pequeno tratado de sabedoria - pierre charron

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  • 7/22/2019 Pequeno Tratado de Sabedoria - Pierre Charron

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    PIERRE CHARRON(1541-1603)

    Petit Trait

    DDEELLAASSAAGGEESSSSEE

    PPeeqquueennoo

    TTrraattaaddooddee

    SSaabbeeddoorriiaa

    Traduo de

    MMAARRIIAACCLLIIAAVVEEIIGGAAFFRRAANNAA

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    Pequeno

    tratado

    deSABEDORIA

    Tendo feito alguma coisa bela, boa, til e oficiosa ao pblico

    ou a um particular, aquele [o pedante] se comporta ambiciosa-

    mente. Faz que isto soe alto, repete-o freqentemente, indaga-

    se acerca do que se diz e se zanga por no se fazer mais baru-

    lho e festa. Este [o sbio] suavemente escuta o que dizem, secontenta consigo mesmo por ter feito um bem e se gratifica por

    ter sido bem-sucedido e pela aprovao das pessoas de bem.

    Pierre Charron

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    PERFIL DO AUTOR

    Pierre Charron - Moralista francs, nascido e

    falecido em Paris (1541-1603), exerceu a advocacia

    durante algum tempo e depois dedicou-se aos estudos

    teolgicos e ordenou-se religioso.

    Tornou-se um pregador de renome, famoso

    principalmente no sudoeste da Frana, onde conheceu

    Montaigne, de quem se tornou amigo.

    Escreveu "As trs Verdades" (1593), um tratado

    de apologtica catlica, "Discurso Cristo" (1600) e

    Tratado de Sabedoria" (1601), sua obra mais famosa,

    inspirada em Ccero, Sneca, Bodin, Du Vair e espe-

    cialmente, em Montaigne. Como este, Charron com-

    bate a segurana e o orgulho da cincia humana, que

    se ope prud'homie, virtude feita de razo e de bom

    senso.

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    SUMRIO

    Prefcio_................................................................................... 5

    Captulo_I................................................................................. 7

    Captulo_II.............................................................................. 14

    Captulo_III............................................................................ 34

    Captulo_IV............................................................................. 41

    Captulo_V.............................................................................. 49

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    PREFCIO

    Tendo sabido e ouvido asdiversas crticas que faziamcontra meu Livro da Sabedo-ria, h pouco vindo luz,achei que alguns falavam mo-vidos pela fraqueza de esp-ritos vulgares e populares,que se ofendem no somente

    com aquilo que choca as opi-nies comuns, mas tambmcom o estilo livre e ousado dolivro e com sua linguagembrusca e viril. Eu o havia pre-visto e dito em meu Prefcio,julgando que no poderia

    acontecer de outro modo,dado que a Sabedoria no comum nem popular. Vindo adesacreditar e condenar comautoridade, iure suo singula-ri, as opinies comuns e po-pulares, em geral errneas, ela- a Sabedoria - se expe

    rudez e inveja do mundo.De modo algum o livro parao comum e baixo escalo. Setivesse sido popularmenterecebido e aceito, ter-se-iaencontrado bem decado comrelao a suas pretenses.

    Outras falas vm do fato deno me compreenderem bem,

    ou fingirem no me compre-ender (e eu no quero abordarse h a paixo e malciamisturadas), tomando as coi-sas de outra maneira, em ou-tro sentido e de outra mo queaquela em que eu as dou, re-ferindo ao direito e ao dever o

    que fato, ao fazer o que dojulgar, resoluo e determi-nao o que somente pro-posto, agitado e disputadoproblemtica e academica-mente, atribuindo a mim e sminhas prprias opinies o

    que de outro; ao estado, profisso e condio exter-na, o que do esprito e dasuficincia interior; religioe crena divina, o que daopinio humana; graa e operao sobrenatural, o que da virtude e da ao natural

    e moral.So sete os enganos que euobservei em suas reclama-es, dos quais eu me queixo.Ora, em funo de uns e ou-tros que se ofendem com esteLivro (pois h muitos que o

    julgam de outra maneira e, deboa vontade, o recebem e

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    acolhem humanamente), eutomei a resoluo de rev-lo,explic-lo e ameniz-lo emvrios lugares. Tendo feitoisto, e estando a ponto de pu-blic-lo, pensei em redigireste pequeno Tratado, quecontm um sumrio daquelelivro, uma pintura breve egeral da Sabedoria, e a decla-rao de minha inteno. Este

    Tratado serve tanto comoprefcio para o livro, quantocomo de aviso para o leitor. tambm, em todo caso, maisleve e transportvel, para ser-vir queles que no gostariamde se dar ao trabalho de em-pregar seu lazer em ler intei-ramente o Livro, maior e in-cmodo.

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    CAPTULO I

    1. Acerca da palavra Sabedoria, com uma descrio tosca e

    geral desta.

    2. Diviso da Sabedoria.

    3. Acerca da Sabedoria mundana.

    4. Acerca da Sabedoria divina.

    5. Acerca da Sabedoria humana, sua definio e comparaodos filsofos e telogos com o propsito do autor.

    6. Meio para obter essa Sabedoria humana.

    1. Em relao primeira esimples audio da palavraSabedoria, todos em geralfacilmente concebem e ima-

    ginam alguma qualidade, su-ficincia ou hbito no co-mum, nem popular, mas ex-celente, singular e sublime,acima do comum e do ordin-rio. Seja para bem ou paramal, pois ela tomada e usur-pada (talvez impropriamente)de ambas as maneiras: Sa-pientes sunt ut faciant mala.E no significa apenas umacoisa boa e louvvel, masexcelente, preciosa e singularno que quer que seja, com aqual se pode dizer Sbio tanto

    um tirano quanto um pirata,ladro, quanto Sbio rei, pi-

    loto, capito, quer dizer: sufi-ciente, prudente e distinto. Eno simplesmente, comu-mente e popularmente, mas

    excelentemente e singular-mente.

    Por isso se ope Sabedoriano somente a loucura, que um desregramento e um vcio- e a Sabedoria uma regrabem medida e proporcionada,

    - mas tambm a vileza e sim-plicidade comum e popular,pois a Sabedoria sublime,rara, forte e excelente. Assim,seja no bem como no mal, aSabedoria abrange duas coi-sas: suficincia, que a provi-so e guarnio de tudo o que requerido e necessrio, e

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    que ela esteja em muito altograu.

    Eis o que - ao primeiro sim-

    ples som da palavra Sabedoria- os mais simples imaginam.A partir disso, admitem queexistem poucos Sbios - queso raros, como o toda ex-celncia - e que a eles perten-ce o direito de comandar eguiar os outros; que eles so

    como orculos, dos quais nosvem o provrbio de crer nosSbios e se remeter a eles.Entretanto, definir bem a coi-sa de fato, e distingui-la porsuas partes, nem todos sabemfaz-lo nem esto de acordo e

    no fcil. O vulgo, os filso-fos e os telogos falam delade diferentes maneiras: so astrs etapas e classes do mun-do. Estas duas procedem comordem, regras e preceitos; aoutra, confusa e muito impro-priamente.

    2. Ora, podemos dizer que htrs tipos e graus de Sabedo-ria: a divina, a humana e amundana, que correspondema Deus, natureza pura e in-teira e natureza viciada ecorrompida. De todos esses

    tipos, e de cada uma delas,discorrem e falam todas estas

    trs classes do mundo quedissemos, cada uma de acordocom seu alcance e seus meios.Mais prpria e formalmente ocomum - ou seja, o mundo -fala da mundana, o filsofo dahumana e o telogo da divina.

    3. A mundana e mais baixa,diversa de acordo com os trsgrandes chefes desse baixomundo: opulncia, volpia,

    glria, avareza, luxria e am-bio. Quidquid est in mundoest concupiscentia oculorum,

    concupiscentia carnis, su-

    perbia vitae. chamada porS. Jacques de trs nomes,Terrena, Animalis, Diabli-

    ca; reprovada pela filosofiae pela teologia, que a deno-mina loucura diante de Deus,stultam fecit sapientiam

    huius mundi. Ora, dela nada falado em nosso livro acercada Sabedoria, seno para con-den-la.

    4. A mais sublime e mais ex-celente - que a divina - definida e tratada pelos filso-fos e telogos um pouco di-versamente (eu desdenho eabandono aqui tudo o queacerca dela pode dizer o ho-

    mem comum, como profano eindigno de ser ouvido sobre

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    tal coisa). Os filsofos a fa-zem completamente especu-lativa, dizem que o conhe-cimento dos princpios, dasprimeiras causas e mais altosmotores de todas as coisas emais altos motores de todas ascoisas e, enfim, da causa so-berana que Deus; a Meta-fsica. Esta reside toda noentendimento, seu soberano

    bem e sua perfeio, a pri-meira e mais elevada das cin-co virtudes intelectuais, quepode existir sem probidade,ao, e sem nenhuma virtudemoral.

    Os telogos no a elaboram

    de maneira to especulativa, aponto de no ser de formanenhuma prtica, pois elesdizem que pelo conheci-mento das coisas divinas quese chega a um julgamento e auma regra das aes humanas.E fazem dupla a Sabedoria

    divina: uma atingida peloestudo, e mais ou menosaquela dos filsofos que euacabo de mencionar; a outra,infusa e dada por Deus. Desursum descendens. o pri-meiro dos sete dons do Esp-rito Santo. Spiritus Dominispiritus sapientiae, que no

    se encontra seno nos justos elimpos de pecado. In male-volam animam introibit sapi-

    entia. Desta Sabedoria divinatambm no pretendemosfalar aqui. Ela , em certosentido e medida, tratada emminha primeira verdade, e emmeus discursos acerca da Di-vindade.

    5. Segue-se, pois, que da

    Sabedoria humana que nossolivro trata e de que leva onome. Procuramos aqui, pois,primeiramente sua definioe, em seguida - para melhorcompreend-la, - ns nos es-tenderemos por uma explica-

    o e um quadro mais amplose particulares, que sero comoo sumrio e o resultado denosso Livro.

    As descries comuns sodiversas e todas curtas. Al-guns, e a maior parte dos ho-mens, pensam que uma pru-dncia, discrio e compor-tamento prudente nos negci-os e na conversa. Isto dignodo homem comum que relaci-ona quase tudo ao exterior, ao, e no considera outracoisa seno o exterior. Ele

    todo olhos e ouvidos, os mo-vimentos internos o tocam e

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    pesam para ele muito pouco.Assim, segundo eles, a Sabe-doria pode existir sem pieda-de e sem probidade essencial: uma boa aparncia, umadoce e modesta fineza.

    Outros pensam que umasingularidade rude e espinho-sa, uma austeridade contradade opinies, costumes, pala-vras, aes e modo de viver-

    de tal forma que chamam,queles que so feridos outocados por este humor, fil-sofos. Em outras palavras, embom jargo, extravagantes,esquisitos, heterclitos. Ora,tal Sabedoria - de acordo com

    a doutrina de nosso livro - ,antes, uma loucura e umaextravagncia.

    preciso, ento, aprender que de outros e no do homemcomum, a saber, dos filsofose dos telogos, que ambostrataram em suas doutrinasmorais. Aqueles mais longa epropositadamente como suaverdadeira presa, seu assuntoprprio e formal, pois eles seocupam com aquilo que danatureza e com o fazer. Ateologia vai mais alm, conta

    e se ocupa com as virtudesinfusas tericas e divinas, ou

    seja, com a Sabedoria divina ecom o crer. Assim, os filso-fos se demoraram e se esten-deram mais a, regulando eintroduzindo no somente oparticular, mas tambm ocomum e o pblico, ensinan-do o que bom e til s fam-lias, s comunidades, s rep-blicas e aos imprios.

