimento de daqueles para quem [...] um verdadeiro relativismo isto , um perspectivis-mo , nas palavras de Giles Deleuze, no afirma a relatividade do verdadeiro, mas a verdade do relativo (Sztutman, 2009, p. 91). Na mesma toada de Latour, acrescenta-se que o verdadeiro relativismo interessa-se pelo plano das relaes, enquanto os absolutistas en-volver-se-iam com a disputa pelo monoplio do Um, do em-si. Eis a razo pela qual, exemplifica, Richard Dawkings e o papa se digladiam (inutilmente) apesar das evidentes disparidades ontolgicas dos planos de sua enunciao.

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    Eduardo Viveiros de Castro anteviu uma possibilidade de crtica a partir da falsa associao do multinaturalismo a um relativismo cultural6, a qual poderia transformar a busca pela formulao de on-tologias por um disfarce, como se este fosse apenas outro nome para cultura. No importante ensaio Perspectivismo e multinaturalismo, ele teve a chance de sintetizar a posio amerndia em termos que refutam essa leitura:

    O perspectivismo no um relativismo, mas um multina-turalismo. O relativismo cultural, um multiculturalismo, supe uma diversidade de representaes subjetivas e parciais, incidentes sobre uma natureza externa, una e total, indiferente representao; os amerndios propem o oposto: uma unidade representativa ou fenomenolgica puramente pronominal, aplicada indiferentemente sobre uma mesma diversidade real. Uma s cultura, mltiplas naturezas; epistemologia constante, ontologia varivel o perspectivismo um multinaturalismo, pois uma perspectiva no uma representao. (Viveiros de Castro, 2011, p. 379)7

    Philippe Descola acrescentou, anos depois, que as tratativas relativistas permitiriam, como quis Latour, reconciliar a investigao cientfica pluralidade dos mundos e coletivos que compem o plane-ta. Assim como nos depoimentos acima citados, Descola antev uma soluo que descarta o relativismo por seu congraamento enquanto tcnica relativista pronominal:

    Eu a chamarei [a via de conciliao] sem dificuldades de universalismo relativo, no por provocao ou pendor por antifrases, mas tomando o epteto relativo no sentido que ele tem em pronome relativo, ou seja, aquilo que remete a uma relao. O universalismo relativo no parte da natureza e das culturas, das substncias e dos espritos, das discriminaes entre qualidades primeiras e qualidades segundas, mas de relaes de continuidade e de descontinuidade, de identidade e de diferena, de semelhana e dessemelhana que os humanos estabelecem por toda parte entre os existentes por meio das ferramentas herdadas de sua filognese: um corpo, uma intencionalidade, uma atitude a perceber traos distintivos, a capacidade de manter com um

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    outro qualquer relaes de aliana ou de antagonismo, de dominao ou de dependncia, de troca ou de apropriao, de subjetivao ou de objetificao. (Descola, 2005, p. 418-419)8

    Caso se queira enxergar alm da cortina de fumaa Moderna, tera-se que, segundo esses autores, investir na antropologia simtrica e na virada ontolgica a ela vinculada. Esta aparece, assim, tanto como reabilitao da reflexo metafsica nas cincias sociais contem-poraneamente quanto como dnamo da crtica, cada vez mais incisiva, ao paradigma nuclear dessas cincias, preservado desde sua gerao, no sculo XVII: a referida oposio entre natureza e cultura (Viveiros de Castro, 2012, p. 152). Essa distino, por sua vez, agrega diversas outras (sujeito versus objeto, discurso versus realidade, etc.9), es-tabelecendo o fio condutor do que se tem chamado de metafsica dos Modernos10, sua mitologia particular, ou, para usar a logomarca de Bruno Latour, sua ontologia regional11. A natureza e a cultura que a definem, para retomar uma ltima vez a vulgata, guisa de concluso desta etapa, seriam os elos cosmolgico e antropolgico da existncia, duas ordens estanques cujo entrelaamento somente se daria com o esforo humano, sempre limitado, de perscrutar tudo aquilo que no humano atravs das lentes da objetividade. A virada ontolgica, tendo nascido na filosofia epistemologicamente desconfortvel com o correlacionismo antropocntrico, instituiu-se no ncleo de trabalhos antropolgicos que privilegiavam as metafsicas indgenas em tudo aquilo que elas poderiam nos ensinar (a ns, Modernos europeus e ocidentais), agora que foram aladas condio simtrica atinente multiplicidade de naturezas possveis (Viveiros de Castro, 2012, p. 167) e que se dispem a propor um novo pacto para a auto-organizao dos Modernos e para um tratamento mais dinmico e simtrico com os demais coletivos.

    Se o esforo de pluralismo ontolgico12 irmana-se bem s metaf-sicas indgenas, faz sentido recorrer aos argumentos disponibilizados por um dos trabalhos que melhor e com mais potncia perfilou as ambies ontolgicas da antropologia simtrica e essas metafsicas, que frequentemente lhes servem de combustvel: Par-del nature et

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    culture, de Philippe Descola. Antes, esboa-se os caminhos trilhados por Descola at a escrita do livro, como seu preldio.

    2 Dilemas da Razo Prtica: natureza e cultura entre os Achuar

    De acordo com a trama da prpria reconstituio de sua carreira, Philippe Descola no se imaginava de maneira alguma na posio que viria a ocupar em 2005, com a publicao de Par-del nature et cultu-re. O ento jovem estudante, amlgama de iconoclasta da metafsica e filsofo medocre13, que bateu porta de Lvi-Strauss em busca de sua ateno e aconselhamento, queria mergulhar no empirismo mais profundo, o que o levou, como se sabe, Amaznia e aos Achuar, onde passou alguns anos com sua companheira, Anne Christine14.

    As peripcias desse estudante e seu relato delas do o tom do percurso que o alou ctedra de Antropologia da natureza do Collge de France. A carreira de Descola percorreu um momento de grande rejeio teoria, quando os interesses descritivos e a relutncia em incorrer nas mal vistas macroanlises estruturalistas, acusadas de reducionismo, imperavam. Faz sentido, portanto, que sua obra tenha encontrado refgio junto a Lvi-Strauss, uma vez que o estruturalismo podia prover-lhe a oportunidade concreta de construir uma etnografia adequada a seu rito de passagem no campo antropolgico e vontade de empiria sem descurar da possibilidade de formulaes de calibre terico sobre o outro. Ou, como se v, sem abandonar as proposies gerais como premissas mediadoras de voos mais altos, sempre ancora-dos, porm, em vertiginosa documentao e experincia etnogrfica.

    Eram j esses os pressupostos do primeiro livro do autor, de 1986. Tese de doutorado orientada por Lvi-Strauss, La nature domestique propunha um mapeamento das circunstncias tcnicas e simblicas das relaes dos Achuar com seu ambiente natural a partir de um conjunto de proposies marcantes. Oscilando entre os espritos de geometria e finesse, constitutivos do exerccio antropolgico, mas usualmente separados pela navalha do pragmatismo imposto, de resto, a cada pesquisa e a cada pesquisador submetidos angstia do produtivismo, Descola oferecia uma anlise que se destinava a recobrir

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    tanto o territrio especulativo de uma [...] intuio demonstrvel pela coerncia dos encadeamentos lgicos que ela autoriza [...] quanto os aspectos contingenciais de pesquisas de [...] sries recorrente empiri-camente verificveis pelo trabalho estatstico. (Descola, 1986, p. 2)15.

