(per musi - ufmg) 9

130

Upload: lynga

Post on 08-Jan-2017

259 views

Category:

Documents


4 download

TRANSCRIPT

Page 1: (Per Musi - UFMG) 9
Page 2: (Per Musi - UFMG) 9

Editorial

É com grande satisfação que volto a ser o Editor de PER MUSI. Não muitas tarefas acadêmicas dãotanto trabalho, mas também muito prazer, quanto editar um periódico e... mantê-lo periódico! PERMUSI tem alcançado este objetivo desde que foi criada em 2000 e, hoje, desfrutando do Conceito A naCAPES, está indexada nas bases do RILM Abstracts of Music Literature e na Bibliografia da MúsicaBrasileira da ABM. Assim, devemos todos reconhecer a formidável editoria anterior do Prof. AndréCavazotti, que não apenas soube manter a vocação nacional e internacional da revista nos seus artigose conselhos editoriais, mas também ampliá-la incluindo a publicação de resenhas e entrevistas.

A partir do próximo volume, PER MUSI não será um fórum apenas de autores com produções direta ouindiretamente ligadas à Performance Musical. Refletindo uma demanda de seus leitores, a ampliaçãodo Curso de Pós-Graduação em Música da UFMG e a própria constatação de que a maioria dos estudosem Performance Musical faz interface com outras sub-áreas da música, PER MUSI se coloca agoracomo um veículo de discussão de assuntos musicais estudados cientificamente em quaisquer das sub-áreas - Performance Musical, Educação Musical, Musicologia, Etnomusicologia, Composição, Análise,Música e Tecnologia - ou de natureza interdisciplinar. Continua também a proposta de publicar partiturasde obras (não extensas!) comentadas em artigos, entrevistas com autoridades musicais e resenhas delivros, CDs, teses e dissertações importantes.

O presente volume 9 de PER MUSI apresenta o segundo de uma série de quatro artigos de Jean-Jacques Nattiez, preparados exclusivamente para essa revista, em primorosa tradução de sua pupilapós-doutoranda Sandra Loureiro de Freitas Reis. No monumental, denso e panorâmico artigo orapublicado, o papa da semiologia aborda a análise musical segundo os modelos lingüísticos estruturalista,fonológico, paradigmático e das gramáticas gerativas. Fausto Borém incursiona pela área das práticasde performance historicamente informadas, ao discutir o estilo improvisatório livre no repertório barrocoe propor elaborações por adição e subtração em uma sarabande e uma gigue de J. S. Bach, cujasversões ornamentadas são aqui publicadas. Vania Claudia da Gama Camacho analisa as Três Cantoriasde Cego para piano de José Siqueira e discute como esse compositor paraibano transpõe, para apauta, elementos da tradição oral nordestina. Sérgio Dias garimpa, analisa a autoria e descreve trêsmanuscritos de uma missa barroca atribuída a Pergolesi, depositados nos acervos portugueses da Séde Évora, da Biblioteca Nacional de Lisboa e do Convento de Arouca. Ingrid Barancoski apresenta umlevantamento sobre a bibliografia de repertório do século XX para o ensino do piano nos níveis básicoe intermediário, abordando seus aspectos técnico-musicais com abundantes exemplos. Na seção deresenhas “Pega na Chaleira”, Norton Dudeque aborda duas obras da importante produção intelectualde Arnold Schoenberg, ao mesmo tempo em que acrescenta muitas informações relevantes: o históricoHarmonia, traduzido por Marden Maluf e o menos conhecido Exercícios Preliminares em Contraponto,traduzido por Eduardo Seincman.

Finalmente, informo que os resumos (e abstracts) de artigos já publicados, a aquisição devolumes anteriores e informações sobre a submissão de trabalhos, encontram-se no sitewww.musica.ufmg.br/permusi

Fausto BorémEditor de PER MUSI - Revista Acadêmica de Música ([email protected])

Page 3: (Per Musi - UFMG) 9

PER MUSI - Revista Acadêmica de Música é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade eo debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSIestá indexada nas bases RILM Abstracts of Music Literature e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

EditorFausto Borém (UFMG)

Comissão EditorialAndré Cavazotti (UFMG)

Cecília Cavalieri França (UFMG)Maurício Freire (UFMG)

Maurício Loureiro (UFMG)Rosângela de Tugny (UFMG)

Sandra Loureiro (UFMG/UFOP)

Conselho Consultivo do Volume 10André Cavazotti (UFMG)

Antônio Carlos Guimarães (UEMG)Cristina Capparelli Gerling (UFRGS)Eunice Dutra Galery (Letras, UFMG)

Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Portugal)Lúcia Barrenechea (UFG)

Luiz Guilherme Duro Goldberg (UFPel)Luiz Paulo Sampaio (UNIRIO)

Ney Vasconcelos (OSESP)Omar Corrado (Universidad Nacional de Buenos Aires - Universidad Católica, Argentina)

Sônia Ray (UFG)Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Espanha)

Revisão GeralFausto Borém (UFMG)

Maria Inêz Lucas Machado (UFMG)

Universidade Federal de Minas GeraisReitora Profa. Dra. Ana Lúcia Almeida Gazzola

Vice-Reitor Prof. Dr. Marcos Borato Viana

Pró-Reitoria de Pós-GraduaçãoProf. Dra. Sueli Pires

Pró-Reitoria de PesquisaProf. Dr. José Aurélio Garcia Bergmann

Escola de Música da UFMGProf. Dr.Lucas José Bretas dos Santos, Diretor

Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG:Prof. Dr. Maurício Loureiro, Coordenador

Secretárias de Pós-GraduaçãoEdilene Oliveira e Dasy Araújo

Projeto GráficoCapa e miolo: Jussara Ubirajara

Logomarcas PER MUSI e Vinheta “PEGA NA CHALEIRA”Desenhos: Fausto Borém

Arte final: Edna de Castro (Diretoria de Divulgação e Comunicação Social - DDCS/UFMG)

Arte-Final Samuel Rosa Tou (Diretoria de Divulgação e Comunicação Social - DDCS/UFMG)

FotosFoca Lisboa (Diretoria de Divulgação e Comunicação Social - DDCS/UFMG)

Tiragem bruta250 exemplares

PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - v.9, janeiro / junho, 2004 - Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2004 –

v.: il.; 29,7x21,5 cm. Semestral ISSN: 1517-7599

Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos. I. Escola de Música da UFMG

Page 4: (Per Musi - UFMG) 9

SUMÁRIO

Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais ..................... 05Linguistic models and analysis of musical structures

Jean-Jacques NattiezTrad. Sandra Loureiro de Freitas

Livre ornamentação por adição e subtração emduas danças de J. S. Bach ...............................................................................47Free ornamentation by addition and subtraction in two dances by J. S. Bach

Fausto Borém

Partitura da Sarabande e da Gigue da Suite N.1 paraVioloncelo ..........................................................................................................64Scores of the Sarabande and Gigue from the Violoncello Suite N.1

J. S. Bach

As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira:um enfoque sobre o emprego da tradição oral nordestina ..........................66The Três Cantorias de Cego (Three Songs of the Blind) for piano by José Siqueira:an overview about the use of oral tradition in Northeastern Brazil

Vania Claudia da Gama Camacho

Giovanni Battista Pergolesi a partir dos arquivos portugueses:nótulas sobre a precedência dos manuscritos relativos àMissa em Ré Maior para Cinco Vozes e Instrumental ...................................79Giovanni Battista Pergolesi´s in Portuguese archives:notes on the precedence of the Mass in D Major for Five Voices and Instruments manuscripts

Sérgio Dias

A literatura pianística do século XX para o ensino do piano nosníveis básico e intermediário .................................................................. 89Twentieth-century piano literature for the basic and intermediate piano teaching levels

Ingrid Barancoski

“PEGA NA CHALEIRA” – RESENHAS:Sobre Harmonia de Arnold Schoenberg.Tradução de Marden Maluf ...............................................................................114About Arnold Schoenberg´s Harmony. Portuguese translation by Marden Maluf

Norton Dudeque

Sobre os Apêndices dos Exercícios Preliminares emContraponto de Arnold Schoenberg.Tradução de Eduardo Seincman .....................................................................124About Arnold Schoenberg´s Preliminary Exercises in Counterpoint.Portuguese translation by Eduardo Seincman

Norton Dudeque

Page 5: (Per Musi - UFMG) 9

5

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais

Jean-Jacques Nattiez (Université de Montréal)Tradução de Sandra Loureiro de Freitas Reis (Professora Emérita da UFMG)

Revisão de Luiz Paulo Sampaio (UNIRIO)

Resumo: No decorrer da segunda metade do século XX, a análise musical voltou-se para os modelos lingüísticosde inspiração estruturalista para tentar renovar e tornar mais explícitos os métodos tradicionais. Neste artigo queé, ao mesmo tempo, uma bibliografia crítica e um relato epistemológico, Jean-Jacques Nattiez examina ocontexto em que se encontraram a Musicologia e a Lingüística; apresentando, alternativamente, as aplicações domodelo fonológico, do modelo paradigmático (com uma discussão das proposições e do reconhecimento posteriorde Ruwet) e as diversas gramáticas musicais descritivas de inspiração gerativa, que foram propostas. Examina,igualmente, tanto os trabalhos que versam sobre a música ocidental como aqueles que examinam os repertóriosestudados pela Etnomusicologia e pelos especialistas em música popular.Palavras-chave: análise musical, estruturalismo, modelos lingüísticos, fonologia, análise paradigmática, gramáticasgerativas.

Linguistic models and analysis of musical structures

Abstract: During the second half of the twentieth century, musical analysis has turned to linguistic models inspiredby Structuralism, in an attempt to renew and make the traditional methods more explicit. In this article, which isboth a critical bibliography and an epistemological account, Jean-Jacques Nattiez examines the context in whichMusicology and Linguistics encountered. He presents alternatives to phonological models‘s applications, to theparadigmatic model (with a discussion about the Ruwet’s analytical proposals and his posterior recognition) andto the different descriptive musical grammars of generative inspiration. He also examines research dealing withWestern Music as well as the ones that analyse the repertory covered by Ethnomusicology and Popular Musicspecialists.

Keywords: musical analysis, structuralism, linguistic models, phonology, paradigmatic analysis, generativesgrammars.

1. O encontro da música, do estruturalismo e da lingüística:Geralmente, liga-se a aparição dos modelos lingüísticos na análise musical ao surgimento dasemiologia. Historicamente, isto é correto, com a condição de nos limitarmos às esferas culturaisfrancesas e italianas para o essencial. De fato, após a segunda guerra mundial, pesquisadoresvindos de diferentes horizontes – os lingüistas Roman Jakobson e Nikolas Ruwet, o antropólogoClaude Lévi-Strauss, o crítico literário Roland Barthes, o especialista em cinema Christian Metz,bem próximos em espírito uns dos outros, mas revelando grandes diferenças entre si quanto àmetodologia seguida e quanto aos resultados empíricos obtidos, acreditaram na idéia de que alingüística tinha, doravante, o estatuto de "ciência-piloto das ciências humanas" (RUWET, 1963).

1 Este artigo é uma versão, profundamente revisada e bastante aumentada, de duas contribuições anteriores(NATTIEZ, 1988; NATTIEZ, 1992 b). Foi redigido a pedido do professor Enrico Fubini que promoveu a suapublicação, em italiano e em inglês, na Rivista italiana di musicologia, vol.XXXV, n.1-2, 2001, p.321-410, emum número consagrado às tendências da Musicologia no fim do século XX. O original francês foi revisto, emvista da presente publicação em português para Per Musi, e agradeço à minha colega Sandra Loureiro deFreitas Reis, por ter tido a coragem de empreender a sua tradução. JJNattiez

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música - v. 9, 129 p, jan - jun, 2004.

Recebido em: 05/01/2004 - Aprovado em: 29/03/2004.

Page 6: (Per Musi - UFMG) 9

6

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

Evidentemente, havia no pensamento posterior à Segunda Guerra Mundial um interesse geralpelas reflexões concernentes à linguagem. Citamos a obra do filósofo Brice Parain, Recherchessur la nature et les fonctions du langage (1943) ou os escritos sobre estética de Mikel DUFRENNE(1953,1966,1968), de orientação fenomenológica, que se perguntava, com insistência, se ecomo a arte era linguagem. A questão estava igualmente presente no domínio musical, comobem demonstrou Enrico Fubini em Musica e linguaggio nell’estetica contemporanea (1973). Oclima estava, portanto, favorável ao encontro da música e da lingüística. Mas, sem dúvida, istonão teria ocorrido de maneira não especulativa, mas empírica e concreta no campo da análisemusical

2, se não tivéssemos presenciado a emergência do estruturalismo, nos domínios, de

início, lingüísticos e, em seguida, não-lingüísticos.

À luz das proposições teóricas do Cours de linguistique générale de Ferdinand de SAUSSURE(1922)

3, constatamos o sucesso, ao mesmo tempo metodológico e empírico da fonologia. Não

a confundiremos com a fonética. A fonética se preocupa em descrever, física e acusticamente,todos os aspectos sonoros da linguagem. A fonologia, por sua vez, interessa-se pelas unidadesmínimas próprias de uma língua: os fonemas. De um lado, ela é capaz de propor critériosexplícitos e regras que conduzem à delimitação de ambas; ao mesmo tempo, a partir disto,propõe um ordenamento qualificado de estrutural, de modo que a definição destas unidades,ao inverso das descrições infinitas da fonética, pode ser reduzida a um feixe de traços pertinentes,com freqüência binários, segundo a escola de Jakobson, ou em pequeno número (Troubetzkoy,Martinet). Eis aqui um exemplo simples: o quadro das consoantes em francês, no qual sãosuficientes dois traços para caracterizar cada fonema (MOUNIN, 1968, p.118).

Ex.1 – Quadro de integração fonológica das consoantes francesas

2 Este estudo trata apenas da análise das estruturas musicais. É a razão pela qual, neste artigo, excluí o examedas comparações entre música e linguagem. Mesmo que tal exercício de semiologia comparada seja umpreâmbulo indispensável à exportação dos modelos lingüísticos à análise de um objeto não-lingüístico como amúsica, este eixo de investigação nos arrastará muito longe no decorrer do século XX. Citamos, portanto, atítulo de exemplos muito parciais: AUSTERLITZ (1983), BIERWISCH (1979), HARWEG (1967, 1968), NATTIEZ(1975: 2a parte), PAGNINI (1974), SPRINGER (1956). O problema da semântica, da retórica e da narrativamusicais aqui estão igualmente excluídos.

3 Sob um ponto de vista histórico estrito, a fonologia nasceu e desenvolveu-se, em seus primórdios,independentemente das idéias de Saussure, mas o par língua/palavra, sobre o qual ele insiste com tantaeficácia, não podia deixar de fornecer um sólido fundamento teórico à diferença entre a fonética e a fonologia.

Page 7: (Per Musi - UFMG) 9

7

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

O sucesso empírico da fonologia é hoje patente: Claude Hagège, para caracterizar a estruturauniversal das línguas, pôde apoiar-se sobre a descrição de 754 línguas (HAGÈGE, 1982, p.12).De imediato, seu sucesso epistemológico deveu-se ao fato de que ela se permitira romper com ohistoricismo e com o comparatismo que havia dominado as pesquisas lingüísticas do século XX.Também o princípio fundamental da explicitação dos critérios de análise, exemplificado pelasregras para a determinação dos fonemas, em Principes de phonologie de N. S. TROUBETZKOY(1939), iria perpassar os trabalhos do estruturalismo lingüístico americano, que não se limitavaao estudo dos fonemas: a escola denominada distribucional de Zellig HARRIS (1951), quepropunha critérios fundados sobre o contexto das unidades constitutivas da linguagem, fossemelas fonológicas, morfológicas ou sintáticas. Seccionamento e definição de unidades, construçãode regras de análise ou de regras descritivas vão constituir, por muito tempo e até os dias dehoje, as duas pedras angulares da análise musical de inspiração lingüística.

Ninguém melhor que o filósofo Paul Ricoeur definiu e resumiu, mesmo que fosse para criticá-las do ponto de vista fenomenológico, as virtudes do estruturalismo:

"O tipo de inteligibilidade que se exprime no estruturalismo triunfa em todos os casos onde eletorna possível:

a) trabalhar sobre um corpus já constituído, parado, fechado e, neste sentido, morto;b) estabelecer inventários de elementos e de unidades;c) colocar estes elementos ou unidades em relações de oposição, de preferência emoposição binária;d) e estabelecer uma álgebra ou uma combinatória destes elementos e pares de oposição."

(in RICOEUR, 1969, p.80)

E assistimos, sob a égide conjugada da semiologia e do estruturalismo, ao mesmo tempo, aodesenvolvimento de uma filosofia estruturalista que teve possibilidades de estender-se até aanalise da ação social (Althusser) e do inconsciente (Lacan), como também às tentativas deimportação dos modelos lingüísticos dentro dos domínios não lingüísticos. Não abordarei aqui asdiversas formas do pensamento estruturalista do qual François Dosse pôde, com felicidade,escrever a história (1991,1992). Contentar-me-ei em lembrar, com Raymond Boudon, de quenão há, de um ponto de vista empírico, análise estrutural, no sentido rigoroso do termo, a menosque tenhamos como objetivo descrever por meio de um conjunto de regras – uma vez que sãoelas as constitutivas da estrutura – o funcionamento imanente de um objeto considerado comoum sistema mais ou menos definido. Em última instância, segundo BOUDON (1968, p.103), eeste é um ponto de vista que compartilho (cf. NATTIEZ, 2003, p.57-59), o grau de precisão e devalidade de uma descrição estrutural depende da combinação de dois fatores: a possibilidade deverificar a teoria do objeto estudado, isto é, sua descrição estrutural, e o caráter definido ouindefinido do objeto-sistema. Isto significa que há domínios, ou partes de domínios que se prestammelhor que outros à análise estrutural: enquanto objeto-sistema, por exemplo, uma obra musicalnão tem, certamente, o mesmo status que o conteúdo do inconsciente...

Este último ponto é importante de considerar, porque ele explica, do ponto de vista do rigor científico,porque certas iniciativas estruturalistas obtiveram maior êxito que outras. Já, no seio da linguagem,o sucesso da fonologia não ia necessariamente garantir o da semântica estrutural (Greimas), umavez que a integração fonológica organizava uma trintena de fonemas para uma língua dada, enquantoque o léxico comporta um mínimo de 3000 palavras. O problema permanecia com idêntica naturezaquando se tratou de transpor os modelos (ou a inspiração) da linguística aos domínios não-

Page 8: (Per Musi - UFMG) 9

8

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

linguísticos: a análise estrutural das relações de parentesco e dos mitos (Lévi-Strauss), aquela dapoesia (Jakobson, Ruwet) e da narração literária (Barthes, Brémond, Greimas). Não havia Saussureescrito, em Cours de linguistique générale: "A linguística pode tornar-se o patrão geral de toda asemiologia, mesmo que a língua não seja senão um sistema particular"(1922, p.101)

4?

É compreensível o entusiasmo de estreantes e o triunfalismo de alguns – aqui incluído o autordestas linhas – no momento da emergência do estruturalismo e da semiologia, mais ainda porquesua aparição coincidia com o crescimento das aspirações revolucionárias de uma nova geração,que iriam culminar em 1968. Enfim, ia-se dispor de uma abordagem "estrutural-semiológica" quenos desembaraçaria do historicismo reinante na velha Universidade. Enfim, explicar-se-iam asobras literárias com ferramentas diversas daquelas da velha erudição biográfica. Enfim, não nosperderíamos mais nos meandros infinitos das significações em que se comprazem os hermeneutas.Acabava-se o impressionismo do comentário! Em 1966, o inventor da música concreta, PierreSCHAEFFER (1966, p.19) lançava um grito de alarme, bem revelador do espírito do tempo: "Noseu conjunto, a abundante literatura consagrada às sonatas, quartetos e sinfonias, soa vazia.Somente o hábito pode nos encobrir a pobreza e o caráter disparatado destas análises (...). Setoda explicação se esquiva, seja ela cognitiva, instrumental ou estética, melhor seria confessar,acima de tudo, que nós não sabemos grande coisa sobre a música. E o pior ainda, que aquiloque dela sabemos é de natureza a mais nos perturbar que orientar." O terreno estava maduropara a importação, em musicologia, de métodos que não tinham vergonha de reivindicar, noprocedimento, o espírito de rigor. E, de fato, é o que a linguística tinha a oferecer.

Não é objeto deste artigo apenas avaliar os sucessos respectivos e relativos do estruturalismonos diversos domínios aos quais ele foi aplicado: entre a análise estrutural de um sistema fonológicopor Martinet e aquele de uma novela de Balzac por Barthes, há abismos de diferença, no planoda metodologia, dos fundamentos epistemológicos e dos resultados. O importante, para o nossopropósito, é que esta efervescência, em todas as direções e com freqüência caótica, tenhaintroduzido, no setor particular da análise musical, abordagens fundadas em premissas novas.Foi, entre 1971 e 1976, que esta nova corrente atraiu, de início, a atenção para uma série intensivade publicações: uma série de números especiais de revista, particularmente em Musique en jeu,editadas pelo autor destas linhas (NATTIEZ ed., 1971, 1973a, 1973b, 1973c, 1975a, 1975b),revezadas com um número da Revue de musicologie (LORTAT-JACOB, 1975; VACCARO, 1975;DELIÈGE C., 1975), a compilação de artigos de Nicolas Ruwet, Langage, musique, poésie (1972),meus Fondements d’une sémiologie de la musique (NATTIEZ 1975a), e o livro de Gino Stefani,Introduzione alla Semiotica della Musica (1976). Muitos artigos vêm festejar as núpcias damusicologia e da lingüística (RUWET, 1967b; NATTIEZ, 1972, 1973b). Mesmo se esta correntenão retém mais, hoje, tanta atenção, visto que perdeu seu caráter de novidade, ela se prolongae continua, por vezes, brilhantemente. Conforme o escrevem BARONI, DALMONTE e JACOBONI(1999, p.43), em uma obra capital, com a qual o século XX chegou bem ao seu término, LeRegole della Musica, "certo, in epoca post-strutturalistica sono caduti entusiasmi ingiustificati oazzardi teorici non sufficientemente motivati, ma il tema non à affato scomparso dall’orizzontemusicologico." Em 1962, Nicolas RUWET escrevia: "o tempo das declarações de princípio, dos

4 O objetivo deste artigo é falar da aplicação dos modelos lingüísticos ao domínio musical. É a razão pela qualdeixo de lado a justificação do emprego da palavra "semiologia" a propósito dessa utilização . Aqui e ali, serásomente feita alusão à teoria tripartite (Molino-Nattiez).

Page 9: (Per Musi - UFMG) 9

9

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

manifestos inaugurais, terminou" (1972, p.99). Quarenta anos depois, é possível avaliar acontribuição e a importância dos resultados empíricos numerosos que se acumularam.

Se existe, no campo da análise musical, desde o fim dos anos cinqüenta, um corpus abundantede pesquisas e de estudos realizados sobre obras e estilos específicos, é porque a música, comoobjeto, apresentava características intrínsecas que se prestavam, particularmente bem, àsexigências do estruturalismo e dos modelos lingüísticos, naquilo que eles tinham de mais rigorosos.!Naquele que é, talvez, o primeiro artigo que testemunha o encontro entre o estruturalismo e amusicologia, Célestin DELIÈGE (1965) se esforçara por mostrar tudo o que já havia de estruturalismonos trabalhos de musicologia e de análise musical, anteriores à eclosão histórica do estruturalismo.Milan KUNDERA (1984) chegou mesmo a sugerir que, se o estruturalismo havia nascido no períodoentre duas guerras, na Tchecoslováquia, era em razão do lugar preponderante que a músicaocupava (e ocupa constantemente) na cultura de seu país de origem. Antes de 1968, eram poucosos compositores notáveis que não tinham aderido à concepção estética da música como "formaem movimento" (HANSLICK, 1854) ou à concepção semiológica da música como "sistemaautotélico", isto é, que se remete a si próprio (JAKOBSON, 1970). Stravinski afirmava: "A músicaé, por sua essência, impotente para exprimir qualquer coisa"(...) A expressão não foi jamaispropriedade imanente da música" (1935-36). Varèse: "Minha música não pode exprimir outra coisasenão ela mesma." Boulez: "A música é uma arte não significante."(1961, in BOULEZ, 1985,p.18). Não reabrirei aqui a sempiterna discussão sobre o caráter formal ou expressivo da música.Todos que me leram atentamente, conhecem o lugar importante que reservo à dimensão semânticada música

5 (NATTIEZ, 1975a, p.129-193; 1987; capítulo V) e a estima que tenho pelas pesquisas

experimentais de um Michel Imberty em matéria de semântica musical. Mas, precisamente, o quea comparação atenta da linguagem verbal e da música nos ensinou, é que a significação emmúsica não tem o mesmo estatuto que na linguagem. Quando escuto a Appassionata, não ouçoBeethoven dizer-me: "Durante muito tempo, eu me recolhi em boa hora." Em termos mais abstratos:a música é, certamente, capaz de veicular significações afetivas, imagéticas, mesmo imitativas,mas não é ao nível das unidades portadoras destas significações que ela é organizadasintaticamente: mas sim, ao nível de unidades discretas (discretizadas ou discretizáveis), portanto,próprias a um tratamento estrutural rigoroso, no sentido de Boudon.

Ora, este princípio permanece válido, mesmo quando o recurso aos modelos lingüísticos dosmusicólogos se completa, fora do movimento estrutural-semiológico. Se insisti sobre a influênciada tentação linguística nas ciências humanas, circunscrevendo-a à França e à Itália, foi porque,em outros lugares, ou bem ela não teve, nesta época, influência notável (penso particularmentenos países de língua alemã dominados pelo historicismo), ou porque, principalmente nos EstadosUnidos, o interesse pela lingüística nasceu de uma tradição epistemológica diferente. Ali, poucose preocupava, nesta época, com as discussões sutis de certos europeus sobre o nascimento eo desenvolvimento da semiologia e da semio-lingüística. O que fascinava era a eficácia concretade certos modelos, em particular aquele da gramática gerativa que acabava de nascer, em Boston,com Chomsky (1957), do qual muito se esperava quanto às aplicações práticas como a traduçãoautomática. Além do mais – e será necessário escrever, um dia e em detalhes, a história desteencontro –, o modelo da gramática gerativa apresentava fortes analogias com aquele de Schenker,

5 "Certamente, numa época pós-estruturalista, desapareceram os entusiasmos injustificados e as teoriasperigosas não suficientemente fundamentadas, mas o tema não está de todo ausente do horizonte musicológico."

Page 10: (Per Musi - UFMG) 9

10

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

cuja influência começava a se fazer sentir, aproximadamente, na mesma data: o pensamentoschenkeriano penetra verdadeiramente nos Estados Unidos, com a edição, em 1952, da obra deFelix Salzer, Structural Hearing: Tonal Coherence in Music.

É tempo de deixar o terreno da síntese da situação histórica e epistemológica do encontroentre música e lingüística, para abordar cada um dos três grandes modelos lingüísticos queinspiraram os musicólogos: o modelo fonológico, o modelo paradigmático e o modelo gerativo.Tentaremos, ao longo deste exame, avaliar o que a aplicação destes modelos, nas obras e nosprocessos musicais, pôde trazer para a análise musical

6.

2. O modelo fonológico:Mesmo, se historicamente, foi o sucesso da fonologia que contribuiu para valorizar odesempenho propulsor que a linguística poderia representar no âmbito das ciências humanas,sua importação, para a análise musical, não produziu um grande número de trabalhos. Semdúvida, foi referindo-se a ela que a semiologia musical se fez conhecer na Europa por umgrande público. No N. 5 de Musique en jeu, encontrava-se a tradução de artigos mais antigose algo programáticos de JAKOBSON (1932), NETTL (1958), BRIGHT (1963) e um texto inéditodo compositor François-Bernard MÂCHE (1971), apelando para alguns elementos da fonologia,a fim de analisar uma peça de Varèse. Mas, na época do Círculo Lingüístico de Praga,pesquisadores já haviam pensado em se inspirar na fonologia nascente para abordar a músicasob um ponto de vista funcional (BECKING, 1933; SYCHRA, 1948).

Em lingüística, o modelo fonológico tem por objetivo determinar quais sons pertencem propriamentea uma língua: o japonês não distingue entre [l] e [r], o francês distingue entre o [é] de "chantai"e o [è]de "chantais", o alemão distingue entre o [ch] de "Kirche" e aquele de "Kirsche", o inglês entre o [a]de "cat" e aquele de "cut", etc

7. O processo chamado de comutação, isto é, de substituição de um

som por outro, permite ver se as diferenças fonéticas são pertinentes dentro de uma língua específica,ou seja, se elas permitem distinguir palavras. As regras de determinação dos fonemas, explicitandocomo se opera um processo de comutação, podiam, portanto, ser adaptadas a um problema clássicoda etnomusicologia: quais são as alturas próprias de um sistema musical? O emprendimento maisbem sucedido é, sem dúvida, até hoje, o de Vida CHENOWETH, apresentado em duas obras:Melodic Perception and Analysis (1972) e The Usarufas and their Music (1979). Ela propõe ali umametodologia fundada sobre cinco regras explícitas (1972, p.53-57; 1979: cap. IX), destinada adefinir as unidades escalares de um sistema estrangeiro, em relação à nossa linguagem tonalocidental e fundamentada sobre a fonologia do lingüista americano Kenneth PIKE (1954,1967). Ométodo é, essencialmente, distribucional e estatístico. Por exemplo: "Two similar etic units whichare found in contrast in identical environments are two separate emic units." (1972, p.53)

8 Ou ainda,

se um intervalo aparece muito menos utilizado que um outro, acusticamente próximo, podemosverificar, sistematicamente, se esta pequena freqüência é devida ao contexto de aparição do intervaloem questão (por exemplo, no início da peça, quando a voz não está ainda "aquecida" ou no fim,

6 Para outros panoramas da utilização dos modelos lingüísticos na análise, no contexto da semiologia musical,iremos nos referir a NATTIEZ (1975a) e MONELLE (1992).

7 Nota da tradutora: em português, citamos como exemplo: [e] de lê e [é] de lépido, [x] de exemplo e [x] dexadrez, [a] de gato e [á] de mamão.

8 "Duas unidades éticas similares que encontramos em contraste, em contextos ambientais idênticos, são duasunidades êmicas separadas."

Page 11: (Per Musi - UFMG) 9

11

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

quando ela está fatigada). Eis o quadro das estatísticas de ocorrências distribucionais dos intervalos,proposta para um canto dos Usarufas (CHENOWETH, 1972, p.47):

Na obra de 1979, encontramos uma rica coleção de transcrições "éticas" do corpus musicalestudado, isto é, tal como ele é ouvido por um ouvido ocidental, e de transcrições "êmicas", istoé, refletindo o sistema musical próprio dos autóctones. Em outro trabalho, CHENOWETH (1966),pôde demonstrar que o sistema musical dos Gadsups da Nova Guiné fazia diferenças dequarto de tom ( assinaladas por um +), e se apresentava assim:

Seria injusto considerar que esta abordagem tenha conhecido uma grande receptividade, mesmoque tenha conseguido inspirar um considerável estudo dos intervalos, dentro do repertório dosInuit do Caribou (PELINSKI, 1981), além de outros trabalhos esporádicos (CHANDOLA, 1970;CHANDOLA, 1977). RUWET (1959) inspirou-se na distinção entre unidades "éticas" e "êmicas"para denunciar as "contradições da linguagem serial."A fonologia foi utilizada também para aanálise das músicas eletro-acústicas (CHIARUCCI, 1973; COGAN, 1984; SLAWSON, 1985, GIOMI-LIGABUE,1998). Um pesquisador brasileiro apoiou-se sobre a fonologia de Jakobson para analisara obra de Berio (MENEZES, 1993). A razão essencial desta curta bibliografia está ligada, sem

Ex.2 – Ocorrências de sucessões de intervalos em um canto da Nova Guiné

Ex.3 - Escala musical dos Gadsups da Nova Guiné

Page 12: (Per Musi - UFMG) 9

12

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

dúvida, à conjuntura científica. Se bem que a questão das escalas estivesse na ordem do dia daetnomusicologia, desde seus primórdios até os anos sessenta, os métodos de Chenowethemergiram no seio da década em que a etnomusicologia se preocupava, cada vez mais, emexplicar a música por seu contexto cultural (MERRIAM, 1964; BLAKING, 1973), sendo menoscuidadosa ao analisar estruturas internas de qualquer natureza. A perspectiva aberta por Chenowethmerece ser retomada, mesmo que alguns aspectos de sua metodologia devam ser revistos

9.

Sem dúvida, o que se torna necessário reter do encontro da musicologia e da abordagemfonológica é esta distinção de ordem geral, teorizada por Pike, entre unidades éticas e êmicas.Estes neologismos são derivados das palavras inglesas, designando respectivamente a fonéticae a fonologia: phonetics e phonemics. Aqui, também, mereceria ser narrada a história datransposição deste par conceitual, tão fértil, da lingüistíca para a antropologia, para aetnomusicologia e para a análise musical. Mas existe, nesta distinção, alguma coisa defundamental para o musicólogo. Enquanto que, no século XIX, no momento dos primeirospassos da etnomusicologia, não se hesitava em transcrever as músicas de tradição oral emfunção do sistema tonal e, até mesmo, harmonizá-las, o primeiro etnomusicólogo digno destenome, Alexander ELLIS (1885), inventa o "cent", centésima parte do semitom temperado, paraanalisar as escalas da música indiana. E foi pelo receio de cair dentro de uma forma dissimuladade etnocentrismo musical que os pesquisadores da escola de Berlim (cf. HORNBOSTEL, 1975)se esforçaram em anotar a menor diferença entre as alturas registradas. A idéia de que estasdiferenças não são todas pertinentes em relação ao sistema escalar em questão é uma idéiarecente, mas decisiva. Mesmo se Simha Arom e seus colaboradores (OBRA COLETIVA, 1991),em suas pesquisas sobre as escalas africanas, não utilizaram um método distribucional análogoao que propõe Chenoweth, preferindo recorrer a testes (propiciados pelo computador) no campo,junto aos informantes, concernentes às técnicas de afinação, o procedimento deles repousa,fundamentalmente, sobre a constatação de que certas diferenças de alturas são pertinentes eque outras não o são, ou seja, sobre o fato de que é necessário distinguir entre categorias"éticas" e "êmicas".

10

Convém compreender bem porque o postulado estruturalista de imanência funcionaperfeitamente para descobrir as unidades escalares de um sistema musical. Antes de tudoporque, como todos os fonemas de uma língua, elas existem em pequeno número: geralmenteinferior a 7. Em seguida, porque essas unidades, estando na base do sistema, sãocompartilhadas tanto pelos produtores de uma peça musical quanto por aqueles que apercebem. Estamos em presença daquilo que Molino chama "o circuito curto da comunicação"(1989), por oposição ao "circuito longo", que pode existir, segundo outros parâmetros ou outrosníveis da produção musical, entre "produtores" e "receptores". Para citar um exemplo extremo:aquele entre a série que fundamenta as Structures pour deux pianos e o que dela percebem osouvintes, ou, mais exatamente, o quanto eles percebem desta obra. Ou, retomando o jargão

9 A autora toma, como unidade de sua investigação, os intervalos: se ela se apoiasse sobre as alturas, talvez asmodalidades de aplicação de certas regras de análise fossem menos ambíguas.

10 Nota da tradutora: etic e emic foram criados de acordo com os sufixos dos adjetivos fonético e fonêmico,sendo, portanto, lícito usar ético e êmico, ou suas variantes no feminino. ETIC significa "não fazer nenhumahipótese a respeito da função dos acontecimentos relatados e caracterizá-los somente através de critériosespaço-temporais". EMIC significa "interpretar os acontecimentos conforme sua função no mundo culturalparticular do qual fazem parte."

Page 13: (Per Musi - UFMG) 9

13

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

da semiologia musical (MOLINO, 1975; NATTIEZ, 1975a, 1987), desde que não exista, aonível das unidades escalares, a fratura entre o "poiético" e o "estésico", nada impede que seforneça uma descrição estrutural imanente das mesmas.

Naquilo que é, provavelmente, até o presente, a melhor introdução ao estudo das músicaspop, Studying Popular Music, Richard MIDDLETON examina, alternativamente, os três grandesmodelos lingüísticos que nos ocupam aqui. Começando pela fonologia (1990, p.176-183), eleexpõe a diferença entre categorias éticas e êmicas, mas, sobretudo, indica que o processo decomutação, assinalado no começo, foi sistematicamente utilizado por Philip Tagg para determinaro que ele chama de "musemas", isto é, as unidades mínimas significantes. MIDDLETONforneceu um exemplo disto, analisando o início da canção dos Beatles, "A Day in the Life"(1990, p.180-182). Posteriormente, quinze anos de pesquisa permitiram a Tagg propor, emuma obra de grande importância e densidade (TAGG e CLARIDA, 2003), uma taxonomia geraldos musemas, onde o autor mostra, mais de uma vez, que a mesma pode ser também utilizadapara a análise das músicas clássicas "sérias".

3. O modelo paradigmático3a. O modelo de origemEm seu artigo histórico de 1966, "Méthodes d’analyse en musicologie", Ruwet escrevia: "Pareceu-me esclarecedor, no estudo das monodias, retomar um procedimento que Claude Lévi-Straussaplica à análise dos mitos (...). As seqüências equivalentes são, tanto quanto possível, escritasabaixo umas das outras, numa mesma coluna, e o texto deve ser lido, fazendo-se abstração dosespaços vazios, da esquerda para a direita e de cima para baixo. Assim, certos aspectos de estruturaficam imediatamente aparentes, ao mesmo tempo também que certas ambigüidades."(1972, p.116-117). E projetando "o princípio de equivalência do eixo da seleção sobre o eixo da combinação",segundo a expressão de Jakobson que tinha aplicado o mesmo princípio à análise estrutural dapoesia, Ruwet propunha reescrever assim um Geisslerlied do século XIV (1972, p.116):

Ex.4 - Quadro paradigmático de um Geisslerlied

Page 14: (Per Musi - UFMG) 9

14

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

Operando desta maneira, Ruwet se inspirava em uma das grandes dicotomias básicas propostaspor Saussure, aquela que distingue, em um enunciado lingüístico, entre as relaçõessintagmáticas in praesentia e as relações associativas in absentia e que iria conduzir à distinçãoentre sintagma e paradigma. Ao mesmo tempo, ao se situar explicitamente no quadro dapesquisa semiológica, ele encontrava os princípios formalistas veiculados pela estética musicalda época e que Jakobson, a nosso ver, parece ter definido muito bem, nestes termos:

"Nicolas RUWET . . . declara que a sintaxe musical é uma sintaxe de equivalências: as diversasunidades estão em relações mútuas de equivalência multiforme. Esta afirmação sugere umaresposta espontânea à questão complexa da semiose musical: mais que visar algum objetointrínseco, a música se apresenta como uma linguagem que se significa a si mesma.Paralelismos de estruturas, construídos e ordenados de maneira diferente, permitem aointérprete de todo signans musical, percebido imediatamente, deduzir e antecipar um novoconstituinte correspondente e o conjunto coerente formado por estes constituintes. É,precisamente, esta interconexão das partes, assim como a sua integração dentro do todocomposicional que funciona como o signatum mesmo da música" (1970, p.12; in 1973a, p.99).

Se a música era jogo de formas, era possível explicar, através de regras rigorosas e segundocritérios explícitos, relações entre unidades discretas ou passíveis de se tornarem discretas.

Com suas proposições metodológicas, Ruwet permitia então: 1) situar sintagmaticamente cadaunidade de uma monodia, analisada segundo o critério da dialética entre repetição etransformação, em relação a seus vizinhos; 2) mostrar suas relações paradigmáticas comunidades que podem ser colocadas muito mais adiante sobre o sintagma; 3) mostrar comoestas unidades se inserem dentro de uma organização hierarquizada. Mas se encontramos naliteratura musicológica, antes de Ruwet, apresentações análogas – em Brailoiu e Rouget, comoo reconheceu RUWET (1972, p.104,105), em Schoenberg (1942) como indicou DELIÈGE, ouem numerosos medievalistas como ressaltou POWERS (1980) – a contribuição essencial deRuwet, em uma época em que se deplorava, não sem razão, o caráter impressionista e, atémesmo, demasiado literário, da análise musical, foi a de fundamentar a segmentação de umapeça musical sobre um procedimento de análise explícita que, no caso da análise das monodiasmedievais, era formulado por RUWET (1972, p.112-115), a exemplo dos melhores lingüistas,em doze regras. Eis um exemplo disto: "Nossa " máquina de descobrir as identidadeselementares " percorre a cadeia sintagmática e encontra os fragmentos idênticos. Considera-se, como unidades do nível I, as seqüências – as mais longas possíveis – que são repetidasintegralmente, seja imediatamente após sua primeira emissão, seja após a intervenção deoutros segmentos" (1972, p.112). Esta noção de explicitação, nosso autor não a deve a Lévi-Strauss e Jakobson, mas a HARRIS que, em sua importante obra de 1951, Structural Linguistics,um pouco esquecida hoje, priorizava a necessidade de elaborar "procedimentos de descoberta"que o lingüista poderia seguir, mas que talvez tivessem, como sua virtude essencial, à parte oseu aspecto demasiado mecanicista, oferecer ao pesquisador procedimentos de controle desua condução. Introduzindo-os na musicologia, Ruwet trazia uma alternativa ao impressionismogeneralizado do comentário musical que, na época, já cansava a muitos.

O liame com Harris nos conduz a uma precisão terminológica. Definiu-se, por vezes, o método deRuwet como "distribucional" (BENT, 1980, p.377-378). Mas, quando um pesquisador propõe um novomodelo de análise, inspirando-se em métodos preexistentes, ele não retém necessariamente tudo decada um deles, e a técnica distribucional propriamente dita – aquela que consiste em definir uma

Page 15: (Per Musi - UFMG) 9

15

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

unidade por seu contexto sintagmático – está ausente da metodologia de Ruwet (ao passo que ela seacha no âmago do procedimento de Chenoweth) que privilegia a dialética da repetição e dastransformações entre unidades de um mesmo paradigma. Do ponto de vista das influências, aparadigmática de Ruwet é um misto: ao lado do método paradigmático propriamente dito (adaptadode Lévi-Strauss e de Jakobson), da noção de regra explícita inspirada de Harris, Ruwet também tomaemprestado à análise dos mitos, segundo Lévi-Strauss, portanto mais à antropologia que à lingüística,a maneira de caracterizar "estruturalmente" as unidades musicais separadas, como se pode ver emsua análise do Prelúdio de Pelléas et Mélisande (1962). O próprio Lévi-Strauss reconheceu ali umaantecipação de suas próprias análises de mitos, em Le cru et le cuit (LÉVI-STRAUSS,

11 1964).