    A Teologia mais mesquinha

    e taciturna nessa parte, visan-do principalmente ao bem e salvao de cada um. Os fil-sofos a tratam mais delicada eagradavelmente, os telogosmais austera e secamente. AFilosofia, que a primognita

    - como a natureza a primo-gnita da graa - parece per-suadir graciosamente e quereragradar aproveitando. Reves-tida e enriquecida de discur-sos, razes, invenes, agude-zas engenhosas, exemplos,semelhanas; ornada com

    belos dizeres, apotegmas,palavras sentenciosas; para-mentada com eloqncia eartifcio. A Teologia - queveio em seguida - parece co-mandar e ordenar imperiosa emagistralmente.

    Certamente os filsofos foramexcelentes nessa parte, no

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    somente por trat-la e ensin-la, mas ainda por represent-la, viva e ricamente, em suasvidas nobres e hericas. Euentendo aqui por filsofos eSbios no somente aquelesque levaram o nome de S-bios, como Tales, Slon, osoutros que tiveram enverga-dura e os do tempo de Ciro,Creso, Pisstrato. Tambm

    aqueles que vieram em segui-da e ensinaram em pblico,como Pitgoras, Scrates,Plato, Aristteles, Aristipo,Zeno, Antstenes, todos che-fes de partido, e tantos outrosseus discpulos, diferentes edivididos em seitas. E ainda

    todos os grandes homens quefaziam profisso singular eexemplar de virtude e sabedo-ria, como Fcio, Aristides,Epaminondas, Alexandre -que Plutarco chama tanto deFilsofo quanto de Rei dos

    Gregos. Os Fabrcios, Fbios,Cates, Torquatos, Rgulos,Llios e Scipies: romanosque em sua maioria foramgenerais de exrcito.

    Por essas razes eu sigo eemprego em meu livro, demelhor grado, a opinio e odizer dos filsofos, sem toda-

    via omitir ou rejeitar a dostelogos, pois tambm emsubstncia eles esto todos deacordo e muito raramente tmdiferenas, e a Teologia nodesdenha empregar e fazervaler os belos dizeres da Filo-sofia. Se eu tivesse empreen-dido instruir para o claustro epara a vida conciliar, ou seja,para a profisso dos conselhos

    Evanglicos, ter-me-ia sidonecessrio seguir ad amus-sim, a opinio dos telogos.

    Mas nosso livro instrui para avida civil e forma um homempara o mundo, ou seja, para aSabedoria humana e no divi-

    na. Dizemos, ento, natural-mente e universalmente comos filsofos e com os telo-gos, que esta Sabedoria hu-mana uma retido, bela enobre composio do homeminteiro em seu interior, seuexterior, seus pensamentos,

    palavras, aes e todos osseus movimentos. a exce-lncia e perfeio do homemcomo homem, ou seja, segun-do leva e requer a lei primei-ra, fundamental e natural dohomem. Da mesma forma quedizemos ser uma obra bemfeita e excelente quando ela

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    est completa em todas assuas partes e quando todas asregras da arte foram nela ob-servadas. Homem Sbio aquele que sabe com exceln-cia fazer o homem.

    6. Para chegar a essa fortuna eadquiri-la, h dois meios. Oprimeiro est na conformaonatural e no carter primeiro,ou seja, no temperamento da

    semente dos pais. Em segui-da, no leite nutritivo e na pri-meira educao em relao qual se diz algum ser bem oumal nascido, ou seja, bem oumal formado e disposto para aSabedoria. No se cr o

    quanto esse comeo podero-so e importante; pois se secresse, ter-se-ia com ele umcuidado e uma diligncia dife-rentes do que se tem. coisaestranha e deplorvel que seesteja em tal indolncia, deno ter nenhum cuidado com

    a vida e com a boa vida da-queles que ns queremos se-rem ns mesmos. Nos assun-tos menores, damos ateno eempregamos conselhos; aqui,no maior e no mais nobre, nopensamos seno por acaso oupor coincidncia.

    Quem aquele que se inqui-eta, que consulta, que se colo-ca no dever de fazer o que devido, se guardar e prepararcomo necessrio para criarfilhos viris, sos, espirituais eprprios para a Sabedoria - jque o que serve para umadestas coisas serve para asoutras, e a inteno da nature-za visa conjuntamente a tudo

    isto? Ora, no que menos sepensa, e mal se pensa sim-plesmente em fazer filhos,mas apenas em saciar seuprazer, como animais. Esse um dos mais notveis e im-portantes erros que pode ha-ver em uma Repblica, do

    qual ningum se adverte ou sequeixa, e no h nenhuma lei,regra ou aviso pblico a esserespeito. certo que, se secomportassem como se deve,teramos outros homens e noos que temos. O que reque-

    rido nisto e na primeira ali-mentao est dito em nossoterceiro livro, no captuloquatorze.

    O segundo meio est no estu-do da Filosofia. Eu no merefiro a todas as suas partes,mas moral (sem, todavia,desprezar nem esquecer a

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    natural), que a luz, o guia ea regra de nossa vida, queexplica e representa muitobem a lei da Natureza, instruio homem universalmente emtudo - no domnio pblico eno privado, s e em socieda-de, para toda conversa do-mstica e civil - tira e suprimetodo o lado selvagem que estem ns, ameniza e domestica

    o natural rude, feroz e selva-gem, habitua-o e afeioa-o sabedoria. Enfim, a verda-deira cincia do homem.Todo o resto, face a ela, somente vaidade, e no nemnecessrio nem til, pois elaensina a bem viver e a morrer

    bem, o que tudo. Ensinauma brava prudncia, umahbil e fortepreudhommie1euma probidade bem avisada.

    1Nota dvena - Preud'hommie: Probi-dade, nobreza espiritual, delicadeza de

    carter, senso moral ntegro e generoso,distanciamento racional e impassibili-dade atarxica. Personalidade indepen-dente, de serenidade inabalvel e livrede conceitos anteriores e opinies ante-cipadas, que permite viver sem sobres-saltos, sem sentir-se perturbado pelasdesgraas do mundo exterior ou pelaameaa religiosa de um inferno escato-lgico, nascida em ns de suas prpri-

    as razes pela semente da razo univer-sal impressa em todo Homem no des-

    naturado. (Montaigne inLes Essais).

    Mas esse segundo meio quase to pouco praticado emal empregado quanto o pri-meiro. Nem todos se preocu-pam com essa sabedoria, toatentos esto vida mundana.Eis os dois meios de chegar sabedoria e obt-la, o naturale o adquirido. Quem foi felizno primeiro, ou seja, quem foifavorecido pela natureza e

    tem um temperamento bom eafvel, o qual produz umagrande bondade e suavidadede costumes, avanou bem nosegundo. Sem muito esforoele se encontra completa-mente propenso e disposto sabedoria. Quem for consti-

    tudo de modo contrrio deve,com grande e laborioso estu-do do segundo meio, recom-por-se e completar o que lhefalta. Como Scrates, um dosmais Sbios, dizia de si: que,pelo estudo da filosofia, tinha

    corrigido e endireitado seumau natural. Que isto tenhasido suficientemente dito emgeral de nossa sabedoria hu-mana, o que , e os meios dechegar at ela.

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    CAPTULO II

    1. Descrio ampla da Sabedoria por seus traos e ofcios pr-

    prios, cujo primeiro conhecer a si e condio humana.2. Segundo, regular sua vida exterior segundo as leis e costu-mes.

    3. Terceiro, isentar-se de erros populares e paixes.

    4. Quarto, tudo julgar.

    5. Quinto, no se obrigar a nada.

    6. Sexto,preudhommieessencial.7. Stimo, seguir em tudo a natureza, ou seja, a razo, a eqi-dade universal.

    8. Concluso do dito acima.

    9. Aviso de que a graa necessria para conduzir a sabedoriahumana para sua meta, perfeio e coroamento.

    Passemos agora a uma descri-o mais ampla, clara e parti-cular. Eu quero aqui apontar edelinear os verdadeiros e pr-prios traos e esboos desta,considerando brevemente os

    principais ofcios e deveresque convm ao Sbio, omnisui, et semper. Os traos co-muns, dos quais todos partici-pam, eu no os abordo, massomente aqueles que, sendo-lhe peculiares, separam e ele-

    vam o Sbio acima do co-mum.

    1. O primeiro trao consistena inteligncia, conhecerbem o assunto que ns trata-mos e tentamos formar para aSabedoria - que o homem.Por homem eu entendo tanto

    universal quanto particular-mente a condio humana, elaprpria. uma cincia bels-sima e til como preliminarnecessria. A primeira detodas as coisas o conheci-mento daquilo que temos em

    mos e de que tratamos. Isto,porm, bastante difcil, pois

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    o homem extremamentedissimulado e disfarado, nosomente de homem para ho-mem, mas de cada um para simesmo. Cada um sente prazerem se enganar, se esconder,se esquivar e trair a si mesmo-Ipis nobis furto subducimur,- gabando-se e se afagandopara fazer rir a si mesmo,atenuando defeitos e adoran-

    do o que possui de bom.Ora, para tanto, precisoprimeiramente conhecer todosos tipos de homens, de todasas aparncias, climas, de to-das as naturezas, idades, esta-dos, profisses - para isto

    servem o viajar e a histria, -seus movimentos, inclinaes,aes; no somente as pbli-cas - elas so o de menos,pois so todas artificiais - masas privadas e, especialmente,as mais simples e ingnuas,produzidas por seu movi-

    mento prprio e natural.Tambm todas aquelas que otocam e interessam particu-larmente, pois nestas duas sedescobre o natural em suaverdade, j que os homens asrevelam todas juntas paradelas fazer um corpo com-pacto e um julgamento uni-

    versal. Mas especialmenteque o homem entre em simesmo e se toque, se sondebem atentamente sem se li-sonjear, que ele examine cadapensamento, cada palavra ecada ao.

    Finalmente ele certamenteaprender que o homem , naverdade, por um lado umacoisa muito medocre, fraca,

    lastimosa e miservel, e tercompaixo. Por outro lado, oencontrar todo inchado eempolado de vento de orgu-lho, de presuno e de dese-jos, dos quais ele ter despei-to, desdm e horror. No que-

    ro me demorar mais nesteprimeiro ponto, pois o as-sunto de meu primeiro livro,no qual por tantos meios dife-rentes, em todos os sentidos epara todos os usos, e certa-mente at o mago da ques-to, o homem descrito e

    representado. E com tal foraque - para dizer a verdade,pois o sinto bem - muitos seofendem e reclamam, se irri-tam que se diminua e se de-precie tanto o homem, queantecipem a descoberta desuas vergonhas. E eu mequeixo e grito que ningum

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    estuda para se conhecer, nemse preocupa com isto, apesardo que se diz e alardeia, eleno sente, no se move nemapreende.