    Este casamento difcil entre quantificao e hermenutica, ra-dicado numa separao de bens epistemolgicos situados nas esferas objetivistas da natureza e da cultura, parece rumar ao fracasso por, segundo Descola, se ater a domnios que foram criados por causa da economia da exposio de um texto como se eles fossem instncias especficas, e no formas distintas de aproximao a dado objeto. adequado lembrar que Descola falava de um lugar em que essa dis-tino era extrema, a saber, a encruzilhada entre o apreo filosfico por Althusser e a aura de dogmatismo letrgico que o cercava e a experincia de humildade que apenas uma etnologia de estranhas instituies exticas poderia oferecer (Descola, 1986, p. 3). Institui-es que seriam iluminadas pela exegese do cotidiano e pelas exguas coordenadas de Lvi-Strauss e Godelier que conseguira apreender, cujas obras conhecia o necessrio para preparar uma aula brilhante sobre a noo de estrutura, isto , muito poucas coisas16 (Descola, 1986, p. 3)

    Foi armado com elas que procedeu tarefa de socializao da natureza, bastante ingrata se considerar, com Descola, que, de Oviedo a Buffon, o territrio amaznico foi dominado por um naturalismo que o classificava como uma [...] espcie de conservatrio botnico e zoolgico, muito acessoriamente habitado por homens17 (Descola, 1986, p. 10). De fato, a inexistncia, entre os Achuar, de uma nar-rativa coerente e sistemtica de interpretao do mundo dava falsa pertinncia ao utilitarismo que nos levaria a pensar que aquela era uma sociedade sem cultura. Desconfiado desse paradigma, Descola investiu numa tentativa de bricolagem que se orientava a partir do contedo simblico das prticas, sem estabelecer hierarquias imanen-tes entre mental e real. Assim, viabilizava o percurso de uma praxis organicista, que fundia ambos os aspectos (usos do meio ambiente e suas representaes) para forjar o complexo objeto intitulado por ele de estrutura das prticas (Descola, 1986, p. 12), cujo centro , no caso dos Achuar, o mbito domstico18.

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    Em resenha publicada no Anurio Antropolgico, em 1988, Mauro W. B. de Almeida lana luz sobre as propostas de Descola e o debate em torno do qual a tese fora preparada. Sintomtico da escaramua intelectual em curso o prprio percurso da resenha, que escolheu partir da verso amaznica do jogo de soma zero entre estruturalistas e materialistas para s ento tratar de La nature domestique. O fator de desequilbrio introduzido por Descola nesse jogo era precisamente o fazia de seu livro um empreendimento excitante. (Almeida, 1988, p. 213)

    De maneira bastante incisiva, Almeida apontava para aquilo que Lakatos chamou de degenerao de um programa de pesquisa nesses embates amaznicos. Na maior parte dos casos, os aspectos materiais vinham ao centro das investigaes; se explicados a partir de circunstncias culturais, ou se estas fossem explicadas sem recor-rer queles, ocorria uma vitria estruturalista, enquanto a resoluo do enigma da cultura por meio do desafio materialista resultava em derrota (Almeida, 1988, p. 214-215). O livro de Descola seria um representante do paradigma inclusivo, no qual ecologia e economia empreendiam potente simbiose, passvel de descrio por meio de dispositivos presentes em ambas as teorias19 (Almeida, 1988, p. 218). O meio domstico seria uma unidade tcnica propcia a esse encontro, na qual no valeria o imperativo material produtivista (termo ademais estranho quele coletivo); ao contrrio, sintetiza Almeida, [...] a su-gesto de que a forma exacerbadamente domstica de sociabilidade Achuar guiada, alm das exigncias materiais imediatas, pela ideia de autonomia embutida na cosmologia Achuar. (Almeida, 1988, p. 219)

    Das vrias colocaes crticas de Almeida, uma resulta particular-mente importante, pois retornar pauta daqueles que se indispuseram com concluses que Descola viria a desenvolver em Par-del nature et culture. Uma vez que Descola decidiu isolar o ncleo domstico como referncia possvel para organizar sua anlise dos Achuar, isso implica assumir que eles [...] compartilham um mesmo conjunto virtual de tcnicas e representaes e que estas so parte da compe-tncia de todos. O corolrio dessa sugesto bvio: a hiptese de Descola postula justamente aquilo que o livro deveria provar, isto ,

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    a unificao das ordens simblica e material (Almeida, 1988, p. 220). Ao fim e ao cabo, Descola acabaria enredado nas teias de um conflito terico europeu, cuja resposta, seja como hiptese, seja como ponto a provar, acabaria incidindo decisivamente sobre a leitura dos Achuar. Ser obrigado a retomar a considerao evidente de que a reconstituio daquela cosmogonia passava por filtros naturalistas poderia soar a muitos como pedgio necessrio a pagar no curso de qualquer investida antropolgica; mas, pensada no interior do mais amplo debate sobre os conceitos de natureza e cultura, cujo curso viria a imiscuir-se em seu projeto intelectual, provar-se-ia insidiosa.

    3 A Antropologia da Natureza e as Quatro Ontologias

    O resultado alcanado pela tese no delimitou o fim da pesquisa de Descola em torno dessas questes. O passar dos anos permitiu-lhe reunir elaborao metafsica e empiria para alm das expectativas gera-das pelo trabalho inaugural, e essa estratgia fez com que a combinao de teoria e grand rcit encampada por Par-del nature et culture ecooasse veementemente no cenrio intelectual francs (Bloch, 2007, p. 181). Far-se- o mapeamento de sua proposta geral e de crticas e possveis respostas frente a seus argumentos capitais.

    O propsito declarado de Par-del nature et culture , como indica o ttulo, desautorizar a ideia de que natureza e cultura de-vem ser duas categorias universalmente apartadas, considerao que s faria sentido aos Modernos e, mesmo entre eles, apenas a partir da metade do sculo XVII. Para alm das evidentes implicaes no estudo de outras sociedades, essa hiptese, caso confirmada, permitiria re-pensar as metodologias e objetivos da prpria antropologia (Descola, 2005, p. 13), cujas bases estariam, nesse sentido, viciadas.

    Sua proposta de reordenamento do campo passa, precisamente, por uma crtica ao empirismo isolado, isto , que ignore fatores estrutu-rais. Em suas prprias palavras, queria afastar-se do historicismo, e de sua f ingnua na explicao por meio de causas antecedentes, sendo necessrio ter em vista vigorosamente que somente o conhecimento da estrutura de um fenmeno permite se interrogar de modo perti-nente sobre suas origens 20.Fiel a sua formao, Descola reconhece de

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    partida, porm, que esse conhecimento estrutural s foi formulado na sequncia de uma experincia etnogrfica muito particularizada21.