Não ficou suficientemente indicado, na minha opinião, que as regras explícitas propostas porRuwet repousassem sobre aquilo que chamei, em outro lugar, de princípios transcendentes(NATTIEZ, 1987, p.215) – que não foram necessariamente enunciados por Ruwet em 1962(mas que podem ser comparados aos elementos de "teoria subjacente", propostos por RUWET(1975, p.26-27) – que versam sobre a natureza da música: 1) Toda música é constituída deunidades. Torna-se então possível delimitá-las e defini-las, e estabelecer regras para separá-las. 2) Toda música é hierarquicamente organizada. Torna-se, então, possível repartir estasunidades, segundo níveis distintos. 3) Toda música revela uma dialética da repetição e davariação. É então possível, com base na apresentação paradigmática, estabelecer entre asunidades relações de transformação, e por isto, convém dissociar uns dos outros os parâmetrosconstitutivos da substância musical: Ruwet pratica, assim, o princípio da autonomizaçãoparamétrica sobre o qual MEYER (1967: capítulo VII, e 1973), MOLINO (1975, p.42-43) eNATTIEZ (1987, p.180-182) insistiram, ulteriormente, dentro de contextos diferentes.

Como se vê, estes postulados têm um caráter universalista, o que explica, sem dúvida, aposteridade de suas proposições analíticas e a extensão de suas aplicações, perfeitamenteválidas na condição de respeitar o que poder-se-ia chamar as articulações naturais dos tiposde músicas estudadas. Mas, ao mesmo tempo em que diferentes pesquisadores aplicavam ométodo de Ruwet a novos objetos, o modelo inicial se modificou de uma vez, em seus objetivose em seu funcionamento técnico.

3b. Aplicações das proposições analíticas de Ruwet e da metodologia paradigmáticaRuwet não se preocupou ele próprio com a elaboração de um método explícito de análise. Noartigo de 1962 sobre as duplicações em Debussy, ele se propusera aprimorar uma observaçãomusicológica geral concernente à presença do procedimento de duplicações na obra do compositore ele interpretava o jogo de estruturas separadas no Prélude de Pélleas em termos funcionais,derivados da análise estrutural dos mitos como acabamos de indicar. E na análise das monodiasmedievais (1972, cap.IV), ele tentou mostrar como induzir das análises musicais o modo utilizado.

Historicamente, de acordo com o nosso conhecimento, foi o etnomusicólogo Simha Arom oprimeiro a se apoderar do modelo de Ruwet. Seu objetivo era, sobre a base da paradigmática,propor um novo sistema de "notação das monodias para fins de análise" (1969), no qual elemultiplicou os pontos de abordagem da obra, portanto, os critérios de análise paradigmática.Ele, igualmente, aplicou estes princípios a um corpus Ngbaka-Ma’bo (1970). Um corpus de

11 Segundo uma comunicação pessoal (1973) ao autor do presente artigo.

Page 16: (Per Musi - UFMG) 9

16

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

musica finlandesa foi igualmente objeto de uma aplicação estrita do modelo de Ruwet (PEKILÄ,1987). Até aqui o procedimento permanece perfeitamente imanente.

Em 1976, Monique Brandily consagrava um estudo paradigmático minucioso a um único canto doTibesti (Tchad). Aqui a descrição não é mais "puramente" estrutural: sem que ela utilize o termo,Brandily induz o modelo poiético da peça, superpondo cada uma de suas frases. Esta paradigmáticanota a nota (e não fundada sobre unidades mais amplas como em Ruwet) permite por em evidênciaum modelo, uma estrutura melódica de base que nunca é realizada como tal, mas a partir da qual,as diferentes frases do canto são improvisadas. A descrição imanente conduz, então, a penetrar oprocesso criador. Entre 1974 e 1980, o Grupo de Pesquisas em Semiologia Musical (GRSM) daUniversidade de Montreal aplicava sistematicamente a técnica de análise a um vasto corpus dejogos de garganta Inuit *, e na primeira síntese publicada sobre este assunto (NATTIEZ,1983), aanálise paradigmática invadia também o campo poiético. O mesmo ocorre naquelas comunicaçõesdo volume consagrado à Improvisation dans les musiques de tradition orale (LORTAT-JACOB ed.,1987) que se apóiam explicitamente sobre o modelo de Ruwet.

Caberia a Arom, ainda uma vez, propor a demonstração mais grandiosa da eficácia do métodoparadigmático, aplicado sistematicamente às Polyphonies et polyrythmies instrumentales d’AfriqueCentrale (1985): com esta vasta obra, Arom oferece, a meu ver, a descrição mais aprofundada quejá foi dada de um sistema musical. E mesmo que, em seu livro IV, o autor acredite que o procedimentotenha permanecido imanente, é bastante evidente que ele se permitiu ultrapassar o nível estrito dasestruturas para chegar a descrições pertinentes do ponto de vista dos processos de criação (poiética)e de percepção (estésica). (Sobre este ponto, cf. NATTIEZ, 1990, p.80-81). A seguir apresentamosum exemplo, referente à poiética. Eis os primeiros paradigmas das variações efetuadas pelas cincoprimeiras trompas de um conjunto de 18 trompas Banda-Linda (AROM, 1985, p.544-545).

* Um tipo de "desafio" realizado por duplas de mulheres Inuit, que consiste em complexas imitações de ruídosde animais, produzidos com a garganta.

Page 17: (Per Musi - UFMG) 9

17

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

Ex.5 - Inventário paradigmático da unidade executada pelas cinco trompas, na peça ndàràjé baléndoro(Banda-Linda)

Page 18: (Per Musi - UFMG) 9

18

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

É demonstrado pelo autor que a trompa 6 efetua suas variações, segundo o modelo da trompa 1;a trompa 7 , segundo aquele da trompa 2, etc. Fundando-se sobre o que cada um dos conjuntostem em comum – o paradigma dos paradigmas -, o autor pode mostrar que a peça é construídasobre cinco modelos próprios a cada uma das 5 trompas e seus homólogos (ibid., p.573):

Ex.6 - Modelos de cada uma das cinco trompas

E isto pode mesmo ir mais longe, construindo-se o paradigma dos paradigmas: o modelo dapeça (ibid.), deduzido dos cinco modelos do exemplo 6:

Ex.7 - O modelo do trecho

Trata-se, certamente, do modelo de base, a partir do qual toda a peça é desenvolvida pelosmúsicos. A mesma pesquisa de modelos, fundada sobre o método paradigmático, foiempreendida com sucesso, nos "cantos para pensar" dos Gbaya, por Vincent Dehoux (1986).Nestes trabalhos, passou-se da descrição imanente de cada uma das partes musicaisconstituintes à sua raiz poiética.

No campo da etnomusicologia, a técnica paradigmática sempre extravasou para o lado dasemântica externa – isto é, da referência ao mundo exterior – explicitamente recusada porRUWET (1972, p.12-14). Combinando com isto, o modelo de decodificação semântica propostopor BOILÈS (1967, 1973a, 1975), dois membros do Grupo de Pesquisas em Semiologia Musicalde Montreal (posteriormente, GRSM) colocaram, em relação, os dados semânticos com asunidades seccionadas, segundo os princípios da paradigmática ruwetiana: Nicole BEAUDRY(1983), a propósito da linguagem dos tambores nas cerimônias vodu haitianas, e MoniqueDESROCHES (1980,1982,1996, p.106), para os indicativos de tambor nas cerimônias tamoulda Martinica. Em sua obra Tambour des Dieux, é demonstrado que as unidades da coluna I, do

Page 19: (Per Musi - UFMG) 9

19

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

exemplo 8 abaixo, estão associadas à deusa Mariemen. As unidades da coluna II intervêm nomomento dos períodos de transição da cerimônia ou, justamente, no fim da mesma. A colunaIII reagrupa os batimentos utilizados para afinar os tambores, ou para colocar em evidência avirtuosidade do tamborileiro-chefe. As duas unidades da coluna IV acompanham o transe dosacerdote e são associados ao Deus Maldevilin.

Ex.8 - Paradigma das batidas de tambor em uma cerimônia dos Tamoul (Tamul) da Martinica

Destacamos ainda um belíssimo estudo de Michael ASCH (1975), baseado na análiseparadigmática, que ultrapassa igualmente o nível imanente para demonstrar que a estruturaformal dos cantos de um repertório dos índios Slavey não coincide com as categoriasvernaculares, utilizadas para designar os diferentes gêneros.

Caso se admita que a análise das músicas pop não existe sem ligação com a etnomusicologia,este é, sem dúvida, o momento de sublinhar que, em Studyng Popular Music, Richard Middleton,apoiando-se sobre o artigo fundador de Ruwet, aplica seus princípios na análise de "A FoggyDay", de George Gershwin (MIDDLETON, 1990, p.183-189).

Page 20: (Per Musi - UFMG) 9

20

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

À margem da etnomusicologia, ressaltaremos a utilização da paradigmática de Ruwet para aanálise dos cantos de pássaros nas pesquisas de "ornitomusicologia" do compositor François-Bernard MCHE (1983) que, sob outro ponto de vista, consagrou um artigo de conjunto àstécnicas de análise paradigmática (MCHE, 1986).

Do lado da música ocidental, assinalamos, logo de início, na linha das análises de Ruwetconsagradas às monodias medievais, dois dos artigos de Lidov (in LIDOV, 1975, p.35-37 e 79-85): no primeiro, em que o autor discute o conjunto do método, ele reexamina duas análises deRuwet; no segundo, propõe ele próprio uma análise de Haut honor d’un commandement. Eleutiliza o formato - mais que a lógica - da análise paradigmática para daí ordenar as diferentesunidades, mas avançando num ponto de vista que Ruwet retomará, por sua conta, em seu artigode 1975, ele tenta mostrar como é possível analisar a peça a partir da idéia intuitiva (a partir deuma "teoria") do que é uma frase musical. Num terceiro artigo, LIDOV (1975, p.87-98) propõeuma análise paradigmática de Voiles, de Debussy, igualmente segundo uma técnica modificada.No mesmo ano, Jean-Michel VACCARO (1975) propunha uma análise paradigmática de Mignonneallon voir, de Costeley, acrescentando aos critérios de repetição, aquele de contraste,particularmente entre as densidades polifônicas, os tipos de contraponto e os âmbitos. Um trabalhode Mestrado de Elizabeth MORIN (1979a), do G.R.S.M. de Montréal, versou sobre as Structuresmélodiques et rythmiques d’une fugue de Bach. Seguindo literalmente uma sugestão de RUWET(1972, p.107, nota 2), ela mostrou o que uma análise empírica pode trazer de novo, em relaçãoaos procedimentos que projetam sobre a obra o plano a priori, o "filtro teórico", da concepçãoescolástica da fuga. No mesmo ano, ela publicava (1979 b) a primeira tentativa sistemática deutilização do modelo paradigmático no âmbito de uma pesquisa estilística: tratava-se de compararo tratamento dado a um mesmo tema em variações de autoria de dois compositores diferentes(Byrd e Tomkins sobre "John Come Kiss me Now"). Do lado da música clássica, o tema daSinfonia em sol menor, K. 550, de Mozart, foi o objeto, por intermédio de Gino STEFANI (1976,p.37-46), de uma abordagem paradigmática que tendia a mostrar como era possível ultrapassara estrita análise imanente para propor uma caracterização funcional da passagem (abordagemesta que foi objeto de uma discussão crítica por NOSKE (1977).

12

O mesmo tema foi abordado paradigmaticamente por Leonard BERNSTEIN (1982, p.45-49) –embora o compositor, conhecendo pouco sobre lingüística, tivesse atribuído o modelo utilizadoa Chomsky – para daí revelar uma ambigüidade de estrutura que o regente de orquestra deveriatomar em consideração. Este trabalho, que deve a sua publicação unicamente à celebridadedo compositor de West Side Story, foi objeto de uma crítica rigorosa (KEILER, 1987 b). Minhaprópria análise do Intermezzo op 119 n.3 de Brahms (NATTIEZ, 1975 a, p.293-330) enfatizou aambigüidade das estruturas desta peça, mas, ao mesmo tempo, mostrava como cada uma dasduas segmentações propostas podia permitir, se não justificar e, em todo caso, prever duasopções de interpretação da obra por dois pianistas. Como se vê, as abordagens de Bernsteine Nattiez privilegiam o lado da pertinência estésica. Também Dunsby utilizou em duas ocasiões(DUNSBY, 1982, p.239-241 e DUNSBY-WHITTALL, 1988, p.218-223) uma análise do Intermezzoop.119 n.1, de Brahms, para explicar os objetivos e a contribuição da análise paradigmática noâmbito do modelo semiológico tripartite de MOLINO (1975) e NATTIEZ (1975a, 1987),

12 Nota da tradutora: Veja outros pontos de vista sobre esse tema no artigo de NATTIEZ no volume 8, de PerMusi, 2003, p.5-40.

Page 21: (Per Musi - UFMG) 9

21

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

reagrupando a análise imanente, a análise poética e a análise estésica, portanto ultrapassando,mais uma vez, o nível estrutural estrito. Annie LABUSSIÈRE (1992) consagrou uma belíssimaanálise paradigmática ao solo de corno inglês de Tristão e Isolda, cujos resultados ela relacionouàs proposições de Chailley para a análise das escalas e da melodia. Realizei uma outra versãoda análise desta peça (NATTIEZ,1998), no geral, inspirando-me no trabalho de Labussière, daíre-situando-a no contexto da semiologia tripartite e combinando-a com o método de análisemelódica linear, proposto por Leonardo Meyer.

No que se refere ao século XX, consagrei ao solo de fagote na Sagração da Primavera umaanálise paradigmática sem muito sucesso (NATTIEZ, 1975a, p.279-285), muito justamente"demolida" por KEILER (1981). Retomei este trabalho em um artigo recente (NATTIEZ, 2002,p.215-218). Igualmente, detive-me sobre a linha melódica de Intégrales de Varèse, combinandoa paradigmática com a caracterização distribucional (NATTIEZ, 1975 a, p.290-297). Consagreia Densité 21.5 do mesmo compositor, um amplo trabalho que enfatizava o desenrolarsintagmático da peça, mas a partir de uma definição paradigmática das unidades. Este estudoexplorava, um pouco timidamente, a pertinência poiética e estésica das unidades estruturais.Marcele GUERTIN (1974), membro do G.R.S.M., dedicou um belo estudo à peça Ile de Feu 2de Messiaen, mostrando como o intérprete podia tirar proveito da análise paradigmática (ela seorientava, então, em direção ao estésico). Gilles Naud, membro do G.R.S.M., foi o primeiro atentar estabelecer uma relação sistemática entre a análise paradigmática e os póloscomposicionais e perceptivos, a propósito do Nomos Alpha de Xenakis (1975). Do lado dasobras monódicas contemporâneas, assinalamos ainda o estudo de John McKay sobreSequenzas IV e VI de Berio (1988). Poder-se ia pensar que a técnica paradigmática, fundadasobre a dialética da repetição e da transformação, não pode ser aplicada à música de Boulez.Jonathan GOLDMAN (1998) demonstrou o contrário dissecando Anthèmes, para violino solo.Estabelecendo liames entre as propriedades exibidas e os conceitos teóricos elaborados porBoulez, o autor dá à sua análise uma pertinência poiética.

Porém, quem conheceu a maior "fortuna paradigmática" foi provavelmente Debussy, semdúvida, a razão pela qual, antes mesmo de publicar seu grande artigo teórico de 1966, Ruwetpropusera, em sua "Note sur les duplications dans l’oeuvre de Claude Debussy" de 1962, umaelegante análise do Prelúdio de Pelleas et Mélisande. Esta última constituiu o objeto deprolongamentos críticos (NATTIEZ- HIRBOUR-PAQUETTE, 1973; NATTIEZ, 1975 a, p.90-93,135-138 e 260-263) que, em particular, nos proporcionavam a ocasião de insistir sobre anecessidade de realizar sistematicamente a comparação das análises já existentes: oempreendimento permitia sublinhar o caráter não-explícito dos predecessores de Ruwet, naanálise deste prelúdio. Esta comparação das análises foi sistematicamente praticada no ensaiode MORIN sobre a Fuga em Mi bemol de Bach (1979a), em meu trabalho sobre Densité 21.5(NATTIEZ, 1975b) e sobre o Intermezzo de Brahms (NATTIEZ, 1975a, p.327-330). Craig AYREY(1985) atacou igualmente a comparação das análises de Bruyères de Debussy sobre a baseda técnica paradigmática. Nós a reencontramos ainda na obra de STEFANI, a propósito deMozart (1976, p.50-52) e em minha análise de Syrinx, de Debussy (NATTIEZ, 1973 a,1975a,p.338-341), em que eu tentava, bastante desajeitadamente, com a ajuda de uma descriçãodocumental, passar da análise imanente a uma interpretação estilística das unidades resgatadaspela paradigmática. Marcelle GUERTIN chegou a uma seriação, muito mais bem sucedida,dos temas do primeiro livro dos Préludes de Debussy (1981,1990), propondo a construção de

Page 22: (Per Musi - UFMG) 9

22

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

paradigmas de paradigmas que alcançou uma caracterização simples de suas propriedadesestilísticas. A autora propõe, igualmente, uma interpretação estésica das unidades resgatadas.É, provavelmente, do lado da música ocidental, o trabalho mais amplo até hoje realizado comoprolongamento das proposições de Ruwet, mesmo tendo por objeto um alvo restrito. Enfim,uma análise paradigmática dos quinze primeiros compassos da Cathédrale engloutie foi utilizadapara demonstrar a necessidade, no âmbito da semiologia musical tripartite, de distinguir entrea análise do nível neutro, do poiético e do estésico (NATTIEZ, 1997a). Esta análise será retomadae longamente desenvolvida em um novo livro em preparação.

A técnica paradigmática não foi utilizada para analisar obras. Ela tem, metodologicamente, umcaráter suficientemente geral para ajudar a resolver enigmas musicológicos mais vastos. Éassim que Boilès, independentemente da influência de Ruwet, a utiliza para tentar reconstruiras proto-melodias de um repertório (BOILÈS, 1973 b) ou para determinar seu grau de aculturação(BOILÈS, 1982). O método de Ruwet conduz igualmente à explicitação das relações detransformação entre unidades. Este aspecto foi o objeto de pesquisas específicas em NATTIEZ(ed., 1975; BREDICEANU,1975; CAZIMIR, 1975; LEVY, 1975; NAUD, 1975).

Podemos retirar duas grandes conclusões deste sobrevôo bibliográfico e histórico:

1. A análise paradigmática saiu bem rapidamente da perspectiva estruturalista que era aquela deRuwet nos anos sessenta, para extravasar em direção ao campo das estratégias composicionais eperceptivas, das associações semânticas e passar do estudo da especificidade de uma obra emsua unidade para uma perspectiva estilística mais ampla. Nada há nisso de surpreendente, porqueao estruturalismo puro e simples dos anos sessenta, sucedeu-se na lingüística, na teoria literária,assim como na musicologia, um período pós-estruturalista dentro do qual ainda vivemos e quemerece seu nome, não para designar as derivas da desconstrução, mas para lembrar que as novaspesquisas devem buscar integrar, inclusive de modo crítico, as aquisições das pesquisas imanentes.

2. O método se interessou sobretudo pelos corpus essencialmente monódicos e pelos períodos"intermediários" da história da música (música medieval, Debussy), pelos compositores doséculo XX (Varèse, Xenakis, Berio) ou pelas músicas extra-européias, onde ele era mais legítimodo que um método explícito de análise, que finge colocar entre parênteses as intuições ordináriasdo músico e o saber adquirido dos teóricos e dos musicólogos.

A julgar pela riqueza dessa posteridade musicológica – e não citei as teses não publicadas -,Ruwet teve certamente uma percepção justa, desde 1966, quando ele declarava que "muitascoisas aqui enunciadas seriam retomadas e elaboradas" (1972, p.133). São os principaismelhoramentos trazidos à teoria e ao modelo inicial que eu desejaria examinar agora.

3c. Modificações trazidas ao modelo de RuwetÀ medida que as proposições de Ruwet se tornaram objeto de aplicações concretas, foramintroduzidas modificações técnicas às regras explícitas de análise propostas no artigo de 1966.

Ruwet havia estabelecido o comprimento como critério da repartição hierárquica das unidades.A experiência comprovou que havia ali uma posição assumida quanto à regularidade e à simetria,que perdia sua pertinência no momento em que se saía do estilo clássico. Assim, constatou-se

Page 23: (Per Musi - UFMG) 9

23

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

que não havia limites a priori para o número de critérios que poderiam intervir na associaçãoparadigmática, como o demonstraram AROM (1969, p.205-206) e NATTIEZ (1975b): ao critériodominante da repetição, podem se acrescentar igualmente a distribuição dos intervalos, o papeldas intensidades, a combinação dos pontos de abordagem da análise, etc. Esta extensão dacriteriologia não vem senão confirmar uma das observações mais sensatas de Ruwet; " Éimpossível representar a estrutura de uma peça musical por um esquema único." (1972, p.134).Se ele tivesse tido a tendência de considerar, somente como índices, os critérios de contrastes,de pausa, de fraseado ou mesmo de cadência (1972, p.106), visto que ele atribuía ao critériode repetição um peso hierárquico dominante – a repetição é o "critério principal de divisão"(1972, p.111) -, esses critérios teriam sido rapidamente re-introduzidos na análise por todoscomo correspondentes à nossa intuição musical imediata. Mas observaremos, e aqui, o princípioda separação dos parâmetros permanece decisivo, que o fraseado não correspondenecessariamente à divisão paradigmática que o contorno melódico impõe. Pode ser, então,fundamental distingui-los, num estágio provisório da análise (cf. NATTIEZ, 1975 b).

Porém, a crítica mais violenta contra as proposições iniciais de Ruwet veio . . . do próprioRuwet que, em seu artigo de 1975, sob a influência do pensamento chomskiano, desejou viraras costas ao modelo de Harris que o havia inspirado na explicitação dos procedimentos deanálise, restituindo à intuição – sob o nome de "teoria" - o lugar que seu artigo de 1966 pareciater-lhe contestado. Com relação a isto, sua análise do recorte dos três primeiros compassos doConcerto para piano, K.271, de Mozart (1975, p.30) é bastante eloqüente, pois ele reintroduzos critérios de contraste, as pausas e a dimensão harmônica. Hoje, tendo se desfeito aemotividade da separação epistemológica entre "empiristas" harrissianos e "teóricos"chomskianos, parece que não há mais dificuldades de levar-se em consideração as intuiçõestonais, em um procedimento analítico fundado sobre a explicitação. Isto é, sem dúvida, o queexplica que, se o artigo de 1975 foi saudado por uma salutar auto-crítica do autor (cf. POWERS,1980), em contrapartida, como sublinha judiciosamente EVERIST (1987, p.6), foi o artigo de1966 que exerceu e ainda exerce a maior influência empírica.

Porém, eu gostaria de ressaltar um ponto importante. Se muitas análises de obras ocidentaisforam conduzidas corretamente, colocando-se, entre parênteses, critérios imediatamentefornecidos pelo sentimento tonal, isto prova que, para uma mesma passagem musical, podemser levados em conta diferentes critérios, que se revelam convergentes. Quando, em 1966,Ruwet não considerava senão os critérios de repetição/transformação, ele propunha um métodoque transcendia a especificidade de cada sistema musical particular e roçava assim, comotemos dito, os universais da música. Os critérios de pausa e de contraste parecem de mesmanatureza. Como é o caso da análise que Ruwet propõe do Prelúdio de Pélleas, isto explicaráque se possa, para explicar a segmentação de uma peça, fazer economia de sua organizaçãotonal e harmônica que, ela sim, é própria da cultura musical ocidental. Este mesmo fenômenonos parece confirmado pelo procedimento de LERDAHL e JACKENDOFF, que descrevem aestrutura métrico-rítmica de uma obra tonal, sem fazer interferir, em suas regras, nossoconhecimento do funcionamento da tonalidade (1983, p.13-104) e os conduz a distinguir, entresuas regras, aquelas que serão de aplicação universal (ibid., p.345-352).

A distinção entre critérios universais e critérios culturalmente específicos é de uma importânciateórica considerável. Do ponto de vista de uma etnomusicologia geral, como estamos começando

Page 24: (Per Musi - UFMG) 9

24

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

a praticar, isto incluíria. . . a música tonal (!), sob o ponto de vista das abordagens cognitivas,visto que a elas importa saber se tal regra, tal processo musical depende das "estruturasuniversais do espírito humano" ou da aprendizagem de um sistema musical particular. A naturezaexplícita das regras de Ruwet terá obrigado a colocar o problema.

3d. O código e a "tábula rasa"Havia, sem dúvida, nas proposições de Ruwet, em 1966, uma fascinação pelo ideal da "tábularasa" que todos os meus primeiros trabalhos, insistindo sobre a necessidade de uma análise"neutra" da música, segundo os termos de MOLINO (1975), contribuíram, talvez, para acentuar.

13

Este aspecto do método levantou debates, suficientemente, para que Ruwet o denunciasse,com veemência, em seu artigo de 1975. Entretanto, uma releitura atenta dos artigos de 1962 e1966 leva a pensar que a posição de Ruwet, na época, era já muito mais matizada. Convémnos determos, em particular, no uso que ele faz da palavra "código".

Ruwet constata, de início, que a distinção entre "mensagem" e "código", tão freqüente dentroda lingüística e da semiologia da época, não foi tematizada na pesquisa musicológica e que,dentro do movimento analítico que permite "ascender" da mensagem ao código, os critérios eos processos não foram jamais objeto de elaboração explícita (RUWET, 1972, p.104). O códigoé, então, o resultado de um procedimento analítico que descobre as estruturas da peça ou docorpus, em uma situação de ignorância absoluta: "O procedimento (da mensagem ao código)se impõe cada vez que, tratando-se de uma língua desconhecida, de um mito ou de umamúsica exótica, etc., a mensagem é o único dado." (RUWET, 1972, p.107) . E Ruwet acaba porressaltar aí a importância dos processos de descoberta no estudo das músicas não- européias.

Mas não se perderá nada aqui em registrar a ambigüidade da palavra "código", sobretudoquando utilizado no singular. Porque. . . de que código se trata? A estrutura formal da peça, asrelações entre seus diferentes parâmetros, o sistema escalar (pentatônico, modal, tonal,cromático)? Tudo ao mesmo tempo, provavelmente. Utilizada dentro da perspectiva estruturalistada época, a palavra "código" designava os elementos que permitem ao destinatário compreender("decodificar") o que desejou transmitir o emissor. Ora, é provável que, no seio desta entidade"código", seja necessário distinguir entre os aspectos efetivamente comuns ao compositor (ouao produtor de música) e ao ouvinte (as escalas são sempre daqueles) e aqueles que escapamà prática codificada de uma época. É uma razão a mais, a meu ver, para empreender descriçõesimanentes empíricas particulares, a fim de colocar em evidência a especificidade de uma peçaou de um corpus, em relação à prática de uma época dada.

Mas, ao mesmo tempo em que Ruwet utiliza a distinção mensagem/código, dentro de umcontexto em que estamos na ignorância do "código", ele reconhece que podemos dispor deíndices sobre o conteúdo deste código (RUWET, 1972, p.102), como a descrição dosinstrumentos, os esclarecimentos sobre a maneira de tocá-los, os dados sobre as condiçõesde execução, dos comentários diversos, os títulos. Com estes exemplos, Ruwet parece mostrarque, elaborando seu modelo de análise, ele tem em mente sobretudo as músicas que são

13 Em Musicologie générale et sémiologie, insisto muito, para evitar as ambigüidades, sobre a necessidade defalar da "análise do nível neutro" (NATTIEZ, 1987:34, e 62, nota 12). Utilizo também, de bom grado, a expressão"nível imanente".

Page 25: (Per Musi - UFMG) 9

25

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

estranhas à nossa cultura, no tempo e no espaço: as monodias medievais ou as músicas detradição oral. Mas, não podemos esquecer que é no conjunto dos modelos analíticos queRuwet reprova a ausência de procedimentos explícitos.

Desde então, a metodologia de Ruwet iria se aplicar dentro de dois contextos de pesquisa:

1- os corpus musicais dos quais sabemos pouco mais que nada, ou dos quais acredita-senada saber: o que explica, ao mesmo tempo, o sucesso de seu modelo junto aosetnomusicólogos e seu próprio interesse pelas monodias medievais;

2- os aspectos de músicas mais familiares, cuja investigação pelas teorias tradicionais éou inexistente ou insatisfatória. Se, em 1962, Ruwet analisa o prelúdio de Pélleas, é porque anoção de duplicação, proposta por Schaeffner, corresponde a uma intuição justa (fundadasobre uma observação atenta), mas que não foi objeto de uma investigação sistemática quepermitisse, da mesma, tornar precisas as características estruturais e as funções. Da mesmamaneira, constata-se que os estudos paradigmáticos aplicados à música ocidental sustentaram-se, não sobre a totalidade dos parâmetros das obras, mas sobre os aspectos menos codificadosda linguagem musical ocidental: as estruturas melódicas e rítmicas. Enfim, como se viu, elesforam sobretudo escolhidos, como corpus, dos períodos intermediários da história da música,pré ou pós-tonais, que não dependem do funcionamento tonal, no senso estrito.

O problema do artigo de 1966 vinha então de que, reconhecendo em geral, explicitamente, aexistência de intuições sobre o código, a lista dos processos explícitos de análise musicalparecia realçar, ela mesma, um "objetivismo bastante primário", denunciado algumas páginasacima (RUWET, 1972, p.102). Em suma, a lista não parecia encorajar a integração dos dadosfornecidos, seja por nossa aculturação a nosso sistema musical quando se trata de músicastonais, seja pelos conhecimentos musicológicos. Esta ambigüidade foi ressaltada pelas críticasas mais atentas (LIDOV, p.1975, p.57). Em particular, POWERS (1980, p.11) reconheceu, emseu artigo de 1966, o embrião das idéias que Ruwet ia desenvolver em seu texto de 1975, asaber, o lugar plenamente reconhecido à intuição.

O que se passa hoje? Se não há nenhuma razão básica para excluir a priori as "intuições sobre ocódigo" ou, mais amplamente, os conhecimentos adquiridos, parece-me capital sublinhar o quecreio ser a contribuição essencial das proposições de Ruwet: muitas teorias e análises musicaisforam elaboradas, sem o cuidado de explicitar e de precisar os critérios que presidiam à construçãodas mesmas, a fim de que não se abordassem aspectos fundamentais, "incertos" ou ignorados, de"nossas" músicas como se nós tivéssemos relação com músicas de tradição oral, como se elas nosfossem estranhas, como se as teorias mais sólidas arriscassem ocultar propriedades específicas eimportantes disto tudo. Certamente, as teorias transmitidas pelo ensino acadêmico refletem uma"prática comum", pela qual pode-se dificilmente negar o papel que elas desempenham na criaçãoe percepção das obras; mas, a partir do momento, precisamente, quando se formula a hipótese deque as músicas, em razão de sua complexidade paramétrica, não são necessariamente percebidastal como foram concebidas, torna-se urgente adotar-se instrumentos empíricos de descrição efazer a diferença entre as normas pedagógicas dos tratados e o que os compositores efetivamentefizeram, o que, além disto, deveria permitir interrogar-se sobre as estratégias composicionais queeles seguiram e as estratégias perceptivas às quais estas obras deram lugar.

Page 26: (Per Musi - UFMG) 9

26

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

A partir disto, certamente, uma questão fundamental se põe: o método de Ruwet é suficiente?O autor jamais pretendeu que suas proposições permitissem descrever a totalidade dasubstância musical de uma obra. Seus procedimentos explícitos não concerniam senão àsmelodias, mesmo que a análise de Pelléas, publicada quatro anos mais cedo, demonstrasseque eles poderiam ser estendidos ao problema clássico da análise empírica da forma. EmRuwet, não há teoria da relação entre o ritmo e a métrica, mas um método fundamental paraoperar e descrever a segmentação, no interior da qual os outros parâmetros podem vir tomarlugar, como ele mostrou pelo parâmetro harmônico (RUWET, 1967 a).

É, aliás, do lado da harmonia que os caminhos, inspirando-se na técnica paradigmática, sãopromissores. Na medida em que a estrutura harmônica de uma obra pode ser restabelecida emuma sucessão de funções e de cifrações, é cômodo aplicar este método à análise de seqüênciasabstratas de encadeamentos harmônicos. Mesmo se, infelizmente, esta orientação não tenhasido objeto de intensas pesquisas – mas ressaltamos as contribuições de LIDOV (1978, p.48) ede SADAÏ (1986) -, vemos bem como a análise empírica das sucessões harmônicas na obra deum compositor dado (cf., por exemplo, BARONI-DALMONTE-JACOBONI,1999, cap.11) poderiaser comparada aos esquemas sintagmáticos gerais, habitualmente ensinados nos tratados (porexemplo, in GOLDMAN, 1965) e mostrar, assim, como a harmonia tonal evoluiu de Bach a Wagner.

A orientação das pesquisas analíticas recentes mostra claramente como as proposições deRuwet podem se integrar aos trabalhos em curso. Tanto A Generative Theory of Tonal Music(LERDAHL-JACKENDOFF,1983) como Les fondements de la musique tonale (DELIÈGE,1984)mostram que, hoje, é necessário justapor ou combinar o estudo de estruturas taxionômicas eaquele das prolongações, inaugurado por Schenker (e ausente dos trabalhos de Ruwet, comode todos os trabalhos analíticos de línguas francesas e italianas da época) e seguidos porMeyer e Narmour. Historicamente, devemos ter Meyer, sem dúvida, como o primeiro a combinarestas duas abordagens a propósito de um scherzo de Beethoven (MEYER,1973, p.81-88). Oautor destas linhas forneceu uma primeira demonstração da integração da paradigmática deRuwet e da análise prolongacional de Meyer (sempre chamada "implicacional - realizacional")a propósito do solo de corno inglês de Tristão (NATTIEZ, 1998).

Todo o edifício analítico de Lerdahl-Jackendoff repousa sobre uma taxionomia primeira, fundada,em sua teoria, sobre o ritmo e a métrica. Mesmo que não o digam, seu empreendimento é análogo,em seu funcionamento, àquele de Ruwet visto que, a partir de instrumentos metodológicos diferentes,eles segmentam unidades melódico-rítmicas de natureza idêntica. Quando as regras explícitas deLerdahl-Jackendoff e de Ruwet, e os resultados aos quais conduzem as duas metodologias foremcomparadas, quando as segmentações paradigmáticas e transformacionais tiverem sido integradascom a análise dos parâmetros dos quais Ruwet não trata, dentro de um modelo global onde adimensão prolongacional

14 está desde já presente, então sua contribuição fundamental à análise

musical contemporânea terá encontrado seu justo lugar (cf. também NATTIEZ, 1992a) .

14 Foi, sem dúvida, porque esta dimensão prolongacional não tinha sido investigada pela lingüística estrutural,que ela não inspirou pesquisas, neste sentido, no âmbito da aplicação dos modelos lingüísticos à análisemusical. Na história da análise no século XX, a prolongação vem de outras fontes: do contraponto de Fux, emSchenker, da psicologia da Gestalt, em Meyer. Observa-se que, se as teorias lingüísticas de Gustave Guillaume,inventor de uma "psico-mecânica da linguagem", ignorada durante o período estruturalista, tivessem sido maisevidenciadas, a situação teria talvez sido diferente. Mas não se refaz a história. . .

Page 27: (Per Musi - UFMG) 9

27

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

4. As gramáticas musicais:A obra e os métodos de Noam Chomsky, inventor da gramática gerativa, exerceram uma influência,ao mesmo tempo decisiva e variada, sobre a análise musical. Decisiva, porque seu projeto inicialem Syntatic Structures (CHOMSKY, 1957), respondia às aspirações epistemológicas dos anossessenta: a precisão da descrição e a verificabilidade da construção. Tratava-se, com efeito, deconstruir um algoritmo de regras explícitas, capazes de engendrar, através de um número finitode regras, a infinidade das frases aceitáveis dentro de uma língua, nisto tudo assinalando-lhesuma descrição estrutural. Mas o pensamento chomskyano compreende também aspectosfilosóficos, psicológicos e epistemológicos. Eles concernem aos universais da linguagem, umateoria de competência lingüística que contribuirá para o desenvolvimento mais recente daspesquisas ditas cognitivas, sem falar do plano epistemológico pelo qual Chomsky entende sediferenciar do empirismo da lingüística americana, de Bloomfield a Harris. Enfim, a prática e ateoria da gramática gerativa não ficaram idênticas desde seu nascimento. A importante obra de1965, Aspects of the Theory of Sintax – bem cedo designada pela etiqueta de "teoria modelo",introduz as noções de "estrutura de superfície" e de "estrutura profunda" e coloca ênfase, menosna geração de um número infinito de frases que sobre a função descritiva do conjunto das regras:"Uma gramática perfeitamente adequada deve conferir, a cada elemento de um conjunto infinitode frases, uma descrição estrutural, indicando como esta frase é compreendida pelo locutor-ouvinte ideal." (CHOMSKY, 1965, p.4-5). Não nos surpreenderemos, então, que os musicólogosque se referiram a Chomsky, tenham podido se inspirar em aspectos ou idéias diversas quefazem com que o "gerativismo musical" se apresente sob múltiplos aspectos.

4a. Schenker e o gerativismoMuito cedo (FORTE, 1959), os teóricos que adotaram as proposições de Schenker para aanálise harmônica, foram sensibilizados pela analogia considerável que ele apresenta com omodelo da teoria padrão de Chomsky. O lingüista propõe gerar uma estrutura de superfície, apartir de uma estrutura profunda, por meio de um intermediário de transformações; Schenkeridentifica um nível subjacente (Hintergrund), um nível mediano (Mittelgrund) e um nível geradorda superfície (Vordergrund). A analogia não deixou de suscitar trabalhos, visando utilizar omodelo chomskiano, para apresentar uma análise schenkeriana ou discutir métodos de análisemusical, particularmente os de KASSLER (1975, 1977), KEILER (1978a, 1978b, 1981) eSMOLIAR (1980). O psicólogo cognitivo da música, John Sloboda, consagra uma seção desua obra The Musical Mind a uma comparação de Chomsky e Schenker (SLOBODA, 1985,p.11-17). Blaking se apoderou, de maneira um pouco metafórica, das noções de estruturasprofundas e de estruturas de superfície, para designar as relações entre o fundamento culturale as produções musicais (BLAKING, 1971a, 1971b), talvez porque, em sua teoria geral(BLAKING, 1973), ele esperasse "gerar" o musical a partir do cultural.

Diferentemente da abordagem paradigmática que qualificamos, com freqüência, de taxionômicaou classificatória, a perspectiva chomskiana é hipotético-dedutiva. Ela propõe partir de nossa intuiçãosobre a estrutura do domínio estudado, depois estabelece regras para explicá-lo e modifica-as, seaverigua que suas conseqüências são inaceitáveis. Um número determinado de trabalhos utilizouo modelo chomskiano, para testar a pertinência de uma teoria clássica já constituída. É a direçãoteórica que Ruwet propunha em 1975. No mesmo espírito, podemos citar, muito particularmente, otrabalho empírico de ROTHGEB (1968), que parte dos tratados de baixo cifrado e examina queregras faltam à teoria, para que seja possível gerar mecanicamente o resultado musical previsto.

Page 28: (Per Musi - UFMG) 9

28

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

4b. A gramática gerativa, como ferramenta da estilísticaSegundo os princípios iniciais de Chomsky, uma gramática gerativa compreende doiscomponentes essenciais:

- um conjunto de regras, que descrevem as ligações e a hierarquia existente entre os"constituintes imediatos" de uma frase; por exemplo (1957, cap. 4.1.):

Estas regras são ditas de "re-escritura", porque elas vão da unidade mais vasta (sempre afrase) aos seus primeiros constituintes, neste caso, o sintagma nominal e o sintagma verbal. Osintagma nominal se re-escreve por sua vez como "artigo" + "substantivo" e daí chega-seposteriormente aos "elementos terminais": the, man, hit, took, etc.

A este conjunto de regras corresponde um "indicador sintagmático", uma estrutura arborescenteque resulta da aplicação destas regras e mostra a estrutura subjacente e hierárquica da frase.Eis uma das derivações possíveis das seis regras propostas (1957, ibidem):

15 "Se comparamos, duas a duas, as propriedades sintáticas de dois itens léxicos dados, observamos que nenhumdos dois itens léxicos possui propriedades sintáticas idênticas."

Nem é preciso dizer que a lingüística gerativa nunca conseguiu propor a descrição completade uma língua dada, sendo que um autor como Maurício Gross, de orientação harrissiana,pôde mostrar, em duas monumentais análises do verbo e do substantivo em francês (GROSS,1968, 1977) e em um texto teórico de grande envergadura (GROSS, 1979), que foramsoberbamente ignorados pela escola chomskiana, porque não lhe seria possível proceder deoutra maneira: "If we compare, two-by-two, the syntatic properties of any two lexical items, it isobserved that no two lexical items have identical syntatic properties."

15 (GROSS, 1979, p.860)

Ex. 9 - Indicador sintagmático de uma frase em inglês

Page 29: (Per Musi - UFMG) 9

29

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

Dizendo de outro modo, as regras transformacionais – que constituem uma das componentesda gramática gerativa – existirão, na realidade, em número infinito. Pode-se suspeitar que é,não sob a influência de Gross, mas frente à proliferação do número de regras transformacionais,necessárias à descrição de uma língua, que Chomsky, progressivamente, deu como objetivo,à gramática gerativa, não fornecer um conjunto finito de regras capazes de gerar um númeroinfinito de frases, mas sim, conferir às frases uma descrição estrutural.

A situação é um pouco diferente em música porque, tomando a sério a possibilidade de descrevero estilo de um gênero ou de um compositor, os musicólogos, com mais freqüência, trabalharamsobre corpus, ao mesmo tempo, simples e bem delimitados. Da mesma forma, sendo dada anatureza própria da música como forma simbólica, o estruturalismo era, sem dúvida, maisapropriado para descrever a música, que uma obra literária ou uma língua, e eu me permitiriasugerir que o gerativismo estrito de Chomsky (a construção de um conjunto de regras, gerandoe descrevendo, hierarquicamente, um conjunto de frases mais numerosas que o corpus inicialde análise) teve mais sucesso em musicologia, que em lingüística.

No domínio musical, a ferramenta gerativa se adapta, particularmente bem, à descrição explícitade um estilo, com a condição de que o corpus seja suficientemente simples para tornar-seobjeto de um conjunto finito de regras, que permitam a geração de "falsificações" reconhecidaspelos especialistas como pertencendo ao mesmo conjunto, no todo conferindo às produçõesmusicais uma descrição sintagmática que das mesmas explicite a organização imanente.Ninguém propôs ainda a gramática gerativa do estilo de Wagner. . .

O método gerativo também foi utilizado, sobretudo na etnomusicologia e nos estudos de jazz ede música pop, porque eles tratam, freqüentemente, das monodias. Os trabalhos que se valemda gramática gerativa, dentre os quais alguns programáticos, são numerosos

16 (cf. BARONI-

JACOBONI ,1976; BARONI et al., 1984; BOILÈS, 1967; BREDICEANU, 1975; CAMILLERI,1984; CHENOWETH-BEE, 1971; COOPER, 1973; GIOMI-LIGABUE, 1988; HERNDON, 1975;HUGHES, 1991; JOHNSON LAIRD, 1991; KIPPEN, 1987; KIPPENBEL, 1992; LASKE, 1972,1973; LIDOV-GABURA, 1973; LINDBLOM e SUNDBERG, 1970, 1972; MIDDLETON, 1990,p.189-214; PELINSKI, 1981, cap. V; PELINSKI, 1984; PERLMAN-GREENBLATT, 1981;STEEDMAN, 1984; SUNDBERG-LINDBLOM, 1975,1976; SAPIR, 1969; WENK, 1988;WINOGRAD, 1968), e cada um, dentre eles, mereceria uma discussão metodológica atenta edetalhada. No âmbito limitado deste artigo, destacaremos, a título de modelo pedagógico, agramática de srepegan javanês, elaborada por Judith BECKER e Alton BECKER (1979),suficientemente eficaz para que seja possível fabricar com ela novas peças, a partir das regraspropostas. Além disto, este artigo mostra que utilização o musicólogo pode fazer de certossímbolos bastante simples, próprios para fornecer uma representação explícita das repetições,das diluições, dos encadeamentos de estruturas dentro de contextos bem definidos.

