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PELAS ÁGUAS DO VOLGA, O CURSO DA VIDA. FICÇÃO E REALIDADE NA TRILOGIA AUTOBIOGRÁFICA DE MAKSIM GÓRKI Luciana Oliveira de Barros Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Orientadora: Profª Drª. Martha Alkimin de Araújo Vieira Co-orientador: Prof. Dr. Bruno Barretto Gomide Rio de Janeiro Setembro de 2013

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PELAS ÁGUAS DO VOLGA, O CURSO DA VIDA. FICÇÃO E REALIDADE NA TRILOGIA AUTOBIOGRÁFICA DE

MAKSIM GÓRKI

Luciana Oliveira de Barros

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).

Orientadora: Profª Drª. Martha Alkimin de Araújo Vieira Co-orientador: Prof. Dr. Bruno Barretto Gomide

Rio de Janeiro Setembro de 2013

PELAS ÁGUAS DO VOLGA, O CURSO DA VIDA. FICÇÃO E REALIDADE NA TRILOGIA AUTOBIOGRÁFICA DE

MAKSIM GÓRKI

Luciana Oliveira de Barros

Orientadora: Professora Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira Co-orientador: Professor Doutor Bruno Barretto Gomide

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Aprovada por: ______________________________________________ Profª Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira – UFRJ, presidente __________________________________________ Prof. Doutor Eduardo de Faria Coutinho – UFRJ ____________________________________________ Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro – UFRJ ________________________________________ Profª Doutora Daniela Gianna Claudia Beccaccia Versiani – PUC/RJ ______________________________________________ Prof. Doutor Rubens Pereira dos Santos – UNESP/Assis ______________________________________________ Profª Doutora Flávia Trocoli Xavier da Silva – UFRJ, suplente ______________________________________________ Profª Doutora Carlinda Fragale Patê Nuñez – UERJ, suplente

Rio de Janeiro Setembro de 2013

RESUMO

O propósito desta tese é investigar as capacidades do texto autobiográfico de

Maksim Górki, através da trilogia Infância, Ganhando meu pão e Minhas universidades.

Propõe-se uma percepção mais aguçada de um movimento de ida ao encontro a uma

versão de palavras próprias, de um “eu” particular, de uma mundividência única que

ratifica e muitas vezes retifica a base histórica que no passado a circunscreveu. Retornando

à escuta da fala em primeira pessoa de Górki, pretende-se entender a conciliação, no

discurso autobiográfico, da atitude de não desistir do intrigante exercício do

autoconhecimento diante da verdade apresentada pela história.

Através de um questionamento sobre a possibilidade de reconhecer a frase e a

imagem adequadas que se expressam em prosa, objetiva-se também traduzir o vivido que

resiste às marcas do mal-estar causado em uma consciência cuja memória é a sua maior

singularidade e a arte de ficcionalizá-la, o seu maior desafio.

Palavras-chave: Maksim Górki, literatura russa, autobiografia

Rio de Janeiro Setembro de 2013

ABSTRACT

The purpose of this thesis is to investigate the capabilities of Maksim Gorky´s

autobiographical work, through the trilogy Childhood, In the world and My universities.

We propose a more accurate perception of a movement towards a version of his own words,

a particular “I” to a single worldview that ratifies and very often rectifies the historical

basis that in the past circumscribed it. Returning to the listening of the Gorky´s first person

of speech, we aim to understand the reconciliation, in autobiographical discourse, of the

attitude of not giving up of the intriging exercise of self-knowledge against the truth given

by History.

Through a questioning about the possibility to recognize the appropriate phrase

and image that are expressed in prose, is also our objective the translation of lived

experiences that resist the marks of the uneasiness caused in a consciousness whose

memory is its greatest uniqueness and the art of fictionalizing it, your biggest challenge.

Keywords: Makism Gorky, russian literature, autobiography

Rio de Janeiro

Setembro de 2013

ABТОРЕФЕРАТ

Цель этой диссертации в исследовании свойств автобиографического текста

Максима Горького на материале трилогии «Детство. В людях. Мои университеты».

Предлагается рассмотреть внимательнее процесс поиска собственных слов,

личного «я», уникальной картины мира, которая запечатлевает, и часто проясняет ту

историческую действительность, которая в прошлом её определила.

Возвращаясь к изучению речи Горького от первого лица, предполагается

увидеть в автобиографическом дискурсе примирение с намерением не отступать на

захватывающем поприще самопознания перед лицом правды, которую являет

история.

Задаваясь вопросом о возможности найти адекватные друг другу фразу и

образ, выраженные в прозе, также ставится цель осмыслить пережитое, не

искаженное печатью болезни, поразившей сознание, чья память есть самая большая

его уникальность, а искусство его изображения- самый серьёзный ему вызов.

Ключевые слова: Максим Горький, русская литература, автобиография

Rio de Janeiro

Setembro de 2013

Barros, Luciana Oliveira. Pelas águas do Volga, o curso da vida. Ficção e realidade na trilogia autobiográfica de Maksim Górki/ Luciana Oliveira de Barros. - Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2013. xi 325 fls: il.; 31cm Orientadora: Martha Alkimin de Araújo Vieira Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2013. Referências Bibliográficas: f. 272-285 1. Maksim Górki. 2. Trilogia autobiográfica. 3. Ficção e realidade. I. Alkimin, Martha de Araújo Vieira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Ciência da Literatura. III. Pelas águas de Volga, o curso da vida. Ficção e realidade na trilogia autobiográfica de Maksim Górki.

AGRADECIMENTOS

Agradecer é um momento muito especial. É onde há um reconhecimento a quem

esteve sempre ao nosso lado, apoiando, motivando e, mais ainda, acreditando sempre na nossa capacidade de superação. Da minha parte, tenho tantas pessoas a quem quero dirigir minha gratidão, que nem sei por onde começar. Para sanar essa dúvida, dedico a cada um de vocês algumas “palavras russas” que versaram a minha jornada até aqui. Elas têm significados próprios e externam um muito obrigado a todos. De antemão, peço desculpas pela total inabilidade para com a síntese.

À Martha Alkimin, minha orientadora, que com muito companheirismo, competência e um bom humor inigualável, me conduziu com precisão durante todo o processo de doutoramento.

[Devemos] desenvolver [nossa] energia incansavelmente, cada vez mais profunda e amplamente (...) E se ficarmos para trás, entregues ao cansaço ou seduzidos pela possibilidade imediata de uma pequena conquista, isto é prejudicial e quase uma traição! Não existe ninguém que nos possa acompanhar sem que deturpemos a nossa verdade, e nunca devemos esquecer que a nossa tarefa não se prende a pequenas conquistas, mas sim à vitória final e absoluta (GÓRKI, Maksim. A mãe).

Ao Bruno Gomide, meu co-orientador, por todo apoio especializado e por ter dado um “conselho de amigo” que me fez enveredar pela trilogia de Maksim Górki.

Continuando as minhas observações posteriores sobre mim e os outros, compreendi (isto é, senti) que a criação é acima de tudo a plena concentração de toda a natureza espiritual e física. Abrange não só a visão e a audição, mas todos os cinco sentidos do homem. Abrange, ademais o corpo, o pensamento, a mente, a vontade, o sentimento, a memória e a imaginação (STANISLÁVSKI, Konstantin. Minha vida na arte).

Aos membros da banca, por terem embarcado nessa empreitada russa.

Neste momento senti que eu era um jogador. Senti isso como nunca até então. Minhas mãos tremiam, as pernas vergavam-se. As têmporas pulsavam agitadamente (...) E tudo passou como um sonho — inclusive minha paixão. No entanto ela era forte e sincera: mas… que foi feito dela? (DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Um jogador)

E por falar em escritas de si, se há alguém que poderia escrever a minha biografia, este seria o meu irmão de alma Andrei Iuchkóvski, alguém que me conhece pelo avesso.

Memorizo todo o meu passado e involuntariamente me pergunto: para que vivi? Com que fim nasci?... Mas deve haver algum fim e alguma alta missão, porque sinto em mim forças imensuráveis (LIÉRMONTOV, Mikhail. Herói do nosso tempo).

À querida Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, um exemplo de competência. Muito obrigado pelos conselhos, pelos livros e longas e elucidativas conversas. A você dedico uma grande parcela deste trabalho.

Seria difícil encontrar uma pessoa tão consumida em seu posto. Trabalhava com zelo: não, isso ainda não diz tudo; trabalhava com amor. Naquele infindável transcrever, vislumbrava algo como um mundo mais diverso e agradável (GÓGOL, Nikolai. O capote).

À Maria do Carmo Cardoso da Costa, pela alegria e pelas caronas para o Fundão. Agradeço imensamente a tradução das citações em espanhol.

Há muita coisa na vida que é fortuita, e muita coisa também que é estranha. Dá-se à Palavra o direito sublime de ajudar a sorte e de fazer do transcendental algo que não seja acidental (NABÓKOV, Vladimir. O Passageiro).

Aos professores da Faculdade de Letras-UFRJ que, direta ou indiretamente, contribuíram para a minha formação.

DEDUÇÃO Não acabarão nunca com o amor, nem as rusgas, nem a distância. Está provado, pensado, verificado. Aqui levanto solene minha estrofe de mil dedos e faço o juramento: Amo firme, fiel e verdadeiramente. (MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas)

À Ievguênia Sokolova (in memoriam) e à Anna Makárova, duas professoras fantásticas que me ofereceram toda experiência possível em assuntos russos. Agradeço também ao suporte dado enquanto estive em Moscou, a - 28 graus de temperatura. Alargo o meu abraço à Anna Lukina, sempre presente nas conversas virtuais, à Elena Konstantínovna, à Svetlana Polyúdova, querida amiga, aos professores do Instituto Púchkin e ao Angelo Segrillo. Haja história para contar.

Eis, propriamente, toda a história. Não há nada de edificante nela, mas talvez haja um único “grãozinho de areia” capaz de alegrar as pessoas, ainda que só um pouco, e de obrigá-las a sorrir, sem descobrirem, desta vez, um sentido profundo nesta pequena narrativa (PAUSTÓVSKI, Konstantin. Grãozinho de areia).

Ao Rubens Figueiredo e ao Boris Schnaiderman por possibilitarem ao público brasileiro alcance à trilogia de Górki.

Para os que começam a escrever, é necessário ter conhecimento da história da literatura (...) Em cada ofício é preciso conhecer a história de seu desenvolvimento. Se os operários de cada setor de produção, ou melhor, de cada fábrica, soubessem como esta surgiu, como pouco a pouco se desenvolveu, aperfeiçoando a produção, trabalhariam melhor do que trabalham, com uma compreensão mais profunda do sentido histórico e cultural de seu labor e com maior entusiasmo (GÓRKI, Maksim. Como aprendi a escrever).

Ao CNPq por investir nesta pesquisa.

Aos meus alunos, a quem ofereço o meu conhecimento.

DO CICLO O ALUNO Pelos montes - túmidos e úmidos, Sob o sol - potente e poento, Com a bota - tímida e humilde - Atrás do manto - roxo e roto.

Pelas areias - ávidas e ácidas, Sob o sol - candente e sedento, Com a bota - tímida e humilde - Atrás do manto - rasto e rasto. Pelas ondas - rábidas e rápidas, Sob o sol - idoso e iroso, Com a bota - tímida e humilde - Atrás do manto - que mente e mente...

(TZVETÁEVA, Marina. Poesia russa moderna)

A todos os meus amigos, todos, todos, todos.

SOMOS JOVENS JOVENS JOVENS

Somos jovens jovens jovens Frio do demo no abdômen Agora sigam-me todos... Por trás dos meus ombros Meu chamado consiste Neste orgulhoso speech! Pedra e relva mastiguemos O doce os amargos venenos Acocanhando os espaços Do mais profundo ao mais alto A fera o monstro a escama a pluma O vento a argila o sol a espuma! (BURLIUK, Davi. Poesia russa moderna)

Aos meus que já não posso ver, mas que acompanham cada passo de dou.

E assim se concluiu que somente uma vida semelhante à vida daqueles ao nosso redor, mesclando-se a ela sem murmúrio, é vida genuína, e que uma felicidade não compartilhada não é felicidade (PASTERNAK, Boris. Doutor Jivago).

Ao meu pai, Mirabeau, à minha mãe, Maria Lúcia e ao meu irmão, Alexandre, pela compreensão de minhas ausências. Vocês são a minha força. Unidos somos, unidos seremos.

É preciso amar. É preciso que se tenda instintivamente à fraternidade, à comunhão, à concórdia (...) que a necessidade da comunhão fraterna faça parte da natureza do homem, que este nasça com ela ou tenha adquirido tal hábito através dos séculos (DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Notas de inverno sobre impressões de verão).

Quanto mais eu lia mais os livros me ligavam ao mundo, mais apaixonante e significativa a vida se tornava para mim. Eu vi que havia gente cuja vida era pior e mais difícil do que a minha e, embora isso me desse um pouco de conforto, eu não me conformava com os fatos ultrajantes da realidade. Eu também vi que havia gente que era capaz de viver de maneira interessante e feliz como nenhuma outra que estava ao meu redor. Nas páginas de cada livro, soava uma mensagem subjugada, porém insistente, perturbadora que tocava meu coração. Todas as pessoas sofriam de uma forma ou de outra. Todos se tornaram familiares e compreensíveis para mim, pois estavam insatisfeitos com a vida e à procura de algo melhor. Os livros envolviam o mundo inteiro em uma aspiração pesarosa em busca de melhorias. Cada um deles era uma alma dolorida impressa em papel. Eram sinais e palavras que criaram vida logo que meus olhos e minha razão entraram em contato com eles 1.

M. Górki

Чем больше я читал, тем более книги роднили меня с миром, тем ярче, значительнее становилась для меня жизнь. Я видел, что есть люди, которые живут хуже, труднее меня, и это меня несколько утешало, не примиряя с оскорбительной действительностью; я видел также, что есть люди, умеющие жить интересно и празднично, как не умеет жить никто вокруг меня. И почти в каждой книге тихим звоном звучало что-то тревожное, увлекающее к неведомому, задевавшее за сердце. Все люди так или иначе страдали, все были недовольны жизнью, искали чего-то лучшего, и все они становились более близкими, понятными. Книги окутывали всю землю, весь мир печалью о лучшем, и каждая из них была как бы душой, запечатлённой на бумаге знаками и словами, которые оживали, как только мои глаза, мой разум соприкасались с ними.

М. Горькьий

1 GÓRKI, M. O literature. Moscou: Mejdunaródnaia kniga, 1973, p. 18.

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS RESUMO ABSTRACT ABТОРЕФЕРАТ INTRODUÇÃO 3 PRINCIPAIS DADOS BIOGRÁFICOS DE MAKSIM GÓRKI 14 CAPÍTULO 1 1.1 Tempos idos, tempos vividos 23 1.2 O laço e o abraço. A perspectiva literária circunscrita na história 53 1.3 Arroubos de fé. As esperanças da autobiografia 69

ILUSTRAÇÕES - Parte 1 84 CAPÍTULO 2 2.1 Autor, leitor e narrador. Um pacto de sangue 87 2.2 Sujeito indeterminado. Um interlúdio 104 2.3 Das memórias do menino-homem Aleksiei 122 ao otimismo amargo de Maksim Górki ILUSTRAÇÕES - Parte 2 133 CAPÍTULO 3 3.1 A experiência infantil de Aleksiei Piechkóv 136 3.2 Na alma, um arco-íris 152 3.3 O legado - A re-escritura da memória 164 ILUSTRAÇÕES - Parte 3 180 CAPÍTULO 4 4.1 Entre os homens. Acertando as contas com o passado 183 4.2 A promoção do estado leigo: o cristão das ruas 193 4.3 A grafia da vida: o livro 208

ILUSTRAÇÕES - Parte 4 237 CAPÍTULO 5 5.1 A primeira voz. O selo que autentica uma sentença 239 5.2 Percorrendo as marginálias: o laureado 245 5.3 Maksimizando a vida 255 ILUSTRAÇÕES - Parte 5 263

CONSIDERAÇÕES FINAIS 265

ILUSTRAÇÕES - Parte 6 269

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 272

ANEXOS 286

3

INTRODUÇÃO

Reencontrar pesquisas, textos e livros que por algum tempo ficaram parados é uma grande

alegria, principalmente se esse reencontro for em nome do desafio de escrever uma tese. É

compensador o despertar da vontade de vencer que esse exercício proporciona. É como dar um

grande salto para frente depois de longos anos de formação acadêmica.

Não posso negar que a experiência do constante aprendizado me empurrou para o tema

desta tese. O leque de opções era vastíssimo e a primeira providência a tomar foi listar as

escolhas que eram mais caras para mim. Não adiantou, pois meu coração se dividiu entre o

apreço e a paixão. Começava um tempo de reaprendizado, de autoconhecimento. Tempo

suficiente para que eu absorvesse a linguagem da humanidade, fato que me deu a oportunidade de

trabalhar com amor.

Através de conversas que só nós temos com nossos possíveis campos investigativos,

reconheci que a memória é, de fato, um dos pólos de resistência intelectual, moral e político e que

ela é o que desenvolve a simpatia pela recriação de uma história. Foi prestando atenção nesse

“viver entre aspas” que o escritor russo Maksim Górki entrou em minha vida.

A pergunta inicial feita no embrião deste trabalho partiu da seguinte perspectiva: como

entender a questão autobiográfica na literatura russa do século XX, panorama literário difuso e

transitório que desafiou os rumos da história? Diante dessa inquietação, propõe-se uma leitura da

presença do autobiográfico na literatura do escritor russo Maksim Górki (1868-1936). Leitura

que, claro, não ambiciona ser definitiva em função da multiplicidade de questões levantadas pela

obra desse escritor.

Inicialmente, o tema desta tese era uma análise da trilogia autobiográfica gorkiana, sua

incursão e relevância na literatura russa do século XX, porém, muito se ganha quando

questionamentos outros nos provocam a buscar mais de uma proposta. Debruçando-me sobre a

leitura de quase toda a produção literária de Górki e também direcionada por Rubens Figueiredo,

tradutor de duas das obras, percebi que em boa parte dos textos há um “quê” de biográfico com a

presença de um “eu” bastante complexo. Observei também que o debate acerca do tema não

renderia frutos se eu me ativesse a um estudo de uma obra, como dizem nos filmes, “baseada em

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fatos reais” ou, em outras palavras, buscasse a coincidência entre a dimensão civil na

autobiografia de Górki e o material narrado em sua trilogia, fato que reduziria a sua literatura.

Sobre o que então versa este trabalho?

Durante os meus estudos, me chamou atenção o fato de Górki ser praticamente o último

escritor russo a englobar, em parte, a “Era de ouro” russa, cujos ilustres representantes foram

A.S. Púchkin, N.V. Gógol, M.I. Liérmontov, L.N. Tolstói, I. S.Turguêniev, F.M. Dostoiévski,

A.P. Tchékhov, entre outros. Uso o adjetivo “último” por Górki ter personificado um momento

transitório de um país já tomado por tensões e contradições e que entrava na “Era de prata” de

suas artes. No início do século XX, o contexto histórico era de fermentação política. O regime

tsarista mostrava sinais de fadiga e o povo, insatisfeito, depositava todas as esperanças na

Revolução. É justamente nessa atmosfera que surge para as Letras Aleksiei Maksímovitch

Piechkóv ou Maksim Górki, que, em russo, significa “o amargo”.

Entre idas e vindas, deportações e prisões, Górki se tornou expoente da literatura,

alcançando em vida reluzente sucesso. Assim, quando escolhi a trilogia autobiográfica, composta

pelos volumes Infância (Diétstvo), de 1913, Ganhando meu pão (V liúdiakh), de 1916 e Minhas

universidades (Moí universitieti), de 1923, como obra central desta tese, verifiquei que seria

necessário um levantamento do panorama histórico da época que perpassa momentos de extrema

importância para a Rússia, como a Revolução de 1917 e a tentativa de implantação de ideais

socialistas. Movimentos que desembocaram no realismo socialista, herança dos levantes

revolucionários que apontaram Górki como precursor desse movimento.

Muitos devem acreditar que essa nova classificação, o realismo socialista, tem como

marco a Revolução de Outubro, porém, essa visão pode não ser a mais adequada para se definir

um momento fronteiriço em que Górki viveu. Entre novembro de 2008 e março de 2009, quando

vivi em Moscou, o meu projeto-tese ganhou um norte. Percorrendo bibliotecas, museus e casas de

cultura, procurei conhecer bem a vida de Górki, a fim de configurar um pano de fundo para o

meu trabalho.

Antes de tudo, porém, é preciso lembrar que durante diversos anos de embate entre

tsarismo e escritores, todos permaneciam escrevendo mesmo afastados do núcleo cosmopolita,

acreditando que as suas obras tinham a capacidade de concentrar força para liderar mudanças. Em

tempos de turbulência política, além da denúncia característica do realismo socialista, objetivou-

se a formação de um pensamento crítico. Visitando lugares por onde Górki passou, vi o impacto

5

da história na vida do escritor e a senti os motivos que talvez o levaram a escrever uma

autobiografia.

De volta ao Rio de Janeiro, munida de muitas anotações e ideias, me dediquei à leitura da

tese de Bruno Gomide, intitulada Da estepe à caatinga. O romance russo no Brasil (1887-1930),

Unicamp, e me permiti observar com olhos mais atentos a circulação da literatura russa entre os

brasileiros. Embora essa tese não trate de investigações puramente teóricas, ela me mostrou uma

questão bastante relevante para o meu estudo, que é a constatação de que a história e o contexto

social são a matriz e ao mesmo tempo o cenário da tematização da ficcionalização de uma

existência. Aos poucos, meus pensamentos acerca da temática escolhida foram mudando e se

intensificando, fazendo com que eu passasse a investigar por que as autobiografias bifurcam-se

na dubiedade entre real e o ficional, fato que as torna muito mais sedutoras.

Por muito tempo, as narrativas ditas confessionais foram taxadas como menores e, desse

modo, seguiram suas trajetórias à margem das “altas literaturas”, como afirma Leyla Perrone

Moisés em livro homônimo. Devido a uma visão ingênua, lida-se ainda com a autobiografia

como se ela fosse não-ficção e por apresentar vestígios factuais que criam uma espécie de cisma

entre o que é criado e o que é descrito.

Sabemos que há muita discussão sobre a possibilidade de haver realmente um traço

formal que distingua a narração de acontecimentos verificáveis de outros produzidos pela

imaginação. Frente a isso, entendi claramente que a literatura confessional é literatura e que uma

separação das duas devido a implicações teóricas seria desinteressante a partir de qualquer

critério textual.

Na produção literária russa do início do século XX, as produções de cunho confessional

se intensificaram com a presença de um Górki mais maduro, passando também por Vladímir

Maiakóvski, na poesia, e Isaac Bábel, também na prosa. Essa nova forma de expressão, ainda não

com tão frequência na Rússia, tem algumas explicações por terem sido escritas durante o caos

político que, sem dúvida, contribuiu para o comportamento denunciador dos autores.

Além das considerações teóricas que circundam a produção das (auto)biografias, elas cada

vez mais causam um frisson entre os leitores, porque gozam de informações causadoras de

curiosidade em quem considera essas leituras um decalque fidedigno da vida de alguém.

Confesso que também fui acometida por essa curiosidade quando soube que seria lançada para o

6

público brasileiro a trilogia autobiogáfica de Górki, traduzida diretamente do russo por Rubens

Figueiredo e Boris Schnaiderman, tradutor de Ganhando meu pão.

Valendo-me do pensamento de Linda Hutcheon, de que o nascimento desse “subgênero” é

consequência da crescente subjetividade oriunda do romantismo, me inclino a crer que dessa

característica teria nascido o romance de introspecção1. No caso da Rússia, particularmente,

arrisco-me a dizer que o interesse pelas obras confessionais deve-se, em grande parte, ao período

registrado após o fracasso da Revolução de 1905, o Domingo Sangrento, quando se iniciou o

caminho ao controverso progresso que Górki sempre questionou.

A obra gorkiana favorece a qualidade do escritor em enxergar a diversidade humana em

uma vida cheia de percalços. Com a observação de detalhes que permaneceram vivos na

memória, Górki constrói um fio invisível que amarra toda uma vida. Suas obras descrevem

grandes e pequenas revoluções que muitas vezes são internas e silenciosas e por isso comovem.

Pelas descrições, ele nos mostra que todo ser humano é finito, mas as memórias transcendem o

corpo e não perecem, fazendo com que as experiências individuais, ficionalizadas ou não,

contenham narrativas, enfatizando que a memória de um pode também ser a memória de muitos.

Isso motiva o exercício de “matar” a curiosidade, sobretudo com relação àquilo que é tido como

verdade. É o valor íntimo de cada indivíduo naquilo que ele tem de singular, de pessoal, que

desperta ímpetos que talvez sejam a razão do nosso desejo de conhecer a vida alheia.

Nos três livros autobiográficos estudados nesta tese, Górki não se desapega do rigor

plástico herdado da literatura russa do século XIX e tece a trilogia dentro de uma atmosfera de

engenharia social de seu fazer poético, emaranhando realidade e ficção. Górki passeia no espelho

do tempo e da literatura, recorrendo à ideia de que é o mesmo, sendo também diferente a cada

obra, porém sujeito às armadilhas construídas pela vida que, em algum momento, figuram como

um labirinto num contexto histórico-social.

Nomes como o de Górki ocupam posições perturbadoras na história literária2. Assim, aos

poucos, surge diante de nós um panorama em forma de mosaico em que se pode ver o

1 HUTCHEON, Linda. Poética da pós-modernidade: história, teoria e ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. 2 Abro parênteses para informar que, durante o meu processo de investigação, notei que a figura de Górki é vista sob diferentes enfoques. No que tange aos conhecimentos que ficaram mais próximos de mim, posso dizer que no espaço institucional da Faculdade de Letras-UFRJ, onde me graduei, Górki é estudado inserido num contexto político-literário delineado pela Revolução Russa. Na análise da literatura, são levados em conta os conceitos leninistas, marxistas e tudo que politicamente contribuiu para a estruturação revolucionária e a construção de um ideal socialista.

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amadurecimento do protesto social e do pensamento crítico de um período. O caráter humanístico

energizado com as experiências de vida culminaram com a tessitura de uma obra dotada de força

estético-política, que não permite que seja colocada à parte de uma discussão literária sobre o

cânone autobiográfico e suas possíveis interpretações.

No entanto, na Rússia do início do século XX, o projeto autobiográfico acolheu diversos

interesses, mostrando que a literatura de um relato confessional associado à história na qual foi

produzido pode proporcionar uma visão ampla, não somente do autobiografado, mas também das

condições sociais, culturais e políticas dentro das quais alguém lê ou escreve a respeito de uma

outra pessoa. Assim, a proposta da tese foi me concedendo sinuosas curvas. Ganharam impulso,

portanto, as análises que se defrontam com a complexidade do real e das escritas de si que tentam

“abarcar” esse real.

A respeito do rosto que a tese recebeu, adianto que, primeiramente, foi incluída a tradução

de uma organização cronológica da vida de Górki, ano a ano, que será literariamente analisada no

decorrer dos capítulos, via autobiografia. O objetivo desse relatório de dados é proporcionar uma

referência sucinta dos acontecimentos mais marcantes da vida do escritor.

O primeiro capítulo, por sua vez, se ocupará de fornecer uma visão histórica concisa da

Rússia e da vida de Górki contada por ele mesmo. Nesta pesquisa, também foi fundamental que

pintássemos em uma tela histórica a participação de figuras atuantes como K. Marx e V. Lênin

Na Universidade de São Paulo-USP, através de textos publicados e palestras proferidas, percebi que é dado

a Górki um enfoque mais literário. A política não é ignorada, porém, anda em paralelo com a produção artística, uma vez que, segundo Boris Schnaiderman, a obra de Górki “tem momentos intensos, que devem ser valorizados justamente agora, quando a velha adoração deu lugar a uma condenação em bloco. Certamente, poucas vezes um autor teve a sua imagem atirada com tanta violência na lama, depois de glorificada ao extremo” (GÓRKI, 2007a, p. 441).

Quando cheguei em Moscou, precisamente no Instituto Estatal Púchkin de Língua e Literatura Russa, vi que estava diante de uma “terceira margem” no que se refere a Górki. Nas aulas que frequentei, por muitas vezes fiquei confusa com o que estava sendo dito a respeito da literatura russa do século XX, pois tinha a impressão de que se falava muito de humanismo. Depois de me certificar que o idioma russo não me traía, tive a certeza de que a figura gorkiana é encarada pelo viés do que é inerente ao ser humano. Não o humanismo burguês, profissional, que tinha o encargo de “relacionar” falsos progressistas, encobrindo a rapacidade e parasitismo, mas sim o humanismo que seguia a máxima de: “exigir o mais possível do homem, e respeitá-lo o mais possível”. Nessa visão russa, o homem só seria humano se elaborasse a capacidade de se autocorrigir e de viver em função do coletivo. Essa máxima citada é um ideal de Anton Semiônovitch Makarenko (1888-1939), pedagogo ucraniano e leitor declarado de Górki. Seu pensamento resume bem o modo de enxergar Górki mediante a pequena análise russa a que tive acesso. “Considero que a vida está na origem de tudo o que é belo... Amo a vida tal como ela é. É bela justamente porque não é prática, porque não tem o egoísmo por medida, porque é feita de lutas e perigos, de sofrimentos e de pensamentos, de uma espécie de altivez e independência perante a natureza... Vivo porque amo a vida, amo o dia e a noite, amo a luta, gosto de ver o homem crescer, lutar contra a natureza e, entre outras, contra a sua própria natureza... O homem deve ter uma só especialidade: deve ser um homem, um homem verdadeiro” (MAKARENKO, Anton S. Poema Pedagógico. Lisboa: Horizonte, 1980, p. 14).

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para que se desse o devido enfoque às ênfases políticas tão pertinentes na Rússia. Ao fim da tese,

esse capítulo causará uma sensação de flashback, pois o que se ouve são as vozes da história e a

de Górki diante delas. Mediante a troca epistolar, falaremos sobre a história russa, sobre o

passado que, se pensarmos bem, foi o futuro de um menino que um dia foi Górki.

A leitura atenta de cartas e documentos históricos significa uma intenção de não nos

curvarmos à ingenuidade de pensar que tudo o que está escrito é uma impressão digital do real ou

que a obra é detentora de uma verdade inquestionável, mas sim analisar mecanismos que

corroborem a noção de que o real, uma vez tematizado na literatura, concede aos textos de Górki

um viés de fabulação.

No segundo capítulo, o foco será na noção tradicional da autobiografia, introduzida por

Phillipe Lejeune, que define a autobiografia como “a narrativa retrospectiva em prosa que uma

pessoa real faz de sua própria existência, acentuando sua vida individual, particularmente a

história de sua personalidade”. Contaremos também com a substancial perspectiva de Leonor

Arfuch sobre o assunto. A utilização do conceito da “vida como narração”, eleva o tema

autobiográfico a um patamar mais complexo. A visão dela traz uma fina possibilidade de

abordagem ao que está sendo proposto, permitindo sonhos, especulações e caminhadas soltas.

Arfuch é colocada na argumentação, uma vez que ela busca uma tematização para o imaginário,

crendo que este não existe sem interpretação. Nesse capítulo, será necessário que se ande em

paralelo pela história e pelo individual, de maneira que se dê centralidade ao estatuto do

autobiográfico.

Nesse movimento imperativo, a visão canônica não suplanta a amplitude que o tema

possui, mas é importante para que possamos dar sustentação ao debate maior desta tese, que

flutua sempre entre o real e o ficcional. Esse capítulo é fundamental para darmos relevo às

questões da memória russa contida nas obras. Além de Lejeune, convivem nessa análise sobre as

tradições da autobiografia, o teórico Mikhail Bakhtin e seus conceitos sobre as escritas de si e a

linguagem que são projetadas dentro da esfera russa.

A trajetória de Górki e a de boa parte de sua Rússia é condensada e filtrada na

autobiografia, mas, ao mesmo tempo, quando essa vivência vira literatura, já conta com a

potenciaizada imaginação de um autor, que observou e recriou fatos com grande facilidade. Os

laços entre memória e história serão preservados nessa segunda etapa, mas contarão também com

o registro do ambíguo, pois não seria criativo determinar se o texto é real ou ficcional. Investe-se

9

numa mescla, na aceitação de que um escritor foi genial o suficiente para recriar a própria

existência se apoiando em fatos concretos com fortes pinceladas de imaginação. Para isso,

confiarei a Walter Benjamin uma explanação sobre o papel do narrador. Ao lado de Benjamin,

serão ouvidas as formulações de Michel Foucault sobre o que seria um autor e que noções

constituem a revelação de um sujeito. A partir desses teóricos, será possível ver que os autores

sempre se revelam, quer queiram quer não, e que uma confissão do “eu” pode acarretar

insinceridades involuntárias que são rastreadas pelo exercício autobiográfico. Este capítulo é

onde toda a problemática da tese será construída e, de forma concomitante, jogará na cena as

ambições do trabalho em aprofundar os conhecimentos sobre outras possibilidades de se ler uma

autobiografia.

No terceiro capítulo começará a ser proposta uma forma de pensar uma produção

autobiográfica a partir do livro Infância. Pretende-se uma desconstrução do paradigma que retire

o autobiográfico da sua equivalência à realidade objetiva. Nessa perspectiva, me debruçei na

teoria da ficção de Wolfgang Iser, com o intuito de analisar como a relação entre a história e a

literatura acontece na trilogia de Górki. Certamente, no desenvolvimento desses três primeiros

capítulos, figuram subcapítulos que têm as respectivas ilustrações literárias e contêm opiniões de

outros teóricos russos, que também testemunharam uma época. Para isso, serão levadas em

consideração: as interpretações presentes ao longo de toda a narrativa, sobre a vivência infantil de

Górki, o legado das experiências vividas e o prazer da leitura. O mapeamento desses fatos e a

interpretação deles marcarão o crescimento etário do narrador e também a sequência dos três

livros.

Vale lembrar que os autores consultados nesta tese são muitos e foram escolhidos de

forma a dar consistência teórica ao argumento, mas houve nessa escolha um forte apelo intuitivo

e afetivo. A missão deles é direcionar o curso do trabalho para evitar possíveis desvios de foco.

Em toda a tese houve uma contribuição mútua entre a análise teórica e a análise da própria obra

de Górki. Para a realização desse “corpo a corpo” com a trilogia recorri a Boris Schnaiderman,

um dos precursores dos estudos russos no Brasil, que, em seus diversos artigos sobre Górki,

fornece preciosas reflexões para a compreensão do funcionamento da sociedade russa e de sua

relação com o mundo interior. Relação que pode ser articulada de várias maneiras, entre as quais

destacam-se: o trabalho de classificação e de delimitação do material individual que produz as

múltiplas configurações intelectuais através das quais a realidade é reconstruída

10

autobiograficamente; as práticas que visam exibir uma maneira específica de estar no mundo,

simbolizando um estatuto, uma posição, demonstrando uma identidade; e a possibilidade de um

exame mais atual a ser feito nas formas autobiográficas graças a um autor que conseguiu

perpetuar a sua existência através da literatura.

O quarto capítulo engloba o segundo livro da trilogia, Ganhando meu pão. Ainda

seguindo os apontamentos de Schnaiderman sobre a escrita de Górki, caberá analisar o fenômeno

autobiográfico através do imaginário. Acredito que a reunião desses elementos servirá para

estimular um novo olhar, uma nova abordagem da realidade, que tende a romper com as verdades

absolutas no reconstruir de uma vida narrada literariamente. Com o narrador gorkiano ganhando

a vida, a narrativa se inclina para a percepção da inconclusividade do homem. Portanto, diante de

uma falta de resposta para o ser-humano, abordaremos os pensamentos de Górki sobre os

posicionamentos políticos e sobre a fé nas atitudes.

O quinto e último capítulo dará amplitude à escrita em primeira pessoa. O “eu” que fala

funciona como uma referência constante ao interior. Aqui, objetiva-se uma valorização da

subjetivação de um sujeito como material de autoconhecimento e uma naturalidade da fala em

primeira pessoa. Durante o crescimento cronológico do “eu” que narra há a inseparável presença

do tempo que se porta como um aliado na liberação do fluxo de memória de Górki. Como base

interpretativa, o último livro da trilogia, Minhas universidades, nos servirá para o

encaminhamento de um possível estatuto autobiográfico próprio a Górki.

A valorização nesta tese de uma obra de Górki que não é a mais conhecida e nem a mais

popular é muito oportuna. Esse investimento vem dos méritos que ela tem em produzir a ilusão

de que estamos diante de um conjunto de fatos reais e concretos contados sem nenhuma espécie

de mediação. Entretando, não podemos esquecer que um indivíduo real às vezes diz a verdade e

outras vezes finge, até mesmo em relação a si próprio. Devido a esse comportamento, o impacto

do valor da autobiografia é diretamente proporcional ao seu maior ou menor poder de convicção

que é, em via de regra, fundamental para o estabelecimento do pacto autobiográfico, como

salienta o teórico francês Phillipe Lejeune. Nada mais crível do que a vida de uma pessoa contada

por ela mesma, porém, se admito como plausível a ficcionalização do próprio sujeito ao se narrar,

tornam-se cada vez mais esfumaçadas as fronteiras entre realidade e ficção.

Todas essas nuances são bastante complexas, uma vez que as fronteiras entre realidade e

ficção na trilogia gorkiana são muito tênues. Pela dificuldade do tema escolhido, a tese contará,

11

além dos teóricos-base já mencionados, com outros nomes, como o de Pável Bassínski3,

igualmente importantes para a consecução dos objetivos almejados. Na fortuna crítica, entretanto,

as citações pesquisadas em idiomas estrageiros foram traduzidas para a língua portuguesa.

Traduzi as citações de língua inglesa, italiana e russa, ao passo que as citações nas línguas

espanhola e francesa ficaram a cargo de Maria do Carmo Cardoso da Costa e Lenira Oliveira,

respectivamente.

Os capítulos dois, três e quatro contam com a presença de três textos curtos de Górki,

reproduzidos na íntegra, sendo eles; “Um acompanhamento” (tradução de Boris Schnaiderman),

“Um leitor” e “O homem” (traduções minhas). Sabedora do costume de se considerar os textos

autobiográficos como a tradução da verdade, usei esses três contos de natureza ficcional (sem

rótulos autobiográficos) como pilares que sustentam a argumentação teórica acerca da fabulação

no âmbito criativo. Eles também compõem uma espécide de resumo das temáticas mais

recorrentes nas obras de Górki, principalmente o apreço pelo conhecimento e a fé nos homens.

Outros trechos de obras de Górki também serão utilizados tanto como exemplificação

como ratificação do pensamento de que seus textos têm uma tendência autobiográfica. Isso é um

cuidado para que os leitores não fiquem restritos apenas a uma obra, furtando-se ao conhecimento

mais largo de grandes produções do autor. Ao tomar essa iniciativa, tive o intuito de apresentar os

“fatos reais” da ficção gorkiana e de proporcionar a todos aqueles que tiverem contato com este

trabalho uma grande viagem pela vida. Portanto, as narrativas Infância, Ganhando meu pão e

Minhas universidades serão apresentadas como representações construídas com imagens

advindas da ficção, dado que esta tese não objetiva encaixar a trilogia em terminologias e nem

provar que estamos ou não diante de uma “legítima” autobiografia.

Incorporado ao texto, há um pequeno acervo fotográfico de pessoas reais com quem Górki

conviveu e lugares onde viveu. Essa referência visual de fatos da vida e de pessoas de carne e

osso talvez nos ajude a pensar melhor nas diversas opções de “autopesquisa” de que Górki

dispunha para reinventar as suas memórias Nos anexos, estão relacionadas algumas reportagens

sobre as viagens que Górki fez pelo mundo.

Por fim, gostaria de dizer que a proposta desta tese é trabalhar uma hipótese que una os

três livros e que torne plausível uma problematização do autobiográfico, percorrendo o universo

3 Atualmente, os autores russos Pável Bassínski e Dmítri Bikov são os principais estudiosos de Górki. Os estudos desses autores são o que há de mais atual sobre a obra gorkiana.

12

de Górki, que oscila entre as tênues fronteiras da realidade histórica russa e a constelação de

mundos ficcionais tecida pelo curso autobiográfico de sua trilogia.

13

Ilustração 1: Aleksiei Maksímovitch Piechkóv (Maksim Górki), 1888

14

PRINCIPAIS DADOS DA VIDA E DA OBRA DE MAKSIM GÓRKI 4

1868 - (16) 28 de março - Em Níjni-Nóvgorod, no seio da família do marceneiro Maksim S.

Piechkóv e Varvára Vassílievna, membro da família Kachírin, nasce o filho Aleksiei.

1871 - Primavera - Os Piechkóv mudam-se para a cidade de Ástrakhan.

- 29 de julho - Em Ástrakhan, de cólera, morre Maksim S. Piechkóv5.

1873 - 1878 - Aleksiei Piechkóv vive em Níjni-Nóvgorod, no seio da família de seu avô materno,

Vassíli B. Kachírin, proprietário de uma tinturaria, que lhe ensina a ler e a escrever através dos

livros de salmos. Simultaneamente, Aliocha6 estuda em uma escola do subúrbio da cidade.

1879 - 5 de agosto - Morre a mãe de Górki, Varvára.

1879 - 1884 - Seu avô o expulsa de casa, mandando-o ganhar o seu próprio pão. Trabalha como

criado na casa de parentes, lavador de pratos num navio a vapor e como ajudante de pintor de

ícones.

1884 - Deixa Níjni-Nóvgorod e vai para Kazan. Tenta, em vão, entrar para a universidade local.

Trabalha no cais do porto e frequenta as reuniões de jovens revolucionários.

1885 - 1886 - Trabalha na padaria pertencente à V. Semiônova.

1887 - Trabalha na padaria pertencente à A. Dierênkova.

- 16 de fevereiro - Morre sua avó, Akulina.

-1º de maio – Morre seu avô, Vassíli.

-12 de dezembro - Aleksiei (Górki) tenta o suicídio7.

1888 - Acompanhado do revolucionário populista8 M. A. Romas, vai para uma aldeia nos

arredores de Kazan com o propósito de se dedicar à propaganda revolucionária. Depois de um

incêndio criminoso que deu fim a pertences dos camponeses locais, se dirige para o Mar Cáspio e

trabalha como pescador.

4 Dados biográficos retirados do livro BASSÍNSKI, Pável. Górki. Mif i biográfia. São Petersburgo. Vita Nova, 2008. 5 Pai de Aleksiei Maksímovitch Piechkóv (Górki). 6 Aliocha, Leksiei, Lionka entre outros, são como apelidos do nome russo Aleksiei. Em russo, é comum usarmos os diminutivos dos nomes próprios para dar um tom carinhoso ao tratamento. 7 A tentativa de suicídio foi feita através de um disparo de revólver contra o peito. O tiro não foi fatal, mas trouxe problemas respiratórios crônicos. 8 Populista é a tradução da palavra Naródnik, intelectuais militantes que tinham a missão de difundir os ideais socialistas, principalmente entre o campesinato.

15

1889 - Trabalha como pesador9 na estação ferroviária de Krutáia. Decide organizar uma colônia

de agricultores e escreve uma carta para Liev Tolstói a esse respeito. Ao levar a carta, não

consegue se encontrar com Tolstói em Iásnaia Poliana e nem em Moscou. Sem sorte, volta para

Níjni-Nóvgorod.

Fim de 1889 / começo de 1890 - Em Níjni-Nóvgorod conhece N. G. Korolenko, que faz um cruel

parecer acerca da obra Canção do velho carvalho.

1890 - Trabalha como secretário no escritório de advocacia de A. I. Lânin. Durante as aulas de

filosofia, Piechkóv conhece o estudante de química N. Vassíliev.

1891 - 29 de abril - Deixa Níjni-Nóvgorod “a pé”10 e viaja pela Rússia. Percorre Povóljie, o Don,

a Ucrânia, a Crimeia e o Cáucaso.

- Novembro - Chega em Tbilísi e trabalha como ferroviário. Conhece A. Kaliújnin, que o

aconselha a começar a escrever.

1892 - 12 de setembro - No jornal O Cáucaso, publica o conto “Makar Tchudrá”, sob o

pseudônimo Górki, o amargo11.

- outubro. Volta a Níjni-Nóvgorod.

1893 - Publica outros contos nos jornais Volgar e Correio do Volga. Discute estudos literários

com Korolenko.

1894 - agosto - Aconselhado por Korolenko, escreve o conto “Tchelkach” para a revista Riqueza

Russa.

1895 - Ainda seguindo os conselhos de Korolenko, muda-se para a cidade de Samara e torna-se

jornalista. Para a imprensa, escreve artigos e ensaios sob o pseudônimo Iegudiil Khlamida.

- junho - publica na revista Riqueza Russa o conto “Tchelkach”.

Inicia-se a fama de Maksim Górki.

1896 - 30 de agosto - Casa-se com Ekaterina Pávlovna Vóljina.

- outubro - contrai tuberculose.

1897 - Trabalha para as revistas Pensamento Russo, Nova Palavra e O Mensageiro do Norte.

- 27 de julho - Nasce seu primogênito, Maksim.

9 Era um pesador aquele que tinha como profissão verificar o peso das bagagens dos passageiros dos trens em curso. 10 Essa peregrinação “a pé” de Górki é bem famosa e se refere à fome russa de 1891-92, que provocou o êxodo de uma massa de indigentes para o sul do país. Reza a história que Górki teria se juntado a essa massa e caminhado por dois anos pelo sul da Rússia, fato que evidencia o seu alto grau de conhecimento de todas as esferas que compunham a sociedade russa da época. 11 Essa data é de suma importância, pois, pela primeira vez, Aleksiei Maksímovitch Piechkóv assina uma obra com o pseudônimo Górki (o amargo).

16

- outubro - Começa a trabalhar no romance Fomá Gordêiev.

1898 - março / abril - É publicado o bem sucedido livro em dois tomos Ensaios e Contos, pela

editora de S. Dorovátovski e A. Tcharúchnikov.

- no verão - Górki envia Ensaios e Contos a A. Tchékhov, com quem mantinha troca de

correspondências.

1899 - Fomá Gordêiev é publicado na revista A Vida.

- março - abril - Morando na Crimeia, Górki se encontra com Tchékhov.

- outubro - Conhece I. Répin e N. Mikhailóvski. Apresenta-se no sarau literário musical,

lendo O canto do falcão com tremendo sucesso.

- dezembro - Ingressa no círculo Sredá, organizado por N. Têliechov.

1900 - Na editora O Conhecimento, começa a publicação da coletânea de sua obra.

- 11 de março - Encontra-se com Tolstói.

- 12 de março - Conhece o escritor Leonid Andrêiev

- maio - junho - Viaja de trem para o Cáucaso com Tchékhov, V. Bássentsov, A. Aleksin e

L. Srêdin.

1901 - Torna-se diretor da editora O Conhecimento.

- 4 de março - Participa de uma manifestação na praça da Catedral de Kazan, em São

Petersburgo. Juntamente com outros literatos e figura públicas, assina um protesto contra a

violência durante manifestações.

- noite do dia 17 de abril - É detido para dar esclarecimentos a respeito da atividade

revolucionária. Tolstói intercede junto à polícia.

- 17 de maio - É solto pela polícia.

- 26 de maio - Nasce sua filha, Kátia.

- 8 de junho - juntamente com a publicação de “Canção do Albatroz”, ocorre o fechamento

da revista A vida.

- 25 de setembro -Termina de escrever a peça Pequenos Burgueses. Nemiróvitch-

Dântchenko12 chega a Níjni-Nóvgorod para se familiarizar com o texto da peça.

- 12 de novembro - Górki chega a Ialta para morar na casa de Tchékhov.

- novembro - dezembro - Encontra-se com Tolstói em Gaspr.

12 Vladímir Nemiróvitch-Dântchenko. Ator e diretor de teatro. Contemporâneo de Konstantin Stanislávski e um dos fundadores do Teatro de Arte de Moscou – TAM.

17

1902 - 25 de fevereiro - É eleito membro honorário da Academia de Ciências e Língua Russa.

- 5 de março - Num informe sobre as escolhas de Górki e sua condição honorária, o tsar

Nikolai II escreve um artigo intitulado “Mais do que o original”.

- 10 de março - O boletim governamental anunciou o cancelamento da nomeação de Górki

ao título de membro honorário da Academia.

- 26 de março - No Teatro de Arte de Moscou (TAM), estreia a peça Pequenos Burgueses.

- 6 de outubro - Encontra-se com Tolstói em Iásnaia Poliana.

- 18 de dezembro - no TAM, estreia, com grande sucesso, a peça No fundo13.

1903 / 10 de janeiro - No teatro Kleines, em Berlim, estreia a peça No fundo.

1904 - Trabalha no texto da peça Os veranistas e vive em Níjni-Nóvgorod.

- 10 de novembro - No teatro V. Komissárjervski ocorre a première de Os veranistas.

1905 - Górki se envolve ativamente no movimento revolucionário, fornecendo dinheiro aos

jornais bolcheviques. Entra para o Partido Social-Democrata Trabalhista Russo (RSDRP)14.

- 9 de janeiro - Presencia uma matança na manifestação dos trabalhadores. Na noite do

massacre, redige o projeto “Apelo a todos os cidadãos russos e à opinião pública dos estados

europeus”, que incentiva a luta contra a autocracia.

- 11 de janeiro - É preso em Riga sob a acusação de ligações com o Ministério Público do

Estado.

- 12 de janeiro - É levado a São Petersburgo e encarcerado na fortaleza de Pedro e Paulo. A

opinião pública russa e alemã organiza protestos em sua defesa. Aos protestos se unem países

como Áustria, Itália, Inglaterra, Dinamarca, entre outros.

- 14 de fevereiro - É libertado sob fiança de dez mil rublos.

- 12 de outubro - No teatro V. Komissarjervski, estreia a peça Filhos do sol.

- 24 de outubro - Estreia a peça Filhos do sol, no TAM.

- 27 de novembro - É apresentado a V. I. Lênin, em São Petersburgo, na reunião do Partido

Social Democrata Trabalhista Russo (RSDRP).

1906 - É exilado e, na companhia de Maria Andrêieva, viaja para a América15. Começa a escrever

o romance A mãe.

13 Peça também conhecida pelo título Ralé. 14Em russo: РСДРП- Российская Социал Демократическая Рабочая Партия. 15 Mesmo depois de ser bem recebido por Mark Twain, Górki foi expulso da América porque não era formalmente casado com sua segunda esposa, Maria Andrêieva. No jornal The New York Times, de 12 de abril de 1906, foi

18

- 16 de agosto - Morre Kátia, sua filha.

- 20 de outubro - Visita a Ilha de Cápri16 (Itália) onde permanece até 1913.

1907 - 1º de abril - No Teatro Moderno de São Petersburgo, estreia a peça Os inimigos.

publicada uma reportagem sobre a recepção a Górki em terras norte-americanas. Segundo a publicação, Twain iniciou seu discurso com as palavras “(...) Se nós pudermos contruir uma república russa para dar ao povo perseguido pelo domínio tsarista a mesma medida de liberdade que nós admiramos, vamos em frente e façamos”. “(...) If we can build a Russian republic to give to the persecuted people of Czar´s domain the same measure of freedom that we enjoy, let us go ahead and do it.” Fonte: www.nytimes.com/ref/membercenter/nytarchive.html. Acessado em janeiro de 2010. 16 Em Cápri, Maksim Górki produz boa parte de suas mais substanciais obras, como o romance A mãe, Os últimos, Gente Estranha, o primeiro volume de sua trilogia autobiográfica, Infância, de 1912 e os Contos sobre a Itália. Esses contos merecem destaque por, mesmo não sendo considerado um exímio contista, Górki ter escrito os contos italianos que são, segundo o saber tácito, textos supostamente portadores de uma verdade documental que trabalham ficcionalmente o material histórico, tornando a verdade em uma outra verdade: a verdade do fingimento. Nesta época, a literatura, tanto na Rússia como no Ocidente, gravitavam no centro da cultura de dois países de importância social ímpar. Lendo os contos italianos, fazemos uma viagem por lugares pitorescos da Itália. De norte a sul nos deparamos com figuras típicas e representativas que Górki tanto admirava. Mas o que realmente aproxima a Rússia da Itália numa situação de exílio? Que motivos o levaram a escrever sobre a Itália? No que tange à pesquisa histórica, o escritor havia sido escorraçado dos Estados Unidos da América por não ser formalmente casado. Em muito pouco tempo, viaja para a Itália e se fixa em Cápri. A princípio, sem ter intencionalmente escolhido este destino, embeveceu-se pelas belezas locais, porém, acredita-se que não tenha sido apenas pelos dotes naturais de uma das três ilhas da baía de Nápoles que ele tenha decidido ficar. Górki tinha uma ampla formação autodidata e sabia exatamente quais lugares eram profícuos e cativantes aos olhos de imperadores, políticos, artistas e poetas. Sem se deixar iludir pela referência estereotipada da Itália romântica, da boa música, da cozinha, do Renascimento, de Dante e Boccaccio; enfim, de um país de incessante produção artística, Górki, com a alma cheia de chão, enxergou as imagens caleidoscópicas formavam a Itália em pleno exercício de unificação. Naquele solo, ele funda a “Escola para revolucionários” que tinha uma conotação mais religiosa do movimento e que depois foi muito criticada por Lênin, mestre político do autor. Na Itália, Górki era um forasteiro que tinha um olhar de fora para dentro. Através dos mais de vinte contos sobre a Itália, é possível nos cativarmos com personagens como o velho navegante Giovanni Tuba, a sincera Emília Bracco e o honrado Carlone Gagliardi. Em páginas sucintas, eles nos apresentam regiões como a Calábria, Gênova, Parma, Sardenha, Roma e Nápoles, cidades que exalam cheiros e sabores, além de projetar situações imagéticas da cultura italiana no texto gorkiano. Para ele, segundo Boris Schnaiderman, “tudo é visto com aparente naturalidade, tudo parece mais simples, mais direto e sua grande verdade vem do mundo externo” (GÓRKI, 2007a, p. 295). Em Cápri, já engajado politicamente, Górki não teorizou o realismo socialista e, de uma forma simpática, ritmou as histórias de forma solta, caracterizando um leque múltiplo e variado na abordagem de outras vivências e estados de espírito. Na revista Capri Review, vemos um pequeno trecho da relação íntima entre o escritor e as terras italianas. Vejamos: “Nos primeiros meses, Górki mergulhou imediatamente em uma intensa atividade literária, escrevendo, em poucas semanas, sua obra-prima, A mãe. (...) Apenas alguns meses mais tarde, começou a explorar a ilha, a conhecer os habitantes a que quem ele olhava com grande bondade, especialmente os mais humildes, que lhe lembravam a vida de muitos de seus jovens companheiros. Dentro de algumas semanas, começou a contatar seus compatriotas. Como um poderoso ímã para atrair para Cápri os exilados, artistas ou simplesmente os abandonados que se aglomeravam em sua casa que oferecia uma generosa hospitalidade. (...) Na calmaria de Cápri, Górki trabalhou incansavelmente na criação de obras imortais como A mãe, Contos sobre a Itália, uma homenagem ao país e sua alma gentil e dramas de grande força como No fundo e Os Veranistas”. CITAÇÃO ORIGINAL: “Nei primi mesi, Górkij si tuffò subito in un’intensa attività letteraria, scrivendo in poche settimane il suo capolavoro, La madre. (...) Solo dopo alcuni mesi, Górki cominciò ad esplorare l’isola e a frequentare gli abitanti, verso i quali ebbe subito grande benevolenza, specialmente quelli più umili, che gli ricordavano i tanti compagni di vita della sua cruda giovinezza. Nel giro di poche settimane i suoi connazionali cominciarono ad assediarlo. Come una potente calamita attraeva a Capri fuorusciti, artisti, o semplici derelitti che si affollavano ad ogni ora alla sua casa e ai quali offriva generosa ospitalità.(...) Nella calma di Capri Górki lavorò incessantemente creando opere immortali come La madre, Fiabe italiane, un omaggio all’Italia e alla sua anima gentile alla quale resterà sempre legatissimo e drammi di grande forza come I bassifondi o I villeggianti(...). Fonte: http://www.capri.net/caprireview/article.php. Acessado em 30/01/2010.

19

- abril - No congresso do partido comunista russo, em Londres, estreita amizade com Lênin.

Na revista O pensamento russo é publicado o artigo “O fim de Górki”, de D. V. Filossofânov.

- junho - É publicada a segunda edição do romance A Mãe.

1908 - abril - Ocorre um encontro entre literatos e membros do partido com A. Lunatchárski17.

Ao chegar, Lênin manifesta a sua discordância com a linha filosófica e religiosa em que a reunião

se baseou.

1909 - São publicadas as obras Os veranistas e “Cidadezinha Okurov” e o artigo “Destruição da

personalidade”.

- agosto - novembro - Leciona literatura russa na escola do partido, em Cápri.

1910 - São publicados em primeira edição, as obras Gente estranha e Vassa Jeleznova.

- abril - Acontece a première da peça Varvára, no teatro K. Nezlóbin, em Moscou.

- 24 de agosto - Estreia a peça Os últimos, no teatro M. Reinhart, em Berlim.

- 7 de novembro - Recebe a notícia da morte de Tolstói.

1911 - 8 de fevereiro - Estreia a peça Vassa Jeleznova, no teatro K. Nezlóbin.

1912 - São publicados Contos sobre a Itália, Contos russos e Pela Rússia. É inaugurado o

periódico O Contemporâneo.

1913 - É publicada a novela O mestre. Trabalha no texto da peça Moeda falsa e no romance

Infância.

1914 - Vive na Finlândia, São Petersburgo, Moscou e trabalha no romance Ganhando meu pão.

- março - Muda-se para um apartamento na Avenida Kronverski, em São Petersburgo, antes

de ser novamente exilado até 1921.

- 19 de julho - A Alemanha declara guerra à Rússia.

- 28 de setembro - A pedido de Ivan Búnin18, assina o apelo “De escritores, pintores e

artistas” como protesto contra as atrocidades alemãs. Entretanto, condena a violência de modo

geral e assume uma postura pacifista.

17 Anatóli V. Lunatchárski (1873-1933). Crítico literário e membro da direção do partido bolchevique. Em seu livro Sobre literatura e arte dedica um artigo a Górki e é também o autor do discurso feito em prol de uma educação sob a égide do socialismo, retirado do site Livro da semana (http://www.pco.org.br/conoticias/ler_materia.php), acessado em 29/01/2010. “A revolução, a revolução socialista, é uma revolução da instrução, tanto da escola como fora dela. Esta revolução é a revolução da instrução do homem, uma revolução do grande amor não só dos que atualmente estão mutilados, e por isso incultos, mas pelos nossos filhos e netos que amamos porque vemos neles o ser humano que nós próprios gostaríamos de ser, mas infelizmente não podemos”. 18 Ivan Aleksêievitch Búnin foi o primeiro escritor russo a ganhar o prêmio Nobel de literatura, em 1933. Mantinha sólida amizade com Górki, visitando-o em Cápri de forma sazonal. Em 1922, escreve a sua obra O Cavalheiro de

20

1915 - Inaugura a editora Párus. Edita a revista Létopis, onde escreve o artigo autocrítico “Duas

almas” que levou até pessoas próximas a acusá-lo de odiar a Rússia como, por exemplo, Leonid

Andrêiev.

1916 - Trabalha na revista Létopis e na editora Párus19.

1917 - 27 de fevereiro - A monarquia é derrubada.

- 21 de abril - No jornal Vida Nova, começam a ser publicados os artigos do ciclo

“Pensamentos inoportunos”. Neste dia, no artigo “Com ícones contra as armas de fogo, com

palavras contra o capital”, Górki critica a posição política da revista.

- 25 de outubro - A Revolução de Outubro se deflagra. No jornal Vida Nova, Górki avalia

negativamente a vitória da revolução.

1918 - Neste ano desenvolve um intenso trabalho cultural e social.

- 4 de setembro - Fecha contrato com os bolcheviques para a fundação da editora

Literatura Universal.

- 28 de dezembro - É escolhido pelo comitê executivo de Petrogrado20 como representante

dos trabalhadores.

1919 - Trabalha ativamente na editora Literatura Universal.

- 1º de fevereiro - No Pequeno Teatro de Moscou, estreia a peça O Velho.

- março - Tem seu aniversário de cinquenta anos amplamente comemorado.

- 19 de julho - Apresenta Reminiscências sobre Tolstói para um auditório lotado.

- 31 de julho - Em carta para Górki, Lênin insiste na saída dele de Petrogrado.

1920 - Corresponde-se com Lênin e tenta impedir prisões e execuções de membros da

intelligentsia21. Escreve artigos sobre cultura.

São Francisco. Desencantado com a violência bolchevique, muda-se para a França onde permanece até a morte, em 1953. 19 Por uma questão de homonímia, a palavra “párus” é difícil de ser traduzida, pois em português seu significado (vela náutica) causa ambiguidade. A fim de evitar uma confusão, o nome da revista foi apenas transliterado. 20 Atual São Petersburgo. 21 Intelligentsia. Definição de Isaiah Berlin: “A palavra intelligentsia, como o conceito que designa, é de origem russa e foi inventada em certo momento entre a década de 1860 e 1870. Não significava simplesmente o conjunto de pessoas instruídas. E também não, sem dúvida, simplesmente os intelectuais nessa qualidade. (…) Mas no país em que a intelligentsia nasceu, o seu fundamento foi, a traço grosso, a ideia de uma oposição racional e permanente a um status quo considerado a todo o momento em vias de ossificação, tido como um obstáculo barrando o caminho do pensamento e do progresso humanos. O simples protesto, justificado ou injustificado, não torna automaticamente alguém membro da intelligentsia. Para tanto, é necessário que se verifique uma combinação da crença na razão e no progresso juntamente com uma profunda preocupação moral pela sociedade. (…) E assim era a intelligentsia original, sendo o traço da militância parte

21

- 13 de janeiro - É criada por Górki, S. Oldenburg e A. Bádaev uma comissão para a

melhoria de condições de vida dos professores.

1921 - 9 de agosto - Em carta para Górki, Lênin insiste na ida dele para o exterior.

- 16 de outubro - deixa a cidade de Helsinque.

1921-1924 -Vive na Europa e passa por problemas com a imigração. Fixa moradia em Sorrento,

Itália.

1924 - 21 de janeiro - Morre Lênin.

- 23 de janeiro - Górki envia uma coroa de flores para o funeral de Lênin com a inscrição

“Adeus amigo”.

1925 - Conclui a obra Os Artamônov. Começa a escrever A vida de Klim Sanguim.

1928 - Visita, pela primeira vez, a União Soviética, em comemoração aos seus sessenta anos.

1933 - 9 de maio - Volta para a União Soviética.

- de 6 a 25 de novembro - estreia o espetáculo Dostigaév e outros, no Grande Teatro

Dramático, em Leningrado22. E no teatro E. Vakhtángov, em Moscou.

1934 - Ainda trabalha na obra A vida de Klim Sanguim. Organiza o I Congresso de Escritores

Soviéticos, que o tem como principal palestrante.

- 11 de maio - Morre seu filho, Maksim.

- 25 de julho - Em sua casa, encontra-se com G. Wells

- 17 de agosto - Abre e preside o I Congresso de Escritores Soviéticos.

1935 - junho - julho - Encontra-se com Romain Roland.

- agosto - Viaja pelo Volga.

- de 10 de outubro - estreia a peça Os Inimigos.

1936 - 27 de maio - Retorna a Moscou. Adoece de pneumonia.

- 6 de junho - Surge na imprensa o primeiro boletim médico sobre a saúde de Górki.

Começam a ser publicados em jornais artigos que falavam sobre sua precária condição de saúde.

- 8 de junho - Górki piora e é assistido por Stálin, Mólotov e Vorochílov.

- 18 de junho - Às 11 horas e 29 minutos da manhã, Górki falece.

- 20 de junho - Sua cremação acontece em Moscou e, a mando de Stálin, a urna com suas

cinzas é colocada na necrópole das muralhas do Kremlin, na Praça Vermelha.

integrante da sua essência – é engendrada por regimes efetivamente opressivos”. BERLIN, Isaiah. O poder das ideias. Lisboa: Relógio d’água, 2006, p. 147-149. 22 Denominação da cidade de São Petersburgo entre 1924 e 1991.