    No convvio com os Achuar, Descola comeou a amadurecer a alternativa ao binmio em questo partindo do princpio de que a natureza no gozava, entre os ndios, de estatuto singularizado, nem tampouco remetia-se tipologia de objeto utilizado ou utiliz-vel, mas era, antes, tida por sujeito participante das relaes sociais. A categoria de sujeito relevante, pois orienta o entendimento de que aquela cosmologia qualificava espritos, plantas e animais como entes dotados de alma, no havendo, portanto, pesada discriminao ontolgica entre humanos e no-humanos, ou seja, os coletivos22, seno do ponto de vista da hierarquia que separava uns de outros (Descola, 2005, p. 23)23. Para mais, sobressaa a congruncia de sua interioridade. (Descola, 2005, p. 176)

    Exibindo uma das principais qualidades do livro, a saber, sua ca-pacidade de antever potenciais armadilhas e dar respostas a possveis crticas e indagaes no interior do prprio projeto, Descola imediata-mente se pergunta quanto possibilidade de que os Achuar constitus-sem exemplo to isolado que dificilmente poderia explicar mesmo o panorama mais vasto das populaes indgenas da Amrica do Sul. Eis o instante em que, exercitando bem o dispositivo discursivo que une autocrtica e captatio benevolentiae24, alis, reciclado de sua experincia com a escrita de La nature domestique, Descola amplia o escopo de grupos cuja perspectiva no era dualista, passando aos Makuna da Colmbia oriental e, um tanto rapidamente, para a concluso de que cosmologias semelhantes figuram em diversos territrios. O que vai se constituindo como um modelo acaba por fazer frente prova de fogo da distncia, pois Descola constata a persistncia de cosmologias aparentadas quelas dos povos amaznicos em localidades milhares de quilmetros ao norte, como entre os ndios da regio subrtica do Canad25. Antes que se lhe possa indagar, recusa, por fim, a possi-bilidade de que as coincidncias sejam meramente sintonia de uma linguagem metafrica comum (Descola, 2005, p. 35), e isso graas concordncia estrutural de suas prticas e esquemas interpretativos26.

    Est armada a fundao que sustentar a pergunta central de Descola. Se as experincias recolhidas e sistematizadas aps o convvio

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    com os Achuar podem de fato superar vnculos superficialmente meta-fricos ou relaes ideolgicas alm de tudo entravadas por distncias geograficamente significativas, pode-se concluir pela existncia de traos estruturais que deem conta da proximidade de suas vises de mundo, ou melhor, de seus prprios modos de viver. E se verdade que uma estrutura como essa que se chame de ontolgica pode ser verificada entre os ndios, provavelmente valeria ir alm e orga-nizar dispositivos inerentes a outros grupos, cartografando, mas no somente, os prprios ocidentais. (Descola, 2005, p. 52-56)

    A morfologia empregada por Descola para reportar as ontologias que constituiu parte de um princpio lgico-analtico bastante slido. Trata-se do que ele chama de [...] duas modalidades fundamentais de estruturao da experincia individual e coletiva [...] (Descola, 2005, p. 163), nomeadas por ele identificao e relao27. A identi-ficao traduz-se como o esquema primitivo de mediao entre o ente e os demais existentes, entre o soi e o non-soi, forma elementar, assim, de registro de continuidades e descontinuidades; a relao, como mecanismo de correspondncia entre os entes28. Ambos, em seguida, se desdobram em outro par, tomado da filosofia de Husserl, qual seja, fisicalidade e interioridade, completando o dispositivo. As relaes de semelhana e dessemelhana entre as fisicalidades e as interioridades geram quatro ontologias: animismo (semelhana de interioridades, diferena de fisicalidades), totemismo (semelhana de interioridades, semelhana de fisicalidades), naturalismo (diferena de interioridades, semelhana de fisicalidades) e analogismo (diferena de interioridades, diferena de fisicalidades) (Descola, 2005, p. 176). Observa-se, de modo esquemtico, quais so suas caractersticas prin-cipais, seguindo de perto consideraes recentes de Descola.

    A ontologia animista est presente em regies da Amrica do Sul e do Norte, e tambm na Sibria e em partes da sia. Sua caracterstica principal a imputao de subjetividade a plantas, animais e outros elementos do ambiente fsico de modo a estabelecer relaes pesso-ais com eles. Sua participao naquilo que se chama de vida social concebvel graas continuidade de interioridades pressuposta; ela expressa, na maior parte dos locais onde prevalece o animismo, pela ideia de que a humanidade uma condio universal. As diferenas

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    entre os seres ficam evidentes pela descontinuidade de seus corpos. Muitos coletivos animistas investem nessa diferena ao designar a possibilidade de que os corpos sejam descartados, o que garantiria a portabilidade da interioridade. Isso, contudo, no impede que os corpos sejam valorizados, j que eles so mais do que meros signos da alma, apresentando-se como equipamentos biolgicos que identificam espa-os apropriados para as espcies, seu Umwelt. (Descola, 2014, p. 275)

    A ontologia totemista bem menos recorrente que as demais, sendo melhor exemplificada pelos aborgenes da Austrlia. Os seres dessa ontologia compartilham atributos organizados por um totem. O totem, geralmente um animal ou planta batizado com o nome de uma propriedade abstrata (e no um nome atrelado espcie, por exemplo), congrega um grupo de humanos, que compartilham, por meio dele, disposies fsicas e comportamentais. O nome do totem designa as propriedades da espcie, de modo que o que liga humanos e no humanos no o aporte natural ou zoolgico, mas a cadeia de analogias que agrega as descontinuidades evidentes entre eles. (Descola, 2014, p. 275-276)

    A ontologia analogista rene uma dupla srie de diferenas, par-tindo do pressuposto de que as entidades do mundo correspondem a uma multiplicidade de formas e essncias separadas por pequenos intervalos, sendo frequentemente organizada segundo uma cadeia que organiza e vincula atributos presentes no mundo (Descola, 2014, p. 276). possvel detect-las nas tcnicas divinatrias chinesas; nos coletivos africanos que creem haver reciprocidade entre desordens sociais e catstrofes naturais; e na medicina europeia dos sculos XV-XVII, na qual prevalecia a busca de analogias entre sintomas, objetos e partes dos corpos humanos (Descola, 2005, p. 280-281). A analogia transformou-se, nas muitas variaes da ontologia analogista, em re-corrncia cotidiana para explicao do mundo, s vezes tornando-se manaca na medida em que o anseio pela completude hermenutica revela-se crucial. A nica forma de ordenar um regime de diferenas de interioridade e de fisicalidade empregar a semelhana. Ela apa-recia como a designao de trajetrias que podiam se repetir em seus termos (metfora) ou em suas relaes (metonmia). No caso dos

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    primeiros, trata-se de uma relao avizinhada, visvel, enquanto nos segundos valia a simpatia, uma afinidade distncia. Em todos os casos existem signos a identificar (Descola, 2005, p. 285-287). Tendo sido predominante tambm entre as populaes do Mxico no sculo XVI, possvel argumentar, via analogismo, que os astecas pareciam bem menos misteriosos aos europeus do que as expresses modernas deste encontro permitem enxergar. (Descola, 2005, p. 289)

    A ontologia naturalista seria aquela em que se vive. Ele designa o pressuposto, surgido convencionalmente em meados do sculo XVII europeu, de que h um domnio ontolgico determinista chamado natureza, em que leis gerais poderiam explicar eventos e onde nada aconteceria sem uma causa. Ao mesmo tempo, a ontologia natura-lista privilegia a qualidade do artifcio humano, sua livre inveno, cuja complexidade teria sido domesticada no curso do aparecimento de cincias voltadas a ela ao longo do sculo XIX. Os alvos dessa domesticao seriam denominados culturas. O naturalismo parte de premissa oposta do animismo, pois a continuidade material, prpria dos elementos da natureza, onde nada nem ningum existe singularmente, enquanto a descontinuidade interior, expressada pela mente e pela alma e seus corolrios lngua, moral. Essa classificao muitas vezes agrega os humanos, em fuso que gera uma nova marca de descontinuidade interior; por isso que prevaleceu por muito tempo a ideia de designar um povo por meio de seu esprito, volksgeist, gnie du peuple. (Descola, 2014, p. 277)