    Quem que confessa de boaf no se conhecer? E ondeest aquele que estuda seria-mente para se conhecer? Nin-gum mestre de si mesmo, emenos ainda dos outros. Nas

    coisas no necessrias htantos mestres e discpulos;nesta, no. Ns nunca esta-mos vontade em nosso inte-rior, mas sempre no exterior adistrair-nos. O homem conhe-ce todas as coisas melhor do

    que a si. Que misria! Eu vejotodos os dias pessoas que tmclasse, que andam de cabeaerguida e do lies aos ou-tros - que, por fazerem dissoprofisso, tm reputao devirtude e de saber - to co-bertos e transbordantes de

    taras, de defeitos e de vcios,que todavia absolutamenteno sentem, mas sim perma-necem to satisfeitos de suaspessoas. O que fareis comrelao a isto? Doena incu-rvel, esta. Ora, unicamente oSbio se conhece, e quem seconhece bem, Sbio .

    2. O segundo trao e ofcio desabedoria que compreendetodo o exterior e as aparnci-as, ou seja, tudo o que dizrespeito ao pblico e aoalheio (palavras, aes, todosos desgnios e movimentosexternos) se regrar inteira-mente no nvel das leis, doscostumes, dos hbitos e dascerimnias de seu pas, evi-

    tando cuidadosamente todasingularidade e particularida-de extravagante afastada docomum e do ordinrio, pois,qualquer que seja, ela semprechoca e fere outrem, e sus-peita de loucura, de ambioou de hipocrisia. Ainda que

    tenha a alma doente e pertur-bada, non conturbabit sapi-ens publicas mores, non po-

    pulum in se novitate vitae

    convertet eadem, sed non

    eodem modo faciet, nec eo-

    dem propositio.

    Eu desejo ento que meu S-bio caminhe sob a proteodas leis e costumes, sem dis-putar ou hesitar, sem buscardispens-las ou encarec-laspara se fazer de bom servidor.Sem aumentar nem diminuir,isto no pelo amor delas e porserem elas justas e eqitativas

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    - pois h muitas que no o soe, alm disso, no lcitocontradiz-las ou consult-las;se isso fosse lcito, tudo aca-baria em confuso e desor-dem. Tudo simplesmente por-que so as leis e costumes dopas. Nem por temor, nem porsuperstio e nem por umaservido imposta, escrupulosae permevel a elas, mas por

    uma inteno e de maneiralivre, nobre e elegante. Solihoc sapienti contngt, ut

    nihl faciat invitus, recta se-

    quitur gaudet officio.

    O Sbio faz seu dever e res-peita as leis. No por causa

    delas, mas por si mesmo, poisele est acima delas e noprecisa delas, elas so reque-ridas para o homem comum.E se no as houvesse, ele nofaria nada a menos e nada amais, e nisto ele difere dohomem comum, que no age

    bem sem as leis. At justo etsapienti non est fex posita.

    2

    Ora, seguindo esta lio, o

    2Nota dvena Espritos evoludos secomportam com integridade por ndolenatural ou por ter conscincia de queassim deve ser e no por medo do taco

    divino, dos rigores da lei ou de qualqueroutra ameaa. (Persis Pacci in Primei-ra Luzes, pg. 261).

    Sbio viver sem ofender aoutrem, sem chocar o pbliconem o particular e sem escan-dalizar os fracos, os imper-feitos e os populares.

    Todas essas condies fazemcom que esse seja o segundotrao de sabedoria - de outramaneira ele seria o trao ca-racterstico do homem co-mum - pois no h homem to

    pequeno que no diga que sedeve viver de acordo com asleis, mas Deus sabe como elesse comportam. Observando asleis, eles troam delas, asofendem e ultrajam, no es-tando de forma alguma con-

    tentes com sua observncia eobedincia, pois elas no socomo eles querem e enten-dem.

    3. O terceiro grande e verda-deiramente prprio trao dasabedoria - que diz respeitoao esprito e ao interior - uma plena, nobre e generosaliberdade. Por ela o Sbio seafasta e se exime de todo erroe paixo, considera e julgatodas as coisas, no se chocanem se agarra a nenhuma,mas permanece completa-

    mente franco, inteiro e con-tente consigo mesmo. Essa

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    liberdade o cume, o prpriodireito e privilgio do Sbio,que o nico verdadeira-mente livre.Nisi sapiens libernemo: stufti omnes et impro-

    bi servi.

    Ora, essa liberdade Est emvrias coisas, entre as quaiscontei trs principais, que sotrs traos e ofcios da Sabe-doria. Uma, que ser o tercei-

    ro trao da ordem, umaiseno e libertao de todasas coisas que perturbam, in-festam e deterioram o espri-to, se opem sabedoria e aimpedem. o que acontececom todos os erros populares,

    com as opinies vulgares,fracas e, freqentemente, fal-sas (nihil remotius veritatequm vulgaris opinio), dasquais o mundo est repleto, eque nos atraem e recebemosfacilmente na sua freqnciacontagiosa. E, alm do mais,

    as paixes que nascem emnosso interior, como peque-nos tiranetes, conduzem malnosso esprito.

    Para se proteger e se garantircontra esse miservel cativei-ro e da mo desses inimigos

    externos e internos, precisoaprender e resolver-se a no

    acreditar nem seguir a opinio- que uma louca, volvel,incerta, inconstante, - o guiados loucos e do vulgar. Aocontrrio, sempre e em todasas coisas se dispor segundo arazo, guia dos Sbios. Seguira razo a verdadeira liber-dade e o verdadeiro domnio.Dura servido se deixarlevar pela opinio. Isto j se

    divorciar e romper com omundo, que coberto de erro,opinio e paixo. Mas o quese poderia fazer? No se podeaproximar e aliar sabedoriade outra forma. Retirar-se e sedesviar do mundo um pre-mbulo, quando se quer sau-

    dar o umbral do santo sacrrioda sabedoria. Odi prophanumvulgus et arceo.

    4. A segunda parte dessa li-berdade e quarto ofcio doSbio ver, considerar, exa-minar e julgar todas as coisas.

    Nada deve escapar ao Sbio,que ele no coloque sobre amesa e a balana. o conse-lho de um dos Sbios maisdivinos, omnia probata, quodbonum est tenere. , segundoele, o privilgio honroso doSbio e do homem espiritual.Spiritualis omnia dijudicat et

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    a nemine iudicatur. a ver-dadeira ocupao, seu ofcioverdadeiro e natural; porisso que o esprito lhe foidado, por isso que ele ho-mem.

    Para qu, ento? Para se en-treter com vaidades e tolices ese alimentar delas, e fazer,como se diz, castelos na Es-panha, como fa.z todo homem

    comum: quis unquam oculostenebrarum causa habuit. OSbio no se deve deixar le-var como um bfalo, no deveacolher opinies sem entrarem anlise e discusso, nemreceber ligeiramente tudo que

    se lhe apresenta, ainda queseja plausivelmente aceito portodos. Isto para os profanos,que no tm nem a fora nema coragem, nem a capacidadede pesar, julgar, examinar.Aceito que se viva, fale, faacomo os outros e como o ho-

    mem comum. Mas no que sejulgue como o comum, ouseja, quero que se julgue ocomum. Que possuir o Sbioe sagrado a mais que o profa-no, se ainda necessrio queele tenha seu esprito, seujulgamento, sua principal e

    herica parte escravizada pelohomem comum?

    Ao pblico e comum deve

    contentar que se conforme aele em todas as aparncias.Que tem ele com meu interiormeus pensamentos e minhasopinies? Eles governaro oquanto quiserem minha mo,minha lngua, mas no meuesprito; este possui um outro

    mestre. No se saberia impe-dir a liberdade do esprito edo julgamento; querer faz-lo a maior tirania que possaexistir. O Sbio se preservartanto ativa quanto passiva-mente, se manter em sua

    liberdade e no perturbar ade outrem.

    Ora, disso suceder freqen-temente que o julgamento e amo, o esprito e o corpo secontradiro. E que o Sbiofar no exterior coisas quejulga em seu esprito que seriamuito melhor fazer de formadiferente. Ele desempenharum papel em seu interior eoutro em seu exterior, e devefaz-la para manter a justiaem toda parte. Fazendo noexterior - para a reverncia

    pblica e para no ofenderningum - o que a lei, o cos-

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    tume e a cerimnia do pasusam e requerem, ainda queisso no seja em si bom nemjusto. Error comuns facitjus. E, julgando no interior oque verdadeiro segundo arazo universal - para a reve-rncia que deve a si, a seujulgamento e razo - ele sedirigir s coisas e aos fatoscomo Ccero se dirigia s

    palavras, ao dizer: "Eu deixoo uso do falar ao povo e mereservo a cincia das pala-vras." Loquendum et viven-dum extra ut multi, sapien-

    dum ut pauci.

    Expliquemo-la por diversos

    exemplos. Eu tirarei humil-demente meu gorro, e perma-necerei com a cabea desco-berta frente a meu superior,pois assim manda o costumede meu pas. Mas no deixareide julgar que a maneira desaudar e fazer reverncia do

    Oriente, levando a mo aopeito - sem se descobrir comprejuzo da sade e se inco-modar de diversas formas - bem melhor. Por outro lado,se eu estivesse no Oriente,tomaria minha refeio senta-do no cho ou apoiado sobreos cotovelos e meio deitado,

    olhando a mesa de lado, comoeles fazem l, e outrora faziao Salvador com seus Apsto-los; recumbentibus, discum-bentbus. Mas no deixaria dejulgar que a maneira de sesentar ereto mesa e o rostoreto em direo a esta - comoa nossa - mais correta, con-veniente e cmoda. Estesexemplos so de pouco peso,

    e h milhares semelhantes.Tomemos alguns de maiorenvergadura. Eu quero e con-sinto que os mortos sejamenterrados e abandonados merc dos vermes, da podri-do e do fedor, pois hoje a

    maneira comum e quase geralem todo lugar. Mas no dei-xaria de julgar que a maneiraantiga de queimar e recolheras cinzas muito mais nobree limpa. D-los e recomend-los antes ao fogo - o maisnobre dos Elementos, inimigo

    da podrido e do fedor, vizi-nho do Cu, signo da imorta-lidade, cujo uso prprio epeculiar ao homem - do que terra - que a lia, o bagao eo lixo dos Elementos, a senti-na do mundo, me de corrup-o - e aos vermes - que so aextrema ignomnia e horror -

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    e, desta forma, emparelhar etratar o homem da mesmamaneira que o animal.

    A prpria Religio ensina eordena dispor assim de todasas relquias, como do Cordei-ro Pascal que no se podiacomer, as Hstias consagra-das, as roupas pintadas comleos sagrados. Por que noseria feito o mesmo com nos-

    sos corpos e relquias? Eu vosrogo pensar algo pior, se pu-deres, do que coloc-los naterra para a corrupo. Istoparece que deveria ser feitopara aqueles que so punidospelo pior suplcio e para as

    pessoas infames, e que asrelquias das pessoas de beme de honra fossem mais dig-namente tratadas. Certamente,de todas as maneiras de dis-por dos corpos mortos, queresultam em cinco - ou seja,d-los aos quatro Elementos,

    e aos ventres dos animais - amais vil, baixa e vergonhosa enterr-los, e a mais nobre ehonrosa queim-los.

    Tomemos ainda um outroexemplo e toquemos em umadas reclamaes contra meu

    livro. Eu quero e consinto quemeu Sbio se faa de rogado

    face s coisas naturais, queele esconda e cubra as partese aes que chamamos vergo-nhosas. Se fizesse de outramaneira eu teria pavor e umapssima opinio dele. Masquero que julgue que, em sisimplesmente e segundo anatureza, elas no so maisvergonhosas que o nariz e aboca, o beber e o comer. Ha-

    vendo somente a natureza,Deus nada fez de vergonhoso:no na natureza, mas noinimigo desta que est o pe-cado. A teologia - ainda maispudica que a filosofia - nosdiz que na natureza inteira eainda no alterada pela ao

    do homem, elas no eram demaneira alguma vergonhosas.No havia vergonha, ela inimiga da natureza: a raado pecado. Eu me contentocom esses quatro exemplos econcluo esta segunda parte

    acerca da liberdade do Sbio,que examinar e julgar todasas coisas.