22

Ilustração 2: Aleksiei Maksímovitch Piechkóv (Maksim Górki), 1936

23

CAPÍTULO 1

1.1 TEMPOS IDOS, TEMPOS VIVIDOS

Eu sentia que a vida assim podia desviar-me do caminho que eu seguia. Já começara a pensar que qualquer outro lugar na vida, que não a literatura, não servia para mim. (GÓRKI)

PARA Z. N. HÍPPIUS

Quem já nasceu nos mornos anos não lembra seu caminho mesmo. Nós, filhos dos tempos insanos da Rússia, nada esqueceremos. Época ríspida! O que encerras? Insânias ou sinais de alento? Os dias livres e os de guerra reluzem, nas faces, sangrentos O toque a rebate, cerrando nossos lábios, gerou silêncio. E um vazio se impõe, nefando, nos corações outrora intensos. Pois, corvos, sobre nosso leito de morte, esvoaçam os gritos. Senhor, ó Senhor, que os eleitos, Te vejam triunfar bendito. Aleksandr Blok23

A história que me proponho a contar aqui se remete ao período abarcado pela trilogia

autobiográfica de Maksim Górki. Para que isso aconteça, devemos começar pelo contexto dessa

obra literária, cujos momentos mais cruciais se ligam à Revolução Russa, fato que fermentou e

fomentou o pensamento político-social da Rússia e que se disseminou numa grande parecela do

mundo. Embora não seja minha ambição dissertar em demasia acerca da época revolucionária, se

faz necessário, entretanto, um arrazoado a respeito do tema para que se localize a literatura de

Górki no tempo e no espaço.

23 Aleksandr Blok (1880-1921), poeta simbolista russo.

24

Exatamente em fevereiro de 1913, na cidade de São Petersburgo, foram comemorados os

trezentos anos da dinastia Românov. Por toda parte, se dizia que o poder absoluto seria ostentado

como nunca se havia visto. Como era uma demonstração de pompa e força, tudo foi feito de

forma que o povo pudesse participar integralmente dessa celebração. Fábricas foram fechadas,

trabalhadores liberados, aos pobres, deram de comer e aos presos, indultos. Tudo estava em

ordem entre o eixo São Petersburgo-Moscou para a comemoração do tricentenário. Porém, diante

dessa aparente calmaria, havia uma preocupação do tsar Nikolai II em reinventar o passado e

(...) reencontrar o épico do tsar popular de modo a revestir a monarquia de uma legitimidade mítico-histórica e de uma imagem que permanecia eterna numa época de inquietação, na qual seu direito de governar era desafiado pela democracia emergente na Rússia. Os Romanov estavam se remetendo ao passado com a esperança de que isso salvasse o futuro24.

Na Rússia não havia mais aquela crença cega de que Deus havia concedido o poder

supremo apenas a uns e que, por isso, tudo o que deveria ser feito era confiar na inspiração

divina. Entretanto, para Nikolai II, os seus funcionários deveriam ser fracos e divididos para que

não formassem bancadas que o obrigassem a tomar atitudes urgentes com as quais ele não

concordava. Com esse pensamento voltado unicamente para a manutenção de regalias, o tsar não

ofereceu ao país uma liderança eficaz durante o fim do regime, que se aproximava a passos

largos. Ele próprio passou a ser o principal problema e o alvo dos russos.

O caos administrativo se instaurava e a Rússia ficou à mercê de figuras como G. Raspútin,

o controverso místico curandeiro alçado ao poder, principalmente pela fé da tsarina Aleksandra.

Nikolai II assumiu a postura indiferente aos problemas pessoais dizendo que era “melhor um

Raspútin do que dez surtos de histeria todos os dias” (FIGES, 1999, p.169), referindo-se ao

desespero da esposa ao ver o filho hemofílico em crise. Raspútin, mesmo sendo um farsante, um

falso mensageiro de Deus, personificou a ineficiência da monarquia em controlar a burocracia

que estava disposta a angariar adeptos provedores de valores próprios e que dominavam todo o

serviço público. Toda essa burocracia não resultou em uma força política coesa e ainda tornou o

Estado incapaz de conter os movimentos nacionalistas que se disseminavam dentro e fora da

Rússia.

24 FIGES, Orlando. A tragédia de um povo. A Revolução Russa 1891-1924. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 35.

25

Devido à opressão sofrida por séculos, o povo tinha sede de liberdade. E foi aí que a

literatura revindicou o seu espaço. De forma geral, os trabalhadores não eram aculturados e

também gostavam de ler histórias e passaram a se indentificar com aquelas que continham temas

sobre a luta popular pela libertação de suas terras, não sendo mais importante se os feitos

heróicos eram diferentes do cotidiano operário. Rapidamente, o povo russo desenvolveu a

habilidade de reinterpretar e transportar essas histórias para o contexto no qual vivia. Era a boa e

velha tradição russa de ler nas entrelinhas que tornava as histórias tão arrebatadoras. A ideia de

progresso fez com que o povo se identificasse “com os destemidos defensores da emancipação

humana de diferentes partes do planeta, [convertendo-se] à causa da revolução” (FIGES, 1999,

p.169).

Essa atração pela consciência do papel do povo no curso do progresso credita-se

principalmente a Karl Marx, que já tinha a sua obra O Capital sendo distribuída em panfletos na

Rússia desde 1872. Para o povo, a filosofia marxista teve o dom de explicar didaticamente ao

proletariado o porquê de seu constante empobrecimento.

O marxismo chegou à Rússia pela Europa Ocidental, onde ele se desenvolveu como a teoria do comunismo científico, no final dos anos quarenta do século XIX. Em 1872, foi publicada uma tradução russa do livro O Capital, de Marx. A Rússia, então, foi um digno aprendiz dessa doutrina revolucionária que marxismo imprimiu25.

A filosofia marxista foi uma das molas propulsoras de toda a ideologia de Lênin, líder da

Revolução Russa e o “homem com o maior impacto individual na história do século XX”26. No

terreno literário, Marx é citado por diversas vezes por Górki no segundo livro de sua trilogia,

Ganhando meu pão, fato que confirma o ativismo do escritor. Górki não submeteu suas obras à

batuta da estética literária marxista, mas a ela certamente se lançou toda vez que faz uso do

protesto social. Sendo assim, o que fez as ideias de Marx serem tão bem aceitas na Rússia foi a

sua ênfase metodológica na economia e o ponto de vista da totalidade. Concordando com as

palavras de Lukács,

25 KULECHOV, V. Istória russkoi litieraturi X-XX veka. Moscou: Russki Iazik, 1989, p. 546. CITAÇÃO ORIGINAL: Марксизм пришёл в россию из Западной Европы, где он сложился в конце сороковых годов XIX века как теория <научного коммунизма>. В 1872 году вышел в свет русский перевод Капитала макркса. Россия оказалась достойной восприемницей этого революционного учения выстрадала марксизм. 26 MATOS, Carlos Eduardo. A hora e a vez do sonho. Revista História Viva. 90 anos da Revolução Russa. A utopia é vermelha, n. 18. São Paulo: Duetto, 2007, p. 3. Frase citada pelo autor é de Eric Hobsbawm.

26

a ciência proletária é revolucionária não somente pelo fato de contrapor à sociedade burguesa conteúdos revolucionários, mas, em primeiro lugar, devido à essência revolucionária do seu método. (...) O domínio da categoria da totalidade é o portador do sentido revolucionário na ciência (...). Com Marx a dialética hegeliana tornou-se uma álgebra da revolução 27.

A totalidade, para os bolcheviques, só seria acessível se houvesse uma igualdade de

classes cujo interesse representasse a universalidade da classe operária, como observa Luiz Costa

Lima.

No marxismo, a mímesis hegeliana adquire ainda maior força do que a sistemática originária. Seus bons intérpretes estão atentos em não confundi-la com a prática da imitação, agora entendida no interior do mero quadro realista. A obra não reproduz o mundo, mas sim o submete a uma depuração (dialética?), através da qual a forma da obra desvela o que já estava na sociedade, dentro da qual fora gerada. Depurando-a de acidentes e contingências, a forma desvenda a estrutura social. Entre a sociedade e a obra, entre a obra e o crítico, tudo é uma questão de reconhecimento. O que, em última análise, legitima o crítico, enquanto reconhecedor do que está-aí. A mímesis substancialista é, em suma, um meio de reconhecimento, mediatizado pelo mestre dos conceitos28.

Então, o que tornou a classe trabalhadora russa do fim do século XIX e início do XX em

uma classe revolucionária era o fato de ela ter sido a produtora da parte mais substancial da

riqueza social e ao mesmo tempo ser privada deste dividendo. Na Rússia, a prórpia organização

coletiva da produção industrial agrupou os operários na forma de verdadeiros exércitos de

produção, o que facilitou a sua conversão em combatentes revolucionários.

Ao longo das décadas, o caráter engajado também se reinventou através da literatura.

Com a estética marxista29 não foi diferente. Essa nova tendência pode não ter sido decisiva para a

concretização do estilo de Górki, embora certamente tenha influenciado o seu comportamento

autobiográfico. Para esse fim, o paradigma literário da época cumpre seu papel de “curioso” e

permanece inalterado, mesmo que se trace uma análise comparativa entre a representação

canônica e a proposta por Marx, pois

a literatura russa [estava] sempre pronta para cumprir essa tarefa específica [de participação histórica] com aplicação e tenacidade, como algo sagrado, provavelmente também porque em sua terra natal, durante um longo período, se fez as vezes da

27 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 105. 28 COSTA LIMA. Luiz. Vida e mímesis. São Paulo: Editora 34, p. 210.

27

filosofia, sociologia e muitas outras ciências sociais. Obviamente, essa tarefa não é imutável. Com tempo, foram adquiridas novas nuances, mas sua essência permanece imutável e determina o caráter da união entre o intelecto e a literatura30.

Embora a estética marxista não seja o objetivo deste trabalho, vejo-me com o

compromisso de mencioná-la, já que ela exerceu um forte impacto na Rússia revolucionária.

Com o tempo, Marx superou as concepções estéticas de Hegel e Feuerbach, criando uma

perspectiva estética própria em que a arte era entendida não como uma criação espiritual, ou

como uma reflexão sobre aquilo que é belo e que já se encontra in natura no mundo material,

mas, sim, como uma forma de objetivação humana como um produto de trabalho, uma vez que

ele considerava o trabalho como o principal elo de ligação entre o homem e o mundo. A estética

de Marx não é uma criação de forma artística individual, mas um sistema filosófico próprio de

concepção dialética do mundo, onde o artista é tido como um ser social delimitado pelas

circunstâncias históricas.

Diante desta elementar interpretação, me permito discordar do habitual enquadramento da

literatura de Górki como representante do realismo socialista. Minha aposta é que ela é mais do

que isso, que há nela outros matizes que não diminuem as interpretações marxistas, mas que

apontam para um complexo de aspectos que parecem escapar à perspectiva histórico-dialética

fundada pelo marxismo. Em se tratando de uma tese que problematiza o autobiográfico, a

primeira pergunta a ser feita é sobre a possibilidade de existir criação artística totalmente vazia de

subjetividade. Penso que a situação túrbida que a crítica da arte marxista causou na Rússia se

deveu aos dilemas que a produção artística sempre enfrentava, ora com o individualismo

romântico ora com o realismo socialista. Durante o realismo gorkiano, a arte estava submetida às

requisições partidárias provenientes de uma ambiência revolucionária. A estética marxista,

entretanto, concedia uma compreensão ampla e dedicada à preocupação para com a dignidade

humana, de busca da essência e dos fenômenos presentes numa obra de arte e que, ao refletir seu

tempo, se tornava patrimônio de todos. Seu princípio se apresenta como um esforço concentrado

na compreensão do homem e daquilo que ele produz à luz das questões pragmáticas da história.

30 ZALIGUIN, Serguéi. El intelecto y la literatura. In: Literatura Soviética. Narrativa, poesia e crítica literária. n 4. Madri: Librería Rubiños, 1987, p. 132. CITAÇÃO ORIGINAL: “La literatura rusa siempre se presto a cumplir esta tarea com particular aplicación y tenacidad, como uma cosa sagrada, seguramente también porque em su patria durante um largo período hacía, además, las veces de filosofia, sociología y otras muchas ciencias sociales. (...) Por supuesto, esta tarea no queda inmutable, com el tiempo va adquirendo nuevos matices, pero su esencia no cambia y determina el carácter de la unión el intelecto y la literatura”.

28

O legado de Marx foi deixar uma porta aberta para que se olhasse o mundo com mais

nitidez, o homem e seu trabalho. O artista deve refletir um todo intensivo que é particularizado,

isto é, ao ser privativo, ele concentra tanto traços específicos quanto àqueles que se integraram a

ele pelas circunstâncias (história). Assim, segundo Leandro Konder, “é em nome do próprio

programa de fidelidade à realidade objetiva que somos obrigados a reconhecer a subjetividade em

toda a força de sua...objetividade” (KONDER, 2005, p. 9).

Obviamente, a formulação dos princípios, a partir dos quais uma estética marxista poderia

ser aplicada numa nova ordem política russa é bem complexa e apresenta muitos vieses, vindos

de outros pensadores e artistas nativos, que tentaram compreender todo o processo estético, como

Plekhânov, Trótski, Bukhárin, Eisenstein, Maiakóvski, Górki, por exemplo. Ao se desconfiar da

aparência dos acontecimentos e de sua possível superficialidade, os escritos de Marx sobre

estética, mesmo que espalhados, abriram seus flancos para que outros autores tivessem alcance a

um maior poder de análise, que ia desde preocupações diversas, como a própria Revolução Russa

e a política cultural, até uma reflexão sobre a relação entre arte e cultura. Ainda nos termos de

Konder,

a arte é um terreno pouco adequado para imponentes e rigorosas fortalezas teóricas, porém, os sentimentos e as sensações fortes conseguem se expressar em discursos compatíveis uns com os outros e exigem “negociações” com a teoria. Além disso, na arte, a universalidade do objeto particular (a obra de are) não pode se desenvolver fora do objeto, isto é, o conhecimento sensível obtido pela arte não comporta uma separação entre “o fenômeno” (singular) e o universal (a lei). O universal está embutido no objeto singular, ou não está em parte alguma (KONDER, 2005, p. 9).

As bases do pensamento marxista sobre a estética estão em “uma unidade conceitual

orgânica e sistemática”, ou seja, são problemas para a arte os critérios de sua permanência

enquanto valor estético, já que, de forma concomitante, não deixa de caracterizar um período

específico da história. Fica estabelecido, então, um paradoxo. Por que a motivação social deve ser

o isolante de uma criação? Segundo Marx, essa questão pode ser resolvida caso a história seja

considerada uma ciência pela qual toda obra deveria ser analisada; a história é o que fomenta e

conduz toda pesquisa criativa. Recebe também a apreciação do método dialético, que estabelece a

simultaneidade entre verdades relativas e absolutas e a não diluição das relações entre causa e

efeito.

29

Parece-me cabível entender que alguns críticos, ao tentar interpretar obras de arte, tiveram

a intenção de sair em defesa da “honestidade crítica”, se unindo a uma espécie de protocolo de

imparcialidade e busca pela verdade. A satisfação íntima de dizer a verdade implica diretamente

em fazer do crítico um paladino que sustente suas convicções sem permitir a interferência das

circunstâncias externas. Pergunto: Se tudo o que é externo deve ser mantido afastado da obra de

arte, como aceitar que produções como as de Górki sejam criações? Devemos lembrar que todo o

cunho autobiográfico do autor é cheio de remissões e lembranças de outrora que foram re-

elaboradas literariamente pela cabeça de um homem que viu um país inteiro mudar através da

força da massa, por alguém que não necessitava mais da virulência para se livrar de seus

tormentos, mas de uma atitude reconciliadora consigo mesmo. Muitos se equivocam ao analisar

obras como Infância, Ganhando meu pão e Minhas Universidades apenas via história sem que

antes fossem identificados os vínculos críticos de Górki com sua realidade local, tanto do passado

(o que é narrado) quanto do presente (o que é crítica). Esquecem que o autor se esquiva da figura

narcisista de um autobiógrafo exatamente para que o homem possa se construir como

personagem.

O mais importante que iremos absorver da abordagem marxista é o relevo que se dá ao

caráter humanista da compreensão tanto da arte quanto do artista. A integridade humana

defendida por todas as artes contém tanto o enfrentamento das dificuldades da consciência do

homem diante do real, quanto sua capacidade de moldar a realidade pela característica motriz da

história.

O que torna ainda mais complexa a questão do autobiográfico na literatura de Górki é o

fato de que a sua produção, ou seja, a elaboração dos livros da trilogia, atravessa uma turbulência

histórica que vai do final do século XIX ao início do XX. Um novo regime não se concretizou na

Rússia como o desejado, a transição do capitalismo para o socialismo se deu em um “modelo

híbrido” e a necessidade de se recuperar anos de atraso ocorreu através do fortalecimento da

capacidade produtiva conseguido através da violência “empregada na coletivização forçada” do

país. De acordo com Angelo Segrillo,

A revolução, acontecendo num país relativamente atrasado como a Rússia czarista, necessitaria da eclosão de revoluções em países mais avançados. Como após 1917 estas não ocorreram, a Rússia Bolchevique ficou isolada em seu atraso econômico e, para sobreviver, utilizou mecanismos repressivos para elevar o seu patamar de desenvolvimento” (SEGRILLO, 2000, p. 108).

30

Essa opressão não aconteceu somente nos âmbitos políticos e sociais. Os atos de

insipiência se alastraram também para o campo da arte e a ortodoxia soviética tentou direcionar a

literatura para uma arte de tendência. Mais uma vez, no que diz respeito a Górki, no período

dedicado à composição da trilogia, o realismo era forte, porém, devido à questão política, esse

estilo sofreu diversas estigmazações que variavam de acordo com quem o interpretava. Aos que

defendiam, eram empregados os rótulos de “antivanguardistas” e “stalinistas”. Não aderir ao

“moderno” era uma dissidência de toda ordem. Aqui, creio que alguns críticos possam ter visto os

realistas como conservadores do “contorcionismo idealista” de um momento histórico

(DUAYER, s/d, p. 2). Nesse limiar se encontra Górki, que vira uma peça desconexa de um

quebra-cabeça literário que se divide entre utopismo e o posicionamento partidário. Por isso que

esta tese defende que Górki não é apenas mais um escritor incompreendido, e sim um artista

capaz de preservar, em seu realismo, sua autenticidade e sua humanidade, como propunha Marx.

Contudo, é necessário esclarecer que, embora a relação política de Górki de alguma forma

tenha determinado a inscrição de sua literatura no campo da estética marxista, considero pouco

rentável para o debate o enfrentamento das questões ligadas ao chamado “realismo socialista”. As

razões para essa decisão se resumem a dois aspectos: 1º) o objetivo central desta tese é a

investigação dos laços ficcionais e históricos na perspectiva da trilogia autobiográfica de Górki; e

2º) nesse sentido, a tese quer oferecer uma outra vertente de leitura para aquele a quem uma

parte da crítica e do público identificaram como um autor de obras úteis ao sistema.

A tomada de consciência do escritor enquanto artista da época revolucionária se

desenvolveu de forma dual, entendendo que a relação entre a arte e a história contribuiu para uma

certa “obrigação” para com a construção de uma identidade nacional, se tornando uma

preocupação crônica diante da representação. Porém, segundo a teoria marxista, para que se evite

esse cansaço intelectual, devemos realmente crer na força regeneradora da literatura. Reconhecer

no hibridismo entre a arte e a história um eixo temático que diagnostica problemas sociais

significou, para Marx, o cumprimento da missão que a literatura proletária deveria ter; a de

superar o psicologismo e o subjetivismo da “literatura burguesa”, utilizando o objetivismo e o

documento. O relato ficcionalizado implicaria em uma súbita revelação de fraquezas humanas

que estariam em descompasso com o heroísmo da massa e elevaria o fingimento a um patamar

supraindividual.

31

O método tradicional de relato, com seu narrador fictício, enredo inventado, heróis individuais e conflitos estabelecidos, parecia favorecer a exposição dos problemas humanos “supratemporais”, “eternos”. Em particular, o argumento “inventado” era para ser visto como precondição de uma atitude narrativa que fugia dos conflitos sociais e políticos atuais. Para o autor revolucionário- proletário, esta forma de narrativa não poderia mais ser aceita. Ele não tinha que “expressar a sua imaginação”, mas sim informar sobre acontecimentos e construir a sua obra a partir de elementos documentais31.

Possivelmente, obras como as de Górki ficaram sugestionadas ao compromisso de

ficcionalizar objetivamente a necessidade de resgate dos vencidos. Para usarmos um conceito

benjaminiano, podemos entender que Górki se arriscou ao “patronato ideológico”32, portando-se

como um guardião intelectual da nação russa. Porém, a idealização de um país melhor se alterava

pouco a pouco e se transformava em um lugar inalcançável e talvez até utópico. Dessa maneira,

os procedimentos de trabalho adotados durante o processo criativo gorkiano visaram chamar a

atenção dos leitores da massa para uma determinada linguagem autobiográfica. Depois, o leque

de opções interpretativas se abriu, capitaneado pelos próprios leitores, que reconheceram a

expressividade imaginada, baseada no movimento não cartesiano proposto por Marx. Os heróis

criados por Górki não eram apenas “inventados”, como

não é inventado o herói do romance realista comum, como não é inventado o herói romântico, como não é inventado o herói dos classissistas. Mas cada um tem suas leis, a sua lógica situada além dos limites da vontade artística do autor mas inviolável ao arbítrio deste. Após escolher o herói e o dominante da sua representação, o autor já está ligado à lógica interna do que escolheu, a qual ele deve revelar em sua representação. A lógica da autoconsciência admite apenas certos métodos artísticos de revelação e representação. Revelar e representar o herói só é possível interrogando-o e provocando-o, mas sem fazer dele uma imagem predeterminante e conclusiva. Essa imagem concreta não abrange justamente aquilo que o autor se propõe como seu objeto33.

31 GALLAS, Helga. Teoría marxista de la literatura. Trad. Ramón Alcalde. Madri: Siglo Veintiuno de España Editores, 1971, p. 75. CITAÇÃO ORIGINAL: “El método tradicional del relato, com su narrador fictício, argumento inventado, heróes individuales y conflictos tipificados, parecia favorecer la exposición de problemas humanos “supratemporales”, “eternos”. En especial, el argumento “inventado” tenía que ser visto como la precondición de uma actitud narrativa que se sustraía a los conflitos sociales y políticos actuales. Para el autor proletario-revolucionario, esta forma de narración no podía ya ser aceptable. No tenía que “expresarse imaginariamente” sino informar sobre hechos, construir su obra a partir de elementos documentales”. 32 BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: Modernidade. Obras escolhidas de Walter Benjamin. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 132. 33 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 65.

32

Górki entendeu que tanto o autor quanto o leitor são criadores do fenômeno artístico e não

invencionistas, já que a participação deles está diretamente ligada a uma literatura que não era de

contemplção e que deveria preservar o que havia nela de mais puro: a humildade de não ser

hermética.

No romance A mãe, de 1906, por exemplo, esse fato é muito bem descrito ficcionalmente,

enquanto Pável Vlássov, protegido por sua mãe Pelaguéia Nilovna Vlássova, tem a vida retratada

de forma documental.

A vida corria célere, os dias eram variados, coloridos. Cada um trazia consigo algo de novo, e isso já não mais afligia a mãe. Pessoas desconhecidas apareciam à noite, cada vez mais frequentes; com os semblantes apreensivos, confabulavam com Andrei, à meia voz e, tarde da noite, de gola levantada e com o chapéu bem em cima dos olhos, saíam para a escuridão, cautelosos e sem fazer ruído. Em cada um deles, sentia-se uma excitação contida; era como se todos quisessem cantar e rir, mas eles nunca tinham tempo, estavam sempre com pressa. Uns irônicos e sérios, outros alegres, irradiando força juvenil, terceiros, pensativos e calados; todos tinham, aos olhos da mãe algo de igualmente obstinado, confiante, seguro e ainda que cada um tivesse sua expressão própria, para ela, todos os rostos fundiam-se num só: fino tranquilo, decidido, com o mesmo olhar sentidos de olhos escuros meigos e severos, qual o olhar de Cristo a caminho de Emaús. (...) Continuou [a mãe] levando os panfletos à fábrica, escrupulosamente, encarando-o como sua obrigação e tornou-se familiar aos investigadores. Revistavam-na, algumas vezes, mas sempre no dia seguinte ao aparecimento dos panfletos na fábrica. Quando nada trazia consigo, ela sabia despertar a suspeita nos investigadores e guardas; estes agarravam-na, e ela, fingia-se ofendida, discutia e, depois de passar-lhes uma descompostura, ia embora, orgulhosa de sua esperteza. Agradava-lhe esse jogo34.

Munido dos ideais de Marx e da filosofia hegeliana, Lênin vinha se movimentando

politicamente desde a Revolução de 1905 e, com o fracasso desta, assumiu uma linha cada vez

mais radical, pois “os principais líderes - Lênin, Martóv, Trótski, Plekhânov e Chernóv - ainda

estavam no exílio. Mesmo afastados da pátria estavam confiantes pelo que viam ser “o início da

tão esperada revolução” (FIGES, 1999, p. 240). Para Lênin, o marxismo era como um dogma e

seu movimento operário valeu vitórias para as lutas de classe no que se referiu ao proletariado

industrial como sujeito social, como sujeito histórico da revolução, protagonizou a nova tentativa

organizacional da sociedade russa. O massacre de 1905 também foi fundamental para aproximar

Górki dos bolcheviques. Acreditando na força que a revolução apresentava em curar as mazelas

do povo, ele, ainda jovem, lutou fervorosamente pelo ativismo.

34 GÓRKI, Maksim. Pequenos Burgueses e A mãe. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 318-319.

33

Górki então se aventura na contemporaneidade através da circularidade narrativa e

temática que foi provocada por grandes “tutores”, literatos ou não, a quem Górki devia o seu

engajamento político. Modernidades estas que, literariamente, tomaram ares de um “contra-sonho

de civilização que vinha de baixo”35. A necessidade de posicionamento político era primordial

para escritores da época e Górki cegou-se diante dessa premência e cobrou atuações mais firmes

dos colegas artistas, como demosntrado em carta para Tolstói.

Nesses tempos sinistros, enquanto o sangue corre no chão de nosso país e centenas de pessoas decentes e honestas morrem pelo direito de viver como seres humanos, não como gado, você cuja palavra é ouvida por todos, acha possível apenas repetir uma vez mais a fundamental idéia que existe por trás de sua filosofia: “Perfeição moral das pessoas – este é o significado e o objetivo da vida de todos” Mas pense, Liev Nikoláievitch, é possível um homem ocupar-se em lapidar moralmente seu caráter numa época em que outros homens são fuzilados nas ruas?36

Na última frase da carta, há uma preocupação de que a militância pudesse ser a

responsável pelo derramamento de sangue inocente. Ao mesmo tempo em que Górki hesita no

radicalismo, Lênin insistia na miséria do povo como um mal pior do que parecia, no intuito de

enraivecer o maior número possível de pessoas e que delas brotasse a coragem para a formação

do exército das massas. O ano de 1905 deixou de herança boas raízes, como Boris Pasternak

descreve em poema.

DE 1905 37

Essa noite de armas, Adormecida pela greve Essa noite – Foi nossa infância E a juventude de nossos mestres

35 BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1982, p. 209. 36 BARRAT, Andrew. SCHERR, Berry. Maksim Gorky. Selected Letters. Oxford: Clarendon Press, 1997. p 51. O estopim dessa cobrança por um maior engajamento político dos intelectuais da época talvez tenha sido a matança de centenas de pessoas exercida pelos cossacos a mando do tsar Nikolai II. Tomado pelo ódio, Górki escreve o manifesto Apelo a todos os cidadãos russos e à opinião pública dos estados europeus, em 9 de janeiro de 1905, incentivando a luta contra a autocracia. Esse manifesto também foi, sob um ponto de vista literário, um tipo de denúncia de tendências burguesas contidas nas obras de ícones da literatura russa como Tolstói e Dostoiévski. 37 SCHNAIDERMAN, Boris. CAMPOS, Haroldo de. Poesia russa moderna. São Paulo: Perspectiva, 6 ed, 2001, p. 191.

34

O principal legado dessa revolução não foi a libertação do campesinato. 1905 ensinou o

russo a entender como tomar as rédeas do poder. Ficou entendido que um levante político-

cultural era mais impressindível do que a truculência. Desde então, aumentaram os números de

jornais, revistas e periódicos, houve a convocação de uma Duma38, alguns partidos políticos

foram formados, outros fortificados e incentivou-se o crescimento das instituições públicas. Tudo

isso foi um esforço para que a política fosse discutida abertamente. A longo prazo, os

bolcheviques conquistaram um destaque maior naquilo que se considerou como os vitoriosos da

revolução. A aparente unidade entre os vermelhos conservava o país num estado permanente de

crise. De um lado, havia um governo provisório, que achava prudente deixar que o pluralismo do

capital se estabelecesse temporariamente no território russo antes da implantação do socialismo.

Do outro, estavam os requisitantes de uma realidade ainda distante, composta por um cenário

multiforme da vida. Na verdade, a Rússia vivia um antagonismo entre a dominação (brancos) e a

marginalização (vermelhos). Antagonismo que, para Górki, negou a natureza do ideal

revolucionário socialista. Para ele,

fundamentalmente, o ideal revolucionário (...) era um elo de ligação entre duas épocas da história da Rússia, nasceu da mente de quem que dava os primeiros passos no ativismo, pois adequado ao seu maximalismo, cedo amadureceu o desejo de protesto e da mudança radical de vida. Porém, o conteúdo político, filosófico e estético de Górki foi alcançado depois da revolução de 1905. Da primeira revolução, foram tiradas “lições” ligadas às orientações radicais das concepções de mundo de Górki como uma experiência edificante para a compreensão do sentido revolucionário como um fenômeno da realidade russa e não uma participação medíocre na preparação e na realização de uma revolução39.

Entretanto, o triunfo de 1917 imputado aos bolcheviques devido à organização partidária

também foi interpretado como uma habilidade de Lênin em repudiar constantemente o governo

provisório, optando por um radicalismo de extrema esquerda que valorizou o partido como o

único que não se corrompeu diante de uma política coligada. Além disso, os bolcheviques

38 Assembléia nacional. 39 BARÁKHOV, V. Drama Maksíma Górkogo. Moscou: Imli Ran, 2004, p. 186. CITAÇÃO ORIGINAL: “Основополагающая для Горького идея революции, которая стала для него соединительным звеном между двумя эпохами в истории России, вынашивалась в сознании писателя с первых шагов самостоятельной деятельности, поскольку uma vez que она отвечала его идейному максимализму, рано созревшему в нем стремлению к протесту, коренному преобразованию жизни, но свое политическое, филозофиское и эстетическое наполнение для него она получила после революции 1905-07 годов. Потребовались <уроки> первой революции, соединившие в мировоззрении Горького радикальные ориентации с поучительным опытом не посредственного участия в ее подготовке и свершении realização, чтобы осмыслить революцию как знакомомерное явление в русской действительности”.

35

contaram com o patrocínio40 de patronos como Górki, que se empenhou em divulgar amplamente

os ideais revolucionários, fosse pelo viés literário ou pelo jornalístico.

Numa investida para barrar o crescimento do que chamava de “grupo de pseudo-

revolucionários”, Lênin publica o artigo “A social democracia e o governo revolucionário

provisório”, demonstrando a sua preocupação com o a questão do fracionismo russo.

O proletariado revolucionário participará [da revolução], com toda a sua energia, rejeitando o miserável seguidismo de uns e a frase revolucionária de outros, introduzindo a noção precisa e a consciência de classe na torrente vertiginosa dos acontecimentos; indo audaciosa e inflexivelmente para a frente, sem temer a ditadura democrático-revolucionária, mas desejando-a ardentemente, lutando pela república e pela completa liberdade republicana; combatendo por sérias reformas econômicas, para criar para si mesmo uma arena de luta pelo socialismo realmente ampla e realmente digna do século XX 41.

Paz, terra e pão! Esse foi o lema que conduziu a Revolução de Outubro. Fruto do

pensamento crítico instaurado pela intelligentsia, a revolução se deflagrou e derrubou a

monarquia em fevereiro e o governo provisório em outubro de 1917. Falar amplamente sobre

essas revoluções seria inexequível neste estudo, porém, vale lembrar que esse clímax histórico

não foi um processo rápido e nem se deu por destemperos das classes.

Não podemos esquecer que antes da chegada do século XX e da iniciativa socialista,

principalmente entre as décadas de 1840 e 1870, a intelligentsia russa se distinguia pela visão de

mundo de que a vida e as ideias eram realmente importantes e de que o mundo podia ser

modelado pela atividade criadora das massas. Um dos grandes trunfos desse pensamento foi o de

perdurar por diversas gerações, que acreditaram na aquisição de conhecimento como concessora

de determinação para mudar o mundo. Ao passo que a plebe russa se embriagava com o elixir do

conhecimento, o racionalismo francês iluminista foi sendo superado pelo pensamento sistemático

alemão.

A filosofia germânica dominou o universo da camada russa que se intelectualizava e a

seduziu com a possibilidade de tornar a Rússia uma potência mundial, caso ela conseguisse

transpor suas limitações provincianas. E, foi justamente esse ramo ocidentalista da intelligentsia

que deu origem ao movimento revolucionário destinado a derrubar o tsarismo e a criar sobre as

40 O suporte de Górki à revolução não era segredo. Ajudar a financiá-la era uma “obrigação” que correu o mundo. Uma reportagem do jornal The New York Times, de 17 de abril de 1906, traz a manchete sobre a arrecadação de 1.500 dólares para a causa revolucionária promovida por Górki. 41 LÊNINE. Contra o trotskismo. Moscou: Edições Agência de Impresa Ria Nóvosti, 1982, p. 29.

36

ruínas uma nova sociedade. Com efeito, a principal característica dos nomes que formavam a

intelligentsia, dentre os quais se destacaram Bielínski, Herzen, Tchernichévski, Dobroliúbov,

Píssariev, Lávrov e Mikhailóvski, era a de ser, na realidade, a sua consciência. Como a

consciência era em grande parte dirigida exclusivamente para o mundo em que se vivia, era

natural que ela se tornasse opositora do regime autocrata e também religioso, além de promover a

emancipação do povo. Diante desse conglomerado de pessoas desapontadas, começa a aparcer na

Rússia uma forma de integração dos protestos através de grupos de mobilização e comando, que

se pautavam na viabilização da participação do povo na vida nacional. Eis, então, os naródniks

(populistas).

No início do século XIX, a frustração com o pífio desenvolvimento russo trouxe à tona

um comportamento cético e descrente de uma possível reformulação político-social. Com isso, o

niilismo se tornou a medida do nível de insatisfação de toda uma sociedade. A primeira geração

de populistas foi chamada de “geração dos pais”, nome recebido após a publicação do romance

Pais e filhos, de Ivan Turguêniev. Incluíam-se nesse grupo os nobres oriúndos de uma “classe

com meios, não somente de obter instrução, mas de dedicar a vida a ocupações menos prosaicas

do que as que envolvem o sustento de uma família” (BERNARDINI, s/d, p. 110). Dez anos

depois, o nicho das mudanças passou a germinar dentro das universidades. O direito que antes era

exclusivo para privilegiados, agora era acessível aos jovens humildes.

Os novos horizontes apresentados pelas instituições de ensino fizeram com que os novos

estudantes compreendessem que as diferenças sociais ficavam cada vez mais evidentes, o que

demandava reações imediatas. Assim, na década de 1860, já havia a formação de um grupo

radical compacto encabeçado por “pessoas que voluntariamente se afastaram do Estado e [que]

assumiram o papel de curadores dos males da Rússia.” (BERNARDINI, s/d, p. 111). Em vinte

anos, a necessidade de mudanças continuava sendo o fator principal do movimento da tradição

populista, porém, os pontos de vista eram completamente distintos. Tão díspares que foram

amplamente debatidos na literatura, especialmente através dos personagens do próprio

Turguêniev42. Esses grupos, cada vez mais heterogêneos, abrigavam, segundo Franco Venturi,

herdeiros da nobreza decadente, dissidentes do clero, estudantes que deixaram o ensino superior e

42 Faço referência ao romance Pais e filhos, onde são descritas duas gerações da intelligentsia russa: a de 40 e a de 60. Ilustrada pelos personagens Bazárov e Arkadi, a nova geração era radical populista niilista e considerava a geração anterior conservadora e conformada. Já a geração de 40, no romance representada pelos pais de Bazárov e Arkadi, era moderada e se preocupava em criar mecanismos para modernizar a Rússia.

37

filhos de servos emancipados. Chamados de rasnotchnítsi, esses integrantes, em português, eram

indivíduos de “extração variada” (BERNARDINI, s/d, p.110), de princípios baseados num

exacerbado ímpeto utilitarista, que no final do século XIX formaram grupos de perfil

revolucionário e terrorista, como o Terra e Liberdade e o Vontade do povo.

Neste terreno se desenvolverá a polêmica pró e contra o terrorismo. Dados os problemas implícitos nesta polêmica, é natural que fosse sempre mais violenta, se tornando central em todo o movimento (...) “Deslocava assim com clareza [que] aquele problema [levaria] a um conflito interno cada vez mais forte no seio do Terra e Liberdade e que desembocará na formação de Vontade do povo43.

A partir de 1861, a Rússia enfrentou momentos de intensas manifestações. Protestos de

toda ordem ocorriam nas ruas e a juventude atuava de maneira cruel em nome do povo, sendo um

dos principais líderes, Serguei Netcháiev, figura que inspirou Dostoiévski na criação do

“diabólico Piotr Vierkhoviênski, atribuindo aos pais a culpa pelos filhos”44 (BERNARDINI, s/d,

p. 113). Netcháiev era o tipo de ativista destrutivo, que acreditava na contradição de que a

violência e o medo trariam a paz para a Rússia.

Avançando para a década de 70, a observância dos anos anteriores produziu um senso de

autodomínio e fez os populistas resgatarem a principal virtude do movimento: “a inabalável

convicção de que o mir camponês (assembléia dos mais velhos) e a comuna (obschina) forneciam

a base para um ordem social verdadeiramente justa e democrática” (FRANK, 1990, p. 93).

Greves e motins continuaram ocorrendo nos grandes centros, porém, os anos 70 também estavam

voltados para os estudos. O campo volta a ser o melhor local para disseminar reflexões

ideológicas. Serguei Lávrov e Nikolai Tkatchov eram os nomes da vez. Entretanto, mesmo com

esse retorno às origens, não foi atingida uma interação entre os estudados e os camponeses. Em

face a esse novo fracasso, no ano de 1873, Lávrov, “apoiado por Engels, insiste em sua revista

Avante (Vperiod) na revolução a ser levada adiante pela maioria de grupos politicamente

43 VENTURI, Franco. Il populismo russo. Turim: Giulio Einaudi Editore, 1952, p. 1008. CITAÇÃO ORIGINAL:“Su questo terreno si svolgerà la polemica pro e contro il terrorismo. Dati i problemi in essa impliciti, à naturale che si facesse sempre piú violenta, diventando centrale in tutto il movimento”43. “Impostava cosí con nettezza quel problema che porterà ad un conflitto interno sempre piú forte nel seno di Zemlja i volja e che sboccherá nella formazione di Narodnaja volja”. 44 Necháiev era membro do grupo terrorista Justiça Sumária do Povo que, auxiliado por outros estudantes, conspira contra o tsar, atentando contra a vida dele. Anos depois, em 1866, Necháiev foi o reposnsável pelo assassinato de Ivânov, esudante que o ajudou na investida contra o tsar e que decidiu se afastar do grupo. Este fato correu pela imprensa e acabou denunciado literariamente por Dostoiévski em Os demônios.

38

conscientes enquanto Tkatchov (...) insiste nas condições particulares da Rússia e na revolução o

mais cedo possível, sem a eterna espera das “circunstâncias favoráveis””(BERNARDINI, s/d,

p.114).

Com essas ondulações políticas e superando crises, o Estado Russo caminhava para uma

revolução definitiva. Até 1917, ocorreram muitos debates, publicações, manifestos e atentados.

As cisões ideológicas entre terroristas e pacifistas persistiram durante a década de 80 e entre os

líderes dessas facções surge G. Plekhânov, que iniciou a difusão das ideais de Marx na Rússia.

Em 1881, depois de três tentativas, o então tsar morre baleado e seu sucessor, Alexandre III,

reage com uma repressão mortífera. Em 1883, na Suíça, é formado o primeiro grupo

revolucionário russo de tendência marxista. Liderado por Plekhânov, o “Grupo de Emancipação

do Trabalho” era composto somente por cinco integrantes, todos exilados, que começavam a

esboçar o que seriam as organizações social-democratas russas cerca de dez anos depois. Em

1892/1893, “começaram a se formar em Petersbugo e em Moscou, as Uniões de Combate para a

Emancipação da Classe Operária”45, que se solidificaram na Rússia em 1895. Nessa época, Lênin

tinha vinte e cinco anos de idade e estudava Direito na Universidade de Kazan, de onde foi

expluso por subversão.

Com base na filosofia marxista mesclada com a tradição populista, os revolucionários

começaram a unir à vida a luta e o conhecimento, a fim de fundamentar os alicerces teóricos de

um movimento de revolução. Esses homens eram ardorosos defensores da ciência e sempre

davam atenção às incontáveis possibilidades da razão humana. A verdade era algo que os homens

deveriam conhecer, uma vez que provinha da realidade prática da vida. Entretanto, a atmosfera

política permaneceu em constante agitação, pois a lacuna social do movimento populista era

grande. As intenções e ambições revolucionárias continuaram primordialmente atreladas à

política onipresente tida como uma “doença” nacional por não contribuir para com o diálogo

mais profundo e por dar preferência aos anseios individuais.

Após décadas de batalha contra o descontentamento, a política, ainda sem muita

organização vertical, continuou promovendo a consciência ativa da pátria, fato que empurrou a

Rússia a uma atitude revolucionária que, mesmo desgovernada, iria acontecer de modo

derradeiro. Górki, como militante, sabia que a revolução tinha objetivos maiores que não cabiam

numa concepção meramente literária. O tipo de “guerra de movimento, da qual a revolução russa

45 SERGE, Victor. O ano I da Revolução. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Ensaio, 1993, p. 35.

39

(...) [foi] um exemplo emblemático, a hipótese da tomada do poder [era] mais factível, porém,

[eram] muito mais difíceis as condições de construção do socialismo”46. Decepcionado, escreve

para a ex-esposa, Ekaterina, em 18 de junho de 1917, relatando:

A manifestação de hoje foi uma mostra da impotência das forças democráticas leais. Apenas os bolcheviques marcharam. Desprezo-os e odeio-os cada vez mais; são uns verdadeiros idiotas russos. A maior parte das palavras de ordem clamava “Abaixo aos dez ministros burgueses!” Mas só há oito deles! Registraram-se vários surtos de pânico – foi repugnante. Senhoras pularam no canal, no trecho entre o Campo de Marte e os Jardins de Verão, ainda de botas, chapinhando na água, levantando as saias, com as pernas expostas, algumas delas gordas, outras já curvadas. A loucura continua, mas parece que o povo começa a se cansar. Embora seja um pacifista, saúdo a próxima ofensiva, na esperança de que, pelo menos, force o país a se organizar, pois estamos nos tornando incorrigivelmente ociosos e desarreados (FIGES, 1999, p. 501).

Apegado às convicções humanistas, Górki sofreu por considerar os ideais socialistas um

ideal cultural. O socialismo significava a construção de uma sociedade humana baseada nos

“pincípios democráticos e no desenvolvimento moral, espiritual e intelectual do povo”.

Amedrontado com a condenação de seu povo à barbárie, Górki observou em um discurso: “a

nova vida política exige de nós uma estrutura d´alma também nova (...) a onda anárquica de

violência revelou-se um rompante zoológico de força bruta e destruição” (FIGES, 1999, p. 502).

E

(...) se a revolução de fevereiro revelou sérias contradições entre Górki e a oposição que o libertaram de muitas ilusões, a revolução de outubro levou ao desmoronamento definitivo da visão romântica e das esperanças [revolucionárias], se tornano, ao seu modo, a etapa mais dramática na história das experiências intelectual e criadora do escritor (BARÁKHOB, 2004, p. 216).47

A hesitação de Górki quanto ao rumo que a revolução tomava era consequência de uma

incongruência de pensamentos. Para ele, as pessoas mais importantes de uma comunidade eram

as mais dignas e as mais úteis, e nelas residia a força capaz de mobilização em torno de um ideal.

Entretanto, Górki recuou quando constatou que estava havendo um encaixe de um povo

46 ARAÃO REIS, Daniel. À procura de modernidades alternativas: a aventura política dos intelectocratas russos em meados do século XIX. Artigo apresentado no seminário: Intelectuais e Estado, realizado na Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP, coordenado por Marcelo Ridenti (UNICAMP) e Denis Rolland (Université de Strasburg), em 01 de setembro de 2004. 47 CITAÇÃO ORIGINAL: “Если Февральская революция выявила серьезные противоречия Горького с противос тоящими ему силами, освободила от многих прекрасных иллюзий, то Октябрьская революця привела к окончательному крушению его романчических представлений и надежд, стала самым драматическим по своему напряжению этапом в истории духовных и творческих испытаний писателя”.

40

desperparado para a luta armada em uma teoria política, sem que se desse o devido trato a essa

desproporção48. A ambição em proporcionar ao país um novo regime reluzia nas palavras de

Lênin, num

escopo socialista baseado em aguçar a luta de classes para dar força ao movimento revolucionário e contribuir para a vitória do partido dos trabalhadores. O ideal para um social-democrata não é ser um secretário de sindicato, mas um tribuno do povo pronto a reagir contra qualquer manifestação de opressão e tirania, não importa onde aconteça, não importa a classe ou a camada social que afete. O que o social-democrata precisa saber é combinar todas essas manifestações num quadro único de violência policial e exploração capitalista.49

A meu ver, o que começou a incomodar Górki foi o sentimento de esmagamento do

despotismo simultâneo à ascensão de uma ditadura proletária perniciosa. O cerne da questão

estava na aversão ao sentimento de que o povo era formado apenas por seres humanos

insignificantes e indignos de atenção. Condensados na figura leninista, os revolucionários

basearam na força o direito de protesto contra a patente real de uma hierarquia. A esses homens

coube a função de vistoriar cada lugar e investigar cada pessoa.

O apelo da revolução já não era mais tão abrangente quanto antes e, numa época em que

ruíram os cânones sociais, Górki se afligia por ver uma Rússia ainda feudal com habitantes

intelectualmente desorientados para suportar a pressão política pela qual o país passava. Sob a

sua perspectiva, os camponeses teriam sido adestrados pelos bolcheviques, ficando bitolados a

uma ideia que poderia se tornar um discurso altamente individualista. Ele mesmo, relembrando as

suas raízes, escreve em seu livro Lênin, biografia, cartas e escritos, o seguinte comentário:

Para melhor compreensão direi que eu tinha sido, toda minha vida, oprimido pela predominância esmagadora do campo ignorante sobre a cidade, pelo individualismo animal do camponês e quase completa ausência nele de emoções sociais. A ditadura de operários politicamente instruidos, estreitamente unidos aos intelectuais da ciência e da técnica era, na minha opinião, a única saída possível para aquela situação difícil, particularmente agravada pela guerra, que tinha agravado mais ainda a anarquia dos campos.

Eu não estava de acordo com os comunistas quanto à apreciação do papel dos intelectuais na revolução russa - preparada precisamente por eles - dos quais faziam parte igualmente todos os bolcheviques que educaram centenas de operários num espírito de heroísmo social e alta intelectualidade. Os intelectuais russos- cientistas e operários- foram, são e serão por muito tempo ainda, o único cavalo de tração atrelado ao pesado carro da história russa”. (...) Tenho pela política uma aversão orgânica e não

48 Refiro-me à Rússia que na época contava com 80% da população de camponeses. 49 HILL, Christopher. Lênin e a Revolução Russa. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p. 52.

41

creio na razão das massas em geral, nem das massas camponesas em especial. A razão que não é organizada pela idéia, não é ainda a força que fornece à vida um elemento criador. Na razão da massa não há idéia enquanto ela não possuir consciência da comunidade, dos interesses de todos os indivíduos.50

Certamente, a opinião de Górki fez pouca diferença no andamento dos atos, pois a maioria

das camadas sociais estava totalmente pró-revolução, fosse pelo convencimento ou pela

conveniência. É inegável que Lênin foi capaz de formar um vasto consenso entre a coletividade,

porém, o prestígio do qual gozava Górki era valioso para o líder, que não escondeu a insatisfação

com a falta de uma maior compreensão do escritor para com os rumos que haviam sido traçados

para o país. Para Górki, o momento era de reavaliação histórica e, para Lênin, era de síntese, não

havendo mais tolerância para indecisões.

Nas atuais circunstâncias, quando o importante é estimular a nação para defender a revolução, todo pessimismo intelectual é perigoso. Górki é um dos nossos... Ele voltará... Ele já passou por esses zigue-zagues políticos antes51 (TROYAT, 1989, p. 139).

Com isso, o nascente socialismo obteve um erro de práxis. Enquanto Lênin buscava o

dinamismo, Górki propalava a comunhão e as letras contra todo tipo de ignorância. O

estremecimento entre os dois e a crise do projeto revolucionário se tornaram sérios demais para

que Lênin os ignorasse e, por isso, a sustentação das opinões era cada vez mais veemente.

Caro A. M [Aleksiei Maksímovitch] A propósito da minha ida aí, você não tem razão. Diga-me, para que serve

alterar com Maximov, Lunatcharski, etc? Você mesmo diz: resmungue em privado, e depois convida-me a ir resmungar em público. Não é um expemplo a oferecer. Quanto a repudiar os operários, está igualmente em erro. Que eles aceitem o nosso convite e venham nos ver, conversaremos juntos, debateremos pelas concepções de certo jornal [Proletari] que alguns membros da fração classificam (há muito tempo que ouvi isso de Liadov e de outros) de aborrecido por não poder mais, de inculto, de perfeitamente inútil, que não tem fé no proletariado nem no socialismo.

No que se refere à nova cisão, os argumentos não se aguentam muito bem. Por um lado as duas partes são niilistas. Por outro lado, a cisão será menos profunda do que entre os bolcheviques e os mencheviques. Se se trata do “niilismo”, dos “descontentes”, da falta de cultura, etc, de quem quer que seja que não crê no que escreve, e assim por aí

50 GÓRKI, M. Lênin. Biografia, cartas e escritos. Suzana Rios (Org). São Paulo: Quilombo, 1970, p. 31-32. 51 Palavras de Lênin. CITAÇÃO ORIGINAL: “In the present circumstances, when it is important to rouse the nation to defend the revolution, all intellectual pessimism is harmful. Gorky is our man…. He will come back to us…. He has already gone through such political zigzags before”.

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afora, é que a cisão não é profunda, não mesmo cisão. Mas se a cisão é mais profunda do que entre bolcheviques e mencheviques, então não se trata de niilismo e de escritores que não acreditam no que escrevem. Isso não vai dar muito bem, palavra! Engana-se quanto à cisão atual. (...) Os operários social-democratas farão a sua escolha facilmente e depressa, por que as táticas de guardar (em conserva) palavras revolucionárias de 1905 e 1906, em lugar de aplicar um método revolucionário a uma nova conjuntura, diferente, a uma época alterada, exigente de outros processos e outras formas de organização, é uma tática morta. O proletariado vai para a revolução atingi-la-á, mas não como antes de 1905: aqueles que “acreditam” que ele vai e que chegará, mas não “compreendem” esse não como, a nossa posição deverá parecer não sincera, fútil, aborrecida, baseada na falta de fé no proletariado e no socialismo etc, etc. A divergência que daí resulta é, certamente, bastante profunda para tornar inevitável a cisão (...)

Aperto-lhe a mão calorosamente. Seu Lênin Carta redigida entre novembro e dezembro de 1909. Expedida de Paris para Cápri. (GORKI, 1970, p. 98-99)

Para ter sucesso na busca pelo poder, Lênin e os bolcheviques se apregoaram

pretenciosamente a uma teoria para não serem vencidos pelos dissabores do enfrentamento,

ventilando a possiblidade de uma derrota. A promessa de probidade e a fascinação pelo poder

eram duas extremidades de um fio que se rompeu, instalando-se um desserviço.

Os bolcheviques realmente não sabiam como realizar seus intuitos. Nos primeiros anos da Revolução de Outubro, estava implícito que a Rússia precisaria da ajuda industrializada da Europa Ocidental, a fim de avançar para o socialismo. Porém, o movimento revolucionário na Europa desmoronou e deixou os bolcheviques sem a certeza de como proceder, mas determinados a seguirem seu caminho de alguma forma (FITZPATRICK, 1994, p.111).52

Em abril53 de 1917, Lênin sai do exílio na Suíça e retorna a São Petersburgo. O pilar

revolucionário estava restabelecido e os meses subsequentes serviram para organizar protestos

em todo o território nacional. Numa tentativa de abrandar os ânimos, Górki se manifesta

intempestivamente e dá voz a mais um discurso, proferido no dia 23 de abril de 1917.

As asas reluzentes de nossa jovem cidadania estão manchadas de sangue inocente. Crime e violência resumem o argumento do despotismo... Devemos compreender que o inimigo mais terrível da liberdade e da justiça mora dentro de nós; consiste em nossa estupidez,

52CITAÇÃO ORIGINAL: “The bolsheviks themselves did not really know how it was going to accomplished. In the first years of October Revolution, they often implied that Russia would need the help of industrialized western Europe in order to move forward to socialism. But the revolutionary movement in Europe collapsed, leaving the bolsheviks still uncertain how to proceed, but determinated to make their way somehow”. 53 Abril de 17 foi um mês emblemático. As Teses de Abril foram diretivas para uma nova orientação política para os bolcheviques e também um exercício de oposição ao Governo Provisório, que estaria ludibirando os sovietes vermelhos, minoria entre os deputados, fazendo falsas promessas governamentais. Foram igualmente importantes; o apelo à não continuidade da Rússia na I Guerra Mundial, à desobediência militar e o surgimento de uma voz aguda contra a influência burguesa no comando do país. Dessas teses tirou-se frase Todo poder aos Sovietes!

43

crueldade e em todo o caos de trevas e sentimentos anárquicos... Somos capazes de entender isso? Se não conseguimos nos abster do flagrante uso da força, então não poderemos nos arrogar livres... É possível que a memória de nosso passado infame, a lembrança de centenas de milhares dos nossos, assassinados nas ruas, tenha inculcado, a nós também a plácida atitude dos algozes frente à morte triste de um homem? Não disponho de palavras duras o bastante para censurar os que tentam provar algo com balas, baionetas ou socos no rosto de outrem. Não foram esses os meios pelos quais nos mantiveram na escravidão aviltante? E agora, tendo nos libertado da servidão imposta de fora, continuamos a viver dominados por sensações escravizadoras (FIGES, 1999, p. 508).

A intranquilidade que dominava a Rússia não pôde mais ser controlada pela liderança

revolucionária por mais radical que ela fosse. O tsar Nikolai II já havia abdicado ao trono, porém,

as insurreições continuavam em todas as instâncias sociais. Antes da nova ofensiva armada,

Górki compartilha o seu desapontamento em carta novamente endereçada a Ekaterina.

Cheguei ao fim de minhas forças. Meu corpo ainda resiste, mas a ansiedade cresce a cada nova manhã e vejo que a política ensandecida de Lênin logo nos levará à guerra civil. Suas palavras de ordem são muito populares entre a massa de trabalhadores incultos e alguns soldados, muito embora ele esteja inteiramente isolado (FIGES, 1999, p. 508).

Esse desabafo praticamente põe um fim no ativismo extremista cultivado desde a

juventude, pois, para Górki, o mérito da intelligentsia era o de ser uma “categoria social [que se]

manifestou justamente através do poder que a literatura, a imprensa e a crítica passaram

paulatinamente a ter sobre a opinião pública. [Poder este] de tão grande importância histórica que

não encontrou paralelo em nenhuma outra parte do mundo” 54.

Principalmente nos primeiros anos após a tomada de poder, a decepção do escritor com os

bolcheviques aumentou. A guerra civil e a fome que assolaram o país fizeram com que Górki se

preocupasse com a frieza de Lênin, dizendo: “suas palavras sempre chegavam ao meu espírito

com o brilho frio de aparas de aço” (HILL, 1977, p. 166). Porém, independentemente de estipular

a quem pertencia a verdade, a razão ou a clareza, o certo é que logo se estabeleceu uma empatia

recíproca que apesar das dissonâncias perdurou pela vida toda. Durante os anos de exílio em

Cápri, Górki recebeu duas visitas de Lênin e teve a oportunidade de compartilhar o seu ponto de

vista sobre o que, a seu ver, era a verdade dos fatos.

54 BERNARDINI, Aurora. Os escritores russos na época do populismo. Artigo acessado em junho de 2012, p. 110.

44

Lenine, esta manhã no terraço da nossa casa: - o indivíduo isolado de nada vale, por maiores que sejam os seus méritos, se não estiver inserido num projecto comum. Tenho tendência a concordar, mas com uma diferença de peso, todavia: para ele, a verdade pertence ao domínio da política e aí se esgota, para mim é antes de mais espiritual e civilizacional (...). Há uma secura no pensamento de Lenine que me confrange e à qual sou alheio. Raciocina (Lênin) em termos geométricos, cruzando linhas e abrindo outras. Eu apreendo as coisas à maneira dos pintores, por contornos e matizes, a minha fantasia nasce de uma sucessão de imagens e alimenta-se delas. A realidade que procuro talvez não exista, mas todos os dias a vou encontrando, à minha maneira (...)55

(...) Depois de Paris nos encontramos em Capri. Fiquei com uma impressão muito estranha dessa visita. Como se Vladimir Ilich tivesse ido a Capri duas vezes, num estado de espírito completamente diferente (GORKI, 1970, p. 25. Grifo meu).

No comentário acima, Górki externa os sentimentos pelas palavras e confessa que todas as

imagens que vê são metamorfoseadas em fantasias, o que automaticamente o distancia da

realidade pungente, mesmo que consideremos que “a análise mais sutil do talento de Górki seria

insuficiente para cobrir seu completo significado como escritor. Somente conectado à evolução

da sociedade e literatura russa que Górki se torna inteligível como um fenômeno”56. Sua

perplexidade poderia caracterizar os bolcheviques, como afirma Richard Pipes, como alguns

personagens do romance Os demônios, de Dostoiévski que “se viram compelidos a matar, para

prender seus aliados vacilantes nos laços da culpa coletiva. Quanto mais vítimas inocentes o

governo bolchevique tivesse em sua consciência, mais os quadros do partido, acorrentados aos

seus líderes, sentir-se-iam obrigados a agir sem hesitação nem transigência”57.

Para Górki, a revolução representou um conflito interior que lhe deu a chance de atuar

como um guerreiro. Entretanto, agir como tal abriu as portas para outras atuações; a de homem, a

de um cidadão que não se enrijeceu e que não ficou impassível diante daquilo que lhe era mais

caro: as pessoas. Entre as desavenças estampadas nas páginas dos jornais influentes da época,

como o Nova vida e o A verdade, Górki opta mais uma vez pelo humano, dizendo:

Não quero fazer parte de um festival em que o despotismo de uma massa semi-instruída que celebra a sua vitória fácil enquanto a personalidade humana permanece oprimida como antes. Não é nenhum festival para mim. Não importa quais mãos detêm o poder,

55 MATHIAS, Marcello Duarte. O diário italiano de Górki. Alfragide: Oceanos, 2008, p. 53. Grifo meu. Esse livro é uma mescla entre a história da relação de amizade entre Lênin e Górki e a arte ficcional que narra os fatos históricos misturados à visão particular do autor sobre a figura do líder da revolução de 17. 56 OSTWALD, Hans. Maxim Gorki. Trad. Frances A. Welby. Londres: William Heinemann, 1905, p. 33. CITAÇÃO ORIGINAL: “The most subtle analysis of Gorki´s talent would, however, be inadequate to cover his full significance as a writer. It is only in connection with the evolution of Russian society and Russian literature that Gorki, as a phenomenon, becomes intelligible”. 57 PIPES, Richard. História concisa da revolução russa. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 215.

45

reservo o meu direito humano de criticar. E é com determinada suspeita e desconfiança com que vejo o homem russo quando está no poder: até ontem, foi um escravo, porém tornou-se o mais cruel dos déspotas assim que se sentiu mestre entre os seus camaradas (TROYAT, 1986, p. 137).58 Gente demais julga revolucionários comportamentos que só revelam a violência asiática de uma multidão incontrolável. As pilhagens começaram. O que vai acontecer agora? Não tenho a mínima idéia. Mas pressinto que correrá muito sangue, muito mais do que jamais correu.59

A história estava “na berlinda”. A revolução e as suas consequências, idealizadas como,

por exemplo, a industrialização e modernização, se tornaram objetivos que cada bolchevique

tinha para justificar uma diminuição do atraso russo. A luta contra a sociedade de classe era mais

do que uma rélis propaganda marxista, era a principal obrigação do proletariado e do partido

comunista. A ascensão do sentimento revolucionário generalizado entrou em contradição com as

teorias de Marx, no que condizia à maturidade exigida para que o capitalismo fosse suprimido.

Como a base da população era de camponeses, a Rússia partiu de uma onda de desespero

em busca de melhores condições sociais, pulando etapas importantes do processo como a

fortificação de um proletariado industrial ciente das dificuldades e dos benefícios de uma

democracia. Lênin intuiu “que a luta contra o domínio dos monopólios, a favor de profundas

transformações democráticas faria provavelmente surgir uma espécie de etapa transitória na luta

pelo socialismo - etapa em que seria formado um Estado democrático-revolucionário de

transição, em que serão minados de modo radical os alicerces o Estado de grande capital”60,

porém, e pressão ideológica cedeu espaço à pressa militante.

Essa incoerência rendeu à nação uma evolução do proletariado urbano, já que o

campesinato russo foi muito menos conservador do que o da Europa Ocidental. Muitos

camponeses foram empregados nas indústrias e migraram para as cidades à procura de trabalho

sazonal para a complementação da renda. O resultado dessas condições foi um campesinato mais

propenso a acatar a revolução do que Marx poderia ter previsto. Mesmo assim, ““as

58 CITAÇÃO ORIGINAL:“I want no part of a festival in which the despotism of a semiliterate mass celebrates its easy victory while the human personality remains oppressed as before. That is no festival for me. No matter whose hands hold power, I reserve my human right to criticize. And it is with particular suspicion and mistrust that I consider the Russian man when he is in power: have been a slave only yesterday, he becomes the most ruthless of despots as soon as he feels that he is the master of his fellow men”. TROYAT. Henry. Gorky. A biography. Nova Iorque: Crown Publishers, 1986, p. 137. 59 WERTH, Nicolas. Tensões e violência. In: Um tempo de utopia, sonho e esperança. Revolução Russa. São Paulo: Duetto, 2009, p. 49. 60 ZAGLÁDIN, Vadim. Lénine e o progresso social. Moscou: Edições da Agência de Imprensa Nóvosti, 1980, p. 47.

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características modernas” da sociedade russa como os setores urbanos e instruídos continuavam

incompletos. Frequentemente era dito que a Rússia não tinha classe média; e que, de fato, as

classes econômicas e comerciais permaneceram comparativamente frágeis”61.

Com isso, repasso a pergunta feita por Boris Schnaiderman ao colocar a história na

berlinda: “Os documentos revelados obrigam a reescrever a história, mas, sobretudo aumentam a

nossa perplexidade diante do ser humano. Como foi possível tudo isso, afinal?” 62

Em Moscou, no dia 14 de junho de 1924, em entrevista para os correspondentes do

partido, Górki sintetiza:

(...) Colaborei sempre com os bolcheviques desde 1903, e até mesmo antes, até 1917. Em outubro não estava de acordo. Tinha razões para duvidar da vitória do proletariado. Na época em que reinava a anarquia das massas camponesas e entre a população das cidades, a anarquia engendrada pela guerra, dúvidas, como as minhas tinham curso. Depois, vi a maneira como as tropas regressavam para as suas casas. Era o que se chamava de milícias populares, porque o exército ativo tinha sido aniquilado. Quando regressavam, eu via o que faziam. Era uma tempestade, um furacão: era tudo quebrado, tudo arrancado, era qualquer coisa de inverossímil, e eu pensei, como muitos de meus camaradas, que essa saga ia varrer a única força verdadeiramente revolucionária, o proletariado, e também essa intelligentsia verdadeiramente revolucionária, que era formada pelos bolcheviques, essa intelligentsia que criou o partido, dirigido e formado por Vladimir Ilich. Foi isso que me obrigou a opor-me bruscamente. Na medida de minhas forças, francamente, com toda a sinceridade, escrevi que tudo aquilo não valia de nada. Tinha outra razão para discordar imperativamente e desse modo desaprovar a Revolução de Outubro. É que, com toda razão, Vladimir Ilich escrevera em um de seus artigos, já em 1898, que nós, ou seja, o proletariado, estávamos destinados a recolher esse patrimônio espiritual, essa herança cultural criada no mundo burguês. Era nossa. No fim das contas é a obra do proletariado, é a obra da classe operária e camponesa que nela participam diretamente, e nós somos os legatários naturais dessa riqueza. Não é assim? Pois bem, quando se começou a destruir tudo isso, a aniquilar toda essa riqueza, era natural pensar que nos arriscávamos a perder a herança. Todas as considerações explicam porque tomei posição contra, e não apenas eu, mas um grande número de outros bolcheviques. Mas quando, após o atentado contra Lênin, se tornou perfeitamente evidente que ele não era apenas um chefe dos bolcheviques, de uma parte do proletariado, educada, por essa intelligentsia revolucionária de esquerda, era também o chefe de toda a massa – lembram-se decerto do modo como ele reagiu ao atentado – então não ouve mais dúvida que a vitória tinha sido alcançada. Foi precisamente a partir desse momento que compreendi que a ação era justa. Sim, a ação era justa. Era uma ação audaciosa, arrojada, de uma intrepidez louca, que não poderia ser levada a cabo senão por um homem tão perspicaz, tão seguro, tão convicto da força do proletariado, como era Vladimir Ilich. Só ele poderia fazer o que fez, verdadeiramente. No dia em que atiraram contra ele, no dia em que esse atentado provocou um eco tão clamoroso em todo o país, quando o país não foi mais do que um só grito e que os operários sem-partido, não

61 FITZPATRICK, Sheila. The Russian Revolution. Nova Iorque: Oxford University Press, 1994, p. 21. CITAÇÃO ORIGINAL: “the “modern” characteristics of Russian society, even in the urban sector and the upper educated strata, were still very incomplete. It was often said that Russia had no middle class; and indeed its business and commercial class remained comparatively weak”. 62 SCHNAIDERMAN, Boris. Os escombros e o mito. A cultura e o fim da União Soviética. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 173.