    Duas tentativas de crticas poderiam se impor a esses dispositivos. A primeira salta logo aos olhos quando somos tentados a associar a posio dualista de Descola dinmica entre corpo e alma, comum aos ocidentais. Fosse vlida essa leitura, no custaria atac-lo sob o argumento de que as quatro ontologias acabam por se estruturar me-diante os critrios da ontologia regional de que faz parte. Recordemos, ademais, que j em La nature domestique aparecia essa dificuldade de dico, que enxergava um continuum entre natureza e cultura que no entanto acabava algo enredado em manifestaes descritivistas propriamente naturalistas. Mas Descola inteirou-se dessa ameaa, e no prprio livro que a refuta, sustentando que, antes de tudo, a dis-tino entre corpo e alma extrapola em muito os esquemas ocidentais

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    e, se haveria algum dualismo mais restrito a ele, seria sem dvida o que ope natureza e cultura (Descola, 2005, p. 175). Mas poder-se-ia ir mais longe, diz, acrescentando que as chances de que haja conta-minao da ontologia particular na descrio das demais algo com que se pode contar. Bastaria enfatizar que o pensamento naturalista tem predileo por classificaes muito parecidas com aquela h pouco esboada. Nada a temer se admitir que, de fato, o empreendimento de Descola no recusa sua origem (Descola, 2005, p. 337); muito pelo contrrio, procura inscrever-se nela.

    A segunda crtica marcaria a frgil armadura heurstica em que o livro parece se amparar frente descomunal tarefa de descrever ontologias em escala planetria. Nesse caso, Descola teve a oportuni-dade de se esclarecer quando respondeu ao conjunto de observaes de Jean-Pierre Digard logo na sequncia da divulgao do livro. Na ocasio, lembrou que seus instrumentos no se prestam a esclarecer as particularidades dos grupos, algo que s poderia se descortinar com uma combinao de trabalho etnogrfico e histrico delirante. Seria preciso encar-los como ferramentas heursticas, cujo design permitiria estabelecer analogias de nvel estrutural, explicando a persistncia de certos comportamentos, mitos, etc.29. Nos termos do prprio Descola, mesmo os objetos estudados a partir dessas ontologias no so snte-ses ad hoc de representaes e prticas totalizadas, mas conjuntos de caractersticas [...] abstradas de descries da vida social de modo a salientar algumas de suas propriedades.30 (Descola, 2014, p. 274)

    O prprio livro tambm se defrontou com esse aspecto. Quando conclui sua elaborao das quatro ontologias, Descola passa a discor-rer contra a objeo que todavia considera racional em torno de sistemas to elementares.

    Poder-se-ia objetar com razo que o mundo e seus usos so complexos demais para serem reduzidos a esse gnero de combinao elementar. Lembremos ento que os modos de identificao no so modelos culturais ou habitus localmente dominantes, mas esquemas de integrao da experincia que permitem estruturar de modo seletivo o fluxo da perceo e a relao com o outro por meio do estabelecimento das semelhanas e das diferentes entre as coisas a partir dos recursos idnticos que cada um

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    carrega consigo: um corpo e uma intencionalidade. Os princpios que regem esses esquemas, sendo universais por hiptese, no poderiam excluir uns aos outros, e pode-se supor que eles coexistem em potencial em todos os humanos. Um ou outro dos modos de identificao torna-se, certo, dominante em tal ou qual situao histrica, e encontra-se assim mobilizado prioritariamente na atividade prtica e nos julgamentos classificatrios, sem que seja por isso aniquilada a capacidade que tm os trs outros de se infiltrar ocasionalmente na formao de uma representao, na organizao de uma ao ou mesmo na definio de um campo de hbitos. (Descola, 2005, p. 322)31

    A capacidade de encontrar diversos aspectos das ontologias em tempos e lugares cruzados fundamental, e talvez seja a situao mais comum a verificar nas sociedades ou coletivos estudados, pois as oscilaes de dominao ontolgica no podem ser medidas seno em larga durao temporal. As combinaes resultantes seriam altamente complexas, mas, mesmo assim, evidenciariam regularidades prprias das estruturas organizadas pelos modos de identificao e de relao. (Descola, 2014, p. 277)

    Essa arquitetura aponta para um fator adicional a ser considerado, que de suma importncia. Pode-se capt-lo por meio de entrevista recente do autor, publicada pela Topoi, revista de Histria. Quando perguntado sobre os passos que o levaram a este curioso oxmoro que antropologia da natureza, engrenagem principal do livro de 2005, Descola argumenta:

    Ento, ao longo do tempo, fabriquei este modelo em etapas sucessivas, acrescentando-lhe peas e corretivos, de tal modo que, na sua forma se no definitiva, em todo caso a mais acabada (a que forneci em Par-del nature et culture), tem-se a impresso de que se trata de um dispositivo hipottico dedutivo oriundo de uma operao antropolgica clssica e no de uma generalizao etnogrfica por induo. Mas, na verdade, sem entrar no detalhe das etapas sucessivas que resultaram nesse modelo, evidente que ele tem uma aparncia um tanto artificial de completude que no revela nada sobre os arcabouos progressivos que a etnografia, a etnologia e a

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    discusso com os colegas etnlogos permitiram construir. Devo dizer, mais uma vez, que tenho uma formao filosfica, e uma das caractersticas da filosofia ocidental a obsesso pelos fundamentos, de que muito difcil se desvencilhar. (Descola, 2013, p. 496)

    [...] Mas eles me pareceram necessrios para poder construir com mais segurana a minha anlise a partir de um dispositivo simples. Por que um dispositivo simples? Porque h muito tempo sou partidrio da navalha de Occam: as solues filosficas, lgicas ou matemticas mais simples e elegantes so frequentemente as mais eficazes e produtivas. Da o modelo que desenvolvi de um sujeito transcendental mais uma vez, uma fico totalmente eurocntrica, mas pouco importa que vai detectar ou no continuidades ou descontinuidades entre si, como sujeito dotado de um aparelho de deteco, cognitivo, simples, e o que ele observa sua volta. E isso ele pode fazer graas a duas ferramentas principais que denominei interioridade e fisicalidade. (Descola, 2013, p. 497)

    As etapas de uma elaborao significativamente filosfico-an-tropolgica impeliram Descola a uma espcie de modelo mvel (um pouco como uma mquina experimental), cujas articulaes podem alterar-se ou mesmo desaparecer conforme o progresso da pesquisa. Estas convivem, por outro lado, com dados prvios pretensamente universais, a saber, os dispositivos de identificao e relao, sem os quais no seria possvel propor o restante da dmarche. Observa-se mais de perto os esquemas cognitivos que presidem formao desses dispositivos.

    4 Estruturas e Esquemas da Prtica

    A mecanicidade das estruturas32 tem sido o principal alvo de seu descrdito enquanto dispositivo analtico no mbito das cincias sociais, razo pela qual Descola precisou remover certas dvidas do caminho antes de passar descrio tanto de seu conceito de estrutura quanto daquele de esquema.

    assim que, na seo Les schmes de la pratique, Descola v-se na necessidade de evocar um princpio estabelecido por Kant

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    para justificar o alinhamento entre uma fisiologia das interaes, prpria do territrio da experincia, e uma morfologia das prticas, decompostas em suas unidades mnimas para facilitar o processo de extrapolao explorado por Par-del nature et culture. Esse esforo origina-se, portanto, da percepo kantiana de que estruturas sem contedo so to vazias quanto experincias no dotadas de forma33.