    O homem comum no capazdisso; o que o impede aforte preveno e antecipaode opinies, que o possueminteiramente. Ele esta to di-rigido que no pode mais des-

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    fazer-se delas, nem desdiz-las, e pensa que isso no lhe permitido. De tal forma quevive e age mais ou menoscomo o animal - sem trazer aseu julgamento e exame -movido pela necessidade docostume e da opinio anteci-pada, assim como o animalpor necessidade e instinto denatureza. Ora, para julgar

    preciso despojar-se de tudo,se colocar a nu, considerar ascoisas com sangue frio, comose fossem propostas recm-colocadas.

    Ele se dispe a julgar e prsob exame as opinies e ma-

    neiras de agir estrangeiras.Por que no faz o mesmo comas prprias? No para mud-las ou ser contrrio a elas -isto foi dito, - mas para sem-pre buscar a verdade e exercerseu ofcio, que julgar. possvel que de tantas leis,

    costumes, opinies, cerimni-as diferentes e contrrios aosnossos que h no mundo, so-mente os nossos sejam bons?Que todo o resto do mundo setenha enganado? Quem ousa-ria diz-la? E quem duvidaque os outros no dizem exa-tamente o mesmo dos nossos

    e que, aquele que assim con-dena os outros, se tivesse nas-cido e sido criado em outros,no os acharia melhores, e ospreferiria a esses que ele con-sidera agora como os nicosbons?

    O costume e a preveno fa-zem tudo. quele que loucoo bastante para diz-la, euresponderei que este conselho

    ser ento pelo menos paratodos os outros, a fim de quese coloquem a julgar e exa-minar tudo, e que assim fa-zendo eles achem os nossosmelhores. Mais ainda, j queentre mil mentiras h uma s

    verdade, mil opinies de umamesma coisa e uma s verda-deira, por que no examinariaeu com razo qual a melhor,qual a mais verdadeira, maisrazovel, mais til, mais c-moda j que tenho espirito esou homem para faz-la? So-

    bre este ponto falou-se o sufi-ciente, com exceo de umapalavra que preciso acres-centar, a fim de que no seenganem, e que servir comopassagem ao trao e ofcioseguinte. que este julgar eexaminar no resolver,afirmar, determinar, mas bus-

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    car a verdade - pesando e ba-lanceando as razes de todasas partes, - procurar o maisverossmil. E o que vamosdizer.

    5. A terceira parte dessa li-berdade e quinto ofcio deSabedoria que segue - e que preciso juntar ao precedente - uma suspenso e indiferenade juzo. Por ela o homem,

    considerando tudo como dito friamente e sem paixo,no se ofende nem se liga ouobriga a coisa alguma, mas semantm livre, universal eaberto a tudo, sempre prontopara receber a verdade quan-

    do ela se apresenta. Adere, noentanto, ao que lhe parecemais verossmil, dizendo eatribuindo em seu julgamentointerno e secreto o que osantigos diziam em seus jul-gamentos externos e pblicos.Ita videtur. Assim parece, h

    grande aparncia desse lado.Se algum diz que de outramaneira, ele responder semse comover. Pode perfeita-mente estar pronto a escut-lo, guardar sempre lugarpara uma razo mais forte,

    no jurando sobre nada. amodstia acadmica to re-

    quisitada ao Sbio, pela qualele est sempre pronto para averdade e a razo, semprecapaz destas quando elas seapresentam. Essa modstia eessa suspenso retida vm doprecedente - que tudo julgar,- pois, examinando univer-salmente todas as coisas sempaixo, encontrar-se- portodo lugar a aparncia que

    pra e impede de precipitarseu prprio julgamento, e trazo temor da decepo. Os queno julgam no podem teressa suspenso, tanto queeles se ofendem de ouvir falardela. Julgando os outros poreles mesmos, no acreditam

    de forma alguma que se possaa permanecer sem perturba-o e pena de esprito. Ora,ela primeiramente funda-mentada nestas proposiesto famosas entre os Sbios:no h nada de certo, ns no

    sabemos nada, a nica certezae cincia que no h nada decerto - solum certum nihilesse certi, Hoc unum scio

    quod nihil scio, - ns unica-mente buscamos, inquirimos,procuramos e tateamos emredor das aparncias - scimus

    nihil opinamur verisimilia.

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    A verdade no de nossaaquisio, inveno nem apre-enso. Mesmo se ela se entre-gasse em nossas mos, nsno teramos como reivindi-c-la, assegurarmo-nos dela epossui-la, pois a verdade e amentira entram em ns pelamesma porta, a tomam omesmo lugar e crdito, e a semantm pelos mesmos meios.

    No h opinio alguma tidapor todos em todo lugar. Noh nenhuma que no seja de-batida e contestada, que nohaja uma contrria que noseja colocada e sustentada.Todas as coisas tm duas en-seadas e duas caras, h razo

    em todo lugar e no existenenhuma que no possua seucontrrio.

    A razo humana de umchumbo que se dobra, vira ese acomoda a tudo que sequer. Todos os Sbios e mais

    insignes filsofos fizeramprofisso expressa de duvidar,de inquirir e de buscar. SerSbio ser inquiridor da ver-dade. esta bela e grandetranqilidade ou suficincia,dada por precpuo a Scrates -o Corifeu dos Sbios, peloconsentimento de todos os

    Sbios, - do qual dito, comodiscorre Plutarco, que ele noparia, mas servia de parteira atodos os outros que fazia pa-rir.

    certo, segundo todos osSbios, que ignoramos maiscoisas do que sabemos, quetodo nosso saber a menorparte e quase nada em vistado que ignoramos. E o que

    pensamos saber, ns no osabemos nem o possumos.Prova disso que ele nos arrancado freqentemente dospunhos. E se no arrancado- porque a teimosia maisforte, - pelo menos nos

    contestado, perturbam-nos aseu respeito. Ora, como sere-mos capazes de saber mais emelhor, se ns nos obstina-mos, paramos e repousamossobre certas coisas, de tal ma-neira que no somente nsno buscamos nada a mais

    nem melhor, nem examina-mos mais o que possumos,mas ainda achamos ruim quenos queiram dar alguma novaluz, como faz o vulgo? Comessa boa, cndida e inocentesuspenso, nosso espritopermanece primeiramentelivre, universal e mestre, pas-

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    seando por todo lugar - Mag-na et generosa res humanus

    animus nullos sibi poni nisi

    communes et cum Deo ter-

    minas patitur, - contemplan-do com um olhar firme comode uma alta escora todas asvariedades, mudanas e vicis-situdes do mundo. Sem mu-dar-se ou variar de forma al-guma, mas se agarrando a si

    como libr da divindade -tambm o privilgio do Sbio,que a imagem de Deus naterra - sem se engajar e setornar parcial ou particular,pois a parcialidade inimigada liberdade e do domnio.

    Um paladar alertado e tomadopor um gosto particular nopode mais julgar bem os ou-tros; o indiferente julga a to-dos. Quem apegado a umlugar est banido e privado detodos os outros. O cartopintado de uma cor no ca-

    paz de receber as outras, obranco o de todas. O juizque tenha prevenes, incli-nando-se e se tornando favo-rvel a uma parte, no maisdireito, inteiro nem verdadei-ro juiz. Ele permanece assimlimpo, isento de todo erro edescontentamento, modesto,

    pacfico, suave, contente eno se abala com nada.

    De onde vm as perturbaes,

    as sedies, as rebelies, asseitas, as heresias, seno dosorgulhosos, dos afirmativos,dos arrogantes e dos resolu-tos? Eu sei que esta liberdade difcil e rara, por dois impe-dimentos contrrios. Um apresuno e a louca persuaso

    de ver suficientemente claro,de ter juzo suficiente e depossuir a verdade atravs daqual, orgulhosamente, elescondenam todas as opiniescontrrias s suas, sem antesexamin-las. Se disputam,

    no para encontrar a verda-de e o melhor, mas unica-mente para sustentar sua opi-nio e defender seu partido.

    O outro impedimento o te-mor e a fraqueza. Como comaqueles em quem o coraoaperta, estando em uma altatorre e olhando para baixo,poucas pessoas tm a fora ea coragem de se manter de p,-lhes necessrio se apoiar.No podem viver se no socasados e amarrados, noousam permanecer ss, com

    medo dos duendes, temem

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    que o lobo os coma. So pes-soas nascidas para a servido.

    Concluo esses dois traos e

    ofcios de Sabedoria, que soprimos. A eles eu me ativemais, porque sei que eles es-to distantes do gosto domundo - tanto quanto a Sabe-doria. So atacados por mui-tos, a saber, por todos; e nose obstinam nem teimam com

    nada. Por eles o Sbio se so-bressai acima do comum, seprotege de dois obstculoscontrrios, nos quais caem osloucos e os populares - a sa-ber, a cabeuda teimosia, asvergonhosas retrataes, os

    arrependimentos e as mudan-as - e se mantm livre, emliberdade de esprito, que oSbio nunca se deixar arre-batar. No coisa estranhaque o homem no queira ex-periment-la e at mesmo seofenda em ouvir falar dela? E

    no h motivo aqui para gritarcom Tibrio, e mais justa-mente que ele, O homines adservitutem nati!

    Que monstro esse, para que-rer todas as coisas livres - seucorpo, seus membros, seus

    bens, - mas no o esprito que,todavia, nasceu para a liber-

    dade, contrariamente ao res-to? No temam, diz a Verda-de, aqueles que tm potnciano corpo, mas no a tm noesprito. Item, todos queremse servir daquilo que est nomundo, do que vem do ori-ente, do ocidente, para o beme para o servio do corpo, dasade, da comida, do orna-mento, e acomodar esse todo

    a seu uso, mas no para acultura do esprito, seu exer-ccio, seu bem e seu enrique-cimento. Soltam os corposnos campos e trancam a cha-ves o esprito.

    Quero aqui acrescentar uma

    nica palavra, ainda que tenhasido bastante dita. Essa liber-dade - tanto no que diz res-peito ao julgar, quanto aosuspender - no toca de ma-neira alguma as coisas divinase sobrenaturais que estoacima de ns, das quais no

    falamos neste livro. Estasdevemos admirar, adorar esimplesmente receber.

    6. O sexto ofcio e trao doSbio - que diz respeito vontade - uma probidade euma preudhommie fortes e

    firmes, que nascem nele porele mesmo, ou seja, pela con-

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    siderao de que ele umhomem. Todo homem se re-conhecendo como tal obri-gado a ser bom, direito e in-teiro, tal qual deve e pode ser,e o que a natureza e a razo oobrigam a ser. No querendoser tal, preciso que desistade ser homem, de outro modo um monstro, e vai contra simesmo.

    Quem deseja e consente umacoisa por necessidade a querboa e inteira. Desejar e aceitaruma coisa, mas no se preo-cupar que ela no valha nada,implica em uma contradio.O homem quer ter todas as

    suas partes boas e ss; o cor-po, a cabea, os olhos, o jul-gamento, a memria e atmesmo os cales e as botas.Por que no gostaria de tertambm a vontade, ou seja,ser bom e so inteiramente?