16 Com a expansão do uso do computador na pesquisa científica, pode ser difícil estabelecer a fronteira entregramáticas gerativas musicais e utilização do computador na solução dos problemas musicológicos. Nãoconsideramos aqui as gramáticas chamadas de reconhecimento e aquelas que utilizamos para a composiçãomusical. Duas publicações permitem sintetizar a situação em que se encontram as gramáticas musicais detoda natureza: o volume IX, n. 2 do Computer Music Journal (OBRA COLETIVA, 1980) e as atas do importantecolóquio realizado em Modene, 1980 (BARONI e CALLEGARI ed., 1984). Encontraremos outras referênciasem Baroni-Dalmonte-Jacoboni 1999, p.21, n.8.

Page 30: (Per Musi - UFMG) 9

30

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

Eis um exemplo de srepegan:

Ex.11 – Inventário êmico dos contornos (melódicos) empregados no gênero srepegan

Ex.10 - Exemplo de srepegan, "slendro pathet manyura"

Ressaltamos que, para poder propor uma gramática gerativa do conjunto do corpus ao qualesta peça pertence, é necessário, antes de tudo, estabelecer uma segmentação que, nestecaso, repousa sobre categorias êmicas. Cada uma das três linhas termina por um golpe degongo e é denominada gongan. Cada gongan é subdividido em unidades de quatro compassosque parecem musicalmente distintas para nós, mas que, para os autóctones, são aparentadas,não segundo as alturas, mas segundo os contornos, como o resume o quadro seguinte:

Page 31: (Per Musi - UFMG) 9

31

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

Assim, o primeiro gongan do Ex.10 é feito de três unidades: 1,1,1; o segundo compreende 1,1,2 e o terceiro: 1,1,3.

Após análise do corpus, os autores propõem a gramática gerativa seguinte:

A regra 1 se lê como se segue: um srepegan se compõe de um Gi, um Gj e um Gi. Os Gi distinguem

os gongans do início e do fim da peça (assinalados pelos #), o Gj designa o gongan situado nointerior da peça e não em suas extremidades. A segunda regra estabelece que um gongan deinício ou de fim (Gi) se re-escreve: "a", opcional (o "a" está entre parênteses), seguido do contorno"1" e seguido de "b". As regras seguintes vão re-escrever "a" e "b". (Sabe-se já que "1" é umcontorno entonativo específico. Cf. ex. 11). Quanto ao gongan central, ele tem sempre umaestrutura imutável (1+1+2). A regra 4 significa que "a" se re-escreve ou Gi ou "1" ou os dois.A regra 5 é a mais complexa e a mais rica. Ela indica que se pode re-escrever "b" como "1" ou"3", ou "4" e "6", ou "2" (a opção está indicada pelas chaves). Cada uma das opções é especificadasegundo o contexto, indicado pela barra oblíqua "/". Segundo a primeira sub-regra, para que "b"se reescreva "1", lá onde há um traço subscrito, é necessário que ele apareça dentro de umgongan de início e que ele seja precedido das unidades 1+1. Para que "b" seja reescrito "2", eledeve estar dentro de um gongan do fim da peça. Ele é re-escrito "4" se ele aparece em umaunidade dominada por "a" (isto supõe que se aplicou, de início, a regra 4), imediatamente após oinício da peça. Ele se re-escreve "6" quando aparece dentro de uma unidade dominada por "a",precedida de um gongan interno e seguido de um gongan de fim. Ele se reescreve "2" em todosos casos. Outras regras vêm especificar quais são as notas reais que realizam os contornos "1"a "7", segundo os contextos. O leitor pode agora se exercitar em como derivar estruturas desrepegan javanês. . . para descobrir que existe uma infinidade delas.

O que é notável nesta gramática, ao mesmo tempo no plano pedagógico e epistemológico, éque estamos, com efeito, na presença de um sistema de regras explícitas no qual todos oselementos variáveis são definidos por seu contexto. Estamos, então, na presença de umadescrição rigorosa e imanente do estilo de um gênero particular. Não se poderia pretender queeste sistema de regras corresponda também às estratégias poiéticas dos músicos da Indonésia("gerativo" não significa "composicional") nem às estratégias estésicas de seus ouvintes: eledescreve as restrições sintagmáticas dos elementos constitutivos do corpus, o que já é muito.

Ex.12 - Gramática gerativa do gênero srepegan

Page 32: (Per Musi - UFMG) 9

32

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

4c. Um modelo gerativo da competência perceptiva tonalQuanto mais Chomsky evoluiu, mais ele insistiu sobre a pertinência psicológica das gramáticasgerativas, disto advindo o liame que se estabeleceu entre o chomskismo e a psicologia cognitiva.Foi pelo fato de terem se atribuído como objetivos, fornecer as regras gerais que comandam apercepção da música, que LERDAHL e JACKENDOFF intitularam o próprio livro: A GenerativeTheory of Tonal Music (1983a). Como o indicam, explicitamente, os autores, no início deseu trabalho,

"we must mention some common misconceptions about generative-transformational grammar.The early work in the field, such as Chomsky (1957) and Lees (1960) took as its goal thedescription of "all and only" the sentences of a langage, and many were led to think of agenerative grammar as an algorithm to manufacture grammatical sentences. Under thisinterpretation, a musical grammar should be an algorithm that composes pieces of music."

17

E, aqui, os autores se referem a alguns dos autores de gramática gerativa que foram citadosmais acima, continuando assim:

"There are three errors in this view. First, the sense of "generate" in the term "generativegrammar" is not that of an electrical generator that produces electricity, but the mathematicalsense, in which it means to describe a (usually infinite) set by finite formal means. Second, itwas pointed out by Chomsky and Miller (1963), and it has been an unquestioned assumption ofactual research in linguistics, that what is really of interest in a generative grammar is thestructure it assigns to sentences, not which strings of words are or are not grammatical sentences.The same holds for our theory of music. It is not intended to enumerate what pieces are possible,but to specify the structural description for any tonal piece; that is, the structure that theexperienced listener infers in his hearing of the piece. A third error in the conception of agenerative grammar as a sentence-sweping device is not evident from passing acquaintancewith the early works of the generative school, but emerges as a prominent theme of Chomsky(1965), Lenneberg (1967), and subsequent work. Linguistic theory is not simply concernedwith the analysis of a set of sentences; rather it considers itself a branch of psychology, concernedwith making empirically verifiable claims about one complex aspect of human life: language.Similarly, our ultimate goal is an understanding of musical cognition, a psychologicalphenomenon." (LERDAHL e JACKENDOFF 1983a, p.6).

18

17 Trad.: "Devemos mencionar algumas concepções errôneas, freqüentes sobre a gramática gerativatransformacional. O trabalho inicial neste domínio, como em Chomsky (1957) e Lees (1960), teve por objetivoa descrição "completa e exclusiva" das frases de uma linguagem, e muitos foram levados a pensar na gramáticagerativa como um algoritmo para fabricar frases gramaticais. De acordo com esta interpretação, uma gramáticamusical deveria ser um algoritmo que compusesse peças de música."

18 Trad.: "Há três erros nesta concepção. Primeiramente, o sentido de "gerar" dentro do termo de "gramáticagerativa" não é aquele de um gerador elétrico que produz eletricidade, mas um sentido matemático, no qualele busca descrever um conjunto (geralmente infinito) por meios finitos. Em segundo lugar, conforme ressaltamChomsky e Miller (1963), e esta foi uma aquisição inquestionável nas pesquisas atuais em lingüística, aquiloque é verdadeiramente de interesse dentro de uma gramática generativa é a estrutura que ela confere àsfrases e não que seqüências de palavras constituem ou não frases gramaticais. Ocorre a mesma coisa com anossa teoria da música. O objetivo não é apenas enumerar quais peças são adequadas, mas especificar adescrição estrutural de uma peça tonal dada; isto é, a estrutura que o ouvinte experiente percebe na suaescuta da obra. Um terceiro erro na concepção de uma gramática gerativa, enquanto instrumento para umavarredura de frases, não se torna evidente num conhecimento transitório das primeiras obras da escola gerativa,mas emerge como um tema proeminente de Chomsky (1965), Lenneberg (1967), e obras subseqüentes. Ateoria lingüística não concerne simplesmente à análise de uma série de frases; ela, de preferência, considera-se um ramo da psicologia apropriado para fazer afirmações verificáveis empiricamente sobre um aspectocomplexo da vida humana: a linguagem. Da mesma forma, nosso objetivo final é compreender a cogniçãomusical, um fenômeno psicológico".

Page 33: (Per Musi - UFMG) 9

33

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

Detive-me em citar, por completo, esta longa passagem, para que o leitor, interessado pelasaplicações da lingüística à compreensão do fenômeno musical, possa se orientar nos diferentesusos que são feitos, tanto na lingüística quanto na musicologia, da palavra "gerativo". Aenunciação inicial desta quarta seção, sobre a diversidade e a evolução da teoria chomskiana,terá permitido compreender porque a perspectiva "gerativa" de Lerdahl e Jackendoff écompletamente diferente, em seus objetivos e seus métodos, daquela dos autores de gramáticasestilísticas citadas anteriormente, mesmo que o termo "erro" de concepção, aqui utilizado, sejaprovavelmente exagerado. Se podemos admitir que seja legítimo utilizar o conceito degerativismo para qualificar uma teoria da percepção musical que se inspire em um dos aspectosda teoria chomskiana, não há razão para excluir, do paradigma chomskiano, no sentido amplo,a descrição estrutural e hierárquica das exigências estilísticas da obra, dentro de um corpus:é um aspecto da organização das obras e dos processos que é bem real, mas cuja pertinêncianão é necessariamente perceptiva.

Mas tudo isto em nada prejudica em nada a grandeza do livro de Lerdahl e Jackendoff. Estamos,provavelmente, na presença de uma das obras de teoria e análise musical mais notáveis doséculo XX.

O modelo é composto de quatro elementos (para um resumo, cf. LERDAHL-JACKENDOFF,1983b): a estrutura rítmica e a estrutura métrica, que conduzem a agrupamentos de unidadese que servem de fundamento aos dois outros; a "time-span reduction", que mostra, pelo viésde uma estrutura arborescente, como as relações harmônicas hierarquizadas são dependentesda estrutura métrico-rítmica; a "redução prolongacional", que é a parte da obra mais diretamenteinspirada pela simbologia schenkeriana. Se excluímos as relações de transformações entremotivos – aspecto sobre o qual o modelo de Ruwet permanece fundamental -, o modelo deLerdahl-Jackendoff é, provavelmente, do ponto de vista dos aspectos tratados da substânciamusical, o mais completo já proposto para a análise das obras tonais. Pode-se julgar isto,seguindo em geral, ao longo do livro, a análise recorrente do tema da Quadragésima Sinfoniade Mozart, que é abordado segundo cada um dos quatro pontos de vista. Ao termo do percurso,os diferentes níveis de análise podem ser superpostos a fim de se colocar à luz suainterdependência. No exemplo abaixo (LERDAHL e JACKENDOFF, 1983a, p.259), a análisemétrico-rítmica representada por um sistema de pontos, e as segmentações de unidades aosquais ela conduz, são indicados imediatamente abaixo da pauta. A redução harmônica édetalhada, pelos cinco sistemas indicados pelas letras de b a g da parte inferior do exemplo. Aarborescência que a isto corresponde está enxertada sobre a partitura na parte inferior (aredução prolongacional é dada pelos autores, na página seguinte, com a árvore correspondente).

Page 34: (Per Musi - UFMG) 9

34

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

Ex.13 - Análise do tema da Sinfonia em Sol menor K 550 de Mozart, segundo Lerdahl e Jackendoff

O modelo pretende ser "a formal description of the musical intuitions of a listener who isexperienced in a musical idiom" (LERDAHL e JACKENDOFF, 1983 a, p.1).

19 Não é impossível

que se trate também da competência musical de um excelente aluno de conservatório ou de

19 Trad.: " uma descrição formal das intuições musicais de um ouvinte, que é experiente em determinado idiomamusical."

Page 35: (Per Musi - UFMG) 9

35

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

uma faculdade de música, que confira a seu ouvinte ideal as mesmas capacidades perceptivasque as suas. Neste caso, o modelo seria igualmente pertinente do ponto de vista das previsõesperceptivas incluídas dentro das estratégias poiéticas. Consagrei a este problema difícil edelicado um pequeno artigo (NATTIEZ, 1997a), ao qual Lerdahl e Imberty responderam(LERDAHL, 1997; IMBERTY, 1997). Aqui, não posso senão me referir a este debate. Narealidade, o trabalho de Lerdahl e Jackendoff fornece uma excelente descrição das estruturasmorfológicas de uma obra musical à qual é atribuída uma pertinência estésica. Nisto, elepermanece fundamentalmente taxionômico.

20 No resto, as 56 regras propostas não têm todas

o mesmo status. Se algumas descrevem diretamente como as estruturas de uma obra sãopercebidas, outras têm como função principal a de guiar a análise. A regra de proximidade(GPR2) é um exemplo do primeiro tipo: "Consider a sequence of four notes n1 n2 n3 n4. Allelse being equal, the transition n2-n3 may be heard as a group boundary if the interval of timefrom the end of n2 to the beginning of n3 is greater than that from the end of n1 to the beginningof n2 and that from the end of n3 to the beginning of n4 etc"

21 Mas a regra não nos indica

somente como uma tal passagem é percebida; estamos também em presença de uma normade segmentação taxionômica, fundada não sobre critérios paradigmáticos, mas sobre critériossintagmáticos (o contexto de n2-n3), própria para guiar a análise que se deseja pertinenteperceptivamente. Outras regras me parecem de ordem mais diretamente metodológica para aanálise e, neste caso, são mais aparentadas aos tipos de regras propostas por Ruwet: "Avoidanalyses with very smaller groups – the smaller, the less preferable" (GPR 1) ou " Prefer ametrical structure in which beats of level Li that are stressed are strong beats of Li" (MPR 4)

22,

mesmo se estes conselhos endereçados ao analista repousem, certamente, sobre regraspressupostas para descrever as estratégias perceptivas. Mas, dentro de um caso como deoutro, estas regras podem ser experimentalmente testadas e corrigidas, o que está inteiramentede acordo com as exigências normais da epistemologia. Aliás, foi o que ocorreu, e para melhor.

Porque, se a obra de Lerdahl e Jackendoff não conheceu um amplo reconhecimento sob o pontode vista da análise das obras stricto sensu, em compensação, a psicologia cognitiva da música,que sabemos estar em plena efervescência, dela se apossou. Irène DELIÈGE (1987), como boapsicóloga experimentalista da música, verificou a validade das regras de agrupamento perceptivojunto a sujeitos músicos e não-músicos. Pode-se esperar ainda mais das conseqüências destetrabalho. Na medida em que 51 das 56 regras propostas são dadas como universais (LERDAHLe JACKENDOFF, 1983a, p.345-352), os autores lançam aos etnomusicólogos um grande e salutardesafio que ainda não foi levado em consideração. A importância de um trabalho não se medeunicamente por seu caráter inovador e pelo valor dos modelos propostos, o que, por certo, ocorreneste caso, mas também pelo campo de investigações novas que propõe.

4d. "Le regole della musica"Mario Baroni e Carlo Jacoboni haviam já proposto uma gramática gerativa das partes do sopranonos corais de Bach, uma das raras realmente testadas pelo computador (BARONI e JACOBONI,

20 O que eu chamo, dentro do meu jargão, estésica indutiva (JJN).21 Trad.: "Consideremos uma seqüência de quatro notas n1 n2 n3 n4. Todo o resto permanecendo igual, a

transição n2- n3 pode ser ouvida como um grupo-limite, se o intervalo temporal do fim de n2 até o início de n3é maior que aquele do fim de n1 até o começo de n2 e aquele do fim de n3 até o início de n4 etc."

22 Trad.: "Evite análises com os grupos muito menores – quanto menor, menos preferível" (GPR 1) ou "Prefira aestrutura métrica em que tempos do nível Li que são acentuados sejam tempos fortes de L

i" (MPR4).

Page 36: (Per Musi - UFMG) 9

36

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

1976), tendo eles também trabalhado com a geração de sua componente harmônica (BARONI eal., 1984). Porém, foi sobretudo a obra de ambos, Le Regole della Musica, co-assinada comRossana Dalmonte, que constitui, até o momento, o empreendimento de gramática estilísticamais bem sucedido e mais convincente, tomando, além do mais, como corpus, não os enunciadosrelativamente simples que o etnomusicólogo fornece, mas uma série de 31 árias de um compositorda época barroca, Giovanni Legrenzi (BARONI-DALMONTE-JACOBONI ,1999).

Aqui utilizo, com prudência, a palavra "estilística", porque, de um modo mais geral, trata-se, paraos autores, de fornecer "a explicação conceitual da competência gramatical" (BARONI-DALMONTE-JACOBONI ,1999, p.13), isto é, os processos pelos quais o compositor toma "asdecisões quanto às relações sintáticas entre as notas e sua ordem de sucessão" e, segundo osquais, os ouvintes procedem à "elaboração perceptivo-cognitiva da informação sonora" (BARONI-DALMONTE-JACOBONI ,1999, p.8, nota 6). Seria este verdadeiramente o caso? Mesmo se osautores rejeitam o conceito de "nível neutro", proposto pela teoria tripartite Molino-Nattiez (ibidem),não estou certo de que o empreendimento demonstre, para cada uma das 119 regras propostas,de que maneira elas são pertinentes do ponto de vista poiético, estésico ou de ambos. Serianecessário, para isto, aplicar às descrições morfológicas propostas, uma teoria do poiético ouuma teoria do estésico que lhes confira uma ou outra destas pertinências ou as duas (NATTIEZ,1997b, p.17-18), da mesma maneira que, em Lerdahl e Jackendoff, a teoria da Gestalt é a teoriaque lhes permite atribuir uma pertinência estésica às estruturas que eles resgatam. No meuentender, estas 119 regras resultam de magníficas análises. . . do nível neutro! Não falarei maisdisto aqui (publicarei, noutra ocasião, uma síntese detalhada deste livro), senão para ressaltarque, por estas razões, tenho algumas dúvidas quanto à legitimidade do subtítulo do livro: "Umpanorama dos mecanismos de comunicação."

23 Mas, sem as regras propostas, seria impossível

pronunciar-se sobre estas pertinências, e isto se dá porque estamos, com efeito, em presença deuma obra decisiva, do ponto de vista da compreensão do fenômeno musical.

Não utilizei aqui o termo "gerativo", mesmo que a iniciativa repouse sobre o conceito chomskianode "competência", porque o objetivo dos autores não é produzir pastiches (BARONI-DALMONTE-JACOBONI ,1999, p.63), como é, freqüentemente, o caso dos pesquisadores citados no item4b acima, mas utilizar a prova por falseamento, como meio de verificar as 119 regras propostaspela gramática sobre a base de uma análise anterior do corpus. De fato, o que nos é propostoé o resultado de numerosas idas-e-vindas "entre a análise e as regras da análise", que seguindo-se às gerações de enunciados musicais que, no curso da pesquisa, mostraram aos autoresseja a insuficiência, seja a inadequação das regras descritivas que eles tinham deduzido daobservação do corpus. Em síntese, "a análise tem como meta encontrar uma regularidade quea gramática terá por objetivo transformar em regras" (BARONI-DALMONTE-JACOBONI ,1999,p.51). Neste sentido, o trabalho é bem um herdeiro das preocupações dos anos sessenta esetenta: o conjunto das regras repousa sobre uma varredura sistemática das recorrênciascaracterísticas do corpus, que constituem o objeto de uma descrição explícita, testável porcomputador. No mais, o empreendimento não se sustenta somente sobre um aspecto limitadodo corpus (a monodia, como o caso mais freqüente nos corpus de tradição oral), mas sobre umconjunto de cinco dimensões essenciais destas árias: a estruturação do texto poético (e suainfluência sobre a organização musical), a grande forma, a organização melódica, a harmonia

23 Sou eu quem sublinha. (JJN).

Page 37: (Per Musi - UFMG) 9

37

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

e a linha melódica do baixo. Este livro constitui, até os dias de hoje, a análise de inspiraçãolingüística, versando sobre um compositor de música tonal, mais ampla e bem sucedida.

O que faz a sua importância e o seu sucesso? De início, o fato de que as regras propostas nãose confundem com o algoritmo que foi necessário se construir para permitir ao computadorverificar as regras. De imediato, apesar da minúcia dos detalhes, a leitura da obra não é entravadapela "tecnologia" de uma gramática gerativa ortodoxa. Eis alguns exemplos destas regras:"Não é permitido a duas tonalidades relativas se sucederem". Ou ainda, "a anacruse nãocompreende nunca mais de três sílabas: o primeiro tempo forte corresponde a uma das quatroprimeiras sílabas, com acentuações de tipo 1 ou 2". Um último exemplo: "Os ciclos harmônicoscompletos são formados pela sucessão das zonas harmônicas fundamentais Dominante-Tônica,por vezes precedidas pela zona da Sub-Dominante ou pela zona da Tônica, ou pelas duas,não importando a ordem."

Vemos, através de alguns exemplos, que as regras propostas repousam, em princípio, sobre aidentificação do que Chomsky teria chamado "os constituintes imediatos" e que, de maneiramuito oportuna, os autores chamam de aspectos "morfológicos". Aqui, ainda, como em Lerdahl-Jackendoff, todo o trabalho repousa sobre uma taxionomia. Em segundo lugar, a sintaxe destasmorfologias de base é apreendida segundo seu contexto (critérios distribucionais) ou seu número(critérios estatísticos). Esta é a razão pela qual, como ocorre, freqüentemente, nas práticasmais rigorosas das ciências humanas, estas regras têm um caráter não determinista, masprobabilista. Enfim, estamos, na verdade, em presença de uma abordagem científica, vistoque estas regras são suficientemente explícitas para que se possa, eventualmente, demonstrarsua falsidade, segundo o critério de Popper. Falsas, para os autores que as aperfeiçoaram porensaio e erro, no decorrer da elaboração de toda a pesquisa. Falsas, para os musicólogos queutilizam o livro e que, confrontando as regras com sua própria observação do corpus das 31árias, poderão ser conduzidos a matizar, corrigir ou completar as regras, sobre este ou aqueleponto. Visto que são explícitas, estas regras permitem coordenar um processo cumulativo desaber.

E, do mesmo modo que as regras perceptivas de Lerdahl-Jackendoff forneceram umextraordinário material de base aos psicólogos para verificar, experimentalmente, como funcionaa cognição musical, as regras de Baroni-Dalmonte-Jacoboni poderiam, de fato, trazer algo denovo, não somente à análise musical (na minha opinião, isto já foi obtido), mas à musicologiahistórica. Não é também mérito menor deste livro propor ainda, na terceira parte, após terconstatado que a parte mais nova, sob o ponto de vista do conhecimento musical, toca naorganização da melodia, um vasto complexo da história da melodia ocidental, do gregoriano aHindemith. Certos traços gerais dos diferentes períodos são confrontados às regras que regema frase melódica em Legrenzi. Não somente vemos desenhar-se uma perspectiva diacrônicapara a análise musical fundada sobre critérios históricos, como é possível entrever que, seesta tendência se desenvolvesse, a maneira de escrever a história da música se transformaria.

5. ConclusõesA proliferação de análises pontuais, inspiradas nos modelos da lingüística estrutural, deChenoweth à Becker, de Stefani à Nattiez, seriam suficientes para afirmar que, a partir dosanos sessenta, e por um longo período, uma tendência importante se insinuou no campo da

Page 38: (Per Musi - UFMG) 9

38

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

análise musical. A existência de alguns grandes livros, como aqueles de Ruwet, Arom, Lerdahhl-Jackendoff e Baroni-Dalmonte-Jacoboni, nos convence que estamos, doravante, em presençade uma nova corrente na história da musicologia.

Isto não é razão para ostentar um triunfalismo duvidoso. De início, porque existiram outrasabordagens hierárquicas, rigorosas e inovadoras, no século XX, que não nasceram do encontrocom a lingüística. É suficiente citar os nomes de Schenker, Schöenberg, Réti, Forte, Deliège,Meyer ou Narmour, sem falar dos trabalhos de análise que apelam para o computador. A diferençacapital, que aí habita, reside na redação de regras explícitas, ou na utilização destas regras, quesão o traço comum a todas as grandes obras que citei: regras para o controle racional da análise,ou regras para apresentar, de modo rigoroso, os resultados da análise. Para além do liame que,por muito tempo, ligou semiologia musical e lingüística, não há qualquer razão, como assinaleimais acima, para não combinar modelos de análise de inspiração lingüística com aqueles quevêm de outros campos. Os modelos de inspiração lingüística serão, assim, completados pelotratamento de aspectos da música que, durante longo tempo, lhes haviam escapado (por exemplo,a prolongação). Ao contrário, o rigor introduzido pelos modelos lingüísticos poderá levá-los areformular os outros modelos. Foi o que ocorreu, quando Lerdahl e Jackendoff se inspiraram emSchenker. Há, então, ainda muito a fazer. E, particularmente, do ponto de vista do liame entre asestruturas musicais, o mundo, as estratégias composicionais e perceptivas, a história e a cultura.

Por meio do percurso que acabo de propor, tentei mostrar que as análises musicais imanentes,muito freqüentemente, haviam se expandido para outras dimensões: sobre as significaçõesafetivas, imagéticas ou denotativas a elas ligadas, sobre as estratégias composicionais, sobreas estratégias perceptivas. Não dispomos, ainda, de um trabalho que mostre como a análisedas estruturas musicais pode ser sistematicamente unida à dimensão semântica e aos doisoutros pólos (poiético e estésico) da tripartição semiológica, mesmo se, recentemente, algunsartigos pontuais mostraram a quais resultados poder-se-ia chegar, nesta direção(NATTIEZ,1992,1997,1998).

Do lado da história da musicologia, a efervescência semio-lingüística dos anos sessenta acaboupor tornar-se o objeto de críticas, do lado dos historiadores da música (SCHNEIDER, 1980;POWERS, 1980). A obra consagrada às árias de Legrenzi abre uma via privilegiada para aconexão entre a análise musical rigorosa e a história. Se tomamos alguns grandes clássicosda história da música, como as obras de Bukofzer ou de Einstein, ficamos tocados pela raridadeou pela ausência de exemplos musicais. Tudo isto, simplesmente, como me sugere Molino,porque, em 1947, a concepção da obra musical, como organização estrutural hierarquizada,não estava ainda na ordem do dia. No caso do Classical Style de Rosen (1971), onde, aocontrário, há de um a três exemplos musicais por página, o autor vai investigar, dentro daimensidão deste corpo, o que lhe parece convir à sua tese ("O estilo clássico é o drama"), semdaí passar por uma descrição sistemática de cada uma das obras e estilos. Não é diferente oque ocorre, nos trabalhos do "Music Criticism" anglo-saxão, onde a análise musical está muitopresente, em geral recusando os modelos bastante rigorosos da "teoria da música", comoinsiste Kerman, seu porta-voz auto-proclamado (KERMAN, 1985, cap. III). A partir do momentoem que vamos dispor de análises locais, cada vez mais numerosas e mais vastas, de estilosparticulares, não será mais possível, como o faz a fundo a história tradicional da música, nelesbuscar explicar, por largos traços externos (biográficos, incidentais, sociais, culturais), a

Page 39: (Per Musi - UFMG) 9

39

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

emergência, a existência ou a transformação deste ou daquele gênero. Será necessário penetrarno detalhe dos estilos e colocar, em termos novos, as relações entre os diferentes níveishierárquicos e paramétricos das estruturas musicais e a história da música.

Do lado da etnomusicologia, a irrupção dos modelos lingüísticos, nos anos sessenta, havia sidobastante criticada, porque ela deixava de lado o liame entre as produções musicais e o contextocultural (FELD, 1974; cf. também a réplica de HERNDON, 1974). Vale a pena apostar que, paraalém da visão puramente etnomusicológica de um Arom ou da visão puramente etnomusicológicada grande maioria das abordagens contemporâneas desta disciplina, haverá lugar, doravante,para a construção de uma verdadeira etno-musicologia (com um traço de união), isto é, para umaabordagem que conseguirá determinar a que nível da estrutura musical se situam efetivamenteos liames entre os constituintes das peças musicais e a cultura (para uma apresentação deminha posição atual sobre este assunto, cf. SCHULTE-TENCKHOFF, 1999).

É provável, portanto, que assistiremos a uma ampliação cada vez maior do horizonte em relaçãoao qual as estruturas musicais serão analisadas. Pode-se já apostar que, além das ciênciasneuro-psicológicas, a biologia da música virá se juntar às disciplinas que se ocuparão daglobalidade do fato musical e não é impossível que, deste encontro, origine-se uma completasubversão da análise musical. Mas, se o desenvolvimento das abordagens musicais rigorosasprossegue, mesmo nos campos que ultrapassam a imanência inicial da abordagem, seránecessário jamais esquecer a grande lição que, desde já, o encontro dos modelos lingüísticose da análise musical nos traz: jamais abandonar o texto!

Referências bibliográficasAROM, Simha. Essai d’une notation des monodies à des fins d’analyse. Revue de musicologie. vol. LV, N° 2,

1969. p. 172-216.AROM, S. Conte et chantefables Ngbaka Ma’bo. Paris : Bibliothèque de la SELAF, 1970.AROM, S. Polyphonies et polyrythmies instrumentales d’Afrique centrale. Structure et méthodologie. 2 vol. Paris :

Éditions de la SELAF, 1985.ASCH, Michael. Social Context and the Musical Analysis of Slavery Drum Dance Songs. Ethnomusicology, vol.

XIX, N° 2, 1975. p. 245-258.AUSTERLITZ, Robert. Meaning in Music : is Music like Language and if so how ?. American Journal of Semiotics,

vol. II, N° 3, 1983. p. 1-12.AYREY, Craig. Deconstructing Debussy, communication au congrès annuel de l’Australian Musicological Society.

Melbourne: août 1985, mim.BARONI, M., BRUNETTI, R. CALLEGARI, L., JACOBONI, C. A Grammar for Melody. Relationships between

Melody and Harmony, in Baroni-Callegari (ed.), 1984. p. 201-218.BARONI, M., CALLEGARI, L. (ed.). Musical Grammars and Computer Analysis, Atti del Convegno (Modena, 4-6-

octobre 1982). Firenze: Olschki Editore, Quaderni della Rivista Italiana di Musicologia, 8, 1984.BARONI, M. JACOBONI, C. Verso una Grammatica della Melodia. Bologne: Antiquae Musicae Italicae Studiosi,

Università Studi di Bologna, 1976 ; trad. ing., Proposal for a Grammar of Melody. Montréal: Presses de l’Universitéde Montréal, 1978.

BARONI, M., DALMONTE, R., JACOBONI, C. Le Regole della Musica, Indagine sui meccanismi della

Page 40: (Per Musi - UFMG) 9

40

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

comunicazione. Torino [Turin]: Edizioni di Torino, 1999.BEAUDRY, N. Le langage des tambours dans la cérémonie vaudou haïtienne, Revue de musique des universités

canadiennes, N° 4, 1983. p. 125-140.BECKER, J. and A . A Grammar of the Musical Genre Srepegan. Journal of Music Theory. vol. XIII, N° 2, 1983. p.

267-279.BECKING, G. Der musikalische Bau des montenegrinischen Volksepos, Proceedings of the First International

Congress of Phonetic Science. Amsterdam, 3-8 juillet 1932, Archives néerlandaises de phonétique expérimentale,vol. VII-IX, 1933. p. 144-153.

BENT, I. « Analysis ». The New Grove Dictionary of Music and Musicians, Sadie ed., Macmillan Publishers, vol. I,1980. p. 340-388 ; réed., The Norton/Grove Handbooks in Music. New York – Londres: Norton, 1987.

BERNSTEIN, L. The Unanswered Question. Cambridge: Harvard University Press, 1976 ; trad. fr. La questionsans réponse. Paris: Laffont, 1982.

BIERWISCH, M. Musik und Sprache : Überlegungen zu ihrer Struktur und Funktionsweise. Leipzig: Peters, 1979.BLACKING, J. Towards a Theory of Musical Competence. Man : Anthropological Essays presented to O.A. Raum.

De Jager (ed.). Cape Town: C. Struik , 1971a. p. 19-34.BLACKING, J. Deep and Surface Structures in Venda Music. Yearbook of the International Folk Music Council,

vol. III ,1971 b. p. 69-98.BLACKING, J. How Musical is Man ?. Seattle: University of Chicago Press, 1973; trad. fr., Le sens musical. Paris:

ed. Minuit, 1980.BOILÈS, C. Tepehua Thought-Song : a Case of Semantic Signaling. Ethnomusicology, vol. XI, No. 3, 1967. p.

267-292 ; trad. fr., Les chants instrumentaux des Tepehua : un exemple de transmission musicale designifications.Musique en jeu, N° 12, 1973. p. 81-89.

BOILÈS, C. Sémiotique de l’ethnomusicologie. Musique en jeu, N° 10, 1973a. p. 34-41.BOILÈS, C. Reconstruction of Proto-Melody. Anuario Yearbook in Inter-American Musical Research, vol. IX,

1973b. p. 45-63.BOILÈS, C. La signification dans la musique de film. Musique en jeu, No. 19, 1975. p. 69-85 ; original ing. , Versus,

N° 13, 1976. p. 49-61.BOILÈS, C. A Paradigmatic Test of Acculturation. In Falck-Rice (ed.). Cross-Cultural Perspectives on Music.

Toronto : University of Toronto Press, 1982. p. 53-78.BOUDON, R. À quoi sert la notion de structure ?. Paris : Gallimard, 1968.BOULEZ, P. L’esthétique et les fétiches. In C. Samuel (ed.). Panorama de l’art musical contemporain. Paris :

Gallimard, 1961. p. 401-415 ; repris in Points de repère I – Imaginer (Nattiez-Galaise ed.). Paris : ChristianBourgois éditeur, 1990. p. 491-505.

BRANDILY, M. Un chant du Tibesti (Tchad). Journal de la Société des Africanistes, vol. LXVI, No. 1-2, 1976. p.127-192.

BREDICEANU, M. Sur les transformations topologiques et les mécanismes génératifs en musique. Semiotica,vol. XV, N° 1, 1975. p. 58-70.

BRIGHT, W. Language and Music : Areas for Cooperation, Ethnomusicology, vol. VII, N° 1, 1963.p. 26-32 ; trad.fr., Points de contact entre langage et musique, Musique en jeu, N° 5, 1971. p. 67-74.

BUKOFZER, M. Music in the Baroque Era. New York: Norton, 1947.CAMILLERI, L. A Grammar of the Melodies of Schubert’s Lieder, in Baroni-Callegari (ed.), 1984. p. 229-236.CAZIMIR, B. Sémiologie musicale et linguistique mathématique. Semiotica, vol. XV, N°1, 1975. p. 48-57.CHANDOLA, A. Some System of Musical Scales and Linguistic Principles. Semiotica, vol. II, N° 2, 1970. p. 135-

150.CHENOWETH, V. Song Structure of a New Guinea Highlands Tribe. Ethnomusicology, vol. XII, N° 3, 1966. p. 285-

297.CHENOWETH, V. Melodic Perception and Analysis. Papua New Guinea: Summer Institute of Linguistics, 1972.CHENOWETH, V. The Usarufas and their Music. Dallas: Summer Institute of Linguistics, Museum of Anthropology,

1979.CHENOWETH, V., BEE, D. Comparative-Generative Models of a New Guinea Melodic Structure. American

Anthropologist, vol. LXXIII, N° 3, 1971. p. 773-782.CHIARUCCI, H. Essai d’analyse structurale d’œuvres musicales, Musique en jeu, N° 12, 1973. p. 11-43.CHOMSKY, N. Syntactic Structures. The Hague: Mouton, 1957.CHOMSKY, N. Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge: MIT Press, 1965.CHOMSKY, N., MILLER, J.A. Introduction to the Formal Analysis of Natural Languages. Handbook of Mathematical

Page 41: (Per Musi - UFMG) 9

41

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

Psychology, vol. II. New York: Wiley, 1965.COGAN, R. New Images of Musical Sound. Cambridge: Harvard University Press, 1984.COOPER, R. Propositions pour un modèle transformationnel de description musicale. Musique en jeu, N° 10,

1973. p. 70-88.COOPER, R. Abstract Structure and the Indian Raga System. Ethnomusicology, vol. XXI, N° 1, 1977. p. 1-32.DEHOUX, V. Chants à penser Gbaya (Centrafrique). Paris : Éditions SELAF, 1986.DELIÈGE, C. La musicologie devant le structuralisme. L’Arc, N° 26, 1965. p. 45-52.DELIÈGE C. Webern : op. 10, No. 4, un thème d’analyse et de réflexion. Revue de musicologie, vol. XX, N° 1-4,

1975a. p. 21-42.DELIÈGE, C. Théorie et pratique de l’analyse musicale, in Stefani (ed.) 1975. p. 151-171.DELIEGE, C. Les fondements de la musique tonale. Paris : Lattès, 1984.DELIÈGE, I. Grouping conditions in listening to music : an approach to Lerdahl and Jackendoff’s grouping preference

rules. Music Perception, vol. IV, N° 4, 1987. p. 325-360.DESROCHES, M. Validation empirique de la méthode sémiologique en musique : le cas des indicatifs de tambour

dans les cérémonies indiennes en Martinique. Yearbook of the International Folk Music Council, vol. XII, 1980.p. 67-76.

DESROCHES, M. Semiotic Analysis and the Music of Tamil Religious Ceremonies in Martinique. In Nattiez-Guertin-Desroches, Three Musical Analyses. Toronto: Semiotic Circle: Monographs, Working Papers and Prepublications,1982/4. p. 59-70.

DESROCHES, M. Tambour des Dieux. Musique et sacrifice d’origine tamoule en Martinique. Montréal : L’Harmattan,1996.

DOSSE, F. Histoire du structuralisme. I – Le champ du signe, 1945-1966 ; II- Le chant du cygne, 1967 à nos jours.Paris : Éditions la Découverte, 1991-2. 2 vol.

DUFRENNE, M. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Paris: Presses Universitaires de France, 1953.DUFRENNE, M. L’art est-il langage ?. Revue d’esthétique, vol. XIX, N° 1, janv.-mars 1966. p. 1-42 ; repris dans

Esthétique et philosophie. Paris : Klincksieck, 1967. p. 74-122.DUFRENNE, M. L’art est-il langage ? (Syntaxe et sémantique dans l’art). Rivista di estetica, vol. XIII, N° 2, 1968.

p. 171-177.DUNSBY, J. A Hitch Hicker’s Guide to Semiotic Music Analysis, Music Analysis, vol. I, N° 3, 1982. p. 235-242.DUNSBY, J., WHITTALL, A. Music Analysis in Theory and Practice. Londres: Faber, 1988.EINSTEIN, A. Music in the Romantic Era. New York: Norton, 1947.ELLIS, A.J. On the Musical Scales of Various Nations. Journal of the Society of the Arts, vol. XXXIII, 1885. p. 485-

527.EVERIST, M. Introduction to N. Ruwet, « Methods of Analysis in Musicology » [trad. ingl. de Ruwet 1966]. Music

Analysis, vol. VI, N° 1-2, 1987. p. 3-9.FELD, S. Linguistics and Ethnomusicology. Ethnomusicology, vol. XVIII, N° 2 , 1974. p. 197-218.FORTE, A. Schenker’s Conception of Musical Structure. Journal of Music Theory, vol. III, N. 1, 1959. p. 1-30.FUBINI, E. Musica e linguaggio nell’estetica contemporanea. Torino [Turin]: Einaudi, 1973.GIOMI, F., LIGABUE, M. Software di generazione e studio di musica jazz, Firenze: CNUCE/CNR (Rapporto interno

C88-06), 1988.GIOMI, F., LIGABUE, M. Evangelisti’s Composition Incontri di Fasce Sonore at WDR : Aesthesic-Cognitive Analysis

in Theory and practice, Journal of New Music Research, vol. XXVII, N° 1-2, “Analysis of Electroacoustic Music”.I. Cammilleri – D. Smalley (ed.), 1988. p. 120-145.

GOLDMAN, J. Analyzing Pierre Boulez. Notes on Anthèmes : « Creating a Labyrinth out of Another Labyrinth »,mémoire de maîtrise. Montreal: Université de Montréal ; accès en ligne : Understanding Pierre Boulez’s Anthèmes.« Creating a Labyrinth Out of Another Labyrinth »,1988. http://www.andante.com/reference/academy/thesis/anthemsthesis.pdf.

GOLDMAN, R. F. Harmony in Western Music. New York: Norton, 1965.GROSS, M. Grammaire transformationnelle du français : syntaxe du verbe, Paris : Larousse,1968.GROSS, M. Grammaire transformationnelle du français : syntaxe du nom. Paris : Larousse, 1977.GROSS, M. On the Failure of Generative Grammar. Language, vol. LV, N° 4, déc. 1979. p. 859-885.GUERTIN, M. Sémiologie et interprétation ; quelques aspects d’ « Ile de feu 2 » de Messiaen. Montréal : Groupe

de Recherches en Sémiologie Musicale, Université de Montréal, Publication interne, 5, 1974.GUERTIN, M. Différence et similitude dans les Préludes pour piano de Debussy, Revue de musique des universités

Page 42: (Per Musi - UFMG) 9

42

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

canadiennes, N° 2, 1981. p. 56-83.GUERTIN, M. De la lecture à l’audition d’un texte musical. Une étude des thèmes dans le livre I des Préludes

pour piano de Debussy, préface de J.-J. Nattiez. Montréal : Les Presses de l’Université de Montréal, 1990.HAGÈGE, C. La structure des langues. Paris : Presses Universitaires de France, 1982.HANSLICK, E. Vom Musikalisch-Schönen. Leipzig : Rudoph Weigel, 1864; trad. fr., Du beau dans la musique,

préface de J.-J. Nattiez. Paris, Christian Bourgois, 1986.HARRIS, Z. Structural Linguistics. Chicago-Londres: The University of Chicago Press, 1951.HARWEG , R. Sprache und Musik, Poetica, vol. I, 1967. p. 390-414.HARWEG, R. Language and Music : an Immanent and Sign Theoretic Approach. Foundations of Language, vol.

IV, 1968. p. 270-281 ; trad. fr., Langage et musique : une approche immanente et sémiotique. Musique en jeu,N° 5, 1971. p. 19-30.