    Pensar em prticas orientadas por formas nada tem a ver com um frio automatismo conduzido por estruturas desmembradas dos agentes. Para Descola, preciso desembaraar a confuso entre as categorias, abrindo espao para um conceito de estrutura afinado quele de habitus. Seguindo os passos de Bourdieu, seria necessrio assumir que as estruturas formam-se dentro de sistemas de valores calcados pela contingncia das experincias histricas acumuladas pela interiorizao imitativa e pelos circuitos da prtica. Mas alm dos estratagemas de Bourdieu, mesmo admitindo sua eficcia34, que se encontra as solues para as dificuldades com as quais este estru-turalismo tem de se haver.

    Descola prope-se a aceitar a lgica do habitus, procurando estru-turas que, todavia, o precedem. Tratar-se-ia de uma matriz originria (matrice originelle), ontologicamente definida como um pequeno nmero de esquemas prticos interiorizados, por oposio a esquemas mentais imanentes. Em clara dvida para com Estruturas elementa-res do parentesco de Lvi-Strauss, Descola firma compromisso tanto com estruturas concebidas a partir do contato com o mundo quanto com mecanismos inconscientes elementares capazes de mediar as interaes entre o inteligvel e o emprico (Descola, 2005, p. 139-144). Os esquemas cognitivos de mediao conquistaram muita ateno entre tericos da Gestalt e mesmo no meio dos pesquisadores da neurocincia. Servindo-se deles e das reflexes de Roy DAndrade em The development of cognitive anthropolgy, Descola chega a uma definio formal para os esquemas (schema, schme). Es-quemas seriam estruturas interpretativas especficas (teoricamente quantificveis) atividades por imputs mnimos que desenvolvem o reconhecimento (Descola, 2005, p. 563). Os esquemas seriam mveis e flexveis, fragmentos de um saber tcito, e de maneira alguma

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    requereriam o conjunto completo de atributos para determinada atri-buio de sentido. Os traos esquemticos de uma casa, por exemplo, poderiam estar apenas parcialmente presentes ou em diversos seg-mentos de configurao e ainda assim seriam reconhecidos afinal, uma casa em runas continua uma casa, e um iglu pode ser definido como casa apesar da distncia formal que se nos apresenta ao obser-v-lo (Descola, 2005, p. 144-145). Precisamente por sua compleio genrica e adaptvel, os esquemas podem ter ativado comportamentos humanos e no humanos semelhantes em situaes contingenciais absolutamente distintas, que passam a ser comparveis num plano histrico-antropolgico. (Descola, 2005, p.154-156)

    5 A Virada Ontolgica e a Renovao Terica das Cincias Humanas

    A proposta de Descola, muito embora rigidamente confinada em suas quatro ontologias e esquemas elementares, parece mais slida que a de modelos alternativos, como o recentemente lanado por Bruno Latour. Sem propor qualquer comparao densa entre os livros, note-se que, em Latour, com a admisso de inmeras outras ontologias, chamadas por ele de modos de existncia inicialmente quinze em Enqute sur les modes dexistence, potencialmente muitas mais ocorre a possibilidade subjacente (eis a chave do problema e a dife-rena que se quer apontar) de que a ontologia regional dos Modernos fique dotada de uma variedade de modos de existncia indisponveis nas ontologias indgenas (basta pensar que o empreendimento, se bem-sucedido, ocasionar inmeras pesquisas adicionais em torno da antropologia dos Modernos, descobrindo novos modos de existir), discrepncia suficiente para intuir a permanncia de sua supremacia frente a outras formas de organizao, algo que nem de longe consta do projeto intelectual e ideolgico de Latour.

    Por outro lado, uma caracterstica a unir os dois trabalhos adviria dos dispositivos de organizao da experincia, que, combinando a empiria do observador s estruturas tericas numa espcie de fita de mobius, irmanam-se, finalmente, aos prprios relatos dos indivduos que vivem no interior das ontologias, cujas percepes, se bem que,

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    muitas vezes contraditrias ao que efetivamente se verifica em suas prticas (sobretudo entre os Modernos), so fundamentais para que no se ignore o que os atores tm a dizer de si mesmos. Esse predicado, colhido nas experincias antropolgicas com as metafsicas indgenas, confere sentido especial antropologia simtrica em sua virada on-tolgica. E ajuda-nos, finalmente, a escapar do encarceramento que a Objetividade inerente Cincia Moderna relega a outras formas de existncias no validadas por Si. No se est aqui, bvio, diante de uma negao da anlise cientfica, jamais reduzida (nem em Desco-la, nem em Latour) qualidade de mito entre outros35. Trata-se, na verdade, da substituio da Cincia pelas cincias36. Essa forma de relativismo, alimentada por certa crena no poder explicativo do uni-versalismo, d tons muito maduros discusso referida no incio deste comentrio. Trata-se, em suma, de defender que os muitos mundos e seres do planeta podem e so compostos de maneiras distintas, sen-do necessrio acess-los para alm dos critrios exclusivos de nossa ontologia. (Descola, 2014, p. 279)

    Se Latour e Descola reagem a seus respectivos trabalhos de forma complementar e por vezes polmica, o mesmo deve ser dito a respeito de outro par, aquele formado por Descola e Viveiros de Castro.

    Bruno Latour recapitulou com grande vivacidade um encontro ocorrido entre eles em Paris no ano de 2009 texto de ttulo sugestivo: Perspectivismo: tipo ou bomba? Ali, Latour relata que a amizade de vinte e cinco anos entre Viveiros e Latour no impediu a realizao de uma discusso intensa, em que a admisso da importncia dos trabalhos de um e de outro somou-se a crticas insinuadas desde h muito em conferncias e publicaes. (Latour, 2011, p. 173)

    Da parte de Descola, referiu-se ao trabalho do colega como fun-damental na constituio do ataque ao binmio natureza-cultura, uma vez que seu conceito de anismismo tinha muito a ver com as pesquisas de Viveiros de Castro em torno do perspectivismo. Graas a esses esforos, teria sido possvel postular um mundo, comemora Latour, livre da unificao espria de um modo naturalista de pensar (Latour, 2011, p. 175). Este no impediria o universalismo to caro aos naturalistas, mas o redefiniria em termos distintos e mais sofisticados, a saber, as quatro ontologias em suas dinmicas estruturais.

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    Viveiros de Castro expressou seu desconforto com a interpreta-o de Descola por meio de uma srie de sugestes, mas poder-se-ia escolher uma delas como entrada discusso: o conceito de perspec-tivismo seria, na viso do antroplogo francs, uma forma regional do animismo, e que teria sido explorada a fundo por Viveiros, produzindo o tipo de discrepncia entre modelo e tipo que uma leitura to abran-gente quanto a de Par-del nature et culture no poderia alcanar. Viveiros de Castro discorda completamente dessa posio, na medida em que sua definio de universalismo ainda mais radical (Latour, 2011, p. 175). Reconhecendo a crtica permanncia do naturalismo como chave de leitura de Descola, Viveiros de Castro esclarece que o perspectivismo, antes de ser tipo, bomba: no quer compactuar com a confraria dos antroplogos republicanos que insistem em impor categorias catequticas nalguns casos, de todo caquticas ao pen-samento amaznico. O problema no est, portanto, no estruturalis-mo, mas no determinismo poltico que acompanha o debate natureza versus cultura.

