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VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar Cinema em estudo Entrelinhas VILMA ARÊAS REGISTRA SUA MEMÓRIA AFETIVA NOS CONTOS DE “VENTO SUL”. Página 3 Música UMA CRÍTICA DE “SONGS FOR THE DEAF”, DO QUEENS OF THE STONE AGE, DEZ ANOS DEPOIS. Página 5 Ensaio ACADÊMICA IDENTIFICA O PAPEL DA ARTE, COM BASE NA PSICANÁLISE E NA FILOSOFIA. Páginas 10 e 11 Perfil BIÓGRAFA DESTACA A TRAJETÓRIA DE LUIZ BUAIZ NA MEDICINA E NA POLÍTICA. Página 12 LIVROS TRAZEM OLHAR CRÍTICO SOBRE A PRODUÇÃO NACIONAL CONTEMPORÂNEA Págs. 6, 7 e 8 DIVULGAÇÃO “2 filhos de Francisco” (2005), de Breno Silveira: sucesso de bilheteria representou a consolidação da indústria cinematográfica no país “O céu sobre os ombros”, do mineiro Sérgio Borges, vencedor do Festival de Brasília de 2010: Novíssimo Cinema Brasileiro

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Page 1: PensarCompleto 010912

VITÓRIA, SÁBADO, 1 DE SETEMBRO DE 2012

www.agazeta.com.brPensar

Cinema em estudo

EntrelinhasVILMA ARÊASREGISTRA SUAMEMÓRIAAFETIVA NOSCONTOS DE“VENTO SUL”.Página 3

MúsicaUMA CRÍTICADE “SONGS FORTHE DEAF”, DOQUEENS OF THESTONE AGE, DEZANOS DEPOIS.Página 5

EnsaioACADÊMICAIDENTIFICA OPAPEL DA ARTE,COM BASE NAPSICANÁLISE ENA FILOSOFIA.Páginas 10 e 11

PerfilBIÓGRAFADESTACA ATRAJETÓRIA DELUIZ BUAIZ NAMEDICINA E NAPOLÍTICA.Página 12 LIVROS TRAZEM OLHAR CRÍTICO SOBRE A

PRODUÇÃO NACIONAL CONTEMPORÂNEA Págs. 6, 7 e 8

DIVULGAÇÃO

“2 filhos de Francisco” (2005), de Breno Silveira: sucesso de bilheteria representou a consolidação da indústria cinematográfica no país

“O céu sobre os ombros”, do mineiro Sérgio Borges, vencedor do Festival de Brasília de 2010: Novíssimo Cinema Brasileiro

Documento:AGazeta_01_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_1.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:30 de Aug de 2012 20:05:03

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2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,1 DE SETEMBRODE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Vera Márcia Soares de Toledoé professora de Literatura e História daFaculdade [email protected]

Paulo Gois Bastosé jornalista [email protected]

Leandro ReiséestudantedeJornalismoeestáescrevendoumlivrosobrerock’n’roll. leandrosr.blogspot.com

Erly Vieira Jr.écineasta,escritoreprofessordeComunicaçãoSocialdaUfes. [email protected]

Nayara Limaé [email protected]

Mário Bonellaé jornalista,apresentadordaTVGazetaeâncoradaRádioCBN. [email protected]

Paulo DePaulaédiretordoTeatrodaBarra/ES,escritoremembrodaAcademiadeLetrasHumbertodeCampos.

Rita de Cássia MaiaémestreemEducaçãoedoutoraemCiê[email protected]

Sandra Medeiroséjornalista,designer,mestraemdesign,[email protected]

O Código de Honra -Como Ocorrem asRevoluções MoraisKwame AnthonyAppiahO autor cita desde Hegel,Kant e Shakespeare atéartistas e esportistas da

atualidade a fim de mostrar como oconceito de honra foi central para pôr fim apráticas mortais e abomináveis eimpulsionar revoluções morais no passado.

256 páginas. Companhia das Letras. R$ 39,50

Arte e HumanismoAndré ChastelEstudo do historiadorfrancês sobre Lourenço deMédici (1449-92), odiplomata, escritor emecenas que tornoupossível o desenvolvimento

das artes em Florença, na pintura, escultura,poesia e filosofia, com o incentivo a artistascomo Botticelli e Michelangelo.

768 páginas. Cosac Naify. R$ 179

A Máquina da Lama -Histórias da Itáliade HojeRoberto SavianoO jornalista e escritoritaliano leva para o livro oconteúdo do programa detelevisão em que revela a

corrupção e as injustiças da Itáliacontemporânea, com destaque para osnegócios da máfia calabresa em Milão.

160 páginas. Companhia das Letras. R$ 29,50

O Horror emRed HookH.P. LovecraftA edição pocket reúne trêscontos que integram ouniverso sombrio do autoramericano (1890-1937),conhecido como o inventor

da moderna tradição da literatura de horror.

64 páginas. L&PM Editores. R$ 5

CampusGaleria recebe projetos de arte contemporâneaVai até 16 de setembro o prazo para inscrições de projetos detrabalhos artísticos para a exposição “Transpondo o Olhar”, aser realizada pela Galeria de Arte e Pesquisa da Ufes. Ficha deinscrição disponível no site www.seminariopaisagem.com.br/.

FotografiasMostra traz imagens do Espírito Santo ruralA exposição itinerante “Francisco Seibel: um fotógraforural do Espírito Santo” será aberta na próxima terça-feira,às 19h, na Sala Levino Fanzeres, anexo à Prefeitura deCachoeiro de Itapemirim. A curadoria é de Paulo deBarros e o projeto expográfico de Attílio Colnago.

04de setembroParque Moscosoé tema dedocumentárioO DVD “ParqueMoscoso: um parquecentenário”, de PedroJ. Nunes, comemora oaniversário de 100anos da mais antigaárea de lazer deVitória. O lançamentoserá na próxima terça,às 19h, na BibliotecaPública Estadual, emVitória. Maisinformações: www.tertuliacapixaba.com.br.

06de setembroProfessor de Stanford faz palestra na UfesUm dos maiores críticos literários contemporâneos, Hans UlrichGumbrecht vai falar sobre o tema “Depois de 1945: latência comoorigem do presente”, quinta-feira, às 15h, no Auditório do IC-4.

José Roberto Santos Nevesé editor do Caderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] MÚLTIPLOS

Qual é a identidade do cinema nacional? As comédias degrande bilheteria produzidas pela Globo Filmes ou as pro-duções de baixíssimo orçamento da nova geração? Os longasinspirados na realidade das favelas ou as experiências baseadasna coletividade e na desconstrução de estereótipos, em alta nosfestivais? Essas são algumas das questões levantadas por doislivros que abordam a indústria cinematográfica do país. Ocineasta, escritor e professor de Comunicação Social da UfesErly Vieira Jr. leu “Cinema Brasileiro no Século 21”, deFranthiesco Ballerini, e “Cinema de garagem”, de Dellani Lima

e Marcelo Ikeda, e apresenta aos leitores uma visão crítica dasduas publicações. Segundo ele, as obras trazem abordagensdiferentes, porém complementares: enquanto o livro deBallerini cobre o período da Retomada, com ênfase para filmesde grande aceitação popular (como “O Auto da Compadecida”e “2 Filhos de Francisco”), Lima e Ikeda pesquisam o chamadoNovíssimo Cinema Brasileiro, marcado por trabalhos autoraisde jovens realizadores. Em comum a ambos, o mérito deexplorar vertentes de um cinema em permanente construção.Bom sábado, boa leitura, com Pensar.