    Eu quero ento que ele sejabom, que tenha sua vontadefirme e resoluta retido e preudhommie. Isto peloamor de si mesmo e por serhomem, sabendo que nopode ser outro sem renunciara si, se desmentir e se destru-

    ir. E assim suapreudhommielhe ser prpria, ntima e es-

    sencial como lhe seu ser ecomo ele a si mesmo. Noser, pois, por nenhuma con-siderao externa e vinda defora, qualquer que seja, poissendo tal causa acidental eexterior pode vir a falir, seenfraquecer e mudar, e entotoda apreudhommieapoiadanela far o mesmo.

    Se ele virtuoso pela honra e

    reputao ou por outra re-compensa, estando na solido,na segurana de no ser per-cebido, cessar de s-lo, ou oser friamente e covarde-mente. Se o pelo temor dasleis, magistrados e punies,

    podendo fraudar as leis, ron-dar os juzes, evitar ou iludiras provas e se esconder doconhecimento de outrem, eleno o ser. Eis umapreudhommie caduca, ocasi-onal, acidental e certamentemuito dbil. ela que est em

    voga e em uso, no se conhe-ce nenhuma outra. Ningum homem de bem, salvo quandoinduzido, seja por uma causaou por ocasio. Nemo sponteet gratis bonus est.

    Ora, eu quero no meu Sbio

    uma preudhommie essenciale invencvel, que se sustente

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    por si mesma e por sua pr-pria raiz, e que, assim como ahumanidade do homem, nopossa ser arrancada nem sepa-rada. Eu quero que ele nuncaconsinta no mal; mesmoquando ningum saiba nada,no o saber ele? Que mais preciso? Todas as pessoastomadas em conjunto nochegariam a tanto. Quid tibi

    prodest non habere consciumhabenti conscientiam? Nemse ele devesse receber umarecompensa enorme, pois querecompensa poderia ser essa,que lhe tocasse tanto quantoseu prprio ser? Seria comoquerer possuir um cavalo

    mau, sob a condio de queele tivesse uma bela sela. Euquero ento que sejam coisasinseparveis: ser um homem econsentir em viver como tal,ser um homem de bem e que-rer ser tal.

    Ora, por meio dessapreudhommie que englobaas virtudes morais, mas queconsiste especialmente najustia - principal e mestra detodas elas, que devolve a cadaum o que lhe pertence, o S-bio cumprir bem e devida-mente todos os seus deveres

    para com todos: Deus, simesmo e seu prximo. Deus -primeiramente soberano eabsoluto Senhor e mestre domundo - a piedade, a religi-o, que a primeira parte dajustia e a mais nobre dasmorais.

    Assim a religio est contidasob a preudhommie, maisprecisamente sob uma parte

    da preudhommie. Por isso,meu Sbio guardio da lei eda virtude moral honrar,temer, amar, reverenciar eservir a Deus de esprito e decorpo, antes e sobre todas ascoisas. Em seguida atribuir a

    si e a seu prximo o que deve,de acordo com a ordem e amedida usada pela dita lei.

    7. O stimo e ltimo ponto -que guia e compreende todosos outros e para o esprito, ocorpo, o interior, o exterior, ojulgamento e a vontade - voltar a vista e o pensamentopara a lei da natureza, sempreacreditar nela e segui-la comoregra primeira, soberana, uni-versal e infalvel que .Natu-ram si sequaris ducem nus-

    quam aberrabis: sapientia est

    in naturam converti, et eorestitui unde publicus error

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    expulerit. Ab illa non deerra-

    re, ad illius legem exemplu-

    mque formari sapientia est:

    idem est beatae vivere et se-

    cundum naturam: omnia

    uitia contram natura sunt.

    a razo, a equidade, a luznatural que Deus inspirou emtodo homem e que, como umastro flamejante, ilumina ebrilha sem parar dentro dele,

    qualquer que seja, se ele nofor desnaturado.Signatum estsupernos lumen vultus tui.

    Gentes naturaliter quae legis

    sunt facunt: ostendunt opus

    legis scriptum in cordibus

    suis: lex scripta in cordibus

    nostris, quam necpsa deletiniquitas. Deus mesmo, ouento a lei primeira, original efundamental, sendo Deus e anatureza no mundo como oRei e a lei em um Estado.Quid natura nisi et divina

    ratio toti mundo et partibus

    ejus inserta?Por isso, assim como a agulhaimantada no m no praseno quando v seu norte, epor ele se endireita e conduz anavegao; da mesma forma ohomem nunca est bem, e est

    at mesmo desprovido e des-locado, se no tem em vista e

    no conduz o curso de suavida, seus hbitos, seus jul-gamentos e vontades segundoesta lei primeira, divina e na-tural - que uma chama in-terna e domstica. Todas asleis que existiram depois nomundo no so seno peque-nos extratos tirados dela. ALei de Moiss em seu declo-go uma cpia externa e p-

    blica. A Lei das Doze Tbuas,os ensinamentos morais dostelogos e filsofos, as opini-es e conselhos dos Juriscon-sultos, os ditos e Ordens dosSoberanos no so seno pe-quenas e particulares inter-pretaes e expresses dela.

    Se h alguma que se distanciaum mnimo dessa matriz pri-meira e original, ela ummonstro, uma falsidade e umerro. Ora, seguindo essa regramestra com relao a todas asoutras, ele se comportar reta

    e inteiramente em tudo e portodo lugar. Andar com umpasso suave, igual, eqitativo,uniforme e tranqilo em todasas coisas. Nunca ofender aoutrem, ser modesto naprosperidade e na adversida-de, pronto e paciente para amorte e contente consigo

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    mesmo. Tudo o que nos per-turba vem do fato de que que-remos, desejamos e perse-guimos aquilo que est almda natureza, contra ela e aci-ma dela. Aprendamos com osanimais, que se deixam guiarpela simplicidade da naturezae levam uma vida doce, pac-fica e inocente com toda li-berdade, repouso e segurana.

    E assim estaremos isentos detantos males, vcios e desre-gramentos, que o homemadota por no crer na naturezae no segui-la.

    O que tornou Scrates - etodos os outros grandes ho-

    mens que eu nomeei no co-meo - to Sbio, seno aprtica dessa lio? precisoreanimar, fortificar e retesar oesprito. No forar, violar,disfarar e fraudar a natureza,mas secund-la, socorr-la -fazendo valer no a sutileza,

    fineza e inveno; menos ain-da o vcio e o desregramento.Mas a verdade, a solidez e aintegridade. Ir bem e ganharno caminho no voltear, darsaltos, cabriolas e corridas,mas manter um bom passo,firme, regrado, seguro e dur-

    vel, ou seja, segundo a natu-reza.

    8. Eis uma pintura sumria de

    nossa sabedoria humana nes-ses sete pontos. Conhecerbem o homem e a si; regrargenerosamente a vida exteri-ormente, segundo o que prescrito exteriormente; guar-dar o esprito limpo de pai-xes e erros; julgar tudo; no

    se obrigar a nada;preudhommie essencial;visar e se conduzir sempresegundo a natureza e a razo.

    Contrariamente, o comum - eo profano - no se conhece,nem conhece a condio hu-

    mana, obedece s leis servil-mente, tem seu esprito com-pletamente escravo e servil,no julga nada, toma e recebetudo como os outros querem;sua preudhommie adquiridapor causa externa, ou por oca-sio externa visa antes a umalei local, particular e positivaque lei universal e naturalque Deus.

    Ora, essa inscrio quasetoda interna e no aparente,pois esses traos esto noesprito. Tambm a sabedoria

    qualidade espiritual e no

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    pomposa e barulhenta, elamal aparente. O Sbio no percebido nem conhecidocomo tal por todos, necess-rio perceb-lo atentamente deperto e escut-lo. Todavia,daremos em seguida marcasexternas para conhec-lo,comparando-o com o noSbio em seus desregramen-tos.

    9. Antes de sair desse prop-sito, gostaria de acrescentaruma palavra que no propri-amente parte desse assunto desabedoria humana e filosfi-ca, mas que servir para tirartoda dvida e escrpulo que

    poderiam nascer dos prop-sitos precedentes. que, comtudo que dizemos vantajosa-mente da lei da Natureza hu-mana e da Sabedoria humana,no pretendemos, absoluta-mente, excluir ou derrogar ahonra e a necessidade da gra-

    a, da ajuda e do socorro es-pecial de Deus. Sem ele con-fessamos que o homem nuncapode cumprir inteiramente eperfeitamente bem toda avirtude moral e a lei da natu-reza, como preciso. Aindamenos pode cumpri-la mere-cidamente e salutarmente

    vida eterna, como o gostariaPelgio: pois essa segundaafirmao totalmente indu-bitvel.

    Mas dizemos que o homem,empregando bem essa luz danatureza e fazendo o que def, se dispe para a graa. Aobservao da lei da natureza como uma isca, um esbooe um trao daquela. Aquele

    que segue o mximo que podeas virtudes morais, naturais ehumanas convida e d ocasioa Deus de dar-lhe as primciase gratific-lo com as virtudessobrenaturais e divinas. Pois ofato de que quem foi leal e

    cuidadoso em pouco sejaagraciado ao mximo umaeqidade e regra de conveni-ncia.

    Com isso concordam os san-tos Aforismas. Quia in modi-co fuisti fidelis supra multa

    te constituam: Deus dat spi-

    ritum bonum omnibus pe-

    tentibus eum: facienti quod

    in se est Deus non denegat

    gratiam: Deus non deficit in

    necessariis, et disponit omnia

    suaviter: Si homo incipiens

    habere usuram rationis, et

    deliberans de se ipso, ordina-verit seipsum ad debitum

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    finem, per gratiam conse-

    quetur remissionem peccati

    originalis etc. Nisto concor-dam os sagrados exemplos deAbrao, de J, dos dois centu-ries, de Naaman Srio e dopai de Santo Gregrio. Estes,sendo Pagos e infiis, porterem seguido bem esta lei e aluz da natureza, foram cha-mados para a f, que lhes foi

    dada - segundo diz este santoPai - como recompensa porsuas virtudes morais.

    Monum probitas eum nobis

    vendicabat unde retulit fidem

    in praemium praecedentium

    virtuum: inverter a lei da na-

    tureza se opor formalmentee impedir diretamente a graa.Sobre isto discorrem em se-guida o Apstolo, os Padres,Agostinho, Crisstomo eGrilo, fornecendo a razo pelaqual muitos judeus no rece-beram o Evangelho e pela

    qual o Salvador no pdepregar em vrios lugares. Porisso se enganam fortementeaqueles que tm outra via eque desdenham essa virtudemoral e a lei da naturezacomo muito baixa e pequenapara eles. No tendo nenhumverdadeiro sentimento de

    preudhommie, estes acredi-tam conseguir essa graaalhures. Eles se lisonjeiam, seglorificam e se fiam de sergrandes e ricos em bens so-brenaturais e divinos, mas seencontram a cada passo cul-pados da simples lei da natu-reza e do dever humano.

    Muito abaixo da virtude eprobidade desses simples fil-

    sofos que eles rejeitam e con-denam veementemente, assimsero condenados por elescomo to freqente e acre-mente os ameaa o SoberanoDoutor da verdade; mas elesno se incomodam em nada

    com isso. Conhecem algumasutileza pela qual se persua-dem de ser primos e amigosde Deus, sem fazer nem pre-servar sua lei primeira e fun-damental. Tudo isto est deacordo com a ordem ordinriada natureza que, no entanto,

    no impede que Deus a mudequando desejar, fazendo fun-cionar primeiramente suagraa especial, que precedetoda probidade, todo pensa-mento e toda deliberao na-turalmente boa. Eu j mealongo demais nesta digres-so.