    Ciente de que a Cincia no entidade pertinente para se con-trapor s muitas polticas do exerccio intelectual, Viveiros de Castro no recusa a patente ideolgica de sua reflexo. Descola, com a melhor das intenes, teria construdo, bem ponderadas as coisas, mais um cmodo no amplo Wunderkammer ocidental, negando, assim, a luta amerndia por reconhecimento ontolgico e pela descolonizao do pensamento (Latour, 2011, p. 176). Viveiros de Castro pondera que Descola no apenas um naturalista, mas tambm um analogista, na medida em que [...] possudo pelo cuidadoso e quase obsessivo acmulo e classificao de pequenas diferenas a fim de preservar um senso de ordem csmica ante a constante invaso de diferenas ameaadoras. (Latour, 2011, p. 176)

    Sem essa ltima volta do parafuso, o padro-ouro kantiano per-maneceria no controle, e o pensamento ocidental em nada ganharia com o amerndio. A bomba fica, assim, desarmada, e o que significaria uma descrio engajada ainda que racionalista, academicista e, em suma, naturalista das muitas formas indgenas de agir, de sua cos-mopraxis, viria a se tornar, no fundo, mais um episdio da luta terica

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    europeia. No se engajar, nesse sentido, equivaleria a escrever mais um captulo da longa trajetria de Paris no Par. Latour encerra seu resumo referindo-se a isso: A essa crtica Descola respondeu que ele no estava interessado no pensamento ocidental, mas no pensamen-to de outros; Viveiros de Castro replicou que a sua maneira de estar interessado que era o problema. (Latour, 2011, p. 177)

    Apesar das claras divergncias, possvel estabelecer, ao menos no que diz respeito ao debate mais abrangente do universalismo, pontos em comum37. Afinal, uma das grandes conquistas de Par-del nature et culture nos convencer firmemente da impossibili-dade e inutilidade da oposio entre relativismo e universalismo. Aquele seria muito melhor aproveitado se ambicionado em termos de correspondncias entre as diversas ontologias do mundo em seus modos especficos de relao e identificao. Este, admitindo que a condio estvel da natureza humana (sem obliterar espaos para as contingncias de suas prticas), hipottica e convencionalmente invarivel, no funciona como vetor de explicaes automatizadas, mas como circuito e esquema intermedirio que rene potencialidades biolgicas a comportamentos da ordem da prtica numa metateoria (Descola, 2006, p. 434). E, numa teoria que pretende explicar todas as teorias, quaisquer caminhadas beira do abismo valem o risco, j que, findo o caminho, poder-se-ia divisar o aperfeioamento das humani-dades como um todo, para no falar de ganhos polticos que, mesmo no estando no horizonte imediato de Descola, que fez da nostalgia combustvel de seu minucioso exame, possivelmente contam com sua simpatia. Razes pelas quais Par-del nature et culture no apenas um sucesso antropolgico, mas marco notvel no campo das cincias humanas.

    Agradecimentos

    Este texto foi elaborado a partir de seminrios de ps-graduao coordenados por Andrea Daher e Eduardo Viveiros de Castro, a quem gostaria de agradecer. Endereo, ainda, meus agradecimentos ao pare-cerista annimo, que me ofereceu indicaes preciosas. Os eventuais equvocos so de minha total responsabilidade.

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    Notas

    1 A expresso designa, grosso modo, o esforo de direcionar a antropologia para a indagao dos prprios modernos naquilo que eles tm de central. Destina-se es-pecificamente a abandonar os locais comuns de investida no Ocidente civilizado, como periferias, cultos religiosos minoritrios, etc., permitindo uma investigao da Cincia, do Direito e outras instituies, com o propsito de transpor seus praticantes condio de nativos do ponto de vista da disciplina. Um exemplo inaugural desse esforo encontra-se em Latour e Woolgar (1996). Adicionalmente, a antropologia simtrica pretende conferir aos nativos tradicionalmente assim de-signados, notadamente os indgenas americanos, a capacidade de elaborar teorias acerca de suas prprias sociedades e as de seus visitantes. Nativos e antroplogos, em suma, [...] ressurgem como posies precrias, reversveis e intercambiveis, assim como o so humanos e no-humanos para o perspectivismo amerndio. (Sztutman, 2009, p. 15)

    2 A noo de antropologia simtrica surgiu do trabalho de Bruno Latour, e sempre esteve muito prxima de sua teoria do ator-rede (ANT), vulgarizada com Latour (2005). Contudo, a relevncia da ideia de rede, tal como tomada pela ANT, comeou a cair por terra com a obra mais recente do prprio Latour (2012), cujos desdobra-mentos podero incidir diretamente, por conseguinte, no prprio conceito por ele arquitetado.

    3 For example, one can register so much more easily the various ways of understand-ing conception if one knows that physiology provides the one and only definition of the biological ways of having childen. (Latour, 2007, p. 13)

    4 Regimes of speech era a formulao apresentada por Latour em seminrio condu-zido por Philippe Descola no Collge de France em 2003, quando as pesquisas que culminariam em EME estavam longe de terminar. Ela basicamente procurava des-tronar a ideia de uma Cincia em nome de cincias, cujas naturezas especficas incidiriam em seus regimes internos de verdade. essa a tese muito desenvolvida por EME, e que resultou na fundao do conceito de modos de existncia. (Latour, 2007, p. 29)

    5 A ideia retornar em EME, quando Latour identificar a propenso a empregar o termo relativista de maneira pejorativa, o que poderia ameaar seu argumento antes que ele pudesse ser lido. Bien plus, par une perversit dont il faudra com-prendre plus tard les origines, ce diable (car cest vraiment un diable!) sest mis stigmatiser, sous lexpression de relativistes, ceux qui veulent que la raison paye en rseaux les moyens de son extension. Sans voir que la position inverse, celle qui prtend quil existe des dplacements sans transformation, ne mriterait pas dautre tiquette que celle dabsolutisme. (Latour, 2012, p. 106)

    6 Mas h uma questo bem mais importante aqui. A teoria perspectivista amerndia est de fato, como afirma Arhem, supondo uma multiplicidade de representaes sobre o mesmo mundo? Basta considerar o que dizem as etnografias, para perceber que o exato inverso que se passa: todos os seres veem (representam) o mundo da mesma maneira o que muda o mundo que eles veem. (Viveiros de Castro, 2011, p. 378)

    7 Philipe Descola viria a retomar essa formulao de Viveiros de Castro no livro que ser analisado adiante: [] Viveiros de Castro a-t-il eu raison de souligner que lopposition fondamentale entre ces deux modes didentification reposait pour lessentiel sur une inversion symtrique: lanimisme est multinaturaliste, selon lui

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    puisque fond sur lhtrognit corporelle de classes dexistants pourtant dots dun esprit et dune culture identiques, tandis que le naturalisme est multicultu-raliste en ce quil adosse au postulat de lunicit de la nature la reconnaissance de la diversit des manifestations individuelles et collectives de la subjectivit. (Descola, 2005, p. 242)

    8 Je lappellerai volontiers luniversalisme relatif, non par provocation ou got des antiphrases, mais en prenant lpithte relatif au sens quelle a dans pronom relatif, cest--dire qui se rapporte une relation. Luniversalisme relatif ne part pas de la nature et des cultures, des substances et des esprits, des discriminations entre qualits premires et qualits secondes, mais des relations de continuit et de discontinuit, didentit et de diffrence, de ressemblence et de dissimilitude que les humains tablissent partout entre les existants au moyen des outils hri-ts de leur phylogense: un corps, une intentionnalit, une aptitude percevois des carts distinctifs, la capacit de nouer avec un autrui quelconque des rapports dattachement ou dantagonisme, de domination ou de dpendence, dchange ou dappropriation, de subjectivation ou dobjetivation.