HERNDON, M. Analysis : Herding of Sacred Cows ?. Ethnomusicology, vol. XVIII, N° 2, 1974. p. 219-262.HERNDON, M. Le modèle transformationnel en linguistique : ses implications pour l’étude de la musique. Semiotica,

vol. XV, N° 1, 1975. p. 71-82.HORNBOSTEL, E.M. Hornbostel Opera Omnia. vol. I The Hague: Nijhoff, 1975.HUGHES, D.W. Grammars of Non Western Musics : a Selective Survey, in Howell, P., West, R., Cross, I. (ed.),

Representing Musical Structure. Londres: Academic Press, 1991. p. 327-362.IMBERTY, M. Epistemic subject, historical subject, psychological subject : Regarding Lerdahl and Jackendoff’s

Generative Theory of Tonal Music. A Response to J.-J. Nattiez, in Deliège, I., Sloboda, J. (ed.). Perception andCognition of Music. Hove: Psychology Press, 1997. p. 429-432.

JAKOBSON, R. Musikwissenschaft und Linguistik, Prager Presse, 7 décembre 1932 ; reed. in Selected Writings.The Hague, Mouton, 1971, p. 551-553 ; trad. fr., Musicologie et linguistique. Musique en jeu, N° 5. p. 57-60.

JAKOBSON, R. Language in Relation to Other Communication Systems, in Linguaggi nella società e nella tecnica.Milano : Edizioni di Communità, 1970. p. 3-16 ; trad. fr. in Essais de lingusitique générale II. Paris : Minuit,1973. p. 91-103.

JOHNSON LAIRD, P.N. Jazz Improvisation: a Theory of Computational Level, in Howell, P., West, R., Cross, I.(ed.). Representing Musical Structure. Londres:Academic Press, 1991. p. 291-326.

KASSLER, M. Proving Musical Theorems I : the Middleground of Heinrich Schenker’s Theory of Tonality, TechnicalReport No. 103. Sydney: Department of Computer Science, Sydney University, 1975.

KASSLER, M. Explication of the Middleground of Schenker Theory of Tonality. Miscellanea Musicologica, vol. IX,1977. p. 72-81.

KEILER, A. The Syntax of Prolongation, part I. In: Theory Only, vol. III, N° 5, 1977. p. 3-27.KEILER, A. Bernstein’s The Unanswered Question and the Problem of Musical Competence. The Musical Quarterly,

vol. LXIV, N° 2, 1978. p. 195-222.KEILER, A. Two Views of Musical Semiotics. In Steiner (ed.),1981. p. 138-168.KERMAN, J. Musicology. Londres: Fontana Press,1985.KIPPEN, J. An ethnomusicological approach to the analysis of musical cognition. Music Perception, vol. V, N° 2.,

1987. p. 173-196.KIPPEN, J., BEL, B. Modeling music with grammars. Formal Language Representation in the Bol Processor. In

Mardesen, A., Pople, A., (ed.). Computer Representations and Models in Music. Londres: Academic Press,1992. p. 207-238.

KUNDERA, M. The Tragedy of Central Europe. The New York Review of Books, vol. XXXI, N° 17, 26 avril 1984. p.33-38.

LABUSSIÈRE, A.: “Die alte Weise”. Une analyse sémiologique du solo de cor anglais du 3e Acte de Tristan etIsolde. Analyse musicale, N° 27, 1992. p. 30-53.

LEENEBERG, E. Biological Foundations of Language. New York: Wiley, 1967.LEES, R. The Grammar of English Nominalizations.The Hague: Mouton, 1960.LERDAHL, F. Composing and Listening : a Reply to Nattiez, in Deliège, I., Sloboda, J. (ed.). Perception and

Cognition of Music. Hove: Psychology Press, 1997. p. 421-428.LERDAHL, F., JACKENDOFF, R. A Generative Theory of Tonal Music. Cambridge: M.I.T. Press, 1983a.LERDAHL, F., JACKENDOFF, R. An Overview of Hierarchical Structure in Music. Music Perception, vol. I, N° 2,

1983 b. p. 229-247.LÉVI-STRAUSS, C. Le cru et le cuit. Paris : Plon, 1964.LEVY, M. On the problem of defining musical units, in Stefani (ed.), 1975. p. 135-149 ; trad. fr., Sur le problème de

Page 43: (Per Musi - UFMG) 9

43

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

la définition des unités musicales, Semiotica, vol. XV, N° 1, 1975. p. 58-70.LIDOV, D. On Musical Phrase. Montréal: Groupe de Recherches en Sémiologie Musicale, Université de Montréal,

Monographies de sémiologie et d’analyse musicales, 1, 1975.LIDOV, D. Nattiez’s Semiotics of Music, Canadian Journal of Research in Semiotics, vol. V, N° 2, 1978. p. 13-54.LIDOV, D., GABURA, J. A Melody Writing Algorithm Using a Formal Language Model, Computer Studies in the

Humanities, vol. IV, N° 3-4, 1973. p. 138-148.LINDBLOM, B., SUNDBERG , J. Towards a Generative Theory of Melody. Swedish Journal of Musicology, vol. LII

, 1970. p. 70-87.LINDBLOM, B., SUNDBERG, J. Music Composed by a Computer Program, STL-QP SR 4, 1972. p. 20-28.LORTAT-JACOB, B. Quelques problèmes généraux d’analyse musicale, Revue de musicologie, vol. LXI, N° 1,

1975. p. 3-34.LORTAT-JACOB, B.(ed.) L’improvisation dans les musiques de tradition orale. Paris : Éditions de la SELAF, 1987.MÂCHE, F.-B. Méthodes linguistiques en musicologie. Musique en jeu, N° 5, 1971. p. 75-91.MÂCHE, F.-B. Musique, mythe, nature, ou les Dauphins d’Arion. Paris : Klincksieck, 1983.MÂCHE, F.-B. Les procédures d’analyse sémiologique. International Review of the Aesthetics and Sociology of

Music, vol. XVII, N° 2, 1986. p. 203-214.MACKAY, J.Aspects of Post-serial Structuralism in Berio’s Sequenza IV and VI. Interface, vol. XVII, N° 4, 1988.p.

223-240.MENEZES, F. Luciano Berio et la phonologie. Une approche jakobsonienne de son œuvre. Frankfurt: Peter Lang,

1993.MERRIAM, A. The Anthropology of Music. Evanston: Northwestern University Press, 1964.MEYER, L. Music, the Arts, and Ideas. Chicago: University of Chicago Press, 1967.MEYER, L. Explaining Music. Berkeley: University of California Press, 1973.MIDDLETON, R. Studying Popular Music. Milton Keynes, Philadelphia: Open University Press, 1990.MOLINO, J. Fait musical et sémiologie de la musique. Musique en jeu, N° 17. 1975. p. 37-62.MOLINO, J. Musique et machine. In : Actes du colloque « Structures musicales et assistance informatique ».

Marseille : Laboratoire « Musique et informatique », 1989. p. 141-154.MONELLE, R. Linguistics and Semiotics in Music. Chur: Harwood Academic Publishers, 1992.MORIN, E. Les structures mélodiques et rythmiques d’une fugue de Bach (Fugue N° VII en mi bémol, 1er livre du

Clavecin bien tempéré), préface de Jean Molino. Montréal : Groupe de Recherches en Sémiologie Musicale,Publication interne, 7, 1979a.

MORIN, E. Essai de stylistique comparée - Les variations deWilliam Byrd et John Tomkins sur «John Come Kissme Now». 2 vol. Montréal : Presses de l’Université de Montréal, 1979b.

MOUNIN, G. Clefs pour la linguistique. Paris : Seghers, 1968.NATTIEZ, J.-J.(ed.) « Sémiologie de la musique ». Musique en jeu, N° 5, 1971.NATTIEZ, J.-J.(ed.) « Analyse, méthodologie, sémiologie ». Musique en jeu, N° 10, 1973a.NATTIEZ. J.-J.(ed.) « Autour de Lévi-Strauss ». Musique en jeu, N° 12,1973b.NATTIEZ, J.-J.(ed.) « Per una semiotica della musica ». Versus, vol. V, N° 1,1973c.NATTIEZ, J.-J.(ed.) « De la sémiologie à la sémantique musicales ». Musique en jeu, N° 17, 1975a.NATTIEZ, J.-J.(ed.) « Unités et transformations musicales ». Semiotica, vol. XV, N° 1, 1975b.NATTIEZ, J.-J. La linguistique, voie nouvelle pour l’analyse musicale ?. Cahiers canadiens de musique, N° 4,

1972. p. 101-115.NATTIEZ, J.-J. A comparação das análises sob o ponto de vista semiológico (a propósito do tema da Sinfonia em

Sol menor, K.550 de Mozart). Per Musi. Belo Horizonte, v.8, jul/dez, 2003, p.5-40.NATTIEZ, J.-J. De l’analyse taxinomique à la caractérisation stylistique (Claude Debussy : Syrinx). Montréal :

Groupe de Recherches en Sémiologie Musicale, Université de Montréal, Publication interne, 2, 1973a. ; trad.angl. [version révisée] : Actes du premier congrès international de sémiotique musicale. Pesaro: Centro diIniziativaCulturale, 1975. p. 83-110 ; trad. italienne [version révisée] : Syrinx di Debussy : un’analisi paradigmatica,in Marconi, L., Stefani, G., (ed.), Il senso in musica, Antologia di Semiotica musicale. Bologna : Editrice CLUEB,1987. p. 93-137.

NATTIEZ, J.-J. Trois modèles pour l’analyse musicale. Musique en jeu, N° 10, 1973b. p. 3-11.NATTIEZ, J.-J. Fondements d’une sémiologie de la musique. Paris : Union Générale d’Éditions, 1975a.NATTIEZ, J.-J. «Densité 21.5» de Varèse : essai d’analyse sémiologique. Montréal : Monographies de sémiologie

et d’analyses musicales, 2, Faculté de musique, Université de Montréal, 1975b ; trad. ing.[versão revista] :

Page 44: (Per Musi - UFMG) 9

44

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

Music Analysis, vol. I, N° 3, oct. 1982. p. 243-340.NATTIEZ, J.-J. Some Aspects of the Study of Inuit Vocal Games. Ethnomusicology, vol. XXVII, No. 3, 1983. p.

457-475 ; original fr. [version révisée] : Sémiologie des jeux vocaux Inuit. Semiotica, vol. LXVI, N° l-3, l987. p.259-278 ; tradução portuguesa : Art, Revista da Escola de Música da UFBA [Brasil], No 17. Salvador : UFBA,août 1990. pp. 5-31.

NATTIEZ, J.-J. Musicologie générale et sémiologie. Paris: Christian Bourgois éditeur, 1987 ; trad. ing. [versãorevista] : Music and Discourse. Toward a Semiology of Music. Princeton: Princeton University Press, 1990.

NATTIEZ, J.-J. Réflexions sur le développement de la sémiologie musicale. In : De la sémiologie à la musique.Les cahiers du département d’études littéraires, N° 10, chap. X. Montréal: Université du Québec à Montréal(UQAM), 1988.

NATTIEZ, J.-J. Arom, ou le sémiologue sans le savoir. Analyse musicale, N° 23., 1990. p. 77-82.NATTIEZ, J.-J. Existe-t-il des relations entre les diverses méthodes d’analyse?. In Dalmonte, R., Baroni, M. (ed.).

Secondo Convegno di Analisi Musicale. Trento : Università degli Studi di Trento, 1992a. p. 537-565.NATTIEZ, J.-J. Nicolas Ruwet musicologue, in Tasmowski, L. et Zriibi-Hertz, A. (ed.).. De la musique à la linguistique,

Hommages à Nicolas Ruwet. Ghent, Communication and Cognition, 1992b. p. 24-38.NATTIEZ, J.-J. De la sémiologie générale à la sémiologie musicale: l’exemple de la Cathédrale engloutie de

Debussy. Protée, vol. XXV, N° 2, 1997a. p. 7-20.NATTIEZ, J.-J. Quelle est la pertinence de la théorie de Lerdahl-Jackendoff ?. In : Actes de la troisième Conférence

internationale pour la perception et la cognition musicales. Liège: Irène Deliège(ed.), Université de Liège, 23-27 juillet 1994. pp. 254-257; trad. anglaise : in Deliège, I. et Sloboda, J. (ed.), Perception and Cognition ofMusic. Hove : Psychology Press, 1997b. p. 413-9.

NATTIEZ, J.-J., 1998 : Le solo de cor anglais de Tristan und Isolde, essai d’analyse sémiologique tripartite. MusicaeScientiae, numéro spécial, 1998. p. 43-61.

NATTIEZ, J.-J. Musica e significato. In : Nattiez, J.-J. (ed.), Enciclopedia della Musica, vol. II, “Il sapere musicale”.Torino [Turin] : Einaudi, 2002. p. 206-238 ; original français : La signification comme paramètre musical. In :Nattiez, J.-J. (ed.), Musiques. Une Encyclopédie pour le XXIe siècle, vol. II, « Les savoirs musicaux ». Paris :Actes Sud / Cité de la musique, 2004, p. 256-289.

NATTIEZ, J.-J. Structure, structuralisme et création musicale au XXème siècle. In : Gianmari Borio (ed), L’orizzontefilosofico del comporre nel ventesimo secolo / The Philosophical Horizon of Composition in the TwentiethCemtury. Urbino : Il Mulino, Venise, Fondazione Ugo e Olga Levi, 2003. p. 51-68.

NATTIEZ, J.-J., HIRBOUR-PAQUETTE, L. Analyse musicale et sémiologie : à propos du Prélude de Pelléas.Musique en Jeu, N° 10, 1973. p. 42-69.

NAUD, G. Aperçus d’une analyse sémiologique de Nomos Alpha. Musique en Jeu, N° 17, 1975. p. 63-72.NAUD, G. Le problème des transformations dans l’analyse musicale. Semiotica, Vol. XV, N°1, 1975b. p. 28-32.NETTL, B. Some Linguistic Approaches to Musical Analysis. Journal of the International Folk Music Council, vol. X,

1958. p. 37-41 ; trad. Française : De quelques méthodes linguistiques appliquées à l’analyse musicale. Musiqueen jeu, N° 5. p. 61-66.

NOSKE, F. La segmentazione di un tema di Mozart. Rivista Italiana di Musicologia, vol. XII, N° 1, 1977. p. 130-135.

OBRA COLETIVA (DIVERSOS AUTORES). Computer Music Journal, Vol. IX, N° 2, 1980.OBRA COLETIVA (DIVERSOS AUTORES). Analyse et expérimentation. En hommage à Simha Arom et à son

équipe. Analyse musicale, N° 23, avril 1991. p. 21-49.OSMOND-SMITH, D., 1975 : Iconic Relations with Formal Transformations. In : Stefani (ed.), 1975. p. 45-55 ; trad.

fr. : L’iconisme formel : pour une typologie des transformations musicales. Semiotica, vol. XV, N° 1. p. 33-47.PARAIN, B. Recherches sur la nature et les fonctions du langage. Paris : Gallimard, 1943.PEIKKILÄ, E. Ideal patterns in the Finnish juoksuvalssi : a paradigmatic segment analysis. Semiotica, vol. LXVI,

N° 1-3, 1987. p. 299-314.PELINSKI, R. Pratique émique de substitutions intervalliques dans le chant personnel des Inuit du Caribou. In : La

musique des Inuit du Caribou. Cinq perspectives méthodologiques (chap. III). Montréal : Les Presses del’Université de Montréal, 1981a.

PELINSKI, R. Esquisse d’une grammaire des chants personnels des Inuit du Caribou. In : La musique des Inuitdu Caribou. Cinq perspectives méthodologiques (chap. V). Montréal : Les Presses de l’Université de Montréal,1981b; trad. ing.: in Baroni, M., Callegari, L. (ed.), 1984. p. 273-286.

PIKE, K.L. Language in Relation to a Unified Theory of the Structure of Human Behavior. Part I, Preliminary

Page 45: (Per Musi - UFMG) 9

45

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

Edition. Glendale: Summer Institute of Linguistics, 1954; édition complète: La Haye: Mouton, 1967.PERLMAN, A., GREENBLATT, D.Miles Davies Meets Noam Chomsky : Some Observations on Jazz Improvisation

and Language Structure, 1981. In: Steiner (ed.), 1987. p. 169-183.POWERS, H. Language Models and Musical Analysis. Ethnomusicology, vol. XXIV, N° 1, 1980. p. 1-60.RICOEUR, P. Le conflit des interprétations. Paris : éditions du Seuil, 1969.ROSEN. C. The Classical Style. New York: Norton, 1971.ROTHGEB, J. Harmonizing the Unfigured Bass : a Computational Study, thèse de doctorat. Yale: Yale University,

1968.RUWET, N. Contradictions du langage sériel. Revue belge de musicologie, vol. XIII, 1959. p. 283-97 ; reed. in

Ruwet, 1972. p. 23-40.RUWET, N. Fonction de la parole dans la musique vocale. Revue belge de musicologie, vol. XV,1961. p. 8-28 ;

reed. in Ruwet,1972, p. 41-69.RUWET, N. Note sur les duplications dans l’œuvre de Claude Debussy. Revue belge de musicologie, vol. XVI,1962.

p. 57-70; reed. in Ruwet, 1972. p. 70-99.RUWET, N. Linguistique et sciences de l’homme. Esprit, No. 322, 1963. p. 564-578.RUWET, N. Méthodes d’analyse en musicologie. Revue belge de musicologie, vol. XX, 1966. p. 65-90 ; reed. in

Ruwet 1972. p. 100-134.RUWET, N. Quelques remarques sur le rôle de la répétition dans la syntaxe musicale. In : To Honor Roman

Jakobson. La Haye : Mouton, 1967a. p.1693-1703; reed. in Ruwet 1972. p. 135-148.RUWET, N. Musicologie et linguistique. Revue internationale des sciences sociales, vol. XIX, N° 1,1967 b. p. 85-

93.RUWET, N. Langage, musique, poésie. Paris : éditions du Seuil, 1972.RUWET, N. Théorie et méthodes dans les études musicales. Musique en jeu, N° 17, 1975. p. 11-36.SADAI, Y. L’application du modèle syntagmatique-paradigmatique à l’analyse des fonctions harmoniques. Analyse

musicale, N° 2, 1986. p. 35-43.SADIE, S. (ed.). The New Grove Dictionary of Music and Musicians. 20 vol. Londres: Macmillan Publishers, 1980.SALZER, F. Structural Hearing : Tonal Coherence in Music. 2 vol. New York: Dove, 1952.SAPIR, J.D. Diola-Fogny Funeral Songs and the Native Critic. African Language Review, vol. VIII, 1969. p. 176-

191.SAUSSURE, F. de. Cours de linguistique générale. Paris-Lausanne : Payot, 1916 ; trad. italienne et édition critique

de Tullio de Mauro, Corso di Linguistica Generale. Bari: Laterza, 1967 ; versão francesa : Paris : Payot, 1972.SCHAEFFER, P. Traité des objets musicaux. Paris : éditions du Seuil, 1966.SCHNEIDER, R.. Semiotik der Musik : Darstellung und Kritik. Munich: Wilhelm Fink Verlag, 1980.SCHOENBERG, A. Models for Beginners in Composition. New York: Schirmer,1942.SCHULTE-TENCKHOFF, I. L’ethnomusicologie : srructuralisme ou culturalisme ? Entretien avec Jean-Jacques

Nattiez. Cahiers de musique traditionnelle, vol. XII, 1999. p. 153-172.SLOBODA, J. The Musical Mind. The Cognitive Psychology of Music. Oxford: Oxford University Press, 1985.SLAWSON. W. Sound Colour. Los Angeles: University of California Press, 1985.SMOLIAR, S.W. A Computer Aid for Schenkerian Analysis. Computer Music Journal, vol. IV, N° 2, 1980. p. 41-59.SPRINGER, G. Language and Music : Parallel and Divergencies. For Roman Jakobson. La Haye, Mouton, 1956.

p. 604-613; trad. fr.: Le langage et la musique : parallélismes et divergences. Musique en jeu, N° 5, 1971. p. 31-44.

STEEDMAN, M.J. A Generative Grammar for Jazz Chord Sequences, Music Perception, vol. II, N° 1,1984. p. 53-78.

STEINER, W. (ed.) The sign in Music and Literature, Austin, University of Texas Press, 1981.STEFANI, G., (ed.) Proceedings of the 1st International Congress on Semiotics of Music, (Beograd 1973) Pesaro :

Centro di Iniziativa Culturale, 1975.STEFANI, G. Introduzione alla Semiotica della Musica. Palermo: Sellerio, 1976.STEINER, W. (ed) The Sign in Music and Literature. Austin: University of Texas Press, 1981.STRAVINSKY, I. Chroniques de ma vie. 2 vol. Paris : De Noël et Steel, 1935-36 ; nouvelle édition, Paris : Médiations,

1962.SUNDBERG, J., LINDBLOM, B. A Generative Theory of Swedisch Nursey Tunes, 1972, in Stefani (ed.), 1975. p.

111-124.SUNDBERG, J., LINDBLOM, B.Generative Theories in Language and Music Descriptions. Cognition. vol. IV,

Page 46: (Per Musi - UFMG) 9

46

NATTIEZ, Jean-Jacques. Modelos lingüísticos e análise das estruturas musicais. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 05-46

1976. p. 99-122.SYCHRA, A. Lidov písen shlediska semiologického. Slova a Slovesnost, vol. XI, 1948. p. 7-23 ; trad. fr., La chanson

folklorique du point de vue sémiologique. Musique en jeu, N° 10.p. 12.33.TAGG, P., CLARIDA, B. Ten Little Title Tunes. New York, Montréal: The Mass Media Music Scholars’ Press, 2003.TROUBETZKOY, N.S. Grundzüge der Phonologie.vol.VII. Prague : Travaux du Cercle linguistique de Prague,

1939; trad. fr., Principes de phonologie. Paris : Klincksieck, 1970.VACCARO, J.-M. Propositions d’analyse pour une polyphonie vocale du XVIe siècle, Revue de musicologie, vol.

LXI, N° 1, 1975. p. 35-58.VARÈSE, E. Écrits. Paris : Christian Bourgois éditeur, 1983.WENK, A.B. Parsing Debussy : Proposal for a Grammar of his Melodic Practice, Musikometrika, vol. I, « Quantitative

Linguistics », 1988. p. 237-256.WINOGRAD, T. Linguistics and the Computer Analysis of Tonal Harmony, Journal of Music Theory, vol. XII, N° 1,

1968. p. 2-49.

Jean-Jacques Nattiez é Professor Titular de Musicologia da Faculdade de Música daUniversidade de Montreal. Considerado pioneiro da Semiologia Musical, publicou: Fondementsd'une sémiologie de la musique (UGE, 10-18, 1975), Musicologie générale et sémiologie(Bourgois, 1987), De la sémiologie à la musique (UQAM, 1987), Le combat de Chronos etd’Orphée (Bourgois, 1993). Aplicou seus conceitos semiológicos às relações entre a música ea literatura (Proust musicien, Bourgois, 1984, 1999); às obras de Wagner (Tétralogies, Bourgois,1983; Wagner androgyne, Bourgois, 1990); ao pensamento de Pierre Boulez (do qual editouvários volumes de escritos, dentre os quais a correspondência com John Cage); à música dosInuit (Canadá), dos Aïnous (Japão) e dos Baganda (Uganda), destes publicando diversosdiscos. Autor do romance Opera (Leméac,1997), da auto-biografia intelectual La musique, larecherche et la vie (Leméac, 1999). Foi o primeiro co-editor e co-fundador da Revue de musiquedes universités canadiennes, dirigindo Circuit, de 1990 a 1999. Hoje, é diretor geral de umaEnciclopédia da Música, em 5 volumes, cuja publicação, em italiano, pela EINAUDI, iniciou-seem 2001, e, em 2003, pela ACTE-SUD, em francês. Escreveu cerca de 150 artigos, realizandoséries de conferências em vinte países. Vários de seus livros foram traduzidos para o inglês, oitaliano e o japonês. A edição revista e aumentada do Combate de Cronos e Orfeu será, embreve, publicada no Brasil, por VIA LETTERA.

Page 47: (Per Musi - UFMG) 9

47

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

Livre ornamentação por adição e subtração emduas danças de J. S. Bach

Fausto Borém (UFMG)[email protected]

www.musica.ufmg.br/~fborem

Resumo: Pesquisa aplicada sobre livre ornamentação, por adição e por subtração de notas, na Sarabande eGigue da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach, transcritas para o contrabaixo. Inclui uma contextualizaçãosobre as práticas de performance históricas, a liberdade de interpretação do repertório nos diversos períodos,dados recentes sobre a performance das seis Suites para Violoncelo de Bach no contrabaixo, concluindo com aproposição de diversos exemplos de ornamentação.Palavras-chave: Bach, práticas de performance, ornamentação livre, transcrição, contrabaixo

Free ornamentation by addition and subtraction intwo dances by J. S. Bach

Abstract: Applied research on free ornamentation by addition and subtraction of notes in Bach´s Gigue andSarabande from the Suite for Violoncello # 1, transcribed for the double bass. It also includes a historical performingpractice context, the freedom of interpretation in the various periods, recent information on the performance ofthe six Suites for Violoncello by Bach on the double bass, and several examples of ornamentation.Keywords: Bach, performing practice, free ornamentation, transcription, double bass

"Ornamentação barroca é mais que decoração. É uma necessidade. . . O ato de improvisarvariações ou melodias por meio da livre ornamentação coloca o performer em uma relaçãopessoal, que equivaleria a uma identificação com o compositor. . . até certo ponto, [a ornamentaçãoé uma] condição necessária para uma boa interpretação. . ." (DONINGTON, 1982, p.91-92)

1. Contexto históricoAs pesquisas em práticas de performance, termo originado do alemão Aufführungspraxis (SADIE,1988, p.569), tornaram-se fundamentais para maestros, instrumentistas e cantores interessadosem fundamentar, mais em documentação e menos nas tradições orais, suas performances dosdiferentes estilos. O estudo de tratados, tutoriais, métodos de ensino de instrumentos e canto, textoscríticos, materiais iconográficos e, mesmo, a restauração e reconstrução de instrumentos e acessóriosde performance antigos, levaram a uma revolução na maneira de tocar e de se ouvir a dita música"autêntica". Hoje, pode-se falar em um amplo mercado fonográfico interessado em gravações"historicamente informadas", especialmente dos repertórios renascentista, barroco e clássico: "Muitosdos campeões de vendagem agora são gravações de Bach, Handel, Haydn e Mozart nas quaisinstrumentos ‘de período’ e técnicas de ‘período’ são utilizados" (HURAY, 1990, p.xv).

A partir da pesquisa pioneira de Arnold Dolmetsch (1858-1940), iniciada ao final do século XIX1

(e levada adiante por seu filho Carl e a Dolmetsch Foundation), as pesquisas em práticas de

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música - v. 9, 129 p, jan - jun, 2004.

1 O livro The interpretation of the music of the XVII and XVIII centuries, publicado em 1915 e revisado em 1944,contém o resultado de mais de 50 anos de pesquisa de Arnold Dolmetsch sobre performance, construção deinstrumentos e teoria em música antiga.

Recebido em: 13/10/2003 - Aprovado em: 22/03/2004

Page 48: (Per Musi - UFMG) 9

48

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

performance históricas levaram a uma direção diametralmente oposta ao gosto romântico,epitomizado, na interpretação do repertório de Bach, pela cravista polonesa Wanda Landowska(1897-1959) na primeira metade do século XX (DONINGTON, 1989). Nessa trajetória, observou-se inicialmente a tendência de muitos intérpretes e críticos "autênticos" adotarem posiçõesdoutrinárias, afastando-se da espontaneidade e expressividade que essa nova ordem pareciaexcluir. Mas, ao final do século XX, as abordagens "históricas" pareceram caminhar para umponto de equilíbrio. HURAY (1990, p.xv) chama a atenção para o perigo dos dogmas de estiloe interpretação "autênticos" terem substituído os dogmas anacrônicos da tradição do romantismotardio, mas observa que "esses problemas são percebidos cada vez mais por profissionaisinformados e pelo público musicalmente informado". DONINGTON (1982, p.1) também observaque

"Os exageros românticos tenderam a ser ultra-compensados por compreensões rasas eausteras que também não estavam próximas dos originais e que se tornaram consideravelmentemais inibidoras do nosso prazer musical. Nosso objetivo, hoje, é uma autenticidade maisequilibrada."

Pesquisas no campo das práticas de performance históricas têm estimulado a prática detranscrição, procedimento que tem acompanhado os estilos musicais de todos os períodos ese mostrado fundamental não só para instrumentistas, mas também para os compositores,arranjadores, musicólogos e educadores musicais (BORÉM, 1998). CRUTCHFIELD (1988,p.19-26) observa que a abordagem doutrinária e conservadora das práticas de performancetem perdido terreno para modos mais flexíveis de realização musical. Risco, incerteza ediversidade fazem parte da música que se pretende mais informada (informed performances).Tome, por exemplo, a liberdade improvisatória e de instrumentação com que Chistophe COINe Chistopher HOGWOOD (1989) abordaram as seis Sonatas para violoncelo e cravo de AntonioVivaldi. Mesmo a Baltimore Symphony, tida como conservadora e tocando com arcos einstrumentos modernos, tem experimentado arcadas e articulações clássicas historicamentefundamentadas (BORÉM, 1992, p.54). Tais performances chamam a atenção para o fato deque uma reprodução das condições originais não é condição si ne qua non para que músicoscontemporâneos experimentem realizações diferentes dos modelos remanescentes da estéticaromântica que predominou na maior parte do século XX.

A liberdade de interpretar com estilos diferentes – por exemplo, as realizações "Italianas" ou"francesas" - os diferentes movimentos de uma mesma obra ainda é tabu entre os intérpretesde hoje, mesmo entre alguns ditos "historicamente informados". Entretanto, DART (2000, p.116)observa a pertinência dessa prática, especialmente na música de compositores cujo estilomaduro resulta de uma combinação de estilos "nacionais", como Bach. Cita, por exemplo, queem relação às seis Suites para Violoncelo, o estilo da maioria das danças é misturado, masobserva que as correntes são italianas (exceção feita àquelas das Suites n.4 e n.5), as gigasdas Suites n.2 e n.5 e as sarabandas das Suite n.2 e n.4 são francesas.

A grande popularização dessas suites na segunda metade do século XX parece ter trazidoconsigo uma fixidez na leitura dos símbolos musicais contido nas partituras, que chegaram aténós em diversos manuscritos, mas que não representam a liberdade improvisatória com queos intérpretes da época, incluindo o próprio J. S. Bach, tratavam as questões rítmicas e,principalmente, de ornamentação. A livre ornamentação inicia-se bem antes do barroco e não

Page 49: (Per Musi - UFMG) 9

49

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

termina antes do classicismo, como atestam os excertos de 23 tratados escritos entre 1553 e1768, citados por DONINGTON (1982, p.92-99), quem nos lembra que

"Assim como Geminiani ou Tartini ou Leopoldo Mozart, quando tocavam Corelli, não procuravamsoar exatamente como Corelli, ou como J. S. Bach que colocava muito de sua refinada e livreornamentação nas suas performances de Vivaldi. . . esperamos recorrer às nossas afinidadesde temperamento e intuição a fim de produzir uma ornamentação livre que seja, ao mesmotempo, vívida e compatível". (1982, p.92)

À primeira vista, julgando pela densidade de sua escrita e a falta de indiçações explícitas, àexceção do baixo cifrado, parece que Bach deixou pouco ou nenhum espaço para elaboraçõesem sua música, especialmente nas linhas melódicas, por duas razões, aparentemente. Primeiro,uma possível reação de Bach à ignorância das práticas de ornamentação por parte de cantorese instrumentistas de sua música, como relata seu contemporâneo Johann Abraham Birnbaum

2

(citado por DONINGTON, 1982, p.95) em Leipzig, em 1738:

". . . se todos os performeres soubessem introduzi-la [a livre ornamentação] onde funcionassecomo um legítimo ornamento e uma ênfase para a melodia principal. . . mas como a maiorianão sabe, J. S. Bach, ou qualquer outro compositor, ‘tem o direito’ de anotar esssas passagensornamentais. . ."

Segundo, a obliteração de seu pensamento polifônico devido às livres ornamentações sobresua sofisticada escrita contrapontística. Ainda assim, DONINGTON (1982, p.97-98) comentasobre a existência da ". . . estranha arte de improvisação de toda a textura orquestral sobre umbaixo dado", que não deixou muitas pistas até quando, dentro do barroco, foi praticada, masque foi certamente introduzida na Alemanha por Praetorius em 1619

3.

Mas o bem conhecido gosto de Bach pela improvisação e arranjos (BORÉM, 1998, p.18-19) eque motivou Norman CARREL (1967) a escrever o livro Bach, the borrower (algo como "Bach,o que tomava emprestado"), sugere que ele talvez aceitasse uma abordagem menosconservadora e mais livre, embora cuidadosa, na realização de sua música.

O fato de a Suite para Violoncelo N.5 existir em duas versões – a segunda é para alaúde, cujomanuscrito é um autógrafo do próprio Bach - nos permite verificar a flexibilidade com que ocompositor "adicionou ornamentos, notas do baixo e cordas duplas" (MARKEVITCH, 1964,p.iii) ao original. Comparando as duas versões, podemos inclusive inferir modelos do próprioBach, para elaborar livre ornamentações em outros movimentos de outras obras. O Ex.1 mostraalgumas dessas diferenças anotadas pelo compositor nos inícios da Allemande e da Gigue.

2 In: MIZLER, Lorenz Christoph. Neu eröffnete musikalische Bibliothek. 4.vols. Leipzig: April, 1738, I, iv.3 PRAETORIUS, Michael. Syntagma musicum. 3 vols. Wittenberg und Wolfenbüttel, 1614-1620.

Page 50: (Per Musi - UFMG) 9

50

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

Na moderna abordagem das performances historicamente informadas, parece não haver lugarpara versões definitivas ou dogmáticas. A precisão e rigidez na tradução dos diversos parâmetrosda partitura, ainda hoje muito arraigada entre maestros, cantores e instrumentistas, não eracaracterística até pelo menos o final do barroco. Ao contrário, foi resultado de um processogradual e crescente que culminou com o controle máximo dos símbolos gráficos musicaispelos compositores de vanguarda da primeira metade do século XX, especialmente osrepresentantes da Segunda Escola de Viena (Schoenberg, Berg e Webern) e Stravinsky. Oespecialista em música antiga Thurston DART (2000, p.67) comenta com acidez:

"Compositores como Stravinsky e Schoenberg não deixam nenhuma liberdade ao intérprete:toda nuance de dinâmica, andamento, fraseado, ritmo e expressão é prescrita de maneirarígida, sendo o intérprete reduzido à condição abjeta de uma pianola ou de um gramofone".

A falta de indicações na partitura, especialmente de períodos mais antigos, não significa umleque menor de expressão musical. DART (2000, p.13) observa, em Bach, que

"Em toda a extensão do primeiro volume do Cravo bem temperado, por exemplo, há apenasquatro indicações de andamento nos manuscritos originais (três delas no Prelúdio 2 e uma naFuga 24); as ligaduras aparecem apenas nos temas das Fugas 6 e 24 e – com um sentidodiferente – no último compasso da Fuga 10".

Em um pioneiro estudo multi-caso, Patricia McCarty recolheu e comparou as decisõesinterpretativas em diversos trechos do repertório barroco por cinco violistas experts em práticasde performance históricas. Para os problemáticos cinco últimos compassos do Prelúdio da Suite

Ex.1 – Diferenças entre as duas versões da Allemande e Gigue da Suite para Violoncelo n.5, mostrando oprocesso de livre ornamentação de Bach na sua própria obra

Page 51: (Per Musi - UFMG) 9

51

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

para Violoncelo n.2 de Bach, por exemplo, onde há uma seqüência ininterrupta de mínimaspontuadas, as três soluções apresentadas são completamente diferentes, embora todos osintérpretes concordem que, dados a estética, a técnica e o arco do período, não se deve sustentaros acordes com notas longas durante todo o tempo, como ainda é realizado pela maioria dosinstrumentistas que ignoram as práticas históricas. Judson Griffin (Rochester PhilharmonicOrchestra, Aspen Chamber Symphony e Smithson Quartet), tendo como modelos o alaúde francês,as suites para cravo e alguns tratados de violino, observa que ". . .há razões de sobra paraacreditar que essa passagem deve ser arpegiada" (McCARTY, 1997, p.45). Já Michael Kimber(University of Kansas, Kronos Quartet, Atlanta Virtuosi) diz que ". . . desconhece qualquer evidênciade que Bach tenha pretendido um arpejamento aqui, como ele especificou na Chaconne em Rémenor para violino. . .", mas ". . . como sustentar os acordes parece não ser idiomático. . . ", elesugere a realização de uma ornamentação de caráter improvisatório que inclui até cincosemicolcheias em quiálteras (McCARTY, 1997, p.46). Finalmente, David Miller (Princeton University,Aston Magna, Haydn Baryton Trio, Concert Royal, Bach Ensemble, Mozartean Players) afirmaque a solução mais satisfatória é um arpejamento regular dos acordes (sugere seis semicolcheiaspara cada tempo, com cuidado na condução de vozes) por várias razões: concepção semelhanteà das suites para alaúde, dificuldade do arco barroco em sustentar notas longas e adaptação àlinguagem idiomática da viola (McCARTY, 1997, p.46).

A maneira mais comum de manter o interesse na música barroca é recorrer a elementos devariação e surpresa, como alterar articulações e timbre, especialmente na repetição de motivos,frases ou entre seções. Outra maneira, mais veemente, pode ser obtida com alterações na linhamelódica. Normalmente, essas alterações são realizadas pela adição de ornamentos ao textooriginal o que, ao final do período barroco, atingem seu extremo no estilo rococó (ou galante).Embora tivesse contato com este estilo somente ao final de sua vida, e a geração de seus filhosé que tenha levado o estilo ao seu apogeu, J. S. Bach não se manteve alheio ao rococó. Pode-se observar, tanto no trio da Oferenda musical quanto no solo de flauta em "Aus Liebe will meinHeiland stebern" da Paixão segundo São Mateus sua preocupação com "clímax emocionais dalinha melódica. . . fraseado bem mais variado. . . o gosto por ornamentos. . . sentimental e afetadoao extremo" (DART, 2000, p.117-118). Quanto mais lento o andamento, maior o espaço paraincluir ornamentações. Entretanto, deve-se considerar que o exagero pode, não apenas obnubilaro conteúdo original do compositor, mas também obliterar sua realização por ultrapassar os limitesidiomáticos do instrumento. Grupos de notas rápidas, cruzamentos de cordas e saltos devem sercuidadosamente escolhidos e testados para não atrapalhar a fluência natural das linhas melódicas.

Se há uma profusão de gravações das Suites para Violoncelo de Bach no mercado fonográfico,em que se observa uma diversidade de gostos e preferências nas decisões interpretativas, nãose observam, ainda, abordagens que incluam a livre ornamentação, o que é proposto no presenteestudo. Exceto pelos prelúdios, todos os movimentos de todas as seis Suites para Violoncelo sãona forma binária com repetições de cada seção, que compartilham materiais temáticos, formandoo esquema A :ll A´:ll. Por isso, as repetições dão a oportunidade ao performer de variar cadaseção pelo menos uma vez, recomendação que DART (2000, p.68-69) frisa bem:

"Os intérpretes virtuosos do século XIX e de séculos anteriores eram homens de uma formaçãocompletamente diferente. No melhor dos casos, consideravam o texto do próprio compositorcomo um desafio à sua inventividade e a seus recursos, um elemento básico a ser embelezadoaqui e ali com variações, roulades e improvisos. Ferdinand David, por exemplo, era muito

Page 52: (Per Musi - UFMG) 9

52

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

admirado há uns noventa anos atrás pela habilidade com que introduzia repetições variadasna interpretação da música de Mozart e Haydn. . . qualquer intérprete do século XVIII quetocasse, digamos, a primeira parte de uma sarabanda e depois a repetisse nota por nota seriaconsiderado um chato."

Uma outra técnica de elaboração, não muito conhecida mas empregada principalmente portecladistas do período renascentista e barroco, se dá por subtração de notas. Essa técnica seassemelha ao Dekolorieren (ou "desornamentação"), sistematizado mais tarde, em torno de1911-1912 por Arnold Schering e aplicado aos madrigais italianos do século XIV, como o primeiroprocedimento analítico de Gestalt em larga escala (BENT, 1980, p.38). Como o próprio nomesugere, esse procedimento busca "descolorir" as linhas melódicas, resultando em variaçõespor omissão de notas. Geralmente, é utilizado em movimentos mais rápidos ou mais densos,em que a retirada de notas é feita de maneira que o sentido e a fluência melódica, impulsionadapelas ênfases rítmicas, permaneçam.

A Sarabande e a Gigue da Suite para Violoncelo nº1 de J. S. Bach foram selecionadas para esseestudo por permitirem a criação de exemplos de ornamentação por adição e subtração de notas,respectivamente. Foi utilizada a edição para violoncelo de Dimitri MARKEVICH (1964), a qual ébaseada nos três manuscritos mais antigos que sobreviveram – a cópia da segunda esposa de J.S. Bach, Anna Magdalena, a cópia do Kantor

4 J. P. Kellner e a cópia do organista J. J. H. Westphal.

Nesse estudo, as duas danças foram transpostas de Sol maior para Ré maior. Essa transposição,uma quinta justa acima do original, corresponde ao truque de transposição à primeira vista,mais conhecida por tenores, violoncelistas e contrabaixistas, na qual se sobrepõe uma clavede Dó na quarta linha (ou clave de tenor) à clave de Fá e se adiciona um sustenido à armadura.

Essa transposição pode ser particularmente útil porque provê uma prática para a geralmente pobreleitura da clave de tenor e porque ajuda o contrabaixista (ou os outros instrumentistas da família doviolino) a desenvolver a técnica de mão esquerda na região média do instrumento, nas transiçõesentre os limites dos registros grave e agudo (veja o Ex.2, mais à frente). Isto permite ao contrabaixista(ou violoncelista) a se familiarizar com o uso de extensões e do capo tasto abaixo da primeiraoitava, importante nesse caso por facilitarem a realização de acordes como aqueles no início daSarabande e, dependendo da qualidade e tamanho do instrumento, por deixarem soar maisclaramente grupos de notas rápidas e por evitarem mudanças de timbre devido à mudança decordas.

Finalmente, essa transcrição uma quinta justa acima do original permite visualizar a música namesma partitura tanto em Sol Maior (original) quanto em Ré Maior (transcrição), permitindotambém a possibilidade de ser tocada em Sol Maior na mesma altura do violoncelo se for lidano registro uma oitava acima. Essa última prática, com o avanço da técnica do contrabaixo,tem se tornado comum nas performances das suites e a preponderante nas suas gravações.