47

socialistas, os simples operários sem-partido se sentiram consternados com esse atentado, tudo foi claro: sim, a vitória tinha sido alcançada, o bolchevismo tinha ganho. Depois disso é evidente que fui falar com Vladimir Ilich e lhe disse: “Confesso que me enganei”. E eis é tudo (GORKI, 1970, p. 63).

Com seu arrojo verbal, Lênin conseguiu unir boa parte das camadas sociais a uma ideia de

sociedade de acolhimento e não resta dúvida de que a aquisição de uma consciência nacional

acabou por identificar a Rússia à figura do estadista, um mestre do proletariado, que reforçava a

importância da queda do regime capitalista pelas mãos da luta operária contra a burguesia e

contra a exploração. Porém, essa batalha não poderia ser inglória e o povo deveria estar

preparado para o uso da força no intuito de instaurar a sua dominação política, a ditadura do

proletariado. Em 29 de setembro de 1917, Lênin escreveu o artigo A crise amadureceu, sobre as

ilusões constitucionais provocadas pela celeuma nas instituições representativas.

Os bolcheviques seriam traidores ao campesinato, pois tolerar o esmagamento da insurreição camponesa por um governo... significa deitar a perder toda a revolução, deitá-la a perder para sempre e irrevogavelmente. Grita-se que há anarquia e que cresce a indiferença das massas (...) A crise amadureceu. Está em jogo o futuro da revolução russa. Está em questão toda a honra do partido bolchevique. Está em jogo todo o futuro da revolução operária internacional pelo socialismo. A crise amadureceu... (LENINE, 1982, p. 74)

A violência, segundo Sheila Fitzpatrick, foi um motivo contínuo na Rússia

revolucionária, tanto como fato histórico e, mais importante, como modus operandi do partido

comunista. Era uma época de desconfianças e não era possível identificar se havia ou não

traidores infiltrados na movimentação política. Era certo que se a assembléia constituinte

permanecesse livre para decidir os rumos do país, o regime de Lênin não aguentaria a pressão.

Como os bolcheviques eram minoria na representação das classes mais pobres, Lênin investiu em

uma maior popularização do partido entre os simpatizantes insatisfeitos com a gestão moderada.

Ele sabia que os proletários concentravam o poder de reunir os desiludidos em um grupo

unificado, harmônico e propunha um “agrupamento de revolucionários profissionais, conspirativo

e centralizado, que fosse ao mesmo tempo uma organização operária, com ampla margem para o

debate interno (mas com plena unidade de ação)”63. Entretanto, com o tempo, as diferenças

ideológicas se sobrepuseram ao que deveria ser uma convicção comum e, o partido,

63 COGGIOLA, Osvaldo. Lênin, Trotsky e o partido comunista. Revista História Viva. Revolução Russa. A utopia é vermelha, n.18, 2007, p. 37.

48

ao invés de [ser] uma máquina revolucionária maravilhosamente organizada, movendo-se majestosa e irresistivelmente em direção a uma vitória garantida, [tornou-se] um partido muito dividido, mantido pela indomável vontade de um único homem que também não estava completamente certo da vitória, porém estava disposto a apostar tudo no que pensava ser uma excelente oportunidade de arriscar. 64

Para que fosse aberto o caminho para uma nova política, foi necessário um trabalho

teórico pautado numa ideologia. A história russa pendia para o pensamento marxista e as

lideranças pró-democracia desenvolveram e fundamentaram o ponto de vista do materialismo.

Sendo assim, o desenvolvimento da sociedade teria sido determinado, não pelos desejos de

pessoas públicas, mas pelo desenvolvimento das condições materiais de existência da sociedade,

pelas reformas dos métodos de produção, pelo crescimento das relações de classes e pela luta

delas no papel desempenhado no âmbito trabalhista.

Certa vez, Marx disse: “Os homens fazem a história, mas nem sempre a fazem em

condições por eles escolhidas” 65.

Essa afirmação resume bem tudo o que aconteceu no futuro russo. Outubro de 17 veio

para desbaratar a lógica do capital, porém, esse objetivo não se consolidou da forma esperada, em

virtude das condições desfavoráveis oferecidas pela Rússia para o enquadramento da teoria na

prática. A equação a ser solucionada era difícil, pois, para que se alcançasse o socialismo, era

necessário acabar com o feudalismo e conduzir o país através dos ideais comunistas para que

assim se atingisse a plenitude social. Entretanto, a cada dia ficava mais claro que a debilidade da

estrutura social e a força produtiva inoperante levaria esse processo revolucionário ao fracasso.

Os próprios estudos do filósofo alemão já alertavam previamente para os limites das revoluções e

para a ênfase na crença de que o socialismo não poderia ser edificado num terreno onde as forças

produtivas fossem frágeis e não conseguissem suportar o peso de serem responsáveis pelo bom

andamento de uma sociedade.

A situação política russa já atingia um patamar insustentável. A negação do estado de

direito do povo ainda se perpetuava e provocava na sociedade uma vontade de revidar à altura.

64 KARPOVICH, Michael. The Russian Revolution of 1917. In: The journal of modern history. Chicago: Chicago University Press, 1930, p. 277. Artigo acessado pelo site JSTOR, em junho de 2012. CITAÇÃO ORIGINAL: “Instead of a wonderfully organized revolutionary machine, moving majestically and irresistibly toward an assured victory, we see a much-divided party, kept together by the indomitable will of a single man, who himself was not completely sure of victory, but who was willing and able to stake everything on what he thought to be an excellent gambling chance”. 65 Citação de Marx retirada do site: www.marxists.org/portugues/marx/htm, em junho de 2012.

49

Um abismo teve que surgir entre a massa popular e mundo abastado para que fosse viabilizada

uma noção de desenvolvimento da força de produção, único elemento capaz de frear a

generalização da miséria. A julgar por essas particularidades, a Rússia teve a sua revolução mais

do que justificada. Embora os ideais fossem obstinados, duas falhas foram decisivas na não

estruturação de uma sociedade emancipada. A primeira delas foi a falta de incremento numa

força de trabalho unificada e a segunda deveu-se ao fato da Rússia ter encaminhado a revolução

de forma isolada do restante da Europa. Segundo Marx, era necessário que outras nações também

estivessem sob um processo revolucionário para que fosse criada uma força-tarefa contra o

capitalismo burguês, que detinha o poder político e fazia do econômico-social um fator

impeditivo para o princípio da produção de valores de troca, fato que deixou a Rússia sozinha

diante de uma ausência de coalizão.

As classes dominantes tornavam-se cada vez mais conservadoras, e as massas populares, cada vez mais radicais. (...) A política do Governo Provisório oscilava entre reformas sem o menor sentido prático e a repressão sanguinária contra as massas revolucionárias. Uma lei emanada do ministro socialista do trabalho decretava que os comitês de fábrica deveriam reunir-se somente à tarde, depois das horas de trabalho. Nas trincheiras, eram presos os agitadores dos partidos da oposição. Nenhum jornal radical podia circular livremente e os propagandistas da revolução eram punidos com a pena capital. Tentou-se o desarmamento da Guarda Vermelha, e os cossacos partiram para o interior, a fim de restabelecer a “ordem” nas províncias.66

Não se questiona que a Rússia tenha logrado êxito com a revolução, porém, devemos

sinalizar que se pagou um alto preço para que se construísse uma tentativa inédita de supressão

total da sociedade de classes. Nos anos que antecederam 1917, via-se uma Rússia enredada em

crises e afogada na avaliação deficiente dessas crises. Primeiro, assistiu-se à derrota da

monarquia, depois, ao colapso do governo provisório e a divisão partidária acontecendo em um

curto período de tempo. Para garantir a independência do movimento, era preciso uma conduta

pública de responsabilidade social sem desvios, pois uma ação precipitada poderia trazer grandes

reveses.

A prudência dos bolcheviques que hesitavam em arriscar tudo na insurreição armada parece perfeitamente compreensível (...) O estado de espírito das massas, obviamente, é algo difícil de determinar. Uma grande margem de subjetivismo se faz presente nesse caso [devido aos] dados recolhidos a partir de fontes divergentes e incertas.67

66 REED, John. Os 10 dias que abalaram o mundo. Trad. José Octávio. Porto Alegre: LP&M Pocket, 2002, p. 26-27. 67 CARMICHAEL, Joel. História resumida da Revolução Russa. Trad. Fausto Guimarães. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 175.

50

A crise vinda do deslocamento entre a representação democrática e a atuação parlamentar,

demonstrou que a condução do interesse público estava comprometida. Paralelamente, a crise

econômico-social quase descambou para uma presunçosa faceta ufanista. Lênin já considerava as

fragilidades do processo revolucionário, quando disse:

Toda revolução significa uma brusca virada na vida das massas populares. Se esta virada não amadureceu, é impossível [que se faça] uma verdadeira revolução. (...) Todo operário, soldado e camponês consciente deve meditar atentamente nos ensinamentos da Revolução Russa; sobretudo hoje, em fins de julho, quando se vê já claramente que a primeira fase de nossa revolução terminou em fracasso.68

Munir com fogo um povo corajoso, porém despreparado, não foi a melhor estratégia para

o objetivo final da revolução. Antes de insuflar o proletariado, a militância deveria ter se atido à

lição marxista de conquistar avanços sem esquecer de reconhecer os erros cometidos. Assumi-los

seria uma virtude e um recuo precioso para os líderes revolucionários, no intuito de repensar cada

passo do movimento de maneira direcionada e crítica, valorizando os pontos altos das revoluções,

sem desprezar o feedback oferecido pelos insucessos.

O embate entre o proletariado e a classe média, entre os sovietes e o governo, que começara em março, estava no auge. Após um salto gigantesco, da Idade Média ao século XX, a Rússia apresentou ao mundo alarmado dois tipos de revolução — a política e a social — através de uma luta sangrenta.

Olhando para trás, vemos que a Rússia, antes do levante de novembro, parecia viver em outra época histórica, inacreditavelmente conservadora. Por isso teve que se adaptar com rapidez a uma existência nova e agitada. Num salto brusco, passava a uma política que fazia considerar os cadetes como "inimigos do povo"; Kerenski69, como “contra-revolucionário”; os chefes socialistas, Tseretelli, Dan, Lieber, Gotz e Avksentiev, como reacionários; e homens como Victor Tchernov, e até Máximo Górki, como direitistas... (REED, 2002, p. 33)

A revolução de 17 provou que uma grande mobilização tinha poder de suplantar uma

sociedade burguesa. Tal fato só não aconteceu porque não houve um reconhecimento e um

acompanhamento meticuloso da realidade e da conjuntura que se movimentavam sem parar. Essa

falta de perspicácia para com a fluidez da história talvez tenha contribuído para o lado ditatorial

que os movimentos revoltosos passaram a ter, sendo taxados de comunistas. Hoje, se defende o

68 LÊNIN. V. Últimos escritos. (Testamento Político). Belo Horizonte: Aldeia Global, 1979, p. 59. 69 Aleksandr Kérenski, advogado e político social-democrata. Importante figura revolucionária que exerceu o cargo de último primeiro-ministro do Governo Provisório.

51

tema do socialismo democrático, mas muitas vezes esquecemos de que o socialismo nunca havia

sido pensado antes sem a presença da democracia. Toda a nomenclatura dos movimentos

revolucionários teve seu significado reinterpretado no decurso histórico, porém, todos eles vieram

do pensamento de esquerda que apoiava um sistema de produção no qual homens livres e

conscientes organizavam a própria força de trabalho.

A Rússia inteira aprendia a ler, e lia política, história, pois o povo queria “saber”. Em cada cidade, em cada povoado, nas trincheiras, cada agrupamento político possuía o seu jornal e, às vezes, folhetos eram distribuídos aos milhares por centenas de organizações, atingindo o Exército, as fábricas e os mais distantes rincões. A sede de instrução, durante tanto tempo insatisfeita, lançou a Rússia num verdadeiro delírio de manifestação de idéias. (...) A Rússia absorvia livros, manifestos e jornais como a areia suga a água. Era insaciável. E não eram fábulas, história falsificada, religião diluída ou novelas corruptoras, mas teorias econômicas e sociais, filosofia, obras de Tolstói, Gógol e Górki (REED, 2002, p. 36).

Ao que parece, a essência do movimento era econômica. Sua base estava apoiada na tática

de tornar impossível tudo aquilo que existe de maneira independente dos indivíduos, ou seja, tudo

o que existe deve ser um resultado obtido através da relação entre os integrantes de uma

sociedade.

[Tudo] começou com o partido e com a estrutura constitucional, e isso foi ato de prudência num terreno em que a tomada do poder político foi a primeira coisa a ser feita. No entanto, esse ato serviu apenas de pano de fundo para o tema principal do esquema [revolucionário], que era baseado em uma economia moderna em grande escala. A maioria das avaliações dos resultados da revolução, feitas dentro e fora da Rússia, tendiam a concentrar a atenção nas realizações econômicas.70

Entretanto, no momento em que a revolução passou a ser uma discussão ideológica, o

modo de produção proposto por ela foi visto mundialmente como um regime totalitário. Antes de

17, a Rússia dispunha de um pluralismo partidário e, após a revolução, “os partidos burgueses e

socialistas moderados foram proscritos. Depois de breve parceria com os “Socialistas

Revolucionários” (SR), os bolcheviques passaram a dirigir o país através de um regime

70 HOOKHAM, Maurice. Reflections on the Russian Revolution. In. International Affairs. Vol. 43. Oxford: Blackwell Publishers, 1967, p. 651. CITAÇÃO ORIGINAL: “(…) began with the party and the constitutional structure, and this was defensible on the ground that the seizure of political power was the first act. It was, however, a very short act and served as no more than a curtain- raiser for the main theme of the play, which has been the establishment of a modern large-scale economy. Most of the assessments which have been made both inside and outside of Russia of the results of the revolution have tended to concentrate attention on the economic achievements”.

52

monopartidário”71. Esse centralismo democrático adotado pelos vermelhos dava liberdade às

discussões políticas, porém, ao ser tomada uma decisão, todos os membros do partido deveriam

acatá-la sem objeção. Logo, o pensamento socializado de outrora foi se transformando numa

referência tirana. A disputa pelo poder já chamava atenção para o fato de que a verdadeira

democracia ainda era um sonho para os russos, como aponta S. Kirov, coordenador do Soviete em

Leningrado (São Petersburgo).

É essencial que falemos para toda a região, de modo que a democracia seja unificada, que paremos de nos estraçalhar. Se não fizermos isso, virá a desagregação. (...) Antes de determinar a autoridade dos Comissários do Conselho do Povo, devemos estabelecer a maneira de criar uma ordem que, acima de tudo, responderá aos interesses da democracia. Só há uma maneira de fazer isso – consolidar o regime do povo.72

O socialismo não conseguiu ultrapassar a esfera utópica onde o desejo era o de uma

sociedade livre construída por homens dotados da capacidade de gerir as próprias vidas, sem que

houvesse a necessidade de orientação superior. Toda a sociabilidade que Marx propunha ficou

prejudicada no território russo, já que o Estado foi preservado juntamente com a incômoda

manutenção de uma teia burocrática que interferiu negativamente nas relações político-sociais.

Toda essa colocação histórica teve por objetivo penetrar nas questões acerca da memória

de Górki sobre um período tão influente em sua obra. Considero que a rememoração das

impressões vividas, levadas para um tempo à frente, através do exercício de viver, nos mostra o

traço indestrutível da experiência. Para esse fim, foram priorizadas as cartas, boas “evidências”

de que estamos ouvindo as vozes de homens que se tornaram personagens da história. Os relatos

funcionam como um canal de interseção entre a verdade e a literatura, pois expressam

“claramente o temor de uma revolução social, dado o embrutecimento em que vivia a população

pobre, e que aparece com tanta veemência na trilogia”73.

Nesse início de tese, considero que o passado é fundamental para a condução de uma ação

no tempo e na literatura de Maksim Górki. Os fragmentos das cartas são, como afirma Sophia

Angelides,“amostras eloquentes de uma personalidade exuberante e inquieta. Ademais, elas

revelam uma atitude fundamental que marcaria a vida e a obra de Górki: a preocupação em atuar

71 SEGRILLO, Angelo. Rússia e Brasil em transformação. Uma breve história dos partidos russos e brasileiros na democratização. Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2005, p. 18. 72 KNIGHT, Amy. Quem matou Kirov? O maior mistério do Kremlin. Trad. Sergio Moraes Rego. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 89. 73 GÓRKI. Maksim. Minhas universidades. Trad Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 261.

53

sobre a realidade social”74. Uma parcela do caráter epistolar foi escolhida propositalmente, pois

as cartas de Górki foram um objeto de fruição estética que conduziram a forma ao discurso e

contribuiram para compor as múltiplas facetas do autor, “algumas de valor meramente

documental, outras de valor estético ou estético-documental” (ANGELIDES, 2001, p. 25).

A seguir, passemos a análise da literatura que renasce do caos e como as peculiaridades

da literatura gorkiana se inserem dentro de um preâmbulo de produção de arte em tempos de

guerra civil.

1.2 O LAÇO E O ABRAÇO – A PERSPCECTIVA LITERÁRIA CIRCUNSCRITA NA

HISTÓRIA.

A ciência é a inteligência do mundo; a arte, o seu coração. (GÓRKI)

O LAÇO E O ABRAÇO

Meu Deus! Como é engraçado! Eu nunca tinha reparado como é curioso um laço... uma fita dando voltas. Enrosca-se, mas não se embola, vira, revira, circula e pronto: está dado o laço. É assim que é o abraço: coração com coração,

tudo isso cercado de braço (...) Mario Quintana

Em meu subtítulo, remeto-me a Mário Quintana, juntamente com Górki, unicamente por

acreditar que a literatura e a história se questionam e dialogam de forma a nos propiciar

momentos únicos de expressão artística.

Quando o iminente quadro revolucionário se instalou na Rússia, grandes questões

poderiam ser indagadas: O que seria da arte? - A arte sobreviveria às implacáveis artimanhas do

tempo? Seria possível uma literatura proletária?

Livre da obrigação de encaixar autores em paradigmas pré-estabelecidos, penso que o

interessante na dissolução de fronteiras entre o século XIX e XX, é entender que há uma

74 ANGELIDES, Sophia. Carta e Literatura. Correspondências entre Tchekhov e Górki. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 14.

54

dicotomia entre o ciclo literário tradicional baseado na revolta liberal dezembrista,75 de padrões

iluministas franceses e um novo ciclo que fraturou os modelos realistas naturalistas russos

mundialmente conhecidos. No início do século XX, a violência tinha tomado às ruas e as

discussões sobre um ambicionado novo regime eram cada vez mais presentes devido ao poder

articulador da intelligentsia russa. Não é difícil de entender, portanto, que esses conflitos

políticos rapidamente se infiltrariam também no campo literário, permitindo o entrecruzamento

mais direto do real com o ficcional.

Entre o fim do século XIX e princípio do XX, a literatura russa passou por mudanças. O

tempo dos grandes romances havia passado. A prosa ficou mais curta, os contos e a poesia

dominaram a nova produção artística que despontava como o momento decisivo após a “Era de

Ouro”, se contrapondo ao realismo naturalismo. Chegava o modernismo, a “Era de Prata” da

literatura e da cultura russas. Era a época do pensamento sombrio e do reconhecimento da

realidade através das sensações de fracasso e decadência. “Embora tivesse como ponto de partida

o simbolismo francês, este movimento, na Rússia, teve características próprias (...) Se em poesia

ele marcou o início da [Era] de Prata (...), ele foi também importante na ficção, no ensaio, nos

estudos literários, no teatro, nas artes plásticas e na filosofia”76. Eram tendência, os textos escritos

em tom de desespero, cínicos e negativos.

Com amargura, os discursos retratavam certa misantropia escondida entre as linhas.

Poetas como Aleksandr Blok e Anna Akhmátova foram alguns dos representantes da poesia dessa

época, assim como Leonid Andrêiev, Ivan Búnin, Górki77, na prosa e no teatro.

75 Dezembrismo ou decabrismo. Movimento revoltoso deflagrado na Rússia em 1825. Nesse ano, o Império Russo era reconhecido como a nação mais forte do mundo, mas esse foi apenas o início de um século de revoltas. No exato dia em que subiu ao trono, no dia da chacina, em 14 de dezembro de 1825, o tsar Nikolai I assumiu a postura anti-revolução. Os rebeldes ou dezembristas haviam ameaçado o poder imperial e receberam por isso uma amostra do poder absoluto. Na tentativa de abafar o levante, Nikolai exilou os rebeldes e enforcou seus líderes. Com Nikolai I, a crença no poder absoluto se tornou o credo oficial do povo. Para ele, a democracia não estava em discussão. Esses assuntos eram discutidos secretamente em guetos. A aristocracia intelectual russa ainda buscava mudanças e, junto com outros jovens, que comungavam das ideias iluministas, surgiu Aleksandr Serguêievitch Púchkin (1799-1837), poeta da “Era de Ouro”, que teve sua carreira construída na juventude e que estabeleceu uma linguagem literária moderna à Rússia, libertando-a das convenções impostas pelas demais potências européias, em especial a francesa. Púchkin criou uma literatura unicamente russa em forma e conteúdo e foi o tido como um dos articuladores da revolta dezembrista. 76 SCHNAIDERMAN, Boris. Sobre a tradução de um poema de Aleksandr Blok. In: Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005, p. 299. 77 Górki também escreveu para o teatro e tem famosos textos dramáticos como No fundo e Pequenos burgueses, entre outros.

55

A história cultural costuma retratar a virada do século XIX para o XX na Rússia como uma época transicional e crepuscular, uma espécie de hiato entre a crise daquela sociedade agrária e patriarcal, feita de tortuosidades inapreensíveis, e, como diria certo personagem de Isaac Bábel, a “curva misteriosa da linha reta de Lênin”. Se de fato há sensação de instabilidade e um ambiente de expectativa e de fermentação naquele período, espremido pela força titânica dos romances de Dostoiévski, Gógol, Turguêniev e Tolstói e pela voracidade das vanguardas, seria enganoso defini-lo como mortiço. Essa caracterização não dá conta da extrema variedade e da riqueza das propostas estéticas - as múltiplas correntes da “era de prata” - e políticas daqueles anos.78

Quando Górki publica os dois primeiros volumes da trilogia, corria o período pré-

revolucionário da história da cultura russa. Com sua temática focada na crítica ao espírito

pequeno-burguês e à destruição da personalidade, Górki interage com as características

simbolistas, considerando que o homem perde a sua dimensão quando se fecha em si mesmo,

contentando-se apenas com um sentido alienador. Seus textos voltavam-se para a valorização das

emoções e para a subjetividade de cada indivíduo. Górki se preocupou com os problemas da

coletividade, com o destino social e com as questões morais derivados de uma época revoltosa.

Em Infância e Ganhando o meu pão, por exemplo, buscou-se manter em foco as reflexões

existenciais induzidas pelos traumas das crises vividas. Com essa curva para si, vimos um

Górki [dedicado] com muita minúcia à descrição e à análise das forças que ele considerava contrárias à instauração de uma vida mais decente. Às vezes, não se continha, vociferava contra a injustiça, arrebatava-se e interrompia uma narração fluente. Isto lhe foi apontado pela crítica, e é preciso reconhecer que fez um esforço tremendo para sobrepujar este defeito. Em muitas ocasiões, porém, o fluir natural da existência sobrepunha-se nele ao homem apaixonado, e a própria veemência surgia num contexto mais consentâneo com a realização estética.79

A época anterior à tomada do poder pelos bolcheviques foi o começo de uma revolução,

que não era ainda fato consumado, mas que teve influência direta na guerra civil russa deixando

marcas profundas no Estado Soviético em evolução. A guerra militarizou a cultura e os seus

líderes tiveram que fazer uso da coerção política, da administração centralizada e do

autoritarismo como meios de sobrevivência, mesmo a contragosto de Lênin que, desde o início

do ano de 17, “participou ativa e legalmente da vida política [russa], [estando presente em]

intervenções no congresso dos deputados operários, camponeses e soldados, em numerosos

78 GOMIDE, Bruno. Krupin em português. In: Revista USP (Online). São Paulo, n. 72, 2006-2007, p. 199-200. 79 SCHAIDERMAN, Boris. Prefácio. In: GÓRKI, M. Pequenos Burgueses. Editora Brasiliense, 1965.

56

encontros e conferências, sem apostar em demasia na tomada violenta do poder” 80.

Comportamentos que marcaram a linha seguida pelo partido após a revolução. Para Geroges

Nivat, “antes da guerra mundial e da revolução, na chamada “era de prata”, a Rússia viveu a

experiência de uma democracia relativa e, sobretudo, de um extraordinário desenvolvimento

cultural”81.

Não devemos entender que Outubro provocou um cisma literário na Rússia, porém, ela

pôs em xeque a posição da literatura como funcionalidade artística. A literatura passou a ser

cobrada mediante a um papel político-social que deveria desempenhar. A intelligentsia russa

promoveu posicionamentos transformadores na sociedade. Ao longo do século XIX, “o sonho era

a revolução, porém a geração que foi obrigada a vivenciá-la tinha abandonado o positivismo de

seus antepassados e havia se convertido ao idealismo filosófico” (NIVAT, 2007, p. 71).

Para Vassarion Bielínski (1811-1848), considerado o primeiro e o mais importante crítico

russo, a literatura não era somente uma estética para o prazer de poucos, ela estava acoplada à

vida, que contém a verdade. Para ele, essa verdade não implicava sempre em uma reprodução,

mas em uma postura diante da vida assumida pelos autores. O escritor romântico que era

“inspiração” e “transpiração” perdeu o espaço para o autor funcional que possuía a clareza sobre

os problemas sociais de sua época. Bielínski defendia a difusão de ideias através da literatura,

afirmando que “o homem vive em sociedade e é (...) feito por essa sociedade”82. Na Rússia, os

tempos em que a crítica se impunha apenas com insight havia acabado e, aos poucos, foi

entendido que só atingindo o coração das obras seria possível encontrar a ponte para a sua

compreensão. Uma vez arrefecidos os ânimos entusiasmados com a nova corrente de pensamento

crítico livre, de princípios iluministas, a Real’naia Krítika assumiu uma postura menos ilusória,

idealizada na imparcialidade do julgamento.

A partir desse pensamento, podemos até achar que o crítico era a favor de uma arte

explicativa. Visão incorreta, pois ele condenava a “arte pelo didatismo”83. Essa função utilitária

da literatura foi uma forma de pensar abraçada pelos sucessores de Bielínski, cada um a seu

modo, como N. Tchernichévski e N. Dobroliúbov, sendo o primeiro considerado entusiasta da

80 VAKSBERG, Arcadi. A longa caminhada para a liderança. Revista História Viva. Um tempo de utopia, sonho e esperança. Revolução Russa. São Paulo: Duetto, 2009, p. 50. 81 NIVAT, Georges. A era de prata. Revista História Viva. 90 anos da Revolução Russa. A utopia é vermelha. São Paulo: Duetto, 2007, p. 70. 82 BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 188. 83 WELLEK, René. A crítica russa. In: História da crítica moderna. São Paulo: Edusp, 1971, p. 254.

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critica as generalizações dos tipos literários (não verdadeiros) após 1850. Já Dobrolíubov,

“entendia a luta de classes como uma luta do povo trabalhador representando as necessidades

naturais e ideais da humanidade contra os inúteis, os encostados, os desviantes da norma natural” 84.

Na geração seguinte, uma das obras mais enfáticas em fundir valores ideológicos e

literatura foi o romance O que fazer? (Chto Dêlat?), de Tchernichévski. Apesar de não acreditar

na força social da arte, o romance descreve a figura do “novo homem”, ser indivisível de valor

absoluto, um ser possível que, abnegado, defende as suas ideologias, misturando a vida particular

com a social. Seu personagem Rakhmitov era um homem capaz suportar privações em benefício

da humanidade, imagem que foi projetada em muitos jovens que já viviam à luz de novos

tempos, pois “não se desperta o espírito da nação [apenas] através de livros, periódicos ou

jornais, mas por meio de fatos” (SOARES, 2008, p. 5)85.

Não havia mais o receio de encarar a subjetividade das obras, pois ela continha um valor

de texto entendido como forma de conhecimento. Era tarefa fazer com que esse “conhecimento”

fosse transmitido por diversas vozes, sem a imposição de pontos de vista aos homens, que

começavam a se beneficiar da difusão de um pensamento crítico, cujo “aparato analítico [voltava-

se] para as condições atuais da maioria da população do interior, dedicando-se à pesquisa e coleta

de dados sobre os explorados da sociedade russa, procurando conhecer de perto a realidade de

seu povo” (SOARES, 2008, p. 1).

Tchernichévski extrapola os limites da educação russa ao não acreditar na instituição do

casamento e ao questionar a submissão das mulheres que, para ele, também tinham o poder para

decidir. Resumindo, ele

[afirmou] o vínculo indissolúvel entre a compreensão da realidade e a ação sobre ela, percebe a dialética entre a capacidade para captar as demandas do momento e a atuação do indivíduo na sociedade. Rejeita a pretensão dos intelectuais liberais a interpretar as demandas do seu tempo por meio da sua poética e considera que apenas através da participação política na sociedade civil tais demandas podem ser percebidas e, mais ainda, modificadas86.

84 SOARES, Sonia Branco. Real’naia. Krítika: Literatura e Revolução. Revista Garrafa, 2008, p. 5. Acessado em abril de 2011. 85 Palavras ditas por Tchernichévski e registradas no livro Pólnoie sobrânie sotchiniênii, Moscou, ed V. Kirpotin, 1939-51, vol 4, p. 765. 86 SOARES, Sonia Branco. Um acerto de contas: a poética idealista de Turguêniev. Revista Garrafa-UFRJ, n. 25, p. 7.

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O que fazer?, para Joseph Frank, era a “bíblia do radicalismo russo”87. Segundo o autor, o

comportamento literário efervescente arquitetou

o ideal do revolucionário disciplinado, dedicado friamente utilitário e mesmo cruel consigo mesmo e com os outros, mas inflamado por um amor à humanidade que ele reprime duramente com medo de enfraquecer sua decisão; o líder dotado de vontade de ferro, que sacrifica sua vida privada em favor da Revolução e que já que vê a si mesmo apenas como um instrumento, sente-se livre para usar os outros da mesma maneira – em resumo, a mentalidade bolchevique, para a qual é impossível encontrar qualquer fonte no socialismo europeu, sai diretamente das páginas de O que fazer? (FRANK, 1992, p. 216)

O ideal revolucionário deu vazão para que a cultura e os estudos encontrassem o povo,

estabelecendo a possibilidade de ter uma conduta mais participativa e menos contemplativa. Com

a conscientização do povo, vieram os anseios de uma nova sociedade que seria edificada com a

colaboração de uma “nova arte”. Acreditando que a literatura era uma poderosa arma de

transformação, o crítico Nikolai Aleksândrovitch Dobroliúbov escreve o artigo Um raio de luz no

reino das trevas, publicado pela primeira vez no periódico O Contemporâneo. Esse artigo merece

destaque no que diz respeito ao fazer poético que surgia. O crítico fez uma espécie de pacto com

a literatura, num “materialismo dialético”88 para que terceiros exigissem de si mesmos, coerência

entre o mundo que retratavam e as concessões éticas indispensáveis para a firme sustentação de

opinião. Para ele, “a principal tarefa da crítica é analisar os fenômenos da realidade presentes na

obra, e as maiores obras são as que catalisam o progresso social ao tempo em que conscientizam

a sociedade dos processos em curso, permitindo as mudanças” (SOARES, 2007, p. 5). São dele

as palavras:

Se olharmos atentamente para a disposição da crítica como um juízo sobre os autores, alcançaremos aquela mesma compreensão de que comungam nossos fidalgos e fidalgas provincianos sobre a palavra “crítica”, essa gente de quem costumavam tão espirituosamente fazer mofar os nossos romancistas. Ainda hoje é possível encontrar famílias desse tipo, que com algum temor olham para o escritor, já que este “poderá escrever sobre elas alguma crítica”. Infelizes provincianos que, presos a tal pensamento, apresentam-se como réus de um lamentável espetáculo, tornando-se reféns do estilo da pena do literato. Olha-no nos olhos, confundem-se, desculpam-se, fazem ressalvas, enquanto esperam, ansiosos, a execução ou a complacência. Mas é necessário dizer que tais ingênuas pessoas começam a desaparecer até mesmo nos mais recônditos lugarejos. A máxima “ousar ter sua opinião” deixa de ser apanágio apenas das categorias ou posição dos notáveis e faz-se acessível a todos e a cada um, ao mesmo tempo em que a vida privada surge com maior solidez e autonomia menos vacilante diante de cada juízo

87 FRANK, Joseph. Pelo prisma russo. São Paulo: Edusp, 1992, p. 97. 88 SOARES, Sonia Branco. Crítica e Teatro na Rússia do Século XIX: a polêmica em torno da peça A Tempestade. Revista Garrafa, 2007, p. 5. Acessado em março de 2011.

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construído. Agora já manifestam sua opinião simplesmente porque acham melhor declará-la ao invés de ocultá-la; porque consideram proveitosa a troca de idéias, reconhecendo nelas a manifestação de seu olhar e das suas demandas; por fim, acreditam ser obrigação de cada um participar do movimento geral, transmitindo suas observações e reflexões na medida do possível. Já vai longe daqui o papel do juiz (...).89

A crítica, no entanto, foi levada ao extremo na concepção de Trótski. Salvaguardadas as

proporções de ele ter sido por um tempo membro do alto escalão do partido de Lênin, é possível

compreender que a construção dessa nova arte implicaria na pulverização de todo um passado, já

que a produção literária anterior à revolução foi considerada burguesa, portanto, maléfica. Sua

crítica era dura e se baseava na crença em que a literatura devia fazer o leitor pensar, sendo fiel à

cartilha do partido. Sua opinião era categórica ao afirmar que

a velha literatura e a velha cultura da Rússia eram a expressão da nobreza e da burocracia. Repousavam sobre o camponês. O aristocrata cheio de si e o nobre arrependido imprimiram o seu selo sobre o período mais importante da literatura russa. Mais tarde apareceu o intelectual plebeu, apoiado sobre o camponês e o burguês, e ele também escreveu o seu capítulo na história da literatura russa”90.

É ridículo, absurdo e mesmo estúpido, ao mais alto grau, pretender que a arte permaneça indiferente às convulsões da época atual. Os homens preparam os acontecimentos, realizam-nos, sofrem os efeitos e se modificam sob o impacto de suas reações. A arte, direta ou indiretamente, reflete a vida dos homens que fazem ou vivem os acontecimentos. Isso é verdadeiro para todas as artes, da mais monumental a mais íntima (TROTSKI, 1969, p. 24).

E ainda preconiza.

Por mais significativa (a literatura) que seja, em geral, a contribuição de certos poetas operários, sua chamada arte proletária não fez mais do que atravessar um período de aprendizagem. Ela espalha largamente os elementos da cultura artística, ajuda a nova classe a assimilar as obras antigas, ainda que muito superficialmente. Constitui, assim, uma das concorrentes que conduzem à arte socialista do futuro (TROTSKI, 1969, p. 25).

Em 1934, no I Congresso de Escritores Soviéticos91, foi proposta a criação de uma nova

arte que delegaria ao artista o dever de conceder “um retrato verídico, histórico-concreto da

89 SOARES, Sonia Branco. Um raio de luz no reino das trevas. In. Pensamento e crítica na Rússia oitocentista. Preâmbulos de uma revolução, 2009. Dissertação (mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ. Rio de Janeiro. Orientador: Eduardo de Faria Coutinho. 90 TRÓTSKI, L. Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969, p. 22. 91 Esse congresso foi o resultado da criação da “União dos Escritores Soviéticos”, proposta por Stálin em 1932. Coube a Górki a direção dessa sociedade, que ambicionava uma “revolução ideológica”.

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realidade no seu desenvolvimento revolucionário, levando em conta o problema da transformação

ideológica e da educação dos trabalhadores no espírito do socialismo”92. Na abertura desse

encontro, Górki diz que se deve “escolher o trabalho como personagem central dos livros, [pois]

o homem tornando o trabalho mais aprazível, mais produtivo, [o eleva] à condição de arte”93.

Portanto, era papel dessa nova literatura fazer a concretagem do futuro histórico soviético por

meio de operários-heróis. Assim, nasce o realismo socialista e, para manter essa empreitada,

nenhum nome seria mais sugestivo do que o de Górki, especialmente após a publicação do

romance A mãe, de 1906, que se tornou o paradigma a ser seguido por quem desejasse trilhar os

caminhos dessa nova visão realista.

No entanto, rotular Górki como o fundador do realismo socialista é perigoso, dado que o

regime soviético só se instalou com certa estabilidade décadas depois da publicação desse

romance “conduite”. Górki já estava no fim da vida quando esse projeto artístico ganhou forma e,

por isso, acredito que sua trajetória, seus ideais e sua militância, condizentes com a composição

de uma restauração política, tenham atraído Stálin, afinal era interessante ter um escritor com a

credibilidade e a aceitação popular de Górki, encabeçando a nova proposta. Górki era visto como

“uma espécie de figura cult, [cuja] obra cresceu cada vez mais através da crítica à injustiça que

ele percebia como um problema social e não existencial. Sua escrita documentou tanto as

características específicas da injustiça humana como transmitiu uma mensagem de esperança” 94

e, com a apreciação de Stálin, passa a ser visto como o escritor predileto de um ditador que, a

partir da década de 30, governou a Rússia pela lógica de aceleração do ritmo da industrialização e

do progresso.

Como o país não recebia investimentos externos, a produção de mão-de-obra

especializada própria era obrigatória. A saída foi incentivar a coletivização da agricultura,

“reunindo os camponeses em cooperativas controladas pelo Estado. Com isso, seria mais fácil

“forçar uma transferência de renda da agricultura para a indústria”95. Para manter as ambições

92 EAGLETON. Terry. Marxismo e crítica literária. Porto: Afrontamento, 1976, p. 54. 93 MOI, Izabela. Contemporâneos refletem a democracia. Revista Entre Livros. A Rússia redescoberta. São Paulo: Duetto, 2005, p. 50. 94 MOSER. Charles. The Cambridge History of Russian Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 397. CITAÇÃO ORIGINAL: “Gorky became something of a cult figure, and his work grew increasingly critical of injustice, which he perceived as social problem, not an existential one which he perceived as a social problem, not an existential one. His writing both documented the specific features of human injustice and conveyed a message of hope”. 95 SEGRILLO, Angelo. Os Russos. São Paulo: Contexto, 2012, p. 197.

61

industriais era preciso investir na educação da massa, que passou a ser atendida por novas

instituições de ensino e pelas “faculdades vermelhas”96. Entretanto, os primeiros anos do governo

stalinista não desenhou somente a prosperidade. As perseguições políticas escureceram a

liberdade de expressão antes conquistada. Durante a década de 20, foram calados os partidos

adversários e, na de 30, “a repressão se voltou com força contra os próprios “antigos”

bolcheviques, ex-colegas de Lênin e Stálin na tomada do poder em 1917” (SEGRILLO, 2012, p.

201). A partir daí, entre 1935 e 1938, seguiu-se à época dos grandes expurgos, na qual os

acusados de conspiração eram julgados e condenados ao exílio ou à execução. Havia muito poder

sem controle e, como consequência, a liderança novamente se inclinou ao autoritarismo.

Em referência à arte de uma Rússia então moderna, uma literatura teria que surgir de

forma “autêntica”. Seria a literatura do povo para o povo. Segundo essa visão, a literatura

proletária veio para se integrar mais plenamente na sociedade e para servir à comunidade. Para

ser original, ela precisou ser também supervalorizada. Com isso, o novo regime apostou numa

vertente mobilizadora e a arte passou a ser uma forma “justa” de transmitir a experiência da

revolução. Os novos autores eram trabalhadores-escritores que lidavam com pessoas e não com

abstrações. Eram homens capazes de captar o verdadeiro valor da revolução e, com isso

mantiveram seus textos em comunhão com a ciência e com o movimento de classes. Com esse

lado de coletivização das conquistas da Rússia, a estética literária soviética se voltou para o

idealismo utópico e não considerava tanto a tradição como aconteceu até os anos 20. A literatura

perdia parte de sua autonomia para refletir somente a realidade nua e crua da vida operária e o

otimismo eufórico por um mundo melhor.

Entretanto, arte proletária criada no modelo ambicionado por Stálin, não era cara a Lênin

e causou preocupações gerais quanto a sua possível hegemonia. Trótski afirmou que a cultura

proletária não teria tempo de se solidificar, pois a ditadura do proletariado era uma fase

transitória de ligação ao socialismo. Na Rússia, já havia uma cultura maturada ao longo dos

séculos que preservou a literatura dinâmica, crítica e participativa. A literatura proletária, por sua

vez, era “perigosa, pois [previu] uma futura cultura fictícia dentro de um rigoroso compasso do

presente” 97.

96 As “Faculdades Vermelhas” eram instituições de todos os níveis educacionais construídas nos locais de trabalho para facilitar o ingresso de alunos proletários. 97 SERGE, Victor. Is a Proletarian Literature Possible? Yale French Studies. Literature and Revolution. n. 39, p. 145. Artigo consultado no site JSTOR, em julho de 2012. Frase de Trótski.

62

Górki estava diante desse quadro e via mais uma vez a Rússia pagar o alto preço das

revoluções: a violência desmedida. Não podemos afirmar que o escritor tenha apoiado tudo o que

aconteceu, ainda mais sendo tão sensível ao humano, mas podemos entender que a força da

conjuntura pode tê-lo feito optar por um recuo para continuar escrevendo. Assim, esse

comportamento talvez tenha deixado dúvidas a respeito do objetivo da literatura gorkiana.

Se a relação de Górki com Lênin havia sido obtusa, com Stálin foi ainda mais complexa.

Diante de uma propaganda soviética estranhamente serena e idílica (pelo menos teoricamente), “o

escritor foi acusado muitas vezes de apoiar o tirano, [embora tivesse] uma visão negativa da

ascensão de Stálin ao poder e de uma mudança [do regime] para uma ditadura planejada” 98.

Mesmo ameaçado, Górki não se manteve omisso99, porém, muitas vezes teve que ser discreto

diante da onipresença da perseguição stalinista. Mesmo assim, “ele não foi capaz de [manter]

contatos amistosos com seu compatriota. Durante os dias da Revolução de Outubro, Stálin

condenou severamente os discursos de Górki publicados no jornal Nova Vida, alertando que o

escritor poderia acabar “nos arquivos da história” caso não se afastasse dos “medrosos

neurastênicos” que o rodeavam (SPIRIDONOVA, 1995, p. 414).

Muitas críticas foram direcionadas para Górki. Até mesmo Trótski desacreditou de sua

literatura, chamando-o de “leitor de salmos”. Enfurecido, esbravejou em um de seus discursos:

“Que sucedeu, contudo, com os talentos e as idéias? Não se exportam mais esses valores

imponderáveis em tal quantidade que se podia temer pela sorte da cultura russa, como fez

notadamente o amável salmista, Máximo Górki? (...) Por que não saiu nada de tudo isso? –

Porque não se pode trapacear a história ou a verdadeira cultura (que não é aquela do cantor de

salmos)” (TROTSKI, 1969, p. 32).

Polêmicas e rusgas à parte, Górki atribuiu a essa nova forma de arte um evidente

sentimento de coletividade. Sentiu-se parte integrante de uma massa e não mais uma única voz

CITAÇÃO ORIGINAL: “Proletarian literature” is dangerous, since it “anticipates a fictitious future culture within the strict compass of the present”. 98 SPIRIDONOVA, Lidiia. Gorky and Stalin. (According to new materials from M. Gorky´s archive). Oxford: Blackwell Publishing, 1995, p. 414. Artigo acessado pelo site JSTOR em julho de 2012. CITAÇÃO ORIGINAL: “Nevertheless, he was unable to put his friendly contacts with his "fellow coun-tryman" in order. In the days of the October Revolution, Stalin severely condemned Gorky's public speeches in the newspaper Novaia Zhizn', warning that the writer might end up in “history's archive" if he did not break with the “frightened neuras-thenics” surrounding him”. 99 Vale lembrar que Górki faleceu pouco depois de se recusar a fazer a biografia de Stálin. Segundo alguns historiadores, o escritor poderia ter morrido em decorrência de um envenenamento encomendado, causado por excesso de remédios aplicados pelos médicos que o tratavam.

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contribuinte para a profusão do valor da coletivização. Talento reconhecido inclusive por Trótski,

que viu Górki passar por várias fases e mesmo assim permaneceu fiel a si mesmo.

Em todas as suas fases, Górki permaneceu fiel a si mesmo. Fiel a sua própria, muito rica, simples e complexa natureza. A vemos sem a intimidade da música e, sem exagero de elogios, mas com respeito e gratidão: esse grande escritor e um grande homem que nunca entrou na história do povo, criando novos caminhos na história. L. Trótski. 9 de julho de 1936 100.

Ainda em 1934, Górki discorre acerca da diferença entre a literatura do século XIX e a do

XX, duas épocas que ele vivenciou. Discurso que virou um artigo publicado nos anais do

congresso.

O tema básico e mais importante da literatura do século XIX era a consciência pessimista que a personalidade adquiria da precariedade de sua vida social. Schopenhauer, Hartmann, Leopardi, Stirner e muitos outros filósofos fortaleciam essa consciência com sua prédica da insensatez cósmica da vida, prédica que tinha por base, naturalmente, essa mesma consciência da impotência social, da solidão social do indivíduo. (...) O século XIX é, preferentemente, o século da prédica do pessimismo. No século XX, essa prédica degenerou, logicamente, em propaganda do cinismo social, em uma negação absoluta e categórica do “humanismo”, do que com tanta manha faziam ostentação e até se orgulhavam os burgueses de todos os países. (...) O realismo socialista afirma a vida como ação, como criação, cuja finalidade é o desenvolvimento ininterrupto das mais valiosas faculdades e longevidade, em louvor da grande sorte de viver na terra, que ele, em correspondência com o incessante crescimento de suas necessidades, quer cultivar toda como formosa morada da humanidade, unida em uma só família (...) 101.

100CITAÇÃO ORIGINAL: “Во всех своих фазах Горький оставался верен себе, своей собственной, очень богатой, простой и вместе сложной натуре. Мы провожаем его без нот интимности и без преувеличенных похвал, но с уважением и благодарностью: этот большой писатель и большой человек навсегда вошел в историю народа, прокладывающего новые исторические пути. Л. Троцкий. 9-ое июля 1936 г.” Artigo retirado do site http://maximGorkiy.narod.ru. Acessado em fevereiro de 2010. 101 PARKHOMENKO, Mikhail. El realismo socialista en literatura y arte- Artículos. Trad. José Vento. Moscou, s/d, p. 40-53. CITAÇÃO ORIGINAL: “El tema básico y más importante de la literatura del siglo XIX era la precariedad de su vida social. Schopenhauer, Hartmann, Leopardi, Stirner y otros muchos filósofos fortalecían esa conciencia com su prédica de la insensatez cósmica de la vida, prédica que tênia por base, naturalmente esa misma conciencia de la impotência social, de la soledad social del individuo. (...) Ele siglo XIX es, preferentemente, el siglo de la prédica del pesimismo. En el siglo XX esa prédica degenero, logicamente, em propaganda del cinismo social, em uma negación absoluta y categórica del “humanismo”, del que com tanta maña hacín ostetacíon y hasta se enorgullecían los mesócratas de todos los países. (...) El realismo socialista afirma la vida como acción, como creación, cuya finalidad es el desarollo ininterrumpido de las más valiosas facultades individuales del hombre, em aras de su Victoria sobre las fuerzas de la naturaleza, em aras de su salud y longevidad, em aras de la gran dicha de vivir em la tierra, que él, em correspondência com el incessante crecimiento de sus necesidades, quiere cultivar toda como hermosa morada de la humanidad, unida em uma sola família (...)”.

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Nesse trecho, é perceptível a posição de Górki em considerar que a tendência dessa nova

arte era a constante rememoração das lembranças e de tudo o que dela foi filtrado para que o

nacional fosse enaltecido. Entretanto, devemos saber que é impossível lembrar de algo que seja

imposto. A reportação às memórias é livre, mas pode se tornar movediça, já que é fácil cairmos

na armadilha de achar que recordamos o passado tal qual como ele foi. Porém, a medida em que

o processo de socialização da literatura russa restaurava a apreensão de um mundo pré-existente,

o mundo do povo passava a ser o mundo de Górki também. Comparemos uma passagem do

romance A mãe com o artigo do escritor mencionado acima.

E a mãe não desprendia os olhos dos juízes e viu que eles estavam mais exaltados, conversando entre si coisas incompreensíveis. O som de seu diálogo, frio e escorregadio, tocava o rosto dela e provocava tremor nas bochechas, deixando um gosto repelente na boca. Por um motivo qualquer, a mãe achou que todos falavam do corpo de seu filho e de seus camaradas, dos músculos e membros dos jovens, repletos de sangue quente, de força viva. Esse corpo despertava neles a inveja malévola dos mendigos, a avidez pegajosa dos exauridos e doentes. Eles estalavam os lábios e lamentavam aqueles corpos, aptos a trabalhar e a enriquecê-los, gozar e criar. Agora, os corpos saíam do processo rotineiro da vida, renunciando a ela, levando consigo a possibilidade de dominá-los, de utilizar e explorar sua força, de devorá-la. E, por isso, os jovens provocam nos juízes velhos a irritação vingativa e melancólica da fera enfraquecida, que vê uma presa fresca, mas já não tem mais força para abocanhá-la, já perdeu a capacidade de satisfazer-se com a força alheia, e solta rugidos doentios, uivos tristonhos, vendo que foge dela a fonte da satisfação.

Esse pensamento, brutal e estranho, adquiria forma cada vez mais luminosa, a medida em que a mãe ia examinando, com atenção, os juízes. Parecia-lhe que eles não ocultavam a voracidade exaltada e a impotente indignação dos famintos, acostumados a comer em demasia. Como a mulher e mãe, para quem o corpo do filho é sempre mais caro do que aquilo a que se chama alma, era-lhe torturante ver como aqueles olhos apagados deslizavam pelo rosto do filho, apalpavam seu peito, ombros, braços, esfregava-se contra a pele quente, como que buscando a possibilidade de incendiar e aquecer o sangue nas veias endurecidas, nos músculos gastos de homens semimortos, agora algo reanimados pela avidez e inveja da vida jovem que eles tinham de condenar e arrancar de si mesmos. Parecia-lhe que o filho sentia e estremecia sob os olhares escuros e desagradáveis. Pavel olhava para o rosto da mãe com olhos algo fatigados, repletos de tranqüila ternura. Às vezes, fazia-lhe sinal com a cabeça e sorria. “a liberdade está perto!” – dizia-lhe aquele sorriso que parecia afagar o coração materno102.

Dessa citação podemos refletir como a literatura pôde dar suporte para a formação de

opiniões sobre um fato histórico, causando impressões no imaginário coletivo de quem viveu

uma época. Para trabalhar com ela, preciso conceituar o termo de forma plural, pois o conceito de

realismo socialista dificulta que a literatura seja vista como uma arte ilustrativa. Considerando

que a literatura de Górki seja mais do que uma narrativa de acontecimentos. Ela é parte integrante

102 GÓRKI, Maksim. Pequenos Burgueses e A mãe. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 513-514.

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de uma forma privilegiada que vai além da linguagem verbal, pois fornece seus significados

formatados também em imagens.

Em A mãe, Górki compõe uma personagem extremamente atraente e cativante e, através

dela, deixa o seu “vermelho” ser não só de comunista, mas, principalmente, de paixão. De fato, a

poética do amor ocupa um lugar importantíssimo na obra gorkiana. Mas Górki não seria Górki se

fosse apenas um escritor que fizesse apologia ao amor. Suas poéticas são várias, tantas que, às

vezes, até ele é contraditório.

Claro que é ingênuo e ridículo falar de “amor” na sociedade burguesa, já que um de seus mandamentos reza: “Ama o próximo como a ti mesmo” e, portanto, sinta o amor do homem em si mesmo como o modelo principal do amor. É notório que a sociedade de classes não poderia ter sido construída, nem mesmo existiria se houvesse se atido aos mandamentos: “não roubar” e “não matar”. (PARKHOMEHKO, s/d, p. 33)103

A partir dessas palavras, podemos nos confundir diante das diferentes poéticas de Górki e

sobre o que as une. Pode ser que a ligação entre as suas poéticas venha da sinceridade dele, do

homem que ele foi. Tendo sido um autor do amor, Górki também foi um escritor político. Antes

de tudo, suas obras são acompanhadas de um repúdio cada vez maior à problemática puramente

existencial na qual a literatura russa do século XIX se baseou. Entretanto, em grande parte dela,

há um equilíbrio entre as vertentes da existência e da razão, contrabalançado pela aguda relação

entre uma realidade dolorosa e o espírito de luta para romper com a dor.

Górki não escondeu o seu apego à política e nem a Lênin, a quem devotou uma faceta até

ufanista. Para ele, Lênin representou aquilo que Victor Serge descreveu em suas memórias, como

sendo um “homem de um bloco só, dedicado inteiramente a uma única obra (...) nas horas mais

decisivas, estava unido como carne e osso aos trabalhadores da Rússia e aos proletários e

oprimidos de todos os países”104. Para ilustrar a sua admiração, Górki dedicou algumas palavras

ao estadista.

Para mim, o que havia de mais excepcionalmente grande em Lênin, era precisamente o sentimento de ódio implacável, inextinguível pelas desgraças dos homens, a sua fé espantosa nessa verdade que a infelicidade não é a base imutável da vida mas uma

103 CITAÇÃO ORIGINAL: “Claro que es ingênuo y ridículo hablar de “amor” em la literatura burguesa, uno de cuyos mandamientos reza: “Ama al prójimo como a ti mismo” y por lo tanto, sienta el amor del hombre a si mismo como el modelo principal del amor. Es notório que la sociedad de clases no habría podido constrise ni existir si se hubiera atendido a los mandamientos: “ no robar” y “no matar””. 104 SERGE, Victor. Ano I da Revolução Russa. São Paulo: Ensaio, 1993, p. 64.

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ignonímia que os homens devem e podem varrer para longe deles. Eu chamaria esse traço fundamental de seu caráter, um otimismo militante e materialista105.

Nessa espécie de manual esquerdista em que o romance A mãe se transformou, temos um

Górki com um estilo enxuto e claro, com orações curtas e firmes. O vocábulo “mãe” aparece

invariavelmente em quase todos os parágrafos, marcando a importância da personagem. Em

sequência, há muitos diálogos que imortalizam os feitos heróicos do espírito revolucionário e o

romance termina na melhor tradição otimista realista-socialista ao “implantar uma forma

satisfatória de luta”106. A experiência de escrever ficção, considerando a política e a ética,

resultou num discurso inserido no tratado de retórica do partido e numa poética alheia à

compreensão de muitos eruditos. Górki acabou se encarregando do papel de “salvo conduto” pelo

fragor da má e da boa fama que suas obras despertavam. Isso aconteceu porque ele tinha

basicamente dois alvos: uma massa que o admirava e uma ideologia que se desmantelava diante

dos olhos.

A mãe foi pouco codificado do ponto de vista formal e pouco valorizado pela crítica.

Entretanto, é relevante ver que a dimensão do texto é instrutiva e agrega as habilidades de incutir

valores e de estimular comportamentos ausentes em épocas politicamente tão cambiantes. Porém,

a convicção no futuro traduziu atitudes individuais arrematadas em ficção.

As crianças seguem em paz! Eis o que compreendo: que as crianças avançam pacificamente, por toda a terra, todos, de todas as direções, para a mesma meta! Os melhores corações, todos os homens honestos, avançam implacavelmente contra o mal, avançam e esmagam a mentira com os pés fortes. Os jovens, os saudáveis, oferecem toda sua força em favor da mesma coisa: justiça! Avançam para a vitória de todo o sofrimento humano, para a extinção da desgraça de todo o mundo, avançam para vencer a monstruosidade, e eles hão de vencer! Um deles dizia que acenderemos um novo sol, e eles o farão! Uniremos todos os corações partidos num só, e o farão! (GORKI, 1979, p. 529)

Nessa demonstração de fé, o amor de Górki pela Rússia já daria um romance. A esperança

na solidificação de um novo regime e na representação legítima dos ideais humanistas foi aos

poucos sendo substituída por uma atitude mais objetiva, mas nem por isso menos sincera e

interessada. Para ele, construir imagens do real não foi fácil e para nós, leitores, decodificá-las é 105 GÓRKI, Máximo. Lenine. Lisboa: Edições sociais, s/d, p. 122-123. 106 SOARES, Maria Aparecida Botelho. Análise sociológica d’ O Cerejal, de Tchékhov. In: Anais: I Encontro Interdisciplinar de Letras. Rio de Janeiro: UFRJ, 1983, p. 249.

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ainda mais difícil. O desafio é entender que as ideologias muitas vezes impõem suas visões de

mundo e que por isso mesmo devemos fugir do estereótipo sobre a revolução russa e da

participação de Górki como o fundador do realismo socialista, não raro utilizados. Algumas

palavras de Ernst Neizvêstni resumem essa discussão.

Nesse reino da burocracia, onde o burocrata se tornou um poeta e o poeta um burocrata (...) se vivia no mundo do realismo socialista, no mundo da propaganda criada por ele e que ele declarou realidade. De fato, as pessoas viviam no mundo fantástico do realismo “socialista”, onde não era mais possível separar o fato da ficção, a informação da desinformação. A ideologia negava que algum fenômeno pudesse ser apenas “humano”, inclusive o sentido das palavras: não poderia haver simplesmente uma única realidade e muito menos um realismo. A realidade podia ser ou burguesa ou socialista tanto para as autoridades superiores como para os criadores do mundo do realismo socialista. O “real” era o que havia sido dito pelo partido107.

Reinventar a vida e não apenas interpretá-la é o que se propõe. O ardil ficcional permitiu a

Górki o escrutínio de seu interior pela exposição autobiográfica de suas ações, sentimentos e

conflitos, fazendo de sua vida um paradigma estético. Sua trilogia possibilitou a manifestação

intencional de diversos pontos de vista sobre uma mesma condição de vida que proporcionou o

exame da vida privada. Portanto, escrever sobre si foi praticar o exercício permanente de

atualizar as marcas que as experiências vividas trouxeram ao “eu” gorkiano, já que

os trabalhos mais duradouros de Górki são as suas memórias: Infância, Ganhando meu pão e Minhas universidades. (...) Descrevem uma criança criada por seus avós em uma família provinciana, barulhenta, às vezes violenta, porém organizada. Em seus anos de andanças e em seus subempregos, o narrador encontra uma multiplicidade de personagens e uma crescente atração pelas esperanças da doutrina política. A trilogia é mais arrebatadora por seu colorido do que qualquer profundidade de discernimento ou introspecção (MOSER, 1992, p. 397)108.

Neste capítulo, procuramos entender que o ato de narrar a própria história anos mais tarde

foi mais do que contar uma história sobre si, foi um ato de conhecimento para Górki.

Fundamentada em uma concepção que vê a escrita da experiência como um ato de incremento de

107 NEIZVÊSTNI. E. Katakôbnaia kultura i ofitsiálnoie iskústvo. Artigo acessado em dezembro de 2009. Disponível em http://www.imwerden.info/belousenko/wr_Neizvestny.htm. Grifo meu. 108 CITAÇÃO ORIGINAL: “Gorky´s most durable works, however, are his memoirs: Childhood, In the world and My universities. They depict a child reared by its grandparents in a roistering, sometimes, violent, but close-knit provintial family, the multitude of characters the narrator meets in his years of wandering and doing odd jobs, and the narrator`s own growing attraction to the promises of political doctrine. The trilogy is more arresting for its local color than for any depth of insight or introspection”.

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processos reflexivos, a autobiografia gorkiana é um texto vivo de um sujeito histórico e

socialmente situado; um texto que revela modos de pensamento e reflete formas de organizar,

criar e recriar, cotidianamente, o mundo com todas as suas controvérsias. Em um ensaio crítico,

Górki afirma que, na impossibilidade de analisar objetivamente o sujeito, é pela via do diálogo

que um sujeito se revela para o outro e para si mesmo. Vejamos como a história e a literatura se

fundiram no texto, a partir da percepção histórica.

Nunca antes a vida foi tão instrutiva e o homem apresentou tanto interesse em nosso tempo; nunca antes o homem “progressista” foi tão interiormente contraditório em tão alto grau. Quando digo “progressista” penso não só no membro do Partido, o Comunista, mas também naquela gente não partidária que é atraída pela liberdade e pela excitante varredura da construção socialista. Essa “contradição” é natural desde que as pessoas estejam vivendo na fronteira entre dois mundos – um deles, um mundo de contradições das mais variadas e irreconciliáveis, criado antes de seu tempo, e o outro, um mundo em que as próprias pessoas o estão construindo e onde as contradições sociais e econômicas são as bases para todos os demais109.

Para Górki, tornar visíveis as experiências biográficas implicou na concentração de

esforços para o desenvolvimento de dispositivos analíticos que possibilitaram a compreensão das

complexas relações entre percursos e subjetividades. Fazer da escrita um segundo meio de expor

a sua voz foi um ato que exigiu do sujeito-escritor a coragem de confrontar-se consigo mesmo.

Em continuação à investigação, analisaremos mais profundamente as recordações de Górki e seus

espaços de vida e de memória.

109 GÓRKI. Maxim. On literature. Trad. Julius Katzer. Seattle: University of Washington Press, 1973, p. 169. Livro de crítica literária, escrito por Górki sob o título original de O litierature. CITAÇÃO ORIGINAL: “Never before has life been so instructive and man presented such interest as in our time; never before has “progressive” man been so internally contradictory to such a degree. When I say “progressive” I mean not only the Party member, the Communist, but also those non-Party people who are animated by freedom and the breathtaking sweep of socialist construction. This “contradictoriness” is natural, since people are living on the borderline between two worlds – one of them a world of the most varied and irreconcilable contradictions, and created prior to their time, and the other a world they themselves are building up and in which social and economic contradictions, which are the basis of all others, will be done away with”.

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1.3 – ARROUBOS DE FÉ: AS ESPERANÇAS DA AUTOBIOGRAFIA

Você é crédulo por natureza e não pode passar sem Deus. Logo sentirá isso. Mas não acredita por teimosia, por mágoa: o mundo não foi feito como você acha que devia ser. Há quem não acredite por timidez; acontece com os jovens (...) Para a fé, como para o amor, é necessária a coragem, a valentia. É preciso dizer a si mesmo: eu acredito, e tudo irá bem, tudo será assim como você gostaria que fosse, será explicado por si mesmo e o atrairá (TOLSTÓI)110.

Endossar uma realidade, dando a fé a algum tipo de documento é uma ação que nos ajuda

a compreender melhor a dinâmica do gênero autobiográfico. A partir de agora, faremos algumas

observações pontuais acerca da trilogia autobiográfica gorkiana, explorando as possibilidades

analíticas do documento-obra, que, ambíguo, nos leva a distinguir a sinceridade estética da

humana.

É sabido que muitos autores escreveram autobiografias com o intuito de perpetuar a

verdade atrás de si, porém Górki foi diferente. Ele tentou se explicar enquanto pessoa para um

público já formado pela leitura de suas obras inequivocamente literárias. Assim, a trilogia

autobiográfica se reveste de uma ambiguidade, pois, apesar do relato muitas vezes verídico,

Górki pôde ficcionalizar passagens da sua vida, não havendo absolutamente nada que o

impedisse de fazê-lo.

Para início de trabalho, ao tratarmos da transmissão de tradições, devemos conceituar o

que é tradição, e, para isso, foi escolhido como leme, Mikhail Bakhtin (1895-1970), teórico que,

como poucos, esmiuçou os detalhes dos meandros literários e

[que] têm merecido nos últimos anos grande atenção por parte de diferentes áreas do conhecimento. Esse fato pode ser constatado nas inúmeras traduções, nos incontáveis ensaios interpretativos e, especialmente, na circulação de noções, categorias, conceitos advindos diretamente do pensamento bakhtiniano, com ele apresentados, ou, ainda, por ele motivado 111.