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    Por isso, concluo que essasabedoria humana via para adivina; a lei da natureza viapara a graa, a virtude moral efilosfica para a Teologal, odever humano para o favor e a

    liberalidade divinos, assimcomo a alma vegetativa esensitiva - que pertence aodomnio dos pais - via paraa alma racional - que pertenceao domnio de Deus.

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    CAPTULO III

    1. Outra descrio mais sensvel do Sbio e da Sabedoria, por

    oposio ao contrrio que tambm retratado.

    2. Confrontao do Sbio e de seu contrrio no natural, nosmovimentos e nas inclinaes do esprito.

    3. E na conversao, na conferncia e nos desvios externos.

    1. Ora, eu gostaria ainda deretratar e descrever nosso S-bio e nossa Sabedoria de umaoutra maneira. Ou seja, pordissemelhana, por compara-o e por anttese com o seucontrrio descrio esta queser talvez mais bem compre-

    endida e entendida pelas pes-soas simples que a precedente.Isto por ser mais sensvel eaparente, tirada em sua maio-ria da conversao, das pala-vras, das aes e dos desvios.

    O que mais diretamente (e,

    de certa forma, hostilmente)contrrio ao Sbio e Sabedo-ria de que tratamos umacerta qualidade e espcie deespritos fracos, rasos e natu-ralmente populares, em segui-da prevenidos e obstinados emrelao a certas opinies e,

    por isso, incapazes de modifi-cao e de se tornarem Sbios.

    Se eles so guarnecidos deaquisies e de cincia, sototalmente irremediveis. Istoporque esta cincia acrescenta fraqueza e baixeza natu-rais, assim como ao conflito es preocupaes das opinies- que j so dois grandes im-

    pedimentos, - ainda a presun-o, o opiniatismo e a temeri-dade, envaidecendo-lhes ocorao.

    Scientia instat, e colocam nasmos armas para sustentar edefender suas opinies anteci-

    padas. Para concluir comple-tamente seu retrato, eis o re-trato de loucura traado nomago desses trs. O primeiro- que a fraqueza - vem dotemperamento original e de-pois do defeito de boa cultura.O segundo - que a formao

    antecipada de opinies - seencontra em todo tipo de

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    gente, de toda qualidade, pro-fisso e fortuna. O terceiro -que a aquisio das letras -no est em todos.

    A fim de que me compreen-dam melhor e que no se pen-se que desejo aqui denegrir acincia, digo que ela umbasto muito bom e til. Mas,quem no sabe manej-labem, recebe dele mais danos

    que proveitos. Ela torna opi-nitico e enfraquece (diz umgrande homem hbil) os esp-ritos fracos e doentes, maslustra e aperfeioa os fortes ebons naturais. O esprito fracono sabe possuir a cincia,

    aplic-la e se servir dela comodeve.

    Ao contrrio. Ele se dobra epermanece escravo dela, que opossui e rege. Como o est-mago fraco carregado de car-nes que no pode cozer nemdigerir; como o brao fracoque, no tendo poder nemhabilidade para manejar bemseu basto - que forte e pe-sado demais para ele, - se can-sa e se distrai completamente.O esprito forte e Sbio nodesfruta [a cincia], maneja-a

    como mestre, se serve delapara seu bem e vantagem,

    forma seu julgamento, retificasua vontade e se sente maishbil onde o outro se tornamais tolo e inepto.

    Assim, o erro no da cin-cia, nem a censura dirigida aela. No mais que ao vinho oua outra droga muito forte eboa, que superaria e oprimiriaa fora e o entendimento da-quele que a toma.

    Non est culpa vinis, sed culpa

    bibentis. Ora, contra tais esp-ritos fracos por natureza, en-vaidecidos e impedidos peloadquirido como inimigos for-mais da Sabedoria - a qualrequer um esprito forte por

    natureza, vigoroso, generoso,suave, modesto, flexvel e quesegue voluntariamente a ra-zo, - eu luto propositalmenteneste livro.

    E o fao freqentemente atra-vs da palavra "Pedante" - no

    encontrando outra mais ade-quada - que , neste sentido,usurpada do original pormuitos bons autores. Em suaprimeira significao gregaela bem colocada, mas emoutras lnguas posteriores, emrazo do abuso e da maneira

    errnea de proceder e se por-

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    tar com as letras e as cincias, vil, srdida, inquiridora,brigona e ostentativa. Pratica-da por muitos, foi usurpadacomo em "deriso" e "injria",e daquelas palavras que comum lapso de tempo mudam designificado, como tirano,sofista e outras.

    Eu sei que os mais exaspera-dos contra o meu livro so

    aqueles que pensam que essapalavra lhes diz respeito e quepor meio dela eu quis taxar eatacar os professores das le-tras e instrutores. Mas eles seapaziguaro - se lhes agrada -com esta franca e aberta de-

    clarao que lhes fao aqui,de no designar com tal pala-vra nenhum estado de invlu-cro ou profisso literria.Tanto que, por toda parte, eugosto muitssimo dos filso-fos, e atacaria a mim mesmo,j que eu o sou e tenho isto

    como ocupao habitual, ain-da que o seja dos menores.

    Mas designo uma certa quali-dade e grau de esprito queretratei acima, os quais seencontram sob toda vesti-menta, em toda fortuna e con-

    dio, vulgum tam clamyda-tos quam coronam voce. Se

    me fornecerem uma outrapalavra que signifique tal es-prito, eu a abandonarei demuito bom grado. Depoisdesta minha declarao de boaf, quem se queixar, se acusa-r e se mostrar muito des-gostoso.

    Podemos perfeitamente oporao Sbio outros alm do "Pe-dante", neste sentido particu-

    lar de comum, profano e po-pular. E o fao largamente,como o baixo ao alto, o fracoao forte, o vulgar ao distinto,o comum ao raro, o servo aomestre, o profano ao sagrado.Tambm podemos opor o

    Louco ao Sbio que, de fato,no primeiro sentido das pala-vras, seu verdadeiro oposto.Mas como o desregrado aoregrado, o glorioso opiniticoao modesto, o partidrio eparticular ao universal, o pre-venido e maculado ao livre,

    franco e claro, o doente aoso. O Pedante, porm, nosentido em que o tomamos,compreende tudo isso, e aindamais.

    Isso porque ele designa aqueleque no somente disseme-

    lhante e contrrio ao Sbio,como os citados acima, mas

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    ainda aquele que arrogante-mente e orgulhosamente lheresiste de frente. E, como seestivesse armado de todas asferramentas, se eleva contraele e o ataca. Como o Sbiono o teme de modo algum, jque o descobre e o v at omago e ao natural e lhe per-turba o jogo, o Pedante o per-segue com um dio seguro e

    interno, empreende censur-lo, depreci-lo e conden-lo,se estimando, se dizendo e seportando como o verdadeiroSbio.

    2. Por isso, para melhor co-nhec-los a ambos, gostaria de

    confront-los em todas as coi-sas, represent-los no teatro efazer cada um encenar seupersonagem. Primeiramente,com relao aos humores,inclinaes, impulsos e mo-vimentos de seus espritos.

    O Pedante3 estuda principal-mente para enfeitar e mobiliarsua memria, para poder en-treter os outros e cont-lo. OSbio4, para formar e regrarseu julgamento e sua consci-ncia. Aquele est sempre

    3Nota dvena Os Aquele.4Nota dvena Os Este.

    fora de si, usa e consome suasprprias faculdades e seusbens internos para conhecer oexterior. Este, ao contrrio,permanece voltado para si, seserve do exterior e o traz paraseu interior, no para aprisio-n-lo e escond-lo e em se-guida produzi-lo como aquele,mas para se valer dele em simesmo, para realmente se

    tornar melhor, mais hbil,resoluto, constante e corajoso.

    Aquele no aprende e nadasabe seno pelos livros, pre-ceitos, mestres e daquilo que estabelecido para instruir. Estetira seu benefcio de tudo, de

    todas as coisas que se dizem,se fazem e acontecem, por serum grande fruidor. At mes-mo das bagatelas, das coisasinsignificantes, nada lhe esca-pa que ele no reabilite.Aprende por si mesmo, doignorante, da mulher, da cri-

    ana, do Louco, do Pedante edaqueles com quem no querabsolutamente se parecer.

    Aquele admira e faz mais casoda arte, daquilo que radioso,reluzente e barulhento. Estepra no que natural, suave,

    fluente e cmodo; e gostamais disto. Aquele atento s

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    palavras. Este, s coisas: Sa-pientia in litteris non est, res

    attendis non verba. Aquele sedetm firme no texto e naspalavras da lei. Este, na eqi-dade e na razo.

    Aquele se mantm nas extre-midades, condena tudo uni-formemente, louva alm damedida - seja as pessoas ou asopinies. Rejeita completa-

    mente ou adota estreitamente, amigo ou inimigo, de umaou duas particularidades farum julgamento universal.Este, suave e moderadamente,aponta e concilia o quantopode. Reconhece o bem em

    quem quer que seja, e o dizat mesmo em um inimigo,tanto seu quanto do pblico.Diz o bem espontaneamente,avaramente o mal, ciumentoda verdade, da candura e daintegridade de seu julgamento.

    Aquele faz tudo com umapaixo e uma emoo que lheperturbam, corrompem e des-troem o julgamento. Este, comfrieza, tranquila e mansamen-te. Aquele todo vaidade ebarulho. Este, verdade e soli-dez. Aquele est pronto para

    falar, impaciente para ouvir,faz as coisas impropriamente.

    Este, todo o contrrio. Aquele todo do mundo, deseja ebusca, de forma atormentada,com o esprito e com o corpo,a honra, os bens e os prazeres.Este se comporta moderada-mente em todas as coisas, temseus pensamentos mais altos,mais espirituais.

    Aquele completamente ape-gado aos costumes, s opini-

    es, s maneiras e s pessoasde seu pas. Mama ainda nosseios de sua me, condenatoda violao, as coisas estra-nhas a seu uso e todas aquelasque ele no compreende. Esteolha com os mesmos olha

    com os mesmos olhos, julga econsidera as coisas mais es-tranhas da mesma forma queas suas.

    Aquele , consigo e com ou-trem, oneroso, desgostoso,despeitado e opinitico. Este,jovial, suave, fluente, alegre eaberto. Aquele atrevido,temerrio, premente e colri-co. Este, frio, paciente, lento eestimado. At aqui se conhecebem o gnio e o natural dosdois, e se v suficientemente oar de ambos.

    3. Venhamos s particularida-

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    des, conduta deles em con-versao e em sociedade. Emtudo diferena e diviso,aquele no se pode mantersem ser partidrio e, mesmoque possa evit-lo, o far ul-trajado e transportado. Este,enquanto pode, se mantmneutro ou moderador e co-mum. Se lhe convm ser par-tidrio, ele o ser com mode-

    rao e nunca far o pior quepuder ao partido contrrio, seno for pela fora e em extre-mo, et cum moderamine in-culpatae tutelae.

    Em companhia estranha edesconhecida, aquele quer se

    fazer sentir e conhecer, e quese saiba o que ele sabe, o quetem ou pensa ter de bom erecomendvel. O Sbio con-sente em permanecer desco-nhecido ou, ento, ser preci-so que algum assunto ou oca-sio se apresente sobre a qual

    lhe convenha se declarar e semostrar. Chegando onde cadaum possa livremente tomarlugar, aquele tomar ambicio-samente a mais honrosa ouinabilmente a mais baixa. Estediscretamente pensar emtomar o lugar mais cmodo econfortvel.