2. Bach, o contrabaixo (ou violone) e as Suites para ViolonceloO significado do termo violone, ainda controverso entre os musicólogos especializados emmúsica barroca (COHEN, 1967, p.3), pode significar tanto os diversos tipos de violone da

4 Kantor designa o diretor musical na igreja luterana.

Page 53: (Per Musi - UFMG) 9

53

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

família da gamba (SAS, 1999, p.30), quanto o contrabaixo da família do violino (BONTA,1978, p.41), ou mesmo, o violoncelo (PLANYAVSKY, 1998, p.111-124; GÁNDARA, 1999,p.124). De toda maneira, de acordo com DREYFUS (1987, p.137), ". . . o termo violonesempre indica o mais grave dos instrumentos no continuo da música alemã". Aparentemente,J. S. Bach (assim como quase todos os compositores alemães anteriores a Beethoven), nasua instrumentação de cordas friccionadas graves, preferiu o que hoje conhecemos por violone(da família da gamba) em detrimento do contrabaixo (da família do violino). Entretanto, mesmopara o violone, o mestre do barroco alemão não deixou nenhuma obra que lhe desse destaque.Há relatos de que os tocadores de violone ou contrabaixistas que Bach conheceu não tinhamum bom nível enquanto instrumentistas. De fato, a excelência dos tocadores de violoneobservada nas côrtes de Esterház, Grosswardein, Pressburg e Salzburg (WEBSTER, 1976,p.438), parece não ter tido ocorrência em Weimar ou Leipzig. Em uma carta de 1730 à CâmaraMunicipal de Leipzig (SPITTA, 1951, p.249), Bach reclama: ". . . o violone tem sido tocadosempre por estudantes", se referindo à falta de profissionais e ao fato dos cantores do Côrode Thomasschüle desempenharem uma dupla função, tocando amadoristicamente ocontrabaixo. McLURE (p.772-774) fornece vários exemplos em que Bach recorre ao divisi navoz do baixo, simplificando a parte de violoncelo provavelmente devido ao fato doscontrabaixistas não conseguirem dobrar a mesma linha uma oitava abaixo.

O acesso à obra solística de Bach por contrabaixistas modernos tem sido possível graças àstranscrições, especialmente das três Sonatas para Viola da Gamba e Cravo e das seis Suites paraVioloncelo, especialmente essas últimas. Os movimentos das suites de Bach tornaram-se parte dorepertório requerido nas audições para contrabaixo de proeminentes orquestras norte-americanascomo Atlanta Symphony, Boston Symphony, Cincinnati Symphony e Houston Symphony e de grandeparte das competições para solistas desse instrumento (LEE, 2000, p.19).

De todas as obras de Bach, as Suites para Violoncelo representam as obras que receberam omaior número de edições publicadas – mais de 50, apenas para violoncelo, até meados dadécada de 1960 (MARKEVICTH, 1964, p.iii). Tão populares se tornaram as Suites paraVioloncelo de Bach que, hoje, é comum ouví-las transcritas para a viola, o contrabaixo, ocontrabaixo elétrico e, mesmo, o violino. Durante a 1999 International Society of Bassists (IowaCity, EUA), em comemoração dos 250 anos da morte do genial compositor alemão, seiscontrabaixistas – Rick Vizachero (Cincinnati Symphony Orchestra), David Murray (ButlerUniversity, EUA), Owen Lee (Cincinnati Symphony Orchestra), Sandor Ostlund (West TexasA&M), Richard Hartshorne (Apple Hill Chamber Music Festival) e Mark Bernat (OberlinConservatory) - apresentaram as seis suites no contrabaixo, na mesma altura do violoncelo,cujos aspectos técnicos e musicais foram posteriormente analisados e apresentados em umasérie de artigos publicados na Double Bassist (ELLISON, 1999; LEE, 2000; MURRAY, 2000;VIZACHERO, 2000; BERNAT, 2001; HARTSHORNE, 2001; OSTLUND, 2001).

Quanto às referências sonoras dessas obras no contrabaixo, François Rabbath tem incluído aSuite n.1 no seu repertório por quase trinta anos (MOSHÉ-NAÏM, 1986, p.v). Tendo Pablo Casalscomo referência (RABBATH, 1986, p.i), Rabbath também demorou muito a gravá-la e somente ofez em 1986. Sua proposta de tocá-la uma oitava acima, na altura do violoncelo, e os problemastécnicos decorrentes daí, o levou a desenvolver o que chama de "técnica do caranquejo" (crabtechnique). Destacam-se ainda as empreitadas de Mark Bernat, Richard Hartshorne e Gerd Reinke

Page 54: (Per Musi - UFMG) 9

54

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

que gravaram o ciclo completo; Gary Karr, que gravou as três primeiras (ELLISON, 1999, p.14);Edgar Meyer, que gravou a primeira, a segunda e a quinta (WELZ, 2001, p.33).

A gravação de MEYER (2000) parece ser hoje, na minha opinião, a versão para contrabaixoque mais se aproxima das características preconizadas pelas práticas correntes de performancehistórica desse período, como o fraseado relaxado e curto (atento aos motivos e não às longasfrases), a pontuação baseada na retórica ou coreografia das danças barrocas e o vibratoesporádico, utilizado com parcimônia. Meyer frisa o enorme tempo de convivência e esforçonecessário para gravar essas obras-primas (WELZ, 2001, p.33).

BERNAT (2001, p.23-24) afirma que ". . . um dos desafios em interpretar as Suites de Bach éaliviar a tensão psicológica decorrente de ter de seguir tantas notas. . ." e advoga umaperformance espontânea e imaginativa para ". . . superar a monotonia causada por arcadasredundantes. . . [cita que] virtualmente todo o movimento [o Prelúdio da Suite n.6] consiste degrupos repetitivos de colcheias. . ." concluindo que sua abordagem é buscar ". . . mudanças nofraseado com variantes nos padrões do arco".

O fato de a maioria dos instrumentistas de cordas não dispor de instrumentos e arcos barrocos,especialmente os contrabaixistas, não é um empecilho para a experimentação, estudo eperformance da música de Bach segundo a estética das práticas de performance históricas.MURRAY (2000, p.25) comenta:

". . . toco em um instrumento moderno, mas prefiro uma abordagem estilística que seja maistípica do período barroco. . . mas se eu quisesse soar exatamente como um cello barroco,então eu compraria um!. . . talvez recorra a cordas de tripa e a um arco mais apropriado nofuturo. . . alguns dos aspectos do estilo barroco que procuro me ater são andamento, articulação,arcadas e ênfase. . . é fácil tocar a Sarabande [da Suite n.2] tão lentamente que pode setornar romântica em estilo, não barroca. . . [como] um estilo legato próprio da literatura doséculo XIX. . . a anacruse, por exemplo, é muito mais curta na era do barroco do que emperíodo posteriores. . . notas anteriores a grandes saltos são ligeiramente encurtadas. . . éimportante manter claramente o espírito distinto de cada dança: a elegância da Allemande, aalegria da Courante e a intimidade da Sarabande"

Boa parte da idiomaticidade das obras para cordas está relacionada à utilização de cordassoltas, harmônicos naturais e scordatura. VIZACHERO (1999, p.19) fala sobre a liberdade deabordar as suites em tonalidades diferentes do original:

"Discuti com Gary Karr os méritos de se tocar as suites em diferentes tonalidades e/ou utilizandoafinação solo [um tom acima da afinação de orquestra]. Karr argumentou sobre as habilidadesde Bach como improvisador e transcritor de sua própria música, bem como da música deoutros compositores. Se alguém considerar a natureza improvisatória de Bach enquanto músico,será que poderíamos admitir que ele planejou essas suites para serem interpretadas de muitasmaneiras? Talvez a intenção de Bach não fosse ditar cada nuance para os futuros performers[de sua música]"

Diferentemente da maioria das transcrições para contrabaixo – editadas para o registro grave(clave de Fá) ou, uma oitava acima, para o agudo (clave de Sol) - a versão das duas dançasaqui apresentadas situa-se no registro médio do instrumento, o que permite a prática de leiturada clave de Dó na quarta linha (ou clave de tenor). Esta versão também facilita a performancena maioria dos instrumentos disponíveis, uma vez que as versões para a altura real (altura dovioloncelo), seja pelas dificuldades anatômicas de acesso ao registro agudo do contrabaixo,

Page 55: (Per Musi - UFMG) 9

55

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

seja pela maior pressão exigida do conjunto esquerdo braço-mão-dedos sobre as cordas,"deveriam ser tocadas, de preferência, em instrumentos com ombros caídos, com cordas finase próximas ao espelho" (OSTLUND, 2000, p.18).

3. Ornamentação por adição na Sarabande da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. BachAntes de adentrar nos exemplos de livre ornamentação por adição de notas, chamo a atençãopara duas questões abordadas por DONINGTON (1982, p.169-170) sobre a realização deacordes, que ocorrem ao longo da Sarabande (c.1, 2, 4, 9, 10, 13, 14 e 15) e também na Gigue(c.5). Primeiro, por uma questão não apenas estética, mas também técnica, os acordes nosinstrumentos de cordas friccionadas que se pretendem "de período", ". . . não devem serapertados para baixo e segurados forçadamente, mas estrategicamente arpegiados. . .", mesmoquando estiverem com ligaduras, sob o risco de ". . . soarem muito enérgicos para a músicabarroca, incluídas aqui as suites para violino ou violoncelo sem acompanhamento de J. S.Bach". Segundo, a nota inicial do acorde arpejado normalmente cai sobre o tempo forte.

No caso da Sarabande, ao elaborar ornamentos livres, é importante não obscurecer seu típicopadrão rítmico de apoio não no primeiro, mas sim no segundo tempo do compasso ternário(LITTLE, 1991), refletindo a dignidade, típica dessa dança, é enfatizada por semínimaspontuadas ou trinados. Como ponto de partida, pode-se reduzir o contorno geral do fraseado aapenas suas notas estruturais, observando-se a direção melódica, o contexto harmônico dasnotas e os possíveis intervalos a serem preenchidos (Ex.2).

Ex.2 – Redução do contorno melódico do início da Sarabande da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach

É recomendável iniciar com elaborações menos densas e complexas, como a simples adição deduas notas (Ex.3a) e depois, exercitar ornamentos mais floridos, mas que ainda preservem ocaráter da Sarabande. No segundo caso (Ex.3b), pode-se recorrer aos grupos anacrústicos detrês fusas que levam ao segundo tempo do c.1 e ao primeiro tempo do c.2. Numa outra opção (Ex.3c), é proposta uma solução rítmica mais arrojada, com anacruse e síncope em torno do terceirotempo (note que é preservada a ênfase no segundo tempo do compasso, característica dassarabandas). Quanto à articulação do grupo de quatro semicolcheias no início do c.2, o mesmoEx.3 apresenta três opções, sendo que o Ex.3c mostra a articulação do manuscrito de AnnaMagdalena.

Page 56: (Per Musi - UFMG) 9

56

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

Ex.3 – Ornamentação por adição de notas e mudanças de articulação no início da Sarabande daSuite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach

Para aqueles que se sentem intimidados em criar variações como essas no texto original, sugere-se partir de ornamentos tradicionais. Por exemplo, antecipações podem ser aplicadas para decorare enfatizar as notas que fecham as duas frases iniciais de dois compassos cada (Ex.4).

Ex.4 – Ornamentação com antecipações na Sarabande da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach

Grupetos podem decorar o espaço entre o segundo e o terceiro tempos de um mesmo compasso(Ex.5).

Page 57: (Per Musi - UFMG) 9

57

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

Ex.5 – Ornamentação com grupetos na Sarabande da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach

Trinados podem ser aplicados ao final de frases, como na linha descendente do c.5, antes deuma mudança de direção melódica (Ex.6).

Ex.6 - Ornamentação com trinado na Sarabande da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach

Apojaturas podem facilmente ser encaixadas no meio ou no final de frases, como mostra oEx.7.

Ex.7 - Ornamentações com apojaturas na Sarabande da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach

Page 58: (Per Musi - UFMG) 9

58

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

Ex.10 - Ornamentação motívica na Sarabande da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach

Pequenas variações rítmicas podem dar leveza e vivacidade a trechos em que é utilizadaapenas uma figura repetidamente. Observe o tratamento motívico do fragmento (fusa-fusa-semicolcheia ligadas) no Ex.10, o que faz referência ao procedimento composicional de Bachde quase sempre reutilizar materiais temáticos (ritmos, intervalos, articulações etc.) para dar àmúsica coesão e unidade.

Mordentes são muito efetivos em notas longas ao final de seções, podendo vir após umaapojatura, como mostra o Ex.8.

Ex.8 - Ornamentação com mordente na Sarabande da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach

Grupos de notas mais rápidas, no estilo do passagio de caráter improvisatório, são possíveisno preenchimento de melodias com intervalos disjuntos. (Ex.9).

Ex.9 - Ornamentação com passagio na Sarabande da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach

4. Ornamentação por subtração na Gigue da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. BachDevido ao andamento mais rápido das gigas, a ornamentação por subtração foi escolhida paraessa dança. De fato, ao compararmos o original da Gigue com a versão alterada por simplificação,esse tipo de elaboração irá parecer menos ornamentado que o texto original. Daí a sugestão dese tocar primeiro a versão subtraída, para que o original soe "ornamentado" nas repetições.

Como na Sarabande, o passo inicial é observar o contorno das frases e as notas estruturais daharmonia, o que pode ser representado em uma redução melódica (Ex.11), cuja estrutura

Page 59: (Per Musi - UFMG) 9

59

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

Ex.11 - Redução do contorno melódico do início da Gigue da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach

Mas a repetição óbvia de padrões rítmicos pode ser alterada com ligaduras de valor, de maneiraque as síncopes tragam mais surpresa, leveza e uma articulação menos marcada à linhamelódica (Ex.13).

Ex.12 – Simplificação do original da Gigue da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach por meio daretirada de notas repetidas

simplificada servirá de base para a escolha das notas a serem subtraídas e das notas queserão enfatizadas ritmicamente.

Um segundo passo é a identificação de contornos melódicos entre o original e a redução, apartir da retirada de notas repetidas (melódicas ou das tríades de alguns acordes) no original(Ex.12).

Ex.13 – Adição de ligaduras à linha melódica simplificada da Gigue da Suite para Violoncelo n.1 de J. S. Bach

Page 60: (Per Musi - UFMG) 9

60

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

No original, uma engenhosa melodia polifônica (ou falsa polifonia) inicia-se na anacruse doc.21 (Ex.14a). Uma variação dessa passagem pode ser obtida pela simples subtração dasegunda, quarta e quinta notas do c.21, o que pode ser seqüenciado nos c.22-23 (Ex.14b). Separa alguns ouvidos essa dupla repetição pode soar tediosa, há alternativas mais sofisticadascomo a oscilação entre a subdivisão da métrica 6/8 em estruturas ternárias (três tempos desemínimas) e binárias (dois tempos de semínimas pontuadas) (Ex.14c).

Ex.14 – Melodia polifônica na Gigue da Suite para Violoncelo n.1 de Bach (Ex.14a) eornamentação por subtração com seqüência melódica (Ex.14b) e

com alternância entre subdivisão ternária e binária da métrica (Ex.14c)

Após a cadência que traz de volta a tônica no c.28, a frase final (c.29), convida a uma variedade delivres ornamentações. As elaborações nos Ex.15 omitem as semicolcheias do original de Bach.

Ex.15 – Três elaborações por livre subtração de uma mesma frase da Gigue da Suite para Violoncelo n.1 deBach a partir da omissão das semicolcheias do original.

Page 61: (Per Musi - UFMG) 9

61

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

Alternativas que, ao invés de excluir as semicolcheias, as mantém, podem ser experimentadascom a inversão do contorno melódico de motivos/frases ou o deslocamento métrico dessasfiguras rítmicas dentro dos tempos do compasso, o que é ilustrado simultaneamente no Ex.16b.

Ex.16 – Elaboração no original da Gigue da Suite para Violoncelo n.1 de Bach (Ex.16a), com inversão decontorno melódico e deslocamento métrico (Ex.16b)

Finalmente, em uma livre ornamentação por subtração, pode-se optar pela adição de algumasnotas se um grau maior de virtuosismo é desejado (Ex.17).

Ex.17 – Duas elaborações por adição de notas (sendo uma com deslocamento métrico ) da Gigue da Suitepara Violoncelo n.1 de Bach

5 - Considerações finaisAs edições das partituras completas da Sarabande e Gigue da Suite para Violoncelo n.1,apresentadas à frente, refletem uma escolha pessoal de livre ornamentação e, como resultamde um exercício criativo intenso, apresentam mudanças do original em cada compasso, seaproximando muito, por isso, da estética maneirista do rococó. Não se pretende que as mesmassejam as mais apropriadas ou que devam ser utilizadas todas ao mesmo tempo. Por acreditarnuma integração mais criativa entre compositores, sua música e os performeres, concluo essapesquisa aplicada sugerindo que os intérpretes procurem se desvencilhar dos preconceitosainda predominantes que inibem sua curiosidade e a experimentação nas práticas deperformance históricas.

Page 62: (Per Musi - UFMG) 9

62

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

Referências bibliográficas:BACH, J. S. Six suites for solo cello. Ed. e introd. Dimitri Markevitch. 2.ed. Bryn Mawr, Pensylnania: Theodore

Presser Company, 1964.BERNAT, Mark.Survival of the fittest. Double Bassist, v.17, Summer, 2001, p.23-25.BENT, Ian. Analysis. Glossário de William Drabkin. The Norton/Grove Handbooks in Music. New York: W. W.

Norton, 1987.BONTA. S. Terminology of bass violin in seventeenth-century Italy. Journal of the American Musical Instrument

Society. v.4, 1978, p.5-43.BORÉM, Fausto. Improvisatory styles in the music of Bach, International Society of Bassists Journal. Dallas, EUA,

vol.18, n.2, Fall 1992, p.54-62. Repub em português In: Revista da Associação Brasileira de Contrabaixistas.São Paulo, v.1, n.1, maio 1993, p.3-11.

______. Pequena história das transcrições musicais. Polifonia. São Paulo, v.2, 1998, p.17-30.CARREL, Norman. Bach, the borrower. Prefácio de Basil Lam. London: George Allen & Unwin, 1967.COHEN, Irving H. The historical development of the double bass. New York: New York University, 1967 (Tese

de Doutorado em Música).CRUTCHFIELD, Will. Fashion, conviction and performance style in na age of revivals. Authenticity and early

music. Ed. N. Kenyon. Oxford: Oxford University Press, 1988, p.19-26.DART, Thurston. Interpretação da música. Trad. Mariana Czertok. Rev. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins

Fontes, 2000.DREYFUS, Laurence. Bach´s Continuos Group. Cambridge: Harvard Press, 1987.DONINGTON, Robert. Baroque music, style and performance: a handbook. New York: Norton, 1982.______. How much authenticity? Strad. May, 1989.ELLISON, Paul. Bach passion. Double Bassist, v.11, Winter, 1999, p.14-15.GÁNDARA, Xosé Crisanto. El violón ibérico. Revista de musicologia. v.22, n.2. Junio, 1999, p.123-163.HARTSHORNE. Bach on a C string. Double Bassist, v.16, Spring, 2001, p.20-21.HOGWOOD, Christopher. Six sonatas for violoncello and harpsichord. Christophe Coin, violoncelo; Christopher

Hogwood, cravo; Ageet Zweistra, violoncelo; Eugène Ferré, violão barroco; Tom Finucane, alaúde. FloregiumSeries, Decca Records, 1989 (CD 421060-2).

HURAY, Peter le. Authenticity in performance: eighteenth-century case studies. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1990.

LEE, Owen. Spot the difference. Double Bassist, v.14, Autumn, 2000, p.19-21.LITTLE, Meredith, JENNE, Natalie. Dance in the music of J. S. Bach. Music: Scholarship and Performance, ed.

Thomas Binkley. Bloomington: Indiana University Press, 1991.MARKEVITCH, Dimitri. Prefácio. Six suites for solo cello. Ed. Dimitri Markevitch. 2.ed. Bryn Mawr, Pensylnania:

Theodore Presser Company, 1964.McCARTY, Patricia. User friendly baroque ornamentation: five leading baroque performers clarify viola literature.

American String Teachers Association, winter, 1997, v.47, n.1, p.43-52.McLURE, Theron. Bach´s bass. International Society of Bassists Journal, v.8, n.1, 1981, p.772-774.MEYER, Edgar. J. S. Bach: unaccompanied cello suites: n.2 in Dminor, n.1 in G major, n.5 in G minor. Sony, 2000

(CD SK 891183).MORELLI, Michael J. The importance of transcriptions. International Society of Bassists Journal, v.16, n.2, 1990,

p.21-22.MOSHÉ-NAÏM. Ce disque est historique. François Rabbath joue à la contrebasse. Notas de François Rabbath e

Moshé-Naïm. François Rabbath, contrabaixo; Lise Proto, piano; Frank Proto, piano; Florence Bouchet, piano.Emen, 1996 (CD MN17006).

MURRAY, David. Suite talking. Double Bassist, v.13, Summer, 2000, p.23-25.OSTLUND, Sandor. Song of the wayfarer, Double Bassist, v.15, Winter, 2001, p.17-19.PLANYAVSKY, Alfred. The baroque double bass violone. Trad. James Barket. Lanham, Maryland: Scarecrow

Press, 1998.RABBATH, François. François Rabbath joue à la contrebasse. Notas de François Rabbath e Moshé-Naïm. François Rabbath, contrabaixo; Lise Proto, piano; Frank Proto, piano; Florence Bouchet, piano. Emen, 1996 (CD MN17006).SADIE, Stanley. The Norton/Grove concise encyclopedia of music. Ed. Assit. Alison Lathan. New York: W. W.

Norton, 1988.

Page 63: (Per Musi - UFMG) 9

63

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

SAS, Stephen. A history of double bass performance practice: 1500-1900. New York: Juilliard School, 1999 (Tesede Doutorado em Música).

SPITTA, Phillip. Johann Sebastian Bach. New York: Dover, 1951.VIZACHERO, Rick. Choreographing the hands. Double Bassist, v.12, Spring, 2000, p.18-19.WEBSTER, James. Violoncello and double bass in the chamber music of Haydn and his viennese contemporaries:

1750-1780. Journal of the American Musicological Society. v.29, n.3, Fall, 1976, p.413-438.WELZ, Katinka. Shared experience. Double Bassist, v.18, Autumn, 2001, p.29-33.

Fausto Borém é Professor da UFMG, onde criou o Mestrado e a Revista PER MUSI. Coordenao Grupo de Pesquisa "Pérolas" e "Pepinos" da Performance Musical (CNPq, FAPEMIG e FundoFUNDEP), cujos resultados incluem um livro e dezenas de artigos sobre performance, análise,musicologia e educação musical em periódicos nacionais e internacionais. Tem representadoo Brasil desde 1993 nos principais eventos internacionais de contrabaixo, para os quais editou,publicou e estreou diversas transcrições de obras referenciais da música brasileira. Recebeudiversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor.

Page 64: (Per Musi - UFMG) 9

64

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

Page 65: (Per Musi - UFMG) 9

65

BORÉM, Fausto. Livre ornamentação por adição e subtração em duas danças de J. S. Bach. Per Musi. Belo Horizonte, v.9, 2004. p. 47-65

Page 66: (Per Musi - UFMG) 9

66

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66-78.

As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira:um enfoque sobre o emprego da tradição oral nordestina1

Vania Claudia da Gama Camacho (UFPB)[email protected]

Resumo: Elucidação de como os elementos poéticos e musicais da tradição folclórica oral, especificamente dacantoria nordestina, foram transportados para o piano pelo compositor paraibano José Siqueira (1907-1985) nasTrês Cantorias de Cego. Como representante da corrente nacionalista, Siqueira concretiza seu vocabulário eestilo musical através do uso de elementos colhidos do folclore nordestino. Vários aspectos da cantoria nordestinasão representados destacado-se: as melodias folclóricas; os modelos de versos empregados pelos cantadores; aalternância entre voz e instrumento; os instrumentos; as características da voz do cantador.Palavras-chave: José Siqueira, música para piano, cantoria de cego, tradição oral.

The Três Cantorias de Cego (Three Songs of the Blind) for piano by JoséSiqueira: an overview about the use of oral tradition in Northeastern Brazil

Abstract: Elucidation of how the poetic and musical elements of oral native tradition, specifically of Northeasternsinging, were transported to piano by Brazilian composer José Siqueira (1907-1985) in the Três Cantorias deCego (Three Songs of the Blind). As a representative of Brazilian nationalism, Siqueira establishes his vocabularyand musical style through the use of elements of the native tradition. Many aspects of Northeastern singingtradition are represented: the folkloric melodies; the models of verses used by the singers; the alternation betweenvoice and instrumental part; the instruments; the characteristics of vocal emission.Keywords: José Siqueira, music for piano, “cantoria de cego”, oral tradition.

1 - IntroduçãoEste trabalho elucida como José de Lima Siqueira (1907-1985), compositor e regente paraibano,transportou para o piano elementos musicais e poéticos da tradição folclórica oral nordestina,especificamente da cantoria. O foco central do artigo é mostrar quais elementos da tradiçãooral aparecem nas três peças de Siqueira e como ocorreu a adaptação de característicasvocais, instrumentais e da forma poética da cantoria de rua ao piano; ‘meio de expressão’, decerta forma, ‘atípico’ a esta manifestação folclórica. Os procedimentos metodológicosenvolveram: (1) Revisão da bibliografia disponível e pesquisa da terminologia ´cantoria decego´; (2) Análise dos recursos transcritos e discográficos encontrados (cantorias, cantigas decegos, desafios, entre outros) assim como, dos procedimentos utilizados pelos cantadores etocadores; (3) Análise das Três Cantorias de Cego (escalas utilizadas, melodias, ritmos, estruturaformal empregada, aspectos de dinâmica, andamentos, etc.); (4) Comparação entre oselementos musicais pianísticos utilizados e elementos da tradição oral; (5) Nomeação doselementos encontrados a partir dos referenciais Sistema Modal na Música Folclórica do Brasildo próprio José SIQUEIRA (1981) e Fenomenologia de la Etnomusica del Area Latinoamericanade RAMON Y RIVERA (1980).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música - v. 9, 129 p, jan - jun, 2004.

Recebido em 27/10/2003; aprovado em 08/03/2004

1 Este artigo resulta do estudo de mesmo nome realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)sob a orientação da Profª Dra. Any Rachel Carvalho, como requisito parcial para a obtenção do grau de mestreem música (piano).

Page 67: (Per Musi - UFMG) 9

67

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66 - 78.

2 - José SiqueiraDesde cedo, Siqueira vinculou-se ao incentivo e valorização da música brasileira, através dassuas composições e de atividades relacionadas à divulgação da música ao grande público. Foium dos fundadores da Orquestra Sinfônica Brasileira em 1940 e, em 1946, da SociedadeArtística Internacional, entidade que fazia o intercâmbio musical entre o Rio de Janeiro e osgrandes centros mundiais. O Clube do Disco, criado em 1951, teve como função divulgar amúsica brasileira através de um recurso mecânico. Siqueira foi também um dos incentivadoresda criação da Ordem dos Músicos do Brasil, e, no que tange ao ensino, foi professor catedráticoda atual. Federal do Rio de Janeiro; e trabalhou intensivamente pela educação musical dosjovens no Brasil.

Consolidou-se como um importante representante da corrente nacionalista, concretizando seuvocabulário e estilo musical através do uso de elementos colhidos do folclore nordestino. Atravésde suas pesquisas, Siqueira levantou um material rico e profícuo, composto de temas,constâncias melódicas, rítmicas, harmônicas e instrumentais, de onde retirou elementos paraa composição musical. A partir destes materiais, elaborou, durante a década de 50, o SistemaPentatônico Brasileiro e o Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil, também chamado deSistema Trimodal, métodos que expõem os elementos musicais mais freqüentes do folclorenordestino. No Sistema Pentatônico, José Siqueira sistematizou a coleta dos elementosencontrados na música folclórica negra, especialmente dos candomblés baianos. Não apresentaqualquer relação com a arte da cantoria nordestina. O Sistema Trimodal, particularmente,descreve elementos freqüentemente encontrados nas cantigas de cego, desafios, aboios,pregões e acalantos (SIQUEIRA, 1954, p.168).

Siqueira utiliza os sistemas mencionados principalmente nas obras do seu terceiro período,denominado por MARIZ (1994, p.249) de “nordestino essencial”. Neste período, encontramosas Três Cantorias de Cego para piano, que foram compostas em 1949, e descrevem em seutítulo e conteúdo aspectos da cantoria e da arte dos cantadores nordestinos.

3 - Referencial TeóricoUtilizamos O Sistema Modal na Música Folclórica do Brasil (Sistema Trimodal) , do própriocompositor (SIQUEIRA, 1981), como referencial teórico para nomear os aspectos melódicos eharmônicos nas Três Cantorias. De maneira bastante sucinta, o sistema é o resultado de umacoleta de elementos encontrados na música folclórica nordestina que, por sua vez, foramordenados de modo a sistematizar seu uso na peças musicais eruditas. Siqueira encontroutrês escalas modais, denominando-as de reais e três escalas derivadas, sendo que a primeiranota das escalas derivadas dista uma terça menor abaixo do 1º grau das escalas pertencentesao modo real (Ex. 1). O III modo real, para o qual não há correspondente nos modos eclesiásticos,é denominado por Siqueira como Modo Nacional, termo que parece refletir seu carátermarcadamente brasileiro (veja sua transposição para o centro de Lá no Ex.5, mais à frente).

Page 68: (Per Musi - UFMG) 9

68

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66-78.

Ex.1 - Modos nordestinos

Para os elementos musicais ritmo e estrutura encontrados nas Três Cantorias de Cego epertinentes às melodias folclóricas, adotamos a nomenclatura proposta por RAMON Y RIVERA(1980) descrita em Fenomenologia de la Etnomusica del Área Latinoamericana. O autor propõeuma análise para os acontecimentos encontrados na música de transmissão oral latino-americana, determinando termos para enquadrar procedimentos comuns encontrados emespécies e gêneros musicais. Enfatizamos que, ao adotarmos o mesmo termo utilizado naliteratura de tradição oral para a música erudita (piano), objetivamos acima de tudo, equipararfunções correspondentes à música folclórica encontradas nas Três Cantorias de Cego.

Para aspectos do ritmo, tomamos a acepção proposta por RAMON Y RIVERA (1980, p. 29) ondeo ritmo é determinado como uma maneira de acentuação (melódica ou percutida). A localizaçãodo acento determina o ritmo; e havendo variação nesta localização, o ritmo também varia. Oritmo pode ser classificado como uniforme, sincopado, contratempo, alternado, contraposto,múltiplo, e livre. Por exemplo, o ritmo uniforme encontramos na Primeira Cantoria de Cego (Ex.2).A semelhança entre a peça para piano e a tradição oral dos cegos pedintes se dá principalmenteno aspecto ritmo. Citamos para comparação “Peço aqui peço aculá”, cantiga executada pelocego João Carminha em Esperança, Paraíba (Ex. 3), citada por RIBEIRO (1992, p.33).

Page 69: (Per Musi - UFMG) 9

69

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66 - 78.

Ex.2 - Primeira Cantoria de Cego, c. 4-15

Ex.3 - Cantiga de cego cantada pelo cego João Carminha, c. 1-14 (RIBEIRO, 1992, p. 33)

Eu sou cego de esmolaPeço aqui peço aculáQuem me dê uma esmolaJesus Cristo agradará

Agradeço a sua esmolaeu só peço a quem temVirge Mãe, Nossa Senhorarecebi só um vintém

Page 70: (Per Musi - UFMG) 9

70

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66-78.

Já para a estrutura, empregamos o conceito de RAMON Y RIVERA (1980, p. 43), para quem oque caracteriza a forma ou estrutura de uma melodia é sua relação com um modelo rítmico,métrico ou melódico, cujos elementos se repetem (de forma variada ou não) ou se alternam. Anomenclatura usada para as macro e micro estruturas são: motivo, frase e período. Dentreestes itens, a frase merece maiores esclarecimentos. Ela é o resultado de dois enunciados, oprimeiro que inicia o discurso chamado ponto A e o segundo, ponto B, que finaliza conclusivaou suspensivamente a frase. Os pontos A e B são chamados de capital [principal] e caudal[final], respectivamente, sendo geralmente delimitados em um compasso cada. Além disto, asfrases podem ser perfeitas ou imperfeitas, sendo que nas primeiras, o compasso caudal tem amesma medida que o compasso capital; nas frases imperfeitas isto não ocorre, os referidoscompassos possuem valoração diversa. Nesta exposição, não foram mencionados nemexplicados todos os termos adotados por RAMON Y RIVERA (1980). Alguns são explicados nocorpo deste trabalho e, outros não são necessários para esta pesquisa.

4 - Cantoria: tradição oral nordestinaA cantoria é um termo bastante abrangente. De modo geral, define a poesia em verso da tradiçãooral. Como gênero poético musical, porém, apresenta diferenças de acordo com a região em queaparece. No Nordeste, a cantoria adquire contornos mais elaborados do que em outras regiões,pois suas estruturas obedecem padrões métricos de maior complexidade. De acordo com adefinição de Corrêa de Azevedo, citado por BÉHAGUE (1980a, p. 224-225), o nordeste brasileiroé a área da cantoria por excelência, que determina áreas culturais folclóricas baseadas em gênerosmusicais. Há vezes em que o termo “cantoria” é apresentado como sinônimo de desafio(MARCONDES, 1998, p.149). No entanto, o termo é mais abrangente, incluindo outras espéciesalém dos desafios. É bastante coerente a proposta de DIÉGUES JUNIOR (1973, p. 136), o qualadmite o desafio como apenas “um aspecto da cantoria”. A inexistência de um consenso sobre osignificado exato da cantoria não impede, no entanto, a nosso ver, uma delimitação do gênero.Sem pretensões de estabelecer um conceito conclusivo, definimos a cantoria como a poesia emverso da tradição oral nordestina, incluindo tanto a parte narrativa como improvisada (Tab.1). Oprimeiro grupo contém o ato de cantar versejando, ou seja, narração em forma de versos(romances, desafios que utilizam a literatura, entre outros gêneros musicais). O segundo englobaa disputa poética travada entre os cantadores (desafios), ou o verso dito em improviso por umúnico indivíduo, como é o caso das cantigas de pedintes.

Tab.1 - Aspectos da cantoria nordestina

ÁREA Nordeste Sertanejo

GÊNERO Cantoria

SUB-GÊNERO Narrativa Improviso

ESPÉCIE Romance Desafio Xácara Desafio Cantiga (de pedinte)

OBS: os romances e as xácaras são espécies do sub-gênero narrativo; as xácaras são dramáticas, enquantoos romances são épicos

Page 71: (Per Musi - UFMG) 9

71

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66 - 78.

5- Cego cantador - cantoria ou cantiga de cego?Os cegos formam uma classe característica entre os cantadores nordestinos. Acompanhadosda mulher ou de uma criança para guiá-los, tocam e cantam a poesia em verso da tradição oraldesta região. Elba Braga RAMALHO (1999) indica-nos que o termo cantiga de cego é usadonas cantorias feitas pelos cegos, não havendo diferenças cruciais entre uma e outra. As formaspoética, melódica, estrutural e instrumental utilizadas pelos cegos, assemelham-se à empregadapelos cantadores de modo geral. Neste caso, tratamos especificamente dos cantadoresnordestinos. As cantigas de cegos, por outro lado, distinguem-se entre si principalmente pelafinalidade que cada cego cantador imprime ao canto. Podemos identificar estas distintasespécies; o pedinte cantador que vive de esmolas conseguidas e, o profissional que distingue-se dos outros cantadores pela polidez apresentada, tanto no aspecto poético como no musical.Não existe, porém, uma delimitação clara entre estas funções, porque os cantadores muitasvezes fazem versos da literatura tradicional e ,em outro momento, cantam pedindo.2

6 - As Três Cantorias de CegoNas Três Cantorias de Cego os elementos musicais que produzem uma atmosfera característicaà arte dos cantadores são: a melodia, a harmonia, o ritmo, o andamento, o compasso, a estruturae a intensidade. A recorrência destes elementos nas Três Cantorias determinou umapadronização dos recursos composicionais utilizados para cada elemento folclórico presente.Encontramos na transcrição dos elementos folclóricos a utilização:

• das melodias folclóricas: (1) no uso das escalas modais, (2) no ritmo inerente ao tema,(3) na utilização do tema com intervalos comumente empregados nas cantorias, (4) nouso das constâncias melódicas, (5) na utilização de um âmbito correspondente aousado pelos cantadores;

• dos modelos de versos empregados pelos cantadores: (1) no ritmo inerente ao tema,(2) na estrutura das frases antecedente e conseqüente, (3) nas finalizações harmônicasde cada ponto A e B, (4) no número de pontos A e B;

• da alternância entre a voz e a parte instrumental na cantoria: (1) através da alternânciade seções, (2) mudança de andamentos, (3) da alternância da utilização de materialmonódico e de material polifônico, (4) pelo uso do rubato;

• das características instrumentais (rabeca, viola e pandeiro): (1) através do uso depadrões rítmicos e melódicos presentes nas cantorias, (2) pelo emprego de intervalossimultâneos, (3) pelo tremolo;

• das características da voz do cantador: (1) através das harmonizações do tema, (2)das dinâmicas empregadas, (3) do uso de notas ornamentadas, (4) pelo emprego daacentuação, (5) pelo alargamento temporal do tema.

2 CASCUDO (1984, p.322) indica um exemplo desta variedade apontando o Cego Sinfrônio como exemplode profissional na área da cantoria, quando pelo seu aspecto o cantador demonstrava uma condição demiserabilidade extrema.

Page 72: (Per Musi - UFMG) 9

72

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66-78.

O uso das escalas modais para representar as melodias folclóricas pode ser constatado nastrês peças especialmente na Segunda Cantoria de Cego (Ex.4) onde encontramos a utilizaçãodo Modo Nacional (Ex.5), característico da cultura nordestina.3

Ex.4 - Segunda Cantoria de Cego, c. 1-7.

EX.5 - Modo Nacional (III modo real) transposto para Lá

A escala modal é um dos elementos principais dos cantos de cegos pedintes, uma característicaessencial da música na cantoria nordestina. A presença e constância destas escalas nos cantosda tradição oral nordestina não indicam, nestes, por sua vez, a presença religiosa. A cantorianordestina tem suas origens no movimento trovadoresco francês que, através de Portugal,contribuiu decisivamente para a formação de uma arte profana. Esta, por sua vez, adaptou-seàs condições do nordeste brasileiro. A música trazida pelos portugueses, embora tenha sidomais decisiva na base da formação da nacionalidade musical brasileira, incorporou-se à outrastradições, principalmente a ameríndia e negra.

3 Segundo Siqueira, o modo nacional é encontrado apenas nesta região. No entanto, GERVAISE (1971, p.43)cita-o como modo karnático, característico da cultura indiana e encontrado em obras de Fauré e Debussy.

Page 73: (Per Musi - UFMG) 9

73

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66 - 78.

Com relação a escala apresentada na Segunda Cantoria de Cego, Siqueira admite duashipóteses para o seu surgimento: a primeira decorre da alteração para evitar o trítono, atravésdo abaixamento do VII ou elevação do IV graus; na segunda hipótese, Siqueira explica que aressonância vibratória dos instrumentos musicais nordestinos, em específico do pife (ou pífano,pequena flauta de bambu nordestina), revela os sons Si bemol e Fá sustenido, respectivamente,sétimo e décimo-primeiro sons da série harmônica. Estas alterações usadas simultaneamente,resultam no III modo (real ou derivado) do Sistema Trimodal, junção do I e II modos, que naSegunda Cantoria aparece transposto para Lá durante toda peça.

Além das escalas modais, é comum, nos cantos da tradição oral nordestina, a recorrência dedeterminados intervalos, como, por exemplo, formações em graus conjuntos, notas repetidas,terças menores e maiores e quartas justas. Podemos constatar o uso deste intervalos nas trêspeças. Verifica-se também, com freqüência, o uso de constâncias melódicas. A quartadescendente com semitom no meio, muito utilizada na cantoria de rua, pode ser identificada naPrimeira Cantoria de Cego (Ex.2) nos compassos 11 e 12, em que são utilizadas as notas Ré-Lá (quarta justa descendente) e Dó sustenido (semitom em relação a Ré). Esta mesmaconstância está presente na segunda e na terceira frases musicais no romance do ValenteVilela (Ex.6; LAMAS, 1973, p. 242).

Ex.6 - Romance cantado pelo cego Sinfrônio (LAMAS, 1973, p. 242).

Quanto ao modelo de versos empregados pelos cantadores, há uma emulação da frase musicale poética do romance do Valente Vilela (Ex.6) na estrutura das frases do tema exposto naSegunda Cantoria de Cego (Ex.4). É evidente a associação entre o número de pontos A e B dareferida peça, e o número de linhas de cada estrofe na cantoria nordestina, determinando umatranscrição para piano do que geralmente ocorre com os versos setessilábicos, que obedecemà forma a b c b d b, sextilha. Deste modo, a finalização silábica de cada frase, a rima propriamentedita, que na sextilha ocorre na segunda, quarta e sexta linhas dos versos é transcrita na SegundaCantoria por cada ponto B, segmento conseqüente da frase musical.

Homê peste atençãoeu agora vou contáum homê muito valente

Que morava num lugáaté o prope gunvernopediu de o pegá

Page 74: (Per Musi - UFMG) 9

74

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66-78.

Na transcrição, encontramos a seguinte disposição: a primeira frase poética “homê pesteatenção, eu agora vou contá” (apresentação da cantoria), representando em termos musicaisa presença dos pontos A e B do exemplo 6, equivale aos compassos 1 - 3 (pontos A e B) naSegunda Cantoria de Cego. O mesmo ocorre na segunda frase, referindo-se aos compassos 3- 5 para a frase “um homê muito valente, que morava num lugá”, e aos compassos 5 - 7 para aterceira frase poética “até o prope gunverno, pediu de o pegá”. Esta última, repete musicalmentea segunda frase do exemplo 6 e resulta da reprodução das rimas, c b em d b. Na SegundaCantoria este aspecto é descrito na repetição da segunda frase (c. 3 -5).

A execução de instrumentos entre os versos é uma característica muito forte presente nascantorias de rua. Fundamentalmente, tem a função de conceder tempo para a elaboraçãomental dos versos, geralmente respostas a desafios propostos. No rojão, desafio cantadopor Rouxinol e Chico Pequeno, encontramos um exemplo de acordes (viola) entre os versos(Ex. 7). Uma alusão a este tipo de interlúdio instrumental ocorre na Segunda Cantoria nocompasso 7 (mão esquerda, Ex.8) e compasso 37 (mão direita e esquerda, Ex.9) naapresentação de arpejos ascendentes em uma execução mais livre, transcrita na partiturapelo rubato. Este recurso expressivo é utilizado pelo compositor para indicar a liberdadecaracterística do improviso. Os arpejos, por sua vez, são reminiscências dos “acordes[realizados pelos tocadores] que reforçam a terminação de cada verso” (ALVARENGA, 1982,p.302) na cantoria da tradição oral.

Ex.7 - Desafio cantado por Rouxinol e Chico Pequeno (CARVALHO, 1979, p. 37)

Ex.8 - Segunda Cantoria de Cego, c. 6-8

Page 75: (Per Musi - UFMG) 9

75

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66 - 78.

Ex.9 - Segunda Cantoria de Cego, c. 36-38

A emulação de instrumentos da tradição folclórica pode ser notada em todas as três peças, nasquais identificamos alusões a instrumentos como a rabeca, a viola e o pandeiro. Na TerceiraCantoria, há um exemplo mais evidente quando Siqueira através de indicação feita na partiturae, do próprio material musical utilizado que alude ao instrumento percussivo (pandeiro). Omotivo (nota seguida de acorde) utilizado representa a batida do pandeiro e chocalhar dos arosde metais do instrumento (Ex.10).

Ex.10 - Terceira Cantoria de Cego, c. 1-12

Page 76: (Per Musi - UFMG) 9

76

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66-78.