Como a fortuna teórica de Bakhtin é vasta, optei pelos apontamentos feitos sobre

(auto)biografias e sobre as questões que convergem para elas. Começo impelindo à tradição

110 GÓRKI, Máximo. Três Russos e como me tornei um escritor. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 58. A epígrafe foi retirada de um artigo de Górki sobre L. Tolstói em que ele reproduz os conselhos dados pelo próprio Tolstói. 111 BRAIT, Beth (org). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008, p. 8.

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devido a sua presença tanto nas engrenagens sociais quanto nas mudanças históricas. Inquiri-la é

entender que ela não é estanque e sim revestida de significados que atravessaram gerações,

estando os indivíduos sujeitos à sua autoridade desde o seu nascimento. Os indivíduos são,

portanto, os principais agentes das experiências que abrem novos horizontes de expectativas e,

com isso, a tradição tem um importante papel na construção de um novo referencial.

A eclosão da revolução vermelha abriu visibilidades para um futuro glorioso e heróico

para a nação russa. Tudo o que viria depois seria parte de um momento regenerador de uma

sociedade inconformada. A propaganda de guerra foi intensa e a imagem dos ases

revolucionários teve grande participação na manutenção do apoio à nova ideologia. A exaltação

do indivíduo como parte de um todo foi impactante. Logo, se a autobiografia é a emergência do

discurso individual, se torna indispensável questionar o que foi o indivíduo naqueles tempos.

Sem muitas filosofias, podemos classificar os indivíduos, segundo Paul Ricoeur, como um

“exemplar único da espécie, autoconsciente, independente e detentor da linguagem que é a chave

para o reconhecimento de si mesmo e que ordena o discurso, falando de si mesmo”112. “A

linguagem, que virá a ser aquilo que conduz a autobiografia é o que situa o indivíduo na

sociedade e no tempo, portanto, o localiza na história” (RICOEUR, 1988, p. 71-74. Grifo meu).

Quanto à relação desse indivíduo com a sociedade, cito Peter Gay, que traz Sigmund

Freud para definir que “a reunião dos indivíduos na massa, desaparecem todas as inibições

individuais e, como relíquias de uma época mais primitiva, são despertados para procurar uma

livre satisfação pulsional”113. Segundo o historiador, Freud identificou os laços de união entre

indivíduos e a massa, a partir de sentimentos antagônicos: o amor e o ódio, o que explica certas

dimensões da Revolução Russa e de todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente para

a sua realização. Freud percebeu, assim como Bakhtin, que o indivíduo é “uma parte composta

por muitas multidões, ligadas de diversas maneiras através de identificações, e que construiu seu

ego a partir dos modelos mais variados” (GAY, 1989, p.127).

Tratando-se de autobiografias, vale salientar que Bakhtin, por meio do conceito de

imaginação dialógica, desfoca a ideia essencial do “individualismo”114, que converte o “eu” em

um centro unificado e único capaz de se isolar da sociedade e se representar na autobiografia.

Para ele, esse “eu” é um produto e também um condutor de uma variedade de discursos que

112 RICOEUR, Paul. Indivíduo e poder. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 65-66. 113 GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1989, p. 126-127. 114 BAKHTIN, Mikhail. The dialogic imagination. Austin: Texas Unviversity Press, 1981.

71

estruturam as formas de falar de si mesmo. Nesse sentido, o “eu” poético do indivíduo-Górki,

articulado a outros “eus”, é portador das expectativas culturais e dos sistemas de interpretação por

meio dos quais um indivíduo se inscreve numa narrativa e legitima o seu esforço de compreender

a si mesmo, aos outros e ao mundo que o rodeia.

Em Questões de literatura e de estética, o teórico faz uma trajetória que percorre desde o

retorno de certo interesse pela narrativa vivencial como um sintoma do contemporâneo, mesmo

que a sua raiz estivesse na Antiguidade, até o estudo dessas narrativas, que mesclam realidade e

ficção. Para ele, as formas (auto)biográficas desenvolvidas em terras gregas

exerceram enorme influência não só para o desenvolvimento da biografia e da autobiografia européias, mas também para o desenvolvimento de todo o romance europeu. Essas formas antigas estão baseadas em um novo tipo de tempo biográfico e em uma nova imagem especificamente construída do homem que percorreu o seu caminho de vida115.

Dividindo o gênero em dois grandes grupos, Bakhtin denomina o primeiro tipo

(auto)biográfico como “platônico” onde reside o “caminho de vida do indivíduo que busca o

verdadeiro conhecimento (BAKHTIN, 1993, p. 250)”. Já o segundo tipo, o que me despertou

maior interesse, se chama “(auto)biografia retórica”, que concentra como ponto central de análise

o real que se revela. Bakhtin afirma que essas obras antigas

não eram obras de caráter livresco, desligadas do acontecimento político-social e concreto, e da sua publicidade retumbante. Ao contrário, elas eram inteiramente definidas por esse acontecimento, eram atos verbais cívico-políticos, de glorificação ou de autojustificação públicas. É justamente nas condições desse cronotopo real que se revela (se publica) a sua vida ou a dos outros, que se especificam as facetas da figura do homem e da sua vida, que se dão esclarecimentos definidos a respeito delas (BAKHTIN, 1993, p. 251).

Para apresentar e discutir tal percurso, o teórico recorre à linguagem, mecanismo

fundamental para a compreensão da produção histórica dos discursos. Em seus estudos, houve a

preocupação com as relações estabelecidas entre homens (indivíduos) e linguagem, num meio

social que participa desse processo de conhecimento dialógico. A partir dessa visão, entende-se

que depois de Bakhtin é impossível que se leia uma (auto)biografia sem que se remeta à

construção de tramas discursivas nas quais está implicada a interação social entre pessoas, fato

115 BAKHTIN. Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Editora UNESP, 1993, p. 250.

72

que dá envergadura a Górki, uma vez que a trilogia nos permite compreender que o contexto

social não é um mero pano de fundo para a formação de uma memória, mas é, verdadeiramente, a

sua matéria-prima. Dessa condição construtiva da linguagem do discurso literário emergem

questões que dão alma a essa lógica bakhtiniana e, consequentemente, ao delineamento do gênero

(auto)biográfico.

Os discursos são fruto da participação simultânea de sujeitos que são considerados

interlocutores e não mais falas isoladas. Nas autobiografias, as enunciações são produzidas dentro

de uma situação vigiada, edificada, porém elas provêm de uma movimentação cíclica, muitas

vezes caótica, das relações históricas estabelecidas entre esses mesmos sujeitos. Nelas, estão

implícitos vários elementos estruturadores como, o lugar, o tempo e as visões de mundo que, em

constante combinação, dão lugar a uma dimensão cultural viabilizadora da produção discursiva.

Indiscutivelmente, dentre os fatores que compõem essas relações, o apreço é um dos mais

importantes, pois será ele que dará a intensidade do valor atribuído e do grau de aproximação que

um sujeito terá com um determinado espaço de tempo.

Inserir-se no mundo da escrita autobiográfica obrigou Górki a assumir um ponto de vista

específico da linguagem literária, pois todo o seu conhecimento era entrecortado por valores,

sentimentos e ideologias que se materializaram em texto, criando moldes orientadores para esse

tipo de prática. Sem dúvida, esse procedimento também estava assentado em um imaginário

coletivo no qual a contribuição da experiência de vida e a construção das rotinas cidadãs

passaram pelo movimento contínuo e repetitivo da lembrança carinhosa e cuidadosa do passado.

Uma vez mais, estamos diante daquele afeto, daquele amor tão justificante para Górki. “O

amor é o segundo aspecto dos valores biográficos (...) O desejo de ser amado, a consciência, a

visão e a forma que se pode ter na consciência amorosa do outro, a vontade de fazer desse amor

almejado do outro a força organizadora e motriz da vida, tudo isso é ainda uma maneira de

crescer e de se engrandecer no clima da consciência do outro” (BAKHTIN, 1992, p. 171).

O espaço autobiográfico onde as narrativas se hibridizam, derrubando fronteiras culturais

tradicionalmente criadas entre os gêneros narrativos, se configura por um jogo de linguagem, de

experimentação artística dentro de um regime retórico que dá um tom de realidade a elas. E, é

neste momento que a heterogeneidade bakhtiniana ganha mais relevância. É através dela que

certa pureza começa a ser questionada, a fim de superar as barreiras que restringem o

autobiográfico, trazendo para o “um” o discurso do “outro”. Aqui, é preciso enfatizar a figura

73

gorkiana em duas faces; a da pessoa e a do artista, ambas componentes reais de uma vida. Górki

cria e vê sua obra como um produto em formação e não como um processo psicológico pré-

estabelecido iniciado no passado, pois “vivencia-se o trabalho criador, mas o vivenciamento não

escuta nem vê a si mesmo, escuta e vê tão somente o produto que está sendo criado (...)”

(BAKHTIN, 2003, p. 5).

Essa representação e afastamento que o sujeito faz de si mesmo, na visão bakhtiniana,

toma proporções questionadoras no espaço biográfico de Górki. Nele, o movimento narrativo da

autobiografia, de um retorno do “eu” sobre si mesmo, transporta a noção da autoconsciência para

o espaço da representação, onde esse “si mesmo” não corresponde nem ao “eu” nem ao “outro”,

mas à imagem que o sujeito cria de si, ou seja, uma identificação imaginária gerada em virtude do

olhar lançado sobre o outro.

Das teorias sobre autobiografias “autênticas”, onde era esperada uma simultaneidade de

observância entre autor e narrador, a busca por uma razão para a própria vida acaba por não

acontecer. No conceito tradicional, esse engano não considera as narrativas de si como uma

posição enunciativa, mas as tem como a apreensão e a reprodução de uma existência. Por esse

motivo, os relatos autobiográficos durante muito tempo tiveram um cunho pedagógico através

dos quais se poderia aprender a viver. Com a apropriação da teoria bakhtiniana, a autobiografia

passou a ser vista como literatura, como produção de um imaginário social, ainda que se

colocasse alguma distância entre ato vivenciado e ato criador.

Em Bakhtin, o diálogo de consciências, a apropriação ativa e autorreflexiva da obra

literária e a consequente quebra de contrato entre a literatura e a verdade, fazem parte da

produção de sentidos e de afetividade. Entretanto, tal caminho essencial para a narrativa não se dá

sem que se faça uso do sistema retórico. Não é o fato de usufruir de uma estreita relação com o

real que fornece à narrativa um caráter realista116, mas o fato de que seu processo de criação está

sustentado por um estilo pensado num ambiente retórico que torna plausível o mundo imaginado,

uma realidade com qualidade de fingimento. Nesse raciocínio, o autobiográfico seria o

funcionamento utilitário da leitura unido a procedimentos de convencimento, podendo o seu

relato se espalhar ou não na ficção, isto é, nada é preciso e fechado, tudo é aberto e plural.

116 “Real”, “realismo, “realista”, “realismo histórico” são noções complexas e, no campo dos estudos de literatura, também estão presentes na agenda de debates. Entretanto, ao optar pelo termo realista, minha intenção foi usá-lo na sua acepção mais simples e imediata, ou seja, algo não ilusório.

74

Górki não credita a importância de sua trilogia à ânsia por detalhes de sua vida, mas a um

reconhecimento de que a criação de um personagem-narrador foi uma atitude prazerosa e

desafiadora, que teve como cenário a representação de algo já existente em algo que jazia num

sistema retórico. Bakhtin agrupa o indivíduo, a retórica, a ideologia, o dialogismo e a linguagem,

os alinhava com o fio da linguagem dialógica e compõe múltiplas vozes, cuja dimensão ficcional

é explorada até o seu limite. Por isso, aviso que somente nesse espaço autobiográfico gorkiano

será possível experienciar o real e desviar das ciladas do texto. Devemos, contudo, usar máscaras

e procurarmos ler “um outro” no “eu” e enxergar o real no fictício. Para Bakhtin, a retórica

utilizada nas escritas de si sela o pacto autobiográfico117 necessário para que o “eu” possa me

colocar no lugar do outro e interpretar o uso de seus “afetos caros” como possibilidade de vida.

Os afagos literários que Górki revela em seus apontamentos estão em seu artigo “Como

aprendi a escrever”, onde podemos constatar a probidade em ser conhecido (de si mesmo) e

reconhecido (pelos outros).

Para mim, não existem idéias fora do homem; para mim o homem, e somente o homem, é o criador de todas as coisas e todas as idéias, o fazedor de milagres e futuro amo de todas as forças da natureza. As coisas mais belas deste mundo são as coisas criadas pelo trabalho, feitas por habilidosas mãos humanas, e todos os nossos pensamentos, toda as nossas idéias nascem do processo do trabalho como demonstra toda a história das artes, a ciência e a tecnologia. Os pensamentos vêm depois dos atos. Inclino-me ante o homem porque além das encarnações da razão e da imaginação do homem, não sinto nem vejo nada em nosso mundo118.

Sentir o amor em sua compreensão mais ampla e abstrata é, para Górki, o pretexto para

trazer a memória à luz da consciência. Sendo a literatura um espaço profícuo de experimentação

da expressão de uma vida, começo a analisar mais atentamente a trilogia gorkiana, via Bakhtin,

iniciando pelo primeiro livro, Infância, de 1913. Abro um parêntese para lembrar que diversas

imagens de amor foram produzidas pela literatura russa ao longo da história de seus ciclos, se

tornando temáticas formadoras de um modelo estético muito particular. O amor como objeto de

reflexão é até hoje um campo de investigação vasto e polêmico, devido a esse sentimento ser uma

das charadas da identidade artística e filosófica da literatura russa.

Na trilogia, Górki nos apresenta uma relação direta e aberta com a realidade ao mostrar

cenas russas vivas retiradas do sofrimento. Como o escritor do amor, ele enxerga os transtornos

117 Faço referência ao livro O pacto autobiográfico, de Phillipe Lejeune, que será estudado mais adiante. 118 GÓRKI, Máximo. Como aprendi a escrever. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984, p 39-40.

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sócio-políticos e a ebulição cultural de seu país e os tematiza, revelando a origem de suas

inquietações dentro de uma nova realidade literária, ferindo profundamente os alienados com sua

grande carga dramática. Apresenta-se como um observador do mundo que problematiza com olho

clínico a aspereza da travessia da vida. Nessa obra, Górki estrategicamente encarna o futuro do

internacionalismo proletário, dividindo com o público leitor a sua infância brutal cada vez mais

desesperada por mudanças. Privado dos pais e dominado pela insegurança e violência, Górki

lutou contra uma sufocante piedade, procurando meios para sobreviver em um ambiente nebuloso

onde tudo lhe era tolhido.

Em Infância, Górki consegue fazer emergir uma imagem progressiva de um bolchevique

cuja resistência é assinada pelo menino Aliocha, diminutivo do próprio nome do autor. Neste

livro, o pensamento progressista nos oferece imagens coloridas de felicidade, amor e ritmos de

expressão. Como autor, Górki incutiu coragem, paciência e disciplina numa criança russa e

promoveu ativamente o suportar dos males habituais. Sua infância nos deixa com a impressão de

que o povo eslavo parece conseguir sublimar o sofrimento e conduz leitores à esperança com o

poder do pensamento. Essa é uma das leituras da obra. Entretanto, não é para essa questão que

esta análise se direciona. Aqui, o mais significativo é o exame das propriedades que os fatos,

combinados e arquitetados por meio do jogo político costurado por Górki, têm para adquirir força

para transportar o texto para o ficcional e para o público. A experiência do autor, a partir de agora

passa a ocupar um lugar na ficção. Interessa-me analisar de que modo esse objeto artístico, uma

construção de natureza poética, um simulacro criado a partir de pressupostos ficcionais, deixa

entrever as marcas de uma pulsão pessoal para ir de encontro à arte.

Há, especialmente em Infância, rastros que se insinuam e aparecem às vezes de forma

clara ou cinzenta e que nos fazem lembrar de um movimento de metamorfose de um menino que

se molda diante da vida, se confundindo com e se misturando ao jogo da composição poética.

Desvendar esse jogo quase performático reconstrói a silhueta imagética que o escritor cria de si

mesmo. Infância funciona como um espelho referencial onde se projetam traços da identidade de

Górki, que nos convidam a ir além das aparências elaboradas pelos artifícios da linguagem.

Vejamos as primeiras modulações da linguagem de Górki.

No quarto acanhado e escuro, no chão, ao pé da janela, meu pai está deitado, vestido de branco e extraordinariamente comprido; os dedos dos pés descalços estão abertos de um jeito estranho, os dedos das mãos carinhosas, deitadas em sossego sobre o peito” (...) Pela mão, a avó me segura – redonda, de cabeça grande, com olhos enormes e

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um nariz mole e engraçado: ela é toda escura, fofa e espantosamente interessante; também chora, faz coro com a mãe; de um jeito diferente, ela treme toda e me puxa, e me empurra na direção do pai; eu resisto, me escondo atrás dela; estou assustado e sem jeito119.

A avó era toda escura, mas brilhava, de dentro para fora – através dos olhos –, com uma luz incessante, alegre e quente. (...) Antes dela chegar, era como se eu estivesse dormindo, escondido na escuridão, mas a avó apareceu, me acordou, me levou para fora e para a luz, amarrou tudo à minha volta num fio contínuo, entrelaçou tudo numa renda colorida e no mesmo instante tornou-se a amiga de toda a vida, a pessoa que eu mais compreendia e mais amava – o seu desinteressado amor pelo mundo me enriqueceu, me impregnou com uma força resistente para uma vida difícil (GÓRKI, 2007a, p. 27).

Ao invés de nos preocuparmos em definir a trilogia como romance ou como

autobiografia, devemos entendê-la dentro do sentido autobiográfico trabalhado por Bakhtin.

Detalhando o gênero, o teórico russo o categoriza como sendo uma “narrativa de vida, uma forma

tão imediata enquanto possível, e que me seja transcendente, mediante a qual posso objetivar meu

eu e minha vida num plano artístico”120. Na autobiografia, então, há a contraditória coincidência

entre o autor e o herói, pois o autor é integrante do todo artístico e como tal não poderia coincidir

com o herói que também o é.

Na trilogia, acontece um fenômeno que me causa incômodo, pois, a partir de Bakhtin, o

autor se situa muito próximo de seu herói, o menino Aleksiei e eles parecem ser intercambiáveis

nos lugares que ocupam. E talvez seja por “esta razão que se torna possível a coincidência de

pessoas entre o autor e o herói” (BAKHTIN, 2003, p. 25). Sendo assim, Górki é “o depositário da

tensão exercida pela unidade de um todo acabado, o todo do herói e o todo da obra” (BAKHTIN,

2003, p. 32). Sob a ótica bakhtiniana, a consciência do autor engloba e acaba com a consciência

do herói e do seu mundo, pois o autor vê e sabe mais do que o herói. “O discurso do herói sobre

si mesmo está impregnado do discurso do autor. O que vemos na trilogia, principalmente em

Infância, é o fato de Górki modificar as particularidades de seu herói, sendo “seus traços

característicos, os episódios de sua vida, seus atos, pensamentos, sentimentos, do mesmo modo

que, na vida, reagimos com um juízo de valor a todas as manifestações daqueles que o rodeiam”

(BAKHTIN, 2003, p. 25).

Essa visão do autor-Górki, que excede ao seu personagem-menino Aleksiei121 é uma

conquista da obra, pois quanto mais o autor se identifica com o personagem, quanto mais os seus 119 GÓRKI, Maksim. Infância. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 19. 120 BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 165. 121 Lembremos que Aleksiei não só é o nome do narrador da autobiografia como é também o nome de batismo de Górki.

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posicionamentos se confundem mais frágil é a posição fora do herói, mais mal-ajambrados

seriam o herói e a narrativa. Esse “olhar de fora”, Bakhtin batizou de exotopia, que é uma relação

de tensão no espaço, no tempo e nos valores de uma narrativa. Em Infância, vê-se

constantemente uma relação tensionada entre o autor Górki e o narrador que conta a sua infância,

o menino Aleksiei. Essa relação é assim porque a narrativa dá uma sensação de “ao vivo”, não

retrospectiva (na maior parte do tempo), como se o menino fosse o responsável pela recordação

do autor, mas agindo sempre como criança. Prestemos atenção nos trechos em que o narrador

descreve a história simples de uma criança russa e não de um ilustre escritor:

Eu ficava o dia inteiro em torno da avó, no jardim, no pátio, íamos à casa da vizinha, onde ela se demorava horas tomando chá e contando várias histórias, sem parar; eu parecia grudado a ela e não me lembro de ver, naquele período da vida, outra coisa que não a velhinha bondosa, ativa incansável.

Às vezes, por um breve tempo, minha mãe aparecia, vinda não se sabia de onde: orgulhosa, severa, contemplava tudo com olhos frios e cinzentos, como um sol de inverno, e rapidamente, sumia, sem deixar em mim nenhuma lembrança (GÓRKI, 2007a, p. 95. Grifo meu). – Saúde, boa gente, agora e sempre! Pronto, está vendo, Aliocha, meu anjo, como vivemos sossegadinhos? Graças a ti, Nossa Senhora, Rainha do Céu, tudo anda tão bem!

Mas, para mim, não parecia que vivíamos sossegados; desde a manhã até tarde da noite, dentro e fora da casa, as inquilinas corriam em balbúrdia, as vizinhas apareciam com seus problemas, sempre tinham pressa de ir a algum lugar e sempre queiram alguma coisa (GÓRKI, 2007a, p. 94).

Como os fragmentos acima, o excedente de visão entre as consciências do autor e do

narrador é garantido pela memória e pela imaginação do escritor, pois lembrar daqueles

períodos de vida não foi apenas reviver o que passou e sim, refazer, repensar com as ideias do

hoje, as histórias do ontem. Através desses processos dialógicos, Górki estabelece em diversas

vezes uma conexão direta com o leitor como se estivéssemos conversando com ele. Para abrir um

canal direto com o leitor e fazer dele a ponte para o crível, o acreditável, Górki usa frases como

veja você, acima destacadas. Esses processos também são interessantes porque é por eles que a

interseção entre as duas consciências não ocorre no mesmo campo de valores, pois ao recordar

sua infância, Górki introduz diversos elementos provenientes das condições emocionais, morais

de que dispunha no presente dele em tempo real que era o ano de 1913, aos quarenta e cinco anos

de idade.

78

No capítulo O autor e o herói122, Bakhtin trata o autor como um participante de um texto

literário que tem o privilégio de “olhar de cima” tudo o que acontece na obra. Ele vê e conhece

mais sobre a narrativa do que qualquer outro personagem. Essa ampla visão nada mais é do que a

constatação de que o meu olhar sobre o outro não é o mesmo olhar que o outro tem de si próprio.

No confronto frente a frente de um com o outro sempre podemos ver aquilo que o outro não

pode. Para que isso ocorra, segundo Bakhtin, é necessário que haja certa distância entre autor e

personagem, logo, a consciência do autor é aquela que envolve e dá acabamento à consciência do

personagem. O distanciamento é, então, uma espécie de lupa que detalha a consciência daquilo

que é criado, já que

todos os componentes de uma obra nos são dados através da reação que eles suscitam no autor, a qual engloba tanto o próprio objeto quanto a reação do herói ao objeto (uma reação a uma reação); é nesse sentido que um autor modifica todas as particularidades de um herói, seus traços característicos, os episódios de sua vida, seus atos, pensamentos, sentimentos, do mesmo modo que, na vida, reagimos com um juízo de valor a todas as manifestações daqueles que nos rodeiam: na vida, todavia, nossas reações são díspares, são reações a manifestações isoladas e não ao todo do homem (BAKHTIN, 2003, p. 26).

Entretanto, se analisarmos bem a trilogia autobiográfica, discordaremos de Bakhtin num

ponto: se entendermos que a obra gorkiana, escrita em primeira pessoa, há duas consciências

coincidentes (a do autor e a do personagem que é uma representação do autor), a atividade

estética não dispensará a saturação da alteridade necessária que é, ao contrário do que assinala

Bakhtin, idêntica ao “eu”, ou seja, a mesma pessoa pode, sim, dar o retoque temporal, espacial e

de sentido à obra, dado que as duas consciências de Górki, a criativa e a vivenciada, fazem dele o

produtor-autor de seu próprio texto. Ainda pensando sobre as palavras de Bakhtin, que afirma

que “na vida, o que nos interessa não é o todo do homem, mas os atos isolados com os quais nos

confrontamos e que, de uma maneira ou de outra, nos dizem respeito. E, (...) é ainda em nós

mesmos que somos menos aptos para perceber o todo da nossa pessoa”, podemos enfatizar que a

obra de Górki não foi apenas uma inspiração, pois um texto não se materializa sem uma

alternância entre a teoria (a arte literária) e a prática (a vida). O “estado de espelho” corrige a

cena através dos jogos de duas perspectivas: o compromisso com a narração e com a criação ao

mesmo tempo.

122 Os conceitos de autor, narrador e personagem serão analisados de forma mais abrangente no capítulo seguinte. Por ora, essa prévia é um gancho entre as teorias que embasam este trabalho.

79

Ao fazermos uma investigação de tudo o que é narrado em Infância, concluímos que todo

o processo de rememoração foi construído socialmente. O pequeno Leksiei vai lembrando de

fatos da memória, recente ou longínqua, através de experiências conglomeradas e fornecidas

pelas pessoas que fizeram parte de seu círculo familiar e urbano, como os avós, principalmente a

avó Akulina, a mãe, os primos, os tios, os colegas de trabalho, os estudantes, entre muitos outros

que imprimiram substancialidade às lembranças dele. Assim, a obra, segundo Bakhtin, retrata o

processo mnemônico com uma forte tensão entre o social e o individual em que ocorre uma

internalização dos episódios vividos através de várias outras vozes que, misturadas, se

transformam em lembranças singulares da idade pueril. Bakhtin afirma ainda que o processo de

lembrar implica numa leitura do passado, uma vez que a imagem mental passada é decodificada

por palavras que têm os seus significados solidificados nas práticas sociais de comunicação.

Contudo, segundo a conceituação de Bakhtin, a autobiografia segue o seu curso de acordo

com a tradição antiga do gênero como ele mesmo comentou.

O enredo da forma (auto)biográfica à diferença do romance de provação, não é constituído com base nos desvios em relação ao curso normal e típico da vida, mas precisamente nos elementos basilares e típicos de toda trajetória vital: nascimento, infância, anos de aprendizagem, casamento, construção do destino, trabalho e afazeres, morte, etc, isto é, precisamente com base naqueles elementos existentes antes do início ou depois do término do romance de provação (BAKHTIN, 2003, p. 213).

Entretanto, definir o autobiográfico como gênero não é uma tarefa simples e nem tão

necessária, dado que ele é considerado por muitas teorias literárias como um gênero de fronteira.

É algo que se encontra em algum lugar da literatura, entre vida e história, ficção e realidade.

Teríamos, então, um problema? Seria um obstáculo não separar a ficção da realidade? A pergunta

se os eventos ocorridos num texto autobiográfico são realmente verdadeiros não é importante

para este estudo, pois ele não se foca somente em fatos históricos. No entanto, esses

questionamentos não podem ser de todo evitados, já que a definição da autobiografia como

gênero literário é baseada na relação referencial entre o texto e o “verdadeiro”. Na literatura

autobiográfica russa do século XX, a questão ficção-não ficção era discussão frequente entre os

autores, como Marianne Liljeström questiona.

Se considerarmos a literatura não ficcional como um tipo especial da escrita, o que queremos dizer com isso? Estamos falando sobre textos que sinceramente testemunham uma certa verdade? Ou estamos falando sobre textos onde há afirmações a serem aceitas como verdade, como histórias sobre o que realmente aconteceu? Ou nós queremos dizer mesmo com não-ficção é que o autor se esforça propositadamente, com a ajuda de certas

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estratégias narrativas para acentuar a referencialidade e autoria do texto, criando assim, condições bastante distintas para a leitura da obra123.

Então, a pergunta mais objetiva a ser feita é: Como estudar a autobiografia de Górki sem

impor a ela normas criadas pelo cânone que trata esse gênero como um decalque da realidade?

Um fator a ser considerado é que a trilogia foi publicada, ou seja, ela é uma história pública de

vida e não são cartas ou diários. Isso ainda acrescenta mais importância na constatação de que a

autobiografia russa contém um parâmetro analítico. No entanto, a minha ambição em analisar a

representação de uma subjetividade gorkiana não significa que eu esteja buscando um genuíno

“eu” gorkiano, mas sim analisar e interpretar de que maneiras a experiência e a subjetividade de

Górki estão representadas no seu “discurso” autobiográfico público instaurado nos novecentos.

Um estudo mais profundo sobre a história da autobiografia russa, para mim, ainda

continua obscuro frente à falta de material especializado. Na Rússia da época, as autobiografias

não eram aparentemente autopromotoras, ou seja, eram escritas que estavam concatenadas a

questões que iam além da própria existência e do próprio “eu” do autor, como descreve Jane Gary

Harris.

A narrativa retrospectiva, sendo uma coleção de experiências que ultrapassam a compreensão, tem afinidades com o lirismo romântico que assume uma existência estética do seu próprio “eu” retirada tanto da experiência atual retratada na narrativa como das próprias lembranças124.

Esse fato já mostrava um contraste com o conteúdo autobiográfico antigo até então visto

no país sob a forma de lampejos de vida distribuídos na prosa de romancistas como Tolstói e

Dostoiévski. Concluo então, que a autobiografia gorkiana emergiu como um paradoxo de

confiança e de fé na autodescrição. A vida do autor e do seu “eu” não foram, nessa aquiescência

123 LILJESTRÖM, Marianne. Models of self. Helsinque: Kikimora Publications, 2000, p. 8. CITAÇÃO ORIGINAL: “If we differentiate non-ficcion literature as a special type of writing, what do we mean with it? Are we talking about texts which sincerely testify to a certain truth? Or are we talking about texts which lay claims to be accepted as truth, as stories about what really happened? Or do we mean by non-ficcion that the author strives purposefully, with the help of certain narrative strategies, to emphasise the referentiality and authencity of the text, thus creating quite distinct conditions for reading”. 124 HARRIS, Jane Gary. Autobiographical Statements in Twentieth Century Russian Literaure. Nova Jérsei: Princeton University Press, 1990, p. 6. CITAÇÃO ORIGINAL: “Retrospective narrative, in being the recollection of the experiences that go beyond understanding, has affinities with the romantic lyrics, which assumes an aesthetic existence of its own removed from both the actual experience portrayed in the narrative and the recollections themselves”.

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de valores autobiográficos, somente um mecanismo para documentar ideologias revolucionárias,

como era comum nos textos confessionais.

A relação entre o autor e o outro deu à escrita gorkiana uma condição, pois em seu país, a

autobiografia se desenvolveu de forma distinta do ocidente, como no livro Confissões, de

Rousseau, que obedeceu as regras pertinentes ao gênero. A mentalidade russa se caracterizava

pela coletividade e não pela individualidade. Essa consonância entre o “eu” e os “outros” foi

precedida de uma advertência profética: uma visão contrastante e cruel de desumanidade da

sociedade humana, uma lembrança de épocas em que a vida individual foi esmagada pela

arquitetura social e tratada com insignificância.

O fascinante nos textos autobiográficos é a figura do autor-narrador e sua representação

narrativa. As experiências de Górki como a perda dos entes queridos, os diversos ofícios, os

livros que leu, os amigos de fez e a fome que passou, são representadas pela consciência exata da

sua experiência gravada na memória. Este fato é interessante para a autobiografia russa porque a

memória de Górki é o que o faz representar a coletividade. Mesmo que ele não seja “um pelos

outros” e sim “um entre muitos”, há no texto a solidariedade de um “nós” que também sofre e

que dá suporte. A importância e a ênfase dessa assinatura são essenciais para o entendimento da

diferença entre vivências. A questão da história pessoal versus história coletiva eleva a

criatividade da trilogia gorkiana, dado que depois do colapso da figuração individual contida na

prosa do século XIX, ficou a certeza de que a história poderia ser reescrita através das pegadas

deixadas no caminho da história e recolhidas pelos espaços de tempo da lembrança particular.

A ideia central das obras de Górki é a história com tendência de mudar com o tempo.

Todo um processo social e cultural, com opiniões muitas vezes pesarosas e politicamente

incorretas, deixou de ser silenciado ao público. Em Infância, Ganhando meu pão e Minhas

universidades, os leitores começam a ver o passado de um ponto de vista diferente. Tornou-se

fundamental a habilidade de lembrar o passado para inventar uma nova história e deixar que a

ficção reescrevesse o fato. No caso dos três livros, Górki não prepara os leitores para uma

revelação da verdade. Ele deixa no ar a dúvida ao se pensar se a verdade realmente pertence a

alguém e se isso muda a essência de seu texto, que é mentiroso por natureza e desconcertante por

obrigação. Harris, ao falar sobre autobiografia na Rússia, a partir do advento do modernismo,

explica o que para ela se deu como uma espécie de normatização do gênero na Rússia.

82

O discurso autobiográfico pode ser examinado como a arte da mediação entre os planos da experiência e da interpretação, entre “a consciência autobiográfica” e “a imaginação autobiográfica”. No que diz respeito ao leitor, a afirmação autobiográfica produz uma determinada resposta cognitiva dual e uma experiência emocional dual que nenhum outro tipo de ato literário pode produzir. Daí, a singularidade do discurso autobiográfico e a fonte do seu poder estético (HARRIS, 1990, p. 25) 125.

Discutindo o reescrever da história russa, não me refiro a um modo específico da escrita

de Górki. Ao invés disso, prefiro observar o comportamento do escritor atuando como autor de

um contexto, isto é, um ser que entrega os seus textos a uma situação social. Nesse ponto, as

obras de Górki tomam parte de um processo coletivo comum de reescritura da história, que ainda

representava a continuidade da tradição autobiográfica. Para Pável Bassínski, a perspectiva

literária muda quando um gênero considerado menor desenvolve a capacidade de criar novas

vidas.

Não há dúvida que isso é literatura! Letras combinadas é o que dá a força e um tremendo efeito em você! Por tudo isso, muito da nossa literatura se modificou recentemente (nem tudo!), mesmo assim, embora atrás de tudo isso esteja não só a vida vivida como uma época histórica inteira126.

É inspirador reconhecer que o “pacto autobiográfico”, na Rússia, foi como uma

ferramenta para um experimento literário que viria a ser, bem mais tarde, o movimento

modernista.

Diante do que foi exposto, podemos afirmar que a consciência de um autobiógrafo

acumula dupla jornada; a de reter o que já ocorreu e a de antecipar o que vai ocorrer.

Considerando que a memória é o acúmulo e a retenção do passado no presente, se conclui que o

hiato entre o passado e o futuro é bastante tênue, é uma fração de tempo impossível de ser

captada, e, quando a capturamos, já é passado. Na autoanálise da vida de Górki, não houve a

tentativa de chegar a um objetivo específico, ou de consertar algo mal resolvido. A intenção foi

125 CITAÇÃO ORIGINAL: “Autobiography discourse may thus be viewed as the art of mediation between the to planes of experience ans interpretation, between “the autobiographical conscioness” and the “autobiography imagination”. And with regard to the reader, the autobiographical statement produces a particular “dual cognitive response and dual emotional experience that no other literature act can produce. Hence the uniqueness of autobiographical discourse and source of its aesthetic power”. 126 BASSÍNSKI, Pável. Ikrá i slezi. In: literatúrnaia gazieta. Moscou, 1988, p. 10. CITAÇÃO ORIGINAL: “Это несомненно литература! Это буквы, сложившиеся в током порядке что они вызывают сильное, порой даже мощное впечателение! (...) От всего этого наша словесность в последнее время отвернулась (не вся!), хотя за всем этим стоит не только живая жизнь, но и целая историческая эпоха”.

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apenas de apresentar uma história humana de forma humana. A seguir, daremos novo fôlego à

condição autobiográfica e a sua complexidade, a partir da perspectiva poética.

84

Ilustrações: 3, 4 e 5: Região sul da Rússia, Povóljie, Don, Crimeia e Cáucaso

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Ilustração 6: Cidade de Tbílisi

Ilustração 7: Jornal O Cáucaso, onde Górki publicou o romance Makar Tchudrá, primeira obra assinada com o pseudônimo Maksim Górki.

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Ilustração 8: V. Korolenko, 1900 Ilustração 9: K. Stanislávski, Górki e M. Lilina, Ialta, 1900

Ilustração 10: Jornal Volgar Ilustração 11: Górki e Chaliápin

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CAPÍTULO 2

2.1 AUTOR, LEITOR E NARRADOR. UM PACTO DE SANGUE

Nossa gente não gosta de falar muito do seu passado, para o que sempre tem razões mais ou menos fundadas. Por isso, acreditávamos uns nos outros, pelo menos aparentemente, pois, no íntimo, cada um acreditava mal até um si mesmo127 (GÓRKI).

UM ACOMPANHAMENTO Pela rua da aldeia, entre as casas brancas de taipa, avança, com uivos selvagens,

estranha procissão. A multidão caminha, apertados uns contra os outros, lentamente, move-se como uma

grande vaga, e, na frente, vai um cavalinho hirsuto, de cabeça pendida. Levantando uma das patas dianteiras, sacode estranhamente a cabeça, como se quisesse com a cara de pelos ásperos contra a poeira da estrada e, quando descola a pata traseira, a garupa inclina-se para o chão, como se o animal fosse cair.

Uma mulher completamente nua, quase menina, tem as mãos amarradas com corda à parte dianteira da carreta. Caminha de modo estranho, de lado; os seus pés tremem e se dobram; a cabeça, de revoltos cabelos ruivos escuros, está erguida e ligeiramente tombada para trás; os olhos, muito abertos, dirigem para a distância um olhar embotado, que nada tem de humano... Todo o seu corpo aparece coberto de manchas azuis e purpúreas, umas redondas, outras alongadas. O seio esquerdo, rijo e virginal, está cortado, vertendo sangue... Este já formou um traço vermelho sobre a barriga e, mais em baixo, sobre a coxa esquerda, até o joelho, mas, na barriga da perna, está oculto por uma placa marrom de poeira. Tem-se a impressão de que haviam arrancado do corpo dessa mulher uma tira fina e comprida de pele e, provavelmente, bateram-lhe por muito tempo com uma acha de lenha sobre a barriga, que está horrivelmente inchada e azul.

Os pés pequenos e aprumados, mal pisam a poeira cinzenta, todo o seu corpo se contorce, e não se consegue de modo algum compreender por que ela ainda se mantém sobre aqueles pés, cobertos, como todo o corpo, de equimoses, por que não cai no chão e, suspensa pelas mãos, não se deixa arrastar atrás da carreta, sobre a terra cálida...

E, na carreta, está um mujique128 alto, de camisa branca e chapéu preto de pele, sob o qual pende-lhe em diagonal sobre a testa a mecha de cabelo de um ruivo vivo. Numa das mãos, segura as rédeas, noutra, o chicote e, metodicamente, fustiga com ele, uma vez, o dorso do cavalo, outra vez, a pequena mulher, que mesmo sem isso já foi espancada a ponto de perder a figura humana. Os olhos do mujique ruivo estão injetados de sangue e fulgem de maldoso 127 GÓRKI, Máximo. Na estepe. In: Contos. Trad. Boris Schnaiderman. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005, p. 123. 128 Mujique é o nome russo que se dá à figura do camponês.

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triunfo. Os cabelos sombreiam-lhe a cor esverdeada. As mangas da camisa, arregaçadas até os cotovelos, deixam ver os braços robustos, densamente cobertos de pêlo ruivo. Tem a boca aberta, cheia de dentes brancos e aguçados. De vez em quando, exclama com voz rouquenha:

- E- eia...bru-uxa! E-eia! Irra! E-eia! Aí! Mais uma!... E atrás da carreta e da mulher, avança a multidão e também grita, uiva, assobia, ri,

ulula, estimula o mujique... Molecotes vão correndo... Às vezes, um deles passa na frente de todos e grita palavras cínicas no rosto da mulher. Então, uma explosão de riso na multidão abafa os demais sons e o fino assobio do chicote no ar... Vão mulheres de rostos excitados e olhos fulgurantes de prazer... Vão homens e gritam algo repugnante, para aquele que está de pé na carreta... Ele volta a cabeça e dá gargalhadas, a boca desmesuradamente aberta. O chicote bate no corpo da mulher... Aquele chicote, comprido e fino, retorce-se junto ao ombro, fica preso na axila... Então, o mujique puxa com força. A mulher solta um grito esganiçado e cai de costas na poeira... Muitos da multidão correm até lá e, inclinando-se sobre ela, ocultam-na com seus corpos.

O cavalo estaca, mas, instantes depois, retoma a marcha, e a espancada mulher continua a caminhar junto à carreta. E o pobre cavalo, movendo-se lentamente, continua a sacudir a cabeça de pêlos ásperos, como se quisesse dizer;

– Coisa abominável ser um animal! Os homens obrigam-nos a participar de cada baixeza...

E o céu meridional, está perfeitamente sereno: nenhuma nuvenzninha, e o sol generoso esparge os raios ardentes...

Não descrevi aí uma imagem alegórica da perseguição e tortura da verdade; não, infelizmente não é uma alegoria. Isto se chama um acompanhamento. Assim castigam os maridos a traição de suas mulheres. É uma cena de costumes, que eu vi, em 15 de julho de 1891, na aldeia de Kandíbovka, no distrito de Nicoláiev, governo de Kherson (GÓRKI, 2005, p. 101-103. Grifo meu)129.

M. Górki

Selemos um pacto. Eu escrevo e você lê. Essa relação é aparentemente bem primitiva,

simples demais, porém, é nessa troca quase contratual em que se estabelece um compromisso.

Para que se sele um pacto, é necessário que tenhamos ao menos duas vias de interlocução que se

aproximam simultaneamente. Vias essas que estão impregnadas de elementos que, em constante

combinação, fazem surgir uma dimensão cultural que permeará a relação entre autor e leitor,

instâncias não estáveis, mas dotadas de complexidade e mobilidade.

Tempo, lugares, visões de mundo são pequenas partes integrantes de uma divisão

administrativa de uma vida humana. São engrenagens cuja intensidade de funcionamento

acontece pelo sentimento, pois será ele que dará o grau de aproximação de um sujeito com um

129 “Um acompanhamento” é um conto de Górki escrito em 1895. Segundo o próprio autor, o fato ocorrido foi “verídico” e presenciado por ele.

89

tema. Partindo desse ponto, é preciso admitir que a instauração da comunicação depende de

parâmetros objetivos e também subjetivos, onde os interlocutores tenham a mesma possibilidade

de manifestação.

Leonor Arfuch, em seu texto “A vida como narração”130, coloca em evidência o valor da

experiência em uma composição autobiográfica. Esse conceito, para ela, tem a capacidade de

alocação de imagem. O testemunho ocular de quem esteve presente em situações variadas, a

inserção de dados reais, as pessoas e fatos que realmente aconteceram asseguram um grau de

veracidade à narração, permitindo a criação de personagens dignos de confiança. Na cena

aparentemente verídica, o real projetado é a energia do texto sem ter a pretensão de ratificá-lo

como verdade. Na autobiografia, segundo ela, a imagem constitutiva do texto operando com o

estético, abre o debate na literatura, uma vez que o campo da estética muda de vertente e

intervém diretamente no ético, no político e no social, sem muitos floreios. Assim na trilogia

gorkiana há uma imagem de realidade, sim, mas não como denúncia realista. Mudam-se os focos

e a banalização do cotidiano e da vida não são mais comícios em nome dos direito cívicos ou

contra o imperialismo. Tudo agora é mais denso. É uma nova forma de participação ética e

política nas artes, sobretudo na cultura de uma maneira muito privilegiada. Como um

acompanhamento, um rastro, a narrativa tem a capacidade de tornar a experiência individual em

coletiva, fazendo com que toda ação seja uma narração.

Se pensarmos em Górki, a sua própria história de vida foi um prova da importância dada

pelo real às narrativas. Sua vida esteve sempre habitada pelos personagens que desde a infância

ocuparam um espaço no seu imaginário e que se corporificaram na figura do homem-escritor que

se esmerou em acompanhar em “diários”, as constantes interrogações da vida. Foram registros,

cujos roteiros o acompanharam em

suas andanças por milhares de verstas Rússia afora, sempre procurando, juntamente com o sentido da vida, alguma solução para os problemas do povo e da Rússia, freqüentou grupos populistas e teve contatos com pregadores, tolstoianos, ladrões, guardas, fidalgos, prostitutas e mujiques (especialmente “Meus Livros Proibidos”, “Os Mujiques” e “As Mulheres” constituiriam, na trilogia, admiráveis capítulos à parte). Esses contatos, vividos intensamente, o enriqueceram com visadas rebeldes, amargas, contraditórias, muitas das quais passariam, sub-repticiamente, a fazer parte de seu ideário e contribuiriam para que, em 1898, a publicação de seu primeiro livro de contos -

130 ARFUCH, Leonor. A vida como narração. Revista PaLavra nº 10, PUC-RJ.

90

previamente rejeitado por várias editoras - o tornasse, logo em seguida, uma figura literária das mais famosas na Rússia e no mundo inteiro (BERNARDINI, 2007)131.

Através de relatos desconfiadamente verdadeiros, Górki desenvolve uma produção de

sentido que resulta dessa relação entre realidade e texto, entre transmissão de notícias e arte, não

havendo a necessidade de se tratar esses dois momentos como dicotomias. Nós leitores

conseguimos compreender essa manipulação porque já estamos comprometidos com o texto. É

como se a literatura fosse privativa de um coletivo que traz para o interior de suas estéticas as

provocações das cenas habituais. Não é sem razão que as narrativas de Górki trazem uma secura

e uma aspereza. Não é à toa que os estímulos afetivos vão estar presentes ali. Na verdade, eles

estão compondo uma descrição de uma imagem “real” intencional (e subjetiva) que acompanha a

realidade que sofre uma contaminação do que é privativo do factual e do que pode ser pensado

com a conjugação da imagem e do texto.

O conto “Um acompanhamento”, que é quase uma cobertura jornalística foi escrito para

dar a nítida impressão de que se trata de um relato flagrante de brutalidade vivida e combatida

por um narrador, que pode ter sua figura identificada com a do autor da narrativa. Em seu

parágrafo final, Górki assume que não inventou “nenhuma alegoria da tortura da verdade”. Por

isso podemos supor que seu narrador se mascara de autor132.

Em contrapartida, em Ganhando meu pão, uma cena muito parecida é descrita pelo

narrador gorkiano que reconhece uma de suas fraquezas.

131 Esta citação foi retirada de uma entrevista concedida por Aurora Bernardini (USP) ao caderno Mais!, do jornal Folha de São Paulo, em 14/10/2007. O artigo intitulado Revoluções Russas faz uma breve análise dos principais temas tratados pela trilogia autobiográfica de Górki. 132 Utilizei o termo “mascarar” porque entendo que a máscara oculta um todo de maneira parcial, isto é, deixa lapsos de dúvidas naquilo que se deseja esconder. Esse pequeno conto teve sua publicação feita pelo jornal Kriestiânskaia gazieta, no ano de 1935, com a seguinte nota de rodapé: “Górki leu esse conto, em manuscrito, e disse com inveja a si mesmo: - Eh Maksímitch, se você for mais uma vez a Kandíbovka, para extasiar-se com as pessoas, apertar-lhes as mãos vigorosas! Mas Górki está um pouco velho, um pouco fraco. E só pode saudar a distância os homens novos de nossa admirável pátria. M. Górki” (GÓRKI, 2005, p. 304) Essa nota é uma lembrança, um resgate de memória de uma experiência negativa pela qual passou Górki e que promoveu uma reação sarcástica de reconhecimento da forte relação afetiva que ele tinha com o seu passado e seu comportamento humano.

91

Eu não gostava, tinha asco até de desgraças, de doenças, queixas; quando via algo cruel, como sangue, pancadas, mesmo uma zombaria contra uma pessoa, isso me suscitava uma repugnância orgânica; ela se transformava rapidamente em um certo furor frio, e eu lutava como uma fera, depois do que ficava envergonhado até doer.

Às vezes, vinha um desejo tão apaixonado de bater num torturador, e eu me lançava tão cegamente numa briga, que mesmo agora lembro com vergonha e angústia aqueles acessos de desespero, provocados pela impotência (...) Naquele tempo, eu possuía um inimigo pérfido, zelador de uma das casas de mulheres da rua Málaia Pokróvskaia. Conhecera-o certa manhã, quando ia à feira; junto ao portão de casa, ele estava puxando de cima de um carro de aluguel uma rapariga inconsciente de tão bêbada; agarrando-a pelas pernas de meias descidas, depois de desnudá-la até a cintura, dava-lhe desavergonhadamente puxões, soltando “uhs” e rindo, cuspia sobre o corpo dela, e ela, descendo do carro aos trambolhões, amassada, cega, a boca aberta, tendo atrás da nuca os braços macios como destroncados, batia com as costas, a nuca e com o rosto azul sobre o assento do carro, sobre o estribo, e por fim caiu pela calçada, batendo a cabeça nas pedras.

O cocheiro fustigou o cavalo e partiu, enquanto o zelador se atrelava às pernas da rapariga, e, dando marcha à ré, arrastou-a para o passeio, como se estivesse morta. Perdi a cabeça, corri, e, para minha felicidade, na corrida, joguei fora ou deixei cair sem querer um nível de bolha de uma sajene, o que salvou o zelador e a mim de um caso muito desagradável. Em plena corrida, golpeei-o, derrubando-o, pulei para a entrada de uma casa e me pus a puxar desesperadamente o cordão da sineta; saíram correndo uns homens de ar selvagem, não pude explicar nada a eles e fui embora133.

Nessa passagem, vale conferir a movimentação que Górki faz do sentimento de seu

narrador. É interessante pensar que nessa perspectiva, a construção da história do autor e de seus

contextos faz do texto uma encruzilhada com a história. O que salta aos olhos é o carinho

demonstrado para falar de sentimentos, memórias e sensações, que levam à identificação de

outros e com os outros, apesar das divergências expressadas e as vicissitudes inerentes a cada um.

Uma vez mais, defronto-me com uma instabilidade da voz narrativa autobiográfica gorkiana que

me suscita indagações acerca de qual seria a relação entre as histórias de vida e as configurações

das identidades e como as autobiografias poderiam indiciar identidades coletivas.

De início, é fundamental que se desenvolvam novas sensibilidades para que se enfrentem

as nuances do complexo jogo de xadrez formado pela interação entre o real e o imaginário

literário. Antes de continuar, para fixar esse quadro no debate, menciono algumas palavras de

Górki sobre o também escritor Leonid Andrêiev.

Vi que este homem conhecia mal a realidade e pouco se interessava por ela – tanto mais me surpreendia nele a força da intuição, a fecundidade da fantasia e a tenacidade da imaginação. Bastava uma frase ou, às vezes, apenas uma palavra certeira para que, captando o mínimo que lhe era oferecido, desenvolvesse na hora um quadro, uma piada, uma personagem ou uma história (GÓRKI, 2006, p. 104).

133 GÓRKI, Maksim. Ganhando meu pão. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Cosac Naify, 2007b, p. 424-426.

92

Como o jogo de xadrez é um jogo de astúcia, assim também são a leitura e a análise de

um texto autobiográfico. Gostaria, então, de tratar a autobiografia como uma estratégia de

interação de memórias. De maneira concomitante com a obra estudada, o conto “Um

acompanhamento” compõe o leque de escritos autobiográficos de Górki que não pode ser

deixado à parte. Segundo Boris Schnaiderman, “em conjunto, eles parecem um coro múltiplo e

variado, tão variado que às vezes custa a acreditar que tenham sido escritos pelo mesmo autor”134.

Mas o que é um autor? 135 – um dia perguntou Michel Foucault. Para o filósofo, a escrita

não é um veículo para expressão dos seus sentimentos ou ideias e sim uma circulação da própria

linguagem, independentemente da existência individual. Sendo assim, há a sensação de um

apagamento do autor, uma ligação entre a escrita e a morte. É sabido que na maior parte da

história ocidental, a escrita foi um meio de nos afastarmos da morte, de nos elevarmos à condição

imortal. Entretanto, na contemporaneidade, o ato de escrever assume um papel invertido e ao

invés de garantir a imortalidade ao autor, o “mata”. Foucault observa que a individualidade de um

autor é apagada pelo texto, pois o vemos apenas como uma função da própria linguagem. O autor

passa a ser o produto da escrita. A linguagem nesta forma é o que nos incita a virar a página e

encontrar alguém que nos acolha e que nos dê a chance de poder contar com a presença de um

autor. As relações literárias são estabelecidas entre sujeito e discurso, fato que converge para o

pensamento de Bakhtin sobre o dialogismo, isto é, a ideia de que a razão dialógica é um processo

histórico gerador de uma estrutura de compreensão.

Bakhtin pode ter inspirado Arfuch a refletir sobre o trato que nós damos àquilo que

fazemos e, principalmente, sobre o manejo daquilo que fazemos e deixamos de fazer com nós

mesmos. Segundo a análise filosófica do teórico russo, a isso se atribui a nossa condição humana

que se fixa através da linguagem, criando um sistema de signos que nos confere a possibilidade

de nos reinventar. A autora argentina, por sua vez, ainda vai mais longe ao atualizar o debate e,

concordando com Bakhtin, afirma que nas obras literárias não há identidade entre autor e

personagem; ao contrário, há um certo estranhamento entre o enunciador em relação à história de

si, uma vez que há um abismo diferenciador entre ambos que é formado pelo tempo decorrido e

pelo tempo narrado. O conhecimento dialógico é uma ciranda entre o homem e a linguagem que,

atrelados a um contexto social, tornam-se interdependentes.

134 GÓRKI, Maksim. Minhas universidades. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2007c, p. 261. 135 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992.

93

Como Bakhtin já tematizava as (auto)biografias no início do século XX, ele ressurge na

cena das escritas de si em função dos múltiplos questionamentos que a literatura contemporânea

têm oferecido ao campo do biográfico. A condição fundamental para o regresso do teórico russo,

através de Arfuch, é saber que, quando se trabalha com literatura, se trabalha também de maneira

racional e sistemática, porém, o encontro que se dá entre teoria e prática é afetivo.

O elo que une Arfuch a Bakhtin é corroborado pelas palavras de Diana Klinger, quando

aponta que toda expressão vivencial faz parte de uma trama de relações sociais, afirmando que

“todo relato de experiência é, até certo ponto, expressão de uma época, uma geração, uma

classe”136. Para Arfuch, a experiência não pode ser compartilhada. Consegue apenas ser relatada

porque nós somos “proibidos” ou “incapazes” de dividir a nossa existência que é plena, porém

intransferível. Mesmo com a frustração da resignação à tentativa de transmitir uma apreciação

fidedigna aos fatos, devemos concordar que todo leitor de uma obra autobiográfica a interpretará

de uma forma contaminada pela sua própria experiência e visões de mundo que nem sempre

serão compatíveis com aquilo que o texto descreveu.

Entretanto, discordando de Arfuch, acredito que esse sentimento não caracteriza um fator

de isolamento do autor ao fazer do relato autobiográfico uma tentativa de aplacar vazios

existenciais, procurando uma função autorreflexiva em cada palavra que escolhe. Essa suposta

“solidão”, para mim, é perfeitamente superável por autores que, como Górki, souberam

confrontar experiência com a arte. A esse ponto, considero que sua escrita autobiográfica

“trabalha para a subjetivação do discurso verdadeiro, para sua assimilação e elaboração como

bem próprio, constitui também, e ao mesmo tempo, uma objetivação da alma”137.

Pode ser útil mencionar aqui que a linguagem é criada pelo povo. A divisão da linguagem em literária e coloquial significa que por um lado temos uma linguagem que poderíamos denominar “bruta” e, por outro, uma linguagem moldada por mãos de mestres. (...) O escritor é o arauto emocional de seu país e de sua classe, é seu ouvido, seus olhos e seu coração; é a voz de sua época. Deve saber tanto quanto seja possível, e quanto melhor conheça o passado melhor entenderá seu próprio tempo, com mais força e profundidade entenderá o caráter universalmente revolucionário de nossa época e o alcance das suas tarefas. É necessário e ainda obrigatório conhecer a história de seu povo; não mesmo necessário é saber o que pensa sobre os problemas sociais políticos (GORKI, 1984, p. 33).

136 KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007, p. 25. Grifo meu. 137 FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 156.

94

As palavras de Górki ditas acima são cruciais para fundamentar a contestação em relação

a Arfuch. Nessas breves linhas, Górki se mostra ciente do poder da linguagem em intercalar

autores e leitores, porém, ao longo do percurso a ser narrado, podem ocorrer aproximações e

afastamentos entre texto e leitor. Considero que a aproximação é feita pelo objeto narrado, a vida.

Sem ela, corremos o risco de parafrasear aquilo que é relatado. Por outro lado, o afastamento

também é importante por ele proporcionar o silêncio de quem escreve. Dessa forma, o

pensamento do autor fica encoberto pelas projeções de quem lê, o que não significa que eles não

estavam presentes no momento da troca de subjetividades.

Se Górki afirma que se deve conhecer a história para difundir conhecimento sobre o nosso

tempo, ele também tinha ciência de que é tarefa da interpretação de cada um erguer uma ponte

entre o texto que é oferecido e a atualidade. E esse trabalho só é possível quando o leitor faz uma

aproximação e um afastamento do material narrado, como um movimento de uma mola. Górki

não se posiciona como um arauto emocional, porém, sabia muito bem o efeito que suas frases

causariam, pois a leitura de um texto não é um ato passivo.

Cabe agora um detalhamento da constatação de que num texto, a linguagem oferece a

possibilidade de transformação do indivíduo, em sua relação consigo mesmo e com os outros. Em

mais uma passagem de Ganhando meu pão, o menino Aleksiei se coloca diante de obras de

Púchkin e as usa para uma prática reflexiva e difusora de opinião.

– Isso vai agradar você, mas não suje. Eram os poemas de Púchkin. Li todos de uma vez, possuído por aquele

sentimento de avidez que se experimenta indo parar pela primeira vez em algum lugar bonito que não se conhecia: sempre se procura percorrê-lo correndo, de uma só vez. (...) Os magníficos contos populares de Púchkin eram o que eu melhor compreendia, o que me estava mais próximo; depois de lê-los algumas vezes, já os sabia de cor; deitando-me de noite, murmurava os seus versos, os olhos fechados, até adormecer. Não raro, eu contava essas histórias aos ordenanças; ouvindo, eles davam gargalhadas, soltavam carinhosamente impropérios, o Sídorov afagava a minha cabeça e dizia baixinho:

– Bonito, hein? Ah, meu Deus... A excitação que tomara conta de mim foi notada pelos patrões, a velha xingava: – Ficou enlevado com a leitura, vagabundo, e já é o quarto dia que o samovar138

não foi limpo! Daqui a pouco, vou apanhar o rolo... –Que importava o rolo? Eu me defendia dele com os versos: Amando o mal com a alma negra, A velha feiticeira... (GÓRKI, 2007b, p. 241-215)

138 Objeto típico russo utilizado na preparação do chá.

95

Esse relato possui uma contundência porque joga com a reminiscência, fisga um passado

a fim de que ele seja como um devir para o outro. Górki faz um exercício capaz de retomar

momentos de têmpera e de tudo que emerge do vivido, pois “a vida cotidiana [se] apresenta como

uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida

em que forma um mundo coerente” 139. Ao recordar os versos puchkinianos, Górki assume que

falar sobre o seu “eu” é um ato de consciência. A narração de um momento prazeroso e

individual, proporcionado pela leitura, ocupou lugares na mente do autobiógrafo, que recapitula o

espaço e o tempo, colaborando para a elaboração de uma história pessoal. É interessante notar

que o narrador-personagem gorkiano se torna um interlocutor de sua própria experiência e de seu

lugar no mundo.

O pensamento desenvolvido por Arfuch serviu como inspiração. Dar um passeio sobre

seus conceitos me auxiliou a sair do cenário bakhtiniano para entrar numa outra esfera do debate

autobiográfico. Buscar a atualidade, no entanto, não é, de forma alguma, impor à obra de Górki

ares pós-modernos, mas fazer com que novas visões teóricas tragam maior complexidade à

trilogia. Porém, essa “modernidade conceitual” nem sempre foi amplamente discutida. Ainda

com os pensamentos autobiográficos em fase de experimentação, em um artigo de vinte e cinco

páginas, publicado no número quatorze da revista Poétique, lançada na Paris de 1973, as

primeiras análises sobre a autobiografia viraram referência por tentarem identificar e sistematizar

as características das narrativas autobiográficas. Mas, será que é possível definir uma

autobiografia?

Já nos idos de 1975, o teórico francês Philippe Lejeune, que por muitos anos foi

considerado o expoente dos estudos autobiográficos, voltou a ser discutido mediante as

comemorações de 25 anos da publicação do livro O pacto autobiográfico. Para ele, seria uma

autobiografia toda “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria

existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua

personalidade”140. Um dos principais conceitos de Lejeune é o de um pacto firmado entre autor e

leitor em que são estabelecidas as fronteiras entre a autobiografia e um texto de ficção.

Didaticamente, o autor afirma que, para reconhecermos uma autobiografia genuína, é necessário

139 BERGER, P. LUCKMANN, T. Os fundamentos do conhecimento na vida cotidiana. In. Teorias contemporâneas da literatura. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 35. 140 LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 14.

96

que esta obedeça a quatro normas básicas: 1- linguagem em prosa; 2- identidade do autor que

remeta ao nome real e ao do narrador; 3- identidade entre narrador e personagem; 4- tema

narrado, a vida privada.

Esses elementos são importantes para o reconhecimento de uma autobiografia, mas, o que

é determinante para Lejeune, no reconhecimento de uma autobiografia, é o pacto que deve ser

firmado entre três instâncias, ou seja, a identidade entre autor, narrador e personagem sobre a

qual não pode pairar nenhuma dúvida na cabeça do leitor. Sobre esse assunto, Lejeune afirma de

maneira bem humorada que “uma autobiografia não é quando alguém diz a verdade sobre sua

vida, mas quando diz que a diz” (LEJEUNE, 2008, p. 23). Assim, a assinatura num “papel” é

aquilo que sela o pacto o e que compromete as partes, já que o “nome próprio vira o lugar de

articulação entre a pessoa e o discurso” (KLINGER, 2007, p. 41).

À primeira vista, toda autobiografia deveria seguir à risca esses preceitos, mas, como toda

identidade é flexível, algumas narrativas de si podem ter direito à chancela autobiográfica, uma

vez que existe a visão retrospectiva. Ao lermos Lejeune, consideramos que a autobiografia tem o

seu lugar na literatura, porém, é difícil um encaixe perfeito das obras nesses quatro quadrantes

estabelecidos. A trilogia autobiográfica gorkiana é uma obra que, logo de primeira, “desrespeita”

as regras formuladas pelo teórico francês. De que se trata de uma narrativa em prosa em primeira

pessoa ninguém ousa duvidar. Idem para o objeto narrado que é a vida de Górki, entretanto,

nosso terreno de análise fica instável quando o assunto se volta para as figuras do autor, narrador

e protagonista.

Teve início e desatou a correr, com terrível velocidade, uma vida densa, variada, indescritivelmente estranha. Eu a recordo como uma história cruel, bem contada por um gênio bom, mas de uma veracidade dolorosa. Agora, ao reviver o passado, às vezes eu mesmo acho difícil acreditar que tudo tenha acontecido precisamente como foi, sinto vontade de contestar, de repudiar muita coisa – uma vida sombria, excessivamente repleta de crueldade, uma vida de “gente estúpida” (GÓRKI, 2007b, p. 33. Grifo meu).

Este primeiro parágrafo do segundo capítulo de Infância é um bom exemplo de que

possivelmente não houve uma intenção cristalina do autor em escrever uma autobiografia dentro

de limites impostos. Reconheço que à primeira vista, a construção do discurso nos faz entender

que existe uma coincidência entre narrador e personagem como a proposta por Lejeune, pois

aludem ao sujeito enunciador. Diana Klinger menciona Sergue Doubrovsky que, em carta

enviada para Lejeune, descreve a sua curiosidade provocada pelos limites da “noção de pacto que

97

ele desenvolvera em Le pacte autobiographique, onde Lejeune se perguntava se existia a

possibilidade de haver um romance no qual houvesse identidade de nomes entre autor, narrador e

personagem e concluía que isso era teoricamente possível, mas que não existia de fato nenhum

exemplo” (KLINGER, 2007, p. 47). Assim, em foco, estão as disparidades entre o “eu” que

escreve e o “eu” que é narrado. Essa desafinação aponta para uma margem de fabulação que

existe ao se iniciar o movimento da escrita.

Na trilogia gorkiana, o narrador utiliza o fato de ser também o protagonista para relembrar

o seu passado na infância e juventude e, embora o autor nos indique que nessas obras há um “eu”

bem real, podemos polemizar achando que pela dificuldade que se enfrenta em confrontar a

memória fica cada vez mais difícil ser sincero e dizer a verdade. Talvez, na literatura não possa

haver uma confissão, uma vez que a sinceridade é o principal artifício da narração, considerando

que o “ser sincero” pode sim ser um compromisso entre autor e leitor.