Pensar na webTrailers de filmes nacionaiscontemporâneos, gravações do Queens ofthe Stone Age, vídeo da exposição de FilipeBorba e trechos de livros comentadosnesta edição, no www.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte;

Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

Documento:AGazeta_01_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_2.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:30 de Aug de 2012 21:04:49

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3PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

1 DE SETEMBRODE 2012

entrelinhaspor VERA MÁRCIA SOARES DE TOLEDO

A MEMÓRIA AFETIVADE VILMA ARÊAS

Nos contos de “Vento Sul”, escritora recolhe e registra frases, posturas, aforismos, pessoas, gestos, paisagens e momentos

Vilma Arêas, escritora e pro-fessora de Literatura daUniversidade de Campi-nas, é fluminense, deCampos, e vive em SãoPaulo. Possui uma carreira

premiada e consolidada nas letras na-cionais como escritora de narrativas eensaios. Recebeu o “Jabuti” duas vezespelas obras: “Aos trancos e relâmpagos”(1988) e “A terceira perna” (1992).Recebeu também o prêmio AlejandroJosé Cabassa por “Trouxa frouxa”(2002) e o prêmio da Associação Pau-lista dos Críticos de Arte (APCA) peloensaio “Clarice Lispector com a pontados dedos” (2005).

Seu livro mais recente, “Vento Sul”,é composto de 20 contos que a autoradenomina “ficções”, divididos em qua-tro blocos de temáticas afins. Todasessas “ficções” são marcadas, funda-mentalmente, por uma memória afe-tiva e inquietante que indaga e buscacompreender os “flashes” de lembran-ças passadas. Para Vilma, “viver é guar-dar”, recolher e registrar tudo o que,aqui e ali, vai passando por suas re-tinas. Ela vai “guardando”, o tempotodo, frases, posturas, aforismos, pes-soas, gestos, paisagens e momentos.Ela disse, em entrevista recente: “Al-zheimer é o meu pavor. E tudo cons-pira a favor do esquecimento. A ci-vilização hoje é contra a memória. Asmáquinas estão tomando o lugar, aspessoas confiam tudo ao Google.”

O crítico e amigo Ronaldo Bressanejá afirmou: “Vilma não esquece nun-ca...” Seus textos são claros, objetivos,quase ásperos, às vezes dão a impressãode um relatório, em tudo buscando alembrança vívida e crua. Sendo umavoz feminina, não obstante, possui umaprosa que se distancia do clichê do“texto feminino”, pois não se vale domelífluo e do fluido.

Na composição de “Vento Sul” no-tam-se três grandes e sempre presentescaracterísticas: a influência de ClariceLispector, a memória da terra natal e osfios de lembranças reunidas, formandoum tecido que envolve as narrativas.

Em “Thereza”, conto da primeiraparte (“Matrizes”), há muito de sua avóque, segundo a autora, estranhava ofato de ser necessário amar para secasar ou se manter casada. “Persis-tência da Memória”, na segunda parte(“Contracanto”), fala de uma perso-nagem que luta desesperadamente pa-ra manter vivas memórias que tei-mavam em ir se apagando. Retoma, porisso, incessantemente, diversos hábitose rituais de passagem, na lembrança,

VENTO SUL: FICÇÕESVilma Arêas.Companhia das Letras.110 páginas. 2011.Quanto: R$ 30

TRECHO

para não esquecer o passado. No conto“Fulana”, na terceira parte (“PlanosParalelos”), sua dívida com a influênciade Clarice Lispector se faz sentir maisde perto, como por exemplo: nas frasesindagativas, no assombro diante dasinsignificâncias do cotidiano, no sig-nificado oculto que salta dos pequenosgestos. Em “Paixão de Lia”, na quarta e

última parte (“Garoa, sai dos meusolhos”), há tanto uma influência daprosa curta de Clarice quanto elemen-tos da memória que se cruzam paracompor a história da senhorinha Lia, denoventa anos, que vive como estorvo emorre abandonada pelo filho e o restoda família.

Além dos elementos desencadeadores

“Na parada de Bangu, o calorsoprava o céu que tremia feito umpano. Ele entrou e ficou encostadona porta rebentada. O ventoagitava a camisa azul, ele mesmoazul cor de carvão, retinto, opaco,a luz batia e escorria, brilhavanos olhos. O homem da foto. Masseria o homem da foto? Qualquer

repetição faz cismar. Mas averdade é que se eu não tivesseconservado a imagem namemória, não ficaria assim. Nãoadianta perguntar pelos motivos.Eu sei do que se trata. Mas sevocê perguntar do que se trata,não vou saber explicar.” (“Linhase trilhos”, p. 30)

que moldam suas narrativas, Vilma tam-bém não esquece um tema que é cons-tante em suas obras: o vento sul. Nestaobra, ele não só perpassa todos os textoscomo também a nomeia. A presençadeste elemento tão presente e signi-ficativo nos remete às produções deoutro querido e inesquecível escritor quefoi Amylton de Almeida. Também ele em“A Passagem do Século” (1977), “BlissfulAgony” (1988) e “Autobiografia de Her-mínia Maria” (1994) usa o vento (ou a“brisa”) como elemento recorrente emsuas narrativas. É o vento sul, tanto emVilma como em Amylton, que traz alembrança do passado, os nomes quenão se esquecem, as palavras que ecoame os gestos que deixam marcas.

Muito bom ler Vilma Arêas em nar-rativas tão diretas e evocativas. Tam-bém é muito bom poder, através de seustextos, recordar o saudoso Amylton esuas narrativas onde o vento sopraamargor e melancolia, mas tam-bém doçura e serenidade.

Documento:AGazeta_01_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_3.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:30 de Aug de 2012 19:39:54

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4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,1 DE SETEMBRODE 2012

Na exposição “Cosmo Commons”, em cartaz no bar Cochicho da Penha, Filipe Borba aposta nalógica do compartilhamento como caminho para repercussão e veiculação do trabalho artístico

visuaispor PAULO GOIS BASTOS

AS FRONTEIRAS DA ARTE EDA PROPRIEDADE CRIATIVA

A psicodelia, o punk, osquadrinhos, os fractais e o pop sãoalgumas das referências presentesnos desenhos de Filipe Borba

COSMO COMMONSExposição de Filipe Borba.Até 23 de setembro, no BarCochicho da Penha, Rua daLama, Jardim da Penha,Vitória. Entrada franca.Mais informações:cosmocommons.wordpress.com

PERFILFILIPE BORBANascido em Resplendor (MG), tem28 anos e mora no Espírito Santodesde 1999. É graduado em ArtesPlásticas pela Ufes e participou dediversas exposições coletivas,entre elas a “1 + 7 ArteContemporânea no Espírito Santo”,no Museu da Vale. Faz parte docoletivo Bolor e colabora comoutros coletivos e movimentoslocais como a Bicicletada e aMarcha da Maconha. Interage comdiversas linguagens artísticas.Recentemente, participou de umaresidência artística na NUVEM –Estação Rural de Arte e tecnologia(www.nuvem.tk) e, atualmente,está na França, participando deoutra residência.

Dono de uma trajetória ati-vista e de uma posturaiconoclasta diante da arteinstitucionalizada, FilipeBorba realiza criaçõesque são cópias de seus

próprios trabalhos. Em “Cosmo Com-mons”, exposição recentemente abertano bar Cochicho da Penha – tradicionalespaço boêmio da Rua da Lama –, oartista “remixou” uma série de cerca de60 desenhos que foram concebidos en-tre 2005 e 2006 e denominados “Frac-tais Cosmosxerográficos”. São imagensque já fizeram parte de outras obrasanteriores do artista e que agora sãousadas para tencionar os limites daautoridade e da propriedade criativa.

Nos trabalhos expostos, os desenhosocupam diversos suportes e também es-tão disponíveis na internet sob licençaCreative Commons*, acessíveis paradownload, reprodução e intervenção –exceto para fins comerciais. Trata-se deuma aposta na lógica do compartilha-mento como caminho para repercussão eveiculação do trabalho artístico. Filipeespelha-se em experiências que acon-tecem no atual mundo da música, onde adisponibilização gratuita de conteúdostem possibilitado que muitos artistas mo-bilizem público para suas criações.

A autoria e a propriedade criativa sãocategorias fundamentais para o funcio-namento do circuito institucionalizado ecomercial de arte, muito bem repre-sentados pelas galerias e marchands. Fi-lipe abre mão de empreender uma tra-jetória sob essa lógica. Ele faz cópias erecombinações de suas próprias criações –um desbunde para com os limites daoriginalidade e com a aura do objetoartístico. Dessa forma, a dimensão éti-co-política dá sentido e está diretamenteimbricada aos aspectos estéticos das obrasdesse jovem artista. Ao implodir com asconvencionais noções de propriedade ede uso criativo, ele não quer extinguir omercado, mas sim criar brechas e instituirnovas formas de remuneração para aatividade artística – uma atualização do“plágio como verdadeiro método artís-tico” proposto pelos Neoístas**.