A rusticidade do linguajar regional, o timbre roufenho da voz, o som gritado, áspero e anasaladoda voz do cantador nordestino aparecem expressos nas três peças, principalmente em suasapresentações do tema modificado. O timbre anasalado específico da voz do cantador nordestinoé um dos aspectos da presença moura na península ibérica (FIALKOW, 1995, p.63). Alémdisto, Mario de ANDRADE (1979, p.56) acredita que a voz do cantador nordestino também éproduto de uma imitação de instrumentos como a viola, o oficleide e até a sanfona. O autorexplica esta particularidade: “o nordestino possui maneiras expressivas de entoar que não sógraduam secionadamente por meio do portamento arrastado da voz, como esta às vezes seapoia positivamente em emissões cujas vibrações não atingem os graus da escala” (ANDRADE,1972, p.57). Exemplos destas características são evidenciados nos compassos 77-88 (Ex.11)e 105-108 quando o tema da Primeira Cantoria é reproduzido em sextas com apogiaturastranscrevendo respectivamente o anasalamento e o glissando da voz do cantador.

Ex.11 - Primeira Cantoria de Cego, c. 77-88

7 - Conclusão:É digno de nota mencionar que, ao transcrever as características estilísticas da cantoria decego, Siqueira faz uma releitura do gênero poético musical nordestino, inserindo característicastípicas desta música popular nas Três Cantorias de Cego, o que marca decisivamente o repertóriopianístico brasileiro pela originalidade e pelo valor documentário. Siqueira chegou a relacionarseu Sistema Trimodal (1981) e o atonalismo: “a harmonia utilizada, tomando por base essesnovos modos, nos transportará ao atonalismo, sem recorrer a processos violentos, às vezesinaceitáveis, comuns a certos sistemas, ora em voga” (SIQUEIRA, 1981, p.2). Ao contrário,isso não se verifica nas Três Cantorias de Cego, pois o compositor apresenta uma propostacomposicional que, se traz sua marca criativa, os elementos folclóricos aparecem dentro de

Page 77: (Per Musi - UFMG) 9

77

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66 - 78.

um esquema que permite identificarmos uma estrutura e um centro referencial (caracterizadospelas escalas modais, por grupos de notas e intervalos) que norteiam as peças.

Esta aparente aleatoriedade presente nas peças é antes um recurso de transcrição folclórica,a exemplo das cadências harmônicas, em que terminar uma frase ou período musical emqualquer acorde ou nota (Ex.4 acima; tema da Segunda Cantoria de Cego) é uma alusão aoprocedimento equivalente nos cantos folclóricos, representando, geralmente, a ausência datônica na finalização da frase ou período musical como também, o efeito da utilização deinstrumentos percussivos (como no trecho final da Terceira Cantoria de Cego). É sobretudonestes aspectos que identificamos a validade das normas estabelecidas pelo próprio SIQUEIRAno Sistema Trimodal. Salientamos, portanto que as peças escritas neste sistema, apesar deestarem desconectadas dos processos tradicionais da tonalidade, não são atonais. A propostade Siqueira indica, antes de tudo, uma necessidade de adaptação às correntes em voga naépoca, e isto não invalida a excelência da proposta do compositor, aparente em suas obras.

Referências BibliográficasALVARENGA, Oneyda. Música popular brasileira. 2.ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades Ltda Editora, 1982.ANDRADE, Mario. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Ed. Martins; Brasília: INL, 1972. BÉHAGUE,

Gerard. “Brazil”. In: The New Grove Dictionary Of Music And Musicians. London: Macmillan Publishers Limited,vol.II, 1980a, p.221-244.

CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidadede São Paulo, 1984.

CARVALHO, José Jorge. “Formas musicais narrativas do nordeste brasileiro”. In: Revista INIDEF nº 1, [S.l.] 1979,p. 33-68.

CORRÊA DE AZEVEDO, Luis Heitor. Folk music: brazilian, apud. Béhague, Gerard. “Brazil”. In: The New GroveDictionary Of Music And Musicians, London,: Macmillan Publishers Limited, Vol.II, 1980, P.221-244.

DIÉGUES JUNIOR, Manuel. “Ciclos temáticos na literatura de cordel”. In: Literatura popular em verso, tomo I. Riode Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1973. p. 1-151.

MARCONDES, Marco Antônio, ed. Enciclopédia da música brasileira. 2.ed. São Paulo: Art Editora, Publifolha,1998.

FIALKOW, Ney. “The ponteios of Camargo Guarnieri”. Dissertação de doutorado. The Peabody Institute of theJohns Hopkins University, 1995.

GERVAISE, Claude. Étude comparée des languages harmoniques de Fauré et Debussy. Paris: Richard-Masse,1971.

LAMAS, Dulce Martins. “A música na cantoria nordestina”. In: Literatura popular em verso, tomo I. Rio de Janeiro:Fundação Casa de Rui Barbosa, 1973, p. 233-270.

MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. 4.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.RAMALHO, Elba Braga. Cantoria. 27 nov. 1999. E-mail para: Vania Camacho.RAMON Y RIVERA, Luis Felipe. Fenomenologia de la etnomusica del area latinoamericana, Venezuela: Biblioteca

INIDEF 3 - CONAC, 1980.RIBEIRO, Domingos de Azevedo. Cantigas de cego. João Pessoa: RIGRAFI editora Ltda, 1992.SIQUEIRA, José de Lima. Sistema pentatônico brasileiro. João Pessoa: Secretaria da Educação e Cultura -

diretoria geral de cultura, 1981. ____. Sistema modal na música folclórica do Brasil. João Pessoa: Secretariade Educação e Cultura - diretoria geral de cultura, 1981.

____. Música para a juventude (terceira série). Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1954.

Page 78: (Per Musi - UFMG) 9

78

CAMACHO, V. C. G. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, 2004 p.66-78.

Leitura RecomendadaBÉHAGUE, Gerard. “Siqueira”. In: The New Grove Dictionary Of Music And Musicians. London,: Macmillan

Publishers Limited, vol.XVII, 1980b, p.350-351.CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, [1972].LAMAS, Dulce Martins. A música de tradição (folclórica) oral no Brasil. Rio de Janeiro: CBAG, 1992. ____. “A

Cantoria tradicional no Brasil”. In: Estudos de folclore em homenagem a Manuel Diégues Junior, Maceió:Instituto Arnon de Mello, 1991, p. 91-100.

PEREIRA, Kleide Amaral. “Um mestre chamado José Siqueira”. In: Revista da Academia Nacional de Música. Riode Janeiro, Vol. VII, 1996, p.16-22.

PINTO, Aloysio de Alencar. “A arte da Cantoria”. In: encarte do disco “A arte da Cantoria - regras da Cantoria”. Riode Janeiro: Instituto Nacional do Folclore, 1984.

RIBEIRO, Joaquim. Maestro Siqueira. Rio de Janeiro: [s.n.], 1963.

Vania Claudia da Gama Camacho é Mestre em Piano pela UFRGS na classe do professor Dr.Ney Fialkow. Participou de Masters Classes e Festivais de Música realizados em várias partesdo país e no exterior, entre eles o XXVII e o XXVIII Festivais de Inverno de Campos de Jordão,respectivamente em 1996 e 1997;e o Camping Musical de Bariloche na sua 47º temporada(Argentina). Vencedora do II Concurso Gerardo Parente -Música Brasileira para Piano e do IConcurso Nacional de Piano UFRN e, como camerista, com o Duo-Simões -Camacho, doConcurso Nacional de Piano e Música de Câmera da Cidade de Araçatuba e do XIII ConcursoJovens Instrumentistas (Piracicaba). Professora de piano da UFPB desde 1994, atuando comosolista e camerista realizando concertos pelo país, especialmente nordeste.

Page 79: (Per Musi - UFMG) 9

79

DIAS, S. Giovanni Battista Pergolesi a partir dos arquivos portugueses... Per Musi, v.9, 2004 p.79 -88.

Giovanni Battista Pergolesi a partir dos arquivos portugueses:nótulas sobre a precedência dos manuscritos relativos àMissa em Ré Maior para Cinco Vozes e Instrumental

Sérgio [email protected]

Resumo: Os arquivos e bibliotecas portugueses constituem um verdadeiro e pouco explorado tesouro do passadomusical europeu. Apesar da destruição, pelo terremoto de 1755, da espetacular biblioteca de música constituídapelo Rei D. João IV, ainda há muito por se descobrir. Uma das provas mais imediatas desta afirmação estádepositada na Missa em Ré maior para Cinco Vozes e Instrumental de Giovanni Battista Pergolesi, que podecontribuir muito para estudos sobre este polêmico compositor setecentista.Palavras-chave: atribuição de autoria, música-religiosa, transcrição musical, arquivo, musicologia.

Giovanni Battista Pergolesi´s in Portuguese archives:notes on the precedence of theMass in D Major for Five Voices and Instruments manuscripts

Abstract: The Portuguese archives and libraries constitute a true and underexplored treasure of the Europeanmusical heritage. In spite of the destruction, due to the 1755 earthquake, of the spectacular music library puttogether by the King D. João VI, there is much to discover. One immediate proof is Giovanni Battista Pergolesi´sMass in D Major for Five Voices and Instruments, which may contribute significantly to the studies on thiscontroversial composer of the early eighteenth century.Keywords: authorship attribuition, sacred music, musical transcription, archive, musicology

1 – Contextualização das fontes:Alvo de dúvidas e controvérsias sempre foram - e continuam a ser - as questões de atribuiçãode autoria relacionadas a muitos compositores por toda a História da Música Ocidental. Comoé de se esperar, todo este estado de coisas tende a tornar-se mais complexo à medida em querecuamos no tempo. Circunstâncias há, todavia, em que o problema torna-se crítico; margeandoo impasse. Para elas, é indispensável o invocar de todos os métodos disponíveis de investigaçãomusicológica, devidamente fomentados por especialistas criteriosos e cuja experiência torna-se imprescindível na elaboração de questionamentos e hipóteses, bem como na resolução dosproblemas deles derivados. Há vezes em que a descoberta de novos factos são suficientespara dirimir dúvidas e contradições; noutras, estes elementos tão somente os reestruturam eminéditas dimensões, onde outros e mais complexos problemas se acrescentam.

Se existe um caso que bem exemplifica este contexto, este se relaciona à figura de GiovanniBattista Pergolesi (Lesi, 1710 – Pozuoli, 1736). Em torno ao vulto deste emblemático compositor,todo este estado de coisas eclode por conta de uma documentação assaz irregular e que a sise vem remetendo ao longo dos anos; desde o seu desaparecimento e, sobretudo, no decorrerdos séculos XIX e XX/1. Esta documentação, constituída em grande parte por fontes secundárias,já foi a causa de inúmeros equívocos que se somaram na formação do puzzle a ser resolvidopelos especialistas. Contrafacta, pastiches, edições espúrias, manuscritos adulterados,fragmentados ou produzidos por mãos plagiárias, são a causa de tanta confusão.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música - v. 9, 129 p, jan - jun, 2004.

Recebido em 13/11/2003; aprovado em 15/02/2004

Page 80: (Per Musi - UFMG) 9

80

DIAS, S. Giovanni Battista Pergolesi a partir dos arquivos portugueses... Per Musi, v.9, 2004 p.79 - 88.

Quando da publicação do Catálogo Temático elaborado por Marvin E. PAYMER (1977), é certoque se algumas destas questões já estavam em vias de superação, outras ainda eram objetode interessantes debates. Questionamentos, todavia, incomodamente persistem. Basta umgolpe de vista sobre o supracitado catálogo, na Opera Omnia de F. Caffarelli (1939) e narecente Complete Works (PERGOLESI, 1986), para que em todos localizemos uma boaquantidade de obras de autoria questionável ou classificadas como espúrias. Entretanto,iluminado deve estar o fato de que nem um catálogo temático, tampouco publicações de caráctertestamentário, são os ambientes indicados para discussões exaustivas sobre autoria e/ouatribuições. No entanto, no supra-mencionado Catálogo, inclusa no rol das obras de autoriaduvidosa, encontra-se a Missa em Ré para Cinco Vozes e Instrumental (SSATB). É certo que,assim foi tratada devido à prudência científica que se exige no âmbito de um catálogo temático,o qual, por definição, deve considerar apenas as evidências concretas relacionadas à realidadedocumental. Neste terreno, para além dos manuscritos e impressos que remetem nominalmenteà música desta missa a Pergolesi

1, não há muito de palpável para além das conjecturas, aindaque algumas sejam bastante convincentes.x

Por seu lado, no artigo Le Messe di Giovanni Battista Pergolesi – Problemi di Cronologia ed´Attribuizione, Francesco DEGRADA2 não deixa dúvidas sobre a autenticidade da referidaobra, afirmando:

“Delle 9 messe attribuite dalla tradizione manoscrita a Pergolesi [...] solo due possono attribuirecon assoluta sicurezza al musicista. Si tratta: 1. della Messa in Re maggiore, giunta in dueredazioni entrambe sicuramente ascrivibili al Pergolesi – A) per soli, coro a cinque voci (SSATB)e orchestra; B) per soli, 2 cori a cinque voci e 2 orquestre.”

Todavia, na altura das respectivas publicações do artigo, catálogo e obras completas3 , eramignorados tanto por Degrada quanto por Paymer os conjuntos de manuscritos pertencentes àSé de Évora (Prateleira II, 61) 4 (veja Ex.6, à frente) e aqueles depositados na Biblioteca Nacionalde Lisboa (BN) (veja Ex.5, à frente) que por sua vez somam dois grupos distintos: uma partiturapara vozes (SSATB) e orquestra (F.C.R. ms. 157.1) 5 e uma versão que compreende partescavas para coro (SS[A]TB) e órgão [?] 6 no Convento de Arouca (ms. 1619/5) (veja Ex.7, àfrente).

1 À época, Marvin Paymer dispunha dos manuscritos depositados no Conservatório de Santa Cecília de Roma:A. Mss 3787.2; Biblioteca do Conservatorio San Pietro a Majella de Nápoles: 1.3.8. [versão para dois coros];Biblioteca Palatina de Parma: 32927 AH-11-28; Viena: [?]; Royal College of Music Library: RCM MS 670/1[incompleto] - todos tardios (fins do séc. XVIII) -; as publicações inglesas [incompletas] confeccionadas a partirde 1787/90 (Goodison); várias reduções [incompletas] para vozes e piano: Skillern & Challoner, ca. 1806/10;Goulding, 1811/15; Clarke, 1814; Walker, 1817; Greatorex, 1821; Hart, 1840; Novello, 1856; Coggin, 1914 eRiegger, 1942/46; manuscritos fragmentários pertencentes a alguns arquivos italianos; além do manuscritoautógrafo relacionado à fuga final sobre Sicut erat in principio, pertencentes à Biblioteca do Conservatorio SanPietro a Majella: Rari 1.6.26 até 15.7.16.

2 Degrada, Francesco. Le Messe di Giovanni Battista Pergolesi. Problemi di cronologia e d´attribuzione. AnalectaMusicologica: Studien zur italienisch-deutschen Musikgeschichte, III (1966), 65-79.

3 Excluimos desta lista a menção da já citada Opera Omnia do Barão Caffarelli (1939/41), por ser esta uma obrahodiernamente superada em muitos dos seus aspectos.

Page 81: (Per Musi - UFMG) 9

81

DIAS, S. Giovanni Battista Pergolesi a partir dos arquivos portugueses... Per Musi, v.9, 2004 p.79 -88.

Parece certo que o advento da partitura e da versão para coro e órgão de Lisboa/Arouca,assim como do grupo de partes de Évora, nada de definitivo acrescentaria às referidasconjecturas relacionadas ao histórico desta obra; exceto se consideradas três razõesfundamentais. A primeira se consubstancia no facto de serem, sobretudo o grupo de Évora e àexceção da versão [adaptação?] autógrafa de Nápoles, exemplares bem mais próximos doautor no tempo e, assim sendo, bem mais confiáveis do que as tardias partituras pertencentesao Conservatório de Santa Cecilia de Roma e à Real Biblioteca Palatina de Parma. O grupo deÉvora data de 1759, portanto elaborado vinte e três anos após o desaparecimento do mestre.Em segundo lugar, assim como em Itália, todos os grupos de manuscritos confirmamexplicitamente a autoria da obra declarando-as em suas folhas de rosto: Messa A 5. Voci / ConViolini Violetta / Oboè Corni da Caccia / Del Sig

r Gio: Battista Pergolesi. //, Lisboa; Messa a 5 /

Com VV e Trombe / Pe. [ilegível] [Moreira?] / Pergoleze 1759 //, Évora; além do nome “Pergolence”

grafado nas partes de tenor e Baxo, nos manuscritos oriundos do Convento de Arouca.

Ora, estes factos, embora também por si só questionáveis, não deixam de nos fazer repensaralgumas das pretensas atribuições que se cristalizaram durante o século XIX. Na altura, estasagiram como pilares de sustentação na construção da imagem, um tanto lendária, que seprojetaria por sobre a figura de Pergolesi nos novecentos. Esta imagem se estabelece comoconseqüência da euforia estabelecida em torno da sua vida e obra, que por sua vez se relacionaao retumbante sucesso do Stabat Mater, obra fadada ao paradigma. Todo este estado decoisas foi mormente fomentado pelas atitudes tipicamente românticas que tendiam asupervalorizar os ideais que sublimam a genialidade profusa, o arquétipo do compositor visionário- antecipador do classicismo musical e dos argumentos iluministas -, a obra emblemática parao seu tempo e, não finalmente, uma morte tísica e prematura.

A pairar por sobre todo este estado de coisas está o terceiro, mais convincente e inalienávelargumento: a própria obra. Ao contrário de outros casos, esta missa se configura como umexemplar íntegro em todo o seu conteúdo musical e litúrgico

7 ; a oferecer elementos de pejadaexpressividade para o delinear de uma solidez estilística, porquanto plena e cientificamenteaceitável.

4 Cujas partes vocais, entretanto, foram inclusas no catálogo RISM, A/II.5 Similar, portanto, à primeira das versões descritas por Degrada [A].6 Quanto ao grupo proveniente do Convento de Arouca, num primeiro instante sobreveio a dúvida: seria este

material destinado apenas às vozes (SS[A]TB) e ao órgão – adaptação aliás bastante comum a partir doséculo XIX -, ou se se trataria de um material que originalmente previu a utilização de um instrumental cujaspartes se extraviaram, assim como a parte de alto. Ora, na versão instrumental há pequenos solos introdutórios(Kyrie, por exemplo) que nesta versão estão omitidos, restando apenas a indicação das cifras que sublinha aparte do baixo instrumental. Tal facto conduz-nos à certeza de que se trata, neste caso, de um materialincompleto.

7 E esta integridade se dá sobretudo se considerarmos que missas polifônicas, excluso o Symbolum Nicenum,são bastante escorreitas no século XVIII.

Page 82: (Per Musi - UFMG) 9

82

DIAS, S. Giovanni Battista Pergolesi a partir dos arquivos portugueses... Per Musi, v.9, 2004 p.79 - 88.

Se considerarmos a cronologia proposta por Francesco Degrada 8 , esta missa teria sido a

mesma composta quando Pergolesi atravessara definitivamente os umbrais do Conservatoriodei Poveri di Gesù Cristo para a vida profissional; missa esta mencionada pelo Marquês deVillarosa (ROSA, 1831/43) e elogiada, ainda que com certa parcimônia, pelo célebre LeonardoLeo (ROSA, 1831/43). Dela não podemos precisar a ocasião exata de execução, mas, a julgarpela maturidade dos trechos contrapontísticos - sempre construídos com preocupações retóricase circunstanciais: Pergolesi rejeita a utilização do contraponto como elemento intrínseco, aexemplo de J. S. Bach -, podemos dizer, sem receio, que se trata de uma obra que já demonstratodo o potencial e genialidade do mestre.

No que se refere aos manuscritos portugueses, não nos é possível identificar quais teriam sidoas fontes italianas utilizadas para as suas configurações, mas, faça-se nota, à exceção do grupode Arouca – claramente um material de trabalho; copiado com alguma pressa –, são gruposconfeccionados com grande esmero caligráfico. Todavia, se por um lado não podemos apontar aorigem dos materiais, por outro estamos autorizados a os aproximar ainda mais do compositor,uma vez que, quaisquer que tenham sido as fontes utilizadas, estas lhes foram obviamenteanteriores e de qualquer modo bem mais remotas que a partitura romana ou aquela parmegiana.No que tange à grade de Lisboa, volume pertencente ao arquivo privado de uma célebre casanobiliárquica

9 , aumentam as dúvidas sobre a sua origem. Neste sentido, duas hipóteses podemser consideradas. A primeira nos orienta para a idéia de que se trata de uma cópia oriunda d’Itáliapara o serviço particular na capella da família dos Condes de Redondo e Marqueses de Borba, jáque possui todas as características típicas das ítalo-copistarias; em contrapartida, também nãose mostra absurda a idéia de que tenha sido produzida em solo português10 (antes mesmo deser anexada ao arquivo dos condes), já que o tipo de papel utilizado, com marca d´água em quese estampam as iniciais SP, era extremamente vulgar na Península Ibérica, especialmente emPortugal, lá pelo terceiro quartel do século XVIII. Quanto ao conjunto de Évora, pode ter sidocopiado em Portugal (1759), a partir de uma fonte italiana e para o serviço litúrgico da Sé Catedral,em ocasião ainda não conhecida. Outra possibilidade, entretanto, se levanta e nos inclina para ofacto de ser este material oriundo da partitura de Lisboa. Esta suposição faz algum sentido namedida em que o material da Sé não inclui partes para oboés, estando estes também exclusosda partitura de Lisboa11 , a não ser por pequenas passagens [deixas] no Gloria (comps. 11 a 17 e50 a 52) e o trecho do Cum Sancto Spiritu (fuga e amen), em que podem ser facilmentedesprezados, na medida em que não fazem outra coisa senão dobrar as partes de violinos ou darreforço harmônico aos trechos mais incisivos, junto aos trompetes. A versão romana considera-os desde o caput da obra. Paralelamente, a numeração relacionada à cifragem tem, em ambosos manuscritos, características bastante semelhantes.

8 Op. cit, pg. 74.9 Está depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa o acervo que pertenceu a esta importante família de

apreciadores de música. Nele, que hoje constitui o Fundo do Conde de Redondo (FCR), jaz uma enormequantidade de partes e partituras manuscritas, música impressa, tratados da arte da música e similares, quetestemunham a grande tradição dos membros desta família como ilustrados amantes da arte da música, paraalém da prática constante do mecenato.

10 Existem exemplares portugueses e espanhóis com características similares às cópias italianas, uma vez queestas últimas tinham grande circulação na Península Ibérica, servindo como modelos imediatos.

11 São mencionados, todavia, também na folha de rosto.

Page 83: (Per Musi - UFMG) 9

83

DIAS, S. Giovanni Battista Pergolesi a partir dos arquivos portugueses... Per Musi, v.9, 2004 p.79 -88.

No que se refere ao conteúdo, nas tradicionais arias da capo e a solo, (Laudamus e Quoniam)paira o inconfundível frescor pergolesiano - quase cômico -, característico de obras como LaServa Padrona e mesmo dalguns trechos do célebre Stabat Mater. São inúmeras as atitudestipicamente pergolesianas que se podem encontrar nesta missa e que são comuns às obrasacima citadas. Por exemplo, se focarmos os compassos iniciais do Gloria in excelsis (Messa),observaremos um ritmo que se repete várias vezes e é constituido de uma nota mais longa –que se estende ao batere seguinte - cuja seqüência culmina num salto descendente de terceiraem valores mais breves (Ex.1).

Ex.1 – Ritmo repetitivo no início do Gloria in excelsis da Missa em Ré Maior

Aqui, todo o trecho é sublinhado por um pedal na parte do baixo. Ora, guardadas as devidasproporções, e sobre um pedal desta feita não articulado, trata-se do mesmo e recorrenteprocedimento utilizado nos compassos iniciais do Pro peccatis suae gentis (Stabat Mater, partesvocais), (Ex.2).

Ex.2 - Início do Pro peccatis suae gentis do Stabat Mater de Pergolesi

Já os ritmos (x e. x e. ou similares), sempre em curvatura melódica descendente, característicosdo Domine Deus (Messa, comps. 33, 47, 53, etc.), podem ser localizados no Vidit suum dulcemnatum (Stabat Mater, compassos iniciais) e no dueto Per te ho io nel core (La Serva Padrona,comps. 27 e 32, 44 e 45, etc.). Desenhos que se imitam em contraponto quase imediato, entreos violinos e baixo, tanto podem ser ouvidos nos compassos iniciais do Qui Tollis (Messa),quanto no Eja Mater (Stabat), assim como na ária Sempre in contrasti (La Serva Padrona). Assoluções cadenciais em uníssino são bastante comuns, sobretudo nos típicos casos das

Page 84: (Per Musi - UFMG) 9

84

DIAS, S. Giovanni Battista Pergolesi a partir dos arquivos portugueses... Per Musi, v.9, 2004 p.79 - 88.

cadências femininas – sobre tempo fraco: Quoniam, O quam tristis (Stabat), Laudamus (Messa),Sempre in contrasti, Per te ho io nel core e Stizzoso, mio stizzoso (La Serva Padrona). Noâmbito do Laudamus, encontramos (comps. 11, 13, 89, 102 e 104) um incisivo desenho melódicoem uníssono, entre os violinos (Ex.3),

Ex.3 - Desenho melódico incisivo em dos violinos em uníssono no Laudamus da Missa em Ré Maior

desenho que em muito se assemelha ao espírito daquele que aparece logo no primeiro númerode La Serva Padrona (comps. 8 e 11), (Ex.4).

Ex.4 - Desenho melódico no início da Introduzione de La Serva Padrona

Page 85: (Per Musi - UFMG) 9

85

DIAS, S. Giovanni Battista Pergolesi a partir dos arquivos portugueses... Per Musi, v.9, 2004 p.79 -88.

No domínio da instrumentação, especificamente no dueto Domine Deus (Messa) - sem dúvidasum dos pontos altos da obra -, encontramos um hábito instrumental amplamente utilizado pelocompositor: um divisi quádruplo para as partes de violinos. Por outro lado, a mesma músicadeste dueto é [re]utilizada por Pergolesi na sua “Missa Romana” - ali com a fórmula de compassoem 3/8 -, o que nos remete por fim a uma outra redacção da Missa em Ré, desta feita para doiscoros e instrumental, depositada no Conservatório de San Pietro a Majella

12. Neste sentido,

torna-se interessante a questão da inserção deste texto na versão para cinco vozes, uma vezque o mencionado divisi prevê um grupo de arcos mais volumoso e um tanto estranho ao ambienteinstrumental da redacção primitiva. Neste ponto, uma análise mais detalhada do supra-citadomanuscrito que prevê os dois coros, suscita alguns questionamentos interessantes. Em primeirolugar trata-se de uma partitura produzida em 1813 por um célebre copista e diletante musicalnapolitano chamado Giuseppe Sigismondo. Nesta partitura, o segundo coro (vocal e instrumental)é musicalmente dispensável, na medida em que dobra o primeiro sem quaisquer modificaçõesdignas de relevância. Sigismondo nem mesmo se dá ao trabalho de recopiar o segundo coro,simplesmente deixando o grupo de pautas inferior livre de quaisquer notações, suscitando aremetência imediata. Mesmo o trecho final do Cum Sancto Spiritu, onde há um estranholançamento das partes de oboés por sob a partitura, pode ser facilmente resolvido sem o segundocoro. Por outro lado, na folha de rosto, há a menção que indica ter sido esta missa executada em1739. Terá sido a partitura de Giuseppe Sigismondo copiada ipso verbum a partir daquela de1739? Discussões futuras, neste e noutros casos, poderão elucidar melhor a questão.

2 - Descrição das fontes portuguesas:2.1 – Partitura do FCR(Lisboa/BN):

a) folha de rosto (Ex.5):

Messa A 5 Voci / Com Violini Violetta / Oboè Corni da Caccia /Del Sigr Gio: Battista Pergolesi

Ex.5 – Folha de rosto da Missa em Ré Maior da Biblioteca Nacional de Lisboa

12 G. Gasperini: 1.3.8.12G. Gasperini: 1.3.8.

Page 86: (Per Musi - UFMG) 9

86

DIAS, S. Giovanni Battista Pergolesi a partir dos arquivos portugueses... Per Musi, v.9, 2004 p.79 - 88.

b) características e medidas da partitura:Partitura manuscrita com 77 folhas e 154 páginas copiadas (frente e verso), inclusa a folha derosto. A última página está em branco. Alguém, a posteriori, numerou as páginas, a lápis grafite,respectivamente nos cantos superiores esquerdo e direito. A numeração despreza a folha derosto que está, portanto, estampada no verso da página 1 (já com o incipit da música). Hámarcas d´água estampadas às páginas 2, 14, 36, 46, 48, 62, 64, 74, 84, 90, 102, 106 (quaseimperceptível), 118, 124, 130 e 152 com as iniciais S P. Todas estas marcas aparecem nocanto inferior direito dos fólios.

A cópia foi realizada com bastante esmero caligráfico e quem a confeccionou serviu-se, paratal, de tinta preta de qualidade, já que os borrões, dada a amplitude e antiguidade da cópia, sãorelativamente poucos. Nas páginas 77 e 78, há tiras do mesmo papel pautado coladas porsobre a parte do violino IV; certamente o copista se utilizou deste expediente para corrigir errosque, desta feita, ficaram ocultos por sob a colagem. O estado de conservação do manuscrito ébastante razoável e nele há discreta ação de insetos; todas as ocorrências nas bordas dopapel. Há eventuais rasgaduras que, por seu turno, estão também nas bordas. A encadernaçãoé do tipo brochura em couro, trabalhada, tanto na capa quanto na contra-capa, com contornosdecorativos em ouro, e possui, na lombada, a seguinte inscrição: “Messa / A. 5. / PERGO /LESE”

As medidas da capa e contra-capa são: 22,8 X 31 cm; e as do maço de papel são: 22,2 X 30,5 cm.

A cota de registro e localização da obra na Biblioteca Nacional de Lisboa é F.C.R. ms 157.1,onde F.C.R. são as iniciais relativas aos “Fundos do Conde de Redondo”.

2.2 - Manuscritos de Évora:a) folha de rosto (Ex.6):

Messa a 5 / Com VV e Trombe / Pergoleze / [nome do copista ou proprietário – ilegível]:Pe. [??] / 1759

Ex.6 – Folha de rosto da Missa em Ré Maior do Arquivo da Sé Catedral de Évora

Page 87: (Per Musi - UFMG) 9

87

DIAS, S. Giovanni Battista Pergolesi a partir dos arquivos portugueses... Per Musi, v.9, 2004 p.79 -88.

b) características e medidas do material:São 13 cadernos, atados em costura, contendo os seguintes instrumentos e vozes: Baixoinstrumental (com cifras), com 6 fólios (última página em branco), 23,8 X 32,2; /Acompanhamento/, com 6 fólios (folha de rosto e última página em branco), 23,2 X 32,4; Suprano1

o., com 4 fólios, 23,8 X 31,8; Suprano Secondo, com 4 fólios (última página em branco), 23,9

X 32,2; Alto a 5, com 4 fólios, 23,8 X 32; Tenor a 5, com 4 fólios (última página em branco), 23,2X 32,4; Baxo a 5 (última página em branco), 23,2 X 32,1, com 4 fólios; Violino Primo, com 6fólios (última página em branco), 23, 8 X 32,4; Violino Secondo, com 6 fólios, 23,2 X 32; Violino3 obrigado ao Duó Do.

ne D.

s, com 1 fólio, 23,3 X 32; Violino 4

o. obrigado ao Duo Domine Deus,

com 1 fólio, 23,1 X 32,2; Tromba 1a., com 1 fólio, 23,8 X 32 e Tromba 2

a., com 1 fólio, 23,8 X 32.

Todo o material é realizado por um mesmo copista (não identificado) e sobre um mesmo tipode papel, a exceção do caderno relativo ao “Acompanhamento”. A marca d´água deste últimoconsiste numa espécie de estrela circunscrita num círculo e um desenho maior, em outrosfólios, que se expande para além dos limites do papel, impossibilitando assim uma identificaçãoprecisa. No restante do conjunto as marcas d´água se assemelham a um trevo de três folhas.Trata-se de um material com razoável estado de conservação, com as seguintes cotas noArquivo da Sé de Évora: Missas (61), Est. da Mus. / 2.

2.3 – Material proveniente do Convento de Arouca:a) folha de rosto (Ex.7):

Basso pa / Organo

Ex.7 – Fundo da Missa em Ré Maior do Convento de Arouca

b) características e medidas do material:Trata-se de um conjunto bastante irregular porque, embora inteiramente copiado por sobre ummesmo tipo de papel – o que nos orienta para a possibilidade de ter sido realizado numa mesmafeita -, é traçado, aparentemente, por cinco mãos distintas, as quais, infelizmente, não pudemosidentificar. Na Biblioteca Nacional de Lisboa possui a cota ms. 1619/5 e é constituido por cinco (5)partes cavas para Suprano 1º., com 4 fólios escritos em frente e verso, sendo a última página

Page 88: (Per Musi - UFMG) 9

88

DIAS, S. Giovanni Battista Pergolesi a partir dos arquivos portugueses... Per Musi, v.9, 2004 p.79 - 88.

aproveitada para o Kyrie de uma outra missa, (23,3 X 32,3); Suprano 2º., com 4 fólios escritos emfrente e verso, sendo a última página desprezada para a escrita musical, (23 X 32,2); Tenor, com4 fólios escritos em frente e verso, sendo a última página desprezada para a escrita musical,(23,3 X 32,2); Baxo, com 4 fólios escritos em frente e verso, sendo a penúltima página aproveitadapara o Kyrie de uma outra missa e a última desprezada para a escrita musical, (23,8 X 33) efinalmente OBasso, com 6 fólios escritos em frente e verso, sendo a antepenúltima e penúltimapáginas copiadas com o Kyrie de uma outra missa (a mesma das partes de soprano e tenor) e aúltima desprezada para a escrita musical, (23,3 X 32,9). Todo o material é copiado em pena pretae o papel traz a marca d´água com as três crescentes. Os cadernos relativos às partes vocaisestão atados com costura e há discreta ação de insetos no papel que, apesar disso, se encontraem bom estado de conservação. Por sobre a folha de rosto (parte de órgão) há estampado ocarimbo ´Arouca´. Faltam as partes instrumentais [?] e de alto.

Referências Bibliográficas:DEGRADA, Francesco. Le Messe di Giovanni Battista Pergolesi. Problemi di cronologia e d´attribuzione. Analecta

Musicologica: Studien zur italienisch-deutschen Musikgeschichte. v.III, 1966, p.65-79.PAYMER, Marvin E. Catálogo Temático. Pendragon Press, 1977.PERGOLESI, G. B. Complete Works. Pendragon Press/G. Ricordi & C., 1986.______. Messa a 5 / Com VV e Trombe / Pergoleze / [nome do copista ou proprietário – ilegível]: P

e. [??] / 1759.

Biblioteca da Sé de Évora (Prateleira II, 61), 1759.______. Messa A 5 Voci / Com Violini Violetta / Oboè Corni da Caccia /Del Sig

r Gio: Battista Pergolesi. Biblioteca

Nacional de Lisboa (BN) (F.C.R. ms. 157.1), ?.______. Basso p

a / Organo. Biblioteca do Convento de Arouca (ms. 1619/5), ?.

ROSA , C. de. Lettera Biografica intorno alla Patria ed alla Vita di Gio. Battista Pergolese, Celebre Compositore diMusica. Nápoles: 1831/43.

Sérgio Dias é graduado em Flauta, Composição e Regência, especialista em Educação Musicale Arte e Cultura Barroca, Mestre em Musicologia Histórica (“A Existência de Uma Escola deCompositores na Capitania das Minas Gerais - Subsídios Para a Compreensão do FenômenoMusical Mineiro dos Setecentos”) e Doutorando em Teoria Geral da Música (CNPq, UniversidadeNova de Lisboa/Université de Paris II). Professor do Conservatório de Coimbra, da EscolaSuperior de Educação de Lisboa e do Conservatório San Pietro a Majella de Napole. Intérpretee/ou Diretor de grupos como Ars Instrumentalis, Camerata Philharmonia, Sequencia (Argentina),Conjunto de Música Antiga da EMES (Ensemble Cum Sancto Spiritu), Miami Philharmonic,Saint Paul Chamber Orchestra, Orquestra do Mozarteum de Buenos Aires, Sinfônica do TeatroCólon, Orquestra e Coro dos Festivais de Lucerna, Orquestra de Câmara de Rouen e Orquestrasdos Festivais Internacionais de Música Colonial Brasileira e Música Antiga e FEMUSICA. Maestrotitular da Orquestra de Câmara da Universidade Federal do Espírito Santo, da Orquestra daEscola de Música do Espírito Santo e do Ensemble Cum Santo Spiritu. Diretor artístico dosFestivais de Música de Inverno de Campos (RJ), onde dirigiu a classe de Prática de Orquestra.

Page 89: (Per Musi - UFMG) 9

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música - v. 9, 129 p, jan - jun, 2004.

Recebido em 27/09/2003; aprovado em 25/02/2004

89

A literatura pianística do século XX para o ensino do piano nos níveis básico e intermediário

Ingrid Barancoski (Unirio) [email protected]

Resumo: O repertório pianístico de cunho pedagógico foi sensivelmente ampliado no século XX, acompanhando as novas tendências da pedadogia e da educação musical, e oferecendo obras que refletem a notável variedade de linguagens e procedimentos utilizados. Como conseqüência, do ponto de vista pedagógico, o repertório em questão apresenta quase a totalidade de elementos pianísticos dos períodos anteriores, e, com mais intensidade, uma extensa variedade de elementos rítmicos e explorações timbrísticas do instrumento. Este artigo pretende avaliar o potencial pedagógico dessa literatura no ensino do piano nos níveis básico e intermediário. Palavras-chave: pedagogia do piano, música do século XX, música contemporânea, técnica pianística. Twentieth-century piano literature for the basic and intermediate teaching levels Abstract: Following new trends in pedagogy and music education and offering works with an exciting variety of procedures and musical idioms, the teaching piano repertoire has been expanded in the twentieth-century. Although this repertoire presents most of the elements already found in preceding periods, there has been a substantial expansion of timbre and rhythmic elements. This essay discusses the teaching possibilities of this repertoire for basic and intermediate level students. Keywords: piano pedagogy, twentieth-century music, contemporary music, piano technique.

Respeita a música antiga, mas interessa-te também pelas modernas. Não tenhas preconceito por música, só porque o autor é desconhecido.

(Robert Schumann) 1 - Introdução Imaginemos que, ao receber um novo aluno de piano de nível avançado, constatamos que ele/ela nunca tenha estudado uma peça de Bach. É indescritível o empenho que esta situação exigiria por parte de aluno e professor para reparar tamanha falta. Provavelmente, o aluno teria que começar com peças de nível intermediário ou mesmo básico (como o Caderno de Anna Magdalena, Prelúdios e Fughettas, Invenções a duas vozes) para compreender os elementos característicos do estilo (tempo, articulações, textura, ornamentos) e, assim, adquirir familiaridade com a linguagem. Este processo de cumulativa vivência traria o desejável desenvolvimento de uma imagem sonora deste repertório, ou o que o pianista russo Heinrich Neuhaus (1927-1980) chama de "a imagem estética da obra musical”, definida como “a matéria sonora viva da própria música, o discurso musical com suas leis, seus componentes harmônicos, polifônicos, e também o conteúdo poético e emocional” (NEUHAUS, 1971, p. 17). No nosso dia-a-dia, nos deparamos freqüentemente com alunos que, de maneira semelhante, têm pouco contato com o repertório pianístico do século XX até atingirem um nível avançado de estudo; o paralelo com o nosso exemplo hipotético pode explicar as dificuldades acentuadas que o aluno, muitas vezes, encontra para, no seu primeiro contato com esta linguagem, abordar uma obra contemporânea complexa.

Page 90: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

90

Assim como em outros períodos, a literatura pianística do século XX pode ser introduzida desde o nível básico do ensino do piano, com contribuições valiosas para o desenvolvimento musical do aluno. Discutimos portanto, neste trabalho, a pertinência deste repertório, seu potencial e seu papel pedagógico. 2 - Reforço de elementos tradicionais A música do século XX oferece uma variedade notável de linguagens e procedimentos composicionais, trazendo desenvolvimento e inovações em todas as estruturas - harmônica, textural, melódica, tímbrica, rítmica e formal. É de se esperar, portanto, que este repertório apresente uma profusão de elementos para o ensino, sejam esses exclusivos ou não deste período. Encontramos, na verdade, referência a vários elementos característicos de períodos anteriores como: - ornamentação, elemento preponderante nos estilos Barroco e Clássico, presente em algumas peças do repertório do século XX de nível intermediário;

Ex.1 - Ernst Widmer, Ludus brasiliensis, 2º vol., No.107 - Fantasia, cc. 1-7.

- texturas contrapontísticas, cujo domínio é essencial na interpretação da música barroca, e também exploradas consistentemente na música do século XX; são utilizadas à exaustão nos primeiros volumes do Mikrokosmos de Béla Bartók, e também por inúmeros outros compositores;

Ex. 2 - Guerra-Peixe, Minúsculas II, 2º mvto -Cantiga, cc. 1-4.

Page 91: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

91

- mudanças de organização métrica, andamento, caráter e dinâmica, presentes no período Clássico, e utilizados com maior flexibilidade e preponderância no período Romântico:

Ex. 3 - Lutoslawski, Melodias folclóricas No.8 - The Lime-tree in the field, cc. 1-5.

Ex. 4 - Almeida Prado, Kinderszenen No. 6 - A Ciranda das bonecas, cc. 49-52.

Uszler lista os elementos técnicos a serem desenvolvidos no nível básico, e constatamos que, na sua quase totalidade, são encontrados na literatura pianística moderna e contemporânea deste nível de dificuldade (USZLER, 1995, p. 214-215): - legato e stacato na posição de cinco dedos, com extensão para o intervalo de sexta, e com mãos alternadas;

Ex. 5 - Leo Kraft , The otter, cc.1-4.

Page 92: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

92

- notas duplas simples (segundas, terças, quintas e sextas);

Ex. 6 - Guerra-Peixe, Minúscula IV, 3º mvto - Caipira, cc.1-4.

- diversidade nos estilos de acompanhamento;

Ex. 7 - Camargo Guarnieri, Valsinha (No.6 da série dos Curumins), cc.1-4.

Ex. 8 - Villa-Lobos, Brinquedo de roda, No. 3 - Os três cavalheirozinhos, cc.1-3.

Page 93: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

93

- tríades e inversões tocadas em bloco e em acordes quebrados;

Ex. 9 - Kabalevsky, 24 Pequenas peças, No.18 - Galope, cc.1-4.

Ex. 10 - Prokofiev, Musique d’enfant, No.12 - Sur les près la lune se promène, cc.1-5.

- movimento relacionado a fraseados e ligaduras;

Ex. 11 - Stravinsky, Os cinco dedos, No.1 - Andantino, cc. 1-5.

Page 94: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

94

- deslocamento lateral no teclado;

Ex. 12 - Schnittke, Kleine klavierstücke, Nas montanhas, cc.1-5.

- cruzamento de mãos;

Ex. 13 - Almeida Prado, Kinderszenen, No. 8, O sapinho de mola, cc.1-4.