Estou deitado numa cama larga, envolto quatro vezes num cobertor pesado, e ouço como a avó reza a Deus, de joelhos, com a mão apertada contra o peito, enquanto faz o sinal-da-cruz (...)

Lá fora, faz um frio de matar; a esverdeada luz da lua olha através das filigranas- do gelo- no vidro da janela, ilumina de um jeito bonito e bondoso rosto narigudo e acende os olhos escuros como a chama de um fósforo. A touca de seda que encobre os cabelos da avó brilha como se fosse de metal forjado, o vestido escuro se agita, desce dos ombros, se estende no chão. (...)

(...) Naquela época, os pensamentos e sentimentos a respeito de Deus eram o principal elemento de minha alma, a coisa mais bela da vida – todas as outras impressões apenas me ofendiam com sua crueldade e sordidez, causavam repugnância e desgostos. Deus era o que havia de mais luminoso em tudo que me rodeava – o Deus da avó, o amigo tão afetuoso de todos os seres vivos. E, é claro, eu não conseguia deixar de me inquietar com a seguinte questão: como podia o avô não enxergar o Deus bom? (GÓRKI, 2007a, p. 75, 135)

Aqui, o exemplo é uma demonstração da fé pertinente aos russos, mas o que importa é ver

que quando se narra uma lembrança de uma situação de cunho tão pessoal é que se começa a

inventar e a desviar do que realmente se viveu. A fé e os rituais noturnos foram descritos como

verdadeiros, porém, ao fim do parágrafo, o narrador já enlaça um questionamento que

provavelmente não pensou quando ainda era menino, ou seja, ele voltou ao passado reconstruído

que forjou uma memória escondida entre as demais. Nesse espaço de fingimento, Górki

98

conseguiu como poucos absorver o que há de mais puro na alma humana e projetá-la “neste

espaço que separa o objeto narrado do lido”141.

Mas, como falar de autobiografias se não há coincidência nominal entre Górki e Aleksiei?

Se levarmos em conta a concepção de Lejeune que reitera a necessidade de haver a tripla

identidade nominal entre autor, narrador e personagem, vamos enveredar na direção de uma das

questões mais controversas quando o assunto é autobiografia, ou seja, a relação entre autor e o

seu texto. Para tentar elucidar uma dúvida como essa, me reporto novamente a Lejeune, que

afirma que o autor não é apenas um ser real, de carne o osso, mas um ser vivente que ao mesmo

tempo produz um texto. São dele as palavras que autenticam que

o autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica. Inscrito, a um só tempo, no tempo e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles. O autor se define como sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente responsável e o produtor de um discurso. Para o leitor, que não conhece a pessoal real, embora creia em sua existência, o autor se define como a pessoa capaz de produzir aquele discurso e vai imaginá-lo, então, a partir do que ele produz (LEJEUNE, 2008, p. 23).

Prestando atenção nesse discurso, vemos que o leitor só consegue sentir e compreender o

autor através produção que lhe é apresentada e, sendo assim, já podemos identificar alguns

indícios da presença do imaginário em uma pessoa real. São exatamente as lembranças que

retratam um momento que Górki de fato viveu, que foi a participação na difusão dos ideais

socialistas ocorridos entre os anos de 1884 e 1888, na cidade de Kazan. Em meio às camadas

mais diversificadas da Rússia, o autor descreve todo o frenesi causado pela correria de novos ares

progressistas e relembra.

(...) Sozinho, eu vagava pelos corredores e recantos da Marússovka, observando como viviam as pessoas novas para mim. A casa estava repleta daquelas pessoas e parecia um formigueiro. Pairava um cheiro azedo, corrosivo, e sombras densas, hostis, escondiam-se por todo os cantos. Desde a manhã até tarde da noite, a casa bramia; as máquinas de costura matraqueavam sem parar, as coristas de opereta punham a voz à prova, o estudante arrulhava escalas no registro de baixo, o ator semilouco e embriagado declamava em voz alta, as prostitutas, de ressaca, berravam histéricas, e me ocorria a pergunta natural, mas insolúvel:

– Para que tudo isso? (GÓRKI, 2007c, p. 33)

141 GÓRKI, Máximo. Contos italianos. Trad. Sérgio Faraco. Florianópolis: Garapuvu, 1998, contra capa.

99

Falar sobre o jogo político da época de pré-revoluções era a forma de mostrar a

transparência de um sentimento íntimo que sinaliza como é possível enxergar a dimensão de que

o material poético já tem uma visualidade construída. Mesmo que as imagens se pareçam, esse

movimento não é um jogo de repetição. Na realidade, é um enfrentamento onde Górki se move

na contramão da trivialidade. Seus antídotos foram um repensar de suas referências, e, nisso, a

sua sede de aprender o ajudou a reconstruir suas representações. A relação que Górki estabelece

entre o texto e a imagem produz uma sensibilidade singular da sua experiência ficcional, como a

descrita na fala do personagem Jorge, conhecido de Aleksiei.

– Essa história de progresso foi inventada para a gente se consolar! A vida é um absurdo, não tem sentido. Sem escravidão, não existe progresso, sem a submissão da maioria à minoria, a humanidade ficaria parada no meio do caminho. No intuito de tornar mais fácil a nossa vida, o nosso trabalho, só fizemos piorar a vida, aumentar o trabalho. As fábricas e as máquinas servem para fazer cada vez mais máquinas, isso é uma estupidez. Há cada vez mais operários, no entanto só o camponês é de fato necessário, o produtor de alimento. (...) Quanto menos necessidade tem o homem, mais feliz ele é; quanto mais desejos, menos liberdade (GÓRKI, 2007c, p. 64).

Górki apresenta uma literatura que se processa pelo aspecto líquido das experiências

urbanas construídas por uma série de desafios imagéticos que chegava à Rússia e que se alastrava

por todos os lados, contrastando com a tradição literária a qual ele estava ligado. Eram cidades,

cheiros, sons, luzes que se transportam para sua experiência ficcional que “[era] guiada pela

confiança de que os fatos falam por si mesmos”, como pontua Rubens Figueiredo no prefácio de

Infância. Portanto, ao recriar ficcionalmente os fatos do real, Górki faculta aos leitores, seus

companheiros de estrada, a possibilidade de conhecer esteticamente, a partir de estímulos afetivos

e cognitivos, uma outra versão de mundo e de uma história diferente da oficial, que se

manifestam abertamente naquele ambiente de mudanças e esperanças progressistas.

Isso aumentou o meu interesse por ele, (pelo personagem ucraniano que acabara de conhecer) mas não me incutiu a coragem de me apresentar, embora eu não sofresse nem de acanhamento, nem de timidez, ao contrário, vivia atormentado por uma curiosidade inquietante, por uma avidez de conhecer tudo, e o mais depressa possível. Esse traço me impediu, durante a vida inteira, de ocupar-me seriamente de uma coisa só.

Quando falavam sobre o povo, eu sentia, surpreso e desconfiado de mim mesmo, que não conseguia pensar nesse assunto de maneira como pensavam aquelas pessoas. Para elas, o povo surgia como a encarnação da sabedoria, da beleza espiritual e da compaixão, um ser quase divino, e a única essência, a única fonte de onde provinha tudo o que havia de belo, de justo, de elevado. Eu não conhecia esse povo. Eu via carpinteiros, estivadores, pedreiros; conhecia o Tákov, o Óssip, o Grigóri; mas ali

100

falavam precisamente de um povo em pura essência, e se colocavam em algum ponto abaixo dele, subordinados à vontade do povo. Já para mim parecia que eram justamente aquelas pessoas que encarnavam a beleza e a força do pensamento, nelas se concentrava e ardia uma força de vontade generosa, filantrópica, em favor da vida, da liberdade, com o propósito de construir a vida, segundo novos cânones filantrópicos (GÓRKI, 2007c, p. 52).

Novamente, a imagem política aparece sob forma de esperança. O plano histórico é cada

vez mais claro, as intenções também, mas o ficcional assume um papel especialíssimo, o de

alargar a imagem, fazê-la transcender. Uma vez percebida a materialidade visual, também é

aceita a criação de um universo ficcional. É inocente pensar que o gesto narrativo desses

exemplos evoca apenas imagens. Ele não só as evoca como trazem consigo signos da cultura

vivida pelo autor que são descritas a partir de uma técnica impecável de um escritor que aprendeu

a escrever nas universidades da vida. Em Górki, o exemplo da visualidade não é o retrato do real.

Produzir a visualidade não descreveu a realidade. O que começa a ser arquitetada é uma produção

de textual, a partir da noção constitutiva da procura de um efeito de realidade.

Estudar a trilogia como autobiografia demanda que busquemos uma interação entre os

gêneros, que se valem da memória como função narrativa. Driblando a aparente inconclusividade

da separação dos gêneros, proponho que retomemos Philippe Lejeune que, mesmo criticado,

defendeu a capacidade da obra autobiográfica de ser um modo de leitura e um tipo de escritura

que é passível de variação histórica, dependendo do contrato que se assina.

Já sabemos que Lejeune insiste que o pacto diagnosticado por ele só é possível se houver

uma afirmação no texto da identidade do nome, ou seja, o nome do autor, narrador e personagem

principal devem ser o mesmo, pois todas as formas de pacto intentam dizer a verdade e nada além

dela. O leitor até poderá questionar o que está sendo dito, mas, sob hipótese alguma, poderá

questionar a identidade daquele que escreve.

A identidade, portanto, é tratada como um elemento capital que beirava uma atitude de

“tudo ou nada” (LEJEUNE, 2008, p. 55). Para o autor, toda a conduta desprendida pela

autobiografia para nos convencer da autenticidade de sua narrativa pode também ser utilizada

pelo romance, que muitas vezes a imita. Essa apropriação da tutela de um pelo outro é

considerada válida pelo teórico, desde que nós nos atenhamos ao texto, pois se somássemos a ele

a capa do livro e o nome do autor que a assina, estaríamos reconhecendo a identidade do nome, e

assim “compactuando” com o contrato.

101

Pensando exclusivamente em Górki e nos títulos que ele atribuiu à sua obra, podemos nos

deter a uma curiosidade. O título original em russo do primeiro volume (Diétstvo) não causa

surpresa, pois a palavra “infância” não vem acompanhada do pronome possessivo “minha”, de

“minha infância”, como trazem alguns exemplares em português. Sendo assim, a infância poderia

ser de qualquer um como a descrita por Tolstói em livro homônimo. O segundo volume, em

russo, V liúdiakh, também não provoca considerações gramaticais por não conter nenhum indício

de alguma palavra ligada diretamente ao autor. Entretanto, em Minhas universidades (Moí

universitieti), há uma marcação de posse, ou seja, Górki chama de “suas” as universidades, as

experiências de vida, acreditando que a identidade de seu personagem está relacionada ao

reconhecimento do seu nome próprio, tornando-o identitário de um espaço tanto individual

quanto social. Obviamente, essa é apenas uma linha interpretativa que nos leva em direção ao

entendimento mais amplo do que seria a identidade gorkiana.

Porém, a explanação acima seria uma faca de dois gumes para Lejeune, já que ele afirma

que um leitor distraído e inábil quanto às questões retóricas poderia não perceber a sutileza do

autor e considerar seriamente uma enunciação falsa do discurso narrativo e confundi-la com as

reais intenções do autor dispostas por uma “identidade assumida” (LEJEUNE, 2008, p. 25). Essa

questão sobre a (suposta) identidade entre autor-personagem e narrador é instigante, porque essa

relação é o que afirma o pacto autobiográfico de Lejeune. Porém, em Górki, há uma mácula nessa

assertiva, que será estudada posteriormente. Por enquanto, limito-me a dizer que a identidade do

nome proposta pelo teórico francês se instaura em Górki de forma especialíssima.

Na trilogia, a identidade tal qual formula Lejeune não se confirma. A identidade é velada,

não estabelecida por nomes. Estamos, então, frente a frente com a problemática do estatuto

autobiográfico. Assumo, portanto, o risco de reconhecer que a trilogia autobiográfica de Górki

não pode ser lida dentro de paradigmas clássicos e de saber que, por outro lado, há instâncias

criadoras incontestáveis que podem torná-la uma ficção autobiográfica, já que através da

semelhança há uma identidade entre o autor e personagem que o “autor escolheu negar ou não

afirmá-la” (LEJEUNE, 2008, p. 25). Para Lejeune, o romance autobiográfico surge quando o

leitor chega à conclusão de que há fatores suficientes para traçar uma identidade entre autor e

narrador. Não se trata de uma identidade oriunda do pacto, mas vinda da soma do conhecimento

extratextual do leitor sobre a vida do autor e do texto literário.

102

Como em Infância, Ganhando meu pão e Minhas universidades não houve um esforço de

Górki em ratificar sua obra como verdade, dada a ausência de uma confissão ou uma justificativa

explícita das razões pelas quais ele escreveu as suas memórias. Ao não emitir palavras

reveladoras, Górki permite que a trilogia seja lida como um romance, mesmo não deixando de

usar elementos autobiográficos. A meu ver, ao esconder a identidade nas três partes da

autobiografia, Górki é sagaz ao incutir na obra recursos ficcionais que fundamentam a não

classificação da mesma na esfera autobiográfica pura sugerida por Lejeune.

Em uma primeira análise, o foco gorkiano investe na verossimilhança e não na

facticidade. A voz do “eu” gorkiano é a voz do menino Aleksiei, de cinco anos, escolhido para

contar a sua história, que do ponto de vista intelectual seria impossível, considerando que um

menino não poderia narrar a sua própria história com tamanha precisão. Na tenra idade, entre os

cinco e os dez anos, o menino Aleksiei não deixa claro se os fatos narrados, principalmente em

Infância e Ganhando meu pão, remetem ao autor, pois, habilmente, Górki não permite que os

fatos embranqueçam ou se diluam e revive sua infância através da lembrança com relatos

adequados à linguagem infantil.

Ao nos apresentar as circunstâncias que envolveram a sua infância, a partir da morte do

pai, o menino-narrador introduz aos leitores figuras típicas russas e esteriótipos, que serão

dissecados durante o seu crescimento (lê-se: durante a evolução da narrativa). Na passagem

abaixo, Aleksiei narra um fato de vida muito traumatizante para a família, um incêndio que

destrói a tinturaria de seu avô e, assim, compromete a condição financeira de vida dos entes e dos

agregados. A situação ainda é agravada pelo parto prematuro de seu primo em meio às chamas, o

que leva sua tia Natália ao óbito. Percebe-se claramente que as descrições de Górki sobre o

alastramento do fogo são produtos de ficcionalização. São muitos os detalhes inseridos numa

linguagem poética que sofre uma brusca interrupção causada por um relato mais simples e mais

dinâmico, marcado pela reação do menino frente ao sofrimento.

Através da geada nos vidros, via-se como o telhado da tinturaria ardia e lá dentro, por trás da porta aberta, o fogo encaracolado agitava-se em redemoinho. Suas flores vermelhas desabrochavam na noite quieta, sem fazer fumaça; apenas muito alto, acima delas, vibrava uma nuvem um tanto escura, mas que não impedia a visão da torrente prateada Via Láctea. A neve reluzia avermelhada e as paredes da casa tremiam, ondulavam, como se quisessem precipitar-se para o canto quente do pátio, onde o fogo cintilava com alegria, inundando de vermelho as largas frestas da parede da tinturaria e se projetando, através delas, como pregos torcidos e incandescentes. Nas tábuas escuras do teto seco, retorciam-se fitas douradas e vermelhas, que se enrolavam rapidamente no

103

telhado; no meio delas, de forma gritante, ressaltava e fumegava uma chaminé fina, de cerâmica; um crepitar suave, um farfalhar sedoso, palpitava no vidro da janela; o fogo aumentava mais e mais; a tinturaria adornada pelo fogo, ficava parecida com a iconóstase de uma igreja e exercia uma atração invencível.

Depois de enrolar a cabeça numa peliça curta e enfiar os pés numas botas que eu nem sabia de quem eram, me arrastei para o vestíbulo, para a porta de entrada, e fiquei aturdido, cego pelo rebrilhar cambiante do fogo, ensurdecido pelos gritos do avô, de Grigóri, do tio, e pelos estalos do incêndio, e assustado diante do comportamento da avó (...)

– Então a avó se queimou mesmo. Como é que ela vai fazer o parto? Puxa, como a tia geme! Esqueceram dela; sabe, ainda no início do incêndio, começou a ter contrações... com o susto... (...) Em cima da estufa, fazia um calor insuportável, eu desci, mas quando cheguei aonde estava o tio ele segurou minha perna, puxou e eu caí, bati com a nuca no chão.

– Seu burro, eu lhe disse (...) – Vou arrebentar você contra a estufa... Acordei na sala, num canto, junto aos ícones, sobre os joelhos do avô; com

olhar voltado para o teto, ele me balançava e dizia em voz baixa. – Não existe nada que nos desculpe, a nenhum de nós... (GÓRKI, 2007a, p. 84-

85)

As latentes lembranças de sua linha temporal aliadas a um profundo conhecimento

popular foram os ingredientes para a tessitura da maioria das obras de Górki. Posicionado entre a

realidade e a ficcionalidade, o autor conjuga uma narrativa que se dispõe a permanecer viva na

memória dos acontecimentos. Recordo-me de Tzvetan Todorov, que afirma que a memória

sozinha não é suficiente para evitar os estragos do mundo e que faz bom uso da memória aquele

que legisla por uma “causa justa”142. E o que seria uma causa justa? – Seria, certamente, o uso de

uma memória que não tivesse o caráter nocivo, fossem eles fatos inerentes à vida individual do

autor ou à história política russa.

Aqui, a memória é tratada como um mero pretexto da autobiografia, pois concordo com a

opinião de Lejeune, quando ele considera a autobiografia e a memória categorias não fechadas,

que podem abarcar não só o relato pessoal quanto à movimentação histórica de uma época. Essas

interferências de uma categoria na outra favorecem ao texto vivencial, na medida em que Górki,

distanciado cronologicamente de seu passado tem a oportunidade de lapidar os acontecimentos,

via visão reflexiva.

Encerro essa discussão, apostando no conceito de “pacto” como interação, que levou

Lejeune a entender que ele “evoca imagens mitológicas, como os “pactos com o diabo”, em que

se vende a alma, assinando com o próprio sangue...” (LEJEUNE, 2008, p. 56). Sem dúvida, esse

pacto aponta para uma participação recíproca entre quem escreve, quem narra e quem lê. E dessa

142 TODOROV, Tzvetan. Memórias do mal, tentação do bem. Porto: Asa, 2002.

104

interação se destacam os conceitos que darão margem às próximas análises da memória, da

“atuação” do autor, do narrador e da reflexão como um ato de criar.

2.2 SUJEITO INDETERMINADO – UM INTERLÚDIO

Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário, o que é necessário é criar. Fernando Pessoa143

Honestamente, chegou o tempo em que o heroísmo se faz necessário: todos querem algo de excitante, de resplandecente, qualquer coisa, veja, que não se pareça com a vida, mas que a supere, qualquer coisa melhor, mais bela. É absolutamente necessário que a literatura atual comece a embelezar um pouco a vida, e, assim que isso acontecer, irá se viver mais prontamente, de maneira mais luminosa. Hoje, entretanto, veja como o olhar é torpe, triste, turvo, congelado! (GÓRKI)144

Habituamo-nos a falar sobre o discurso certeiro de um narrador, ressaltando ser ele o

grande condutor da narrativa. Entretanto, é importante mantermos em mente que todo romance

ganha vida devido a um personagem, que logo de princípio capta a confiança do leitor que se

deixa levar pela imaginação, ao passo que o narrador surge como um meio de transmissão da

história. O que se estudará a seguir será exatamente a fusão entre narrador e personagem como

resultado da imaginação do autor.

A oposição entre a criação e a descrição implica diretamente num amarelamento da

capacidade de verossimilhança que a literatura possui em detrimento da credibilidade e da

aceitação dos relatos dos fatos. Em oposição a essa visão limitante sobre o modo como se

estabelecem os fatos como sendo meras palavras de alguém que esteve em algum lugar e viu

alguma coisa, o texto criado, “por ser ficção, não está impossibilitado de expor profundas

verdades humanas, bem como, por ser realista, um texto não está isento de expressar a mais

143 Trecho do poema Navegar é preciso, retirado da obra PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1969. 144 TAKEDA, Cristiane Layer. O cotidiano de uma lenda. Cartas do teatro de arte de Moscou. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 133. A epígrafe é um trecho de uma carta escrita por Górki para Tchékhov em janeiro de 1900.

105

intensa subjetividade do autor”.145 Tal proposição acarreta a necessidade de concebermos a

prática literária como articuladora das oscilações entre realidade e ficção.

Poetas e romancistas aproximam história e ficção, pensando sempre em uma realidade

que não se deixa pegar. E, se a realidade é volátil, será que conseguimos aprender um pouco

sobre nós mesmos? Será que existe a chance de fazer história, a partir da ficção? O texto

autobiográfico diz que sim, pois nele reside a capacidade de restauração do espaço das

possibilidades mesmo que se tenha em mente um conceito de verdade pré-concebido que

demanda uma postura diante do que ela nos impõe.

Nesta tese, analiso que tanto a história quanto a ficção se referem às ações humanas,

porém com referenciais e intentos distintos. Ao que me concerne, a ficção é uma realidade que,

diferentemente da história, entrevê uma potencialidade. A obra literária possui sempre uma outra

vertente além daquela que já existe, ou existia, que incentiva a possibilidade de transformação. E,

é nessa ideia de “transformação” que me valho para tratar o texto autobiográfico como criação,

pois a fresta para a invenção justifica o texto como não histórico, mesmo que à história nos

remeta e a ela recorra durante sua feitura. Assim, Górki utiliza uma verdade narrativa cuja base

está no

êxito (...) quase exclusivamente nas reminiscências; ora atacando os intelectuais pelo seu afastamento do povo, ora defendendo-os face ao poder revolucionário; voltando-se freqüentemente para o passado, mas com absoluto desprendimento [e] com a máxima humildade (GÓRKI, 2005, p. 10).

A autobiografia gorkiana assimila a presença da imaginação e torna tolerável a

convivência com o não saber e são essas incertezas que constróem sua ficcionalidade. Se a ficção

questiona, indaga, poucas explicações oferece e nós continuamos lendo, isso talvez signifique que

sejamos o centro de uma ambiguidade, de uma falta de “verdade” restauradora da vida. Para fazer

com que história russa continuasse disponível e aberta, Górki surge como um sujeito que

solicitou constantemente um passado marcado no corpo, nas vivências e nas falas. Esse sujeito

inventado, Maksim Górki, acabou por se tornar um arqueólogo ficcional sempre em busca das

145 Trecho retirado do artigo Realismo a serviço da subjetividade, do psicanalista Sérgio Telles sobre o livro Represálias Selvagens, de Peter Gay. Artigo disponível no site do jornal Estadão: http://www.estadao.com.br/noticias/impressorealismo-a-servico-da-subjetividade.

106

consciências que não deixaram que seus relatos fossem a única forma legítima de encontrar a

verdade.

Quando se fala em Górki, a priori, não desconfiamos de que se trata de um autor que

utilizou um pseudônimo, porém, um estudo sobre o nome Maksim Górki é de grande valia para

entendermos a linguagem literária do escritor. O nome forjado desse russo desvela um

interessante mecanismo através do qual são alcançados os limites do emocional e do ético em sua

obra. É através do disfarce que Górki amplia a complexidade da condição existencial a uma

potência máxima.

Numa abordagem puramente teórica a questão do pseudônimo pode não ser tão crucial

devido ao trato superficial a ele concedido. Para Lejeune, por exemplo, o pseudônimo não gera

polêmica, pois é apenas

um nome diferente daquele que foi registrado em cartório, usado por uma pessoa real para publicar todos os seus escritos ou parte deles. O pseudônimo é um nome de autor. Não é exatamente um nome falso, mas um nome de pena, um segundo nome. (...) É certo que o emprego do pseudônimo pode, às vezes, encobrir um embuste ou ser imposto pela discrição: mas trata-se, na maioria das vezes, de produções isoladas, e quase nunca de uma obra que se apresenta como uma autobiografia de um autor (LEJEUNE, 2008, p. 24. Grifo meu).

Prestemos atenção à frase acima grifada. Então, o que dizer das obras Infância, Ganhando

meu pão e Minhas universidades? Estaria tudo fadado a um fracasso autobiográfico?

Nas páginas dos livros de Górki escritos de 1892 em diante, encontra-se o nome Maksim

Górki como autor das obras que, na trilogia, nos apresenta um menino batizado de Aleksiei

Maksímovitch Piechkóv, seu nome real. De pronto, nos colocamos diante de um desequilíbrio. Se

não devemos “confundir o pseudônimo assim definido como nome do autor (que consta na capa

do livro) com o nome atribuído a uma pessoa fictícia (...), pois essa pessoa é ela própria

designada como fictícia pelo fato de que não pode ser o autor do livro”, como define Lejeune,

como compreender o fato de que o nome “ficcional” escolhido por Górki para o seu narrador-

protagonista é o seu próprio nome de batismo? Assim, institui-se um primeiro confronto entre a

criação e a realidade trazido pela simples capa que cobre a história: Maksim Górki versus

Aleksiei Piechkóv.

Maksim Górki, como mencionado, passou a ser o nome que assinou as obras de Aleksiei

Piechkóv, a partir da publicação de Makar Tchudrá, no jornal O Cáucaso. Daí para a frente,

107

Maksim Górki se tornou o “nome falso” mais representativo da literatura russa. Por essa razão, se

faz necessária uma investigação acerca desse pseudônimo, por ele ter sido um ponto de interseção

entre o indivíduo empírico e o ficcional. Enfrentando a escassez bibliográfica sobre o tema,

proponho uma interpretação baseada nos moldes culturais russos que contribuíram para a

formação de uma ambientação estético-literária. Para estudo desse cunho, aquilo que o

pseudônimo representa não é carta de descarte, pelo contrário, é a peça que ilustra a presença de

uma “ingenuidade autêntica”, que tão facilmente nos arrebata nos volumes que compõem a

trilogia.

Nina Gourfinkel inicia seu livro Górki por ele próprio com a seguinte observação:

Ao adoptar o pseudônimo de Gorki, o Amargo, Alexei Maximovicth Pechkov revelava a sorte das personagens que ia descrever. A escolha do seu nome literário inspirava-se, sem dúvida, no epíteto que sempre acompanha a palavra destino, nos ditados populares russos: “o destino amargo”. Tal era, também, o destino das novas personagens que introduzia na literatura 146.

Amargo e amargura são palavras que trazem para a literatura de Górki a convivência da

ação de fatores do meio externo com a sublimação do que se faz dela. Na Rússia, há dois

provérbios que ilustram bem o destaque dado por Gourfinkel como característica da formação de

um riscado adotado por alguém que não teve a intenção de se esconder atrás de uma falseta. São

eles: “Onde quer que esteja o problema, não há como escapar. / Lançado o navio na água,

colocado nas mãos de Deus”147.

Essa permanente incidência de elementos provenientes do destino, do cotidiano, da

história e da cultura, produz sobre os indivíduos, segundo Antônio Candido, “um em efeito

prático modificando a sua conduta e concepção do mundo ou reforçando neles os sentimentos dos

valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe do grau de consciência que

possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte”148. O próprio Górki, referindo-se aos

provérbios reconhece o universo multifacetado que resume toda uma cultura.

Em geral, os provérbios e os refrões com exemplar brevidade toda a experiência vital, social e histórica do povo trabalhador, e para um escritor é imperativo estudar esse

146 GOURFINKEL, Nina. Górki por ele próprio. Porto: Portugália Editora, 1964, p. 5. Grifo meu. 147 CITAÇÃO ORIGINAL: Где беде быть, там её не миновать / Пущен корабль на воду, сдан богу на руки. 148 SOUZA, Antônio Candido. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária . São Paulo: Nacional, 1976, p. 24.

108

material, que lhe ensinará a apertar algumas palavra tal como se apertam as dedos para se formar um punho, e a desprezar outras palavras que têm sido minuciosamente espremidas por outros – desprezá-las para revelar as coisas ocultas, hostis à tarefa da hora, que têm estado escondidas nas palavras. Tenho aprendido muito dos provérbios, ou, em outras palavras, tenho pensado em forma de aforismos (GORKI, 1984, p. 33-34).

Após isso, podemos dizer que Aleskiei Piechkóv faz de Maksim Górki uma espécie de

espelho invertido de si mesmo no qual tudo que o “eu real” é se refrata pelo “falso eu”. Em uma

obra envolta em controvérsias autobiográficas, nos posicionamos diante de um raro momento

onde o autor, um sujeito indeterminado, se coloca via pseudônimo como narrador-personagem

com tanta maestria a ponto de provocar uma confusão entre uma pessoa e outra. Nesse caso, o

uso de outro nome nos dá a sensação de que podemos penetrar um pouco que seja no universo de

quem criou esse mundo gorkiano, isto é, Górki, sob a regência de Aleksiei Piechkóv. A utilização

desse recurso fez com que Górki tivesse nas mãos um poder suficiente para humanizar cada vez

mais a figura dele como escritor. A eficácia do pseudônimo não se restringiu à descrição

evolutiva do realismo149 gorkiano, também possibilitou a imersão total do texto dentro de uma

sociedade com a qual o autor teve que interagir.

Com isso, Górki se apropria do que é próprio a Aleksiei. Esse aspecto combinatório liga

um rosto a uma pessoa e mostra as facetas de uma mesma face. Facetas tais formadas pela

representação da vida dos excluídos socialmente e da crítica aos valores burgueses que evidencia

que o autor vivenciou muito do que escreveu. Em Górki, o mascaramento proporcionado pelo

pseudônimo é um jogo de esconde-esconde onde a simulação da existência de um Aleksiei

empírico convive com a impostura de Górki, ou, em outras palavras, com o constructo de Górki.

Essa relação é tão mutuamente intensa que a ocultação de um nome não enaltece o outro, dado

que a persona é quem recria a pessoa, ou seja, Górki não é um esconderijo, mas sim, um

instrumento simbólico para re-elaboração dos elementos da vida ocorridos realmente. É

interessante notar que mesmo que o pseudônimo Górki fosse ignorado, uma vez que o público já

tinha a persona como um ficcionista, isso não apagou a possibilidade de confusão entre o sujeito

empírico e o da enunciação.

149 Introduzi o temo “realista” por, em geral, Górki ser considerado o último autor pertencente ao realismo russo como afirmava o próprio V. Korolenko, orientador técnico do autor, que, ao perceber que pinceladas com heróis insólitos estavam sendo dadas nos textos, uma dia lhe disse: “– É romantismo! – Exclama aflito. – É romantismo e o romantismo morreu há muito tempo... Parece que toma um caminho que não é o seu. É realista, realista, e não romântico!” (GOURFINKEL, 1964, p. 6)

109

As experiências cativas, por sua vez, dão um cunho violento à narrativa e causam um

questionamento quanto ao valor verídico da obra, ou seja, a estética literária russa estava

mudando e a literatura gorkiana representava a crise do homem moderno que conviveu com o

esfacelamento dos valores e dos discursos assentados sobre verdades absolutas. Segundo Boris

Schnaiderman, as atuações literárias de Górki

refletem sobretudo os ambientes que ele conheceu nas andanças intermináveis da Rússia, o submundo de prostitutas, mendigos e ladrões, a humanidade torva das casas de cômodos e dos albergues noturnos, as “universidades” a que se referiria com tão profundo sentido humano em sua autobiografia. E isso resultou num escândalo e numa verdadeira revolução na literatura. É verdade que outros já haviam tratado o tema. Prostitutas e ladrões, vagabundos e mendigos, aparecem nas obras de Dostoiévski e Tchékhov, o próprio Tolstói também já se debruçara sobre aqueles ambientes. No entanto, com Górki, aquela humanidade surgia com a sua filosofia às vezes simplista, a sua poesia freqüentemente rude. Havia desafio e insolência, atitude desabusada e franqueza, rebeldia e espírito anárquico neste Górki. (...) E também com uma concepção literária que se chocava quer com as tradições do realismo russo, tão atento à descrição de ambientes e à análise psicológica, mas que não conhecera ainda uma irrupção assim violenta das realidades do submundo, quer com o esteticismo, o requintamento, a busca de sutileza, característicos da vida literária russa (...) (GORKI, 2005, p. 12).

Seguindo essa linha de pensamento, se pode afirmar que a obra de Górki se situa no

contexto dos escritores de fins do século XIX, sendo marcada por uma permanente busca para

representar a “pequena gente” e sua infinidade de tipos. Ao caracterizar o vagabundo, Górki tenta

uma volta ao estado natural no qual os personagens confiam na sua própria força para se

libertarem de qualquer tipo de jugo. Os personagens amargos são entidades que tentam superar

barreiras e que são contra a opressão do homem pelo homem. As diversas variantes da imagem

projetada pelo pseudônimo aproximaram do autor tudo que a realidade lhe havia negado. Fica

evidente que a complexidade do pseudônimo recai na interação entre essas possibilidades e na

justaposição delas na literatura.

Aleksiei (o sujeito empírico) foi tão bem representado que o

nome de Górki andava em todas bocas, desde O canto do falcão (1895), acolhido como um hino revolucionário, e a publicação de suas narrativas em dois volumes, 1898, alcançou grande êxito. A polícia, inquieta, tinha os olhos em cima dele, mas o escritor estava sempre em movimento e não conseguiam saber o seu paradeiro. Um relatório de 1898 diz: “É um homem extremamente suspeito; leu muito, maneja bem a pena, atravessou quase toda a Rússia (quase sempre a pé); passou mais de um ano em Tiflis sem ocupação certa e saiu de lá sem se saber para onde... (GOURFINKEL, 1964, p. 33)

110

Essa questão ainda apresenta a vertente do plano da experiência, quando Aleksiei e Górki

são interrogados mutuamente, embaralham-se e, juntos, contribuem para dar novos rumos à vida

em texto. A narrativa confessional, a ênfase na descrição de um pensamento russo direcionado

pela ética e a relação do pensamento do escritor com o contexto histórico, nos levam a entender

melhor a dinâmica do pseudônimo que possibilita que uma entidade imaginária se coadune com a

existência de uma pessoa real.

O nome Górki é muito mais importante do que uma simples camuflagem. Aquilo que traz

uma tenacidade incontestável ao pseudônimo é a estimulação de um efeito de indecisão entre a

realidade e a ficção, uma vez que Górki não se coloca como um escravo do passado e/ou um

burocrata do presente. Se para escapar da responsabilidade que a realidade impunha era preciso

uma submissão a algum tipo de dominação, o autor optou por enfrentá-la através da liberdade de

ver a história como um meio de tornar comunicáveis as experiências pessoais.

A história do trabalho humano e da criatividade é muito mais interessante e significativa do que a história do homem. O homem morre antes de atingir os cem anos, embora as suas obras vivam através dos séculos. As fabulosas conquistas da ciência e seu rápido crescimento podem ser explicados por um cientista, conhecedor do desenvolvimento de sua especialidade. A ciência e as letras têm muito em comum: ambas têm um papel de liderança que é interpretado pela observação, comparação e pelo estudo; tanto o escritor quanto o cientista devem ter imaginação e intuição (GORKY, 1973, p. 28).150

A sensibilidade de Górki em não permitir a equivalência entre seu pseudônimo e seu

personagem talvez possa impedir que sejam questionadas as imperfeições de seu ser, tendo em

vista que Aleksiei foi uma pessoa física além de ser um personagem acreditável interlocutor das

confissões de vida. Fica a cargo do menino a incumbência de nomear, identificar e,

principalmente, individualizar todas as pessoas com quem se relacionou pela vida. Ao contrário

de outras autobiografias, Aleksiei é um personagem criança, sem larga experiência de vida e

talvez por isso não relate as suas memórias de forma direta, sequencial e plana. Através desse

recurso, Górki não transforma a narrativa em um registro documental e não atribui a ela o

controle de sua memória. O resultado disso é um efeito de espontaneidade que traz ao relato uma

sensação de que estamos acompanhando tudo de muito perto. Aleksiei, então, foi criado como o

150 CITAÇÃO ORIGINAL: “The history of human labour and creativity is far more interesting and significant than the history of man; man dies before reaching the age of hundred, whilst his works live through the centuries. The fabulous achievements of science and its rapid growth can be explained by the scientist knowing the history of his speciality´s development. Science and letters have much in common: in both a leading part is played by observation, comparison, and study; both the writer and the scientist must possess imagination and intuition”.

111

[indicador] mais [manifesto] da ficção é por isso bem mais marcante a função da personagem na literatura narrativa. Há numerosos romances que se iniciam com a descrição de um ambiente ou paisagem. Como tal poderiam possivelmente constar de uma carta, um diário, uma obra histórica. É geralmente com o surgir de um ser humano que se declara o caráter fictício (ou não-fictício) do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária.151

Anatóli Lunatchárski, crítico russo, em seu livro Sobre literatura e arte, é categórico ao

dizer que Górki é uma espécie de testamento literário que enche de expectativa uma gama de

leitores de um determinado momento histórico. O crítico até brincou com os nomes Górki e

Aleksiei, dizendo que Górki chegou à literatura vestindo botas e camisa camponesas e que o

autor das obras completas é ninguém menos que o bom e velho amigo Aleksiei Maksímovitch

Piechkóv. Assim, se estabelece que houve entre os dois uma sintonia necessária para uma

equalização da representação ficcional da realidade, isto é, das coisas observadas (reais) e

sentidas (subjetivadas).

Sim, Górki chegou à literatura calçando botas e camisa de camponês, tuberculoso, ainda poderoso, tendo bebido uma da xícara de pesar, ainda ansioso por felicidade; ele chegou nos escritórios ensolarados das revistas que eram verdadeiras editoras em comparação ao seu porão de origem, para dizer a mais pura e terrível verdade sobre a sua vida cega, imunda e horrível. Essa foi a grande missão de Górki, isto foi o seu realismo penetrante, sarcástico e impiedoso. (…) Contudo, Górki, que falou ao leitor russo com a voz profunda e silenciosa da terrível vida dos pobres cujas histórias foram intensamente insuportáveis, não tocou o leitor com amargura (…) O autor de quase trinta volumes sob o título Obras Selecionadas de Maksim Górki, não é ninguém menos do que o nosso caro amigo, Aleksiei Maksímovich Piechkóv. 152

O nome Górki, ao longo da carreira de Aleksiei (o escritor), ganhou uma extensão que

forneceu a ele uma brecha para viver dentro de si, liberando uma índole expressiva de um autor

151 CANDIDO, Antônio. ROSENFELD, Anatol. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, p. 17. Numeração compatível com a versão e-book, disponível em http://ipub.com. 152 LUNACHARSKY, A. On literature and art. Trad. Y. Ganushkin. Moscou. Progress Publishers, 1965, p. 218-220. Grifo meu. CITAÇÃO ORIGINAL: “Yes, Gorky came to literature dressed in peasant boots and peasant shirt, tuberculous, yet mighty, having drunk deeply of the cup of grief, yet yearning for happiness; he came to the sunny offices of the magazines which were salon editions compared to his native cellar, to tell the full and terrible truth about the “moles” and their blind, filthy, horrible life. This was Gorky´s great mission, this was his biting, sarcastic, merciless realism (…) However, Gorky, who spoke to the Russian reader in his deep, muffled voice of the terrible life of the poor, and whose stories were at times unbearable in their intensity, did not strike the reader as being bitter (…) The author of nearly thirty volumes under the general heading of The Collected Works of Maxim Gorky is none other than our dear, good friend Alexei Maximovich Peshkov”.

112

com ideias, emoções e valores artísticos que foram melhor observados através da operância do

pseudônimo. De acordo com o pensamento de Joseph Frank, que reitera o fato de a literatura ser

um veículo para incursões sociais podemos atribuir ao pseudônimo Górki mais essa

funcionalidade: a de ser uma espécie de bumerangue que o autor lança contra um mundo que o

oprime e o recebe de volta após uma parábola de tentativas de proporcionar uma ação coletiva

com as palavras. De acordo com Frank,

se a literatura russa foi, assim criada em conexão tão íntima com o pensamento russo, foi também porque esse pensamento era ele mesmo tão amplamente focalizado nas preocupações políticas e socioculturais que ocupavam todo cidadão russo pensante; não havia qualquer incongruência na criação de personagens conscientemente absortas em questões aparentemente tão abstratas, “filosóficas”. (...) Isto se deve apenas ao fato de que a literatura não é um adorno ou acessório da existência cotidiana; é a única forma na qual os russos podem ver discutidos os verdadeiros problemas com os quais se preocupam e que seus governantes sempre acharam melhor que eles ignorassem (FRANK, 1992, p. 62).

É nessa possibilidade de construção de um sujeito via história que Aleksiei/Górki teve

inspiração para construir suas obras, provocando muitas vezes incerteza entre os momentos

efetivamente lembrados e vividos com aqueles manipulados ficcionalmente. O pseudônimo

conseguiu fazer um movimento confluente entre autor e personagem, que juntos, tornam

homogêneas as experiências realmente vividas e as inventadas em um só corpo. Roland Barthes

resume esse conceito quando diz que:

“o autor, quando se crê nele, é sempre concebido como o passado de seu livro: o livro e o autor colocam-se por si mesmos numa mesma linha, distribuída como um antes e depois: considera-se que o autor nutre o livro, quer dizer que existe antes dele, pensa, sofre, vive por ele; está para a sua obra na mesma relação de antecedência que um pai para com o filho”. 153

Se assumirmos o exercício autobiográfico como condição de possibilidade ao discurso de

um outro – uma espécie de “discurso dos vestígios” –, podemos extrair pontos de contato entre

realidade e ficção. Górki detém o conhecimento histórico e seus princípios ordenadores

tradicionais, mas cria um discurso outro para construir uma espécie de “ficção subjetiva” na

narração de sua “história de vida”. Górki constrói a sua relação com a realidade de forma

assimétrica e sempre através de Aleksiei. O pseudônimo, então, se posiciona exatamente entre os

“opostos” realidade/ficção, antes incompatíveis, de modo complementar e faz com que aconteça

153 BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense 1998, p. 65.

113

um mundo histórico com tanta ficção quanto o imaginário e um mundo imaginário com tanta

realidade quanto o mundo histórico.

É, portanto, o elo que estabelece a correlação e a reciprocidade entre processos de

constituição social e textual, ponto crucial de uma autobiografia, especialmente a função

testemunhal primária que lhe é atribuída. Na autobiografia, as memórias de Górki funcionam

como recurso de referência e, ao mesmo tempo, de autenticação do “real”, estratégia

desenvolvida por meio do foco numa ordenação simbólica e na colocação de um “suposto real”

como espaço que deveria ser de pura concretude. Sendo assim, o espaço de Górki nessa nova

interpretação é a compreensão da dualidade entre nome e pseudônimo como o ato simbólico. Em

seu artigo “A contaminação simbolista do estilo “realista” de Górki”, Edward Brown sugere que

o surgimento de Górki na literatura foi um ato simbólico. Ele não surgiu como ele mesmo, porém, utilizando o pseudônimo Górki, “o amargo”, como todos agora já sabem. Esse nome foi sentido como um desafio colocado à literatura tradicional. Agora, nós aceitamos o nome Górki como um nome perfeitamente normal de um escritor russo e nos surpreendemos toda vez que um índice bibliográfico diz: “ver Piechkóv, A.M”. O nome era estranho, especial, porém muito marcante em 1897154.

Brown apresenta uma importante discussão ao salientar que o surgimento de Górki155 na

literatura nos trouxe a mensagem da sua experiência, apresentando-a em uma prosa de beleza

única, tecida de forma seca e ao mesmo tempo tocada pelo lirismo que permeia todo o universo

do imaginário intelectual do autor. Para o crítico,

o surgimento de Górki foi [também] um fato tanto social quanto literário. Górki foi subitamente projetado em um espectro literário de duas extremidades, onde, na extremidade superior, não há dúvida (estavam) os simbolistas com o seu intenso interesse no ofício da escrita como tal, a preocupação com a religião e a filosofia e o seu tratamento do meio literário como uma busca por um “outro mundo” (BROWN, p. 234).156

154 BROWN, Edward J. The Symbolist Contamination of Gor`kii´s “Realistic” Style, p. 233. Artigo publicado na revista Slavic Review e acessado no site JSTOR em outubro de 2008. CITAÇÃO ORIGINAL: “Gor´kii´s appearance in literature was itself a symbolic act. He appeared not as himself but under the pseudonym gor`kii, the “bitter one”, as everyone now knows. The name was felt as a challenge to established the traditional literature. We now accept the name Gor`kii as the perfectly normal name of a Russian writer and experience a bit of surprise every time a bibliographical index tells “see Peshkov, A.M, but the name was strange, special, and very marked in 1897”. 155 Aqui, ainda devemos interpretar o nome Górki como uma criação e não um nome enraizado por alguém. 156 CITAÇÃO ORIGINAL: “Gor`kii´s appearance on the literature scene was both a social and a literary fact. Gor`kii was suddenly injected into a literary spectrum that featured at one end – the upper end, no doubt – the symbolists with their intense interest in the craft of writing as such, their concern with religion and philosophy, and their treatment of the literary medium as an “other wordly” pursuit”.

114

Entre as últimas décadas do século XIX e o início do XX, o simbolismo surgiu num

período em que a Rússia procurava conquistar a maturidade e a autonomia, reagindo contra o

realismo e o naturalismo na arte. Em 1905, as ideias de Schopenhauer, Nietzsche circulavam

livremente e o “pessimismo filosófico se [aliava] a um individualismo absoluto, cujo isolamento

só [pôde] ser superado por meio da arte. O que [estava] em pauta [era] o valor absoluto da arte e

sua independência ilimitada. A função da arte e os problemas intrínsecos ao fazer artístico

[adquiriram] importância fundamental.”157.

Para Vassíli Tolmatchov, a origem desse estilo vem da raiz do verbo simbolom, significa

“ligar”. Em linhas gerais, o simbolismo significou um ultrapassar de limites, isto é, uma grande

mistura, uma

simbiose entre artistas e pensamento filosófico [que pôde] ser expressa por meio de pontos em comum como:1. a mesma luta contra o positivismo; 2. a busca de um novo renascimento diante da estagnação dos anos 1880-1890; 3. os pressentimentos escatológicos; 4. a busca de novos valores dentro do inacessível, do invisível, do desconhecido e de outros mundos em oposição à morna banalidade da realidade; 5. o desejo de criar uma arte sintética que englobe todos os ramos da criação: religião, filosofia, literatura, música, arquitetura, pintura e escultura (CAVALIERE, s/d, p. 1).

As vivências, portanto, são problematizadas ao longo do texto escrito e os autores

utilizam a símile e um certo lirismo para mostrar a encruzilhada de culturas e a tensão

proveniente dos conflitos político-sociais. O caráter lírico, entretanto, cede lugar a uma

tragicidade e o texto se torna, assim, uma espécie de manifesto. Dessa forma, o “eu” seria

emparedado pela ignorância e por discursos legitimadores de uma sociedade pré-revolucionária.

O nome Górki foi mais uma oportunidade para a interpretação da experiência interior do

homem Aleksiei que concede a Górki a consciência de rasgar a si mesmo, enfrentando as forças

externas. O ultrapassar da consciência objetiva de Aleksiei está relacionado com o fato de o

pseudônimo não ter sido uma simples preocupação com a reputação, mas sim uma latitude

subjetiva da pessoa humana. Ele foi crucial para as obras de Górki posteriores a Makar Tchudrá,

dado que a relação da imaginação com a violência da vida social está diretamente ligada com o

grau de invenção autorreflexiva e mimética da realidade produzida por um nome resultante de

157 CAVALIERE, Arlete. O teatro simbolista russo, s/d, p. 1. Artigo publicado pela Universidade de São Paulo -USP-FFLCH. Acessado em fevereiro de 2010.

115

uma criação. O momento para isso era favorável, pois, “ao invés do espaço da vida cotidiana,

[havia] um metaespaço simbólico onde os objetos se condensam à memória e ao tempo”158.

Segundo Tolmatchov, o que se tem é a interiorização de uma questão social, isto é, ainda

que se possa dizer de que se trata de um discurso da rememoração biográfica, o “eu” do texto não

é apenas um “eu” biográfico, mas o discurso de toda uma coletividade. A palavra é aquela que

assume uma força revolucionária. Para o crítico, a arte deve se desprender de idéias pré-

concebidas, já que a sua grandeza supera qualquer fator de ordem social. Em Górki, também

podemos observar “passo a passo a criação de um novo mundo por meio da subjetividade. As

histórias desse processo são cheias do otimismo, da sensação da inesgotabilidade das

possibilidades criadoras abertas para a liberdade individual”159.

Na autobiografia gorkiana, as fronteiras entre autor e narrador se embaçam em uma

estrutura narrativa onde não se busca elucidar mistérios, mas sim saber conviver com eles. Pelas

escritas de quem faz uma autonarração, descobrimos que somos perfeitamente capazes de nos

deixarmos levar pelo inexplicável sem contestações e, se isso acontece, talvez seja porque haja

um mistério dentro de cada um de nós. A implosão do que seria esperado, dentro da lógica

tradicionalista (que seria a distinção entre autor e narrador) acaba proporcionando a recuperação e

a junção dos fragmentos da história e da memória do autor que se movimentam e formam um

caleidoscópio de registros.

Essa união de múltiplos fatores constituintes da vida de Górki dá destaque justamente a

Aleksiei que é ofertado ao leitor como um menino-homem de carne e osso, comprometido com

suas atividades diárias, com a sua vida compulsória, bem diferente de um narrador/personagem

multiforme. Nesse sentido, Górki trabalha como um artesão que, segundo Walter Benjamin,

“respeita a matéria que transforma, tem uma relação profunda com a atividade narradora: já que

esta também é, de certo modo, uma maneira de dar forma à imensa matéria narrável, participando

assim da ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra” 160.

158 IVASHKIN, Alexander. Letter from Moscow. Post October Soviet Art: Cannon and Symbol. Oxford: Oxford University Press, 1990, p. 97. Artigo acessado pelo site JSTOR em setembro de 2012. CITAÇÃO ORIGINAL: “Instead of the space of everyday life, this is a symbolic metaspace where objects become condensates of memory and time”. 159 TOLMATCHOV, Vassíli. Sobre as fronteiras do simbolismo. In: CAVALIERE, Arlete. VÁSSINA, Elena. SILVA, Noé (org). Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005, p. 30. 160 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 11.

116

Se a matéria narrável é inesgotável, é porque a história é um tempo que está sempre

disponível. De forma contrária ao que se pensa, a história não está sitiada no passado, ela se

renova em cada natureza e é constantemente solicitada pelo presente, ou seja, são as experiências

vividas (no geral, a história) que oferecem o potencial necessário para novas possibilidades.

Sendo assim, até que ponto as malhas do real se confundem com as visões de uma realidade

comprometida com um olhar individual? Já que nesse caso, o real é tanto a fonte quanto o

material narrado e ficionalizado, essa questão causa uma sensação de dubiedade sobre o narrador

na autobiografia gorkiana. Mas como isso seria possível se, em via de regra, o autobiógrafo é o

responsável pela transmissão de sua própria história? Esse sentimento dúbio ocorre ao

percebermos que na trilogia os fatos são narrados por uma entidade que atua, simultaneamente,

como narrador, personagem e autobiógrafo. Ligado ao passado por várias verdades, Górki deixa

evidente que todos devem ter um passado, uma história, para que possam produzir o novo.

Entretanto, as experiências individuais que temos nunca são suficientes para lidar com o que é

inerente ao presente, por isso, se faz necessária uma re-elaboração.

Eu sei que a verdade é prejudicial a 150 milhões de pessoas que compõem a massa russa e que todas as pessoas precisam de um tipo diferente de verdade. Uma verdade que não diminua e nem aumente sua energia no trabalho e na criação. Essa verdade que estimula a confiança do homem na sua vontade e razão já foi semeada nas massas, dando excelentes resultados (TROYAT, 1986, p. 171).161

Ao analisarmos tudo que foi debatido até aqui, vemos que quando a obra literária se abre,

ela escancara a impossibilidade de que tudo seja dito, porém nos ensina a reconhecer o campo das

possibilidades. Não as possibilidades que vão além da história, mas aquelas que poderão sustentá-

la como um lado de verdade. “A construção do real técnica ou poética, socialista, liberal,

burguês, capitalista, comunista, comunicativa, religiosa, virtual, é uma de-cisão sobre a essência

do agir (...) Transformar e interpretar pressupõem já uma de-cisão sobre a essência do agir”162.

O que temos, no entanto, é um mundo real “construído”, a partir da visão transitória do

narrador que revê o passado e o remonta, misturando lembrança e fabulação, apreendendo,

161 CITAÇÃO ORIGINAL: “I know that the truth is harmful to the 150 million human beings who make up the mass of the Russian people, and that all people need a different kind of truth, a truth that does not lessen, but heightens their energy in work and creation. This truth, witch stimulates man´s confidence in his will and reason, has already been sown in the masses and giving excellent results”. 162 PUCHEU, Alberto. Literatura, para que serve? In. CASTRO, Manuel. A (org). A Construção poética do real. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p. 226.

117

“através do símbolo, a essência do mundo”163. Essa entidade não intenta distinguir a história da

ficção, porém deixa claro que ambas são implicações de linguagem que estão extremamente

próximas, uma vez que também conhecemos o passado através do texto. O narrador gorkiano,

mesmo mascarado pelas figuras ficcionais, é inseparável do objeto que está descrevendo. Ao

considerarmos a fusão entre Górki e Aleksiei, podemos entender que todo o tempo de vida virou

um espaço de fabulação. Um virou o álibi do outro, já que

(...) literatura fabrica um implícito de vida em nossos corpos, fabrica um corpo implícito em cada um de nossos corpos explícitos, fabrica um corpo intensivo em cada um de nossos corpos extensivos, um corpo invisível em cada um de nossos corpos visíveis, tornando-os, assim, vida. São indiscerníveis, estes termos, na encruzilhada. (...) O que conta, portanto, não são os termos literatura-corpo-vida: o que conta é apenas a encruzilhada, inescapável, a indiscernibilidade experimentada inadiável (PUCHEU apud CASTRO, 2004, p. 227).

Relembrando Bakhtin, a subjetividade narrativa garante que nenhum tipo discurso é

neutro quanto à ideologia passada para o leitor, já que narradores engajados como os de Górki

contam com a precisão para organizar e escolher aquilo que justifica a sua verdade pessoal que

não pode ser confundida com aquela verdade absoluta da Renascença. O cerne da questão das

relações entre autor e narrador, esteja ele escondido atrás de um pseudônimo ou não, reside na

crença em que na literatura gorkiana há a presença explícita de um narrador que não é onisciente,

porém, é consciente de sua ideologia, e contradiz as verdades irrefutáveis da história, mostrando

que mesmo essas verdades também foram construídas através de testemunhas, ou seja, de

narradores. Assim, desmorona o conceito de que a história carece de uma ideologia por ser

desprovida de um locutor.

Aleksiei desestabiliza a visão racional de que há uma diferença colossal entre o real

vivido e o narrado. Aleksiei foi configurado para mostrar que a realidade por ele descrita pode ser

semelhante ao discurso histórico oficial russo, pois ele também é seletivo e organiza fatos

passados que serão mostrados no decorrer da narrativa. Narradores como ele ligam dois pontos e

diminuem o abismo criado entre o romancista e o historiador.

Em “O narrador”, Benjamin trilha outros caminhos que levam a uma visão diferente no

que diz respeito às diferenças entre o narrador e o autor, afirmando que a modernidade e o

surgimento do romance infringiram a morte à narrativa. O teórico indica que “a arte de narrar está

163 Palavras de Dmítri Merejkóvski escritas no manifesto simbolista russo.

118

em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente (...). É

como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia ser segura e inalienável: a

faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1987, p. 197). Já o romance, como um

“vilão”, se diferencia da arte narrativa, uma vez que

o narrador retira da experiência o que ele conta; sua própria experiência ou a relatada pelos outros e incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes. O próprio romancista se segrega. A origem do romance é o indivíduo isolado que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos e nem sabe dá-los (BENJAMIN, 1987, p. 201).

Por outro lado, Benjamin afirmou um dia que Heródoto, o pai da História, nunca deu

explicação alguma de nada e exatamente por isso a aura misteriosa do Egito Antigo continuava

causando curiosidade. Por que isso acontece? – Porque há imaginação – E porque, mesmo que a

“história [elimine] o irracional, [ela não consegue impedir que] o racional [fique] por criar, por

imaginar, pois [ela] não tem a potência para pôr o verdadeiro no lugar do falso”164. Em sua

autobiografia, Górki trabalha com uma “cara” de realidade e tem seu projeto estético baseado no

entrecruzamento de várias realidades “impregnadas de eternidade”165. O caráter simbólico

atribuído a Górki talvez venha “da ambigüidade e da riqueza de significados graças ao caráter

múltiplo de suas alusões”166.

Partindo dessa premissa, vemos que Aleksiei é um narrador consciente de sua

ficcionalidade. Sua voz é a primeira que irá direcionar a narrativa de Górki, a dele própria e as

outras pequenas narrativas sobre a vida de personagens coadjuvantes, dividindo funções com o

autobiógrafo, que se imbui de dar referências aos fatos históricos, comprovando ou não versões e

opiniões. Temos um narrador que segue a postura literária russa de dar voz a figuras margeadas

pela sociedade. Em Infância, convivemos com um menino-narrador que, maltrapilho, enxerga a

deterioração de sua família desde quando desembarca no cais da cidade de Níjni-Nóvgorod, de

volta à casa do avô.

164 MERLEAU-PONTY, Maurice. A crise do entendimento. In. Os Pensadores. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1975, p. 230. 165 Expressão de Manuel Bandeira em A casa do meu avô. 166BERNARDINI, Aurora. Simbolismo brasileiro (Alphonsus de Guimaraens) e simbolismo russo. In. CAVALIERE, Arlete. VÁSSINA, Elena. SILVA, Noé (org). Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005, p. 170.

119

Desembarcamos na margem, e, num grupo ruidoso, caminhamos para o morro por uma ladeira calçada com pedras grandes, entre duas escarpas elevadas, cobertas de um capim murcho, amassado.

O avô e a mãe iam à frente de todos. Quanto à altura, ele não chegava ao ombro dela, caminhava a passos miúdos e rápidos, enquanto a mãe, que olhava de cima para o avô, parecia flutuar. Atrás deles, em silêncio, vinham os tios: Mikhail, seco que nem o avô, de cabelo preto e liso, Iákov, de cabelo claro e crespo, algumas mulheres gordas, de vestidos de cores vivas, e seis crianças, todas mais velhas do que eu, e todas quietas. Eu caminhava junto à avó e da pequena tia Natália. Pálida, de olhos azuis, barriga enorme, muitas vezes ela parava e, ofegante, sussurrava:

– Ai, eu não consigo! – Para que eles foram incomodar você? – resmungava a avó, zangada – Que

gente estúpida! Tanto os adultos quanto as crianças – todos me desagradavam, eu me sentia um

estranho no meio deles e até a avó pareceu se apagar, afastar-se. Quem me desagrava em especial era o avô; na mesma hora, pressenti nele um

inimigo e surgiu em mim uma atenção especial em relação a ele, uma curiosidade cautelosa (GÓRKI, 2007a, p. 30-31).

Aleksiei fala em primeira pessoa e ainda se apresenta como um narrador sem uma

coerência completa, pois as suas dúvidas de menino ainda são flagrantes ao analisar os outros e a

si mesmo. O trecho acima é a chave para que compreendamos um tipo de narrador que,

consciente de sua ficção, aos poucos demonstra a impossibilidade de existência de qualquer

personagem carente de incertezas num mundo novo (moderno) ao qual é atirado.

A casa inteira estava atulhada de inquilinos; só no andar de cima, o avô havia separado para si um quarto amplo, que servia também como sala de visitas, enquanto eu e a avó nos instalávamos no sótão. A janela dava para rua e, debruçado no peitoril, eu podia ver como os bêbados, à noite e nos feriados, se arrastavam para fora da taberna outra vez; algo estalava, tilintava, uma roldana guinchava, começava uma briga – ver tudo isso de cima era muito interessante (GÓRKI, 2007a, p. 93).

Outro exemplo inerente ao narrador é o da contextualização cultural russa e a explicação

feita pelo autor do descaso das autoridades para com o povo. Ao focalizar o fato histórico, a

narrativa situa Aleksiei em um liame estratégico a fim de desenhar um outro quadro; um lugar

autobiográfico em que os personagens apresentam uma movimentação político-social, atuando

por menção ou referência a atos de figuras reais e grandiosas da história.

Muitas coisas que ele [ o avô ] contava, eu não tinha vontade de lembrar , mas mesmo sem a advertência do avô elas irrompiam com força na memória, com lascas que machucam. O avô jamais contava histórias inventadas, mas apenas coisas que tinham acontecido, e notei que ele não gostava de perguntas; por isso mesmo eu lhe perguntava com insistência:

– Quem é melhor: os franceses ou os russos?

120

– Ora, como é que vou saber? Afinal, não vi como os franceses vivem na terra deles – resmungava, zangado, e acrescentava:

– Na sua toca, até o furão é bom... – E os russos são bons? – Tem de todo o tipo. No tempo dos sonhadores de terra e da servidão, eram

melhores; o povo andava acorrentado. Mas agora, olhe só, estão todos soltos e não há pão nem sal! Os senhores, está claro, não são benevolentes, em compensação acumularam mais inteligência; não dá para dizer isso de todos (...) Mas tem outros que são burros que nem um saco: o que você enfiar lá dentro, ele carrega.

– Os russos são fortes? – Tem uns forçudos, mas a questão não é a força, é habilidade; por mais que

alguém seja forte, um cavalo será sempre mais forte. – E por que os franceses fizeram a guerra contra nós? – Bom, a guerra... é assunto dos reis, não é coisa que a gente possa entender. Mas quando perguntei quem era o tal Bonaparte, o avô respondeu de forma

inesquecível: – Era um homem valente, queria travar guerras com o mundo inteiro e depois

queria que todo mundo vivesse por conta própria, sem necessidade de senhores, nem de funcionários, assim: viver sem classes! Só os nomes seriam diferentes, os direitos seriam os mesmos para todos (GÓRKI, 2007a, p. 106-107. Grifo meu).

O tempo e a sociedade em que Górki viveu são revelados através de episódios das mais

diversas ordens. A autobiografia serviu para uma visão dos bastidores da sociedade e todos os

seus personagens são resultado da mistura da visão do autor no presente momento da escrita com

a lembrança da infância. Apenas os fatos externos ao texto, a aderência entre a vida e a arte pode

atestar a historicidade ou a ficcionalidade dos fatos descritos, visto que

(...) praticamente não há nenhum escritor russo do século XIX que, ao ter descoberto algo a seu respeito, tenha duvidado, por um instante sequer, se o preço a ser pago era relevante para a sua atividade como escritor. Não consigo pensar em nenhum escritor russo que tenha tentado escapar de algum julgamento utilizando o álibi de se dizer um indivíduo como pessoa e outro como escritor.167 .

Ao teorizar sobre o narrador, Benjamin cita algumas palavras de Górki dirigidas a

Nikolai Leskov, dizendo: “Segundo Górki, “Leskov é o escritor mais profundamente enraizado

no povo, e o mais inteiramente livre de influências estrangeiras”. O grande narrador tem sempre

suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais”” (BENJAMIN, 1987, p. 214).

Assim, o que se faz ou não se faz cria o presente e o que sabemos ou não sabemos constrói o

167 BERLIN, I. The Russian Thinker. Nova Iorque: The Viking Press, 1978, p. 128. CITAÇÃO ORIGINAL: “(…) there is scarcely any Russian writer in the nineteenth century who, if something of the sort had been discovered about himself, would have doubted for an instant whether the charge was relevant to his activity as a writer. I can think of no Russian writer who would have tried to slip out with the alibi that he was one kind of person as a writer”.

121

passado e essas duas ondulações estão fortemente vinculadas à compreensão do presente que está

ou esteve em curso na narrativa.

Em Infância, Ganhando meu pão e Minhas universidades, a presença do narrador tem

suma importância, pois é ele quem determina o que vemos do passado de Górki e como ele é

dito. A trilogia nos intriga, fazendo com que a sua figura dividida em Górki e Aleksiei se volte

para o seu interior (sua subjetividade) e para o seu exterior (sua sociedade). O relato

autobiográfico gorkiano oferta perspectivas inusitadas porque deságua em reviravoltas e

consegue sufocar ideias prontas, fato que impressionou Tolstói que, ao conhecer Górki, já havia

percebido que havia algo de estranho naquele menino-adulto.

– Vamos, conte-me qualquer coisa, você sabe contar muito bem. Algo sobre si mesmo, ainda pequeno. Nem dá para acreditar que também foi pequeno. Você é tão diferente. Como se tivesse nascido adulto. Em suas idéias há muito de pueril, de imaturo, mas sabe bastante sobre a vida, nem precisa saber mais (GÓRKI, 2006, p. 56).