As obras que compõem “Cosmo Com-mons” misturam as técnicas de desenho,pintura e colagem. Quem for ao Cochichoda Penha ver os trabalhos irá encontrarreproduções de desenhos inteiros, pe-

daços de desenhos colados ou modi-ficados. São ampliações fotográficas –algumas maiores que os desenhos ori-ginais –, colagens digitais impressas ecolagens manuais feitas com fotocópias.Por meio da disponibilização do arquivodigital com as imagens na internet, osuporte transcende a materialidade epermite infinitas recombinações e usoscriativos posteriores.

Na abertura da exposição, na noite doúltimo dia 23 de julho, os desenhostambém foram projetados em tecido fi-xado no canteiro central da Rua da Lama.Naqueles instantes, as imagens ocuparamo entorno do bar, tendo os transeuntes, osveículos e a fluidez da rua como suportes.Cicloativista e grafiteiro, Borba tem a rua,espaço público instável e precário porexcelência, como um território que lhe édenso de afeto e íntimo de sua criação.

Sobre os desenhosEm uma primeira olhada, os desenhos

de Filipe Borba parecem querer vazar dosseus suportes para escorrer pelas diversassuperfícies, como fluído vivo e vibrante,proporcionando uma sensação de euforia

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e desconcerto diante da saturação dedetalhes e disformidade alegre. É possívelremetermos à “estrutura” de uma es-tampa, a um excesso, a uma repetiçãoimprecisa. Nas imagens, há predomi-nância da forma e dos corpos humanos,há pedaços e partes humanas, são per-sonagens nus que estão fundidos e in-crustados uns nos outros.

Não há qualquer referência segura quepermita estabelecer medidas de propor-cionalidade entre os personagens e ob-jetos desenhados, tampouco há qualquereixo de orientação que estabeleça emqual sentido ou direção a imagem deveser lida. O artista não fornece indicaçõesque restrinjam as possibilidades de re-cepção da cena representada ou umatomada de posição em relação à imagem.Os desenhos nos demandam, de fato,uma desorientação e alheamento a qual-quer referência realista.

Trata-se de um figurativo próximo dosquadrinhos, porém borrado para darlugar a uma espécie de arabesco pop,debochado e, em alguns momentos, an-gustiante. Essa organicidade permiteque as imagens atuem como módulos,ou seja, cada uma dessas unidades pic-tóricas, que já são prenhes de infor-mações, pode ser encaixada, recombi-nada ou justaposta saturando ainda maisa sua capacidade informativa - umcosmo em expansão.

* Creative Commons – São licençasque abrangem um espectro de possi-bilidades entre a proibição total dos usossobre uma obra – todos os direitos re-servados – e o domínio público – nenhumdireito reservado. Essas licenças ajudamautores de obras intelectuais e/ou ar-tísticas a terem o seu direito autoralrespeitado ao mesmo tempo em que épermitido certo uso de suas obras.

** Neoísmo – Vanguarda artísticados anos 1970, tendo como influência oFuturismo, o Dadaísmo, o Situacionis-mo e o Punk. Posicionavam-se comouma filosofia prática que, tanto naforma quanto no conteúdo, buscavamfazer uma crítica à individualidade, àsartes e ao capitalismo. Os neoístasatuavam para romper com o conceito deautoria, eram contrários ao copyright eentusiastas do plágio positivo.

Documento:AGazeta_01_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_4.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:30 de Aug de 2012 19:42:22

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5PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

1 DE SETEMBRODE 2012

SONGS FOR THE DEAFQueens of the Stone Age.Universal. 14 faixas.Ano de lançamento: 2002.Quanto: R$ 19,90

falando de músicapor LEANDRO REIS

DO DESERTO VIEMOSE A ELE VOLTAMOS

Ocenário é o deserto ca-liforniano e o ruído é oda porta de um carrorecém-fechada com for-ça. Na cabeça, uma leveressaca e a nicotina,

bem-vinda nos dias difíceis e nos defesta. Cercadas pelo porta-luvas ousoterradas pelo banco do carona, subs-tâncias, digamos, imorais. A mão di-reita liga o rádio e ouve um estranholocutor anunciar a Klon Radio, “a es-tação que mais soa como todo mundodo que qualquer outra”. Durante omovimento que buscaria o volante, obraço para no ar, logo acima da mar-cha, e segue as primeiras faíscas dabateria de Dave Grohl. A estrada es-colhe a sua trilha sonora.

Onde estamosEra 2002 e Cobain já tinha estourado

os miolos há muito tempo. No mesmoano, Layne Staley, do Alice in Chains,perdia a batalha contra a seringa edeixava o mundo ainda mais estranho.O rock respirava a ressaca do grunge evomitava Nickelback e Creed. Do outrolado, bandinhas como Strokes cons-truíam uma cena de guitarrinhas do-mesticadas e cabelos metodicamentedesarrumados. O Radiohead, com “KidA” e “Amnesiac”, transcendia o gênero elargava um pouco as guitarras. Existiavida inteligente com Jack White e maisalgumas cabeças a fim de correr riscos,mas era pouco. Faltava, na verdade,mais testosterona.

A ajuda veio, e de um lugar inóspitoe primitivo: o deserto. “Songs for theDeaf”, do Queens of the Stone Age, éum murro nos tímpanos. Uma injeçãode testosterona. O álbum completouuma década de críticas positivas e ten-tativas de homicídio na última segun-da-feira, dia 27.

IdentidadeO Queens of the Stone Age surgiu

das cinzas do Kyuss, ícone do stonerrock dissolvido em 1995. Após umaturnê com o Screaming Trees, JoshHomme começou as Desert Sessions,projeto em que reunia músicos no de-serto californiano para trabalhar sonsmais experimentais. Em 1997, comAlfredo Hernandez, seu ex-companhei-ro de Kyuss, Homme volta ao estúdiopara começar o que seria o primeiroálbum do Queens.

Depois da boa recepção do discohomônimo, começa a se formar a iden-

tidade musical do QOTSA, que se con-figuraria, praticamente, numa DesertSessions itinerante. Para o segundoálbum, “Rated R”, Josh Homme trouxeo baixista mau elemento Nick Oliveri,também ex-companheiro de Kyuss, emais um monte de gente pacífica, entreeles Mark Lanegan e Rob Halford – sim,aquele do Judas Priest. Desse disco,ficaram Oliveri e Lanegan para o“Songs for the Deaf”. Ao lado deles e deJosh Homme, chegaram Dave Grohl eTroy Van Leeuwen.

FaixasAs batidas de Grohl iniciam a trinca

homicida do “Songs for the Deaf”: “YouThink I Ain't Worth a Dollar, But I FeelLike a Millionaire” tem Oliveri nosvocais gritando algo sobre um touromorto e bebidas. Mas o que se destacanessa música é a subversão de váriosclichês do hard rock – riffs matadores,velocidade em queda livre, guitarrasviolentas – em destruição calculada.

“No One Knows”, a “Smells Like Teen

Spirit” do Queens, é um groove em-briagado que pode deixar a sua na-morada um pouco, digamos, animadacom a voz de Josh Homme.

Na mudança de estação, o ruivocanta um refrão profético em “First itGiveth”, e Grohl faz as honras na co-zinha com uma bateria de dois bumbos.E essas são apenas as três primeiras.

Mark Lanegan, que vinha de suaobra-prima “Field Songs” (2001), em-presta seu vocal tóxico a “A Song forthe Dead”, quase homônima do ál-bum. “The Sky is Fallin’” é uma en-xurrada de versos de amargura, massem lamentação barata. A mão direitasai do volante momentaneamente pa-ra tocar “Six Shooter”, que retoma ainsanidade de “Millionaire”, com Oli-veri cantando o ódio.