- experiência com níveis básicos de dinâmica (de piano a forte) que de maneira geral tendem a alcançar maior amplitude, precisão e sutilezas no século XX (HEILES, 1996, p. 244); - experiência com crescendo, decrescendo, ritardando, a tempo, fermata; - uso do pedal;

Ex. 14 - Almeida Prado, Kinderszenen, No.14 - Os peixinhos no aquário, cc.1-5.

Page 95: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

95

- independência entre as mãos (dinâmicas e articulação);

Ex. 15 - Cláudio Santoro, Peças infantis, No.VIII - Acalanto da boneca, cc. 1-4.

Ex. 16 - Emma Lou Diemer, Clusters and dots, cc. 1-2.

Page 96: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

96

- passagem do polegar;

Ex. 17 - Camargo Guarnieri - Valsa No. 2 (da Série dos Curumins), cc.1-6.

- escalas maiores, com padrões distintos dos tradicionais.

Ex. 18 - Boris Blacher, Sonatina, cc. 1-2.

Page 97: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

97

3 - Elementos rítmicos A literatura pianística do século XX apresenta também vários diferenciais, sendo seus elementos tratados com um grau maior de detalhamento, complexidade e inserção em novos contextos. Ao classificar os elementos do repertório de ensino na literatura pianística do século XX, Ellen Thompson discute a variedade de elementos relativos ao ritmo: acentos deslocados, métricas assimétricas, métricas alternadas e mudanças métricas, ritmos prosódicos, polimetria, ostinatos, pedais, ritmos pulsantes1 (THOMPSON, 1976). Convém desmembrar esta classificação, para um melhor entendimento da seqüência pedagógica de aprendizado dos elementos rítmicos: - ritmos pulsantes (relacionados na maioria das vezes a ostinatos);

Ex. 19 - Ross Lee Finney, 32 Piano games, No.31, Arapaho, cc.1-4. - síncopes (acentos deslocados), que podem acontecer de forma regular,

Ex. 20 - Matyas Seiber, Rhythmische studien No.3, cc.5-8.

ou irregular:

1Este livro não contempla a literatura pianística do último quarto de século, mas ainda assim se constitui num dos únicos materiais bibliográficos que trata do assunto em detalhes.

Page 98: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

98

Ex. 21 - Guerra-Peixe, Suite infantil No. 3, Frevo, cc. 7-11.

- métricas assimétricas regulares;

Ex. 22 - Widmer, Ludus brasiliensis, vol. 2, No. 63 - Azougue, cc.3-6.

- mudanças métricas na sub-divisão do pulso apresentada por GARSCIA (1976) nesta seqüência: a) alternância das mãos;

Ex. 23 - Garscia, Teasers, Young drummer, cc.1-4.

Page 99: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

99

b) numa mesma mão;

Ex. 24 - Garscia, Teasers, Kite, cc.1-4.

c) simultaneamente;

Ex. 25 - Garscia, Teasers, Fountain, cc. 3-6.

- mudança métrica na fórmula de compasso:

Ex. 26 - Guerra-Peixe, Minúsculas V , 1º mvto - Canto negro, cc.1-5.

Page 100: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

100

- mudanças métricas combinadas a métricas irregulares:

Ex. 27 - Almeida Prado, Cartilha rítmica , vol.1, No. 1 - Ciranda, cc. 1-5.

- polimetria na sub-divisão do pulso e na organização dos compassos, em passagens simples:

Ex. 28 - Tcherepnin, Chimes , cc.17-19.

- ou complexos;

Ex. 29 - Stravinsky, Os cinco dedos, No. 6 - Lento, cc. 1-7.

Page 101: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

101

Ex. 30 - Seiber, Estudo rítmico No. 2, Taktwechsel, cc.1-4. Podemos encontrar também peças que trabalham a diversidade rítmica dissociada do contorno melódico:

Ex. 31 - Finney, 32 piano games, No. 11, 3 White-note clusters, high and low, cc.1-4.

Esta autonomia rítmica, característica de muitas obras contemporâneas, tem utilidade pedagógica no desenvolvimento da precisão métrica e rítmica, e também na percepção da importância do fenômeno. Em todos estes tipos de complexidades rítmicas, se faz imprescindível a constância e precisão exata da menor unidade métrica comum e constante. Por exemplo, na peça Jangada de Widmer, o domínio da regularidade absoluta da colcheia é indispensável para que o aluno sinta o balanço assimétrico de 4+3.

Ex. 32 - Widmer, Ludus Brasiliensis, vol. 2, No.91 - Jangada, cc.1-4.

Page 102: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

102

Quanto à interpretação de métricas assimétricas, BARRAUD (1968, p.77) comenta:

um intérprete não prevenido que se encontre diante dessa espécie de aventura não tem outra saída a não ser a de contar mentalmente o número de semicolcheias representadas por cada uma dessas semínimas, a fim de dar a duração correta à semínima que contém apenas três delas ou que, ao contrário, contém cinco.(...) Mas na prática, acontece de intérpretes treinados traduzirem instantaneamente – numa duração rigorosamente exata – o sinal através do qual o compositor determinou o prolongamento ou a abreviação deste ou daquele valor.

Em outras palavras, um intérprete experiente sentiria a proporção de agrupamentos de valores distintos (como por exemplo 4+3, ou 5+1+2) diretamente pelos valores totais dos agrupamentos (4, 3, 5, 1, 2), sem precisar se remeter, por exemplo, a cada uma das quatro sub-divisões no primeiro agrupamento. A princípio, esta afirmação parece um tanto utópica, mas temos constatado que através da familiarização e do trabalho consciente com ritmos assimétricos, gradualmente se desenvolve esta capacidade descrita por Barraud; provavelmente este processo é melhor assimilado por alunos-intérpretes cujo contato com este tipo de escrita ocorre desde o início do seu estudo. Paralelamente, na literatura pianística do século XX encontramos o retorno à uma escrita de padrões rítmicos simplificados, não-acentuados, ou ainda com o uso do ritmo prosódico do cantochão; a complexidade pode ser mais acentuada se forem utilizados variedade de valores, pois o entendimento da proporção deve permanecer clara (THOMPSON, p. 50).

Ex. 33 - Ross Lee Finney, 32 Piano games, No. 32 -Winter, 1º sistema.

Sugerimos que alunos de nível adiantado experimentem a complexidade rítmica em obras de grau intermediário de dificuldade técnica, para posteriormente abordar as obras de nível avançado do repertório contemporâneo, visto que um número significativo delas apresentam métricas diabólicas! (vide as obras de compositores como Elliott Carter, Gyorgy Ligeti, Stockhausen e, principalmente, Brian Ferneyhough). Não entendemos todos estes elementos de variedade métrica e rítmica como inovações da música do século XX, mas como resultado de uma continuidade de um processo. Sabemos, por exemplo, que a métrica prosódica tem origem no cantochão e que Bach já se utilizava de hemíolas e polimetrias, assim como Schumann e Brahms fizeram uso intenso de complexidades métricas. No entanto, estes elementos ocorrem com uma freqüência bem mais elevada e em maior grau de elaboração no repertório do século XX, em literatura dos vários níveis de dificuldade. Seu estudo em peças acessíveis para o

Page 103: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

103

aluno de nível básico pode ser de extrema valia, e até mesmo ajudar na precisão rítmica do repertório de outros períodos. 4 - Elementos timbrísticos Um elemento também bastante explorado na música do século XX é o potencial tímbrico do piano, com usos inovadores de pedal, pedal de dedo, clusters, uso do interior do piano, e efeitos sonoros como glissandos e harmônicos. A literatura pianística contemporânea do século XX reúne vários destes efeitos em peças acessíveis ao aluno de nível básico/intermediário:

Ex. 34 - Schnitke, Kleine klavierstücke, Children’s Piece, cc. 7-13, com efeito de pedal de dedo.

Ex. 35 - Almeida Prado: Kinderszenen No.1-3: Aninha faz sua bonequinha naná, cc. 1-3.

Ex. 36 - Lajos Papp, Forte-piano, cc 1-6,com efeito de ressonância com notas presas.

Page 104: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

104

Alguns procedimentos de exploração tímbrica resultam em exigências de habilidades motoras, como por exemplo o uso de todos os registros do instrumento, incomum na literatura dos períodos anteriores neste nível de dificuldade.

Ex. 37 - Mahle, Sete peças para uma e duas notas, No.1, cc. 1-3.

Kurtág, em seu interessante método Játékok, incentiva a exploração de procedimentos como uso de clusters de palma, de braço, glissandos e uso do interior do teclado desde o início do ensino (KURTÁG, 1979). (Um encarte, que acompanha cada um dos volumes, fornece uma bula da notação utilizada.)

Ex. 38 - Kurtág, Játékok, vol. 1, The stone-frog Crawled Along... cc. 1-3.

Ex. 39 - Kurtág, Játékok, vol. 1, Sleepily, 1º sistema.

Page 105: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

105

Esta busca tímbrica pode antecipar um desenvolvimento e um refinamento do ouvido interno, o que sem dúvida será saudável para o estudo de todos os estilos. Afinal, uma das características pelas quais se destacam os melhores instrumentistas é uma paleta variada de timbres e sonoridades. 5 - Desenvolvimento da Musicalidade Um elemento marcante da música do século XX é o incentivo à criatividade do intérprete, que pode acontecer de várias maneiras: - na escolha por um acidente ou não numa nota:

Ex. 40 - Henrique Morozowicz, Primeiro caderno de Karina, No.6 - Terezinha de Jesus, cc.8-10. - na escolha do número de repetições de um trecho:

Ex. 41 - Almeida Prado, Kinderzsenen, No. 16 - A caixinha de música, cc. 10-13.

Page 106: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

106

- na maneira de tocar uma série de clusters em notas brancas (inicialmente sem definição exata de valores de duração e, a seguir, sem definição de alturas):

Ex. 42 - Ross Lee Finney, 32 Piano games, No. 22 - Black notes and white notes, 1º sistema. - na maneira de utilizar livremente um grupo de notas durante um período de tempo determinado:

Ex. 43 - Ross Lee Finney, 32 Piano games, No.30 - Mobile, 1º sistema. - transformando um tema (ver Ross Lee Finney, 32 Piano games, No. 13 - Mirror mimic) -improvisando uma melodia sobre um ritmo dado;

Page 107: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

107

** chaves horizontais: improvisar a melodia (ou acordes)

Exemplo 44: Widmer, Ludus brasiliensis, vol.2, No. 14 - Improvisação, cc. 3-8.

- improvisando com liberdade melódica e rítmica simultaneamente.

Mesmo com relação ao Mikrokosmos, devemos lembrar no Prefácio desta coleção, o compositor sugere que as peças iniciais podem acomodar diferentes andamentos e dinâmicas. Bártok recomendava também a transposição das peças mais simples para outras tonalidades ou modos, assim como a transcrição de peças da coleção para dois pianos (SUCHOFF, 1971, p. 12). Embora a prática de improvisação não seja comum no dia-a-dia de muitos docentes, podemos encontrar referências muito positivas, como por exemplo lembranças do pianista russo Heinrich Neuhaus (1888-1964) de sua infância, relatando que adorava brincar ao piano, improvisando “adagios solenes” ou “um presto furioso”, “atravessando ruas desertas seguido por cães muito brabos” (NEUHAUS, 1971, p.24). Sugerimos que o professor siga improvisações dirigidas. WIDMER (1966, v.1, p.3), por exemplo é muito claro em seu prefácio, onde explica como devem ser abordadas as improvisações inseridas no Ludus Brasiliensis (o que pode ser emprestado como regra para improvisação com outros materiais):

. . . as peças intituladas ‘improvisação’ deverão ser executadas da seguinte maneira: 1) verifique os elementos exigidos e prepare-se em conformidade com isto; 2) toque, improvisando espontaneamente, sem premeditações; 3) nunca fixe ou anote a improvisação; 4) caso queira repetir, cuide que a improvisação seja cada vez diferente. Caso não consiga improvisar na primeira tentativa, não desanime, experimente mais tarde novamente. Observação para o professor: não corrija a escolha de notas, acordes ou ritmos do estudante (mesmo se tratando de acordes ’absurdos’ por exemplo). Ritmos prescritos devem ser obedecidos rigorosamente. Melodias ou acordes exigidos no decorrer da peça poderão ocasionalmente ser alterados em conseqüência da improvisação precedente.

E qual seria a utilidade deste tipo de prática para um aluno que se prepara para ser um músico erudito? Contribuiria para que o aluno-intérprete desenvolvesse uma intimidade e desenvoltura com seu instrumento, uma postura interpretativa criativa e rica em paleta de sonoridades (que se desenvolve através de uma busca e uma exploração própria e

Page 108: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

108

individual), um estudo dinâmico, com uma atitude constante de experimentações com andamentos, toques, dinâmicas, nuanças, timbres, uso do pedal, articulações, em busca de soluções ao mesmo tempo individuais e estilisticamente corretas. Para questões de estudo, certa flexibilidade pode ser muito útil como, por exemplo, tocar um tema muito rápido bem mais lento e vice-versa, ou tocar diferentes vozes com uma distância maior de registros, ou com aumento na diferenciação de articulações para melhor percepção e entendimento de estruturas polifônicas. Por outro lado, uma interpretação criativa muitas vezes pode levar a uma concepção deturpada da obra musical, perturbando o equilíbrio entre criatividade e fidelidade ao texto. Isto pode ser evitado através do conhecimento vasto de repertório, o que leva a um entendimento da linguagem e de estilo.2 Como bem dizia Schumann: “a primeira qualidade da interpretação é a precisão, ou seja, a exata observância do texto, que põe em relevo a mais íntima intenção do autor.” Um outro fator de grande vantagem para o aluno que tem contato com a linguagem musical do século XX e contemporânea desde o início de sua formação é a expansão da sua paleta de afetos musicais. Uma das grandes dificuldades dos pianistas frente a este repertório é a concepção do afeto das obras de acordo com a sua contemporaneidade, sem ter de seguir a estética romântica do século precedente. Este fato é muito bem definido por Howard Rovics: “Um enfoque tradicional de tocar ‘muito expressivamente’ imporia um anacronismo estilístico deturpado numa sintaxe musical distintamente não-tradicional” (ROVICS, 1970, p. 16). Peças com idéias extramusicais podem auxiliar e incentivar nesta busca de afetos. Exemplificamos com algumas das peças da coleção Kinderzcenen (1984) de Almeida Prado, onde as peças trazem títulos e pequenas ilustrações, cujas idéias são genialmente transformadas em linguagem musical pelo compositor: A cachorrinha Dadá (No. 5) é mimada e dengosa, com um latido agudo; O gatinho no telhado (No.13) é leve, sorrateiro, por vezes brincalhão e inesperado; Ikon, o cachorrão (No.15) é bonachão, grande e gordo; O palhacinho de corda (No.17) é engraçado e desajeitado; Os anjinhos pintam no céu o arco-íris (No. 18) é uma peça de sonoridade etérea, facilmente compreensível pela clara alusão que traz; A caixinha de música tem uma sonoridade repetitiva e maquinal. O professor tem aqui à sua disposição uma riqueza de elementos musicais para estimular a imaginação sonora do aluno. Muitas peças contemporâneas são por outro lado áridas, mas não seria a própria busca do ‘árido’ um aprendizado? 6 -Técnica Com freqüência, alunos e professores se sentem amedrontados pela literatura pianística mais moderna, com idéias pré-estabelecidas de que é composta de peças técnica e musicalmente inacessíveis. Ellen THOMPSON (1976, p.17) sugere que as dificuldades da abordagem do repertório moderno e contemporâneo estejam relacionadas com dificuldades técnicas:

2 Sobre o assunto fidelidade ao texto musical x liberdades interpretativas existe uma bibliografia vasta disponível, da qual citamos os diversos artigos do volume The practice of performance, ed. John Rink, Cambridge University Press, 1995.

Page 109: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

109

A leitura da música contemporânea será uma experiência negativa ou desastrosa se não for acompanhada ou precedida de conhecimento acadêmico do seu conteúdo teórico e exercícios técnicos para a mão. Domínio das escalas, acordes quebrados e arpejos assim como problemas técnicos contidos em estudos de Cramer, Czerny e Clementi, que habilitam o pianista a tocar a música dos séculos passados de sonoridade familiar, se mostra inadequada para as exigências da música contemporânea. Os dedos devem se ajustar a novas fôrmas como clusters, modelos escalares quartais, modais ou sintéticos, enquanto a mente e os olhos devem absorver grupos de notas largamente espaçados, ritmos intrincados, mudanças métricas, um labirinto de acidentes etc.

Habilidades adquiridas no regime técnico tradicional são utilizadas em muitas peças da literatura contemporânea, podendo o contexto ser diferenciado. No Mikrokosmos de Béla Bártok parte da posição tradicional de cinco dedos em teclas brancas adjacentes; o que muda são as estruturas de frase, os contornos melódicos, as relações intervalares entre as vozes, e/ou a rítmica. Dispondo de maior liberdade quanto ao uso de dissonâncias e à formação de acordes, alguns autores modernos partem da topografia do teclado e da conformação da mão para encontrar novas combinações de sons. Por exemplo, em Thumb Tricks de Ross Lee Finney, a motricidade dos ostinatos é facilitada com a colocação previlegiada do polegar sempre nas teclas brancas, alternando com intervalos de segundas em teclas pretas tocadas com os dedos 2 e 3; a dificuldade que poderá surgir será relativa à falta de imagem sonora da peça, mas não relativa a fôrmas incômodas ou tecnicamente complicadas.

Ex. 45 - Ross Lee Finney, 32 Piano games, No.21 -Thumb tricks, cc. 5-8.

Outro exemplo está na peça Cânone de Widmer (No. 68), onde a fôrma de cada mão tem os dedos extremos (1 e 5) nas notas Fá e Si, e os dedos internos da mão (2, 3, 4) no grupo de três notas de teclas pretas entre este intervalo (Fá #, Sol#, Lá #). Por um lado, a motricidade é facilitada; por outro, a leitura de armaduras distintas e a sonoridade bimodal exigem um maior desenvolvimento da leitura e da percepção auditiva, envolvendo intervalos dissonantes.

Page 110: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

110

Ex. 46 - Widmer, Ludus brasiliensis, vol. 2, No. 68 - Cânone, cc. 1-4. Há sim o uso de fôrmas de acordes incomuns, escalas sintéticas, clusters (de mão, de braço), mas principalmente em peças de nível mais adiantado. Mas se os exercícios técnicos tradidicionais não abarcam todas as fôrmas da mão e todos os movimentos a serem utilizados, por que não criar exercícios específicos que preparem para as peças com tais elementos? As questões técnicas do repertório contemporâneo devem ser entendidas como um desenvolvimento e uma continuidade dos períodos anteriores. Charles Rosen, no seu artigo “Brahms: classicism and the inspiration of akwardness”, comenta sobre o característico uso de conformações da mão incômodas por este compositor. (ROSEN, 2000, pp. 146-161) Devemos lembrar também que, em métodos de técnica pianística tradicionais como CORTOT (ver p.39, No. 72), já encontramos alguns exercícios utilizando fôrmas que não as tríades; Liszt já propunha exercícios técnicos com trítonos paralelos, por exemplo; e principalmente os 51 exercícios de Brahms (estes de nível avançado) trabalham com muitas fôrmas que não as tradicionais. De maneira geral, a preocupação dos compositores do século XX não é com o virtuosismo do instrumento. As dificuldades técnicas encontradas são decorrentes de outros propósitos, como, principalmente, a exploração de possibilidades tímbricas do instrumento. O que esta literatura pianística exige é certamente mais flexibilidade da mão, sem descartar o aprimoramento técnico tradicional (sem o qual nenhum repertório de nenhum período poderia ser abordado com sucesso). CANADAY (1974, p.5) traduz estas idéias de forma clara: “o sistema maior-menor não deve ser ignorado como uma ferramenta de ensino, mas deve ser repassado como um sistema que pode ser transformado, expandido, e às vezes, negado”. 7 - Conclusão O repertório pianístico do século XX a nível de dificuldade básico e intermediário não deve substituir o repertório mais tradicional; ao invés disto, deve complementá-lo, seja reforçando e revendo elementos semelhantes (que vistos num outro contexto, enriquecem seu entendimento), oferecendo elementos e habilidades diferenciais a serem desenvolvidas, ou mesmo facilitando o entendimento de conceitos através da comparação com estruturas contrastantes (frases assimétricas versus simétricas do repertório tradicional, métrica simétrica versus assimétrica). A proporção deste repertório em relação a obras de outros períodos vai depender também de cada aluno, lembrando que todos devem ser expostos aos mais variados estilos e linguagens. Vários fatores devem

Page 111: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

111

ser considerados na escolha do repertório: os objetivos de cada aluno no estudo do instrumento (um aluno de composição tem interesses diversos dos de um aluno de graduação em piano, por exemplo), a aceitação por parte do aluno para sonoridades contemporâneas e, até mesmo, a possibilidade do aluno sentir-se mais próximo à música erudita através de um repertório do seu tempo. A música moderna e contemporânea deve ser vista antes como uma continuidade ao invés de uma ruptura com a música dos períodos precedentes. Para podermos ensinar a música para piano do século XX, necessitamos de familiaridade com a música dos períodos anteriores, e também com compositores que vão desde os já tradicionais Debussy, Ravel, Bartók, Stravinsky, Hindemith e Prokofiev até os menos executados nas escolas de música como Berg, Schönberg, Webern, Ives, Copland, Boulez, Carter e Ligeti. Depende do professor uma atitude constante de curiosidade, pesquisa e experimentação quanto a este imenso repertório. GORDON (p.294) comenta sobre como sobre os aspectos pedagógicos deste ainda escasso repertório:

Mesmo os escritos do século XX tendem a se referir ao século XIX. Embora a tecnologia possa empregar freqüentemente termos fisiológicos, psicológicos e até eletrônicos, o público a que esta metodologia se dirige ainda consiste na sua maioria de músicos que querem tocar a música do século XIX, de caráter virtuoso. Muito poucos pedagogos tem se ocupado da música para piano dos últimos sessenta anos. A defasagem de uma a duas gerações pelas quais os pedagogos seguem a literatura musical parecem estar se alargando, porque o público e mesmo os músicos tem sido lentos na aceitação das novas definições estéticas inseridas no pensamento musical dos compositores do século XX.

A iniciativa deve portanto partir do professor, que com base na sua experiência de ensino com materiais tradicionais, e tendo curiosidade e disposição para leitura e experimentação com novos materiais, poderá descobrir o prazer de explorar uma nova literatura de ensino. Não faz parte do nosso propósito aqui listar compositores e obras, o que já pode ser encontrado em outros materiais bibliográficos, tanto em guias de autores individuais (BUTTLER, 1973; GANDELMAN, 1997, REID, 1996; THOMPSON, 1976) quanto de coleções (Das Neue Klavierbuch, 1968; Contemporary music and the pianist, 1976; Contemporary piano literature, 2000; Masters of our days, s.d.; Mosaics, 1973). Além do mais, esta lista seria muito extensa e ao mesmo tempo sempre incompleta; ao invés disto, é aconselhável que cada professor faça e constantemente atualize a sua própria seleção de repertório e principalmente, selecione adequadamente o material para cada aluno. Tomemos emprestado as palavras do pianista André Watts (USZLER, 1995, p. ix). como missão do nosso cotidiano: “quanto mais aprendemos, mais sabemos, mais podemos ensinar; e, quanto mais ensinamos, mais aprendemos”. Este é o verdadeiro prazer e valor do ensino.

Page 112: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

112

Referências bibliográficas: BARRAUD, Henry. Para compreender as músicas de hoje. São Paulo: Edusp, 1968. BUTTLER, Stanley. Guide to the best in contemporary piano music. Mentuchen, Nova Jersey: The Scarecrow Press, 1973. CANADAY, ed. Das Neue Klavierbuch - Leichte Klavierstücke zeitgenössischer Komponisten. Mainz, Alemanha: Schott, 1968. CLARK, Frances; DELEEUW, Adele; GOSS, eds. Contemporary piano literature. 6 vols. Miami: Warner Bros Publications, 2000. CONTEMPORARY MUSIC AND THE PIANIST: a guide of resources and materials. Van Nuys, California: Alfred, 1976. CORTOT, Alfred. Principî razionali della tecnica pianistica. Giuseppi Piccioli, trad. Milão: Suvini Zerboni, s.d. GORDON, Stewart. "Influences on Peadgogy". In The well-tempered keyboard teacher, ed. M. Uszler, S. Gordon, E. Mach. Nova York: Schirmer Books, 1995, pp. 293-297. HEILES, William. "An approach to twentieth-century music". In Creative piano teaching, ed. J. Like, Y. Enoch, G. Haydon, 3º ed. Champaign, Illinois: Stipes Publishing, 1996, pp. 251-259. GANDELMAN, Salomea, 36 compositores brasileiros - obras para piano (1950/1988). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. MILLER, Marguerite, ed. Mosaics. Orem, UT, EUA: Sonos Music Resources, 1973. NEUHAUS, Heinrich. L’art du piano. Fondettes Luynes, França: Éditions Van de Velde, 1971. REID, Alexander. “Essential twentieth-century repertoire for the secondary student". In Creative piano teaching, ed. J. Like, Y. Enoch, G. Haydon, 3º ed. Champaign, Illinois: Stipes Publishing, 1996, pp.251-259. ROSEN, Charles, “Brahms: classicism and the inspiration of awkwardness". In Critical Entertainments, Londres/Cambridge: 2000, pp. 146-161. ROVICS, Howard. “The piano in contemporary chamber music”. The piano quarterly, No. 70 Winter 1969/70, p. 16-25. SAMINSKY, FREED, eds. Masters of our days. Nova York: Carl Fischer, s.d. SUCHOFF, Benjamin. Guide to Bártok´s Mikrokosmos. Ed. revisada. Londres: Boosey & Hawkes, 1971. THOMPSON, Ellen. Teaching and understanding contemporary piano music. San Diego, California: Kjos West, 1976. UZSLER, Marienne. "Technique and the intermediate student". In The well-tempered keyboard teacher, ed. M. Uszler, S. Gordon, E. Mach. Nova York: Schirmer Books, 1995, pp. 213-224. WATTS, André. "Foreword". In The well-tempered keyboard teacher, ed. M. Uszler, S. Gordon, E. Mach. Nova York: Schirmer Books, 1995, pp. ix-x.

Page 113: (Per Musi - UFMG) 9

BARANCOSKI, I. A literatura pianística do século XX para o ensino do piano... Per Musi, v.9, 2004 p.89-113.

113

Partituras consultadas: ALMEIDA PRADO. Kinderszenen. Darmstadt, Alemanha: Tonos, 1984. __________. Cartilha rítmica. Manuscrito depositado no CDMC, Campinas. CANADAY, Alice. Contemporary music & the pianist. Van Nuys, California, EUA: Alfred, 1974. FINNEY, Ross Lee. 32 piano games. Nova York / Londres: Peters, 1969. GARSCIA, Janina. Teasers for piano. Krakovia, Polonia: PMW, 1976. GUARNIERI, Camargo. Valsa (No. 2 da série dos Curumins) e Valsinha (No. 6 da série dos Curumins). São Paulo/ Rio de Janeiro: Vitale, 1981. GUERRA-PEIXE, César. Minúsculas. São Paulo / Rio de Janeiro: Vitale, 1981. __________. IIIª Suite infantil. Rio de Janeiro: Arthur Napoleão, 1973. KABALEVSKY, Dmitry. 24 Pequenas peças, op. 39. Londres: Boosey & Hawkes, s.d. KURTÁG, György. Játekok - Spiele games. vols 1 e 2. Budapeste: Editio Musica Budapest, 1979. LUTOSLAWSKY, Witold. Melodie ludowe - Folk melodien. Krakovia, Polônia: PWM, 1975. MAHLE, Ernst. Sete peças para uma e duas notas. São Paulo: Ricordi, s.d. MOROZOWICZ, Henrique de Curitiba. Primeiro caderno de Karina: 12 Canções folclóricas em arranjos simples. Manuscrito. São Paulo: Serviço de difusão de partituras - Documentação Musical - USP. PROKOFIEV, Sergei. Musiques d’enfants. Londres: Boosey & Hawkes. SANTORO, Cláudio. Peças Infantis para piano. São Paulo: Ricordi, Rio de Janeiro, s.d. SCHNITTKE, Alfred. Kleine Klavierstücke - Little piano pieces. Hamburgo: Sikorski, 1999. SEIBER, Mathias. Estudos rítmicos. Mainz, Alemanha: Schott, 1961. STRAVINSKY, Igor. Les cinq doigts. Buenos Aires: Ricordi Americana, s.d. VILLA-LOBOS, Heitor. Brinquedo de roda - No. 3 Os três cavalheirosinhos. São Paulo / Rio de Janeiro: Vitale,1940. WIDMER, Ernst. Ludus Brasiliensis, vols 1 e 2. São Paulo: Ricordi, 1966. Ingrid Barancoski é Mestre pela Eastern Illinois University (1992) e Doutora em Piano pela Universidade do Arizona (1997). Atua como docente no Instituto Villa-Lobos e no Programa de Pós-Graduação em Música da Uni-Rio, além de docência em festivais de música como o Festival de Artes da Universidade Federal do Paraná, a Oficina de Música de Curitiba e o Festival de Música de Câmera de Curitiba. Como pesquisadora tem diversos artigos publicados e comunicações apresentadas em congressos. Suas atividades de concertista incluem concertos como solista e camerista, com um vasto repertório abrangendo todos os estilos e períodos musicais, com especial interesse para a música contemporânea. Tem sido responsável por estréias mundiais e nacionais de obras de compositores como Almeida Prado, Dawid Korenchendler, Roberto Victorio e George Walker.

Page 114: (Per Musi - UFMG) 9

114

DEDUQUE, Norton. Sobre Harmonia de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan - jun / 2004. p. 114-123

Sobre Harmonia de Arnold Schoenberg. Tradução de Marden Maluf,São Paulo: Editora da UNESP, 1999.

Norton Dudeque (UFPr)e-mail: [email protected]

[email protected]

I. Contexto históricoUm livro como o Harmonielehre de Arnold Schoenberg tornou-se um dos clássicos, já faz décadas,sobre harmonia tonal e em especial sobre o pensamento deste grande compositor. Existem inúmerastraduções para outras línguas, o que só reforça a sua importância. De todas essas traduções,provavelmente a primeira a ter sido tentada foi a do compositor brasileiro Alberto Nepomuceno,quem em 1916, apenas cinco anos após a primeira edição do Harmonielehre, iniciou um trabalhode tradução deste livro. Infelizmente, a tradução de Nepomuceno ficou inacabada.1 Após décadasde espera chega-nos a tradução do Harmonielehre, realizada por Marden Maluf.

A tradução do Harmonielehre de Arnold Schoenberg é apresentada em um volume, muito bemproduzido. Tanto o tradutor quanto a editora estão de parabéns pelo excelente trabalho realizado.Além do texto de Schoenberg, encontramos uma apresentação assinada por Flo Menezes, eum prefácio assinado pelo tradutor.

Neste prefácio, o Sr. Maluf argumenta sobre o porque da tradução de Harmonielehre comoHarmonia. As razões parecem ser mais práticas do que filológicas. O título do livro, Harmonie +Lehre, se refere ao uso comum, e que demonstra uma tradição, na Alemanha e na Áustria, paraobras que tratam de disciplinas pertencentes à teoria musical. Esta tradição, que remonta ao finalséculo XIX e início do XX, refere-se aos manuais práticos de música.2 Porém, como o tradutor

RESENHAS

1 Vide mais detalhes no item IV adiante, sobre a tradução de Nepomuceno.2 Devemos lembrar que muitos destes manuais não eram somente pequenos livros cheios de regras, mas

muitos eram grandes tratados sobre o pensamento de importantes musicólogos, teóricos e compositores.Podemos citar os seguintes: Georg Capellen, Fortschrittliche Harmonie- und Melodielehre (Leipzig, 1908);August Halm, Harmonielehre (Leipzig, 1905); Salomon Jadassohn, Lehrbuch der Harmonie (Leipzig, 1883);Rudolf Louis e Ludwig Thuille, Harmonielehre (Stuttgart, 1907); Karl Mayrberger, Lehrbuch der musikalischenHarmonik (Leipzig, 1878); Max Reger, Beiträge zur Modulationslehre (Leipzig, 1903); Hugo Riemann, Handbuchder Harmonielehre (Leipzig, 1853) e Vereinfachte Harmonielehre (Londres, 1893); Heinrich Schenker,Harmonielehre (Viena, 1906); Bernhard Ziehn, Harmonie- und Modulationslehre (Berlim, 1887).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música - v. 9, 129 p, jan - jun, 2004.

Page 115: (Per Musi - UFMG) 9

115

DEDUQUE, Norton. Sobre Harmonia de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan - jun / 2004. p. 114-123

observa, o termo Lehre também pode se referir a um conjunto maior de saber e conhecimentosobre o assunto abordado. Assim, o Sr. Maluf optou por excluir o termo referente à Lehre do títulodo livro. Mas, talvez, a maior razão para tal abreviação do título seja o fato de que o Harmonielehrede Schoenberg não é uma manual de harmonia no sentido comum. Esta é uma obra extremamentecomplexa e de difícil leitura e compreensão. Prova mais cabal disto é o pequeno guia práticoelaborado por Erwin Stein em 1923 e intitulado Praktischer Leitfaden zu SchönbergsHarmonielehre: ein Hilfsbuch für Lehrer und Schüler. Por um lado, este pequeno guia lista emforma de sumário todos os pontos práticos para a instrução do aluno, mas por outro, eliminareferências às passagens que são puramente especulativas e polêmicas da obra. No meu pontode vista, estas últimas é que caracterizam o Harmonielehre como uma grande obra da teoriamusical, tanto é assim, que o próprio Schoenberg comenta ironicamente que o guia de Steinpermite que o leitor não leia o conteúdo especulativo e que esqueça três quartos do seu livro(STEIN, 1923, p. 1).3 Naturalmente, o conteúdo especulativo e polêmico do seu livro é tãoimportante, senão mais, que a parte puramente prática.

De minha parte, eu estaria ansiosamente esperando por um prefácio que abordasse um poucoda história deste livro tão importante, e que esclarecesse alguns dos pontos obscuros do textode Schoenberg. A história do Harmonielehre é complexa e pode ser vista de várias maneiras.Primeiramente, o texto do Harmonielehre tem sua origem ligada diretamente à práticapedagógica de Schoenberg, como ele declara já na primeira linha do prefácio à primeira edição:“Este livro, eu o aprendi de meus alunos” (p. 31). É importante lembrarmos que entre os alunosde Schoenberg à época em que o Harmonielehre foi escrito estavam, entre outros, Alban Berg,Anton Webern, Egon Wellesz, e Erwin Stein. Já sabemos que a metodologia empregada naorganização do Harmonielehre é o reflexo da maneira como Schoenberg ensinava seus alunos.Por exemplo, bastaria examinarmos os cadernos de exercícios de Alban Berg da época dosseus estudos com Schoenberg, entre 1904 e 1911, para vermos que harmonia era estudada,em primeiro lugar, com um conteúdo semelhante ao encontrado no Harmonielehre, e emsegundo, o contraponto (HILMAR, 1978, pp. 34–6; HILMAR, 1984, pp. 7–29).

Ademais, existe o aspecto que se refere ao contexto histórico da musicologia e teoria musicalda época. Em 1898, o musicólogo austríaco Guido Adler substituiu Eduard Hanslick naUniversidade de Viena e fundou o Musikwissenschaftliches Institut, que serviu de modelo paravárias escolas de musicologia na época. As palestras proferidas por Adler atraíram muitosestudantes, entre os quais, alunos de Schoenberg, tais como Webern, Wellesz e Pisk.Anteriormente, em 1885, Adler já havia proposto uma tabela na qual dividia a musicologia emhistórica e sistemática (vide Tab.1, à frente). Para a primeira, Adler enfatizava o estudo dapaleografia musical, categorias históricas (incluindo formas musicais), práticas interpretativase a história dos instrumentos musicais. Para a musicologia sistemática, Adler pregava que oestudo da harmonia, ritmo, melodia, estética musical, pedagogia musical e etnomusicologiaeram essenciais. O objetivo deste método científico era o de identificar o estilo, que para Adler,era o centro da compreensão da arte. Ademais, durante 1911–12, Schoenberg manteve contatocom Adler quando este encomendou a realização do baixo contínuo do Divertimento de Johann

3 Schoenberg escreveu no prefácio deste guia: “Meine Harmonielehre ist selbstverständlich viel zu lang. Wennihr Autor – das noch lebende Hindernis für vernünftige Kürzungen – einmal aus dem Weg gegangen sein wird,muß sicher drei Viertel des Text es daran glauben” (STEIN, 1923, p. 1).

Page 116: (Per Musi - UFMG) 9

116

DEDUQUE, Norton. Sobre Harmonia de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan - jun / 2004. p. 114-123

Christoph Mann [Monn], como parte do volume 39, da coleção Denkmäler der TonkunstÖsterreich, que Adler editou de 1894 a 1938.

Na Alemanha, Hugo Riemann abordou nos seus escritos praticamente todos os campos definidosna tabela de Adler. Riemann tinha como um dos seus objetivos principais a explicação de comoouvir musicalmente. Para tal, ele se baseava em 3 princípios científicos: um princípio acústico,um fisiológico e um psicológico. Da acústica, Riemann formulou sua idéia de Klang (som musical)como seu material primário, isto é, as tríades maiores e menores eram derivadas de um somfundamental da série harmônica. Da fisiologia, Riemann argumentava que o ouvido mediavaentre a sensação física e a escuta cognitiva da mente. Finalmente, da psicologia, ele adotouuma noção na qual a escuta musical depende de uma lógica musical inerente que determina aevolução da música. Não é de se surpreender que esta base científica adotada por Riemanncorrespondesse às disciplinas auxiliares para a musicologia sistemática estabelecida por Adler.(Tab 1 na página seguinte)

Em Viena, um outro contemporâneo de Schoenberg exercitava suas idéias em publicações:Heinrich Schenker. Schenker tinha como objetivo principal a explicação da estrutura musical,um processo iniciado com a publicação do seu Harmonielehre em 1906, o primeiro de trêsvolumes da obra Neue musikalische Theorien und Phantasien. Além disso, Schenker combatiaveementemente a música moderna da época, o que revelava sua posição ideológica: a visãode que a música tonal, do período de Bach até Beethoven e Brahms, representava o pontoculminante e o fim da evolução da arte musical (vide SCHENKER, 1987, pp. xxi–xxv). Partedeste contexto incluía, para Schenker, a rejeição de outras “teorias da música” contemporâneasàs suas, tais como a fundamentação psico-acústica da teoria de Riemann e os métodoscientíficos empregados por Adler e outros. Naturalmente, Schenker declarava que na sua teoriaresidia a fundamentação para a correta percepção cognitiva das grandes obras musicais.

No meio deste rebuliço de idéias é que se insere o Harmonielehre de Schoenberg, quem, éóbvio, também tinha que defender e expressar suas idéias. Schoenberg rejeitou durante todasua carreira uma posição científica e musicológica para a teoria musical. Basta ler a nota derodapé na página 117, onde ele confessa que jamais leu “uma história da música”. Na mesmanota de rodapé, Schoenberg se refere ao Meyers Konversations–Lexikon, uma enciclopédiado final do século XIX e publicada em Leipzig, onde há inúmeras informações sobre harmoniae teoria musical, e que deve ter servido como fonte de informação sobre o assunto paraSchoenberg. Os artigos sobre teoria musical são de Hugo Riemann e datam de 1891–2.4

Apesar da posição de rejeição à musicologia adotada por Schoenberg, em alguns momentosem seus escritos, ele se aproxima de uma abordagem científica para ensinar ou esclarecer acriação da estrutura musical. Talvez o melhor exemplo deste aspecto encontre-se no manuscritoinacabado conhecido como “Gedanke”.

5 Podemos até argumentar que Schoenberg escreveu

seu Harmonielehre como uma reação intelectual às teorias em voga na Viena da época. O que

4 Vide Meyers Konversations–Lexikon, v. 19 Jahressupplement (1891–2), pp. 645–53.5 Traduzido para o inglês como The Musical Idea and the Logic, Technique, and Art of Its Presentation por

Patricia Carpenter e Severine Neff (New York: Columbia University Press, 1995). Para um resenha desta obra,vide DUDEQUE, 1999, pp. 44–9.

Page 117: (Per Musi - UFMG) 9

117

DEDUQUE, Norton. Sobre Harmonia de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan - jun / 2004. p. 114-123

Tab.

1 –C

lass

ifica

ção

das

Mus

icol

ogia

s H

istó

rica

e S

iste

mát

ica

por

Gui

do A

dler

em

188

5 (T

radu

ção

de N

orto

n D

udeq

ue).

A. P

aleo

gra

fia

mu

sica

l(N

otaç

ões)

.

Mu

sico

log

iaI.

His

tóri

caH

istó

ria d

a m

úsic

a de

aco

rdo

com

a é

poca

, nac

iona

lidad

e,es

tado

, pro

vínc

ia, r

egiã

o, c

idad

e, e

scol

a e

com

posi

tor.

II. S

iste

mát

ica

Est

abel

ecim

ento

dos

prin

cípi

os p

redo

min

ante

s na

s ár

eas

indi

vidu

ais

da m

úsic

a

B. C

ateg

ori

ash

istó

rica

sb

ásic

as(c

lass

ifica

ção

das

form

asm

usic

ais)

.

C. P

rin

cíp

ios

na

sua

suce

ssão

his

tóri

ca.

1. D

e co

mo

este

sse

man

ifest

amna

s ob

ras

deca

da p

erío

do.

2. D

e co

mo

este

ser

am e

xplic

ados

pelo

s te

óric

os d

aép

oca.

3. T

ipos

de

perf

orm

ance

[prá

ticas

inte

rpre

tativ

as].

D. H

istó

ria

do

sin

stru

men

tos

mu

sica

is.

A. A

inve

stig

ação

ees

tab

elec

imen

tod

este

s p

rin

cíp

ios

na:

1. H

arm

on

ia (

aspe

cto

tona

l).

2. R

itm

o (

aspe

cto

tem

pora

l).

3. M

elo

dia

(fu

são

dos

aspe

ctos

tona

l ete

mpo

ral).

B. E

stét

ica

da

sica

.

1. C

ompa

raçã

o e

aval

iaçã

o do

spr

incí

pios

e s

uas

rela

ções

com

oob

jeto

da

perc

epçã

oco

m v

ista

s ao

esta

bele

cim

ento

de

Crit

ério

s pa

ra o

Bel

oM

usic

al.

2. A

s qu

estõ

esco

mpl

exas

, dire

ta o

uin

dire

tam

ente

rela

cion

adas

com

[oas

pect

o] a

cim

a.

C. P

edag

og

iam

usi

cal e

Did

átic

a[m

étod

os d

e en

sino

](d

eriv

ados

de

regr

asco

m p

ropó

sito

spe

dagó

gico

s).

1. T

eoria

mus

ical

e

lem

enta

r.

2. H

arm

onia

.

3. C

ontr

apon

to.

4. C

ompo

siçã

o.

5. In

stru

men

taçã

o.

6. M

étod

os d

e en

sino

[da

prá

tica]

voc

al e

inst

rum

enta

l.