    9 Paradigmas consolidados a partir da filosofia cartesiana e que foram disputados nas ltimas dcadas por etnlogos como Ingold e Berque e neurofisiologistas como James Gibson, estando aqueles confronts, segundo Philipe Descola, dans les socits quils tudiaient des modes de relation lenvironnement dont les for-mulations locales cadraient mal avec le dualisme classique du monde et de lesprit, du sujet et de lobjet ou de lintellection et de la sensation. (Descola, 2005, p. 261)

    10 O termo Modernos no de modo algum autoexplicativo. Para Latour, o relato usual que deseja superar poderia ser assim resumido: A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores ou jornalistas. Ainda assim, todas as definies apontam, de uma forma ou de outra, para a passagem do tempo. Atravs do adjetivo moderno, assinalamos um novo regime, uma acelerao, uma ruptura, uma revoluo do tempo. Quando as palavras moderno, modernizao e modernidade aparecem, definimos, por contraste, um passado arcaico e estvel. Alm disso, a palavra encontra-se sempre colocada em meio a uma polmica, em uma briga onde h ganhadores e perdedores, os Antigos e os Modernos. Moderno, portanto, duas vezes assimtrico: assinala uma ruptura na passagem regular do tempo; assinala um combate no qual h vencedores e vencidos. (Latour, 1994, p. 15). A compreenso das respostas de Latour exige a leitura integral do volume, para comear.

    11 Voil ce qui nous est arriv ; voil ce dont il sagit dhriter ; et maintenant, quallons-nous faire de cette anthropologie historique ou, mieux, de cette ontologie rgionale?. (Latour, 2012, p. 11)

    12 Latour o defende em EME nestes termos: Mais, linverse, on va peut-tre bn-ficier dun pluralisme ontologique qui va permettre de peupler les cosmos dune faon un peu plus riche et, par consquent, de commencer sur une base plus qui-table, la comparaison des mondes la pese des mondes. On ne stonnera donc pas que je parle dans tout ce qui suit des tres de la science, de la technique, etc. Au fond, il nous faut reprendre la vieille question quest-ce que ? (quest-ce que la science ? quelle est lessence de la technique ? etc.), mais en dcouvrant des tres aux proprits chaque fois diffrentes. Ce quon va perdre en libert de parole les mots portent leur poids dtre on va le regagner par le pouvoir dentrer en contact avec des types dentits qui navaient plus de place dans la thorie et pour

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    lesquelles il faudra chaque fois trouver un langage qui leur soit ajust. Entreprise prilleuse, si len est. (Latour, 2012, p. 33)

    13 Normalista indolente e filsofo medocre, eu descobrira na leitura dos clssicos da sociologia uma feliz compensao para o purgatrio da agrgation. [...] Insatisfeito com a exegese filosfica e com a submisso exclusiva ao trabalho da teoria pura, decidi finalmente abandonar meus colegas ao seu fervor metafsico. Em vez de dissertar sobre as condies de produo da verdade, eu ia me afundar nas trevas do empirismo e me esforar para explicar os fatos da sociedade. (Descola, 2006, p. 46)

    14 O empirismo que impeliu o incio da carreira de Descola o mesmo que continua a animar, afinal, a teoria de Bruno Latour. Em seu caso, almeja um empirismo moda de William James, [...] rien que lexprience, oui, mais pas moins que lex-prience. (Latour, 2012, p. 10)

    15 La contradiction est ordinairement rsolue par le partage des tches: tandis que certains privilgient lexercice dune intuition rendue dmonstrative par la cohren-ce des enchanements logiques quelle autorise, dautres moins nombreaux, il est vrai se consacrent la recherche de sries rcurrentes empiriquement vrifiables par le travail statistique. (Descola, 1986, p. 2)

    16 De ces auteurs, notre petit groupe dagrgatifs ne connaissait gnralement que ce quil faut savoir pour faire une leon brillante sur la notion de structurem cest--dire trs peu de choses. (Descola, 1986, p. 3)

    17 Depuis Oviedo jusqu Buffon, cet univers original est apparu aux savants euro-pens comme une sorte de conservatoire botanique et zoologique, trs accessoire-ment peupl par des hommes. (Descola, 1986, p. 10)

    18 O plano domstico de fato o responsvel pelo continuum que Descola enxergava entre natureza e cultura: Or, cette multiplicit fragmente dappariements avec le monde naturel est organise par lide fondamentale que la nature est lenjeu de rapports sociaux identiques ceux qui ont la maison pour thtre. La nature nest donc ni domestique ni domesticable, elle est tout simplement domestique []. Cette spectaculaire rduction du fouillis sylvestre lordre horticole indique assez que le rapport de la nature la culture se donne moins voir comme une csure que comme un continuum. (Descola, 1986, p. 398)

    19 No se trata, ento, de refutar teses de qualquer das teorias em competio (a refutao no mata teorias), mas de preservar fatos bons de cada teoria (carter estruturado do simbolismo; viabilidade adaptativa da prtica Achuar) e, talvez, apontar para fatos novos.

    20 Contre lhistoricisme, et sa foi nave dans lexplication par les causes antcdentes, il faut rappeler avec force que seule la connaissance de la structure dun phnom-ne permet de sinterroger de faon pertinente sur ses origines. (Descola, 2005, p. 13-14)

    21 Les convictions intimes quun anthropologue se forge au sujet de la nature de la vie sociale et de la condition humaine rsultent souvent dune exprience ethnogra-phique trs particularise, acquise auprs de quelques milliers dindividus qui ont su instiller en lui des doutes si profonds quant ce quil tenait auparavant comme allant de soi que toute son nergie se dploie ensuite les mettre en forme dans une enqute systmatique. (Descola, 2005, p. 21)

    22 A expresso foi aparentemente coletada na obra de Latour: [] collectives (the technical term I use to make it clear that it is neither a question of nature or of cultures). (Latour, 2007, p. 16)

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    23 Esta sntese de Viveiros de Castro apresenta explicaes adicionais quanto s discre-pncias entre esse modelo e o ocidental: A proposio presente nos mitos indgenas : os animais eram humanos e deixaram de s-lo, a humanidade o fundo comum da humanidade e da animalidade. Em nossa mitologia o contrrio: os humanos ramos animais e deixamos de s-lo, com a emergncia da cultura etc. Para ns, a condio genrica a animalidade: todo mundo animal, s que alguns (seres, espcies) so mais animais que os outros: ns, os humanos, certamente somos os menos animais de todos e esse o ponto, como se diz em ingls. Nas mitologias indgenas, muito ao contrrio, todo mundo humano, apenas alguns desses hu-manos so menos humanos que os outros. Vrios animais so muito distantes dos humanos, mas so todos ou quase todos, na origem, humanos ou humanides, antropomorfos ou, sobretudo, antropolgicos isto , comunicam-se com(o) os humanos. Tudo isso vai ao encontro da atitude que se costuma chamar de ani-mismo, a pressuposio ou intuio pr-conceitual (o plano de imanncia, diria Deleuze) de que o fundo universal da realidade o esprito. (Sztutman, 2009, p. 33)