Seguindo: “Hanging Tree” volta comLanegan nos vocais e é marcada poruma ótima linha de baixo. Como nemsó de porrada vive o rock’n’roll, “GoWith the Flow”, “Gonna Leave You” e“Another Love Song” são da lista dascanções que colam no ouvido e, se a

O guitarrista evocalista Josh

Homme e obaixista Nick

Oliveri, asmentes

criativas doálbum “Songsfor the Deaf”,do Queens of

the Stone Age:uma década

de violência ecríticas

positivas

MTV ainda tocasse música, integrariama programação da emissora.

Homme retorna em “Do It Again”para tentar – e conseguir – roubar suanamorada mais uma vez. “A Song forthe Deaf” é a canção mais sombria doálbum, que precede a também maldita“Mosquito Song” - um arranjo incrívelde cordas de vários colaboradores.

Não é a última, mas “God is in theRadio” é a canção que resume todo oálbum. Além do perfeito casamentoentre instrumentação e versos, “God”faz uma autorreferência: “Eu sei queDeus está no rádio/Checando as es-tações”. E Ele, como o Diabo, propagasua publicidade: “Você volte outrodia/ E não faça nada de errado”. Ossolos, longe de domesticados, masconcisos, também marcam “God is inthe Radio” em catarse. Como em todoálbum, não há masturbação de gui-tarras nem ostentação exagerada.Elas seguem o ritmo e as ondas áridasdo rádio. São criminosas, é verdade,mas de seus crimes estamos agra-decidos. Chove no deserto.

Documento:AGazeta_01_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_5.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:30 de Aug de 2012 19:40:42

Page 6: PensarCompleto 010912

7PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

1 DE SETEMBRODE 2012

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,1 DE SETEMBRODE 2012

LIVROS INVESTIGAM A IDENTIDADE E AS TEMÁTICAS DOCINEMA BRASILEIRO, DA RETOMADA ÀS PRODUÇÕES ATUAIS

audiovisualpor ERLY VIEIRA JR.

PÁGINAS DEUM FILME EMCONSTRUÇÃO

Obras exploram vertentes contemporâneas em que ainda há pouca bibliografia, incluindo os sucessos de bilheteria com a chancela da Globo Filmes e a safra jovem que brilha nos festivais

DIVULGAÇÃO

Mateus Nachtergaele e Selton Mello em “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes: um dos marcos finais da Retomada

Como definir o cinema quese faz no Brasil hoje? Quaissuas principais caracterís-ticas e preocupações esté-ticas, temáticas, mercado-lógicas? Com quais públicos

ele dialoga? Que tipo de imagens donosso país ele produz ou questiona? Doislivros recém-lançados tentam dar con-tribuições para esse debate, numa ten-tativa de mapear parte da produção au-diovisual nacional dos últimos 12 anos:“Cinema brasileiro no século 21” (304páginas, Summus Editorial, 2012), deFranthiesco Ballerini, e “Cinema de ga-ragem” (178 páginas, Suburbana Co.,2011), de Dellani Lima e Marcelo Ikeda.

São duas abordagens diferentes, po-rém complementares: o livro de Bal-lerini, por exemplo, traz um ponto devista mais afinado com nossa (re)nas-cente indústria cinematográfica, ten-tando discutir a produção que obtevemais visibilidade em termos de bi-lheteria. Já o de Lima e Ikeda se propõea ser um inventário sobre o chamadoNovíssimo Cinema Brasileiro, marcadopor produções radicalmente autoraisde jovens realizadores que iniciaramsuas carreiras no curta-metragem apartir do final dos anos 90, fazendo a

passagem para o longa-metragem nasegunda metade da década passada.Ambos os livros destacam-se por ex-plorar vertentes da produção contem-porânea brasileira em que ainda hápouca ou quase nenhuma bibliografia,uma vez que a maioria dos estudossobre os filmes nacionais mais recentesconcentra-se numa parcela da produ-ção autoral já consagrada no circuitodos grandes festivais internacionais, erealizada por cineastas surgidos du-rante o período conhecido como Re-tomada do cinema brasileiro.

O cinema da Retomada compreendeum momento histórico importante,uma vez que ele reconfigura e rein-venta uma produção que, embora ti-vesse chegado a deter um terço donúmero de ingressos vendidos no paísem final dos anos 70, sofrera um durogolpe durante o final dos 80 e início dos90, com a extinção da Embrafilme, oaumento da audiência televisiva e apolítica de não-incentivo estatal à cul-tura praticada pelo governo Collor. É apartir de 1993 que essa produção sereinicia, a princípio timidamente, ten-do à frente alguns realizadores ve-teranos, mas, principalmente, um gran-de contingente de estreantes, revelados

durante a chamada “primavera doscurtas”, no final dos anos 80.

“Carlota Joaquina”, de Carla Camu-ratti, realizado em 1995, é o primeirogrande sucesso dessa leva, que tambémincluiria filmes de nomes como JorgeFurtado, Walter Salles, Lírio Ferreira,Fernando Meirelles. O cinema da Re-tomada foi marcado por uma diver-sidade de linguagens e propostas, al-

gumas mais comerciais, outras maisautorais – o que garantiu o retorno docinema nacional tanto aos grandes fes-tivais, como Cannes, Berlim e Veneza,quanto nas indicações ao Oscar demelhor filme estrangeiro.

Globo FilmesO marco final da Retomada situa-se

entre os anos de 2000, com a con-solidação da Globo Filmes no mercado,com o estrondoso sucesso de “O auto dacompadecida”, de Guel Arraes, e 2002,com o divisor de águas “Cidade deDeus”, de Fernando Meirelles, misto defilme autoral e blockbuster comercial,responsável por levar, sozinho, mais detrês milhões de espectadores aos ci-nemas. A partir daí, fala-se num pe-ríodo “pós-retomada”, em que vemosquatro grandes linhas se desenvolven-do até os dias de hoje: a consolidaçãode uma indústria cinematográfica, comcampeões de bilheteria como “2 filhosde Francisco”, “Tropa de elite 1” e“Tropa de elite 2” e “Se eu fosse você”;um cinema mais autoral, habitual fre-quentador do circuito de grandes fes-tivais, com filmes como “O céu deSuely” e “Amarelo manga”; uma grande

O Brasil tem,proporcionalmente,o maior circuito desalas de cinemadestinadas aos‘filmes de arte’ nomundo”—ERLY VIEIRA JR.Cineasta, escritor e professor deComunicação Social

visibilidade para os documentários,tanto nas salas de cinema quanto nasTVs por assinatura; e o Novíssimo –uma produção jovem, mais experimen-tal e radical, em filmes de baixíssimoorçamento e que têm tomado de assaltoas premiações de festivais nacionaisnos últimos anos.

Desta última vertente, destacam-sefilmes como “A alegria” (2010), doscariocas Felipe Bragança e Marina Me-liande; “Estrada para Ythaca” (ven-cedor de Tiradentes em 2010, dos cea-renses Pedro Diógenes, Guto Parente, edos irmãos Ricardo e Luiz Pretti); e “Océu sobre os ombros” (do mineiro Sér-gio Borges, vencedor do festival deBrasília nesse mesmo ano).

Se ambos os livros aqui citados de-bruçam-se sobre esse cinema pós-re-tomada, ainda que sob enfoques ra-dicalmente distintos, cabe destacar queambos não se restringem apenas aoscomentários de seus autores, buscandodialogar também com as falas de rea-lizadores, produtores, exibidores e crí-ticos. O livro de Ballerini traz, ao finalde cada capítulo, uma entrevista comalgum grande nome da indústria ci-nematográfica brasileira, sejam dire-tores (Fernando Meirelles), atores (Sel-

o livro de forma passageira, mas quemereciam um enfoque maior.

Por outro lado, o livro traz informaçõesbastante esclarecedoras sobre certos as-pectos da coprodução entre empresasindependentes e a Globo Filmes. Porexemplo, derruba o mito da gratuidadeda divulgação desses filmes nos pro-gramas da Rede Globo – embora talparceria renda um desconto de, na maio-ria das vezes, 80% do valor, ainda assimos custos são muito altos. Exemplo disso é“2 Filhos de Francisco”, que destinou ummilhão de reais (44% de sua verba dedivulgação) para anunciar na emissora,valor que custaria sete vezes mais se elenão fosse uma coprodução.