    Tendo feito alguma coisabela, boa, til e oficiosa aopblico ou a um particular,aquele se comporta ambicio-samente. Faz que isto soe alto,repete-o freqentemente, in-daga-se acerca do que se diz ese zanga por no se fazer maisbarulho e festa. Este suave-mente escuta o que dizem, secontenta consigo mesmo por

    ter feito um bem e se gratificapor ter sido bem-sucedido epela aprovao das pessoas debem.

    Se acontecer uma disputa euma conferncia, aquele pro-ceder orgulhosamente de

    uma maneira magistral, comtermos afirmativos e resolu-tos, condenando arrogante-mente as opinies contrriascomo absurdas, falsas e rid-culas. Este, modestamente esuavemente, com palavrasduvidosas e retidas diz: eu no

    sei, talvez, parece.Aquele fundamenta tudo so-bre a autoridade e dizer deoutrem, que ele alega comcuidadosa cotao dos luga-res, para dar demonstrao dememria e de grande leitura.

    Este se submete razo, emcomparao qual a autorida-

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    de pequena. Aquele nobusca seno vencer, sustentare defender sua opinio e atorto ou a direito se desfazerde sua parte. Este visa semprea verdade em direo da qualestende os braos e une asmos to logo ela lhe aparece.

    Aquele quer ser acreditado, sepasma e se irrita que no seache bom e verdadeiro o que

    ele diz. Sofre acremente porser contradito e pressionado e,ento, cria perturbaes econtesta sem fundamento.Este no se consagra a nada.No tendo desposado nada,busca sem disfarce a verdade,

    qual a contradio servemais que o consentimento e,no entanto, se contm sempre

    dentro da ordem e da perti-nncia.

    Na vitria, aquele insolente,

    murmura e afronta. Na derrotano reconhece absolutamentea boa f. Acredita que acaba-ria com sua honra se ele seretratasse e confessasse o erro.Este no faz soar a vitria,antes a piedade. E se mostrareservado, a no ser para al-

    gum louco, cabeudo, inso-lente e opinitico, ao qual elese revela inteiramente - a jus-tia uma bela esmola. Naperda, muito galantemente serende razo, e sua confissono nunca vergonhosa, pois

    ele nunca afirmou nem opi-nou.

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    CAPTULO IV

    1. Exame da descrio feita anteriormente da Sabedoria e res-posta s objees e censuras que se podem fazer contra ela.

    primeira, que ser ela nova.2. segunda, que ela no tratar da religio.

    3. terceira, proposta contra o quarto trao da dita descrio,que julgar de tudo.

    4. quarta, proposta contra o quinto trao, a saber, no seobrigar a nada, onde se fala dos princpios e do Pirronismo.

    5. quinta, que contra o sexto trao, a saber, apreudhommieessencial.

    6. sexta, que contra o stimo trao, a saber, seguir ela anatureza.

    1. Ora, j que alguns repro-

    vam e atacam esse retrato daSabedoria, devemos examin-la e conjuntamente compre-ender e responder s objeese censuras que propem con-tra ela. Primeiramente, elesdizem - grosso modo - que nova, que tomo um caminho

    ainda no traado, que minhasproposies so paradoxos e,at minha maneira de falar,audaciosa e particular. Eu nogostaria agora de mostrar re-pugnncia nem de debater seela nova ou no, e se se po-dem dizer coisas que no fo-ram ditas anteriormente. Mas

    mesmo que ela o seja, qual o

    problema?A novidade e raridade choca eespanta os simples e popula-res, poderosa ao fazer-lhesrecomendar ou condenar ascoisas. Mas no aos Sbios,que sabem que essas qualida-des so comuns s coisas boase s ruins. Ele pra somentepara considerar a bondade e ovalor interno e essencial, e autilidade que retorna para opblico e para o particular.

    No mais, quem no sabe queo Sbio um paradoxo nomundo, um censor e um des-

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    prezador do mundo? Aqueleque carregou este nome, o quefaz em seu Eclesistico a noser dizer proposies contra ocomum? Todas as belas pro-posies e opinies dos S-bios so contrrias ao gostodo mundo. Eu tomo ento estaprimeira objeo como vanta-gem minha.

    Quanto linguagem, reclamar

    dela extrema delicadeza efraqueza. Cada um tem seuestilo. Eu gosto do curto, dosignificativo, do audacioso edo varonil. Se ele no agradaa uns, agrada a outros. Euatinjo meu objetivo quando

    me fao escutar, e no preten-do outra coisa.

    2. A segunda que em todaessa descrio no se fala deDeus, de religio e das virtu-des infusas e divinas. Digoprimeiramente que necess-rio lembrar das duas coisasque eu disse. Eu trato aqui daSabedoria humana filosofi-camente, no da divindadeteologalmente. Em linhasgerais, no abordo aqui tudo oque requerido em um Sbio- no os traos comuns a to-

    dos, j suficientemente co-nhecidos, mas somente os

    prprios e particulares ao S-bio, pelos quais ele difere eexcele acima do comum.

    Ora, a religio uma obriga-o comum, geral e at mes-mo natural. Mas, ainda assim,eu digo que essa objeo falsa, pois tudo o que diz res-peito a Deus est compreen-dido e nomeado no sexto tra-o principal, que trata dapreudhommie. Seu primeiroe mais alto ponto est na pie-dade e na religio, que aprimeira e mais nobre parteda justia, na qual consisteprincipalmente apreudhommie.E h ainda um artigo acerca

    da graa de Deus.Venhamos s particularida-des. Contra esses trs primei-ros traos - que so conhecer-se, tornar-se obediente aossuperiores, s leis e aos cos-tumes, manter-se limpo depaixes e de erros, - eles nodizem nada que deva ser aquirespondido.

    3. Ao quarto trao - que julgar tudo, - eles objetam que uma liberdade muito grandee perigosa, que pode levar auma confuso. Primeiramente

    compreender mal, e em se-

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    guida concluir mal. Existecoisa mais natural, prpria edigna do homem que julgar,ou seja, considerar, examinar,pesar as razes e contra-razes de todas as coisas, opeso e mrito destas?

    Dado que o homem ditoracional - ou seja, que discor-re, raciocina, entende e julga,- querer priv-la disto no

    seria querer que ele no fossemais homem, mas sim ani-mal? Se isto choca o natural eo prprio do homem, o quefaria ao Sbio, que est acimados homens comuns, assimcomo aquele homem comum

    est acima dos animais?Como pode o homem, toorgulhoso e glorioso em ou-tras coisas, ser to vil e teme-roso ao fazer valer sua partemais alta e nobre, que oesprito?

    Mas replicaro que, se essaliberdade no moderada ereprimida, h perigo de o es-prito cair em falta e se per-der, enchendo-se de opiniesloucas e falsas. Como foivisto com freqncia, isto verdade. Mas objetar isto

    mostrar que no se apreende oquadro inteiramente. Pois

    como poderia ele se perder,ou sequer falhar de algumaforma - mesmo que o quises-se, - se no determina nada,no se obriga a nada e no seapega a nada, como o querema quinta e sexta lies de Sa-bedoria?

    Da mesma forma: se o Pe-dante, ao julgar, foge em tudoe por tudo da natureza, as

    opinies e julgamentos natu-rais so sempre verdadeiros,bons e sos, como traz a sti-ma e ltima lio. Esse onico e infalvel meio paracompreender bem as leis.Assim fazem os bravos Juris-

    consultos quando se deparamcom a ambigidade, a dificul-dade e a antinomia, buscandoconfront-las e faz-las tocara razo natural, ut ad Lydiumlapidem.

    Eis as duas rdeas e as duasregras que os impediro sem-pre de falhar. Quanto ao resto,essa liberdade no toca nem oacreditar e a religio, nem ofazer e a vida externa. Masunicamente o pensar, o julgare o examinar, ao prpria doSbio. Ora, se ele a governa

    como eu prescrevo, ele estarsempre em segurana.

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    4. Passemos ao seguinte, que o quinto trao vizinho ealiado ao precedente: no seobrigar a nada. Eles objetamque eu ensino aqui uma in-certeza duvidosa e flutuante -tal qual os Pirrnicos - quecoloca o esprito em grandesofrimento e agitao, que preciso ter e manter os princ-pios recebidos. Objetam que

    essa indiferena tem umaconseqncia ruim, tanto que ela pode estender-se atmesmo aos assuntos de religi-o, dentro da qual no per-mitido duvidar ou cambalearem hiptese alguma.

    Eu respondo primeiramenteque h uma diferena entreminha fala e a opinio dosPirrnicos - apesar de estaconter o ar e o cheiro daquela,- j que eu permito consentir eaderir quilo que parece me-lhor e mais verossmil, sem-

    pre pronto e esperando rece-b-lo se ele se apresenta. Mas,para chegar ao ponto, eu diriaque eles no me compreen-dem ou que eu no os com-preendo quando dizem queessa indiferena e suspensocolocam o esprito em sofri-mento, pois eu sustento que

    o verdadeiro repouso e abrigode nosso esprito.

    Todos os grandes e nobres

    filsofos e Sbios que delafizeram profisso, tiverameles seus espritos perturbadose sofridos? Mas, dizem eles,duvidar, balanar e suspenderno seria estar em sofrimen-to? Sim para os loucos, nopara os Sbios. Sim, digo eu,

    para as pessoas que no po-dem viver livres, espritospresunosos, partidrios,apaixonados que, agarrados acertas opinies, condenamorgulhosamente todas as ou-tras. E, ainda que estejam

    convencidos, nunca se ren-dem, camuflam e ficam en-colerizados, no reconhecema boa f. Ou, se eles mudamde opinio, ei-los que voltamainda to resolutos e opiniti-cos quanto antes, no sabemaderir a nada sem paixo.

    Tais pessoas no sabem nadaverdadeiramente, e no sabemo que saber. Aquilo quepensam ver, no vem abso-lutamente, diz o doutor daverdade aos gloriosos e pre-sunosos. Mas aos modestos,

    sbrios e contidos, que soalisados sobre o que est aci-

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    ma escrito no artigo quinto,acerca da verdade, da razo,da cincia, da certeza e deseus contrrios, no lhes sofrimento, mas antes umamorada, um repouso. a ci-ncia das cincias, a certezadas certezas, cheia de candu-ra, de boa f e reconheci-mento modesto, tanto da fra-queza humana quanto da altu-

    ra misteriosa da verdade.Quanto aos princpios, aosquais eles querem que nossubmetamos soberanamente eem ltimo recurso, umainjusta tirania. Eu consintoque sejam recebidos com hon-

    ra, que sejam empregados emtodo julgamento, e que sejamlevados em conta. Mas queisto ocorra sem se poder dis-tanciar! Eu resisto forte e fir-me. Quem que neste mundotem o poder de sujeitar osespritos e dar princpios que

    no sejam mais examinveis,seno Deus, nico soberanoesprito, o verdadeiro princ-pio do mundo, que o nico aser acreditado por aquilo quediz? Qualquer outro est su-jeito ao exame e oposio, e fraqueza se sujeitar. Se que-rem que eu me sujeite aos

    princpios, direi como o padrea seus paroquianos, em mat-ria do tempo, e um prncipedos nossos aos sectrios destesculo em matria de religio:concordai mutuamente, pri-meiro, sobre esses princpios,em seguida eu me submeterei.Ora, h tanta discrdia nosprincpios quanto nas conclu-ses, na tese quanto na hip-

    tese, de onde existirem tantasseitas entre eles. Se eu meentrego a uma, ofendo todasas outras.