Contudo, finalizo esse interlúdio, acreditando que Górki talvez tenha conseguido

expressar através de seu narrador errante um desejo de que a história fosse uma referência que

permitisse o impensado, pois o impensado não é o impossível, é apenas algo que não havia sido

pensado antes. E, como disse Dostoiévski: “A verdade verdadeira é sempre inverossímil, você

sabia? Para tornar a verdade mais verossímil precisamos necessariamente adicionar-lhe a

mentira”168.

A seguir, passemos a estudar como a história transita no espaço autobiográfico ficcional

gorkiano.

168 Frase do romance Os demônios.

122

2.3 DAS LEMBRANÇAS DO MENINO-HOMEM ALEKSIEI AO OTIMISMO AMARGO DE

MAKSIM GÓRKI

CONVERSA SOBRE POESIA COM UM FISCAL DE RENDA

“Porém, se vocês pensam que se trata apenas de copiar As palavras a esmo, Eis aqui, camaradas, minha pena, podem escrever vocês mesmos!” V. Maiakóvski169

Górki trouxe à literatura valiosas conquistas: a manipulação da verossimilhança e os

desafios a serem superados durante a leitura de suas obras; o ganho e a perda da memória e a

renúncia da reprodutibilidade de acontecimentos como moeda de troca laboral.

Para entender como esses recursos estão imbricados nos conceitos de história e memória,

devemos entender, que “o fato de Górki ter pertencido a duas eras - com uma carreira que

começou no tsarismo e atingiu sua fruição no socialismo - fez com que muitos escritores o

vissem como um “albatroz””170 (TROYAT, 1986, p. 175), como uma ave de vôos soltos.

Na introdução do livro O romance russo, Brito Broca faz um arrazoado sobre a

relevância do trabalho de Melchior de Vogüé, dizendo que o romance russo detém a capacidade

de registrar o esforço do espírito humano, pois “se encarrega, sozinho, de estabelecer todos os

problemas da vida nacional. (...) Vamos ver, os russos defendem a causa do realismo com

argumentos novos. (...) É um grande processo; ele constitui nesta hora o fundo de todas as

169 Trecho final do poema Conversa sobre poesia com o fiscal de renda, de V. Maiakóvski, escrito em 1926. MAIAKÓVSKI, V. Poemas. Trad. Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 122. 170 CITAÇÃO ORIGINAL: “The fact that Gorky belonged to two eras – he began his carreer under czarism and brought it to complete fruition under socialism – made some writers see him as the “sortmy pretel” he had celebrated in his poem”. Referência ao poema de Górki, A canção do Albatroz.

123

questões literárias no mundo civilizado; e sob as cores da literatura revela as concepções mais

essenciais dos nossos contemporâneos”171.

Vogüé argumentava que o realismo russo foi uma atitude cultural e literária, que não

virou as costas para as perturbações da alma, para o contexto social, para a religião, para a

moralidade e para a ética. Diante disso, o cenário russo se tornou um contexto amplamente

favorável às manifestações artístico-literárias de caráter social; o tipo de romance alheio a

qualquer premissa cívica foi praticamente colocado à margem por caracterizar-se como

veiculador de expressões puramente individuais num mundo que procurava extravasar diversos

anseios entre as linhas do romance. E, para isso acontecer, era imprescindível que a história

acolhesse “o depoimento dos povos. (...) Para esclarecer o curso dos acontecimentos, algumas

vontades dominantes não bastam; o espírito das raças, as paixões as misérias ocultas, o

encadeamento dos fatos insignificantes, tais os materiais com os quais se reconstrói o passado”

(VOGÜÉ, s/d, p. 21).

O depoimento na literatura, “essa confissão das sociedades, não podia permanecer

estranha à reviravolta geral; pelo instinto, primeiramente, pela doutrina, em seguida ela tem

estabelecido sobre o espírito novo, seus métodos e seu ideal” (VOGÜÉ, s/d, p. 22). Este formato

que foi se russificando, principalmente no realismo, foi uma maneira de atribuir à leitura das

obras uma função múltipla; a de “desdomesticar” a arte do romance como havia no ocidente; a de

provocar uma catarse de sentimentos, contribuindo para que a mente humana fosse purgada; e de

disseminar os tão necessários impulsos revolucionários, no caso de Górki. Vogüé volta os seus

olhos para os grandes romancistas russos, mas é na reflexão sobre Tolstói que está nosso foco. A

literatura tolstoiana, sem dúvida, exerceu um papel social dos mais importantes dentro de um

ambiente no auge do seu realismo, visto que o escritor acreditava viver em uma época em que os

alicerces da sociedade russa eram erigidos do seio das próprias famílias onde residiam, ou

deveriam residir, os valores como a seriedade e o decoro, com homens e mulheres exercendo

papéis bem delineados por uma literatura edificante que beirou a pedagogia.

Em vários textos, vemos Tolstói atribuindo a sua arte um poder moralizante que ratificava

a negação do conceito de arte pela arte. Nas obras, havia uma reflexão acerca da leitura desses

manuais de conduta moral, com ou sem convicção, não era o suficiente para que os pecados

imperdoáveis fossem pagos. Isso ensejou um simulacro do viver através de comportamentos

171 VOGÜÉ, Melchior. O romance russo. Rio de Janeiro: A Noite, s/d, p. 18-19.

124

moral e socialmente aceitáveis. No texto de Tolstoi, há muita hesitação e uma certeza absoluta na

execução do delito moral, porém, seus personagens eram conduzidos a “parecer” ser o que a

sociedade exigia, pouco importando se, longe dos olhos julgadores, a realidade fosse outra.

Dentro do propósito tolstoiano, a literatura tinha a função educacional e civilizatória. Assim,

apesar das restrições morais que Tolstói infringiu a si mesmo, a produção ficcional se tornou

criações do mais alto grau de significância e empolgou leitores criados num mundo tecnificado e

contemporâneo, que viram nessa literatura um regaste de valores perdidos no tempo.

Em 1873, Tolstói escreve: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é

infeliz à sua maneira”172, frase que inicia o romance Anna Karênina. Sua alma profundamente

russa na sua inquietação, na sua insatisfação, na sua incansável busca pela verdade, nos seus

anseios místicos de um paraíso na terra, abre a temática desse escritor que travou uma eterna

batalha entre a pessoa dele, o artista e o reformador social, entre o niilismo absoluto e a vontade

de criar um mundo novo, entre o orgulho e uma ânsia de humildade e de amor aos homens e a

natureza. Essas inconstâncias comportamentais trouxeram às obras de Tolstói uma característica

autobiográfica, uma vez que elas vieram acompanhadas de intensos desejos confessionais.

No caso de Tolstói, a projeção da personalidade do autor não se faz com um caráter direto

e imediato. A elaboração estética imprime aos personagens uma grande variedade, mas eles

sempre representam determinadas concepções que preocupavam o autor e que muitas vezes

chegavam à obsessão. O vasto mundo de Tolstói constitui um reflexo de profundos dramas

morais e a complexidade daí resultante é o produto de uma elaboração artística que parte de um

núcleo de ideias bastante singelo. Toda a sua obra foi arrebatada por momentos turbulentos que

ditaram o ritmo de suas produções. Como salienta Vogüé, os personagens nascem da alma do

romancista e da própria alma russa, sem retoques ou enfeites. Para ele, Tolstói

passeia pela sociedade humana com uma simplicidade, um natural que parecem interditos aos escritores do nosso do nosso pais; contempla, escuta, grava a imagem, fixa o eco do que viu e ouviu; é definitivo e de uma justeza que nos força o aplauso. Não contente de reunir os traços esparsos da fisionomia social, decompõe-nos até seus últimos elementos, com uma aplicação sutil; sempre preocupado em saber como e porque um ato se produziu atrás enquanto não o desnuda, retirando-o do coração com suas raízes secretas desligadas (VOGÜÉ, s/d, p. 231).

172 TOLSTÓI, L. Anna Kariênina. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 17.

125

O mais valioso para o leitor são as atitudes do autor diante da vida. Tolstói criou um estilo

de contínua evolução que ia da opulência ao despojado e que se aproveitava integralmente das

riquezas contidas no linguajar do povo. Desenvolveu uma poética estudada e marcada pelo

reflexo de um temperamento simples de descendência nobre, que conseguiu encontrar requinte na

própria simplicidade.

Toda essa visita ao círculo tolstoiano foi importante para marcarmos um ponto de

encontro entre Górki e Tolstói e assim fundamentar a relevância das características

autobiográficas. Se Górki teve inspiradores, Tolstói certamente foi um deles173. Sua temática

forneceu grande aparato de visão social amplamente explorado por Górki. Com pensamentos

convergentes, podemos aproximar ainda mais os dois reconhecendo que ambos escreveram obras

autobiográficas. A trilogia “mal disfarçada” de Tolstói, nas palavras de Vogüé, Infância,

Adolescência e Juventude é um apanhado das memórias que são como um “diário do despertar de

uma inteligência para a vida [e que] revela-nos todo o segredo a formação moral de Tolstói. O

autor experimenta, em sua própria consciência, a análise penetrante e inexorável, que levará, mais

tarde, à sociedade; adestra a mão em si mesmo antes de levá-la aos outros” (VOGÜÉ, s/d, p. 234-

235). Para contemplar o passado e fazer de suas lembranças algo válido para gerações futuras,

Tolstói escreve, entre 1856-57, a sua trilogia e deixa registradas em diário as seguintes palavras:

No que diz respeito à minha vida, eu a considero do ponto de vista do bem e do mal que pude fazer e me dou conta de que toda minha longa existência se divide em quatro períodos: o primeiro, poético, maravilhoso, esfuziante da infância, até os quatorze anos. Depois, vinte anos horríveis de depravação grosseira a serviço do orgulho, da vaidade e, principalmente, do vício. O terceiro período, de dezoito anos, vai de meu casamento à minha ressurreição espiritual: o mundo poderia classificá-lo como moral, visto que nesses dezoito anos levei uma vida honrada e regular, sem nunca me abandonar àqueles vícios que a opinião pública reprova, mas interessando-me estritamente por aquelas preocupações egoístas pela família, pelo nosso bem-estar, pelo sucesso literário e por todas as minhas satisfações pessoais. Finalmente, a quarta fase, que vivo agora, depois de minha redenção moral. Disso tudo, não desejaria mudar, a não ser os maus hábitos que adquiri durante os períodos precedentes.174

173 Consta que Górki, em suas referências a Tolstói, certa vez disse: “Sei que não há ninguém mais digno de ser chamdo de gênio, ninguém mais complexo, contraditório e belo em tudo. Sim, sim, mesmo no sentido singular amplo e que escapa das palavras. Há nele algo que sempre sucitava em mim a vontade de gritar para todo o mundo: Olhe, que homem surpreendente vive na Terra. Porque ele é universal e, antes de tudo, é um homem de humanidade. Não sou órfão nesta Terra enquanto existir esse homem”. A última frase foi repetida na carta que Górki escreveu ao saber da morte de Tolstói, em parte, reproduzida a seguir. 174 TOLSTÓI, Liev. Contos da nova cartilha. Trad. Maria Aparecida Botelho Soares. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005, p. 13-14. Prefácio de Aurora Bernardini.

126

Górki mantinha um forte apreço por Tolstói e pôde contar com seus conselhos e sua

presença em momentos persecutórios muito difíceis. A experiência dele era o maior motivo da

estima de Górki, que via nas obras todo o mosaico possível de acepções do ser humano; os

abismos interiores de desejo e culpa, os determinismos materiais e a tentativa de transcendê-los,

as utopias políticas e religiosas, a fronteira fina entre sanidade e demência, lucidez e possessão.

Com essa poética dividida em várias subpoéticas, aos olhos de Górki, Tolstói se torna o ornato da

épica burguesa, acreditando que o maior herói do romance é o povo, unido para expulsar os

invasores da “Santa Rússia”. Ao ser informado da morte de Tolstói, Górki se manifesta e lhe

dedica algumas palavras.

Morreu Liev Tolstói. Chegou um telegrama e, nele, com as palavras mais banais está dito: faleceu. Isto foi um golpe no coração, berrei de mágoa e de tristeza, e agora, num estado

meio louco, imagino-o tal como o conheci, como o vi, e tenho uma vontade dolorosa de falar sobre ele. Vejo-o deitado no ataúde - como uma pedra lisa no fundo de um regato e, em sua barba grisalha, provavelmente, esconde-se silenciosamente seu sorriso ilusório e alheio a todos. E as mãos dele, finalmente, repousam um sobre a outra, ao acabar seu trabalho de condenado.

Lembro-me de seus olhos agudos, que viam através de tudo, o movimento dos dedos que sempre pareciam esculpir alguma coisa do ar, suas conversas, seus gracejos, as palavras mujiques prediletas e a voz indefinível. E vejo quanta vida abraçou este homem, quão inteligente, acima do humano, e temível ele era. (...) O mar é parte de sua alma, e tudo em volta-vem dele, de dentro dele. Na imobilidade meditativa do velho vislumbrava-se algo de profético, de mágico, afundado na escuridão debaixo dele, vértice escrutinador elevado para o vácuo azul sobre a Terra, como se fosse ele, sua vontade concentrada, que atraísse e que empurrassem as ondas, dirigisse o movimento das nuvens e das sombras que pareciam fazer as pedras se mexerem, acordarem (...) Não há como exprimir com palavras o que eu senti naquele momento; minha alma foi tomada de euforia e de pavor, depois tudo de uniu em um pensamento feliz: “Não sou órfão nesta Terra enquanto existir nela este homem” (GÓRKI, 2006, p. 39-40).

Participando da herança tolstoiana, Górki dizia que a tarefa da literatura é ajudar o homem

a se compreender. Assim, um grande ponto de inflexão de ambos foi reconhecer que a história

tinha muito peso na vida e que “[ela] não é uma ciência. Sê-lo-ia caso conseguisse, como as

ciências da natureza, a física, a astronomia, a geologia etc., prever acontecimentos futuros ou

permitir, com exatidão, a retrovisão do passado”175. Górki, por sua vez, se concentrou em seu

espírito jovem e impetuoso, admirado por Tolstói, e aproveitou esse contato com um mestre que

o entendeu profundamente para lapidar o seu talento como escritor.

175 MASON, Jayme. Mestres da literatura russa. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995, p. 103.

127

Se não fosse esse cruzamento dessas duas personalidades, da alma indômita com a

prudente, talvez não tivéssemos a tessitura de um registro de vida nos moldes da autobiografia

gorkiana. Ao maximizar personas, Górki escreve em primeira pessoa e reflete sobre a sua própria

identidade e as suas sensações de “pertencer” e “não pertencer” em todos os lugares em que

circula. Seus personagens, em movimento com a história, caminham pelo mundo russo em busca

de um lugar de pertencimento, de concretude. Assim como a obra de Tolstói, a trilogia de Górki

vem reforçar que as grandes narrativas podem dar sentido, sim, às trajetórias de vida e que ainda

há espaço para que identidades sejam sustentadas por uma nação sólida, porém indefinida.

Para estabelecermos uma conduta interpretativa, retorno a Benjamin para irmos além do

maniqueísmo que aprisiona o debate, pois

(...) [na autobiografia], o mais importante temática e estruturalmente, é o fato de que o narrador reconhece como o processo de percepção do seu próprio desenvolvimento é paralelo ao curso de sua narrativa. Portanto, a estrutura do discurso autobiográfico se baseia no paralelismo entre o crescimento da consciência do narrador sobre sua experiência e a objetivação desta no ato de narrar176 (HARRIS, 1990, p. 5).

Então, como qualificar a autobiografia de Górki? Literatura engajada, realismo socialista,

simbolismo ou modernismo? E, por que teríamos que defini-la em algum gênero?

Primeiramente, é salutar que entendamos a literatura autobiográfica como um instrumento

que se interpõe entre o homem e a história, trabalhando na construção de uma visão de mundo, a

partir de lentes a serviço de autores que, como Tolstói e Górki, as usaram para captar fragmentos

do cotidiano.

Através da autobiografia, Górki conseguiu criar imagens capazes de questionar o real. Ele

recria um período da história russa que é confluente com o seu próprio, uma época de

encantamento e, ao mesmo tempo, de desencantamento diante da configuração de mundo que se

apresentava. A sedução do progresso estava expressa em engenhosas e atraentes invenções,

responsáveis pela modificação dos costumes e valores do homem. Dizia Górki, que interpretar o

universo desagregado era uma arte, cujas possibilidades estéticas se nutriam do popular. Como

um repórter das ruas, Górki absorveu tudo o que sugerisse a decadência desenhada pela

176 CITAÇÃO ORIGINAL: “(...) the most important thematically and structurally is that the narrator recognizes how the perceived process of his own development parallels the course of his narrative and hence that the structure of autobiographical discourse is based on the parallelism between the narrator´s growing consciousness of his experience and the objectification of that experience in telling”.

128

modernidade e valorizava aquilo que definiu como popular, presente na cena urbana e de seus

atores: os vagabundos (bossiáki)177, as prostitutas e os mendigos e os burgueses.

Górki procura manter viva a cultura entre os escombros restantes de uma imposição de

sistema. Suas lembranças o impulsionaram a compreender a forma com que os homens

experienciavam os novos tempos, identificando-os, a contrapelo, como os verdadeiros

vencedores. Para nós, a autobiografia pode ser vista concomitantemente através de dois planos:

do plano de “consciência autobiográfica” e de “imaginação autobiográfica” (HARRIS, p. 1990, p.

177 O vagabundo ou o bossiák gorkiano são figuras que merecem certo destaque por eles representarem uma camada da sociedade russa extremamente relevante para Górki. No prefácio do livro Os Vagabundos, de Górki, Carlos Heitor Cony abrevia a dimensão desse ser, dizendo que “os vagabundos ocupam, na obra de Górki, uma posição explicativa. Górki criou, literariamente, o vagabundo (...) O vagabundo de Górki é um tipo à parte: o bossiak (...) Foi o exotismo do tipo que chamou a atenção para o jovem autor. Introduzia-se na literatura, um novo mundo, uma nova maneira de ver as coisas”. Este relevo que dou ao bossiák deve-se ao fato de que figuras como essa surgem a todo instante ao longo de toda a narrativa autobiográfica. São tipos com os quais Górki conviveu desde a infância, observando cada nuance dessas pessoas que se situavam em algum ponto entre o ingênuo mujique e os nobres. Era um bossiák um fora da lei, um excluído, um andarilho, alguém que causava em Górki imensa curiosidade e predileção que ele mesmo confessou em seu livro Como aprendi a escrever, reconhecendo que “os vagabundos eram para [ele] “homens extraordinários” por serem “desclassificados”, homens que haviam se separado de seu meio ou haviam sido repudiados por ele, e que, devido a isto, tinham perdido os traços mais característicos de sua classe” (GÓRKI, 1984, p. 37). “De forma que posso dizer que minha predileção pelos vagabundos nasceu de meu desejo de retratar as pessoas “pouco comuns” ao invés dos mesquinhos tipos pequeno-burgueses. É claro, isto se deve em parte à influência da literatura estrangeira, e em especial da francesa, muito mais vivaz e colorida que a russa. Porém o que mais me impulsionou, sobretudo, foi o desejo de embelezar com minha imaginação “a pobre e cansativa vida” (...)” (GÓRKI, 1984, p. 39). Górki, contudo, estabelece um marco literário ao descobrir esse novo mundo: a vida dos vagabundos da Rússia e faz dele ingrediente fundamental para superar barreiras, lugares literários e éticos.

Os vagabundos gorkianos aparecem com mais rigor nas novelas, Malva, Tchelkache e Konoválov e todas três têm muitas semelhanças com passagens autobiográficas contidas na trilogia. Em Malva, a personagem título, que também atende pelo mesmo nome, é uma prostituta que faz visitas semanais a Vassíli, um pescador que acaba se vendo num triângulo amoroso formado por ele, Malva e Iakóv, seu filho que, como ele, não gosta de trabalhos pesados. O nome Iakóv também é familiar em Infância, pois esse nome pertence a um dos tios de Górki que se põe a brigar constantemente com pai e irmãos pela pouca herança familiar e por supostos direitos adquiridos. Tchelkache é uma narrativa que se passa exatamente no porto da cidade de Odessa, lugar onde Górki trabalhou como estivador, fato narrado em Ganhado meu pão. Por fim, Konoválov conta a história do padeiro de nome homônimo, que estreita amizade com seu ajudante de padaria, Maksim, este, supostamente o próprio escritor. Durante a leitura de um jornal sobre o suicídio de um bossiák em uma prisão, Maksim divaga e relembra a amizade dos dois que nasceu do ensino da leitura e da escrita ao padeiro pelo seu assistente. Situação que é descrita de forma similar no segundo volume da trilogia só que na figura do cozinheiro Smúri.

Essas confluências em diferentes textos gorkianos transgridem o real, desfigurando o dia-a-dia através de descrições pormenorizadas da degeneração da espécie humana. Essas literaturas nos revelam que estamos cercados pelo subjetivo, que a realidade é hiperreal e que os seres humanos são um mural de exceções. Como justificativa para o exposto, Schnaiderman enfatiza que Górki faz uma opção de retratar literariamente os vagabundos em sua obra: “se existe algo de muito importante a extrair dos livros de Górki, é uma lição humana, de sinceridade que raia, às vezes, ao desespero, de afeto desmedido pelo semelhante, de uma entrega de toda a personalidade à busca da verdade e da justiça (...) [as obras] refeltem sobretudo os ambientes que ele conheceu nas andanças pelas estradas intermináveis da Rússia, o submundo de prostitutas, mendigos e ladrões, a humanidade torva das casas de cômodos e dos albergues noturnos, as “universidades” a que se referiria com tão profundo sentido humano em sua autobiografia” (GÓRKI, 2005, p. 9-12). O bossiák gorkiano é um ser vencido que conta uma história de sobrevivência diária que o credencia como um vencedor aos olhos do autor.

129

25) 178, dado que Górki tenta encontrar nas lembranças e na capacidade mimética, uma maneira

de libertar a sua história do mundo da racionalidade, da técnica e do esperado.

Retomando Benjamin, a modernidade traz uma pobreza de experiência que acarreta um

afastamento da história, o que significa dizer que o homem se distancia de seu lugar na história e

assim deixa de escrever sobre ela. Esse distanciamento ocorre porque a história dos vencedores

tem como característica o tempo homogêneo, vazio e marcado pela linearidade. Para Górki, o

advento do progresso condenou o homem russo à apatia. A experiência das revoluções ofereceu

uma identificação com a história e seus desdobramentos revelaram o caráter técnico da situação e

demonstraram uma possível nova função do homem russo no mundo: uma simples ferramenta

ideológica.

É essa união do conceito “humano-demasiado-humano” com as descrições da natureza, em muitas das obras de Górki, que faz as obras compreensíveis para a maior parte de seu público. Sua descrição da vida além do social seria repulsiva se não fosse a presença interpretativa dessa “pintura natural”.179

Se com o progresso a narrativa se esfacelou e toda experiência vivida perdeu seu lugar

para o imediatismo, o passado deixou de ser relevante, levando o homem a viver uma espécie de

cultura de vidro frágil e quebradiça. Convivendo em meio aos objetos, o homem passou a viver

uma natureza ilusória, onde a realização se limita a acompanhar a técnica na busca de algo novo.

Empobrecidos de cultura e de passado, os indivíduos se tornaram coisas que vivem em função da

mercadoria.

Em Górki, principalmente em Minhas universidades, o homem, representado

primordialmente por um Aleksiei já adolescente, é capaz de perceber esse domínio material.

Quando começa a se enxergar como uma marionete, ele percebe a sua condição desumanizada.

Submerso na melancolia sente toda a teia que o envolve e, nesse estado sorumbático, é a história

que é vista como um amontoado de ruínas. Mesmo entristecido, Górki iça a história dos

escombros e, para isso, utiliza uma única voz para reconstruir o passado fragmentado: a dele

própria.

178 CITAÇÃO ORIGINAL: “(...) Autobiography (...) may thus be viewed between two planes; between “the autobiographical consciousness” and “autobiographical imagination””. 179 OSTWALD, Hans. Maxim Gorky. E-book lançado em 10 de julho de 2007, sob o número ISO 8899-1, p. 14. CITAÇÃO ORIGINAL: “ It is characteristic union of the human-all-too-human with expressions of Nature in so many Gorky´s works, that makes them at the outset desireble to a large proportion of his public. Much of his descrption of life beyond the social pale would be repulsive if it were not for this interpretative natue-paiting”.

130

Eu já aprendera a sonhar com aventuras extraordinárias e grandes proezas. Isso me ajudava muito nos dias difíceis da vida, e como tais dias eram numerosos, eu me esmerava cada vez mais nos sonhos. Não esperava receber nenhuma ajuda de fora e não contava com nenhum acaso favorável, mas pouco a pouco desenvolveu-se em mim uma tenacidade vigorosa e, quanto mais difíceis se tornavam as condições de vida, mais forte e até mais inteligente eu me sentia. Compreendi muito cedo que é a resistência ao meio que cria o homem”(GÓRKI, 2007c, p. 23).

(...) A humilhada esperança de elevar-me, de começar a estudar, também me

impelia para eles [Báchkin e Trússov]. Nas horas de fome, raiva e desgosto, eu me sentia perfeitamente capaz de cometer um crime, e não só contra “a sagrada instituição da propriedade”. No entanto, o romantismo da juventude me impedia de me desviar do caminho que eu estava condenado a seguir (GÓRKI, 2007c, p. 27).

Nessa ideia se dá o resgate do fazer a história que permanece aberto, pois o futuro

depende do presente que é construído unicamente se voltado para o passado. Para Górki, o

cotidiano da cidade representa o homem real, o transeunte, o homem da massa que participa da

transformação da história. Na Rússia por ele descrita, o homem é dotado de uma força messiânica

na busca por sua identificação com o coletivo. Porém, somente o sentimento de ausência de

valores desperta o caráter cáustico capaz de transformar em pó os falsos valores e resgatar os

elementos realmente importantes para a construção do agora.

Entretanto, esse binômio entre destruição e construção não para. Através dele, novos

caminhos se abriram para que se entendesse a sociedade de modo reflexivo. Na literatura

gorkiana, o autor, o narrador, os personagens e o leitor são, antes de tudo, cidadãos que têm a

chance e o papel de contribuir para que a sociedade seja mais compreensível, pois, a partir do

romance, eles possuem o conhecimento como arma. O texto confirma a história dos vencidos e

eleva a autobiografia a ser

(...) parte da revolução intelectual caracterizada pelo surgimento de uma forma moderna de consciência histórica. Engloba uma série de escritos ligados à emergência do eu no espaço da modernidade, pois é o lugar onde se problematiza a construção do eu. A emergência desse espaço é o signo maior da constituição moderna da literatura. 180

No espaço gorkiano, a sensação de impotência perpassa pelas linhas. A suposta habilidade

reativa se apresenta esvaziada, pois o sistema, caminhando junto com o progresso, desumaniza o

180 JOZEF, Bella. (Auto)biografia: os territórios da memória e da história. In: AGUIAR, Flávio; MEIHY, José Carlos Sebe; VASCONCELOS, Sandra Guardini T. (Orgs.). Gêneros de fronteira. Cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997, p. 217-226.

131

ser humano e o domina completamente. Ao lermos a trilogia, percebemos que Górki, esperto,

inverte as regras habituais do romance e solicita a presença de um leitor atento, cauteloso e ativo.

Na obra, o “eu” gorkiano transita em um contexto histórico complicado, fazendo com que o leitor

mergulhe num espaço autobiográfico que remonta recordações integrantes da vida real do autor.

Havia o estudante Vladimir Korolenko181, ele também voltou do exílio, agora. Vivi bem com ele, depois nos separamos. Vimos que éramos parecidos um com o outro, em muitos aspectos, só que uma amizade não se constrói com a semelhança. Mas era um homem sério e obstinado, capaz de fazer qualquer trabalho. Até pintava ícones, isso não me agradava. Agora, pelo que dizem, anda escrevendo bem nas revistas.

E ficou conversando muito tempo, até a meia-noite, pelo visto com o intuito de me tornar íntimo dele, imediatamente e de forma sólida. Foi a primeira vez que me senti bem com uma pessoa, a sério. Depois da tentativa de suicídio, minha auto-estima sofreu uma forte queda, eu me sentia insignificantemente, culpado perante os outros, e tinha vergonha de viver. Romas deve ter compreendido isso, e de um modo humano, simples, abriu para mim a porta da sua vida – me endireitou. Um dia inesquecível (GÓRKI, 2007c, p. 123).

Frente a essa “realidade”, apreendemos a situação de uma época em que o homem russo

está subjugado e aniquilado, em face a um estado de gangorra, podendo, a partir dessa

experiência de vida, elaborar julgamentos individuais sobre o que representou a transição do

absolutismo para o socialismo e compreender melhor o presente do escritor 182. Para Górki,

compreender o passado era ir além da história oficial, pois ela é um ponto cego na linha do tempo

que objetiva a manutenção da tradição difícil de ser superada. A história é vista como ruínas. Não

há progresso efetivo em termos de humanização e civilidade. O que há é um amontoado de

catástrofes. É importante notarmos que a autobiografia permite que seja feita uma revigorante

volta ao passado, pois “articular historicamente o passado não significa apropriar-se de uma

reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1987, p. 224).

Com efeito, a evolução da memória de Górki está unida ao encadeamento social ao qual

ela pertence. A autobiografia desvela a representação do “eu” que, através de olhos bem atentos

do menino Aleksiei, recria um mundo resistente ao tempo e respalda a propriedade em narrar

experiências. Em Górki, o tempo foi um aliado. Em Minhas universidades, por exemplo, os fatos

obedecem e desobedecem as vontades do autor, transbordando os limites históricos e são

181 Vladimir Korolenko surge em Minhas universidades, porém, também foi “personagem” real da vida de Górki. Korolenko foi uma espécie de mentor artístico quando Górki era iniciante na arte literária. No romance, ele aparece ainda como um jovem estudante perseguido política e intelectualmente pelo sistema. 182 Devemos aqui considerar a realidade do autor que escrevera o terceiro livro da trilogia, Minhas universidades, em 1923, quando passava pelo segundo período de exílio.

132

descritos com ampla veia sentimental.

Eu sentia que uma vida assim podia desviar-me do caminho que eu seguia. Já começara a pensar que qualquer outro lugar na vida, que não a literatura, não servia para mim. Naquelas condições, era impossível trabalhar.

O que me livrava de grandes escândalos era o fato de, no curso da vida, eu ter aprendido a tratar as pessoas com tolerância, sem perder nem o interesse espiritual nem o respeito por elas. Já então eu via que todas as pessoas eram mais ou menos pecadoras perante o desconhecido deus da verdade perfeita, enquanto perante ao homem pecavam sobretudo as pessoas tidas como justas (GÓRKI, 2007c, p. 253).

Contudo, Górki foi um indivíduo que viveu a dimensão temporal própria da era moderna

e dos centros urbanos, mas, mesmo assim, a temporalidade mecânica e fragmentada não anulou

as possibilidades de sedimentação de fatos em sua memória, isto é, sua vivência individual não

cerceou a dimensão privada, isolando-a do contexto coletivo. Logo, recuperar a experiência no

sentido histórico, via autobiografia, obrigou o autor a procurar no âmbito social os caminhos

facilitadores para uma revitalização da memória escondida nas lembranças. Esses caminhos

foram vários e se abriram no exercício da arte, partindo da experiência infantil do menino-homem

Aleksiei que narrou a ele mesmo numa trajetória de vida que será analisada na sequência.

133

Ilustração 12: Cidade de Samara, região sul da Rússia

Ilustração 13: Górki e Tchekhov, Crimeia Ilustração 14: Ekaterina, Górki, Kátia e Maksim

(esposa e filhos, 1901)

Ilustração 15: Reunião do círculo Sredá.

134

Ilustração 16: Tolstói e Górki, Iásnaia Poliana, 1900 Ilustração 17: Górki e Leonid Andrêiev

Ilustração 18: Programa da peça No fundo Ilustração 19: Praça da Catedral de Kazan, em São Petersburgo, onde Górki foi detido São Pertersburgo, onde Górki foi detido em um

um protestprotesto contra a violência

Ilustração 20: Teatro de Arte de Moscou-TAM Ilustração 21: Interior do TAM

135

Ilustração 22: Riga, atualmente uma cidade da Letônia, onde Górki foi detido.

Ilustração 23: Fortaleza de Pedro e Paulo, onde Górki ficou encarcerado.

136

CAPÍTULO 3

3.2 A EXPERIÊNCIA INFANTIL DE ALEKSIEI PIECHKÓV

Feliz o tempo da infância, tempo que nunca mais há de voltar! Como não amar, como não acarinhar as suas recordações? Elas purificam e elevam a minha alma e são a fonte dos meus maiores prazeres183 (Tolstói).

Eu me vejo na minha infância como uma colméia, aonde várias pessoas simples, insignificantes, vinham, como abelhas, trazer o mel de seu conhecimento e das reflexões sobre a vida, enriquecendo generosamente o meu espírito, cada um como podia. Muitas vezes, acontecia de esse mel ser sujo e amargo, mas todo conhecimento era, mesmo assim, um mel184 (GÓRKI, 2007a, p. 165).

O presente capítulo propõe o desenvolvimento de um enfoque sobre a origem do objeto

ficcional e seus efeitos estéticos, a partir do primeiro volume da trilogia gorkiana, Infância. Para

que isso ocorra, será necessária uma reflexão sobre os caminhos percorridos por Górki, no que

tangre à interpretação do procedimento narrativo.

É sabido que há diversos estudos acerca do espaço da infância em obras literárias, porém

me aterei a fundamentar uma visão até mais interpretativa do que teórica da infância de Górki,

uma vez que nela são traçadas paralelas entre as partes constituintes dos objetos artísticos e o

tempo/espaço demarcados pelo próprio autor em sua trajetória.

De início, devemos ter em mente que Górki trabalhou no seu espaço da infância a

reconstrução de uma linguagem integradora cuja natureza não supôs o utilitarismo, mas a

expressão de si mesma. Górki buscou na literatura a fonte para a maturação e o desvelamento das

oscilantes mentalidades russas que tanto lhe causavam curiosidade e incômodo. A literatura da

183 TOLSTOI, Leão. Infância. In: Obras completas. Trad. Natália Nunes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976, p. 72. 184 O trecho de Górki foi retirado de sua obra homônima com o intuito de apresentar as visões de dois autores russos consagrados sobre esse período da vida de ambos. À guisa de curiosidade, reproduzo a versão original do fragmento que é uma das imagens mais bonitas fabricadas por Górki de sua infância. “В детстве я представляю сам себя ульем, куда разные простые, люди сносили, как пчлы, мед своих знаний и дум о жизни, щедро обогащала душу мою, кто чем мог. Часто мед это бывал грязен и горек, но всякое знание – все-таки мед”. Referência pertencente ao livro GÓRKI, M. Diétsvo. In: Sobrânie sotchinenii. Tom 9. Moscou: Gossudarstvennoie izdatiel’stvo khudojestvennoi litieraturi.1962, p. 91.

137

trilogia surge como uma revelação do instante, de um agora, do passado e tudo aquilo que reveste

a linguagem enquanto memória efetuada por imagens.

Mas que imagens são essas? Como elas se concretizam em produção artística?

Primeiramente, as imagens autobiográficas gorkianas aparecem como elementos que

estabelecem um vínculo na fronteira entre a realidade e a imaginação criadora. Górki concebe a

escrita autobiográfica como forma de conhecimento e as suas imagens são o meio de atingir e

despertar uma consciência adormecida do passado. Essa consciência, porém, foi retirada de seu

espaço cativo na história por uma espécie de simbiose ou um movimento da fermentação da

imagem e foi levada para o presente como uma imagem ficcional, produto da fusão entre o real e

o imaginário. No livro, esse período infantil é reconstituído intensamente e é internalizado como

um fato contínuo traduzido pela literatura como imagem de conhecimentos particulares.

A imagem da infância atravessa o passado para recolher dela o sonho, a divagação. Do

que existiu, permanece intacto o que não existiu: entre o realizado e o possível, entre o concreto e

a possibilidade está o fio tênue que transita entre uma ponta e outra com aquilo que foi desejo e a

aquilo que realmente aconteceu. Na trilogia, o centro do universo ficcional é o movimento que

torna o realizável (os anseios de menino) sempre em algo irrealizável (a realidade vivida dia-a-

dia e estampada em cada rosto), de modo a se manter como um potencial universo que não

postulou uma feição conclusiva e fechada, mas produtora, pulsante e viva, pois “é, sobretudo, por

meio dos fatos à sua volta [Aleksiei] e das palavras que os outros lhe dizem que vamos formando

uma ideia desse narrador-protagonista. Graças a tal método de composição, a presença de Leksiei

assume a forma de algo incompleto, de uma possibilidade, o que reforça com eficácia a própria

noção formativa da infância” (GÓRKI, 2007a, p. 10)185.

Nesse sentido, Górki dá mobilidade ao seu saber, desarrumando e questionando o sentido

da vida. Daí, a força crítica contida em seu arsenal, próprio de constantes deslocamentos

fomentados por uma montagem que possibilita a trama literária como forma de acesso a um

amplo conhecimento de seu tempo. Ao começar por Infância, o autor manipula os procedimentos

literários como revelação das suas marcas vivenciais. O mostrar velado, o tornar presente do que

se perdeu e o colocar no lugar do contexto o próprio texto formaram colagens utilizadas para

quebrar as imagens solidificadas pela história oficial - a “verdade”. De acordo com L. Matejka,

185 Esta citação foi escrita por Rubens Figueiredo no prefácio de sua tradução de Infância, versão brasileira escolhida para esta tese.

138

no século XX surgiu um especial do escritor de biografia. Era aquele que gritava: “olhada como eu sou mau e insolente! Olhe! E não vire a sua cabeça, porque todos vocês tão maus quanto eu, só que vocês são covardes e se omitem. Mas eu sou corajoso; me ponho totalmente nu e passeio em público sem sentir vergonha.” Isto foi um a reação à “ doçura" “do homem bom.” (…) Hoje o escritor mostra aos seus leitores a sua própria vida atada aos ciclos do seu trabalho literário. Se, por exemplo, Górki agir de forma inoportuna e ociosa, ele fará isso conscientemente, pois ele sabe que esse mesmo fato será levado em conta em sua biografia. Consideremos quantos poetas de hoje escrevem sobre eles mesmos e sobre os seus amigos, quantos deles produzem a literatura memorialística transformada em estruturas artísticas? (…) Para um biográfo, os fatos da vida devem ser levados em consideração. De fato, nos trabalhos autobiográficos, a justaposição dos textos e a biografia do autor desempenham um papel estrutural, onde o trabalho literário tira proveito da realidade potencial das subjetividades e das confissões do autor (MATEJKA, 1971, p. 53).186

Por isso, é sempre importante reafirmar que as dimensões literária e artística estão

presentes, sim, numa autobiografia. Górki deu uma forma a seu texto que coordena os conteúdos

temporais e espaciais de sua existência com a vida social de seu país tida como realidade. A ele,

como um seguidor de uma diferente arte de dizer a verdade, está reservada a crença em que “a

descrição baseada em detalhes sem importância parece mais verdadeira do que a tradição

petrificada de seus predecessores” (MATEJKA, 1971, p. 41)187.

A decisão de dividir parte do passado em três tomos fez com que a narrativa constituísse

um tracejado em constante mobilidade quando atingido pelo presente. Logo, não seria essa

elasticidade a própria natureza do universo ficcional de Górki? Na trilogia, a ficção reescreve o

fato e essa técnica, funcionando como uma segunda demão, repara o que ficou perdido, buscando

em meio aos espaços vazios uma literatura que intercalasse o imaginário e o real. É dessa forma

que a literatura de Górki irá atuar como produção imagética. Ainda segundo Rubens Figueiredo,

186 CITAÇÃO ORIGINAL: “In the twentieth century there appeared a special type of writer with a demonstrative biography, one which shouted out: “Look at how bad and how impudent I am! Look! And don´t turn your head away, because all of you are just as bad, only you are fainthearted and hide yourselves. But I am bold; I strip myself stark naked and walk around in public without feeling ashamed.” This was the reaction to the “sweetness” of the “good man.” (…) Today the writer shows his readers his own life and writers his own biography, tightky binding it to the literary cycles of his work. If, for exemple, Gor`kij drives away importunate idlers, then he does this knowingly, as a demonstration: he knows that this very fact will be taken into account in his biography. Just consider how many of today´s poets reminisce about themselves and their friends, how many of them produce memoir literature? – Memoir transformed into artistic structures (…) For a writer with a biography, the facts of author´s life must be taken into consideration. Indeed, in the works themselves the juxtaposition of the texts and the author´s biography plays a structural role. The literary work plays on the potential reality of the author´s subjective outpourings and confessions”. 187 CITAÇÃO ORIGINAL: “(…) description based on unessential details seems more real than the petrified tradition of predecessors”.

139

Infância

ocupa um lugar central na obra de Górki, O quarto, a casa, o pátio, a rua, o pequeno terreno baldio – os espaços reduzidos onde o menino se forma, e que encurtam os horizontes na maior parte deste livro, reforçam a sensação de que ali, sob pressão, algo se concentra. Aleksandr Blok, o principal poeta simbolista russo, comentou com agudeza numa carta para Górki: “Sempre senti que as questões que perturbam você são as questões da infância, as mais profundas, as mais terríveis (GÓRKI, 2007a, p. 11. Grifo meu).

Ao nos trazer a visão do pequeno Aleksiei e a sua sensibilidade perante o mundo, Górki

manifesta o seu próprio sentimento e imaginação criadora. De forma concomitante, instiga a

discussão sobre valores familiares e sociais que orientaram a formação de crianças e jovens no

processo de constituição da sociedade burguesa tão questionada por ele. Tentar entender a

profundidade de uma experiência infantil gorkiana, significa questionar todas as formas de

aparição das memórias contidas nas lembranças do autor, das mais sutis até as mais evidentes.

Em Infância, os sentimentos do menino se manifestaram com pureza e paradoxos.

Aleksiei construiu sua visão de mundo com base na sensibilidade, entretanto, é necessário que

não nos esqueçamos de que a noção de infância de Górki não nos remete a condições naturais da

estrutura humana, mas se apresenta como resultado de um processo histórico de formação social.

Na obra, não existe uma infância pura ou um mundo de “faz de conta”. O mundo perceptivo da

criança se enraizou e ao mesmo tempo se confrontou com o mundo histórico, como interpretado

na passagem abaixo.

– Olhe aqui, Lionka188, meu anjo, enfie isto na sua cabeça: Não se meta nos problemas dos adultos! Os adultos são uma gente estragada; gente que Deus pôs à prova, mas você ainda não é assim, viva conforme a sua cabeça de criança. Espere, quando o Senhor tocar o seu coração, vai indicar qual é a sua missão, vai levar você para o seu caminho... entendeu? (GÓRKI, 2007a, p. 128-129)

Havia muita coisa interessante em casa, muita coisa engraçada, mas às vezes

uma tristeza irresistível me sufocava, como se algo opressivo me enchesse todo, e durante muito tempo eu tinha a impressão de viver num fosso escuro e fundo, sem visão, sem audição e sem nenhum outro sentido, cego e semimorto... (GÓRKI, 2007a, p. 141)

Aleksiei ainda não estava adaptado às exigências do mundo e por isso mesmo ficou aberto

188 Lionka é outro modo de chamar Aleksiei, muito utilizado por sua avó.

140

à recepção das semelhanças que lhe eram sensíveis. Assim, a experiência infantil da brincadeira,

da expressão mimética e lúdica, surge como o gérmen do novo que pôde ser contraposto à

experiência de um Górki adulto (que escreveu o texto), já inserido na representação moderna. As

possibilidades de uma nova experiência se concentram na narrativa via vida infantil. A criança

que Górki foi um dia, naqueles anos da década de 1870, demonstra afinidades nas brincadeiras e

tenta superar paradoxos ao tentar se encaixar no mundo que a circunda.

No exercício de conhecimento do mundo estabelecido em Infância, podemos reconhecer

pelo menos duas características dessas brincadeiras: a primeira abre o mundo perceptivo do

menino em sua relação com a tradição russa. Mostra que a brincadeira de ouvir as histórias

contadas pela avó é permeada por traços culturais das gerações anteriores com os quais a

percepção infantil se defronta. Embarquemos, aqui, na fantasia estimulada na cabeça de Aleksiei.

Estava sentada na beira da estufa, apoiava os pés nos degraus, inclinava-se na direção das pessoas, iluminadas pela chama pequenina de um lampião de lata; quando ficava animada, ela sempre subia para a parte mais alta da estufa e explicava: – Tenho que falar do alto, aqui de cima é melhor! Eu me instalei aos seus pés, no degrau largo, quase sobre a cabeça do Coisa Boa. A avó contou uma história bonita sobre o Guerreiro Ivan e o Eremita Miron; as palavras suculentas, encorpadas, fluíam em cadência: Era uma vez Gordion, um voiedova malvado, Alma negra, consciência de pedra; Espezinhava a justiça, atormentava as pessoas, Vivia na maldade, feito a coruja no oco de um tronco. Gordion odiava, mais que todos, O velho eremita Miron, Defensor da justiça serena, Destemido benfeitor do mundo. O voievoda convocou um fiel servidor, O valente guerreiro Ivánuchka: -Vá, Ivanka, e mate o velho, O caduco de presunçoso Miron! Vá e corte sua cabeça, Agarre-a pela barba grisalha E traga-me: darei de comida aos cães! – Ivan partiu, em obediência. Caminhava e refletia com amargura: “Não vou por minha vontade, sou obrigado! Tal sina foi Deus quem me deu.” Mantendo oculta a espada afiada, Chegou Ivan, e curvou-se diante do eremita: - Estás de perfeita saúde, honrado ancião? Tudo bem contigo, velho, com a graça de Deus? – Perspicaz, este sorriu E, com lábios, lhe disse: - Basta de esconder a verdade, Ivánuchka! Deus Nosso Senhor tudo sabe.

141

O bem e o mal estão nas mãos deles! Sei, portanto, para que vieste! – Ivanka sentiu vergonha diante do eremita, Mas obedeceu ao medo que também sentia. Da bainha de couro, sacou a espada, Limpou o ferro no largo manto. – Eu queria, Miron, matar-te de modo que não visses a espada. Mas, agora, reza para Deus, Reza a ele, pela vez derradeira, Por ti, por mim, por toda a gente, E depois cortarei tua cabeça! ... – Pôs-se de joelhos o ancião Miron, Em silêncio, ao pé de um carvalho jovem, E o carvalho curvou-se diante dele. O ancião disse, com um sorriso: – Ai, Ivan, cuidado, hás de esperar muito! É longa uma prece por toda a gente! Melhor seria matar-me de uma vez, Para que tu não padeças em vão! – Então, irritado, Ivan franziu a sobrancelha, E vangloriou-se estupidamente: – Não, o que está dito, está dito! Reza o quanto queiras, que esperarei um século! – O eremita rezou até o anoitecer, Do anoitecer, rezou até a aurora, Da aurora, foi até a noite, Do verão, rezou até a primavera. Rezou o eremita ano após ano, O carvalho jovem chegou às nuvens, De seus frutos, nasceu uma densa floresta, E a prece sagrada nunca terminava! Assim continuam ambos, até hoje: O ancião reza a Deus em voz baixa, Pede a Deus que ajude as pessoas, E à Virgem Santíssima, pede felicidade, E Ivan, o guerreiro, continua a seu lado, Sua espada, há muito, desfez-se em pó, A armadura foi comida pela ferrugem, As finas roupas viraram poeira. Inverno e verão, Ivan continua parado e nu, O calor o resseca – mas ele não seca, Mosquitos chupam o sangue – mas ainda tem sangue, Lobos e ursos não o tocam, O frio e as nevascas não o afetam. Não tem forças para sair do lugar, Erguer as mãos os dizer uma palavra. Por obedecer à ordem de um malvado, Por esconder-se atrás da consciência alheia! E a prece do ancião por nós, pecadores, Continua a fluir, em paz, na direção de Deus, Como um rio radiante corre para o mar! Desde o início da história da avó, notei que algo inquietava o Coisa Boa (...) E quando a avó chegou ao fim, ele se ergueu de um salto e, sacudindo os braços, pôs-se a rodar de modo estranho e começou a balbuciar:

142

– Sabem de uma coisa? Isso é admirável, tinha de ser escrito, sem falta! É tremendamente autêntico, é nosso... – Pois então escreva, não há pecado nisso; ainda sei muitas outras como essa... – Não, é essa aí! É tremendamente russa – gritou o inquilino alvoroçado (GÓRKI, 2007a, p. 151-153. Grifo meu).

Essa longa passagem é uma forte marca do relato das memórias de Górki. As palavras da

avó, salvas as intervenções catárticas, foram ditas em princípio por ela. Tudo indica que essa

história se trata de um conto folclórico em versos que Górki pode ter adaptado para preencher os

possíveis lapsos de sua memória. Porém, é bem possível que esses versos pertençam a uma

tradição popular oral bem antiga da qual a avó era um repositório valioso. E, se virmos Akulina

como uma espécie de Sherazade, teremos uma fantasia produzida involuntariamente, pois ela

conta uma história oralizada e nem por isso deixa de exprimir notas sobre a cultura do povo

russo.

A segunda característica aponta que a base de toda brincadeira é a repetição. O

movimento cíclico que atua, tanto como imersão no prazer quanto como transformação de algo

em corriqueiro, é a base da aprendizagem de Aleksiei. Boa parte do que deveria ter sido

prazeroso foi catastrófico. A escola, por exemplo, teve um papel bem contraditório na vida do

menino. O que deveria ser o início de uma instrução se tornou uma fonte de desânimo e rebeldia,

que creditou a Aleksiei toda a gama possível de traquinagens boladas para serem um tipo de

autodefesa. A constância dessas ações, que na obra se estenderam para esferas extraclasse,

corrobora a conclusão benjaminiana de que “é justamente através desses ritmos que nos tornamos

senhores de nós mesmos” (BENJAMIN, 1987, p. 252)189.

Passou um tempo comprido e vazio, e levaram-me de novo para a residência da mãe, no porão de uma casa de pedra, a mãe logo me matriculou numa escola; desde o primeiro dia, a escola me deu asco.

Cheguei lá calçado numas botinas da mãe, com um paletozinho que era um casaco da avó remendado, uma camisa amarela e as calças por fora das botinas. Tudo isso logo virou motivo de riso, por causa da camisa amarela, ganhei o apelido de “às de ouros”. Num instante, me entendi bem com os meninos, mas os professores e o pope tomaram aversão por mim (...) Durante alguns dias, sentei-me na primeira fila, na primeira carteira, quase em cima da mesa do professor – era insuportável, parecia que ele nunca via ninguém a não ser a mim, dizia o tempo todo, com voz fanhosa:

– Piechko-ov, troque de camisa! Piechko-ov, não balance as pernas! Piechkóv, suas botas fizeram poças no chão outra vê-ez!

Eu retribuía com travessura ferozes: certa vez, arranjei a metade de uma melancia congelada, esvaziei o miolo e a pendurei com um cordão numa roldana na

189 Frase retirada do capítulo Brinquedo e Brincadeira, de Walter Benjamin, p. 252.

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porta de entrada, na penumbra. Quando a porta abriu, a melancia correu para cima e, quando o professor fechou a porta, a melancia caiu em cheio na sua careca, que nem um gorro. O inspetor me levou para a casa com um bilhete do professor e eu paguei essa travessura com a minha própria pele.

De outra vez, espalhei rapé numa gaveta da mesa dele, o professor desatou a espirrar de tal maneira que saiu da sala de aula e, para substituí-lo, chamou o cunhado, um oficial, que obrigou a turma inteira a cantar “Deus salve o tsar” e “Ah, você, liberdade, minha liberdade” Aos que não cantavam direito, ele estalava uma régua na cabeça, o que fazia muito barulho e era muito engraçado, mas não doía.

O professor de religião, jovem e bonito, um pope de cabelo bem penteado, tomou aversão por mim porque eu não possuía a História sagrada do Velho e do Novo Testamento e também porque eu arremedava a sua maneira de falar.

Quando entrava na sala, logo de saída me perguntava: – Piechkóv, trouxe o livro ou não trouxe? É. O livro. – Eu respondia: Não, não trouxe. Sim. – Então, sim? – Não. – Ora, então vá para a casa! Sim. Para casa. Não tenho intenção de ensinar para

você. Sim. Não tenho intenção nenhuma. Isso não me afligia muito, eu saía e, até o fim do horário das aulas, vagava pelas

ruas sujas dos subúrbios, observando sua vida agitada (...) Apesar de eu estudar razoavelmente, logo fui avisado de que seria expulso da escola por mau comportamento. Fiquei triste – aquilo me ameaçava com toda sorte de coisas desagradáveis: a mãe ficava cada vez mais irritada, me surrava cada vez mais (GÓRKI, 2007a, p. 261-263).

Pelo trecho acima, podemos dizer que é no mínimo curioso imaginar que um aluno

mediano mais tarde se tornaria um dos grandes nomes da literatura. Porém, um entendimento

mais plural desse comportamento infantil se deve ao próprio Górki, que soube reconhecer e dotar

o seu narrador de uma capacidade de reproduzir semelhanças. Assim, a faculdade mimética de

Aleksiei supera a mera imitação e se apresenta como uma relação original com as coisas no

processo de conhecimento do mundo. Ele nos deixa perceber afinidades com Górki, apreende a

multiplicidade de formas e sentidos e redefine, de forma autobiográfica, as coisas retirando-as de

seu contexto significativo (da vida adulta) para lhes dar uma nova interpretação, dado que “para o

pequeno Aliocha, tudo ao seu redor estava cheio de luz, tudo era pintado com as cores mais

brilhantes. A felicidade humana transbordava. Mas essa sensação de harmonia não duraria muito,

pois Górki já estava aqui para confrontar o menino com as dissonâncias e contradições da vida

real”190.

As coisas, as palavras, juntamente com a expressão delas, constituem para Aleksiei um

190 SOKOLOV, A. Avtobiografítcheskaia trilógia górkovo. In: GÓRKII, M. Sobrânie sotchinenii. Tom 9. Moscou: Gossudarstvennoie izdatiel’stvo khudojestvennoi litieraturi, 1962, p. 522. CITAÇÃO ORIGINAL: “все вокруг для маленького Алеши полно ликующего света, окрашено в самые яркие краски бьющей через край человеческой радости. Но это ощущение гармонии длится недолго. - Горький уже здесь сталкивает мальчика с диссонансами и противоречиями реальной жизни”.

144

universo de elementos que exprimem uma situação cultural e histórica bem precisa, cuja

diversidade tem como pano de fundo a luta de classes que fundamenta as lembranças infantis

reconstruídas anos depois. Assim, vivendo das tradições e atrelado à existência do momento (lê-

se: da época infantil), a este menino coube o papel de guardião da memória de uma família numa

tentativa de preservar a tradição e de perpetuar a existência daqueles que mais amou. Sem poder

contrariar as exigências do cotidiano, ficou relegado à condição de mantenedor da memória,

tendo que elaborar movimentos voltados para a lembrança do que era antes e do que é registrado

na sua relação corrente com o mundo. Evidencia-se, portanto, a certeza de um presente e a

possibilidade de um passado por mais contraditório que isso possa parecer.

É sabido que, a partir do ano de 1893, Górki já pensava em escrever sobre sua vida. A

trilogia foi a concretização desse antigo desejo e foram justamente esses ensejos que

estabeleceram o grande arco de ligação entre a realidade e a ficção.

Barry Scherr, em seu artigo “A autobiografia como ficção”, nos lembra da existência de

um diário de Górki que continha os primeiros fragmentos de registros de vida que foram

utilizados na composição de Infância. O autor afirma que nesse diário havia um escrito intitulado

“Resumo de fatos e pensamentos cuja interação determinou a secura das melhores partes do meu

coração”, que guardava a memória de Górki acerca de alguns acontecimentos e pessoas que o

marcaram. Essas notas tratam do esquema de um código autobiográfico entendido como a

primeira tentativa de recriação de uma narrativa de vida.

Quando Górki coloca em prática toda a sua bagagem histórica e nos adianta o material

comparativo para que reconheçamos o caráter imagístico da recordação na obra. Dessa forma,

podemos dizer que a realidade nasceu de um meio mecânico e bem simples: as anotações. As

correspondências entre as notas e o texto literário exigem um exercício de revisão da noção

artística de Górki, que nos impõe o reexame dos postulados autobiográficos exibidos pelas

categorias do diário e do romance. A respeito dessa comparação entre as notas e a arte, Scherr

indica que “uma comparação mais detalhada do “Resumo” com a obra Infância mostra que Górki

permitiu que a sua imaginação afetasse a composição do texto em pelo menos três maneiras”191.

A primeira dessas diferenças seria o alargamento que Górki deu às cenas em detrimento

da realidade, ou seja, as notas foram escritas de forma seca e rápida, ao passo que na obra os

191 CITAÇÃO ORIGINAL: “a fuller comparison of “Account” with Childhood shows that Gor`kij allowed his imagination to affect the composition of Childhood in at least three ways”.

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episódios são longamente lapidados. Como exemplo, temos a lembrança do falecimento de seu

irmão recém-nascido, Maksim, dentro do navio que levava a família de volta à terra natal. Nas

anotações, essa descrição é feita em apenas dois parágrafos. Um dos marinheiros leva o corpo do

bebê morto, enquanto a mãe ruboriza e a avó chora. Na obra, temos uma cena bem distinta. Além

da situação-limite, há também uma conversa do marinheiro com o menino, seguido do

derramamento de uma garrafa com leite, que escorre por suas pernas, e ainda há a referência mais

romanceada às rãs sepultadas por acaso com o corpo de seu pai. Comparemos:

No ano de 1868, no dia 14 de março, às duas horas da madrugada, a natureza, com a peculiar predileção pelas brincadeiras de mau-gosto e para completar o número de coisas absurdas que ela havia criado em diferentes épocas deu uma ampla pincelada com seu preciso pincel e, no mundo de Deus, eu surgi.

Eu não me lembro desse fato, apesar de sua importância, mas minha avó me disse que logo que me foi dado o espírito humano - eu gritei. Gosto de pensar que o grito foi de indignação e protesto. Essa é a primeira impressão que vem à minha memória.

Na rua estreita e escura, entre as casas grandes vermelhas e sujas sobre as quais ao invés do céu havia cortinas de chita cinzas e velhas por onde escorriam pequenas gotas frias d´água – passava o cortejo fúnebre. Enterramos o meu pai. Eu estou sentado no colo da avó que viaja em uma charrete que, ao passar as rodas pelos sulcos do chão elameado, faz voar borrifos de lama para todos os lados. Eu olho para eles e me lembro do meu pai.

Ele era um homem alto, com grandes olhos cinzentos, profundos, voz macia e ressonante e nada mais (...) Chegamos ao cemitério. O caixão do meu pai foi carregado e colocado na beirada da cova que tinha a metade cheia de água, os padres – eram dois – um era grande e cabeludo, do seu rosto só se podia ver o nariz pontudo e vermelho e os olhos expressivos, escuros e assustadores, o outro era pequeno e gritava – Eles cantaram um pouco e meu pai foi rebaixado à cova, onde havia muitas rãs assustadas. Isso me assustou e eu chorei. Chegou a mãe, ela tinha uma feição severa, tinha cara de brava, e, por isso, eu chorei ainda mais. Minha avó me deu um pretzel e, minha mãe, acenando, foi embora sem dizer nada. Isso é tudo sobre meu pai.192

192 GÓRKI, M. Sobrânie sotchiniênii v 30 tomakh. Tom 1. Moscou, 1956. p. 451-467.

CITAÇÃO ORIGINAL: “1868 года, марта 14-го дня, в два часа ночи природа, по свойственной ей любви к злым шуткам и

для пополнения общей суммы созданных ею в разное время нелепостей, сделала своей объективной кистью размашистый мазок – и на свет божий явился я.

Сам я этого обстоятельства, несмотря на его важность, не помню, но бабушка говорила мне, что, как только мне был придан надлежаще человеческий вид, – я закричал.

Я хочу думать, что это был крик негодования и протеста. Первый оттиск в моей памяти. По узкой, тёмной улице, между громадных грязно-красных домов, над которыми, вместо неба,

растянут полог из старого, серого коленкора и сквозь него просачивается вода, падая на землю мелкими холодными каплями, – двигается похоронная процессия.

Хоронили моего отца. Я сижу на коленях бабушки, бабушка на пролётке, а пролётка по ступицы колёс в грязи, и её брызги из-под колёс разлетаются во все стороны. Я слежу за ними и вспоминаю отца.

Это высокий человек с большими глубокими серыми глазами, звучным мягким голосом, и больше ничего. (...)

Вот мы въехали в болото, оно же и кладбище. Гроб отца понесли на руках и поставили на край ямы, до половины наполненной водой, попы – их было два, – один большой и так густо заросший волосами, что

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Entrou um homem largo, grisalho, de roupa azul, trouxe uma caixinha. A avó pegou-a e começou a ajeitar o corpo do meu irmão, colocou-o lá dentro e carregou a caixa na direção da porta, em seus braços estendidos, mas- gorda só de lado conseguia passar pela porta estreita do camarote e ali ficou tolhida, de um jeito engraçado.

– Eh, mamãe – mãe gritou, tomou o caixão das mãos dela e as duas sumiram, enquanto eu fiquei no camarote, observado o mujique de azul.

– Então, o irmãozinho se foi, não é?(...) – Quem é você? – Um marinheiro. – E aonde foi a avó? – Enterrar o neto. Contei ao marinheiro como haviam soterrado as pererecas vivas quando

enterraram o pai. Ele me levantou nos braços, apertou-me com força contra o seu corpo e me beijou.

– Ah, irmão, você ainda não entende nada! – disse. – Não precisa ter pena das pererecas, deixa pra lá! Tenha pena de sua mãe, olhe como o desgosto a machucou! (GÓRKI, 2007a, p. 24-26)

O segundo aspecto que a princípio diferencia o caderno de notas da ficção é a idealização

dos membros da família. No romance, foi viável para Górki a “positivação” ou a “negativização”

de alguns personagens. A extrema violência do avô, Vassíli, e dos tios, Makhail e Iakóv, parece

ter sido tão cega como a descrita pelo menino. A mãe, Varvára, é adocicada na trama, suavizada

e, nas notas, ela aparece como a responsável por jogar a culpa da morte do marido em Aleksiei,

que fora acometido de cólera antes de seu pai. Poeticamente desenhada, Varvára vive como uma

mulher de luta, porém sofredora.

Por fim, a curiosa e cativante avó Akulina aparece em Infância de forma bem diferente

das notas. O tratamento dado a ela é sempre favorável. Retratada no romance de forma positiva e

criativa, tem o seu lado obscuro do vício em álcool e do fumo de rapé apontado de maneira mais

incisiva no diário. Porém, o que interessou para Górki foi o forte laço afetivo que existia entre os

dois. Vale lembrar que a avó praticamente substituiu a figura paterna, dando ao menino o suporte

para a sobrevivência. A figura da boa avó também pode ser percebida em um outro ensaio, de

1895, intitulado “Vovó Akulina” (Bábuchka Akulina). Essa é outra oportunidade para

conferirmos o amor incondicional dedicado à avó , observado também por Pável Bassínski.

на лице его видны были только нос, острый и красный, и тёмные страшные глаза, другой маленький негромко визжавший, – они немного попели, и отца опустили в яму, откуда испуганно выскочило много лягушек. Это меня испугало, и я заплакал. Подошла мать, у неё было строгое, сердитое лицо, от этого я заплакал сильнее. Бабушка дала мне крендель, а мать махнула рукой и, ничего не сказав, ушла. Всё об отце.

147

Quando Górki escreveu “Infância”, “ Ganhando meu pão” e “Minhas universidades” ele compreendeu (a imagem da avó) admiravelmente bem. Ainda mais, porque em 1895, no jornal Samarski, ele publicou o primeiro esboço daquilo que seria, futuramente, o livro Infância. O ensaio “Vovó Akulina”, sabiamente, não foi incluso nas obras completas do autor. Era como se ela tivesse ficado enterrada no passado. Essa figura viva, Akulina Ivânovna “morreu” para que renascesse a imagem mítica “a avó”193 (BASSÍNSKI, 2007, p. 41).

O ensaio Vovó Akulina fala sobre uma pobre velha que vive num porão úmido e que reúne, em torno de si, o lixo da cidade e os resíduos da sociedade, os bêbados amargurados e as pessoas à toa, que não tem vergonha de viver às custas de uma pobre velha (BASSÍNSKI, 2007, p. 41).194

Uma vez aberto o espaço de criação, Infância cumpre seu papel quando organiza formas e

configurações para experiências que não se podem viver no cotidiano. Em outras palavras, é a

ficção que nos reserva a faculdade imaginária de exercermos outros papéis, além da vida

cotidiana. Não há compromisso da ficção com o campo da realidade, mas há uma abertura para

um espaço de alteridade imaginária. Enquanto fingimento, a ficção gorkiana cria um campo de

encenação onde todos os elementos estão condicionados a um jogo, como se as representações do

real fossem transpostas para um “lado B” da vida, ou seja, a obra. Tal experiência estética, em

total ausência de lógica, se liga mais à realidade quando tenta se afastar dela. Tudo o que existiu

na experiência vivencial do autor passou, pouco a pouco, a ser desmanchado pelas malhas desse

jogo literário, que é o cenário onde se expressou a dubiedade entre o que se fez presente e o que

se fez ausente no texto sem que um dominasse o outro.