Outra informação bastante reveladoraé a de que o Brasil tem, proporcio-nalmente, o maior circuito de salas decinema destinadas aos “filmes de arte” nomundo - 10% do total, sendo que SãoPaulo tem o maior parque exibidor dogênero no planeta. Todavia, esse númerode salas ainda é insuficiente para escoar acrescente produção nacional, a ponto detantos filmes nacionais ficarem pouquís-simo tempo em cartaz, mesmo nos gran-des centros. Talvez por isso esse dadoesteja intimamente ligado à dificuldadedos novos nomes em se firmar no mer-cado, uma vez que apenas 30% doscineastas que estrearam no longa-me-tragem entre 1995 e 2005 chegarama realizar um segundo filme.

CINEMA BRASILEIRONO SÉCULO 21Reflexões decineastas,produtores,distribuidores,exibidores,artistas, críticose legisladoressobre osrumos dacinematografianacionalFranthiescoBallerini.Summus Editorial,2012. 304 páginas.Quanto: R$ 53

CINEMA DEGARAGEM -Um inventárioafetivo sobre ojovem cinemabrasileiro doséculo XXIDellani Lima eMarcelo Ikeda.Suburbana Co., 2011.178 páginas.Quanto: R$ 10

ton Mello, Wagner Moura), produtores(Diler Trindade, dos filmes da Xuxa eRenato Aragão, e Carlos Eduardo Ro-drigues, da Globo Filmes), roteiristas(Fernando Bonassi) e até mesmo opresidente da rede Cinemark, ValmirFernandes, bem como o diretor-pre-sidente da Ancine, órgão estatal deincentivo à produção audiovisual noBrasil, Manoel Rangel.

Sites e blogsJá o livro “Cinema de garagem” inclui

também textos críticos publicados an-teriormente em sites e blogs sobre osfilmes que analisa, bem como textosextraídos de catálogos e depoimentos decineastas da geração do Novíssimo, comoGustavo Spolidoro, Cao Guimarães eHelvécio Martins Jr. Ballerini estruturaseu livro em 12 capítulos, um de con-textualização histórica e outros 11 ten-tando mapear os diversos elos da aindanascente cadeia cinematográfica indus-trial brasileira: produção, direção, ro-teiro, distribuição, exibição, legislação,atuação, mercado internacional, espec-tador, ensino de cinema e produção dedocumentários.

Em todos eles, o olhar valoriza os

aspectos mercadológicos do nosso ci-nema, chegando a apostar que o século 21será o dos produtores – e dando vozprincipalmente aos agentes desse cinemamais comercial para embasar suas afir-mações. Todavia, nem sempre esse pontode vista traz análises férteis – por exem-plo, no capítulo sobre direção, que ensaiauma discussão estética sobre essa pro-dução, o discurso concentra-se apenasnuma vertente, a dos filmes centrados emfavelas e periferias, para retomar umadiscussão sobre o polêmico termo “cos-mética da fome” (cunhado em 2002, porIvana Bentes, na época do lançamento de“Cidade de Deus”) e a construção deestereótipos publicitários a partir da rea-lidade social brasileira, que já se supunhaesgotada há quase dez anos.

Assim como resgata sem necessidadequestões tecnicamente superadas hámais de duas décadas, como a doproblema do som nos filmes nacionaisou a profissionalização das equipestécnicas, em lugar de talvez aprofundarmais a análise de vertentes promissorasda produção cinematográfica nacional,como os filmes religiosos/espíritas, ossertanejos ou as comédias estreladaspor grandes astros televisivos – obrasfrequentemente mencionadas durante

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Documento:AGazeta_01_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_6.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:30 de Aug de 2012 20:18:43

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8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,1 DE SETEMBRODE 2012

+ artigo de capapor ERLY VIEIRA JR.

OS DESAFIOS DO CINEMA NOVÍSSIMOEstudo provoca o leitor a lançar outros olhares sobre a produção contemporânea, marcadapela coletividade, experiências radicais, desconstrução de estereótipos e foco na juventude

DIVULGAÇÃO

No alto, cena do longa “Estrada para Ythaca”, do Coletivo Alumbramento(CE); acima, “A Alegria”, dos cariocas Felipe Bragança e Marina Melliand

Os capítulos do livro “Ci-nema de garagem” sobrelegislação, exibição e dis-tribuição também sãomuito bem elaborados, ea obra conta ainda com

uma discussão sobre como a crítica in-ternacional tem visto o cinema brasileiro,bem como um olhar das grandes pro-dutoras para o circuito de festivais –ainda que o livro o tempo todo incorraem certos julgamentos bastante parciais,como o de reduzir boa parte da produçãoautoral nacional a filmes que “falem deexperiências pessoais dos cineastas”, umjulgamento bastante ingênuo e que ig-nora as especificidades da parcela depúblico que consome tais filmes.

Em nenhum momento também sequestiona o gigantesco gargalo que afastaboa parte dos filmes brasileiros das pla-teias – as condições de distribuição eexibição dos filmes, visto que poucos delespossuem condições financeiras de com-petir diretamente com os blockbustersinternacionais que estreiam em centenasde salas num único final de semana.

Talvez por isso o livro de Dellani Limae Marcelo Ikeda funcione como um con-traponto bem rico a essa discussão. “Ci-nema de garagem” concentra-se numtipo de cinema que se apodera da estéticado DIY (do it yourself ou “faça vocêmesmo”) para levantar os aspectos es-téticos dessa produção que pretendelançar o espectador em experiênciasmais radicais, explorando os limites dalinguagem audiovisual e desconstruindoestereótipos sobre as imagens que nossocinema produz sobre o país e seus ha-bitantes. É como se continuássemos aquina vereda iniciada pelo Cinema Novo e(mais ainda) pelo Cinema Marginal dosanos 60/70, só que numa linguagemtotalmente sintonizada com o que se fazem certos rincões do cinema mundialdeste início de século.

Em muito formada nas escolas decinema e faculdades de comunicaçãopaís afora (cujo impacto é minimizadono capítulo dedicado ao setor no livrode Ballerini), essa geração encontraprimeiro os festivais alternativos comoespaço de visibilidade – em especial aMostra do Filme Livre, realizada noRio de Janeiro desde 2002, e o Festivalde Tiradentes, o primeiro evento degrande porte a voltar os olhos para

essa produção, desde 2006, ano emque a curadoria passou a ser assumidapelos então editores da revista ele-trônica “Cinética”. Daí a quantidade decríticas veiculadas em sites e perió-dicos cinematográficos on-line, bemcomo textos curatoriais extraídos decatálogos de festivais e republicadosem “Cinema de garagem”.

DeficiênciasTodavia, o livro carece de proble-

matizar as deficiências dessa produção e,principalmente, de colocá-la em pers-pectiva, tanto com relação ao cinemaautoral mais visível e consagrado cri-ticamente, quanto à produção mais co-mercial. Mas é exatamente sua opção porcompilar textos críticos, escritos entre2001 e 2010, à medida que esse No-víssimo cinema ia ganhando forma, queprovoca o leitor a lançar, também ele,outros olhares sobre essa produção.

Há capítulos destinados a cenas for-tes e bastante promissoras no cenárionacional, como os mineiros do coletivoTeia e o emergente cinema cearense(em especial do coletivo Alumbramen-to), bem como um curioso ensaio sobrecomo esse cinema mais jovem tentafilmar a juventude, por um viés bas-tante pessoal e intimista.

Talvezpor isso,emlugarderecomendara leitura de um ou outro dos dois livrosaqui analisados, eu sugiro que se leiamambos, não somente pela diversidade depropostas que marca o cinema brasileirohoje, mas também para promover umcurioso exercício de tentar olhar cada umadessas vertentes, ora com o olhar propostopor Franthiesco Ballerini, ora com o deMarcelo Ikeda e Dellani Lima. Afinal, háespaço para todas essas propostas: o maiordesafio, na verdade, é fortalecer seus res-pectivos mercados – mas isso é assuntopara outra discussão, tão longa ecomplexa como esta.