D. [

Etn

o]

Mu

sico

log

ia.

Pes

quis

a e

com

para

ção

com

prop

ósito

sét

nico

s.

Dis

cip

linas

au

xilia

res

da

Mu

sico

log

ia H

istó

rica

:

His

tória

Ger

al c

om p

aleo

graf

ia, c

rono

logi

a.

Dip

lom

acia

, bib

liogr

afia

, bib

liote

cono

mia

e c

atal

ogaç

ão.

H

istó

ria d

a lit

urgi

a.

His

tória

das

art

es c

ênic

as e

dan

ça.

E

stud

os b

iogr

áfic

os d

e m

úsic

os, e

stat

ístic

as s

obre

asso

ciaç

ões

mus

icai

s, in

stitu

içõe

s e

perf

orm

ance

s.

Dis

cip

linas

au

xilia

res

da

Mu

sico

log

ia S

iste

mát

ica:

A

cúst

ica

e m

atem

átic

a.

Fis

iolo

gia

(a s

ensa

ção

do s

om [m

usic

al])

.

Psi

colo

gia

(a c

once

pção

, jul

gam

ento

e p

erce

pção

do

som

[mus

ical

]).

L

ógic

a (o

pen

sam

ento

mus

ical

).

Gra

mát

ica,

mét

rica

e po

étic

a.

Est

étic

a et

c.

Fon

te: A

DLE

R, G

uido

. “U

mfa

ng, M

etho

de u

nd Z

iel d

er M

usik

wis

sens

chaf

t”, V

iert

elja

hrss

chrif

t für

Mus

ikw

isse

nsch

aft,

vol.

I.

Page 118: (Per Musi - UFMG) 9

118

DEDUQUE, Norton. Sobre Harmonia de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan - jun / 2004. p. 114-123

certamente é respaldado pelo conteúdo polêmico de várias passagens no texto. Por exemplo,no capítulo sobre consonâncias e dissonâncias, Schoenberg afirma que a diferença entre essesconceitos é subjetiva e falsa (pp. 58–9). Em outra passagem, Schoenberg declara que “nãoexistem sons estranhos à harmonia, pois harmonia significa simultaneidade sonora” (p. 447) eatravés desta conclusão engaja-se em um debate que gerou uma das maiores polêmicas nateoria musical do século XX: o debate com Schenker sobre a existência ou não de notasestranhas à harmonia. Esses dois exemplos são suficientes para ilustrar o conteúdo polêmicodo Harmonielehre de Schoenberg.

6 Não é à toa que Riemann escreve que a obra de Schoenberg

é uma mistura de teorias antiquadas e derivadas do sistema de Simon Sechter, além de umanegação hiper-moderna de toda teoria musical (RIEMANN, 1922, v. 2/iii, p. 254).

7

Além das polêmicas geradas pelo Harmonielehre, devemos lembrar que, em 1910, Schoenbergpleiteava o cargo de professor (Privatdozent) de teoria musical na K. K. Akademie für Musikund darstellende Kunst em Viena. Não é errôneo supor que um tratado de harmonia do portedo Harmonielehre desse a Schoenberg um respaldo maior no pleito ao cargo. Talvez umaprova disso seja o fato de que Schenker, além de Franz Schreker, também foi sondado paraassumir o cargo, o que deve ter incitado Schoenberg a escrever no seu livro inúmeras passagenscriticando a teoria de Schenker.

8

Me parece que o leitor do Harmonia esperaria encontrar este tipo de informação no prefácio.Aliás, cabe aqui notar que há uma certa inconsistência nas referências onomásticas no decorrerdo texto. Eu suponho que uma tradução do Harmonielehre devesse contemplar um trabalho deinformação sobre o contexto dos diversos assuntos tratados e pessoas referidas no livro. Porexemplo, na página 52, Schoenberg se refere a Richter, que o tradutor esclarece em nota derodapé tratar-se de Ernst F. Richter, autor de Lehrbuch der Harmonie (Leipzig, 1853), um manualde harmonia bastante popular durante a segunda metade do século XIX, e que teve inúmerasreedições na Alemanha. Porém, nas páginas 89 e 91, quando Schoenberg cita Bellermann notexto, o leitor não encontrará nenhuma referência a este senhor. Só para esclarecer, HeinrichBellermann (1832–1903) foi um musicólogo alemão que escreveu um tratado de contrapontoque foi adotado na Universidade de Berlim e pelo próprio Schoenberg nas suas aulas decontraponto, e que, geralmente é mencionado como Der Contrapunkt (1862).

9

Em relação às referências sobre os tópicos tratados, podemos analisar brevemente o queSchoenberg diz a respeito do modo menor. Ele defende que, para se expressar em umatonalidade menor de forma eficaz, deve-se seguir a neutralização das quatro notas variáveisda escala menor melódica (6º e 7º graus) o que determina a condução melódica das vozes.

6 Vide DUNSBY, 1977, pp. 26–33; SIMMS, 1977, pp. 110–24; BRANDA LACERDA, 1995, pp. 65–79.7 Vide RIEMANN, 1922, p. 254; e também o verbete ‘Schönberg, Arnold’ no Riemann Musiklexikon (Leipzig,

1916).8 Vide a correspondência entre Schoenberg e o diretor da Academia, Karl Wiener, datada de 1910, sobre o pleito

de Schoenberg (SCHOENBERG, 1964, pp. 26–30).9 Vide mais adiante a resenha sobre Exercícios Preliminares de Contraponto. Informações sobre Bellermann

não são difíceis de se encontrar, basta consultar o New Grove Dictionary of Music and Musicians, 2a edição de2001, verbete Bellermann.

Page 119: (Per Musi - UFMG) 9

119

DEDUQUE, Norton. Sobre Harmonia de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan - jun / 2004. p. 114-123

Para tal, Schoenberg utiliza o termo Wendepunktgesetze, traduzido como “pontos de trajetoobrigatório” (p. 158).10 Portanto, o processo de neutralização decide sobre quais notas sãoadequadas para seguirem depois dos graus variáveis da escala menor. Como o próprioSchoenberg reconhece, essas regras são derivadas da escala menor adotada pelo teóricoaustríaco Simon Sechter (1788–1867).

11 A escala é a seguinte (Ex.1):

A única referência a Sechter aparece em rodapé na página 384, e diz: “Por exemplo, S. Sechter”.Um último exemplo ilustra uma certa falta de espírito musicológico nesta tradução. Na nota derodapé que se estende das páginas 230 a 232, o tradutor critica um dispositivo de papelão àvenda em bancas de revistas e que facilita a identificação de tonalidades vizinhas. Não meparece uma informação relevante para ser posta, mesmo que em rodapé, em uma tradução doHarmonielehre de Arnold Schoenberg!

Curiosamente, é comum nos livros traduzidos em solo pátrio o esquecimento dos índicesonomástico e remissivo. No caso da tradução do Harmonielehre, o esquecimento do índiceremissivo parece tomar forma mais séria. Alban Berg preparou um índice para a primeira ediçãodo Harmonielehre em 1911. Uma vasta e belíssima correspondência entre o mestre Schoenberge o discípulo Berg documenta a elaboração deste índice (BERG-SCHOENBERG, 1987, pp. 3–32). Quando da entrega do índice à Schoenberg, este escreveu para Berg agradecendo edizendo que achava o índice realmente proeminente no seu conteúdo e feito com grandediscernimento e zelo. Finalmente, Schoenberg declara: “Realmente fantástico!” (ibid., p. 32).Este índice foi ampliado para as edições subseqüentes. O fato de retirá-lo da presente traduçãoé lamentável, pois retira do leitor um instrumento de referência que facilitaria sobremaneira aconsulta do livro e exclui um documento prático e, já, histórico.

10 O termo em inglês, e que Schoenberg utilizava nas suas aulas nos Estados Unidos era turning points comoatestam as anotações de classe nas coleções de Geiringer e Stein (pasta 42), ambas no Arnold SchoenbergCentre em Viena.

11 Vide Exercícios Preliminares em Contraponto, p. 75. Sechter escreve no Grundsätze:Die erste und natürlich Art geht von der 1ten Stufe bis zur 6ten aufwärts, und von da wieder zurück bis zur 1ten,nach welcher der Unterhalbton der Tonleiter folgt und sogleich wieder auf die 1te Stufe zurückgeht.Die zweite Art geht von der 1ten bis zur 8ten aufwärts, wobei die 6te Stufe erhöht wird, um den Uebergang aufdie 7te erhöhte Stufe zu bilden.Die dritte Art geht von der 8ten bis zur 1ten Stufe abwärts, wobei die 7te und 6te Stufe ohne Erhöhung vorkommen(SECHTER, 1853–4, p. 55).

Ex. 1 - Escalas menores extraídas de SECHTER, Grundsätze (1853-4: p. 55)

Page 120: (Per Musi - UFMG) 9

120

DEDUQUE, Norton. Sobre Harmonia de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan - jun / 2004. p. 114-123

Estas observações e várias outras que poderiam ser feitas, se tivessem sido introduzidas notexto em forma de rodapé ou em uma introdução mais fundamentada, seriam extremamenteúteis para que o leitor se situasse de forma segura sobre um conteúdo tão complexo quanto oé o do Harmonielehre, além de dar a esta importante tradução um caráter mais acadêmico.

II. Sobre a tradução de terminologia específicaEm um livro sobre harmonia tonal é comum que o leitor encontre inúmeros termos técnicos quese referem a uma determinada situação no ensino de procedimentos na matéria. A traduçãodestes termos deve ser feita de modo cuidadoso. Felizmente, é o que geralmente ocorre nestatradução. Mas, cabe avaliar, a guisa de exemplo, três casos. Um pequeno exemplo inicial refere-se à utilização do termo sucessão para significar o enlace entre dois acordes. Cabe aqui observarque Schoenberg fazia uma diferenciação entre sucessão harmônica e progressão harmônica; aprimeira não produz movimento harmônico enquanto que a segunda sim (vide SCHOENBERG,1969 [1954], p. 1). Muito bem, no pequeno Structural Functions of Harmony, Schoenberg serefere às progressões das fundamentais (de um acorde) como um elemento decisivo noencadeamento entre acordes. Se utilizamos, como ocorre no Harmonia, o termo sucessão emvez de progressão caímos em contradição terminológica: qual dos dois é o correto? Mais umexemplo ocorre com os termos “sucessões crescentes” [Steigende Schritte] e “sucessõesdecrescentes” [Fallende Schritte]. O tradutor argumenta que traduz assim para evitar uma confusãoterminológica, e observa que “o ascendente e descendente” se referem ao conteúdo harmônicoe não a um movimento melódico (por exemplo, de quinta ascendente) (pp. 184–5, rodapé). Masdevemos lembrar que os termos progressões ascendentes e progressões descendentes já sãoamplamente adotados em trabalhos que tratam da teoria “Schoenberguiana” e “Schenkeriana”,então, não seria o caso de se ter mantido os termos já consagrados? Finalmente, um termo“novo” – Viragem. O termo é a tradução adotada para Wendung que significa, segundo o tradutoresclarece em nota de rodapé, uma mudança de direção harmônica, um “giro harmônico” (p.227). Em vez de Viragem, “redirecionamento harmônico” não soaria melhor?

III. Sobre os novos elementos harmônicosEntre as novidades que o Harmonielehre traz em seu conteúdo, está a primeira teorizaçãosobre novos elementos para a linguagem harmônica. Schoenberg é reconhecidamente o primeiroa discorrer sobre tonalidade flutuante e tonalidade suspensa, o uso da escala de tons inteiros,acordes com cinco ou mais sons, e sobre acordes quartais (acordes construídos através dasobreposição de quartas justas). Alguns destes assuntos são derivados de uma observaçãominuciosa da música de Wagner, e outros da própria prática composicional de Schoenberg. Damúsica de Wagner, por exemplo, Schoenberg observou a interrupção da tonalidade e a flutuaçãoou alternância entre dois centros tonais, como ocorre no prelúdio de Tristan und Isolde. De suamúsica, ele observou o mesmo tipo de ocorrência tonal na sua canção Lockung, Op. 6, nº 7.Em relação aos acordes quartais, Schoenberg declara que foi o primeiro a usar esse tipo deformação harmônica no poema sinfônico Pelleas und Melisande e, posteriormente, na famosaKammersymphonie Op. 9. Somente em 1913 e 1914 aparecem outras obras considerando aharmonia na música moderna. Estas são o Étude sur l‘harmonie moderne (1913) de RenéLenormand, e Modern Harmony, Its Explanation & Application (1914) de A. Eaglefield Hull.

Page 121: (Per Musi - UFMG) 9

121

DEDUQUE, Norton. Sobre Harmonia de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan - jun / 2004. p. 114-123

IV. O caso da tradução de NepomucenoNepomuceno, que teve parte de sua formação musical realizada em Berlim e Viena, certamenteestava atento para os métodos (tratados) de ensino mais utilizados durante a época em queviveu e estudou nestas cidades. Em Berlim, Nepomuceno estudou primeiramente na Hochschulefür Musik, onde ingressou em 1890 e estudou com Heinrich von Herzogenberg. Entre 1892 e1894, ingressou no Sternsches Konservatorium der Musik. Alguns anos mais tarde, Schoenbergtambém passaria pelo Conservatório Stern, onde lecionou composição em 1902 e depois em1911. Coincidências à parte, o fato é importante porque indica que Nepomuceno teveconhecimento e formação musical baseadas nas mais importantes tendências de teoria musicaldo final do século XIX. Por exemplo, o Der Contrapunkt de Bellermann já era um livro popularno ensino do contraponto em Berlim durante a segunda metade do século XIX.

12 Portanto, não

é de se estranhar que Nepomuceno tenha tido interesse em traduzir o livro de Bellermann parao português. Aliás, sua tradução do Der Contrapunkt é bem maior e mais trabalhada do queseu mero “esboço de tradução” dedicado ao Harmonielehre. Em 1916, Alberto Nepomuceno,por sugestão de Frederico Nascimento, iniciou a tradução do Harmonielehre no intuito de adotá-lo como livro oficial de harmonia no então Instituto Nacional de Música mas, encontrando umaviolenta oposição por parte dos professores da época, provavelmente por considerarem o tratadode Schoenberg muito avançado, o projeto inicial foi esquecido restando apenas o manuscritode Nepomuceno.

13 A esse respeito, o tradutor do Harmonielehre admite que não conhece o

manuscrito da tradução realizada por Nepomuceno (pp. 26–7), nem poderia, uma vez que omanuscrito resume-se a uma mera tentativa de traduzir as páginas iniciais do livro deSchoenberg. É claro que devemos dar o crédito a Nepomuceno, figura importante da históriada música brasileira, por ter tentado introduzir no ensino de música da época um livro que tinha(e tem) um conteúdo polêmico, por vezes de caráter puramente especulativo e por vezescontraditório. Quiçá, se o projeto de Nepomuceno e Frederico Nascimento tivesse seconcretizado, o estado atual da teoria musical brasileira seria outro.

À guisa de conclusão, devemos, sem dúvida alguma, parabenizar Marden Maluf por terenfrentado tamanha tarefa em traduzir uma obra monumental como é o Harmonielehre.Certamente, não foi tarefa simples. Espero que esta tradução venha a contribuir para tirarmoso estudo da teoria musical no Brasil do estado de letargia em que se encontra há décadas.

12 Heinrich Bellermann (1832–1903) foi designado para a função ocupada por A. B. Marx na Universidade deBerlim em 1866. Em 1875, tornou-se membro da Akademie der Kunste. Bellermann foi um estudioso da músicada Renascença durante toda sua vida, e é conhecido também por seu livro sobre o sistema mensural, DieMensuralnoten und Taktzeichen des 15. und 16. Jahrhunderts (1858) e, principalmente, pelo seu tratado decontraponto.

13 Vide CORRÊA, 1985, p. 7. O manuscrito encontrava-se em posse da família Bevilacqua do Rio de Janeiro eesteve em posse de Sérgio Alvim Corrêa. Creio que atualmente, os dois manuscritos de Nepomuceno,encontram-se na Biblioteca Nacional, uma vez que tive acesso a esses dois documentos alguns anos atrás eque estavam então arquivados em uma pasta na seção de música da BN.

Page 122: (Per Musi - UFMG) 9

122

DEDUQUE, Norton. Sobre Harmonia de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan - jun / 2004. p. 114-123

V. Referências Bibliográficas e Leitura RecomendadaBELLERMANN, Heinrich. Der Contrapunkt oder zur Stimmfuhrung in der musikalischen Composition. Berlin:

Springer, 1862.BERNSTEIN, David. ‘Schoenberg contra Riemann: Stufen, Regions, Verwandtschaft, and the Theory of Tonal

Function’, Theoria: Historical Aspects of Music Theory, 6 (1992), pp. 23–53.______. ‘Georg Capellen’s Theory of Reduction: Radical Harmonic Theory at the Turn of the Century’, Journal of

Music Theory (1993), 37: 1, pp. 85–116.BRANDA LACERDA, Marcos. “Breve Resenha das Contribuições de Schenker e Schoenberg para a Análise

Musical”, Revista da Escola de Música da UFBA (Dezembro, 1995), pp. 65–79.BUJIC, Bojan (Ed.). Music in European Thought 1851–1912, in Cambridge Readings in the Literature of Music.

Cambridge: Cambridge University Press, 1988.CORRÊA, Sérgio Alvim. Alberto Nepomuceno, catálogo geral. Rio de Janeiro: Funarte, INM, 1985.DUDEQUE, Norton. “Schoenberg’s Gedanke manuscript”, British Postgraduate Musicology, 3 (1999), pp. 44–9.DUNSBY, Jonathan. ‘Schoenberg and the Writings of Schenker’, Journal of the Arnold Schoenberg Institute (1977),

2: 1, pp. 26–33.DUNSBY, Jonathan and Arnold Whittall. Music Analysis: in Theory and Practice. London: Faber & Faber, 1988.HILMAR, Rosemary, Alban Berg. Viena: Hermann Böhlaus Nachf., 1978.______. “Alban Berg’s Studies with Schoenberg”, Journal of the Arnold Schoenberg Institute, 8: 1 (1984), pp. 7–29.HULL, Arthur Eaglefield. Modern Harmony: Its Explanation and Application. London: Augener Ltd., 1914.LENORMAND, René. Etude sur l’harmonie moderne (Study of Twentieth-Century Harmony), Trad. Herbert Antcliffe.

London: Joseph Williams, 1915, publicado originalmente em 1913. Meyers grosses Konversations-Lexikon.ein Nachschlagewerk des allgemeinen Wissens. Leipzig: Bibliographisches Institut, 1891–2.

REICH, Willi. The Life and Work of Alban Berg. Trad. Cornelius Cardew. London: Thames and Hudson,1965.______. Schoenberg, A Critical Biography. Trad. Leo Black. London: Longman Group LTD., 1971.RIEMANN, Hugo. Große Kompositionslehre I. Band Der homophone Satz (Melodielehre und Harmonielehre).

Berlin: W. Spemann, 1902.______. Katechismus der Harmonie- und Modulationslehre. Leipzig: Max Hesse, 1906.______. ‘Handbuch der Musikgeschichte’, in Die Musik des 18. und 19. Jahrhunderts, v. 2/iii. Leipzig: Breitkopf

und Härtel, 1922.______. Harmony Simplified or The Theory of the Tonal Functions. Trad. Rev. H. Bewerunge. London: Augener &

Co., [1896?].SADIE, Stanley; TYRRELL, John, Eds. The New Grove Dictionary of Music and Musicians. 2nd ed.. London:

Macmillan, 2001 (29 volumes).SCHENKER, Heinrich. Harmony. Trad. Elizabeth M. Borgese. Chicago: University of Chicago Press, 1954.______.Counterpoint. Volume I of New Musical Theories and Fantasies—book I Cantus firmus and Two-voice

Counterpoint. Trad. John Rothgeb e Jürgen Thym, Ed. John Rothgeb. New York: Schirmer Books, 1987.SCHOENBERG, Arnold. Letters. Trad. Eithne Wilkins and Ernst Kaiser, Ed. Erwin Stein. London: Faber & Faber,

1964.______. Structural Functions of Harmony. Ed. Leonard Stein. London: Faber & Faber, 1969 [1954].______. Style and Idea, Selected Writings of Arnold Schoenberg. Trad. Leo Black, Ed. Leonard Stein. London:

Faber & Faber, 1975.______. The Berg-Schoenberg correspondence. Ed. Julianne Brand, Christopher Hailey e Donald Harris. London:

MacMillan Press, 1987.______. Theory of Harmony, Harmonielehre [1911]. Trad. Roy E. Carter. London: Faber and Faber, 1978.______. The Musical Idea and the Logic, Technique, and Art of Its Presentation. Ed. Patricia Carpenter e Severine

Neff. New York: Columbia University Press, 1995.SECHTER, Simon. Die Grundsätze der musikalischen Komposition, 3 vol. Leipzig: Breitkopf und Härtel, 1853–4.SIMMS, Bryan R. ‘New Documents in The Schoenberg-Schenker Polemic’, Perspectives of New Music, 16: 1(1977),

pp. 110–24.__________. Review of Theory of Harmony by Arnold Schoenberg translated by Roy E. Carter, Music Theory

Spectrum, 4 (1982), pp. 155–62.SPRATT, John F. ‘The Speculative Content of Schoenberg’s Harmonielehre’, Current Musicology, 11 (1971), pp.

83–9.STEIN, Erwin. Praktischer Leitfaden zu Schönbergs Harmonielehre: ein Hilfsbuch für Lehrer und Schüler. Vienna:

Universal Edition, 1923.

Page 123: (Per Musi - UFMG) 9

123

DEDUQUE, Norton. Sobre Harmonia de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan - jun / 2004. p. 114-123

WASON, Robert and Elizabeth West Marvin. ‘Riemann’s “Ideen zu einer ‘Lehre von den Tonvorstellungen’ “: AnAnnotated Translation’, Journal of Music Theory, 36: 1 (1992), pp. 69–117.

WASON, Robert W. Review of Theory of Harmony by Arnold Schoenberg. Translated by Roy E. Carter, Journal ofMusic Theory, 25: 2 (1981), pp. 307–16.

______.Viennese Harmonic Theory from Albrechtsberger to Schenker and Schoenberg. Rochester: University ofRochester Press, 1985.

Norton Dudeque é Professor Adjunto no Departamento de Artes da Universidade Federal doParaná. Realizou o doutorado (Ph.D) na University of Reading, Grã-Bretanha, onde defendeua tese “Music Theory and Analysis in the Writings of Arnold Schoenberg (1874–1951)”.

Page 124: (Per Musi - UFMG) 9

124

DEDUQUE, Norton. Sobre os Apêndices dos Exercícios Preliminares em Contraponto de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan-jun / 2004. p. 124-129.

Sobre os Apêndices dos Exercícios Preliminares emContraponto de Arnold Schoenberg.Tradução de Eduardo Seincman, São Paulo: Via Lettera, 2001.

Norton Dudeque (UFPr)e-mail: [email protected]

[email protected]

Os livros de Schoenberg que foram escritos nos Estados Unidos1

se diferenciam doHarmonielehre (1911), quanto à sua organização, conteúdo e estilo literário. Naturalmente,Schoenberg teve que adaptar as características de cada livro para situações diferentes. OHarmonielehre foi escrito tendo em mente leitores como Berg, Webern, Stein, e teóricos comoRiemann e Schenker, entre outros. Já as obras escritas nos EUA tinham o estudante medianodas universidades americanas como seus leitores. É claro que a organização destes últimosdeveria ser a mais sistemática possível, e é o que o leitor do Exercícios Preliminares emContraponto encontrará.

Os Exercícios Preliminares em Contraponto foram completados por Leonard Stein após a mortede Schoenberg e publicado pela primeira vez em 1963. Após ter sido iniciado em 1936 einterrompido entre 1942–6, Schoenberg retomou o trabalho somente entre 1948–50, mas deixou-o incompleto. Aliás, cabe notar que a maioria dos textos didáticos de Schoenberg foram deixadosincompletos, com exceção do Harmonielehre, do pequeno manual Models for Beginners inComposition, e de Structural Functions of Harmony, este publicado postumamente mas queSchoenberg deixou pronto com várias revisões do texto praticamente prontas para publicação(estes textos datilografados encontram-se no Arnold Schoenberg Center em Viena, pasta deStructural Functions of Harmony). Fato semelhante também está presente na edição doExercícios Preliminares em Contraponto, Schoenberg também deixou várias revisões do materialorganizado para dar origem ao livro de contraponto. No entanto, os rascunhos e anotações dolivro tiveram que, necessariamente, ser reorganizados por Stein e Strang.

Esse livro de Schoenberg é organizado de acordo com as espécies de contraponto tradicionaisestabelecidas por Fux e quanto ao número de vozes a serem utilizadas. Assim, na primeiraparte, os capítulos I a V tratam do contraponto a duas vozes em cada uma das cinco espéciesem uma tonalidade maior. A tonalidade menor é tratada à parte no capítulo VI.2 Segue, a partirdaí, o primeiro de uma série de nove capítulos intitulados “Aplicação Composicional:” que, queabordam a afirmação da tonalidade através de notas características, regiões e modulação,regiões intermediárias, imitação e cânones.3

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música - v. 9, 129 p, jan - jun, 2004.

1 Estes livros são: Models for Beginners in Composition de 1942; Structural Functions of Harmony de 1954;Preliminary Exercises in Counterpoint de 1963; e Fundamentals of Musical Composition publicado em 1967.

2 Ver a seção referente à concepção do modo menor em Schoenberg, na resenha do Harmonielehre.3 Aliás, o leitor que se interessar mais pelo assunto de regiões tonais e suas relações deve estudar o Structural

Functions of Harmony. A tradução do Structural Functions está no prelo e é de Eduardo Seincman.

Page 125: (Per Musi - UFMG) 9

125

DEDUQUE, Norton. Sobre os Apêndices dos Exercícios Preliminares em Contraponto de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan-jun / 2004. p. 124-129.

O livro se encerra com dois apêndices, e é aqui que concentrarei o comentário sobre osExercícios Preliminares em Contraponto. O primeiro apêndice apresenta os prefácios deSchoenberg ao seu livro de contraponto; e o segundo, um pequeno sumário do que deveriamser os próximos volumes do seu tratado de contraponto, o que nos lembra que o volumeExercícios Preliminares em Contraponto é apenas o primeiro de um tratado de contraponto,um projeto bem maior de Schoenberg, infelizmente não concluído.

No primeiro prefácio, Schoenberg argumenta que, devido a uma grande evolução da música,“os pensamentos musicais de nosso tempo não são contrapontísticos, mas melódico/homofônico/harmônicos” (p. 243). Tal afirmação nos remete à argumentação de Schoenbergsobre a unidade do espaço musical exposta em Style and Idea. Para ele,

A unidade do espaço musical requer uma percepção absoluta e unitária. Neste espaço,…, nãoexiste o vertical absoluto, nem o direito ou esquerdo, para frente ou para trás. Cada configuraçãomusical, cada movimento de notas musicais deve ser compreendido primariamente como umarelação mutual de sons, de vibrações oscilatórias, aparecendo em diferentes lugares e tempos(SCHOENBERG, 1975, p. 223).

No segundo prefácio, talvez mais polêmico que o primeiro, Schoenberg trata de rejeitar o ensinode contraponto segundo o “estilo de Palestrina” e, por conseguinte, tratados de contrapontocontemporâneos ao seu Exercícios Preliminares em Contraponto. Talvez o alvo desta críticaseja o Kontrapunkt de Knud Jeppesen publicado originalmente em 1931 (traduzido para oinglês em 1939)4 e que segue uma linha de estudo histórica/teórica derivada do livro decontraponto de Bellermann.

No início do século XX, Schoenberg já havia adotado o livro de contraponto de HeinrichBellermann, Der Contrapunkt (1862), como livro básico para as suas atividades didáticas decontraponto. Provavelmente, Schoenberg conheceu o livro de Bellermann quando da sua estadaem Berlim, em 1902.5 Mann descreve o tratado de Bellermann como

“um livro no qual instrução crítica e prática são combinadas pela primeira vez” e onde “oensino da técnica modal de Fux é restaurada de acordo com o seu ensino de contraponto efuga e com várias seções introdutórias que abrem uma nova perspectiva histórica para ainstrução contida na obra” (MANN, 1960, p. 70).

O livro de Bellermann, portanto, segue uma linha “fuxiana” e retoma uma tradição pedagógicaabandonada durante o século XIX. Além destes aspectos, o livro apresenta um conteúdo históricoque pode ter servido como uma fonte de informação sobre teoria musical e, em especial, sobrecontraponto para Schoenberg. Na sua introdução à 1ª parte, o livro apresenta um minuciosoresumo histórico da evolução do contraponto e fuga. Ademais, Bellermann enfatizou um pontoessencial para Schoenberg. Ele notou uma tendência na teoria musical em supervalorizar oaspecto harmônico em detrimento do polifônico:

Nossa música, de acordo com sua evolução gradual desde o século XIII, é música polifônica.Grande parte do seu efeito depende da simultaneidade sonora de várias vozes concorrentes.Aqui, sim, reside a verdadeira polifonia, e não na sucessão de acordes prontos (como é

4 Vide JEPPESEN, 1939.5 Vide a resenha sobre o Harmonielehre de Schoenberg, em especial a seção que trata da tradução de Alberto

Nepomuceno.

Page 126: (Per Musi - UFMG) 9

126

DEDUQUE, Norton. Sobre os Apêndices dos Exercícios Preliminares em Contraponto de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan-jun / 2004. p. 124-129.

freqüentemente feito nas composições de hoje, e até recomendado nos manuais de instrução).Ao contrário, acordes são somente o resultado da conexão de várias vozes melódicas ecantáveis (BELLERMANN, 1862: p. ix).

O abandono da doutrina “fuxiana” pode ter sido causado pelo interesse renovado na música deJ. S. Bach. A tendência durante o século XIX era a de explicar a música de Bach de acordo comregras tonais-contrapontísticas derivadas de uma mistura entre as espécies de Fux e da práticada harmonia tonal (vide JEPPESEN, 1992, pp. 48–53; e MANN, 1960, pp. 63–72).

6 Schoenberg

descreve esta prática no primeiro prefácio ao Exercícios Preliminares:

Surgiram teorias baseadas no desconcertante desenvolvimento de técnicas da harmonia quetentaram, ao máximo, reconciliar o estilo contrapontístico ao harmônico/homofônico, o queresultou na ruína de ambos. Privando a harmonia da consciência dos graus básicos, estasteorias, por um lado, degradaram o contraponto a uma mera arte da condução de vozes e, poroutro, a uma simples polifonia acrescentada a uma harmonia preconcebida. Foi posta, assim,em dúvida, a verdadeira natureza da arte do contraponto (p. 242).

O alvo principal de Schoenberg são aquelas teorias desenvolvidas na Alemanha e representadas,principalmente, pelas teorias de Hugo Riemann. A respeito deste último, Schoenberg comentaem Style and Idea que “Riemann ensina o contraponto acrescentando ‘ornamentos’–notas depassagem e suspensões–à texturas harmônicas” (SCHOENBERG, 1975, p. 297), o queexemplifica bem a tendência na pedagogia do contraponto na Alemanha do século XIX. Jeppesenresume esta tendência. Ele relata que Kirnberger iniciou esta tradição abordando a música deBach de um ponto de vista contrapontístico, mas não descartando sua base harmônica. Em1872, Richter publicou seu Lehrbuch des einfachen und doppelten Kontrapunkts, que dá umacontinuação ao trabalho anterior de Kirnberger. Jeppesen relata que Richter aborda os estágiosiniciais no ensino do contraponto assumindo que o estudante “tenha um completo domínio daharmonia e que comece com exercícios à quatro vozes, de nota contra nota. A regra principalaqui é que todos os acordes, incluindo os acordes de sétima e suas inversões, podem serusados”. De acordo com Jeppesen, as obras, tanto de Richter quanto a de Jadassohn, Lehrbuchdes Kontrapunkts, publicado em 1883, representam um processo retrógrado no que diz respeitoa descrição teórica da música de Bach. Somente com o tratado de Riemann, Lehrbuch desKontrapunkts (1888), conquistou-se uma abordagem mais realística do estilo de Bach. Noentanto, Riemann também segue a idéia de que as leis da harmonia a quatro vozes, apesar deele adotar o método das espécies de Fux, devem reger a confecção de exercícios a duasvozes (JEPPESEN, 1992: pp. 48–51). De fato, Riemann avaliava negativamente os méritos dolivro de Bellermann. Ele achou a abordagem “fuxiana” de Bellermann inútil e menoscabou aimportância da contribuição de Fux no estudo da música de Bach. Para Riemann:

Está além da capacidade de Fux prover um entendimento da arte harmônica de Bach. Aocontrário, a aplicação das regras de Fux às obras de Bach leva a um julgamento completamentedistorcido destas. Somente uma teoria harmônica desenvolvida a partir do baixo figurado,…,revela gradualmente aquela completa maestria que é a essência da arte de Bach.…Estejulgamento também é válido em referência à pedagogia contrapontística de Heinrich Bellermann(Der Kontrapunkt [1862]), que renuncia o sistema tonal moderno e prega um retorno ao sistemamodal do século XV (MICKELSEN, 1977 [RIEMANN, 1898], pp. 121–2).

6 O esforço de Bellermann em restaurar a tradição fuxiana e o estilo de Palestrina foi retomado por Jeppesen emKrontrapunkt (vokalpolyfoni) de 1931.

Page 127: (Per Musi - UFMG) 9

127

DEDUQUE, Norton. Sobre os Apêndices dos Exercícios Preliminares em Contraponto de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan-jun / 2004. p. 124-129.

A abordagem que Schoenberg dispensa à pedagogia do contraponto é semelhante àquela dostratados que tanto Bellermann quanto o próprio Schoenberg criticam. O livro de Schoenberg tambémé uma mistura das espécies “fuxianas” e da prática da harmonia tonal. Por exemplo, o processo deneutralização reflete o uso da escala menor de acordo com regras da harmonia tonal. Neste sentido,Schoenberg atribui, subjetivamente, importância ao método das espécies de Fux em seus ExercíciosPreliminares em Contraponto. Mas por outro lado, como Dunsby e Whittall sugerem (DUNSBY eWHITTALL, 1988, p. 27), Schoenberg parece que “recicla” o livro de Bellermann.

A reclamação de Schoenberg sobre o método de ensino adotado por Riemann refere-se aoentendimento de como a combinação de linhas melódicas independentes produzem harmoniase não o contrário (a harmonia gerando diferentes linhas melódicas). Tanto é assim que, noHarmonielehre, Schoenberg declara que “os acordes surgem como casualidades da conduçãodas vozes, e por isso são – uma vez que a responsabilidade pela simultaneidade sonora ésustentada pela melodia – sem significação para a construção harmônica” (SCHOENBERG,1999 [1911], p. 439). A argumentação que Schoenberg defende é a de que existe um estadoideal no qual contraponto e harmonia são inter-relacionados a ponto de criarem uma idéiaperfeita de uma composição musical. Esta perfeição de Idéia Musical, declara Schoenberg, éencarnada na obra de J. S. Bach. E ele vai além, dizendo que: “Esta perfeição é a da Idéia[Musical], da concepção básica, não a da elaboração. Esta última é somente a conseqüêncianatural da profundidade da idéia, e isto não pode ser imitado, nem tampouco ensinado” (p.244). Schoenberg distingue, então, entre a concepção da idéia musical, expressa por umaestrutura básica (Grundgestalt), e os meios técnicos e artísticos para o desenvolvimento destaidéia. É neste sentido que Schoenberg afirma que o contraponto tornou-se somente “um meiopedagógico de treinamento” (p. 243), ou seja, uma matéria que ensina o estudante a “conduçãoartística das vozes tendo em conta a combinação motívica” (SCHOENBERG, 1999 [1911], p.49), e que provê o estudante com meios técnicos para desenvolver a Idéia Musical.

No artigo “Linear Counterpoint: Linear Polyphony” (1931), em Style and Idea, Schoenbergtambém aborda o assunto da concepção de contraponto. No texto, Schoenberg discute o termoutilizado por Ernst Kurth (1886–1946), “contraponto linear”. Kurth pregava o abandono da noçãopunctum contra punctum, ou seja, a noção de nota contra nota. Ele defendia que,conceitualmente, “duas ou mais linhas [melódicas] podem desdobrar-se simultaneamente emum desenvolvimento melódico livre – não por meio das harmonias mas sim independentementedas harmonias” (KURTH, 1991, pp. 46–7). Esta afirmação põe a harmonia em um segundoplano, sujeito ao desdobramento de progressões melódicas. O entendimento da proposição deKurth parece ser mais ideológico do que pedagógico. Entretanto, a noção resulta de uma reaçãoà tendência predominante durante o século XIX: a de se considerar linhas melódicas comoderivadas de progressões harmônicas.

7 Para Schoenberg, o termo “contraponto linear” é

inconsistente com a noção de nota contra nota, e a partir desta ele deduz que a arte do

7 Rothfarb observa que o termo punctum contra punctum também pode se referir a uma outra noção de contraponto:uma noção stricto-sensu que relaciona a pedagogia das espécies fuxianas para se conseguir uma compreensãoem sentido lato, que pode ser interpretada como a contraposição de valores mensurais, permitindo que duas oumais notas curtas se contraponham à uma nota mais longa. Além disso, Rothfarb sugere que Kurth possa terinterpretado erroneamente “metodologia” por “ideologia”. Afinal de contas, o contraponto livre é o objetivo final doestudo estrito das espécies fuxianas (Cf. KURTH, 1991, pp. 46–7, nota de rodapé 17).

Page 128: (Per Musi - UFMG) 9

128

DEDUQUE, Norton. Sobre os Apêndices dos Exercícios Preliminares em Contraponto de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan-jun / 2004. p. 124-129.

contraponto se refere “àquelas notas ou progressões de notas que podem ser postas emoposição e que magicamente possuam uma relação entre si que complemente o princípio decontraste coesivo” (SCHOENBERG, 1975, p. 269). Schoenberg baseia sua argumentação nosentido da palavra contraponto. É bem sabido que Schoenberg era dado a jogos de palavras.Neste sentido, o argumento de ponto contra ponto, é originário da discussão no Harmonielehresobre os sons estranhos à harmonia: “Não existem sons estranhos à harmonia, pois harmoniasignifica simultaneidade sonora” (SCHOENBERG, 1999 [1911]: p. 447). É claro que, se umanota não é harmônica, ela não tem nada a ver com harmonia; e atonalidade, por conseguinte,significaria “algo que absolutamente em nada corresponde à essência do som“ (ibid., p. 558).

Esclarecendo, Schoenberg se refere ao fato de que “as partes [melódicas] devem serindependentes umas das outras até mesmo na sua relação harmônica”. De fato, ele defendeque as partes que soam simultâneas não necessitam ser relacionadas à uma harmonia emcomum, nem expressar uma harmonia “decifrável”, nem produzir progressões harmônicasreconhecíveis pelas progressões tradicionais, tais como cadências mas, essencialmente, aspartes devem ser independentes entre si (SCHOENBERG, 1975, p. 291). Os argumentos,tanto de Schoenberg quanto de Kurth, são parecidos. Ambos defendem que o desenvolvimentoe a sobreposição de linhas melódicas originam harmonias, e não o contrário.

Toda esta argumentação de Schoenberg revela-se contraditória. Ao mesmo tempo que afirma quebasear “o ensino do contraponto em Palestrina é tão estúpido quanto basear o ensino da medicinaem Esculápio” (p. 243),

8 ele demonstra uma atitude ambígua em relação à continuidade histórica

que ele clama para si, como o legítimo herdeiro da tradição musical austro-germânica, e para alegitimidade das suas música e teoria musical.

9 Ademais, ao mesmo tempo que Schoenberg declara-

se como o inovador e defensor máximo da música moderna, ele segue uma tradição teórica deépocas passadas.

10 Quando lido e contextualizado, os Exercícios Preliminares em Contraponto de

Schoenberg se distinguem de outros livros, anteriores e contemporâneos seus, por apresentaruma noção de contraponto em que a concepção de independência entre diferentes linhas melódicasé sobremaneira enfatizada durante os vários comentários dos exemplos:

“a preocupação fundamental deve ser sempre o movimento fluente das vozes acrescentadas.Se elas produzem ou não tríades completas, ou se mudam ou não o conteúdo harmônico nointerior do compasso, é de menor importância…” (p. 141).

As idéias expressas em Exercícios Preliminares em Contraponto são um testemunho daambigüidade existente no pensamento e na ideologia de Schoenberg. A ótima tradução deEduardo Seincman vem contribuir para um enriquecimento da bibliografia nacional sobrecontraponto, mas, mais importante ainda, é o fato de que agora temos acesso a um dos livrosde uma das maiores personalidades da música do século XX: Arnold Schoenberg.

8 Esta citação aparece como epígrafe à introdução ao livro Contraponto, uma arte de compor de Lívio Tragtenberg(São Paulo: EDUSP, 1994, p. 17). É claro que se tomada isoladamente e fora de contexto a citação pode sermal entendida e representar uma idéia de que Schoenberg negava a tradição do contraponto por espécies, oque não é o caso.

9 Vide o artigo de Schoenberg “National Music (2)” de 1931 em Style and Idea, pp. 172–4.10 Um estudo a este respeito é a obra de Joseph N. Straus, Remaking the Past–Musical Modernism and the

Influence of the Tonal Tradition, no qual o autor discute a teoria analítica de Schoenberg e de outros compositoresdo início do século XX, vide, em especial, o capítulo 2.

Page 129: (Per Musi - UFMG) 9

129

DEDUQUE, Norton. Sobre os Apêndices dos Exercícios Preliminares em Contraponto de Arnold Schoenberg... Per Musi. Belo Horizonte, v.9, jan-jun / 2004. p. 124-129.

Referências BibliográficasBELLERMANN, Heinrich. Der Contrapunkt oder zur Stimmfuhrung in der musikalischen Composition. Berlin:

Springer, 1862.DUNSBY, Jonathan e Arnold Whittall. Music Analysis in Theory and Practice. London: Faber Music, 1988.JEPPESEN, Knud. Kontrapunkt (vokalpolyfoni), 1931. Traduzido para o inglês como Counterpoint, The Polyphonic

Vocal Style of the Sixteenth Century. Trad. Glen Haydon. New York: Dover Publications, 1992.KURTH, Ernst. Ernst Kurth: selected writings. Trad. Lee A. Rothfard. Cambridge: Cambridge University Press,

1991.MANN, Alfred. The Study of Fugue. London: Faber & Faber, 1960.SCHOENBERG, Arnold. Style and Idea, Selected Writings of Arnold Schoenberg. Trad. Leo Black, Ed. Leonard

Stein. London: Faber & Faber, 1975._________. Theory of Harmony, Harmonielehre [1911]. Trad. Roy E. Carter. London: Faber and Faber, 1978.__________, Harmonia, Harmonielehre [1911]. Trad. Marden Maluf. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.STRAUS, Joseph. Remaking the Past–Musical Modernism and the Influence of the Tonal Tradition. Cambridge, MA:

Harvard University Press, 1990.

Norton Dudeque é Professor Adjunto no Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná.Realizou o doutorado (Ph.D) na University of Reading, Grã-Bretanha, onde defendeu a tese “MusicTheory and Analysis in the Writings of Arnold Schoenberg (1874–1951)”.

Page 130: (Per Musi - UFMG) 9