    24 Peut-tre mme est-ce mon interprtation de leur culture qui est fautive? Par dfaut de perspicacit ou dsir doriginalit, je naurais pas su ou voulu dceler lagencement spcifique quaurait priz chez eux la dichotomie entre nature et socit. (Descola, 2005, p. 25-26)

    25 Dans le Grand Nord comme en Amrique du Sud, la nature ne soppose pas la culture, mais elle la prolonge et lenrichit dans un cosmos o tout sordonne aux mesures de lhumanit. (Descola, 2005, p. 33-34)

    26 Concordncia justificada por cumulativas investigaes etnolgicas e arqueolgicas que comprovam a existncia de uma cultura original americana no completamente devastada pela atividade colonial. En tmoignent les mythes, bien videmment, ces variations ordonnes sur un substrat smantique homogne, dont il est difiicile dimaginner quils ne procdent pas dune commune conception du monde, forge au cours de mouvements millnaires dides et de populations. (Descola, 2005, p. 38)

    27 Lhypothse servant de fil conducteur aux analyses qui vont suivre est que les sche-mes intgrateurs des pratiques dont nous avons examin les mcanismes gnraux au chapitre prcdent peuvent tre ramens deux modalits fondamentales de structuration de lxperience individuelle et collective, que jappellerai lidentification et la relation. (Descola, 2005, p. 163)

    28 Sempre atento s lacunas, Descola adverte que essas categorias no esgotam as possibilidades de estruturao da experincia, havendo que levar em conta tambm, no mnimo, a temporalidade, a espacializao, a figurao, a mediao e a categorizao. (Descola, 2005, p. 166)

    29 Aussi faut-il prciser que mon entreprise nest pas comparatiste au sens habituel, et encore moins encyclopdique. Il ne sagit pas pour moi de collectionner des ph-nomnes et de les classes par gnralisation inductive dans des botes spcimens, la manire de Frazer ou de Radcliffe-Brown, mais de partir dune hypothse rela-tivement abstraite et qui nest peut-tre quune exprience de pense - les quatre manires de distribuer lintriorit et la physicalit - dont je dduis des proprits quanto aux diverses faons quont les humains de structurer le monde et les usages auxquels il se prte, faons que jillustre par des cas idaltypiques emprunts des rgions de la plante suffisamment diverses pour que la varit des expriences que ces cas traduisent confre une certaine vraisemblance aux distinctions que jopre.

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    Les modes didentification et de relation que jisole nont donc pas pour finalit de rendre compte de tous les particularismes culturels et sociaux quauraient pu rapporter lethnographie et lhistoire - un tel projet serait en effet dlirant; il faut les voir comme des outils heuristiques au moyen desquels il serait possibile de mieux comprendre pourquoi certain types de phnomnes tudis de longue date par lanthropologie sont compatibles ou non entre eux du fait de leurs proprits de structure. (Descola, 2006, p. 430)

    30 These objects are neither empirical nor ideal, they are not an ad hoc synthesis of representations and practices; they are bundles of contrastive features abstracted from descriptions of social life in order to highlight some of its properties.

    31 On pourrait objecter avec raison que le monde et ses usages sont bien trop com-plexes pour tre rduits ce genre de combinaison lmentaire. Rappelons donc que les modes didentification ne sont pas des modles culturels ou des habitus localement dominants, mais des schmes dintgration de lexperience qui permet-tent de structurer de faon slective le flux de la perception et le rapport autrui en tablissant des ressemblances et des diffrences entre les choses partir des ressources identiques que chacun porte en soi: un corps et une intentionalit. Les principes qui rgissent ces schmes tant universels par hypothse, ils ne sauraient tre exclusifs les uns des autres et lon peut supposer quils coexistent en puissance chez tous les humains. Lun ou lautre des modes didentification devient certes dominant dans telle ou telle situation historique, et se trouve donc mobilis de faon prioritaire dans lactivit pratique comme dans les jugements classificatoires, sans que ne soit pour cela annihile la capacit quont les trois autres de sinfiltrer occasionnellement dans la formation dune reprsentation, dans lorganisation dune action ou mme dans la dfinition dun champ dhabitudes.

    32 A base lvi-straussiana que sustenta as formulaes de diversos intelectuais da virada ontolgica na Antropologia , para Turner e outros, a origem dessa me-canicidade. Como explica Sez, [...] o fracasso do estruturalismo [] reside na sua incapacidade de, uma vez elaborada essa sntese monumental de Mitolgicas, realizar-se tambm como uma anlise em nveis mais concretos, traando grupos de transformao que descrevam conjuntos etnolgicos reais. Se bem entendi, Turner desafia o estruturalismo a aplicar na terra o grau de formalizao que desenhou no cu. (Sez, 2012, p. 8)

    33 Pour paraphraser une clbre formule de Kant, des structures sans contenu sont vides, des expriences sans formes, prives de signification. (Descola, 2005, p. 135)

    34 Pour raisonnable quelle soit, cette particularisation de lhabitus rend toutefois difficiles la comparaison des modalits de sa manifestation concrte et la saisie comme un ensemble structur des diverses combinaisons o il intervient. (Descola, 2005, p. 138)

    35 Pensa-se aqui nos procedimentos de construo dos fatos cientficos como reconsi-derados, anos atrs, por Bruno Latour e Steve Woolgar em A vida de laboratrio, livro no qual descreveram processos laboratoriais a partir de categorias literrias, sem qualquer pretenso de reduzir aqueles processos a meras fices. Tratava-se, ento, de reconhecer a descoberta como processo sociolgico. Quando colocamos a tnica no procedimento de construo das substncias, quisemos afastar as descries dos biotestes que consideram no problemticas as relaes entre significantes e significados. Opusemos aos cientistas que sustentam a ideia de que as inscries podem ser representaes ou indicadores de uma substncia exterior (out there)

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    o argumento de que essas substncias s eram construdas pelo prprio uso das inscries. [...] No atribumos absolutamente aos cientistas a inteno de utilizar estratgias como o desvelamento de verdades dadas e at ento dissimuladas. Na realidade, os objetos, (neste caso, as substncias) so constitudos pelo talento criativo dos homens de cincia. (Latour; Woolgar, 1997, p. 131)

    36 Je ne vois pas non plus ou Bruno Latour - puisquil est embarqu avec moi dans cette galre - aurait pu crire cette niaiserie que la science est un mythe parmi dautres. Ou alors peut-tre dans un sens trs particulier que je partage avec lui comme avec les historiens et les sociologues qui soccupent de ces questions : tous ces gens-la prennent en effet au srieux les sciences, les circonstances de leur mergence et de leur consolidation, les pratiques qui les entretiennent, lincidence des dispositifs de mesure et dinstrumentation sur la definition de leurs objets, les institutions qui rendent possibles leur exercice, et bien dautres choses encore quils tudient en consultant les carnets des expriences, les correspondances et les journaux personnels ou en menant leurs enqutes directement dans les laboratoires ; mais ils restent en revanche assez perplexes devant la Science, cette majestueuse abstraction dont ils preferent laisser la caracterisation aux epistemologues patentes et aux scientifiques que demange le prurit philosophique. (Descola, 2006, p. 432)

    37 No se deve perder de vista a ampla colaborao entre Descola e Viveiros de Castro, para alm das intensas discordncias apontadas. Este no tem qualquer dificuldade em reconhecer a relao de proximidade entre as noes de animismo e perspecti-vismo, dentre outros aspectos (Viveiros de Castro, 2002, p. 361; 466-467 et passim).

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    Recebido em 2/8/2014.Aceito em 4/11/2014.