O livro “Cinema de garagem” aca-bou dando origem a uma extensa mos-tra realizada entre julho e agosto naCaixa Cultural, no Rio de Janeiro. Hádisponível, para download gratuito,um catálogo que inclui textos críticosde outros autores e depoimentos derealizadores, no site da mostra:http://www.cinemadegaragem.com

Documento:AGazeta_01_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_8.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:30 de Aug de 2012 19:58:14

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9PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

1 DE SETEMBRODE 2012

poesias

FOIPAULO DEPAULAVocê me deu tanta alegriaE deixou-me só.Só com a poesiaDo passado que se foi.Do momento que acabou,Do vazio prenho da ausência -Saudade: fado deixado por você,Que foi só Amor.

VIVO OU MORTO?

Hojevi um homemmorto.Seu peito nu.Seu corpo exposto.Um homem.De manhã,sobre o tetotrabalhava.Viveu ontem.Hoje, a cargao levou.Eletricamenteentrou naVidadoAmanhã.Hoje,Eu vi um homemmorto.Hoje, Um homemnascer pralém.Só.Semnin émgu

BODASDE OURO

Ora, meus pais:Dissesse eu queTudo foram flores,Estaria a me chamar de flor –Eu! Tantas vezesMotivo de discórdia:Príncipe rebelded’esquecida triboafricana.- Portanto,espinho e dor,também – entre floresdo seu amor,que virou d’ouro!

SOFISTICAÇÃODE ARTISTA(COM SOTAQUE)Na sepulturameu nome quero,em letras de manchete!Mas minha idade,Please, forget.

crônicas

...por NAYARA LIMA

Não sei o que os senhores pensam arespeito de nunca mais terem visto eleou ela. Queria, no entanto, arriscar-me.Acho perigo traçar em palavras a linhaque cruza fina, rente ao corpo da de-licadeza, alguma constatação. Mas en-contrei Dona Rosa relendo cartas de umaamiga. Achei a tarde crua, sagrada. DonaRosa, que um dia me ensinou piano comelegância e humildade sincera, relia aspalavras da amiga que, de repente, quissumir (para não ser esquecida). Achei atarde viva, embora dura. Perto do pianoantigo, do sentimento estrangeiro queaqui concluimos por saudade, dos óculosde grau e de um casaco regido sob aorquestra de branca lã em flores, con-templei aquela vida como o faria dentrode um espetáculo intenso. Porque re-presentava, como um espetáculo inten-so, o que há de vida em tudo que, além

de se mover, sente. Por isso a transmitonesta folha de jornal.

Embora nem tudo se ouse palavra,posso dizer aos senhores que no silêncioobscuro dos rostos que um dia se en-contraram, e nunca mais se viram, habitauma crua fagulha da verdade. Estão sevendo. Desde que o encontro tenha sidoáspero, porque profundamente terno, eporque amor, nada mais se conclui senãoisto. Em suspenso, o tempo outro maiorque o tempo, pontua o que nessa ordemé belo, como pontua a chuva branda cadapedra do paralelepípedo à luz acesa doposte para a noite. No silêncio obscurodos rostos que nunca mais se viram, eportanto se veem distraídos no riso ouem susto de dor, cala a despedida quenunca aconteceu. Porque existindo ver-dade, impossível que ocorra o óbvio seele é morto. Não se despede do que

sempre vive. E no silêncio obscuro deentre os dois rostos, os dois latentesafloram o encontro na casa disfarçada dapalavra esquecimento (que tem por filhaa também menina faz de conta. A in-diferença). Não o é. No instante de-sencontrado, entorpece o queixo no ar danoite, enquanto lua e estrela festejamque ali se deu a eternidade. E as palavrasum tanto vivas descobrem que o peso daleveza exige força maior do que o amorsuporta. Invisivelmente se encontram,adoram-se um rosto diante do outro (enão se sabem disso). Invisivelmente con-tam piadas, gargalham histórias colo-ridas, pedregulhos de carnaval, abra-çam-se com a ternura daquela chuva.Protegem-se dos pesadelos de vida san-grando. Inauguram, unidos, o carinho.Comemoram que existir é bom. E cons-tatam, ainda no silêncio que não é mudo:“Seu filho nunca cairá de suas mãos”.

A frase entre as aspas iniciava aprimeira carta de Marta endereçada asua amiga. Que até então, por medo,havia decidido segurar as notas gravesde um piano em troca do corpo intensoe frágil de uma vida.

A REZA DE COSME E DAMIÃOpor MÁRIO BONELLA

Bahia, 63 anos atrás. Uma queda docavalo e Inácio quase morre. Entre oluto iminente e a fé, Anália, a jovemesposa, agarra-se à segunda opção.Dupla esperança. São Cosme e SãoDamião. É para eles que ela promete:se o marido sobrevivesse, todo ano,abriria as portas da casa para umanoite de oração e agradecimento. E sepromessa é dívida, ela jamais foiinadimplente.

Em setembro, diante das imagens,da vela acesa, do incenso, da foto docasal..., a família apertada, espre-mida, reunida na mesma prece, namesma ladainha. “Agnus Dei, ora pronobis, miserere...”. A cantoria é emlatim, com um carregado sotaquebaiano, misturado a tantos outrosque cabem numa família de 12 filhos,quase todos baianos; 27 netos e 20bisnetos, todos capixabas; e inúme-ros agregados e amigos de tudo quan-to é lugar.

Quarenta minutos de reza, emoçãoliquefeita em lágrimas – mal ou bemdisfarçadas – e, no fim, o mesmobanquete de todo ano. É sempre va-tapá e caruru, nunca um só. É sempregalinha assada e ensopada, nuncauma só. Oxente, a promessa é paraCosme e Damião, não para um só.

Vatapá é comida de baiano, feitacom camarão seco, castanha, pão,caldo de galinha ou de peixe. Caruruleva quiabo. Quem gosta se lam-buza; quem não aprecia carece debom gosto. Para a noite sagrada deDona Anália, os principais ingre-dientes vêm da Bahia. Ela faz ques-tão. Também exige a presença detodos, todo ano.

Trinta e seis setembros e eu nuncafaltei. Sou mistura de baiano comitaliano. Cor da pele e cabelo bemdiferentes dos outros parentes. Mes-mo assim, na reza de minha avó,entendo que família é reconhecer no

outro um pouco de nós mesmos. En-tendo que, em toda promessa oureunião familiar, encontramos partedo que fomos, somos e seremos. Sintoa doce nostalgia de estar em umambiente em que todos me chamampela alcunha da infância e não pelonome de adulto.

A promessa de minha avó semprese repete, mas nunca é igual. Comoum relógio que marca o passar dosanos, ela nos lembra quanto ine-xorável é o tempo. Tudo tranforma,muito nos toma, mas muito nos dá emtroca. É o tempo que fortalece atradição familiar. E acredito que todafamília tem algo assim. Um dia, umahora, um momento de acolhida eunião. Pode ser apenas o gesto debeijar a mão e pedir: “Bença, vó!Bença, vô!” Neste caso, seu Inácio eDona Anália, seu neto Magu é quempede bença em nome de toda genteda família.

Documento:AGazeta_01_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_9.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:30 de Aug de 2012 19:41:39

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11PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

1 DE SETEMBRODE 2012

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,1 DE SETEMBRODE 2012

ensaiopor RITA DE CÁSSIA MAIA E SILVA COSTA

O OLHAR COMO JANELA DAALMA E DA PAISAGEM DO MUNDO

“A Arte não representa o visível, aArte torna visível”...Paul Klee (1879-1940)

Vivemos, neste princípio deséculo, uma mudança deparadigmas similar à queocorrera com o Renasci-mento. Sob a égide domercado e das transfor-

mações decorrentes da tecnologia e daciência, o homem enfrenta o desafio delidar com o tempo e o desejo face àscontingências do predomínio das ima-gens e das virtualidades do presente.