O ficcional (...) funciona, preferencialmente, como um meio de tornar o imaginário acessível à experiência fora de sua função pragmática. Ao abrir espaços de fingimento, o ficcional compele o imaginário a tomar uma forma, enquanto, ao mesmo tempo, age como um meio para sua manifestação.195

Com mais um exemplo, temos um medo do avô cultivado pelo menino que não foi tratado

nas notas com singeleza, aparecendo firme e violento.

193 “Когда Горький писал <Детство>, <В людях> и <Мои университети>, он это прекрасно понимал. Тем более что уже в 1895 году в Самароской газете он опубликовал первый набросок к будущему Детству – очерк <Бабушка Акулина>, который с тех пор благоразумно не включал в своим сборники и собрания сочинений, как бы похоронив в прошлом живую Акулину Ивановну. Этот живой бог <умер>, чтобы затем воскреснуть в мифотворческом образе <Бабушки>”. 194

В очерке <Бабушка Акулина> рассказывается о нищей старухе, которая живет в сыром подвале, собирая вокруг себя городскую шваль, отходы человеческого общества, которих пьяниц, распущенных до такой степени, что не стесняются жить за счет нищей старухи. 195 ISER. Wolfgang. O fictício e o imaginário. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996, p. 225.

148

– Eu te mato! Fora daqui! Meu avô frequentemente levanta a mão para a vovó e bate na cabeça e nos

ombros dela. Recuando para trás da porta, ela rodopiava e tentava proteger a criança dos punhos dele, que gritava – Toma, toma! Eu ficava com medo e revolta e também gritava. Finalmente, a vovó consegue fugir pela porta e o vovô, cansado e ofegante inclina-se sobre o fogão e enxuga o suor da testa.

– Por que você está gritando? Cale a boca! – dizia-me ele, sacudindo ameaçadoramente a mão.

– Bobo, bobo! Seu bobo ruivo! Com todas as minha forças eu grito na cara dele. – Ah, seu bandido! Você é igualzinho ao seu pai! E, dando um soco em minha

testa, o vovô sai correndo e gritando: Monstros, torturadores! Apesar da minha testa doer, ficava muito satisfeito por ser igualzinho ao meu

pai. Essa foi a primeira briga que ficou na minha memória. Depois dela, começa

uma longa série de massacres mais ou menos espetaculares que ocorriam obrigatoriamente em nossa família. Os tios bêbados chegavam, quebravam as vidraças e machucavam os rostos do vovô e da vovó. Eles também eram espancados e levados para a delegacia. O que os meus parentes pretendiam dividir, eu não sei. Mas as brigas que no início me assustavam muito depois despertaram em mim tendências agressivas que me incitavam a lutar, mas que desapareceram, na medida em que o momento de participação ativa na luta foi substituído pelo medo.

Um dia, porém, não pude resistir. Lembro-me daquele momento com prazer e dele eu tirei a história do

desenvolvimento da minha independência e respeito próprio (GORKI, 1956, p. 457-467).196

196CITAÇÃO ORIGINAL:

– Убью! Вон с глаз моих! Дед частыми взмахами рук колотит по голове и плечам бабку, она, отступая задом к дверям,

беспомощно вертится и старается предохранить ребёнка от кулаков деда, он визжит: «вот тебе! вот тебе!» Я испуган и возмущён и тоже кричу во всё горло. Наконец бабушка вырывается за дверь, а дед, устало вздыхая, прислоняется к печи и отирает со лба трудовой пот.

– Ты чего орёшь? Молчать!.. – говорит он мне, грозно замахиваясь рукой. Но я ощущаю прилив ужаса и храбрости вместе и не молчу. – Молчать, говорят тебе! – скрипя зубами, склоняется надо мною дед. – Дурак, дурак, рыжий дурак! – что есть сил ору я ему прямо в лицо. – Ах ты, разбойник! Да ты весь в отца пошёл! – И, стукнув меня кулаком в лоб, дед бежит вон,

стоная: «изверги! мучители!» Я очень доволен тем, что весь в отца пошёл, хотя лоб больно. …Это была первая драка, уцелевшая в моей памяти, с неё начинается длинный ряд более или менее

эффектных побоищ, неукоснительно происходивших по два-три раза в нашей семье. Приходили пьяные дядья, били стёкла и физиономии деда и бабки, их тоже били, отправляли в полицию; что делили между собой мои родственники, я не знаю, но сражения, очень пугая меня сначала, – после зародили и во мне воинственные наклонности, побуждавшие меня вступать в бои и исчезавшие по мере наступления момента активного участия в сражении, заменяясь диким страхом.

Но однажды я не вытерпел. Вспоминаю этот момент с удовольствием и с него веду историю развития моей самостоятельности и уважения e к себе.

149

Autobiografia é uma arte de retoques. Como num desenho, Górki grafita para escurecer e

negativar uma personalidade e, ao mesmo tempo, esfrega uma borracha para suavizar traços e

apagar borrões inerentes à outra figura.

A terceira e última acepção dá conta das aparições suspeitas de personagens imaginários

como Ciganinho, o agregado, Grigóri, o tintureiro e Coisa Boa, o inquilino. Para Scherr, esse

truque de escalar personagens não existentes nas notas traz um conforto criativo a Górki, pois

eles aparecem em momentos cruciais. O Ciganinho, por exemplo, é uma espécie de contraponto

do avô Vassíli. É ele quem abranda a raiva do menino contra o ente, ensinado-lhe a se esquivar

das constantes agressões.

O Ciganinho, também brincalhão como um potro, dava um pulo na direção dela [da avó].

– Puxa, avozinha, que cavalinho bom, tão inteligente... Vá embora daqui! Não fique abanando o rabo! – gritava a avó, que batia o pé no

chão. – Sabe que eu não gosto de você nos dias feito hoje. Ela me explicou que o Ciganinho, no bazar, roubava mais do que comprava. (...) [Certa vez] o Ciganinho não se movia, só os dedos das mãos, esticadas ao

longo do corpo, se mexiam, arranhando o chão, e as unhas tinidas brilhavam no sol. (...) Todos, menos o avô se precipitaram para fora da cozinha.

... O Ciganinho foi enterrado sem atenção, sem lembranças197 (GÓRKI, 2007a, p. 67-73).

Grigóri era ajudante de tintureiro e estabelece com Aleksiei uma fortuita e providencial

amizade, ajudando-o a compreender melhor o seu avô e, como tintureiro, inicia Aleksiei nas

primeiras noções de como lidar com os pigmentos para o tingimento dos tecidos.

Grigóri, comprido, ossudo, barbado, sem chapéu, de orelhas grandes, mexia a

tintura fervente como um feiticeiro bom e não parava de me dar lições. – Olhe todo mundo nos olhos; se um cachorro atacar você, olhe assim também

para ele... que ele vai embora... – Eu, meu caro, conheço o avô faz trinta e sete anos, vi o seu negócio começar e

estou vendo o seu fim. Antes, eu e ele éramos amigos, parceiros, começamos este negócio juntos, imaginamos tudo. Ele é inteligente, o vovô! Virou patrão e eu não soube reagir (...) Você ainda não entende o que eles [os homens] fazem, o que falam, mas precisa entender tudo. A vida de um órfão é difícil. Seu pai, Maksim Savvatiéievitch, era um fenômeno, entendia tudo, e por isso, o vovô não gostava dele, não admitia.

197 O personagem Ciganinho morre no terceiro capítulo de Infância, ao ser atingido por uma enorme cruz de madeira amarelada localizada no quintal da casa do avô de Aleksiei. Essa morte, para muitos estudiosos, é um esforço de florear a realidade. De acordo com Scherr, “o ciganinho morre literalmente carregando a cruz de um dos tios. Um pouco de simbolismo que possivelmente mostra outros esforços de Górki para embelezar a realidade”. CITAÇÃO ORIGINAL: “The Cyganok dies while literally bearing the cross of one of the uncles. A bit of symbolism that possibly shows another of Gor`kij´s efforts to embellish reality”.

150

Era bom ouvir palavras bondosas, enquanto eu olhava como a chama vermelha e dourada dançava na estufa, como as leitosas nuvens de vapor se erguiam acima dos caldeirões e depositavam uma espécie de geada cinzenta nas tábuas oblíquas do telhado – através das frestas aveludadas, viam-se faixas azuis do céu. O vento amainou, o sol brilhava em algum lugar, o pátio inteiro parecia polvilhado de pó de vidro, os trilhos dos trenós guinchavam na rua, uma fumaça azul esvoaçava da chaminé das casas, sombras leves deslizavam pela neve, também contando alguma história (GÓRKI, 2007a, p. 70).

Já o Coisa Boa era uma figura estranha, desengonçada que, apesar de mais velho,

compartilhava com Aleksiei todas as curiosidades infantis. Com mansidão, ele colocava as

palavras na hora certa e fascinava o menino, que encontrou nele uma ponte para a expressividade.

O rapaz jamais interrompeu a fala de Aleksiei e sempre deu vazão às suas molecagens. Esses três

personagens puramente literários surgem como um possível desvio da percepção do real e coloca

entre parênteses as marcas rígidas e inequívocas que antes definiam a referência que Górki tinha

de sua infância registrada em diário.

Essas entidades imaginadas são um descanso poético que oferecem a Górki condições de

acesso a imaginação, fundamental dentro do contexto russo da época por um motivo primordial;

Górki pôde resgatar de forma consistente toda a ideia de que sua literatura se separa de uma total

equivalência com a realidade, pois o texto escapou da “ditadura” revolucionária que visava dar à

arte uma funcionalidade política.

Uma fronteira sutil entre esses personagens habitantes da obra é estabelecida quando os

personagens inventados exploram o território da imaginação, do não-escrito, enquanto os “reais”

se ocupam dos moldes estabelecidos no território do escrito, do lembrado. Sendo assim, a trilogia

abre um campo de representações despragmatizadas onde os personagens podem alcançar novos

significados e experimentar imaginariamente novas perspectivas, superando os limites das

respostas mecanizadas pelo cotidiano.

(...) Porém quem mais me atraía e fascinava era um inquilino chamado Coisa Boa. Ocupava um quarto na parte dos fundos da casa, pegado à cozinha, um cômodo comprido com duas janelas – voltadas para o jardim e para o pátio.

Era um homem encurvado, magrelo, de cara branca, barba preta bifurcada, olhos bondosos e óculos. Calado, passava despercebido e, quando o chamavam para almoçar, para tomar chá, respondia invariavelmente:

– Coisa boa. A avó, então passou a chamá-lo assim, em sua presença ou não. (...) Em casa, ninguém gostava do Coisa Boa; Todos falavam dele com

zombaria. (...) Perguntei [Aleksiei] – O que faz o Coisa Boa?

151

– Destrói a minha casa – respondeu o avô, irritado. – Queimou o chão, estragou o papel de parede, descascou. Qualquer dia desses, mando esse sujeito ir embora! (GÓRKI, 2007a, p. 144-146)

O Coisa Boa falava muito pouco, mas sempre usava as palavras necessárias;

muitas vezes, quando queria chamar a minha atenção para alguma coisa, me cutucava de leve e apontava com os olhos, piscando.

Eu não percebia nada de especial no pátio, mas, com aqueles toques do cotovelo e aquelas palavras breves, tudo o que eu via e se tornava singularmente notável, tudo se gravava com força na memória (GÓRKI, 2007a, p. 157-158).

Obviamente, Infância contextualiza um determinado período histórico da vida

cronológica de alguém. Apesar dela configurar aparentemente uma história de uma classe social

desfavorecida, compreendemos que na construção do texto há um complexo diálogo do narrador

com o leitor, que só é possível através das lembranças. Esse artifício permite evidenciar

simultaneamente o cotidiano da criança-Aleksiei e todos os seus desmembramentos.

Como o exercício de viver é o que conduz a temática da autobiografia, sugiro que

pensemos a literatura de Górki pelo do olhar de Wolfgang Iser, que se apóia numa visão

antropológica, dona de uma forte possibilidade de considerar a trilogia como um produto humano

e, ao mesmo tempo, um definidor do humano. Junto à literatura, a antropologia oferece a ideia de

que há uma “plasticidade humana”, manifestada nas artes, por ser capaz de oferecer uma “auto-

interpretação do homem”. Por sua vez, a dicotomia real x ficcional se torna minoritário do ponto

de vista da ênfase na forma ou no conteúdo, na materialidade ou na mímese, já que a literatura

gorkiana passa a ser uma operação que converte a modelagem humana em texto. O processo

imaginário de dosar as limitações, as potencialidades das experiências e a transformação desse

processo em obra, fazem de Górki um concretizador do seu imaginário através da sua ficção.

Concluímos, dessa maneira, que Górki está consciente da sua aproximação (ou não

distanciamento) das condições sociais históricas e tateia entre a narração das mesmas para tê-las

em tom de autoquestionamento. As representações de tudo o que infere ao texto, a imensidão do

espaço infantil, seus segredos e mistérios estão encobertos por uma escuridão amarga. Com

pinceladas de imaginação e realidade, Górki misturou harmonicamente palavras, cores e

possibilidades em suas páginas enquanto espaço físico infantil. Agora, temos um olhar mais

treinado que no plano das imagens tem a função de ver sentido em abstrações.

152

3.2 NA ALMA, UM ARCO-ÍRIS

Tudo no mundo tem cor Tudo no mundo é Azul Cor de rosa ou Furta-cor É vermelho Amarelo Quase tudo tem seu tom Roxo Violeta ou Lilás (...)198 Ziraldo

O mundo não é uma coleção de objetos naturais, com suas formas respectivas, testemunhadas pela evidência ou pela ciência; o mundo são cores. A vida não é uma série de funções da substância organizada, desde a mais humilde até à de maior requinte; a vida são cores. Tudo é cor... ... Aprendo isso, tão tarde! com Ziraldo. Ou mais propriamente com Flicts... Quem é Flicts?... ... Flicts é a iluminação — afinal, brotou a palavra — mais fascinante de um achado: a cor, muito além do fenômeno visual, é estado de ser, e é a própria imagem. Desprende-se da faculdade de simbolizar, e revela-se aquilo em torno do qual os símbolos circulam, voejam, volitam, esvoaçam — fly, flit, fling — no desejo de encarnar-se. Mas que para que símbolos, se captamos o coração da cor? Carlos Drummond de Andrade199

O subcapítulo que se segue tem a missão de subsidiar os leitores para que mergulhem no

infinito particular de Górki, palco cheio de estruturas complexas em constante relação com a

vida, crendo que os seres humanos são um mural de exceções. Não intento recontar tudo o que se

passa na narrativa, porém devo recordar o ambiente sinistro no qual o menino Aleksiei estava

inserido.

Ao perder o pai, o menino navega pelas águas do Volga de volta a Níjni-Nóvgorod,

acompanhado por sua mãe, avó e irmão recém-nascido morto. O panorama é a gélida Rússia que,

afundada em sofrimento, promove no menino a formação de um caráter, onde a inocência duela

com a culpa, a violência com a capacidade crítica, fazendo com que as travessuras de criança

198 ZIRALDO. Flicts. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1969, p. 5. 199 Palavras do poeta Carlos Drummond de Andrade dedicadas ao tema das cores abordado por Ziraldo, em Flicts. Citação retirada do site: http://www.epub.org, acessado em maio de 2010.

153

preparem um terreno sólido para uma futura independência. O ambiente era de uma hostilidade

ímpar, com personagens coloridos de raiva, angústia, dor, medo, fé, alegria e confiança. Como

um Oliver Twist das estepes, Aleksiei enfrenta as ruas e pinta com cores tudo aquilo que vê com

olhos. Segundo o pensamento de Heidrun Olinto, podemos dizer que, para Górki,

a [escrita] da própria história de vida, ainda que atenuada pela ênfase em questões institucionais acadêmicas e a sua inserção em contextos político-históricos, confere a esse ato inevitavelmente o caráter de propriedade pública. E é nessa delicada junção de interesses contraditórios que se localiza a escrita (auto)biográfica como encenação singela de desejos tácitos que informam e tingem esse gesto do intelectual que circula no espaço da comunidade.200

Mas, sob quais pontos de vista o tingimento desse gesto do autor pode caracterizar a

assinatura de um texto autobiográfico?

Os tons provenientes da natureza desde sempre apresentaram aos homens o colorido que,

por sua vez, ofereceu-lhes algum tipo de imagem e despertou-lhes sentimentos. Daí, não foi

difícil acontecer a necessidade de expressá-los, recorrendo também às cores além das palavras.

Imagem e sentimento são os quesitos motivadores de um estudo sobre as cores no livro Infância,

em particular. De forma interessante, as cores estão presentes na maioria dos textos gorkianos e

atenção, já que são inerentes à vida de qualquer homem.

As teorias sobre as cores são várias e a aplicabilidade delas mais diversificadas ainda,

porém, nas obras de Górki, é válido saírmos de um núcleo monocromático de abordagem para

que percebamos instintivamente a presença de forças de luz nas obras. Não pretendo inserir a

obra gorkiana no movimento vanguardista expressionista, mas não posso ignorar as palavras de

Boris Schnaiderman, quando afirma que as obras de Górki são dotadas de uma “flagrante

deformação expressionista” (GÓRKI, 2007b, p. 12), o que justifica um uso prenunciado de

deformações naturais que visaram à expressão mais subjetiva dos seres humanos. Em linhas

gerais, o expressionismo tinha o princípio de interpretar individual e intensamente os estados da

alma e, é aí que ocorre uma certa sintonia entre Górki e essa arte, que é mais que uma vanguarda,

é a arte da luz, da sombra e da cor.

A temática das cores é um material que instiga pensadores há muito tempo e é impossível

precisar quantos estudiosos já se dedicaram a compreeender como elas se comportam, tanto na

200 OLINTO, Heidrun Krieger. Pequenos egos-escritos intelectuais. Artigo publicado na revsta Palavra-PUC, nº 10, 2003, p. 25.

154

realidade quanto na ficção. O importante é tentar entender como o nosso olhar enxerga a luz

traduzida em cores e o que ela nos diz em termos de concepção de mundo.

Os primeiros estudos sobre as cores começaram a ser feitos na Grécia Antiga através dos

conhecimentos de Aristóteles201, que afirmava que as cores existiam na forma de raios mandados

para a Terra por Deus. Essa teoria vigorou até a Renascença, quando novos sistemas de cores

surgiram para contestar o que já se sabia. Em fins do século XVII, o conhecimento sobre a luz

teve sequência com os trabalhos de Isaac Newton202. A “Nova teoria da luz e das cores”, de 1672,

propunha que a luz solar seria formada por uma mistura de raios diferentes, obtendo, assim, o

fenômeno da refratabilidade em que apenas a luz seria a responável pelas cores. Mas, será com

Johann Wolfgang Goethe que iniciarei a minha próxima proposta.

Publicada em 1810, “A doutrina das cores” revolucionou a concepção prévia que via as

cores como um fenômeno meramente físico, concebendo a ideia da “sensação das cores”. Essa

sensação, segundo Goethe, surge na mente e é moldada pela nossa percepção, ou seja,

enxergamos as cores pelo aparelho da visão e pela forma de como nosso cérebro processa as

informações recebidas. O pensador defende que o olhar é sempre dedutível e crítico, porém,

apenas olhar não gera um estímulo, uma vez que este é uma experiência que transcende a um

simples observar. Cria-se, então, um vínculo teórico que leva o observador a tirar suas próprias

conclusões sobre aquilo que consegue perceber.

Cada olhar envolve uma observação, cada observação uma reflexão, cada reflexão uma síntese: ao olharmos atentamente para o mundo já estamos teorizando. Devemos, porém, teorizar e proceder com consciência, autoconhecimento e liberdade e - se for preciso usar uma palavra audaciosa - com ironia: tal destreza é indispensável para que a abstração que receiamos não seja prejudicial e o resultado empírico que desejamos nos seja útil e vital.203

Para Goethe, a sensibilidade não é somente receptividade, é também ímpeto, e com isso as

cores devem ter dupla interpretação. Elas devem ser sentidas em paralelo como “paixão” e “ação”

da luz. A cor não é apenas luz, é um resultado de uma ação que nasce na paixão, no olhar, como

201 A título de curiosidade, para Aristóteles, as cores primárias seriam aquelas dos elementos da terra, ar, fogo e água. Sua concepção de cor é baseada na observação de que a luz do sol, ao atravessar ou refletir em um objeto, tem a sua intensidade reduzida e escurece. Assim, a cor seria derivada de uma transição do claro para o escuro. 202 A nova teoria da luz e das cores, de Isaac Newton, teve seus resultados primeiramente escritos em uma carta enviada à Royal Society of Londres, em 1672, em que através de um prisma onde incidia luz branca foram refratadas as cores componentes vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta. 203 GOETHE, J W. Doutrina das cores. Trad. Marcos Giannotti. São Paulo: Nova Alexandria, 1993. Prefácio.

155

forma de criar a natureza. A luz não só está dentro de cada um como acaba se identificando com

o próprio sujeito.

As cores são ações e paixões da luz. Nesse sentido podemos esperar delas alguma indicação sobre a luz. Na verdade, a luz e as cores se relacionam perfeitamente, embora devamos pensá-las como pertencendo a natureza em seu todo (...) As leis naturais são feitas e relacionadas umas com as outras como se a Faculdade de Julgar as houvesse produzido para o seu próprio uso (GOETHE, 1993, Introdução).

Na natureza, os estímulos visuais são primeiramente analisados e depois decompõe a

multitude do mundo que observamos. É a libido social que após o processo de desagregação,

inicia a etapa de síntese, de montagem, através da qual extraímos informações, características e

significados e tornamos possível a apreciação do que se vê. Para Goethe, o preceito vital da

natureza é ao mesmo tempo o da própria alma humana, tendo ambas a mesma igualdade de

direitos. Esse princípio procede da unidade do ser que, na diversidade de suas configurações,

desenvolve a igualdade criadora, de sorte que o homem possa encontrar em seu próprio coração

todos os segredos do seu ser. As cores, portanto, produzem efeitos sensíves e morais e para cada

um deles há uma tonalidade que estabelece relações dicotômicas de harmonia, desespero, ódio,

amor, tristeza e alegria. Mensagens ideológicas que coexistem nos universos da imaginação e do

real.

Uma vez que a cor ocupa lugar tão destacado entre os fenômenos naturais primários, enchendo com imensa variedade o campo que lhe está destinado, não surpreenderá o fato de que em suas manifestações elementares mais gerais, sem nehuma relação com a natureza ou configuração do corpo em cuja superfície a percebemos, produza sobre o sentido da vista, ao qual pertence, e, por seu intermédio, sobre a alma humana individual, um efeito específico e, em combinação, um efeito por vezes harmonioso, característico, e às vezes não harmonioso, porém sempre definido e significativo que se radica intimamente na esfera moral. É por isso que a cor, considerada como elemento de arte, pode colocar-se a serviço dos mais altos fins estéticos.204

As cores contêm o ensinamento de uma vida que nasceu em Aleksiei mediante a

condicionamentos de adaptação apresentados a ele durante a sua caminhada. A variedade do

colorido para determinar sentimentos e estados de espírito e o modo peculiar de apreender as

204 PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. Rio de Janeiro: SENAC, 2009. 10 ed, p. 72. As palavras de Goethe foram aqui utilizadas pelo pesquisador que se dedicou ao estudo fisiológico, moral e estético das cores.

156

cores em sua transparência, expressam a maneira infantil que Górki encontrou para fazer com que

Aleksiei visse o mundo com olhos próprios e rompesse os limites textuais, porque

as transformações das cores, base de toda harmonia cromática, [extrai] a variável dose desejada de lirismo existente na pureza da linguagem íntima da cor. O que está além dos meios materiais empregados: a outra cor implícita no corpo material, a cor que é a alma e a essência da cor, e que, no entanto, é ao mesmo tempo a sua áurea – o além-da-cor (PEDROSA, 2009, p. 14).

Ao descrever a própria existência, Górki lança mão de seu cotidiano e cerca Aleksiei com

personagens-cores. Grosso modo, as cores são vistas como parte integrante da aparência das

coisas e criam uma combinação da recepção física com a interpretação psicológica delas,

resultado do processamento do olho e do cérebro, e por que não dizer, do coração também. Daí a

importância em ressaltar o processo de percepção visual pelo qual passou Aleksiei, pois foi assim

que ele obteve informações sobre si mesmo, sobre os outros, sobre os lugares, as coisas e as suas

representações.

As cores são, portanto, tudo aquilo que transparece à realidade e a transcende. Nas

primeiras páginas de Infância, as impressões do menino começam a ser interpretadas através das

cores. A mãe, Varvára, é a primeira ser pintada ao ser apresentada chorando no enterro do

marido. De acordo com Górki, “(...) a mãe fala sem parar, com voz grossa, enrouquecida, seus

olhos cinzentos estão inchados e, como se derretessem, escorrem grandes gotas de lágrimas”

(GÓRKI, 2007a, p. 19). Em pouco tempo, a mesma personagem muda de feição, ao dar à luz

poucos instantes depois de se despedir do marido.

De repente, com dificuldade, a mãe levanta-se depressa, logo se abaixa de novo, cai de costas, espalhando os cabelos pelo chão; seu rosto branco e desfigurado ficou azul e, com os dentes arreganhados, como os dentes do pai, ela fala, numa voz terrível:

– Fechem a porta... Aleksiei, para fora! (GÓRKI, 2007a, p. 21)

De início, Górki resvala num aspecto criativo em sua obra, guardando na pessoa que

narra, a criança que ele foi um dia. Esse efeito de saturação o reaproxima daquele menino que um

dia se tornou, como afirma Baudelaire, um

homem do mundo, homem das multidões e criança”, possuidor de uma originalidade tão forte e tão decidida, que se basta a si própria e nem mesmo busca aprovação (...) um artista que estivesse sempre, espiritualmente, no estado de convalescença “criança reencontrada” com vontade, (...) dotada (...) de espírito analítico que lhe permite ordenar a soma de materiais involuntariamente acumulados. (...) um homem-criança, (...) que

157

possui a cada minuto o gênio da infância, isto é, um gênio para quem nenhum aspecto da vida está embotado (BAUDELAIRE, 1993, p. 106).

Mesmo que esse reencontro com a figura passada tenha acontecido, Górki tem

consciência do que está criando. A sua obra é o resultado de uma operação do intelecto que

resgata uma originalidade forte e decidida e que brinca conscientemente com fatores estranhos

anormais à naturalidade, coletando e juntando elementos de diferentes naturezas. Consciente dos

segredos que as palavras escondem, Górki cria mecanismos indispensáveis para o entendimento

da sua vida, pois

na luta pela existência, o instinto de conservação desenvolveu no homem duas poderosas forças criadoras. Essas forças são o conhecimento e a imaginação. A primeira é a capacidade de observar, comparar e elucidar os fenômenos naturais e os fenômenos da vida natural; em outras palavras, o conhecimento é a capacidade de pensar. Em essência, a imaginação também é pensamento; é pensamento acerca do mundo, porém, é fundamentalmente, pensamento em imagens, pensamento em forma artística; poderia se dizer que a imaginação é a capacidade de atribuir qualidades humanas, sentimentos humanos e, inclusive intenções humanas às coisas e aos fenômenos espontâneos da natureza (GÓRKI, 1984, p. 15).

O uso de diferentes cores se une à multiplicidade de linhas narrativas gorkianas que se

propõe a expressar uma pluralidade de sentimentos que compõem um ser humano. As formas

literárias e as cores significam muito além de si mesmas - elas contribuíram para que Górki

adapatasse o nível de sua percepção à época e, ao mesmo tempo, procurasse um equilíbrio entre

passado e presente. Nessa prosa, há espaços coloridos em toda parte que dão nada mais que muito

ritmo à narrativa, ora acelerado, ora lento, porém em harmonia com o virar de cada página. Como

as cores podem se misturar e dessa mescla desordenada sairão outras tonalidades, a narrativa

ganha ares de arte organizadora que gera “um estado de ordem e equilíbrio – [...] uma

desorganização anárquica do universo, do interior da qual [será possível] recriar um mundo”205.

Percebemos, então, que as cores deixam de ser coadjuvantes do texto escrito para

complementá-lo, por vezes afirmando-o ou contrariando-o, isto é, pelo seu uso, Górki busca a

ruptura do sentido comum da visão de mundo e cria para Aleksiei perspectivas alternadas que

camuflam as imagens reais. As cores universalizam os cenários da narrativa autobiográfica

gorkiana, ocultando interesses, medos, crenças e desejos. Assim, Infância, falando no interdito da

205 TODOROV, T. Os Gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 122.

158

linguagem infantil, permite que o menino-narrador tire suas próprias conclusões no processo de

reconhecimento do que surgiu a sua frente desde que se iniciou sua primeira viagem pelo Volga.

O tempo bom se firmou; da manhã até a noite, eu e a avó ficamos no convés, sob o céu claro, entre as margens do Volga, douradas pelo outono, bordadas de seda. Sem pressa, batendo com as pás da roda na água azul acinzentada, de maneira preguiçosa e ressoante, o navio a vapor, de uma cor ocre, se arrasta rio acima, com um bote amarrado numa corda comprida. O bote é cinzento e parece um tatuzinho. Imperceptivelmente, o sol se desloca flutuando sobre o Volga; a cada hora, tudo se renova, tudo muda; as montanhas verdes são como pregas macias nas roupas suntuosas da terra; nas margens, há cidades e aldeias, iguais a pão de mel, vistas de longe, uma folha de outono dourada flutua pela água.

– Olha, como é bonito! – diz a avó, a todo instante, enquanto passa de uma borda à outra, e toda ela brilha, e os olhos ficam grandes de alegria (...)

(...)– Olhe, olhe, que bonito! Lá está a querida Níjni!206 (GÓRKI, 2007a, p. 26-29).

Ao estar diante de obstáculos de situações cotidianas que lhe causam perplexidades,

Aleksiei é estimulado a compreender como e porque aquelas situações acontecem e do seu jeito

buscar soluções para elas. Mas como a sua racionalidade ainda exerce pouco controle sobre o

inconsciente, a imaginação escapa e, junto com ela, vêm todas as suas emoções. A habilidade do

menino em raciocinar em colorido também se reveste de boas doses de ansiedade, esperanças,

medos, desejos, amores e ódios, sentimentos que emergem de qualquer pensamento humano207.

– Pois está combinado, vamos juntos! Eu vou anunciar você na cidade; este aqui é o neto de Vassíli Kachírin, o chefe da corporação dos tintureiros, filho da sua filha! Vai ser interessante...

Várias vezes, sob os olhos vazios da tia Natália, eu vi uns inchaços azulados e, no seu rosto amarelo, os lábios inchados.

Perguntei à avó: O tio bate nela? Suspirando, respondeu: – Bate sem ninguém ver, o maldito excomungado! O vovô não permite que bata

nela, por isso bate à noite. É maldoso, e ela é molenga... (GÓRKI, 2007a, p.79)

206 Essa passagem retrata a viagem de volta do menino Aleksiei à terra natal de sua mãe, a cidade de Níjni- Nóvgorod. 207 Pelo que foi apurado, não há nenhum estudo específico sobre o constante uso das cores feito por Górki, porém não podemos ignorar a presença delas. O que consta é o registro do avô de Górki, Vassíli Kachírin, ter sido dono de uma tinturaria e também chefe dos tintureiros, fato que fez Aleksiei ter contato direto com tintas, cores e desenhos desde pequeno. Já crescido, dentre seus inúmeros ofícios, Aleksiei exerceu as funções de tintureiro, pintor de ícones e desenhista, todas elas necessitadas de diversas colorações.

159

Nessa passagem, ao ser apresentado aos moradores da cidade, Aleksiei já estabelece uma

relação da sua interpretação (que é uma fantasia) com a realidade do momento, usando as cores

como dado ilusório de uma mesma realidade. As cores são ilusões (criações) que preenchem uma

realidade, assim, tanto numa criação quanto numa realidade, as experiências visuais são uma

forma de sonhar acordado. Vejamos mais uma descrição da avó, Akulina, a quem Aleksiei

dedicava intenso carinho.

A avó falava de um jeito diferente, como se cantasse as palavras, e assim elas se fixavam com mais força na minha memória, tão meigas, vivas e tão cheias de sumo quanto as flores. Quanto a avó sorria, suas pupilas se dilatavam, escuras como cerejas, incendiando-se com uma luz indescritivelmente simpática, o sorriso desnudava com alegria os dentes brancos e fortes e, apesar de uma porção de rugas na pele escura das faces, o rosto inteiro parecia jovem e radiante. Seu rosto era muito prejudicado por aquele nariz mole, de narinas estufadas, e vermelho na ponta. Ela cheirava rapé numa tabaqueira preta, com enfeites de prata” (GÓRKI, 2007a, p. 26-27).

Akulina era uma mulher gorda, “ágil como uma gata” e detentora de todas as histórias

folclóricas russas que o menino ouvia vidrado. Os adjetivos que qualificavam a avó eram sempre

os melhores, porém, eram sempre frutos de algo que desfocava a figura dela. Górki, arquitetando

um mascaramento do real, permite que Aleksiei conte mentiras brancas necessárias à revelação

deste mesmo real. Como afirma Barthes, “esta trapaça salutar, esta esquiva, esse jogo magnífico

que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da

linguagem eu a chamo, quanto a mim, literatura” 208.

Assim, por trás de todos os temas que entram e saem das três narrativas, se encontra o

lugar de uma linguagem de símbolos plantada pela infância que articula o “trânsito” entre o real e

o imaginário, entre “o que [é] objetivamente percebido e o que [é] subjetivamente concebido”

(ISER, 1996, p. 36-37). Na literatura de Górki, o fictício possui um caráter de ato e ultrapassa

qualquer fronteira, já que a determinação do real é transfigurada pelo trabalho do imaginário e o

que é próprio da imaginação é um atributo de realidade.

Levando-se em conta esse alcance das noções de fictício e imaginário, torna-se tentador

levantar a hipótese de que, na qualidade de ato, toda obra (auto)biográfica pode ser considerada

ficção, concretizando e simultaneamente transgredindo um imaginário. Para tanto, devemos ter

em mente que isso só poderá ocorrer caso as convenções que distinguem tipos específicos de

208 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1996, p. 16.

160

narrativas permitirem que as obras se projetem sobre o imaginário, fazendo com que seja possível

supor seu desdobramento.

Em Infância, os traços infantis são simuladores de futuro, que fingem, teimam, brincam e

rumam para o imprevisível. Esse é o grande trunfo de Górki ao produzir uma literatura que é uma

fonte de reflexão pessoal, de um espírito crítico e de maravilhamento. A obra instiga uma

recriação que desbloqueia e alimenta o imaginário pessoal do autor numa dinâmica indispensável

para a construção de uma criança que soube inventar o homem-Górki. É essa “relação tríplice”

(realidade-ficção-fantasia) (ISER, 1996, p.13) que estabelece uma verdade interpretativa única

com tamanha convicção que não sobra espaço para o leitor ter dúvidas.

Num plano mais político, Górki fala por simbologias e usa mais uma vez as cores para

interpretar o eterno embate entre capitalismo e socialismo, no conto “Sobre o cinza” (O serom),

publicado em novembro de 1905. Antes de acompanharmos esse raciocínio, lembremos que esse

foi o ano em que ocorreu o Domingo Sangrento, movimento revolucionário antigovernamental

russo. Nesse conto, Górki se dirige para uma esfera de realidade sobre seus temores acerca de

uma possível disputa entre sistemas políticos.

SOBRE O CINZA

(...) Na terra, discutiam o vermelho e o preto. Incansável sede de poder sobre as pessoas – este é o poder do preto. Cruel, ganancioso, mal abriu suas pesadas asas sobre todo o mundo e envolveu toda a terra em sombras de frio e medo. Ele quer que todos os homens o sirvam, quer escravizar o mundo como o ferro, o ouro e as mentiras. Ele chama por Deus apenas quando Deus lhe concede o poder negro sobre as pessoas (...)

O poder do vermelho - seu desejo ardente é o de ver a vida livre, razoável e bonita. Seu pensamento está sempre ansiosa e inexoravelmente aceso, iluminando a escuridão da vida com luzes brilhantes de beleza, da justiça e do amor. Seus pensamentos acendem, em toda parte, a chama poderosa da liberdade e o fogo é quente e abraça com alegria a nossa terra escura, cega pelo grande sonho de felicidade para todos. Ele diz: - Todos - para todos! Todos são iguais. No coração de cada um há todo um mundo oculto de beleza que não permite que o homem se distorça, transformando-o em um instrumento de força bruta. Ninguém deve obedecer, ninguém deve se subordinar. O poder pelo poder é um crime! Entre o preto e vermelho, atarantado e tímido, está o monótono cinza. Ele ama apenas a vida morna (...) Ele está pronto para servir a qualquer tipo de poder, se ele for protegido e saciado. A vida toda para ele é um espelho no qual ele só vê a si mesmo. Ele é muito tenaz, porque todo parasita tem talento. Para ele, não importa quem lhe dá de comer, se é um animal ou uma pessoa, um idiota ou um gênio. Sua alma - é escorregadia, vulgar. O seu coração é um recipiente de cauleta covarde.

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O cinza retarda a morte e prejudica o crescimento de vida. É, justamente, o eterno inimigo de tudo o que é brilhante e corajoso...

M. Górki,

Novembro de 1905 209.

O cinza é, de fato, um tom bastante utilizado por Górki. Como uma cor desbotada e

intermediária, o cinza trata de tudo que é frágil, triste, menos denso e apagado. Essa cor está em

toda parte e é contagioso e, por isso, o autor procura para ele um outro território de atuação: a

arte. É lá que Górki mostra o desejo de dar ao mundo de que dispõe uma forma tão

cromaticamente irregular, tão estimulante e tão nova, como a do mundo da fantasia. Isso porque o

objeto estético gorkiano constitui um espelho “desrealizador” da realidade que refrata e, ao

mesmo tempo, opera como um realizador de uma outra realidade. Essa nuance torna mais claro

como o ato de fingir pode conseguir que “nossa relação com o mundo do texto possa ter o caráter

de um acontecimento” (ISER, 1996, p. 29). Em 4 de julho de 1896, Górki descreve o imapcto

visual que viveu ao visitar uma feira cinematográfica. Nesse aritgo, o cinza é novamente

sinônimo de monotonia e inércia.

209 GÓRKI, O serom. (Sobre o cinza). Disponível no site: www.maximgorkiy.narod.ru. Acessado em maio de 2009. CITAÇÃO ORIGINAL:

(...) На земле спорят Красный и Чёрный. Неутомимая жажда власти над людьми — вот сила Чёрного. Жестокий, жадный, злой, он распростёр над миром свои тяжёлые крылья и окутал всю землю холодными тенями страха пред ним. Он хочет, чтобы все люди служили только ему, и, порабощая мир железом, золотом и ложью, он даже бога призывает только затем, чтобы бог утвердил его чёрную власть над людьми.

Сила Красного — его горячее желание видеть жизнь свободной, разумной, красивой. Его мысль всегда горит трепетно и неустанно, освещая тьму жизни яркими огнями красоты, грозным сиянием правды, тихим светом любви. Его мысль зажгла повсюду могучее пламя свободы, и этот огонь радостно и жарко обнимает нашу тёмную, слепую землю великой мечтой о счастье для всех.

Он говорит: - Всё — для всех! Все равны, в сердце каждого скрыт целый мир красоты,и нельзя искажать

человека, превращая его в тупое орудие бессмысленной силы. Никто не должен подчиняться, никто не имеет права подчинять, власть ради власти преступна! (...)

Между Чёрным и Красным суетливо и робко мечется однообразный маленький Серый. Он любит только жизнь тёплую. (...) Он готов рабски служить всякой силе, только бы она охраняла его сытость и покой. Вся жизнь для него — зеркало, в котором он видит только себя. Он очень живуч, ибо обладает всеми талантами паразита. Ему всё равно, кто даёт ему есть, животное или человек, идиот или гений. Его душа — трон скользкой жабы, которую зовут пошлостью, его сердце — вместилище трусливой осторожности.

Серый задерживает смерть отжившего, затрудняет рост живого, он-то и есть вечный враг всего, что ярко и смело...

Горький

Ноябрь 1905 г.

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SOBRE UMA VISITA AO REINO DAS SOMBRAS Ontem à noite eu estive no Reino das Sombras. Se você soubesse o quão estranho é estar lá... É um mundo sem som, sem cor.

Cada coisa lá — a terra, as árvores, as pessoas, a água e o ar — estão mergulhadas em um monótono cinza. Os raios acinzentados do sol cortam o céu acinzentado, olhos acinzentados em caras acinzentados, e as folhas das árvores são semelhantes ao cinza. Não é vida e sim sombra, não é o movimento e sim um espectro sem som.

Aqui, eu devo me explicar para que não seja um símbolo de loucura ou indulgência. Estive em Aumont e vi na cinematografia de Lumière uma fotografia que se move. A impressão extraordinária que ele cria é tão única e complexa que duvido da minha habilidade de descrevê-la com todas as suas nuances. Contudo, tentarei transmitir o que é fundamental. Quando as luzes saem na sala onde a invenção da Lumière está exposta, repentinamente aparece na tela uma grande imagem cinzenta, “Uma rua em Paris” - as sombras de uma gravura ruim. Quando fixamos o olhar nela, vemos as carruagens, os edifícios e as pessoas em várias poses, todos congelados na imobilidade.

Tudo é cinza, até o céu acima — você não antecipa nada de novo nessa cena demasiadamente familiar, uma vez que já viu outras vezes quadros de ruas parisienses. Porém, de repente, um tremor estranho passa pela tela e o quadro se mistura à vida. Carruagens vindas de algum lugar se movem diretamente na sua direção, na direção da escuridão em que você está sentado; de longe, as pessoas se agigantam, na medida em que chegam mais perto de nós; em primeiro plano, as crianças brincam com um cão, os ciclistas passeiam e os pedestres cruzam a rua escolhendo os seus caminhos entre as carruagens. Tudo isso se move, engrandece a vida e, para se aproximar da tela, desaparecem em algum lugar além dela.

E tudo isso em um silêncio estranho onde não são ouvidos o barulho das rodas e o som dos passos ou das vozes. Nada, nem uma única nota da sinfonia que sempre acompanha os movimentos das pessoas. Silenciosamente, a folhagem cinzenta das árvores balança ao vento e as silhuetas cinzentas das pessoas, como se condenadas ao silêncio eterno, deslizam silenciosamente ao longo do terreno cinzento, sendo privadas de todas as cores da vida.

Os sorrisos deles são inanimados, embora os seus movimentos sejam cheios da energia, devem ser tão rápidos quanto imperceptíveis. As risadas não têm som, embora você veja os músculos das faces cinzentas se contraírem. Diante de você, a vida aumenta repentinamente, uma vida privada de palavras e de cores vivas - uma vida cheia de cinza, sem som, deserta e triste.

É horrível ver isso, mas é o movimento das sombras, só das sombras... Repentinamente, há um estalo, tudo desaparece e um trem, que surge na tela, vai diretamente em sua direção – cuidado! 210

210 GÓRKI, M. On a visit to the Kingdom of shadows. Artigo disponível no site: http://www.mcsweeneys.net/books/everythingthatrises.contest50.html e acessado em setembro de 2010. CITAÇÃO ORIGINAL: “ON A VISIT TO THE KINGDOM OF SHADOWS

Last night I was in the Kingdom of Shadows. If you only knew how strange it is to be there. It is a world without sound, without colour. Every thing

there—the earth, the trees, the people, the water and the air—is dipped in monotonous grey. Grey rays of the sun across the grey sky, grey eyes in grey faces, and the leaves of the trees are ashen grey. It is not life but its shadow, It is not motion but its soundless spectre.

Here I shall try to explain myself, lest I be suspected of madness or indulgence in symbolism. I was at Aumont's and saw Lumière's cinematograph—moving photography. The extraordinary impression it creates is so unique and complex that I doubt my ability to describe it with all its nuances. However, I shall try to convey its fundamentals. When the lights go out in the room in which Lumière's invention is shown, there suddenly appears on

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Até agora vimos como a imaginação policromática de Aleksiei causou um efeito de foro

íntimom que permite que nós adentremos na realidade ficcional que ele está propondo. Segundo

Anatóli Lunatchárski, Górki “é realmente um pintor de paisagem e, o mais importante, é um

apaixonado pelas paisagens. Para ele, é difícil se aproximar de uma pessoa, começar um capítulo

de uma novela, sem primeiro olhar para o céu e ver o que estão fazendo o sol, a lua, as estrelas e

a paleta inefável dos céus com a magia das nuvens”211 (LUNACHARSKY, 1965, p. 222). O autor

cria uma realidade textual que o saber tácito não percebe a distinção dessa realidade ficcional da

realidade real, pois há no texto artístico, muita realidade que não só deve ser identificada como

realidade social, mas também como uma realidade de ordem sentimental e emocional. Observa-se

mais um exemplo da ambiência de Infância, em um capítulo em que há uma baixa no

relacionamento entre Aleksiei, o menino pobre, e os filhos dos fidalgos que viviam próximos.

A tarde já ia adiantada, nuvens vermelhas pendiam acima dos telhados, quando apareceu junto de nós um velho de bigode branco, numa roupa castanha, comprida que nem a de um padre, e com um gorro de pele felpudo.

– Quem é esse aí? – perguntou, apontando para mim com o dedo. O menino mais velho levantou e acenou com a cabeça para a casa do meu avô: – É de lá. – Quem chamou?

the screen a large grey picture, "A Street in Paris"—shadows of a bad engraving. As you gaze at it, you see carriages, buildings and people in various poses, all frozen into immobility.

All this is in grey, and the sky above is also grey—you anticipate nothing new in this all too familiar scene, for you have seen pictures of Paris streets more than once. But suddenly a strange flicker passes through the screen and the picture stirs to life. Carriages coming from somewhere in the perspective of the picture are moving straight at you, into the darkness in which you sit; somewhere from afar people appear and loom larger as they come closer to you; in the foreground children are playing with a dog, bicyclists tear along, and pedestrians cross the street picking their way among the carriages. All this moves, teems with life and, upon approaching the edge of the screen, vanishes somewhere beyond it.

And all this in strange silence where no rumble of the wheels is heard, no sound of footsteps or of speech. Nothing. Not a single note of the intricate symphony that always accompanies the movements of people. Noiselessly, the ashen-grey foliage of the trees sways in the wind, and the grey silhouettes of the people, as though condemned to eternal silence and cruelly punished by being deprived of all the colours of life, glide noiselessly along the grey ground.

Their smiles are lifeless, even though their movements are full of living energy and are so swift as to be almost imperceptible. Their laughter is soundless although you see the muscles contracting in their grey faces. Before you a life is surging, a life deprived of words and shorn of the living spectrum of colours—the grey, the soundless, the bleak and dismal life. It is terrifying to see, but it is the movement of shadows, only of shadows ... Suddenly something clicks, everything vanishes and a train appears on the screen. It speeds straight at you—watch out! (...) 211 CITAÇÃO ORIGINAL: “is truly a landscape painter and, more important, a passionate landscape lover. He finds it difficult to approach a person, to begin a story of a chapter of a novel without first glancing at the sky to see what the sun, the moon, the stars and the ineffable palette of the heavens with the everchanging magic of the clouds are doing”.

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Os meninos, todos ao mesmo tempo e em silêncio, escorregaram para fora do trenó e foram para a casa, o que de novo me fez lembrar gansos obedientes.

O velho me segurou com força pelo ombro e me levou pelo pátio até o portão; senti vontade de chorar de medo dele, mas o velho dava passos tão largos e ligeiros que, antes de poder começar a chorar, eu já tinha ido parar na rua, enquanto ele, detendo-se na porteira, ameaçou-me com o dedo e disse:

– Não se atreva a vir à minha casa! (GÓRKI, 2007a, p. 178-179)

A fantasia colorida dribla a tensão do imaginário, fixando-se como um “poético

facilitado” e a “criança é alguém que ainda não converteu sua apetência pela fantasia em

competência para a tensão do imaginário”212. A tematização imaginária dentro de uma realidade,

convoca a semelhança e a identificação com tamanha exclusividade que qualquer diferença

desaparece. “Daí que a fantasia tenha de ser sentimental, compensatória, e não ofereça lugar para

o questionamento e a criticidade” (COSTA LIMA, 1996, p. 224).

Podemos entender, portanto, que o espaço da infância proposto por Górki forma uma

narrativa que articula as funções cognitiva e emotiva do narrador, que se comprometem com o

processo de emancipação individual e social de Aleksiei. Com isso, se dá a função formadora da

literatura gorkiana: a função de ser capaz de mudar uma pessoa ao simples contato com ela. As

cores nada mais são do que luzes que iluminam o texto e fazem dele, não apenas um espaço para

experienciar o novo, mas uma realidade cultural e social.

Contudo, a trilogia gorkiana funciona como um caleidoscópio que une, separa e molda

vidrilhos coloridos modificadores de ações e reações do homem russo. Obras como Infância

foram criadas para serem vividas e revividas, pois há identificações com as dissimulações e

verdades expostas nos fatos do real e do ficcional. Pensar a cores é um verdadeiro desafio dentro

da visão da estética autobiográfica de Górki, autor que se propôs a ver as caras e as cores como

um estímulo elucidador de comportamentos.

3.3 O LEGADO – A RE-ESCRITURA DA MEMÓRIA

O novo habitante da terra russa, homem ignorado de destino, fungava com expressão concentrada, deitado em meus braços. O mar ciciava, muralhava, coberto de

212 COSTA LIMA, L. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1996, p. 224.

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renda branca das aparas; murmuravam os arbustos, brilhava o sol, que passara do meio-dia.

Caminhávamos devagar. De quando em quando, a mãe parava, suspirava profundamente, sacudia a cabeça para cima, olhava para os lados, para o mar, para a floresta e as montanhas, e, em seguida, espiava o rosto do filho – os seus olhos, completamente lavados pelas lágrimas do sofrimento, estavam de novo admiravelmente luminosos, floresciam mais uma vez e ardiam com a chama azul do amor infinito. (GÓRKI, 2005, p. 219)213

Ao longo dos capítulos ateriores, objetivei conferir amplitude aos elementos simbólicos

integrados ao imaginário de Górki. Protagonista de momentos-chave da literatura russa, Górki foi

como farol para seus sucessores. Suas obras se não sinalizaram o caminho, ao menos indicaram

um ponto de partida, pois a percepção do caráter autobiográfico é muito mais complexa e tensa

do que a simples aparência de um ato natural de confissão.

Foi da mescla das práticas artísticas, cunhadas de forma autodidata e aprendida com os

grandes mestres da tragédia humana que emergiu uma literatura autobiográfica soberana

produtora de uma análise suficientemente engajada para conferir um enquadramento especial ao

infortúnio e a injustiça entre os homens.

Diversos tópicos contribuíram para o desenvolvimento completo das concepções

gorkianas que tentaram explicar o sentido do presente através do resgate do passado. Uma das

mais importantes, no entanto, foi o esforço de Górki em se concentrar nas condições para que

conseguisse ascender à plenitude de si, tornar-se consciente de si, não por ter que prestar contas

de seu passado, mas por ter tido a coragem de dividi-lo. A falarmos de Infância como uma obra

portadora de um imenso manancial de valores humanos, observamos que o seu conteúdo é

essencialmente progressista. Por uma questão de coincidências temporais, o texto se serviu de

prerrogativas nacionalistas para desenvolver um imaginário cultural e político em que o uso do

discurso de resistência formou um dos critérios para questionar qualquer verdade pronta. Foi da

degradação da história que Górki tirou a sua originalidade, baseando-se no grau de propriedade

instituído pelas escritas de si. Posição compartilhada pelo historiador Korneli Zelinski, que

afirma que

a rica originalidade de Górki, com sua inclinação para as imagens fantásticas românticas, não foi por si mesma o principio fundamental que alimentou sua criação. Górki investiu

213 Esta epígrafe foi retirada do conto “Nascimento do homem”, escrito por Górki em 1912, um ano antes da publicação de Infância.

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primeiro em suas viagens a pé pela Rússia, e, em seguida, tomou a pena para contar às pessoas como era o país, seu povo, como este vivia e quais eram seus desejos; para dizer em que consistia a felicidade do homem. Por isso, a reflexão e a descrição ocupam tanto espaço em suas obras214.

A linha de pensamento descrita acima perpassa a trilogia sob dois aspectos fundamentais:

o voluntarismo e vitimização. Entretanto, essa relação entre posicionamento político e arte é

tensa, pois esbarra em pontos contraditórios projetados e amadurecidos por Górki ao longo de

anos de militância. Essas discrepâncias ficam nesta tese no plano das especulações, porque o

importante é saber que Górki, mesmo escrevendo um texto que também conta parte da história

russa, conseguiu preservar uma reflexividade e uma concepção única de autoconhecimento que

superam a luta partidária. Os recursos literários formais utilizados já indicavam a constituição de

um escritor que posicionou, em paralelo, as suas experiências com a história, transformando-as

em arte.

A integridade da intenção se relaciona à sinceridade com que uma história é contada.

Górki foi capaz de desenvolver a identidade de sua trilogia somente a partir da relação com

outras pessoas. Foi do convívio social que ele conseguiu moldar a sua pessoa, entender o que ele

foi, de onde veio e que rumos a sua vida iria tomar. Sem dúvida, o ambiente social e os outros

indivíduos exerceram forte influência no autobiógrafo, construindo uma dimensão relacional

fundamental para todas as vivências experienciadas durante a vida.

Para se conhecer, Górki precisou esmiuçar a vida de sua comunidade. Lunatchárski, por

exemplo, entende que os atos autonarrativos gorkianos são parte de um longo processo de

formação de identidade, quando afirma que

em Górki, encontramos muito mar, montanhas, florestas e estepes, e muitos jardinzinhos e recantos ocultos da natureza! Que palavras excepcionais que ele inventa para descrevê-los! Ele trabalha como um artista objetivo: como Monet, analisa as cores com o seu olhar crítico que, provavelmente, é o vocabulário mais extenso da nossa literatura, ora, ao contrário, de forma sintética, produz um traçado geral e com frases fortes que podem descrever um panorama inteiro (LUNACHARSKY, 1965, p. 222).215

214 ZELINSKI, K. La literatura sovetica. Problemas y personas. Trad. R. Carrillo. Moscou. Editorial Progreso, 1970, p. 57. CITAÇÃO ORIGINAL: “la rica originalidad de Górki, com su inclinación a las imágenes fantásticas, no fue de por si el principio fundamental que alimento su creación. Górki emprendió primero sus viajes a pie por Rusia, y, luego, tomo la pluma para contar a la gente lo que era el país, su pueblo, como vivia este y cuáles eran sus afanes; para decir em qué residia la felicidad del hombre. Por eso el razionamiento y da descrpción ocupan tanto lugar em sus obras”. 215 CITAÇÃO ORIGINAL: “in Gorky we find so much of the sea, the mountains, forests and steppes, so many little gardens and hidden nooks of Nature! What unusual words he invents do describe it! He works at it as an objective

167

Ao invés de ficar restrito às relações familiares, Górki procurou se definir através do

papel que desempenha como Aleksiei, ou seja, repete para si mesmo que não deve se esquecer de

nada. A obra Notas do meu diário, de 1924, traz uma análise sobre o que havia de novo na

cultura artística contemporânea russa. Nessa coletânea de trinta esboços retrospectivos, Górki

procurou novas formas de expressão que lhe permitiram compreender profundamente a natureza

humana e suas mais diversas manifestações. Nesse livro, o escritor ignora qualquer tipo de

definição social, não importando se os seus personagens são comerciantes, soldados, zeladores,

escritores ou governadores. O importante é que cada uma dessas figuras seja uma manifestação

do povo russo e um transmissor da mentalidade nacional.

Depois de muitas considerações, Górki nos indaga com a pergunta: Para que viver? Em

consonância com pessoas tão diferentes, está o próprio autor-narrador (Górki). Nas notas, o seu

papel não se limita à função de compor o texto, adotando um único olhar frente ao caos de uma

vida inteira, ao contrário, o que se observa é que ele se coloca em pé de igualdade com os seus

personagens, conservando sua natureza autobiográfica. No trecho “As pessoas estão só consigo

mesmas”, trabalhando mais uma vez com suas lembranças, Górki permanece coerente com toda

sua obra, especialmente com a trilogia, e refuta fundamentalmente o conceito do moderno,

jogando nas páginas a mixórdia selvagem de todos os dias e a decadência espiritual do ser

humano.

Hoje, observei como uma mocinha loura, com rosto inacabado de menina, calçada com meias de cor da pele, em pé sobre a ponte Tróitsk, segurava o corrimão com as mãos cobertas pelas luvas. Como se estivesse se preparando para pular no rio Nievá, mostrava à lua a sua língua vermelha de ponta fina. A velha e astuta raposa celeste penetrava no céu através de uma nuvem de fumaça suja e estava grande e com o rosto vermelho como se estivesse bêbada. A dama implicava com a lua de uma maneira muito séria e até mesmo vingativa - assim me pareceu. Ela fez renascer em minha memória algumas coisas estranhas que por muito tempo sempre me incomodaram. Observando como uma pessoa se comporta quando está sozinha consigo mesma, eu a vejo como uma louca - não encontro uma palavra melhor. A primeira vez que notei isso, eu ainda era adolescente. 216

artist: now as a Monet, breaking down its colours for you with his amazing analytical eye and what is probably the most extensive vocabulary in our literature, now, on the contrary, as a syntheticist who produces a general outline and with one hammered phrase can describe an entire panorama”. 216Citação retirada do site: http://home.mtsnn.ru/~gorky/TEXTS/VOSPOM/PRIM/zamvsp_pr.htm. Acessado em março de 2010. CITAÇÃO ORIGINAL: “Сегодня наблюдал, как маленькая дама в кремовых чулках, блондинка, с недоконченным лицом девочки, стоя на Троицком мосту, держась за перила руками в сереньких перчатках и

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Ao servir-se de fontes referenciais adormecidas formatadas em literatura, Górki alargou

os sentidos da noção de memória. Revitalizou o conceito de fronteira que a distingue das

dimensões social, política e cultural da experiência russa, assim como os limites entre as

considerações que pretenderam dar conta das interações entre o real vivido, o imaginado e o

racionalizado. Essa breve volta histórica indica uma perspectiva pessoal como elemento

diferenciador entre o nexo que une o indivíduo produtor textual e as atividades por ele

desempenhadas.

Os diferentes meios de uso adquiridos pelo “registrador” Górki, conforme o seu contexto

e o agente encarregado pelas suas manipulações textuais, Aleksiei, implicam em vincular a norma

de respeito à ordem original dos fatos lembrados à verificação das correlações existentes entre o

arranjo (a obra) e a história nacional da Rússia. Em mais uma manifestação emotiva, o autor

escreve Vagabundos Singulares, sobre a intermitência de uma alma em contradição.

Nos ambientes cultos, me sentia como um empregado numa loja de chapéus de senhoras. Pessoalmente, não me servia para nada nenhum daqueles artigos; no entanto, tinha que ocupar-me deles, inclusive manuseá-los e elogiá-los, só para conservar suas formas. A vida é uma guerra e não é possível valer-se dos formalismos como uma folha de parreira com que ocultar a besta, o animal que há no homem. (...) Cada dia a vida toma um caráter mais formal, mais severo. Em todas as partes a tensão cresce... cresce. 217

“Espionando” as pessoas e se referindo à figura infantil, o autor revela como as forças

históricas tradicionais infrigem danos psicológicos a corpos individuais e coletivos e as maneiras

de como a rudeza modela a subjetividade de cada um.

Observa-se, então, uma forte e ainda presente identificação entre o caráter político e a

intermitência fugidia das lembranças que, claramente, fragmenta o texto de Infância mediante a

как бы готовясь прыгнуть в Неву, показывала луне острый алый язычок свой. Старая, хитрая лиса небес прокрадывалась в небо, сквозь тучу грязного дыма, была она очень велика и краснолица точнопьяная. Дама дразнила ее совершенно серьезно и даже мстительно, — так показалось мне. Дама воскресила в памяти моей некоторые “странности”, они издавна и всегда смущали меня. Наблюдая, как ведет себя человек наедине сам с собою, я вижу его безумным — не находя другого слова. Впервые я заметил это еще будучи подростком”. 217 GÓRKI, Máximo. Fragmentos de mi diario. Barcelona: Planeta, 1972, p. 73-183. Trabalhei com esse livro na versão espanhola impressa e com a original russa disponível na internet. CITAÇÃO ORIGINAL: “Em los ambientes cultos, me sentia como um dependiente em uma tienda de sombreros de señora. Personalmente, no me servía para nada ninguno de aquellos artículos; sin embargo, tênia que ocuparme de ellos, incluso manipularlos y alabarlos, solo para conservar lãs formas. La vida es uma guerra y no es posible valerse de los formalismos como una hoja de parra com que ocultar la bestia, el animal que hay em el hombre. (...) La vida toma cada dia um carácter más formal, más severo. Em todas as parte la tenssión crece... crece (...)”.

169

um processo de organização da fragilidade, da imprecisão e da incompletude do ser humano.

Formato “pautado em cortes abruptos, pela maneira brusca de entrar no assunto, pelo descaso

com introduções e conclusões” (GÓRKI, 2007a, p. 10). Basicamente, essa linha interpretativa nos

esclarece a compreensão de que a vida é uma chegada interminável, cabendo à autobiografia

gorkiana a tarefa de ficcionalizar esses símbolos e colá-los no texto. Para isso, a fim de dar uma

coreografia à memória, Górki recorre às lembranças mais antigas para se aproximar de uma rede

de sentimentos que reforça a ideia de que, no texto, a lembrança é uma indeterminação.

– Diga adeus ao seu papai, nunca mais vai vê-lo, morreu, meu querido; não estava na idade, ainda não era a hora dele...

Eu tinha estado gravemente enfermo – só saíra da cama pouco antes; durante a doença – lembro bem –, meu pai cuidava de mim com alegria; depois, de repente, ele sumiu e o seu lugar foi ocupado pela avó, uma estranha (...)

(...) A segunda impressão em minha memória é de um dia chuvoso, num canto vazio de cemitério; estou parado, num escorregadio montinho de terra pegajosa, e olho para uma cova, onde puseram o caixão do pai; no fundo há muita água e também pererecas - duas já subiram na tampa amarela do caixão.

Junto à sepultura estamos eu, a avó, um guarda molhado e, com as pás, dois mujiques zangados. Uma chuva morna, miúda, como miçangas, recobre a todos.

– Enterre – disse o guarda, e foi embora (GÓRKI, 2007a, p. 20-22).

Aqui, a permeabilidade da memória é filtrada pela imaginação, pois Górki busca num

plano histórico um processo que só é lícito na ficção: a reconstituição de uma figura não segundo

o que ela realmente é, mas segundo o que ela idealmente é. Nessa questão, a memória tem uma

certa mobilidade e, num segundo segmento narrativo, dramatiza o constante aflorar da

consciência de Aleksiei, quando relembra cenas dispersas formadoras de arranjos de cunho

pessoal que têm mais a ver com a atualização do passado do que com o congelamento da

memória.

Nessa segunda recepção de Infância, a ação de lembrar é parte de uma seleção contínua

de fatos que implicam na construção de um traço identitário manipulável, isto é, uma

rearrumação das recordações dos momentos agudos de crise.

Tudo na casa foi rigorosamente dividido: um dia, a avó fazia o almoço com as provisões compradas por ela com o seu dinheiro, no outro dia, o avô comprava as provisões e o pão, mas nos dias dele a refeição era sempre pior: a avó escolhia uma carne melhor, enquanto ele trazia tripas, fígado, pulmões, bucho. O chá e o açúcar, cada um guardava o seu separado (...)

(...) Também comecei a trabalhar e ganhar dinheiro: nos feriados, de manhã cedo, pegava um saco e saía pelos pátios, pelas ruas, catava ossos de vaca, trapos,

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papéis, pregos... Um pud218 de trapos e papéis os trapeiros compravam por vinte copeques219, um pud de ferro também, um pud de ossos, por dez, oito copeques. Dediquei a esse negócio também os dias úteis, depois da escola, e todo sábado vendia diversas mercadorias e ganhava trinta copeques, meio rublo e, com sorte, até mais. A avó pegava o meu dinheiro, enfiava depressa no bolso da saia e me elogiava, de olhos baixos:

– Muito obrigada, meu anjo! Quem disse que eu e você não vamos ganhar o nosso pão sozinhos? Grande problema!

Certa vez, observei como a avó, segurando as minhas moedinhas de cinco copeques na palma da mão, olhava para elas e chorava em silêncio, uma lágrima turva pendia no nariz esponjoso como pedra-pomes.