    Eu venho ao terceiro ponto desuas queixas, que mais pe-sada. que eles querem es-

    tender religio esta minhasuspenso. Ora, eu poderiame contentar em dizer que otexto tanto de meu livroquanto deste pequeno Tratadoo desmente completamente,quando declara que tudo issono diz respeito s coisas di-

    vinas, nas quais precisosimplesmente crer, receber eadorar, sem empreender seujulgamento.

    Para acoss-las mais, porm,e lhes mostrar que no com-preendem bem esses assuntos,

    quero dizer que esta minhaopinio - que eles gostam de

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    chamar Pirronismo - algoque presta mais servio pie-dade e operao divina quequalquer outra coisa, longe dechoc-la. Servio, digo, tantono que diz respeito sua ge-rao e propagao, quanto sua comunicao.

    A Teologia - at mesmo amstica - nos ensina que, parapreparar bem nossa alma para

    Deus e sua operao, e torn-la prpria para receber a im-presso do Esprito Santo, necessrio esvaziar, limpar,despojar e desnud-la de todaopinio, crena e afeco.Torn-la como uma carta

    branca, morta para si e para omundo, para nela deixar Deusviver e agir. necessrio tiraruma coisa para deixar entraroutra, caar o velho possuidorpara a estabelecer o novo.Expurgate vetus fermentum,

    exuite veterem hominem.

    Assim parece que, para plan-tar e instalar a Cristandade emum povo descrente e infiel,como agora a China, come-ar por essas proposies epersuases seria um belomtodo. Todo o saber do

    mundo no passa de vaidade ementira. O mundo est co-

    berto, dilacerado e sujo deopinies fantasiosas, forjadasem seu prprio esprito. Deusrealmente criou o homempara conhecer a verdade, maseste no pode conhec-la de simesmo, nem por nenhummeio humano. E preciso queDeus - no seio do qual a ver-dade reside e que fez vir avontade no homem - a revele

    como Ele a fez.Mas, para se preparar paraessa revelao e lhe dar lugar, preciso antes renunciar ecaar todas as opinies ecrenas antecipadas e abrevi-adas pelo esprito, apresent-

    lo nu e branco, e submet-lo aela muito humildemente.Tendo marcado e ganho bemeste ponto, assemelhando-seos homens aos Acadmicos ePirrnicos, necessrio pro-por os princpios da Cristan-dade como enviados do Cu.

    Como trazidos pelo embaixa-dor e perfeito confidente dadivindade e da autoridade, econfirmado em seu tempo portantas provas maravilhosas etestemunhos muito autnticos.

    Assim, essa inocente e branca

    suspenso, livre abertura atudo, uma grande prepara-

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    o para a verdadeira piedade,para receb-la, como venhode dizer, e para conserv-la,pois com ela no haveria nun-ca tanta heresia e opiniesseparadas, particulares, extra-vagantes. Nunca um Pirrnicoe um Acadmico sero herti-cos, isto so coisas opostas.Diro talvez que ele no sertambm nunca Cristo ou

    Catlico, pois ele ser neutroe suspenso, tanto em uma,quanto em outra. compre-ender mal o que foi dito, poisno h suspenso no que con-cerne a Deus. preciso deixarDeus colocar e gravar emnossa alma o que lhe agradar,

    e no outra coisa.5. No sexto trao, que trata dapreudhommie, eles contes-tam - entre outras coisas - queeu deprecio a preudhommiecausada e adquirida por con-siderao externa de recom-

    pensa e punio, pois ela no, dizem, reprovada pelaIgreja. Estamos completa-mente de acordo com relaoa isto, pois a teologia, apesarde no conden-la, diz que ela servil e no filial, imperfei-ta, prpria daqueles que aindaso iniciantes e aprendizes, e

    no dos perfeitos. Tambmno a digo m, apesar de afilosofia cort-la pela raiz.Oderunt peccare mali formi-

    dine poenae. Mas eu a digomedocre, acidental, caduca eprecria. Enfim, prpria parao comum, mas indigna doSbio nobre e sagrado dequem se requer uma bemmais alta, firme e generosa

    probidade que do resto.6. No stimo e ltimo trao,que seguir a natureza, elesse ofendem por eu recomen-dar e fazer valer tanto a lei danatureza, como se eu quisessedizer que ela suficiente e

    exclusse a graa. Mas o avisocolocado aos ps do meu de-senho da Sabedoria desmentetodas estas belas interpreta-es e maliciosas suspeitas. verdade que no fao longosdiscursos sobre a graa e asvirtudes Teologais; por que o

    faria? Eu sairia de meu as-sunto e de meu empreendi-mento estabelecido, que aSabedoria Humana e no,Divina, aes simplesmente,naturalmente e moralmenteboas e no meritrias.

    Alm do mais, essa graa uma coisa que no para nos-

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    sos estudos, nossa inquirioe nosso trabalho. Sobre elano se deve absolutamentefazer longos discursos nemensinamentos, pois um purodom de Deus que se deve

    desejar e pedir, humilde eardentemente, e para ele sepreparar - o quanto estiver emnosso poder - pelas virtudesmorais e pelas observaes dalei natural que eu ensino aqui.

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    CAPTULO Ve ltimo

    Resposta geral s dvidas e queixas propostas contra o livro daSabedoria, e em seguida o argumento e sumrio deste.

    Eu gostaria aqui de responder- para encerrar, fechar estelivro e reunir seu final com ocomeo e o Prefcio - emgeral queles que se queixamde meu livro acerca da Sabe-

    doria, segundo o que pudesaber, e talvez ainda se quei-xaro deste pequeno resumo,e satisfazer ao leitor indul-gente e eqitativo. Eles en-contram nele uma audcia euma liberdade que os ofende,eu lastimo por eles, e registroem todo lugar essa fraquezapopular, essa delicadeza fe-minina como indigna, dema-siado terna para compreendercoisas que valham, e com-pletamente incapaz de sabe-doria.

    As proposies mais fortes eaudaciosas so as mais pr-prias para o esprito forte ele-vado, e no h nelas nada deestranho para aquele que sabeo que o mundo. fraquezase espantar com qualquer coi-

    sa. Seria preciso endireitar acoragem, consolidar a alma e

    afi-la para ouvir, saber com-preender e julgar todas ascoisas, por mais estranhas quepaream - tudo convenientee est dentro da capacidadedo esprito, desde que ele no

    falte a si mesmo. E assimtambm no fazer seno ascoisas boas e belas e nuncaconsentir seno nelas, mesmoque todo o mundo as difame.Essas pessoas talvez no se-jam capazes nem de um nemde outro, ao Sbio que cabepossuir ambas. Estimar eapreciar o Imprio e a con-duta do grande Senhor.

    Dizer que, entre os indianos,chineses, canibais, turcos eoutras naes que eles julgambrbaras, h leis, polticas,costumes e hbitos at mesmopreferveis a alguns dos nos-sos. Que h muitas coisastomadas pelo povo como mi-lagres, encantamentos e ope-rao dos demnios que sopuramente naturais, artificiais,

    humanas e efeitos da imagi-nao. Que a dor o soberano

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    e verdadeiramente nico mal.Que a morte, a infidelidade, aesterilidade dos filhos e apobreza no so verdadeira-mente e em si um mal. Que asaes naturais no so em si enaturalmente vergonhosas.Que a cincia, que envaidecee perturba vrios espritos no absolutamente necessriapara a conduta de nossa vida.

    Essas proposies e outrassemelhantes os chocam. Notemos aqui espritos bem deli-cados e bem capazes de gran-des coisas? Que diriam eles smuitas outras muito mais au-daciosas e estranhas, j que

    eles as chamam assim, se aspropusssemos a eles?

    Ora, a tais pessoas, alm dassete distines que eu lhesnarrei no comeo e no Pref-cio deste livro - que eu noquero aqui redizer e estender -e nas quais eles encontraro,descobertos e resolvidos, seuserros e decepes: eis que eulhes digo para trat-los sua-vemente, e os apaziguar, seeles so capazes. Eu no obri-go ningum a todas estas coi-sas, nem os pretendo persua-

    dir delas. Bem longe de dog-matiz-las, eu somente as

    apresento e exponho comoum mercador sobre o tabulei-ro. No me preocupo que pas-sem somente sem v-las, eno ficarei furioso se noacreditarem em mim. culpados Pedantes: a paixo teste-munha que a razo no estpresente. Quem se apega aalguma coisa por uma dasduas, no o faz pela outra,

    uma caa a outra ou toma olugar dela. Por que essas pes-soas se enfurecem? Por euno ser sempre e em tudo desua opinio. Eu no me enfu-reo por eles no serem daminha. Por eu dizer coisasque no esto a seu gosto. E

    por isso que o digo. Eu nodigo nada sem razo, se elessabem senti-la e prov-la. Setm outras melhores que des-truam a minha; eu escutareicom prazer e gratificao aquem as disser. E que eles

    no pensem poder vencer-mepor meio de autoridade e dealegaes de outrem, pois elatem muito pouco crdito paraminha pessoa. Exceto emmatria de religio, onde elavale sozinha sem razo. aseu verdadeiro Imprio, como

    em todo outro lugar a razosem ela.

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    No se deve pasmar por todosno terem a mesma opinio.

    Mas sim, seria preciso pasmar

    se todos a tivessem. Nada hde mais conveniente nature-za e ao esprito humano que adiversidade. O Sbio divinonos coloca a todos em liber-dade por essas palavras. Quecada um abunde em bom sen-so e que ningum julgue ou

    condene aquele que faz deoutra forma e que de opini-o contrria, e o diz em mat-ria muito mais irritvel; e queno somente consiste em fatoe em observao externa, emfuno do que dissemos, que

    preciso se conformar com ocomum e com aquilo que prescrito ou costumeiro. Maisainda, no que diz respeito Religio, saber observar ascarnes e os dias. Ora, todaminha liberdade e audcia nose referem seno aos pensa-

    mentos, julgamentos e opini-es, com os quais ningumtem a ver, seno aquele queos tem cada um como direitoseu.

    De resto, quem ensina umamaior obedincia s leis e aos

    superiores, uma probidade euma virtude mais nobres e

    generosas, uma maior reformae vitria das paixes e vciose para isso fornece mais mei-os e remdios que este livro?Mas, por no o fazer covar-demente nem pedantemente,ele no agrada a alguns, pes-soas que sempre arrastam seuventre no cho. Tambm nofalo a eles nem para eles. Noh nada to fcil quanto re-

    preender e maldizer, e muitospensam estar se promovendoao denegrir a imagem de ou-trem. Que me deixem ou queme ataquem vivamente eabertamente, eles tero demim, incontinenti, ou umafranca confisso e aquiescn-

    cia, ou uma anlise de suaimpertinncia.

    De resto, certas coisas quepareciam, para alguns, muitocruas e curtas, ou duras e ru-des para os simples - pois osfortes distintos tm o estma-

    go suficientemente quentepara cozer e digerir tudo, -pelo amor que tenho por eles,lhes expliquei e suavizei nasegunda edio, na qual htrs livros. O primeiro con-cerne unicamente ao conhe-cimento de si e da condiohumana, o que tratado bem