Que discurso, ou melhor, que dis-cursos configuram hoje as visões demundo do homem contemporâneo?Italo Calvino, ao propor a visibilidadecomo uma das virtudes essenciais àpreservação da fantasia na literaturaem uma de suas “Lições Americanas”,antecipa a visão do que se conven-cionou chamar a “civilização da ima-gem” e indaga a respeito do futuroreservado à humanidade, “cada vezmais inundada pelo dilúvio das ima-gens pré-fabricadas” (1990, p.107)

Nesse mundo em que as imagensprevalecem, Agamben, adotando o

conceito de “eterno retorno”, de Niet-zsche, e a perspectiva da visão, propõeuma definição de contemporaneidadeque alude à cegueira do homem pe-rante as luzes do século. Para ele,“contemporâneo é aquele que mantémfixo o olhar no seu tempo, para neleperceber não as luzes, mas o escuro.”(2010, p.62)

Já em 1964, Lacan, ao tratar, noSeminário 11, da formulação do con-ceito de esquize do sujeito na tradiçãofilosófica, nos remete à Fenomenologiada Percepção, de Merleau-Ponty, paranela destacar uma reviravolta ontoló-gica em que se pauta a instituição daforma e a importância do olhar dosujeito, que a preside. Distinguindo aíuma abertura à apreensão do incons-ciente, Lacan nos diz tratar-se de dis-cernir a “preexistência de um olhar”.Afirma ele: “Eu só vejo de um ponto,mas em minha existência sou olhado detoda parte. (...) O olhar só se nosapresenta na forma de uma estranhacontingência simbólica do que encon-tramos no horizonte e como ponto dechegada de nossa experiência, isto é, afalta constitutiva da angústia da cas-tração. O olho e o olhar, esta é para nós

legenda onoomo ono no on....

a esquize na qual se manifesta a pulsãoao nível do campo escópico” (1988,p.73-4).

Poderíamos indagar por que e como,de diferentes perspectivas, o que se nosapresenta é sempre o enigma do olhar.Podemos indagar ainda a partir dasutileza da afirmação em epígrafe:

1. O que é uma obra de arte?2. O que representa o olhar

para o sujeito na cena contem-porânea?

A reflexão sobre a ontologia dasobras de arte remonta à AntiguidadeClássica, desde Platão, inquieta os re-nascentistas e os modernos em buscade sua verdade e de sua consistênciapróprias, e persiste com a fenome-nologia contemporânea, representadapor Merleau-Ponty, como uma questãofundamental para a filosofia. Deixandode considerar a arte um objeto deespeculação metafísica, a filosofia bus-ca nela as referências de nossa exis-tência ou de nossa relação com o mun-do. Por isso, a obra de arte é “unidadeindissolúvel do sentido e do sensível”(Haar, 1994:8).

O mundo criado pela obra de artenos é revelado, tornado presente eintensificado por ela. Sua dupla pro-priedade de se revelar a si mesma e derevelar o próprio mundo nos faz versempre de uma maneira nova nossocotidiano. A arte revela nossa secreta ecorpórea dependência com as coisas domundo, com o outro, e essa revelaçãoconsiste num jogo de presença/ausên-cia, de visível/invisível, que se ma-nifesta duplamente tanto naquilo que évisto como naquele que vê.

PinturaPara Merleau-Ponty, a pintura nos

revela uma corporeidade que não serefere nem ao sujeito nem ao objeto,nem à existência nem à ideia, mas a um“entre dois” destes extremos. A pintura,ao invés de ver o mundo, deixa omundo ver-se nela.

Apontando o olhar como inapre-ensível e como o avesso da consciênciaque se funda na “ilusão de ver-se ven-do-se” (p.82), Lacan nos mostra que“somos seres olhados no espetáculodo mundo. O que nos faz cons-ciência nos institui, do mesmo gol-

Com base na literatura, na psicanálise e na filosofia, acadêmica se propõe a identificar o papelda arte e os discursos que configuram os sentidos da existência para o homem contemporâneo

chelard, assinala que o mundo quer se ver.“E se vê por meio de todos os espelhos,naturais ou artefeitos: lago, pintura, pen-samento”. Para Giordano Bruno, um dosmais perspicazes predecessores do pen-samento humanista, a vista é o maisespiritual de todos os sentidos. A psi-canálise e a arte, pela sua função, forçama cultura a dignificar o páthos comomarca da condição humana.

TranscendênciaRetomemos a questão ontológica da

obra de arte. A arte desconcerta pelassuas tentativas de responder às so-licitações inesgotáveis e misteriosas dascoisas. Ela exalta a verdade, mais pre-cisamente, exalta a verdade do mundo,ao prolongar e ampliar a percepção,que é global, sucessiva, instantânea elenta. A percepção revela o mundocomo latência, como transcendência.Corpo, mundo, linguagem revelam queo real transborda sempre, que seu sen-tido ultrapassa o “já dado”. A lin-guagem é uma forma de visibilidade.Qual seria, pois, a atividade própria dacontemplação? Parece que tanto para afilosofia como para a psicanálise serialembrar. No Livro 7, (p.282), Lacanensina que “o homem não sabe o queele põe em movimento com sua de-manda. (...) O temível desconhecidopara além da linha é o que, no homem,chamamos de inconsciente, isto é, amemória do que ele esquece”.

A contemplação se relaciona, pois, àvisão e à memória, tanto quanto aoimaginário e à criação. Seu efeito deestranheza e a plasticidade que daí re-sulta se organizam em torno do que nãose pode ver ou dizer e que diz respeito àfalta. Porque tudo é visão, devir, tor-namo-nos com o mundo, nós nos tor-namos, contemplando-o, tornando-nosuniverso. Citando Cézanne, Deleu-ze&Guattari (1992:22) constatam:

“Há um minuto do mundo que passa”;não o conservaremos sem “nos trans-formarmos nele.(...) As grandes paisa-gens têm, todas elas, um caráter vi-sionário. A visão é o que do invisível setorna visível... A paisagem é invisívelporque quanto mais a conquistamos,mais nela nos perdemos. Para chegar àpaisagem, devemos sacrificar tantoquanto possível toda determinação tem-poral, espacial, objetiva; mas este aban-

dono não atinge somente o objetivo, eleafeta a nós mesmos na mesma me-dida.”

Quando os objetos aparecem na tela,simbolizados em cores, linhas, formas,luz e sombras, em reflexos, em nuancese tons, e, portanto, sob a condiçãoexpressa de não estarem ali, trans-cendem a sua materialidade, sem aqual, no entanto, não existiriam. Oquadro oferece não ao espírito, mas aoolhar e “à visão aquilo que a atapetainteriormente, a textura imaginária doreal” (Merleau-Ponty, 1984:90). O olhodo artista, comovido e deixando-seatravessar pelas coisas do mundo, orestitui ao visível pelo traço da mão,dando “existência visível àquilo que a

visão profana acredita invisível” (MP,1984:91). O artista traduz e reduplicaesse “instante do mundo” que passa,mas que nasce continuadamente pelavisão da obra de arte.

Assim diz Paul Klee (apudMP,1984:92): “Numa floresta, repeti-das vezes senti que não era eu queolhava a floresta. Em certos dias, sentique eram as árvores que olhavam paramim, que me falavam... Eu lá estava,escutando... Creio que o pintor deve sertraspassado pelo universo, e não querertraspassá-lo. Aguardo ser interiormen-te submergido, sepultado. Pinto, tal-vez, para ressurgir”.

EnigmaAo referir-se, por exemplo, à noção

de profundidade e às técnicas da pers-pectiva, instauradas pelo Renascimen-to, Merleau-Ponty aponta o enigma queconstitui a ligação entre as coisas: ascoisas são vistas “cada uma em seulugar justamente porque elas se eclip-sam umas às outras” e porque há uma“mútua dependência delas na sua au-tonomia” (1984:103). Essa percepçãode que tudo está a um só tempo de-flagra um segredo, sugere que algopré-existe, que reafirma a relação entreo visível e o invisível. O visível tornapresente o invisível que lhe subjaz. Oinvisível se faz presente como umacerta ausência. O invisível é aquilo quese faz ver sobre aquilo que é. Trata-sedaquilo que é inapreensível na suaimanência. Por isso, há que se re-conhecer, com o filósofo (1984:108), oolho como a “janela da alma”. Para ele,“o in-visível é a contrapartida secretado visível, não aparece senão nele, (...)não se pode vê-lo aí, e todo o esforçopara aí vê-lo o faz desaparecer, mas eleestá na linha do visível, é a sua pátriavirtual, inscreve-se nele (em filigrana).(...) o visível está prenhe do invisível”.

Essa leitura resgata o olhar estético eprimordial do ser humano. Com esseolhar refaz-se a paisagem do mundo:um mundo de coexistências, simul-taneidades, implicações de alteridade,afinidades, entrelaçamentos. Nesse tra-çado torna-se possível o gesto da arte,que, como o conceito, tem um estatuto:ser uma multiplicidade e uma super-fície e estar sempre em estado desobrevoo.

Eu só vejo de um ponto, mas emminha existência sou olhado de todaparte. (...) O olhar só se nosapresenta na forma de uma estranhacontingência simbólica do queencontramos no horizonte e comoponto de chegada de nossaexperiência”—Jacques LacanPsicanalista

O in-visível é acontrapartidasecreta do visível,não aparece senãonele, (...) não sepode vê-lo aí, etodo o esforçopara aí vê-lo o fazdesaparecer, masele está na linhado visível, é a suapátria virtual,inscreve-se nele(em filigrana). (...)o visível estáprenhe doinvisível”—Maurice Merleau-PontyFilósofo fenomenólogo francês

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Numa floresta,repetidas vezessenti que não eraeu que olhava afloresta. Em certosdias, senti queeram as árvoresque olhavam paramim, que mefalavam... Eu láestava,escutando... Creioque o pintor deveser traspassadopelo universo, enão querertraspassá-lo”—Paul Klee (1879-1940)Pintor e poeta

pe, como speculum mundi”. (p.76) Apaisagem se pensa no artista e ele é suaconsciência, dizia Cézanne, ao refe-rir-se à extensão do visível sobre o seuolhar. O corpo apresenta, ao mesmotempo, o que é próprio da consciência eo que é próprio do objeto: a refle-xibilidade e a visibilidade. O corpo ésimultaneamente vidente e visível. Nes-sa matéria do visível, nos diz Lacan,“tudo é armadilha e singularmente (...)entrelaço”. (p.92) O corpo é esse logosdo mundo estético, ou melhor, essemundo sensível que nos enlaça às coi-sas (enlaçando nossa visibilidade à de-las), e que faz surgir o mundo dacultura e da história.

José Américo Pessanha, citando Ba-

Documento:AGazeta_01_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_10.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:30 de Aug de 2012 19:33:48

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12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,1 DE SETEMBRODE 2012

perfilpor SANDRA MEDEIROS

LUIZ BUAIZ: EXEMPLO DEVIDA E DE AMOR À MEDICINATrajetória do médico de 91 anos, conhecido pela conduta ética e generosa, vira livroemocionado, que relaciona sua atuação profissional e política com a história de Vitória

DIVULGAÇÃO

“Luiz Buaiz – Biogra-fia de um HomemIncomum” traz atrajetória de umdos mais queridos erenomados médi-

cos do Espírito Santo, contada a partir doponto de vista dele próprio e de cerca de50 entrevistados, entre os quais médicos,funcionários, vizinhos e pessoas com asquais conviveu. Para enriquecer o livro foifeito um levantamento de imagens noArquivo Público Estadual, Arquivo Mu-nicipal, Biblioteca Estadual, Instituto Jo-nes dos Santos Neves, Academia Es-pírito-Santense de Letras e acervo deNilton Pimenta, o que possibilitou a edi-ção ilustrada com mais de 100 fotos, boaparte de alta qualidade técnica, apesar daépoca do registro.

Dividido em cinco capítulos, dis-tribuídos em 212 páginas, o livro traz ahistória de Luiz Buaiz como parte dahistória de Vitória. As informações domédico foram utilizadas na íntegra ouserviram de base para o levantamentode nomes, lugares, arquitetura, comér-cio e fatos que permitiram compor ahistória fiel e contextualizada de suarica existência. Foi um trabalho de 11meses, sete deles para pesquisa, queresultou no livro. A capa dura, embranco e verde, revela um projeto grá-fico sóbrio, apesar do acabamento so-fisticado: laminação aveludada ao to-que, relevo e verniz localizado.

A narrativa da apaixonante vida deLuiz Buaiz justifica a edição do livroque marca o seu nonagésimo primeiroano de vida. Ele nasceu (em 1921) ecresceu no Parque Moscoso, numa casaque ainda hoje está de pé e muito bemconservada – embora não mais per-tença à família – e desde então temparticipado com destaque da históriasocial, médica e política do EspíritoSanto, tendo saído daqui apenas paraestudos no Rio de Janeiro.

Quando começou a atuar, em 1947,os grandes males eram sífilis (quecostumava levar à loucura), tuber-culose e lepra (com raras chances decura, o portador era confinado até amorte). Esse quadro mudou, os gran-des males são outros, mas Luiz Buaizreclama: “Desumanizaram a Medici-na. Eu sou do tempo em que se con-fiava no médico. A relação médico-pa-

ciente desapareceu.” Ele admi-ra os avanços técnicos, mas nãoaceita a forma descompromis-sada como se pratica a Me-dicina.

CargosBuaiz ocupou importantes cargos no

Espírito Santo: dirigiu a Santa Casa deMisericórdia (da qual foi provedor du-rante 14 anos); foi médico no Centro deSaúde (responsável pela área de ve-nereologia), no IAPC, IAPI, Ipase eIapetec; esteve à frente da unificaçãoregional desses institutos e dirigiu oINPS no Estado; contribuiu para a cria-ção do Instituto Braille; foi professor naEmescam e nos colégios Carmo, Es-tadual e São Vicente. Foi ainda Se-cretário Estadual de Saúde. Para aclasse médica é exemplo de profissionalaltamente capacitado, ético e gene-roso: nesses quase 66 anos de atuaçãosempre intercedeu para conseguir no-

meações eabria a própria clínica para os re-cém-formados, causando situações cu-riosas como ele próprio ficar sem sa-lário para ajudar os mais novos.

Aos 91 anos, Luiz Buaiz continua ematividade: atende em seu consultório,no Parque Moscoso, e no consultório deuma cooperativa médica, trabalhandocom invejável disposição. Seu vastoconhecimento em dermatologia é des-tacado da mesma forma que a maneiraabnegada como exerce a profissão: pa-ra ele, quem precisa de ajuda médicatem que ser atendido, sem distinções.Medicina é um sacerdócio. Isso des-perta admiração, mas também gerasituações curiosas, como narrado nolivro. Vitória era uma cidade bem me-nor e todos de fato se conheciam, ainda

LUIZ BUAIZ –BIOGRAFIA DE UMHOMEM INCOMUMSandra Medeiros. 212páginas. Edição doAutor. Distribuiçãogratuita. O livro serádistribuído para aBiblioteca PúblicaEstadual e asbibliotecas municipais.

que só de vista, e todos sabiam o queacontecia em todos os lugares. Não foidifícil à Receita Federal perceber queera dele o consultório mais movimen-tado da Capital. Convocado, foi con-vidado a explicar a discrepância entrenúmero de pacientes e renda decla-rada. Foi simples: recebia pouco porquepoucas eram as consultas cobradas.Dos internos do Asilo dos Velhos aosfuncionários da empresa do pai, pas-sando pelos mais necessitados, nin-guém pagava a consulta.

O livro trata também da atuação po-lítica de Luiz Buaiz, que tentou, mas nãose elegeu prefeito de Vitória, emboratenha chegado a deputado federal. Aexperiência mereceu dele – que diz ser dotempo “em que fazer política era prestarserviço” – análise em que avalia des-frutarem os deputados de condição devida inigualável, com produção insig-nificante na Câmara. Também critica:“Quando o governo domina o Congressodo jeito que domina, não tem como não searrepender da vida política.”

Aquele que busca nas prateleiras daslivrarias narrativas de impacto, com vio-lência e sangue, não vai perceber “LuizBuaiz – Biografia de um Homem In-comum”. Mas deveria fazê-lo: o livroconta uma história edificante, um ad-mirável exemplo de vida que estáfazendo falta em nossos tempos.

Luiz Buaiz sendo abençoado emPalermo, na Itália, onde visitou otúmulo de São Benedito; no alto,à dir., na formatura em 1946; nodestaque, registro profissional

Documento:AGazeta_01_09_2012 1a. Sabado_CP_Pensar_12.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:30 de Aug de 2012 19:31:03