Um ramo mais lucrativo do que vender trapos era o roubo de lenha e de ripas de madeira nos armazéns na margem do rio Oká ou Pieski (...) Por uma boa ripa, os pequeno-burgueses proprietários de imóveis pagavam dez copeques, e dava para levar duas ou três peças por dia. Porém para ter sucesso, era necessário fazer tempo ruim, quando a nevasca ou a chuva expulsava os vigias e os obrigava a procurar um abrigo (GÓRKI, 2007a, p. 272-274).

Há ainda uma terceira fração interpretativa de Infância que engloba a construção feita por

Górki da escrita histórica por detrás da vida, se recusando a dissimular as incongruências entre

verdade autobiográfica e imaginária, verdade ficcional e imaginação autobiográfica. Ainda nessa

fase, Górki suspende a narração criadora bruscamente e alerta os leitores para o fato de que suas

práticas de romancista e sua posição de cidadão histórico interferem na reconstituição de suas

memórias.

Ao recordar a sordidez de chumbo da selvagem vida russa, em certos momentos

eu me pergunto: vale a pena falar sobre isso? E, com uma convicção renovada, respondo: vale; pois esta é a verdade viva, infame, ela não morreu até hoje. É verdade que é necessário conhecer até as raízes, a fim de extirpá-la, também pela raiz, da memória, da alma do homem, de toda a nossa vida, pesada e vergonhosa.

E há uma outra razão, mais positiva, que me força a descrever essas coisas sórdidas. Apesar de elas serem repugnantes, apesar de nos oprimirem, esmagando até a morte uma multidão de espíritos excelentes, o homem russo ainda é jovem e sadio de espírito o bastante para superá-las, e vai superá-las.

Nossa vida não é só espantosa por haver nela uma camada tão fecunda e gorda de toda sorte de uma canalhice bestial, mas por, mesmo assim, conseguir germinar através dessa camada algo claro, saudável e criador, cresce o bem – o humano, que desperta uma esperança invencível em nossa regeneração para uma vida clara, humana (GÓRKI, 2007a, p. 270).

Górki esclarece que as lembranças podem ser um artefato não resistente à força do apelo

histórico-político vivenciado por ele, fato que o conduziu a elaborar estratégias ficcionais que

justificassem aquilo que era relatado. Para isso, Górki dá uma pausa na sua referência imaginária

218 Pud - antiga medida russa referente à soma de 16, 3 quilos. 219 Copeques - centavos russos

171

para de imprimir no texto uma “firma” histórica que reforce os seus atos confessionais, que

permaneça coerente com o factual e livre para o ficcional. Por sua vez, esse comportamento

literário começa a traduzir o legado que deixou às gerações futuras, em especial através de

episódios documentais de família. O apelidado “mundo real” gorkiano é apenas uma pequena

parte de um texto que transgride os limites da realidade vivencial.

De um lado, temos a “irrealização” da realidade; de outro, a “realização” do imaginário

onde tanto o fabulatório quanto a referência são superados em uma desestruturação mútua. “Na

conversão da realidade vivencial repetida em signo doutra coisa, a transgressão de limites

manifesta-se como uma forma de irrealização. Na conversão do imaginário, que perde seu caráter

difuso em favor de uma determinação, sucede uma realização do imaginário” (ISER, 1996, p.

387).

A perspectiva infantil de Aleksiei sobre o material autobiográfico de Górki ordena os

fatos segundo uma lógica de narração que ajuda o menino a compreender as arbitrariedades do

mundo adulto, terreno de aquisição de um sofrimento sem razão e, tão pouco, sem objetivo. Creio

que esses pontos tratados até aqui tocam em problemáticas de primeira linha para as pesquisas

autobiográficas. Primeiramente, porque sugerem que entendamos a constituição da memória

pessoal enquanto modalidade específica dos atos autobiográficos. Em segundo lugar, porque

levantam a questão da participação do particular na cultura histórica e nas práticas sociais. E, em

terceiro lugar, porque permitem a problematização das potencialidades e dos limites do uso de

registros autobiográficos pela investigação histórica.

Ao mesmo tempo em que as incertezas causaram temor no menino pelo turbilhão de

problemas pelos quais passava, houve uma visível abertura de novas portas anunciadoras de um

mundo infinito de possibilidades. Um mundo que beirou a mitificação por ter sido produto da

imaginação criadora de Górki e, outras vezes, por ter sido uma significação oculta. A parcela

imaginativa que se manifestou textualmente é irreal, visível e exposta. Entretanto, o que há de

oculto possui um sentido latente onde se dissimulam os interesses sociais do autor.

Em Infância, é a partir de um lugar propício que Górki especifica o seu lugar, pois a sua

infância não ignora verdades, ela dá relevo a intencionalidades. O autor apreende um movimento

individual que não é simplesmente um movimento, mas uma formação social de quem narra e

preenche os sujeitos sociais que rodeiam o seu narrador com correlações entre palavras e atitudes.

Ao colocar a questão do espaço íntimo, Górki confere múltiplas configurações em sua

172

especificidade. Isto porque o real e o imaginário não existem como totalidades concretas. Górki

deixou circular a sua imaginação, fazendo de sua imagem infantil o destino “perfeito” de sua

infância. Sua infância retratada não foi fruto apenas da razão, e sim da imaginação, do sentimento

e da afetividade. Ela simplesmente se aproxima de uma ideia acalentada por quarenta e cinco

anos de existência e não um resultado de constatações precisas, mas de abstrações.

Sabemos que para uma criança comum, distinguir a verdade da ficção não é fundamental.

Ela “percebe os objetos, mas não pode perceber as relações que os unem, não pode ouvir a doce

harmonia de seu concerto” 220. Mas o que Górki nos proporciona é uma remontagem, na ficção,

de uma fonte referencial única da criança pequena órfã, que pouco distinguia a fantasia do

concreto e que, com o passar do tempo, foi perdendo a inocência, descobrindo um mundo

exterior feio e assustador além do seu mundo subjetivo que, às vezes, não lhe era muito caro,

porém necessário. Sobre esse sentimento de transformação, via contextualização histórica, e das

suas possíveis consequências, Marshall Berman comenta que

são todos movidos, ao mesmo tempo, pelo desejo de mudança - de desorientação e da desintegração, o terror da vida que se desfaz em pedaços. Todos conhecem a vertigem e o terror de um mundo no qual “tudo que é sólido se desmancha no ar (BERMAN, 1987, p. 13).

Aleksiei vê, na sua história narrada, um fato real dentro de um fato ficctício e fantasia essa

maneira de ver o hoje com o ontem como a sua forma de explicar o mundo. O menino se

confunde com a relação de representação com a ação da imaginação, pois esta imaginação exibe

signos visíveis como testemunho da realidade que nem sempre o é. Nesse espaço tão efêmero, a

noção de infância em Górki adquire uma nova roupagem e incorpora um novo olhar sobre o

crescimento humano.

A criança-Aleksiei corporifica novos tempos e obviamente possui outras características,

frutos dos recentes ares progressistas. Nesse contexto, diferentemente do protótipo de criança

desenvolvido na literatura russa, principalmente por Tolstói, baseado no conceito da “infância

feliz”, Górki cria uma infância com um espírito mais independente, pois desenvolve uma série de

habilidades no trato com as vicissitudes da vida. Nessa nova visão da infância ainda há a

necessidade da intervenção de um adulto para conduzir a criança na elaboração de estratégias

para a percepção da realidade, porém, a constituição de valores pautados na justiça, na

220 ROUSSEAU, Jean Jaques. Emílio ou da Educação. São Paulo: Difusão européia do livro, 1973, p. 176.

173

solidariedade, nos estudos, especialmente baseados na garantia de uma vida desprovida de

preocupações, não são privilegiados pela literatura gorkiana.

Para criar mais um campo de comparação entre o mito da infância feliz e a infância

apresentada por Górki, aludo novamente a Tolstói221, que, em 1852, começa a escrever a trilogia

intitulada Infância, Adolescência e Juventude. Entretanto, antes de fornecer qualquer aparato

comparativo, cito um pensamento de Trótski sobre o tema.

A infância é considerada como a época mais feliz da vida. Isso é sempre verdade? Não, só alguns têm uma infância feliz. A idealização da infância originou-se na velha literatura do privilegiado. Uma infância segura, afluente, e tranquila, vivida em uma casa próspera e culta, uma infância de afeto e brincadeiras, devolve a memória de um caminho ensolarado no início da estrada da vida. Os grandes nomes de literatura, ou os plebeus que glorificam os grandes canonizaram esta visão puramente aristocrática da infância.222

Tolstói, ainda galgando a carreira literária, escreve basicamente sobre a infância russa de

ontem e, desse modo, percebemos que os acontecimentos ocorridos naquele período serviram

para estruturar uma firme caracterização da criança, do ponto de vista emocional e sociológico,

como um componente histórico-cultural orientado por condicionantes econômicos e políticos que

atuam diretamente sobre ela. Iniciante na literatura, o jovem Tolstoi acerditava que à criança

estava reservada uma infância feliz que lhe garantia um mundo bem perto da perfeição que,

segundo Marina Balina, seria repleto de mitos como “o mito da mãe perfeita, o mito do Estado e

o mito do mundo amigável e servil” 223.

221 A referência às obras de Tolstói também foi motivada pela admiração de Górki pela habilidadede seu antescessor em contar a história russa como descrita nas palavras: “Ele nos contou sobre a vida russa quase tanto como o restante da nossa literatura. A importância histórica da obra de Tolstoi é agora entendida como o resultado da sociedade russa foi durante o todo o século XIX”. CITAÇÃO ORIGINAL: “Он рассказал нам о русской жизни почти столько, как вся остальная наша литература. Историческое значение работы Толстого уже теперь понимается как итог всего пережитого русским обществом за весь XIX век”. In: M. GÓRKI. Istória russkoi literaturi. Moscou. 1939, p. 295. 222 WACHTEL, Andrew. The Battle for childhood: Creation of a Russian Myth. Stanford, Stanford University Press, 1990, prefácio. CITAÇÃO ORIGINAL: “Childhood is looked upon as happiest time of life. Is that always true? No, only a few have a happy childhood. The idealization of childhood originated in the old literature of the privileged. A secure, affluent, and unclouded childhood, spent in a home of inherited wealth and culture, a childhood of affection and play, brings back to one memories of a sunny meadow at the beginning of the road of life. The grandees of literature, or plebeians who glorify the grandees, have canonized this purely aristocratic view of childhood”. 223 BALINA, Marina. Troubled lives: The legacy of chilhood in soviet literature. Illinois: Wesleyan University, s/d, p. 249. Artigo disponível no site JSTOR. Acessado em fevereiro de 2009. CITAÇÃO ORIGINAL: “the myth of a perfect mother, the myth of the estate, and the myth of the friendly serf world”.

174

Considerando tais pensamentos, encaremos essa fase da vida como detentora de direitos

adquiridos, e dotada de valores e capacidades a serem aprimorados. A começar pela figura

materna, Tolstói concede ao seu protagonista algo de onírico, colocando na memória do menino

as mais doces lembranças de sua progenitora.

São tantas as recordações no passado que me acodem à memória quando procuro fazer reviver na minha imaginação as feições desse ser querido, que chegam a aparecer-me confusas através de lágrimas da imaginação. Quando quero lembrar-me da minha mãe, tal como ela era nessa época, vejo apenas os seus olhos castanhos, sempre cheios de amor e de bondade, um sinal que tinha sobre a nuca, um pouco abaixo da nascença dos cabelos, a golinha branca bordada do seu vestido e a sua mão delicada e magra que tantas vezes me acariciava e que eu beijava também muitas vezes, mas o conjunto da sua expressão, escapa-me.

(...) Quando minha a mãe sorria, o seu rosto já tão belo, tornava-se ainda muito mais bonito e tudo à sua volta parecia alegrar-se. Se pudesse contemplar esse sorriso nos momentos custosos da vida, nunca eu teria sabido o que é a dor. Parece-me que é precisamente no sorriso que reside aquilo a que podemos chamar a beleza dum rosto perfeito (TOLSTÓI, 1976, 45-46).

É bem verdade que Tolstói também tentou responder às suas próprias indagações

provenientes da infância. Nele, a eficácia e o privilégio de um texto autobiográfico vem da

capacidade que a obra tem dar voz às experiências. Os valores social e humano residem naquilo

que não se diz, mas no que se sente.

Com a outra mão, a mamã pegava-me pelo pescoço, os seus dedos moviam-se com a rapidez e faziam-me cócegas. A sala estava envolvida numa penumbra e reinava um grande silêncio; eu tinha os nervos excitados pelas cócegas e por ter interrompido o sono. Minha mãe estava junto de mim, tocava-me, eu sentia o perfume e a sua voz. Tudo isso me obrigava a levantar, de um salto. Lançava-lhe os braços ao pescoço, e pondo a cabeça sobre o seu peito, dizia-lhe sufocado: – Oh! Minha querida mamãezinha, gosto tanto de ti! (TOLSTÓI, 1976, p. 73)

Tolstói não deixa dúvidas sobre o fato de que a imaginação224, e não só a mera

informação de sentimentos, pode levar ao conhecimento mais amplo de uma conjuntura. O

escritor se apóia numa orientação despragmatizada da ficção articulada fundamentalmente. A

ficção, em Infância, tanto na obra de Tolstói quanto na de Górki, funciona como um campo de

ação no qual um processo lúdico de fingimento é ativado. Este campo de fingimento abre o livre

acesso da escrita ao imaginário.

224 Devemos dar a devida atenção ao fato de que Tolstói perdeu sua mãe quando ainda era muito pequeno, portanto, toda essa relação íntima de seu personagem Nikolai com a figura materna é uma criação.

175

É atraente notar que um texto autobiográfico que lida simultaneamente com estória e

história pode equalizar a significância do real e do fictício sem que um termo seja superiorizado

em detrimento do outro. Entretanto, uma abordagem agregadora da autobiografia possibilita que

não haja uma separação tão sólida como a construída no passado e que não estejamos restritos ao

repertório elementar de nosso “saber tácito”, “[cunhado] pela sociologia do conhecimento, [e

referente] ao repertório de certezas que se mostra tão seguro a ponto de parecer evidente por si

mesmo” (ISER, 1996, p. 13).

Para tentarmos um nivelamento entre a história e a literatura, faremos um exame mais

atento sobre a relação entre real-ficção-imaginário225. A princípio, seria impossível algum tipo de

presença do fingimento no discurso histórico, porém, podemos pensar que a possibilidade dessa

presença existir é, na verdade, um dos pactos mais subentendidos do fazer histórico. Será que ao

lermos um texto autobiográfico não estaríamos entrando numa espécie de acordo, que não se dá

pontualmente, mas sim pela longa estratégia da construção discursiva da história? – Ou, será que

o leitor de uma autobiografia se propõe mesmo a acreditar que tudo o que está escrito é verdade?

Podemos ver a autobiografia gorkiana como um panorama da crescente modernidade

russa, que dificilmente seria percebido através de uma análise hermenêutica oitocentista, cujos

objetivos eram o conhecimento das intenções do autor e a harmonia entre todas as camadas da

obra. Como construção parcial do mundo, suponho que a autobiografia também possa ser

conduzida pelo senso de contingência estabelecido pela consciência que o homem tem de sua

sensação de estranhamento em relação ao mundo. Nesse mundo,

as chamadas realidades constituem “fatos da ficção”. (...) Por isso, a literatura como um meio ficcionalizante pode servir como um paradigma muito esclarecedor para nossa maneira de criar mundos. Ficções não constituem o lado irreal da realidade, muito menos o oposto da realidade (...) constituem sim condições que permitem a construção de mundos cuja realidade, por sua vez, não é para ser questionada. Ficções oferecem acesso ao que parece inacessível através da invenção de possibilidades [sendo] a “arte da ficção” uma extensão da realidade226.

225 Aqui, considero os estudos históricos do século XIX que desvinculam a história da literatura, assumindo um discurso de racionalidade científica que rejeita qualquer forma de subjetividade. Desde essa época, à história credita-se o mérito de contar os fatos exatamente como aconteceram e à literatura foi atribuída uma ilação da inverdade. Não me refiro ao conceito da Nova História, corrente historiográfica desenvolvida, a partir de 1970, na Escola dos Annales, em sua terceira geração. 226 Carta escrita por Wolfgang Iser, em resposta ao Professor Claudio Cezar Henriques (UERJ), sobre alguns questionamentos acerca das ficções. Esta carta é também um agradecimento a Iser pelo convite para a participação no VI Colóquio de Pós-Graduação em Letras, em 04/10/1996. Carta disponível na internet e acessada em 03/01/2013.

176

Diferente de Górki, Tolstói trabalha imprimindo em seu texto a idealização de um mundo

criado exclusivamente para a criança, ambientado em valores que proporcionassem a felicidade.

(...) A vaidade é o sentimento menos compatível com o verdadeiro sofrimento, mas está tão enraizada na natureza do homem do homem que este raramente consegue abafá-la, inclusive no meio da dor mais profunda. Numa infelicidade, a vaidade exprime-se pelo desejo de parecer desgostoso, infeliz ou tranqüilo. Esses desejos mesquinhos que não confessamos, mas que quase nunca nos abandonam, nem sequer na maior dor, despojam esta de sua intensidade e sinceridade”. (...) “Finalmente, uma noite, a uma hora avançada e quando me encontrava sozinho no salão (...), levantei-me de um salto e corri até ao andar de cima. Peguei no caderno a que dera o título de Regras de vida, e quando o abri fui invadido pelo arrependimento e senti desejos de aperfeiçoar-me. Pus-me a chorar, mas não com lágrimas de desespero da outra vez. Quando estava um pouco mais refeito do meu desgosto decidi que continuaria a escrever mais regras pelas quais me guiaria na vida. Estava firmemente convencido de que nunca mais tornaria a fazer nada de mau, que não havia mais de ter um só momento de ócio e que jamais atraiçoaria as minhas decisões.

Quando contar a parte seguinte de minha juventude, a parte mais feliz, explicarei em que consistia esse arrebatamento, o tempo que durou e os novos princípios que estabeleci para o meu desenvolvimento moral.

Iásnaia Poliana

24 de setembro227 (TOLSTÓI, 1976, p. 109)

Em Górki, o mesmo infante que brinca e que sofre não perde a consciência daquilo que

representa, ou seja, simultaneamente “é e não é” só uma criança além de fazer parte de um jogo

em que, por trás das surras, dos furtos, dos dribles ao confessionário, sempre houve um sorriso de

esperança. Aleksiei se diverte na lucidez de que algo “excede” em sua encenação, algo não se

encaixa nas representações que realiza. Ele tem consciência de que a sua tentativa de imitar seu

falecido pai, parâmetro de caráter, é falha e por isso a criatividade de suas brincadeiras resulta no

conflito aberto entre o ser e a aparência. Da mesma forma, a originalidade do fingimento

gorkiano reside nessa dupla estrutura criada em torno de um signo ficcional que denuncia o

ausente por trás da presença.

Pela sua grandeza e sensibilidade, Górki foi alguém que num só homem congregou

múltiplas facetas. Ele não examinou o subsolo da alma, porém, se vestiu de alma russa com todas

as suas qualidades e seus defeitos humanos. Foi um russo cuja importância biográfica indica um

paralelismo constante entre vida e obra, aliás, um paralelismo que talvez seja uma interpenetração

227 Esse trecho é o último parágrafo de Juventude, terceiro volume da trilogia de Tolstói.

177

onde, de alguma maneira, a vida se reflita na obra e vice-versa. Aqui, mais uma vez, Górki e

Tolstói se encontram para corroborar a ideia de que a infância é tão decisiva na vida que quase

ficamos sem saber se os personagens que a compõem são criados através de quem a vive ou se

ocorre um processo de autopoesis, fato que torna especialmente Górki em um autor de si mesmo.

O que parece de fato uma contradição (uma coexistência entre real e imaginário) foi, na

realidade, uma destreza de Górki ao desmitificar a história recente da Rússia, apostando em uma

mitificação da própria história nacional como forma de encontrar uma identidade silenciada. Para

isso, ele realçou a perda da inocência da infância como princípio de um caos interminável. Em

contrapartida, temos um Tolstói que permite que essa inocência surja com a candura inerente à

idade, correspondendo a uma utopia. O mito da “criança feliz” que subjaz no imaginário

tolsotiano é uma tentativa de retorno à gênese atrelado a um desejo de aprimoramento humano. A

busca pela verdade é, portanto, uma peregrinação contínua de crianças que se transformarão em

adultos modelos, pois “parte de nós vive no passado” 228.

Entre a essência e a aparência, no que diz respeito à questão da “anti-infância” gorkiana,

não há uma figura do salvador compreensivo. As mais várias funções são distribuídas entre os

diversos personagens de sua narrativa e por isso a tarefa deles nunca se cumpre. “A anti-infância

de Górki promove firmemente a visão confiante de uma existência infantil no estranho mundo da

crueldade adulta” (BALINA, s/d, p. 250) 229. Na trilogia, Górki se distancia do ressentimento e da

lamentação pelos obstáculos impostos para abrir um espaço intelectual autobiografado que

repense as temporalidades que se ramificam simultaneamente em direção a vários futuros

diferentes.

Toda a racionalidade moral observada por Górki atribuiu à arte o contributo para o cultivo

da vida dos homens via memórias. Paralelamente a essa racionalidade, encontra-se um texto

autobiográfico que sustentou a arte essencial para a projeção dos sentimentos que não poderiam

ser comunicados de outra maneira. Górki conduziu um legado na Rússia pré e pós-revolucionária,

que pretendeu recuperar um modelo mais concreto de assimilação da vida, assim como da própria

convivência humana. Por isso, empenhou-se em demonstrar que a sua trilogia estava

ideologicamente emparelhada com o esforço de preservação da liberdade e da democracia,

228 CITAÇÃO ORIGINAL: “Часть нас живёт в прошедшем” (MASON, 1995, p. 83). Palavras de Tolstói. 229 CITAÇÃO ORIGINAL: “Gorky´s anti-childhood case there is no discernable rescuer figure. Those functions are distributed among several characters in his narrative, and therefore their task never comes to fulfillment. Gorky´s anti-childhood strongly promotes the self-reliance mode of a child existence in the alien world of adult cruelty”.

178

direitos que permitiam a autoexpressão artística. “Mesmo que Górki não tenha oferecido

nenhuma meta positiva além da liberdade individual, ele apelou para o desejo das novas gerações

para uma vida de ação” 230.

O desenvolvimento da criatividade e da imaginação deu à Infância a possibilidade da livre

expressão de uma criança independente das limitações impostas pelo escritor adulto. Sabemos

que Górki reagiu ao absolutismo assim como ao ímpeto democrático descontrolado que conduzia

a Rússia, apoiando a ideia de que seus leitores enxergassem a liberdade por meio da arte livre de

premissas cívicas. Por isso, a originalidade de sua autobiografia residiu em uma insolência

infantil e em uma independência que realizaram um projeto maior. Esse atrevimento libertário

caracterizou a forma como Górki se apropriou dos referenciais teóricos para compor o seu

próprio repertório. Sem receitas autobiográficas, sua ação partiu do entendimento de que todo ser

humano apresenta uma predisposição à criação e à ficção.

A proximidade entre o pensamento dos dois escritores serviu para frisar que Tolstói era

defensor de uma noção disciplinar entre as crianças, propondo a consciência de normas ideais

como respaldo de todas as regras. Já Górki defendia a tese de que as memórias na arte podem

conseguir estabelecer uma relação entre ação e sentimento, com a finalidade de desenvolver ao

mesmo tempo a singularidade e a reciprocidade social do indivíduo. Górki foi um homem de

ação, um realizador e provou que seu conceito de infância foi “ponto de partida das futuras

gerações de escritores russos. A maior parte das grandes discussões russas sobre a infância foram

escritas sob forma de autobiografia” (WACHTEL, 1990, p. 4-5) 231.

Neste capítulo, objetivou-se entender a autobiografia como um exercício de compreensão

do mundo. Foi possível apontar Górki como um escritor consagrado pelo uso da sociedade no

discurso autobiográfico, o que possiblitou um espaço crítico de controle mútuo, dividido entre

narrador e autor, e desenvolvedor de uma subjetividade que garantiu uma objetividade. Trata-se,

por fim, do debate entre a tradição e a inovação. Dois impulsos que fizeram da obra a extensão da

imaginação do homem e o sentimento de que a realidade é a ficção em forma de utopia.

230 LOE, Mary Louise. Maksim Gor’kii and Sreda Circle: 1899-1905. In. Slavic Review. Columbia University, 1977, p. 51. CITAÇÃO ORIGINAL: “Even though Gor’kii did not offer any positive goals beyond individual freedom, he appealed to the longing of the younger generation for a life of action”. 231 CITAÇÃO ORIGINAL: “point of departure for future generations of Russian writers. Most of the great Russian literature discussions of childhood were written as autobiographies”.

179

Para terminar essa análise, me reporto novamente a Quintana, por crer que na infância há

sonhos formadores de uma estrada desconhecida que deve ser seguida independente do destino

real que esteja pré-escrito como verdade. Eis, então, uma homenagem às incertezas dos sonhos.

POEMA DE GARE ASTÁPOVO O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos E foi morrer na gare de Astapovo! Com certeza sentou-se a um velho banco, Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo Contra uma parede nua... Sentou-se ...e sorriu amargamente Pensando que Em toda a sua vida Apenas restava de seu a Glória, Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas Coloridas Nas mãos esclerosadas de um caduco! E então a Morte, Ao vê-lo tão sozinho aquela hora Na estação deserta, Julgou que ele estivesse ali a sua espera, Quando apenas sentara para descansar um pouco! A morte chegou na sua antiga locomotiva (Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...) Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho, E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu... Ele fugiu de casa... Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade... Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!232

Mário Quintana

A seguir, juntamente com Aleksiei, nos lançaremos na vida.

232 QUINTANA, Mário. Apontamentos de história sobrenatural. São Paulo: Globo, 2005. Grifo meu. Este poema foi escrito por Mário Quintana em homenagem a Tolstói (1828-1910), que morreu aos 82 anos, de pneumonia, na estação Astápovo. A fuga, realizada em viagens de terceira classe, deveu-se à vontade do escritor, um pacifista e humanista, de viver uma vida ainda mais simples.

180

Ilustração 28: Aleksiei criança 233

Ilustração 29: Aleksiei (Górki) e sua avó, Akulina

233 As ilustrações 1 e 2 foram retiradas das cenas do filme “A infância de Górki”, produzido na Rússia em 1935 e dirigido por Mark Donskói. O que se tem são fotos de atores que compuseram os papéis dos personagens do livro Infância.

181

Ilustração 30 : Níjni-Novgorod, cidade natal de Górki Ilustração 31: Casa da família Kachírin

Ilustração 32: Aleksiei aprendendo a ler com seu avô, Vassíli234

Ilustração 33: Aleksiei na pré-adolescência Ilustração 34: Mikhail Kachínin, seus filhos e sobrinho, 1900

234 As ilustrações 5 e 6 são imagens de atores do filme “A infância de Górki”, de Mark Donskói.

182

Ilustração 35: Cidade de Ástrakhan

235Ilustração 36 e 37: Aleksiei adolescente

235 Ilustrações 9 e 10 são imagens de atores do filme “A infância de Górki”, de Mark Donskói.

183

CAPÍTULO 4

4.1 ENTRE OS HOMENS. ACERTANDO AS CONTAS COM O PASSADO

Só há uma coisa que eu acho absolutamente desprovida de encanto: é que nós devemos obedecer, eu e outras pessoas, aos canalhas, aos imbecis, aos ladrões. Mas a vida não pertence inteiramente a eles! O futuro não é deles! Eles vão desaparecer como desaparece um abscesso num organismo sadio! Não existe nada na vida que não se possa alterar, mudar! (...)

(...) Eu vou obrigar a vida a me responder como eu quero. Não adianta tentar me fazer ter medo. Eu estou mais perto da vida do que você! E sei, muito mais que você, que a vida é dura, que às vezes é repugnante, má. E que uma força desenfreada oprime o homem. Eu sei, e isso me deixa indignado. Mas essa ordem eu não aceito! Eu sei que a vida é uma coisa séria, mas ainda não está bem organizada. Para ajudar a organizá-la eu vou ter que dar toda a minha força, toda a minha juventude. Também sei que não sou nenhum herói, mas simplesmente um homem! E digo mesmo: não me importa, nós é que vamos vencer! E com todas as minhas forças, eu vou me colocar na própria espessura da vida. Tratar de moldá-la, atrapalhando uns e ajudando outros... Isso é a alegria de viver!236 (GÓRKI, 1979, p. 184-185).

“Estou ganhando meu pão, sou “o menino” numa loja de “calçados da moda”, na rua

principal da cidade”(GÓRKI, 2007b, p. 17). Com essa frase, Aleksiei se lança no mundo dos

homens. Em russo, como traduz Boris Schnaiderman, o título original do desse segundo volume,

V liúdiakh, significa estar “entre as pessoas, no mundo, sendo gente”. Segundo ele, Górki criou

com o seu título uma réplica da expressão russa víti v liúdi, que significa “tornar-se gente”, “sair

para o mundo” (GÓRKI, 2007b, p. 7), e é assim que o mundo autobiográfico gorkiano se

pronunciará.

Ganhando meu pão abarca ainda a parte final da infância de Aleksiei e favorece a leitura

de intensos momentos de plasticidade combinados com vários fatores históricos vindos da

transição entre a vida infantil e a juventude. Além disso, teremos a oportunidade de verificar que

o crescimento do menino se desdobra em basicamente duas questões: a pergunta que se faz ao

discurso histórico sobre aquele que ainda não pode falar e a reflexão sobre o seu discurso, que se

apresenta concretamente como um conjunto de regras que caracterizam uma prática discursiva

236 Essa passagem é uma fala do pesonagem Nil da peça Pequenos Burgueses. Nessa cena do quarto ato, acontece um debate entre os personagens Nil, Piotr e Teteriev sobre a vida e sobre o que esperar dela.

184

autobiográfica seguidora de uma ordem cronológica, mas que também obedece a uma sinergia

social percebida pelo autor.

A forma como Górki lapida os traços pessoais dos personagens em suas particularidades e

os painéis sociais intencionalmente desenhados, merecerão um tratamento mais cauteloso neste

capítulo, pois alguns daqueles que povoaram a infância de Aleksiei permaneceram na

adolescência, somando-se àqueles que fizeram parte de sua nova etapa de vida. Em Ganhando

meu pão, serão companheiros de viagem os marinheiros, os vendedores, os pintores de ícones, os

bêbados e as prostitutas. Aventureiros que, com seus relatos de vidas pregressas, fazem Aleksiei

sonhar com o desconhecido, com um mundo particularmente adulto e masculino, pois Górki, foi

um “eu” aqui (na ficção) e um “eu” lá (na realidade).

Também no segundo volume da trilogia, o “eu” gorkiano se transforma em um sonoro

“nós” representativo do povo russo, que, junto com Górki, recebeu as exigências da verdade.

Esse Aleksiei que vive essa aventura talvez tenha sido um Górki de carne e osso, de coração e

vontade, que se coloca diante da humildade do tempo como um baú de pluralidades. E, é na

eloquência irrefutável do pluralismo gorkiano que construiremos nossas respostas para esta

análise. O mundo gorkiano procura nutrir o respeito pela variedade para não transformar a

existência numa trágica monotonia. Mundo que a cada página valoriza as riquezas multiformes

da língua, da cultura e dos hábitos que desembocarão no despertar da educação literária do

menino, futuro romancista e dramaturgo.

Focando na pré-adolescência de Aleksiei, há a constatação de que história dele não está

inserida nas grandes ações da vida humana. Em Ganhando meu pão, a autopesquisa de Górki

desencadeou um intenso debate sobre a natureza das relações entre famílias, entre as crianças e a

escola, concedendo à infância um caráter mutante de visibilidade e destaque. Nessa segunda

parte, a transição estária passa a ser uma construção social que se autotransforma e sai do

anonimato, quando deixa de ser um objeto de questionamento para ser um objeto de prática

autobiográfica. Com esse movimento, não importou para Górki a origem do fenômeno infantil

atribuído a Aleksiei, no entanto, são significativas as técnicas de apropriação do discurso

autobiográfico e da formação de um dispositivo de infantilização que não diluem em nada a

maneira contundente com a qual o status de constructo social da obra oferece permanentes

mudanças ao texto literário.

185

Para lermos Górki e para compreendê-lo amplamente, devemos “historicizar” a obra, na

medida em que ele apresenta diversas formas de representação do homem em desenvolvimento.

De maneira um pouco distinda do primeiro livro, observamos que o fim da infância de Aleksiei

foi implacavelmente influenciado por alguns métodos particulares de criação: pela exploração do

trabalho infantil, pela situação de mendicância e pela educação237. Sem se preocupar com o efeito

mágico proporcionado pela infância, Górki tematiza a sua continuidade, mantendo a unidade do

seu discurso autobiográfico.

A história da infância gorkiana é a história da prática que lhe exige. Partindo desse ponto

de vista, a prática e o exercício de lembrar não se refletem em ações desconexas, mas num saber.

As ações criadas, interligadas com as vividas, se traduziram num conjunto de discursos

autobiográficos valorizadores do processo de formação de um jovem escritor. Ligar os pontos

entre a história da infância e o conceito de pessoa não me parece arbitrário, pois o leitor mais

atento percebe que o que importa não é o reconhecimento de um aviltamento da propriedade de

um ou mais indivíduos, mas uma referência a um elemento básico e estrutural do ser humano: a

autonomia. A autonomia para falar de si mesmo. Para Kira Murátova,

(...) o conto autobiográfico mostra numerosas digressões do autor que abrem as relações sociais do autor como tema representado. A narração da infância e adolescência está em nome de Aliocha Piechkóv que, em nome de M. Górki, resume as observações da vida do adolescente, contando sobre como ele moldou seu desejo de combater a injustiça e a feiúra da vida. O conto apresenta o fardo da vida de pessoas russas comuns, seu tédio vicioso e mostra como cada vez mais profundo era o sentimento de protesto contra a vida que o menino levava. 238

Observando que o centro dessa argumentação recai mais uma vez sobre a pessoa,

proponho que entendamos que Ganhando meu pão nos mostra como o menino-homem Aleksiei

percebe que é uma pessoa dotada de memória. Quando meditamos sobre as experiências vividas

237 A educação teve papel fundamamental no crescimento intelectual de Górki, mesmo que não tenha sido estruturada nos paradigmas acadêmicos comuns a uma pessoa estudada. 238 MURÁTOVA, Kira. Istória russkoi litieraturi v 4 tomakh, p. 359. E-book disponível em http://feb-web.ru/.

CITAÇÃO ORIGINAL: “(...) aвтобиографические повести пронизаны многочисленными авторскими отступлениями, раскрывающими отношение писателя к изображаемому. Повествование о детстве и юности ведется и от лица Алеши Пешкова, и от лица М. Горького, как бы подводящего итог жизненным наблюдениям подростка, рассказывающего о том, как они формировали его стремление к борьбе с несправедливостью и уродствами жизни. Повести, отображая тяжесть быта простых русских людей, тягучую скуку их буден, показывают, как все более глубоко назревает чувство протеста против этой жизни у мальчика”.

186

por Górki, que cada vez mais se realiza como pessoa, verificamos que uma catarse ocorre em três

grandes momentos muito bem distrubuídos pela obra: o momento da interioridade (em Infância),

o momento da exterioridade (em Ganhando meu pão) e o momento da transcendência (em

Minhas universidades).

A pessoa Górki é o resultado da mistura de principalmente duas facetas: a de receptor

(daquilo de que dispõe o seu meio social), a de ser mutável (adaptável às coisas que o cercam).

Faces de um ser que possui a sensibilidade para perceber o que o aproxima e o que o afasta dos

demais: a habilidade de reconhecer finalidade de suas ações e suas consequências e, finalmente, a

certeza do que se quer afirmar. Tudo isso pode causar estranheza, porém se trata de uma visão

particular da conduta autobiográfica de Górki, indicadora de um homem de um mundo limitado,

porém que pode se superar. Nesse mundo finito, o conhecimento não é um amálgama entre

sujeito e objeto, mas o difusor de uma realidade.

Embora o dinamismo cultural da Rússia da época comece a recobrir a memória com a

presença de outros temas e protagonistas, é perfeitamente plausível que se trace um paralelo entre

o valor histórico testemunhal e a literatura, através do esboço de personalidades ásperas,

sedutoras e simples. Sendo assim, o princípio comparativo se originou do debate sobre a

definição do caráter nacional de um país e sua construção histórica da cultura pelo homem.

Fortalecendo essa edificação, estão presentes as inúmeras vertentes do pensamento

humano como a historiografia, a ficção, a poética, a crítica, a sociologia, a psicologia, a

antropologia e a filosofia, entre tantos que solidificam um tipo de base que nos possibilita

“descobrir virtudes e belezas acima das fronteiras e nacionalidades, manter o contato com as

idéias e preocupações contemporâneas, isolar o fio da tradição. Górki sempre de “olhos presos na

cultura, para a formação de uma individualidade nacional” personifica em sua trilogia a “tarefa

mortal para um homem, desmedida para uma geração, pesada ainda para um século”, mas isso

“não é razão para que cada um de nós na sua esfera não procure humildemente concorrer

para tão nobre intuito” 239.

239 AMOROSO LIMA. Primeiros estudos. Contribuição à história do modernismo literário. Rio de Janeiro: Agir, 1948, p. 23. Grifo meu. A escolha de Amoroso Lima para compor esta parte da tese deveu-se ao fato de ele ter sido um leitor católico de Górki. Segundo Bruno Gomide, Amoroso Lima fez parte de uma gama de intelectuais que analisaram a “relevância dos problemas específicos da tradição cristã para o estudo dos romancistas russos. O controle que os intelectuais católicos tinham dessa tradição facultava-lhes o acesso a zonas da literatura russa pouco exploradas pela crítica brasileira, em especial à tradição da crítica filosófica e simbolista”. GOMIDE, Bruno. Da estepe à caatinga. O romance russo no Brasil (1887-1936). Tese (doutorado). Campinas: UNICAMP, 2004, p. 19.

187

Postos esses parâmetros, os desdobramentos da autobiografia gorkiana são resultados do

processo histórico de adaptação do homem ao meio físico determinante de tradições culturais e

da singularidade de um povo. Portanto, a capacidade desse encontro de justificar o fato de que a

fusão entre o que é individual e o que é coletivo não é propriamente uma “realidade”, mas sim

uma espécie de modelo “escrito por cima da camada pessoal. O ato de leitura de textos criados

nessa modalidade consiste em retirar do texto original as experiências e emoções e compará-las a

uma narrativa visível, palpável” 240(BALINA, s/d. p. 262). É justamente a característica da

sensibilidade ao que é humano que faz com que Górki flua para uma trilha, cujo amor às

peregrinações ideológicas que tanto concorre para a instabilidade do pensamento, – pois “é

sobretudo ao homem (...) [e ao] seu confusionismo mental – vem somar-se o gosto pela aventura” 241.

Ganhando meu pão é uma possibilidade de desvendar o caráter inconcluso do homem

gorkiano. Esse homem que tem uma necessidade suprema de falar de si e que aparece e

desaparece das páginas da história sem nunca silenciar. Górki é um ser que luta contra uma

“despersonalização”, representada pela perda dos sentimentos e percepções. No ganhar do pão

gorkiano, os homens não querem mudar o mundo em que vivem e acabam sucumbindo a ele.

Para esse comportamento moroso, há um direito adquirido que garante possibilidade de manter o

que se tem. Essa despersonalização, na verdade, não seria problema para Górki. Passou a ser

quando o direito de manter o vivido se transformou em obstáculo para uma tentativa intuitiva de

mudança, virando um mecanismo de cerceamento ou de anulação da liberdade.

Como observamos, a experiência existencial de Górki está voltada a um pensar

característico da literatura realista ligada a uma forma particular de autoexpressão, já nas

primeiras páginas de Ganhando meu pão.

Era minha obrigação encher de água a caixa da privada, e eu dormia em frente da sua porta, na cozinha, junto à passagem para a entrada principal do apartamento: a cabeça recebia o calor do fogão, enquanto os pés acolhiam o vento da entrada; deitando-me para dormir, eu juntava todos os capachos, pondo-os sobre os pés.

(...) Eu tinha muito trabalho: desempenhava as funções de arrumadeira, às quartas, lavava o chão da cozinha, limpava o samovar e os pratos de cobre, aos sábados lavava o chão de todo o apartamento e ambas as escadas. Rachava e carregava a lenha para as estufas e o fogão, limpava os legumes, acompanhava a patroa à feira, carregando atrás dela o cesto de compras, corria para a venda, para a farmácia.

240 “is written over the personal recollection layer. The act of reading texts created in this modality consists of excavating the original text of experiences and emotions, and comparing them to the visible narrative”. 241 AMOROSO LIMA. Introdução à literatura brasileira. Rio de Janeiro: Agir, 1956, p. 224.

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(...) É agradável ouvir os derradeiros suspiros de vida, mas, após cada golpe do sino, tudo se aquieta, o silêncio derrama-se, como um rio sobre os campos, afoga e esconde tudo. A alma bóia no vazio ilimitado, sem fundo, e se apaga como um fósforo na treva, diluindo sem vestígio no oceano deste vazio, em que vivem, fulgindo, apenas as inacessíveis estrelas, e tudo na terra desaparece, desnecessário e sem vida (GÓRKI, 2007b, p. 58, 80, 83).

Mesmo na desesperança, a consciência não se perde e não se despersonaliza, ela concreta

e se desenvolve, a partir do processo de personalização no qual a valorização da experiência não

se desfaz e nem pode se desfazer da consciência abstrata regida pelos impropérios da vida. O

pensamento de Górki, no momento da produção da obra autobiográfica, não se desvinculou

totalmente do que já havia sido pensado nos tempos de juventude. Assim, Aleksiei foi uma

existência que fez a si mesma por um processo de personalização e despersonalização, que seria a

consequência resultante da luta pela formação una de uma consciência do ontem e do hoje. Esses

movimentos são a verdadeira formação da coexistência entre o mundo interior (o eu) e o exterior

(a história). Esses mundos podem se referir à intimidade e as noções construídas por um Górki

que tomou forma de um “andarilho sem-teto, um pária de uma sociedade ajustada, que ele, de

forma compreensível, começou a desprezar e a odiar” 242.

A realidade em Ganhando meu pão é imanente a Aleksiei, já que o tempo e a

aprendizagem estão interligados. Embora Górki esteja ligado a um mundo construído por uma

consciência abstrata pertencente a um âmbito específico da história, não há como negar a

constatação de que, na vida simples e cotidiana, as memórias reaparecem inesperadamente. Fica

estampado o mistério da vida aberto pelas crianças-homens, que se assustam diante da dor e do

sofrimento, salientando que “a compreensão e o entendimento que transmite ao leitor nos piores

momentos do sofrimento humano [não são] sensações de amargura ou cinismo, mas a esperança

de que, no fundo, a humanidade é boa e se redimirá no final” (MASON, 1995, p. 226).

O encontro com os imprevistos que engrandecem a existência de Górki coloca questões

antes inexistentes para serem pensadas ao longo de seu caminho autobiográfico. O resultado

dessa escavação da alma é disseminado pelo próprio autor, já que todas as coisas mudam a sua

revelia, afinal, fala-se da vida, da desordem existencial. Portanto, o papel do exercício

242 HARE, Richard. Maxim Gorky. Romantic realistic and conservative revolutionary. Londres: Oxford University Press, 1962, p. 11. CITAÇÃO ORIGINAL: “homeless wanderer, an outcast from all settled society, which he under-standably began to despise and hate”.

189

autobiográfico é ratificar que a proposta não foi a de fazer uma fotografia da tragédia, mas narrar

o já existente, aquilo que de alguma forma já está decidido. A vida que é recontada nada mais é

do que a relação do homem-Górki com o mistério da suprema realidade, que se subordina à

tragédia, não só a ela, mas a todos os acontecimentos que fizeram parte de uma história a ser

contada.

O exame dessa abstração da consciência integra uma acepção autobiográfica, na medida

em que há uma noção dos limites determinantes para as práticas autobiográficas e para os sujeitos

específicos, ou seja, uma pesquisa dos elementos que formam um determinado contexto e que

estabelecem os limites entre o real e o ficcional. Esse processo que articula as ações de força

para a permanência da autonomia do sujeito roteirista de suas memórias, permite a presença do

diferente e do inusitado e deflagra a compreensão total do esforço consciente de Górki para com

o conceito de estar-no-mundo.

A consciência de um Górki-escritor já personalizado reflete numa consciência de um

olhar que nada tem a ver com os fatos “reais” da vida, mas com problemas construídos por ela

própria. É o tato autobiográfico que estreita as relações articulatórias entre a memória, identidade

e o projeto artístico. Em Ganhando meu pão, ocorre uma integração entre aprendizado,

identificação, gostos e vontades, que são uma ignição para uma relação capaz de concretizar algo

específico como um romance que pressupõe lembrança (a história), sujeito (o autobiógrafo) e

objetivo determinado (a autobiografia). O texto autobiográfico gorkiano é a concretização desse

discurso, como o próprio autor salienta no artigo “Como aprendi a escrever”.

Quando tinha aproximadamente vinte anos comecei a entender o que tinha visto, ouvido e experimentado muitas coisas sobre as quais devia falar a outras pessoas. Parecia-me que compreendia e sentia certas coisas de uma forma distinta que os demais. Isto me preocupava e me punha inquieto e loquaz (GORKI, 1984, p. 30).

A forte figura de Górki deteve um conjunto de conhecimentos preparados para construir a

afirmação da relação dele com um determinado universo de razão onde foi possível notar,

literariamente, a primazia do homem enquanto sujeito coletivo. Tal pensamento converge para o

fato de que “um dos grandes motivos da miséria espiritual do mundo moderno é que os homens

esquecem, freqüentemente, de que não são eles que conduzem a história”243. O panorama de

243 AMOROSO LIMA, Alceu. Meditação sobre o mundo moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1942, prefácio.

190

Ganhando meu pão é dos mais diversos e também revela uma nascente sociedade russa moderna,

muitas vezes condenada por Górki, mas que irá reservou para cada vida um lugar especial.

O ser humano (...) não pode ser abstraído dos outro seres humanos e das condições físicas que o circundam, por duas razões: uma tirada da observação da própria natureza humana e a outra das condições de funcionamento de sua vida psicológica”. (...) É dos sentidos que tiramos os materiais com que trabalha a inteligência e com que opera a vontade, não só de conhecer o mundo exterior, mas ainda para descer às profundezas do mundo interior e aí alcançar a verdade última e suprema (...).244

Nesse contexto, o mérito de Górki foi não escrever uma obra que fosse apenas um

mecanismo de descrição da adaptação do homem russo a uma condição de confinamento na

história. O vigor dessa autonarrativa é um reforço do alargamento da capacidade de entender e

conviver com a diferença em espaços abertos e com formas de controle contestáveis.

Obviamente, toda cultura é sensível aos objetos do pensamento que dirigem o olhar de uma

criança, mas quando essa seleção está associada a um quadro restritivo, os produtos culturais

passam a modelar o real e não a dialogar com ele. Em Ganhando meu pão, isso é o que acontece,

pois a infância de Aleksiei passa a ser, na adolescência, uma abstração que não permite mais um

confronto com a realidade e sim uma capitalização da jornada vivencial, já que a

compreensão de Gorki pelos homens é infinita, amou-os tais quais são, com os seus defeitos e as suas fraquezas. “Se existe no mundo alguma coisa de grande, de sagrado – exclama – é sem dúvida o homem em crescimento contínuo e que não é menos precioso até quando me repugna!” Propusera-se escrever “ um livro a respeito dos homens russos tais como foram”, mas renunciou a isso. “No fundo – confessou – não tenho lá muita certeza de querer que os homens mudem. O que deve mudar são as condições atrozes da sua existência” (GORKI, 1964, p. 95).

O discurso autobiográfico gorkiano se evidenciou desde que houve a percepção de que

família russa havia invadido os locais públicos, se instalando nesses lugares e considerando-os

cada vez mais privados. Esse comportamento foi, de alguma forma, almejado pelos adultos que

Górki enxergava ainda com olhos inocentes, como algo que precisavam tomar para si a critério

de sobreviência. Qualquer pessoa que pudesse mudar a ordem desse discurso seria rapidamente

censurada. Entretanto, em Ganhando meu pão, Górki não se rendeu ao discurso imperativo pré-

socialista que não traduziu, para ele, as grandes lutas passadas dos russos e tão pouco os sistemas

244 AMOROSO LIMA, Alceu. Meditação sobre o mundo interior. Rio de Janeiro: Agir, 1955, p. 55.

191

de dominação. Assim, foi criado um texto autobiográfico condizente com aquilo pelo que valia a

pena lutar.

Ao compreendermos essa ótica do percurso autobiográfico gorkiano, conseguimos

entender o jogo lançado à infância, isto é, enquanto se busca a tessitura de um discurso, se busca

também um desejo de ter nas mãos o poder conferido por ele. Vejamos um exemplo em que

Aleksiei usa a ficção que tanto o atraía para afastar a rudeza da vida de quem o ouvia. É

interessante notar que dentro da ficcionalização há uma preocupação de se manipular uma outra

ficção, vinda da literatura, popular ou não, que dissimule a realidade.

Quando contava fatos de minha experiência, acreditavam com dificuldade, mas todos gostavam de histórias de terror e de enredos complicados; mesmo os mais velhos a invenção à verdade; bem que eu via: quanto mais inverossímeis eram os acontecimentos, quanto mais fantasia continha o relato, tanto mais atentamente o ouviam as pessoas. Em geral, a realidade não os divertia, e todos espiavam sonhadores para o futuro, não querendo ver a pobreza e [a] disformidade do presente (GÓRKI, 2007b, p. 306).

Se no primeiro livro a infância é tida como o estado daqueles que ainda não têm voz,

ascender a Ganhando meu pão é entender a licença à “desobediência”, prevista pelas “regras”

gorkianas. Segundo Isa Fonseca, a juventude de Górki proporcionou uma jornada interna ligada a

uma esperada consequência, que foi o apagar da visão romântica da existência não mais

polarizada pelo pitoresco.

Se Górki é jovem demais para uma compreensão do que está nas entrelinhas, nas sutilezas das leituras que faz, seja na literatura ou nos textos sagrados (pois, entre as pessoas com quem convive, há sempre a presença do homem comum que parece confiar mais na palavra das Escrituras do que nas possibilidades políticas, enquanto mudança do estado das coisas e da vida precária que levam — o que o influencia e o deixa confuso enquanto melhor ação, para o cidadão russo), ainda assim é sagaz o suficiente para já separar o joio do trigo e, com isto, consolidar seu caráter e certas preferências temáticas para o seu trabalho como futuro escritor.245

E quanto à ficção em Ganhando meu pão?

De que matéria, afinal, é feita a ficção — Górki parece perguntar — e por que ela o cativa de maneira tão impressionante, muitas vezes até mais do que as pessoas em carne e osso com as quais convive (que ele julga covardes, insinceras, maldosas, cheias de

245 FONSECA, Isa. Ganhando meu pão, de Máximo Górki. Artigo publicado no jornal Le Monde (Brasil)- Diplomatique, em 15 de fevereio de 2008. Disponível no site: http://diplomatique.com.br. Isa Fonseca é jornalista e escritora, mestre em semiótica pela PUC-SP. Artigo acessado em dezembro de 2009.

192

malícia e más intenções, sem ética, em sua maioria) e, ainda, por que o que é ficcional pode ser tão belo, apropriado, sublime e, por vezes, inapropriado, já que não se cola ao real? Eis o questionador, aquele que discrimina para melhor configurar a futura formação do caráter de seus personagens marcantes, seja na literatura ou no teatro, e dar-lhes grandiosidade, independentemente de gênero e classe a que pertencem.246

Na trilogia, o momento flui como um alinhamento entre os dois sujeitos (Aleksiei e

Górki) parece com um pêndulo temporal de um processo de feitura do texto, no qual se

determinam um e outro mediante a troca reflexiva. Górki produz a ilusão de uma vida como

referência e, por conseguinte, a ilusão de que existe algo como um sujeito unificado no tempo. É

interessante vermos como o comportamento autobiográfico pode funcionar quase como uma

prosopopéia, onde se erguem vozes que nos garantem a correspondência com um sujeito que é

objeto da própria história. É na dualidade entre o real e o ficcional que Górki encontra o mote

para a integração objetiva dos dois fatores, pois é a partir dela que suas memórias e sua realidade

se incorporam, ainda que de forma literária, à sua natureza.

A objetividade sobre a qual falo é a mesma que incomodava Walter Benjamin, ao se dar

conta da decadência da arte de narrar. Assim como ele, Górki também não cerrou os olhos para o

fato de que o ritmo frenético do cotidiano furtava a capacidade dos indivíduos de sublimar os

acontecimentos. O sentimento de que não havia mais como buscar material na coletividade para

recriar a própria vida, obrigou Górki a resgatar as suas bases na tradição e em valores eternos. É

visível em Ganhando meu pão que Górki fez questão de que os seres humanos fossem, de fato,

humanos, quando diz que:

Os jovens talvez não gostem de me ouvir regressar com tanta freqüência ao passado. Faço-o deliberadamente. Parece-me que a juventude não conhece bastante bem esse passado, que não representa assaz claramente a vida torturada e heróica de seu país (...) Sei que minha memória está sobrecarregada de “velharias”, mas não posso esquecer nada e não considero que seja necessário esquecer” (...) Se fosse crítico e tivesse de escrever a respeito de Máximo Gorki, diria que a força que fez dele aquilo que é, tal como está na vossa frente, o escritor de quem gostais e apreciais com tanto exagero, pois bem, diria que essa força vem de que foi o primeiro, nas letras russas e talvez o primeiro em geral, que compreendeu, directamente, por si próprio, o valor enorme do trabalho, do trabalho criador de tudo que neste mundo é belo, grande, precioso (GOURFINKEL, 1964, p. 99).

Trabalhando incessantemente em sua arte de narrar, Górki se tornou um escritor que sente

e penetra na realidade, não apenas na racionalidade, mas, sobretudo, na emoção. Segundo ele, a

246 Continuação do mesmo artigo de Isa Fonseca.

193

sensibilidade é primordial e talvez o grande mal que acomete os seus contemporâneos da

incapacidade de sentir, de se emocionar e de se importar com o outro. A atitude autobiográfica

gorkiana se apersenta como objeto de observação, pois o belo e o incômodo convivem,

contribuindo para a uma re-elaboração do sujeito, de sua subjetividade e de sua “realidade”.

Mas, segundo Gourfinkel, a vida de Górki

(...) paralelamente a essas vicissitudes espetaculares, na profundidade, a sua vida espiritual [também] seguia o seu curso, impregnada do apelo da fé (...). O ponto de partida desse sentimento é a fé primitiva radiosa, que inoculou à criança a avó, camponesa analfabeta, mas que possuía o dom da poesia (GOURFINKEL, 1964, p. 55).

Contudo, para entender amplamente o espaço político e literário gorkiano, não podemos

excluir o fator divinal e as devidas interações entre a Igreja e a comunidade russa. Para Górki, as

fronteiras que dividem o ser político-social do cristão são tênues, ainda mais porque todos os

homens se movimentam num espaço que é teológico também. Portanto, a análise que se faz de

uma existência não deve eliminar da característica humana a presença do transcendente, que é

aquilo que atende aos desejos da alma, além de deter a habilidade de re-imaginar Deus e repensar

os seus desígnios. Da fé vem o testemunho confessional e a articulação de um projeto discursivo

que beira a autocriação, a autodefinição e a reescrita de um alguém em contraposição ao ser-

objeto rotulado pela catequese.

4.2 A PROMOÇÃO DO ESTADO LEIGO – O CRISTÃO DAS RUAS

Entre vós, quantos homens verdadeiros há? Talvez se encontrem cinco em mil que acreditem apaixonadamente que o homem é o criador e o senhor da vida e que o seu direito de pensar, falar, de se mover livremente é um direito sagrado. Talvez somente cinco em mil sejam capazes de lutar por esse direito e perecer nessa luta sem temer (Górki).

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim. Não sei se sinto demais ou de menos, não sei se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência, consangüinidade com o mistério das coisas, choque aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos, ou se há outra significação para isso mais cômoda e feliz. Seja o que for, era melhor não ter nascido, porque, de tão interessante que é a todos os momentos, a Vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, a dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas

194

as sacadas, e ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos, entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs, e tudo isso devia ser qualquer coisa de mais parecida com o que penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida 247 (Fernando Pessoa).

A presente análise se ocupará de uma parcela da temática religiosa contida na trilogia.

Para isso, trarei a perspectiva da invocação da religião, a partir do gênero autobiográfico, fato que

não se apoiará em discussões puramente teológicas, mas nas movimentações de autoria de Górki.

Antes, porém, faremos um traçado acerca da objetivação do sujeito através da fé.

Nesse sentido, segundo Foucault, um problema a ser levantado atinge especialmente a

perenidade da autoria das obras. Autoria que teria surgido no mesmo momento em que a

possibilidade de punição fosse criada, a fim de castigar os textos que fossem transgressores.

Entretanto, o questionamento esbarra na constante compatibilidade entre a solidificação da ideia

de autoria e a singularização dos indivíduos, esta por obediência às amarras das práticas sociais.

Foucault advoga ainda que, para quem escreve, a obra “é a grande tentação de legislar sobre esse

resplandecer de simulacros, prescrever-lhes uma forma, carregá-los com uma identidade, impor-

lhes uma marca que daria a todos um certo valor constante”248. Portanto, a autoria é o elemento

chave para que o escritor mantenha sob o texto o seu “autoritarismo”. De frente para um espelho,

ao ver a sua imagem, o autor diria:

Sou autor: observem meu rosto, meu perfil; é a isto que deverão assemelhar-se todas essas figuras duplicadas que vão circular com meu nome; as que se afastarem dele nada valerão, e é a partir de seu grau de semelhança que poderão julgar do valor dos outros. Sou o nome, a lei, a alma, o segredo, a balança de todos esses duplos (FOUCALUT, 2005, p. 7).

Foucault insiste que os textos literários não podem ser recebidos se não puderem contar

com a função de autor. Seus sentidos, o estatuto autoral e os valores que atribuímos a ela

passariam a depender unicamente da libertação do anonimato literário. A morte do autor revelaria

mecanismos ideológicos de construção de processos de subjetivação. Portanto, retomamos o local

do autor como o ponto de partida da escrita literária. Por sua vez, a dessacralização da autoria no

embate pelo reconhecimento da escrita autobiográfica oferece uma sólida resistência por

compreender que o autor nunca é maior do que aquele que escreve, ou seja, a lacuna que fica

247 PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 342. 248 FOUCAULT, Michel. História da loucura. Trad. José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 5.

195

aberta é a da luta pelo reconhecimento de um eu-autor que pode surgir da poética de um texto

autobiográfico, em razão dos grandes processos históricos (individuais ou não) pelos quais as

pessoas passam.

Reconheço, portanto, a possibilidade de haver elementos estruturais na autobiografia

gorkiana que dão permissão, não somente a uma relação autor-obra, mas também à preservação

do seu campo de significações. Se para Foucault é imprescindível que o autor “morra” para que

se possa sentir a sua função real, em Górki, ocorre o inverso, pois a existência de um eu-autor

presente nos vestígios autobiográficos é uma voz do “eu” que deseja se reafirmar. Voz que se

manifesta em diferentes abordagens de vivências individuais e que vem a público sob forma de

registro. Górki poderia perfeitamente ter dito:

É preciso que minha voz tão estranha, minha voz que não gosto de ouvir, deixe de ser barulho que me trai, para tornar-se uma música que me transporte. E minha escrita, não uma mensagem que se perde no silêncio e só fala aos olhos, mas uma fala que faça vibrar os ouvidos do outro, e o obrigue a articular, em sua própria garganta, a minha vida (LEJEUNE, 2008, p. 89).

Sustentado pela voz de Górki, há um lugar de destaque para os aspectos que o sagrado

ocupou em sua vida, pois

(...) desde que Górki fez a sua entrada no palco mundial, a sua existência foi assinalada por explosões, manifestações ruidosas e até por escândalos. Mantinha-se no primeiro plano da actualidade; mas paralelamente a essas vicissitudes espectaculares, na profundidade, a sua vida espiritual seguia seu curso, impergnada pelo apelo da fé, corrente invisível mas constante mas que se manifesta por meio de redemoinhos reveladores, para explodir um dia nos turbilhões de uma crise religiosa perturbante (GOURFINKEL, 1964, p. 55).

O “eu” gorkiano atua como espaço de subjetivação que se identifica com uma vida, onde

o sagrado e a experiência religiosa assumem relevância para a sua própria criação. Não se trata

apenas do resgate do domínio e da supervisão da autoria, mas da legitimação de uma

autointerpretação da vida que permite que autobiografia se presentifique em seu próprio espaço

poético. Se considerarmos Górki um homem de fé, ele também pode ser visto como um homem

que emerge no centro da criação, ou seja, ungido pelo amor de Deus. Não intento classificar

Górki como ateu ou seguidor de qualquer doutrina, porém, dentro da autobiografia, vejo-o

inaugurando uma relação diferente com a fé, na qual é “filho de Deus” aquele que possui a

divindade dentro de si.

196

A escrita autobiográfica procura um caminho original para as suas vozes. Busca esta

percebida pelo próprio Górki quando, em testemunho, lembra.

Quando tinha aparentemente vinte anos comecei a entender que tinha visto, ouvido e experimentado muitas coisas sobre as quais devia falar a outras pessoas. Paracia-me que compreendia e sentia certas coisas de uma forma distinta que os demais. Isto me preocupava e me punha inquieto e loquaz, Ainda quando lia um mestre como Turgueniev, pensava algumas vezes que eu podia narrar as histórias dos protagonistas de Notas de um Caçador 249 de uma forma distinta da sua. Nesse tempo eu já era considerado um contador de casos interessantes pelos portuários, padeiros, vagabundos, carpinteiros, ferroviários, peregrinos. Em geral, as pessoas entre as quais eu vivia me ouviam com atenção. Quando contava-lhes sobre os livros que tinha lido, encontrava-me mais de uma vez contando-lhes de forma diferente, distorcendo o que tinha lido, agregando ao relato tirado de minha própria experiência. Isto ocorria porque, para mim, literatura e vida haviam se fundido em uma coisa só; um livro era uma manifestação de vida que um homem; um livro era também uma realidade vivente e falante, e era menos um objeto que todos os outros objetos criados, ou pode se criar pelo homem (GÓRKI, 1984, p. 30).

Atrelada à vida russa estava o ensinamento cristão marcado pela relação dicotômica entre

as duas dimensões do ser humano: o sagrado e o profano, sendo o primeiro bem absorvido pela

cultura ocidental250 como algo que se manifesta num âmbito de eternidade, ao passo que o

segundo se fixa como algo de ordem sensorial originário do caos. Compreender a crença em

Deus na cultura cristã significa entendê-la como algo supremo que deu início a um ciclo de eras e

que tem o poder de transformar o nada em tudo.

A visão do riscado cristão gorkiano nos conduz por um percurso que abrigou toda a

espiritualidade de uma encarnação e uma inegável valorização do cotidiano. Para Górki, o

trabalho é a extensão do homem, revela sua inteligência e realiza sua mente. Nesse sentido, corpo

e alma se solidarizam em qualquer tarefa e todo homem se torna artista quando trabalha. Assim,

arte não se faz sem amor e todo trabalho sempre tem sabor de obra-prima. E, se o trabalho é

tarefa e obra dos homens, é também uma empreitada de Deus junto a eles.

O discurso autobiográfico se inclina para o desenvolvimento de uma atitude de resistência

perante as desigualdades vividas por Aleksiei, que constantemente resvala em toques de

referência à fé cristã de um povo humilde. Salientando a memória e a ressignificação de

249 Notas ou Memórias de um caçador é um livro de contos de Ivan Turgêniev, publicado em 1852, que traz a imagem de um jovem aristocrata que começa a enxergar a verdadeira sabedoria ao se lançar à vida dos camponeses que trabalhavam em suas terras. 250 Entendamos o Ocidente como a maioria dos países que adotaram a doutrina cristã como religião.

197

conceitos pré-estabelecidos pela Igreja, Górki recorre à atmosfera religiosa como marca de

significado, desvelando comportamentos tradicionais da cultura popular russa que serviram de

parâmetros para a compreensão da crença. Ao passo que descreve e dialoga com a religiosidade

popular, ele re-elabora o conceito da Providência Divina, isto é, a superintendência de Deus nos

eventos da vida.

Na trilogia, Górki viveu o desejo de compreender a si próprio, porém, a prática da

introspecção se desgastou devido à difusão social e econômica da fé. A multiplicação das

ordenações de vida e a crescente precisão das “soluções divinas”251 andaram lado a lado com o

aprofundamento dos autoexames da alma. Daí, manter anotações pessoais que discorressem sobre

a evolução do espírito era uma forma de suavizar os remorsos contidos nas faltas. É devido ao

olhar sobre si mesmo e dos olhares dos outros que se estrutura um autoexame permanente e

obcecante. Manter uma autodescrição de vida é uma disciplina de interiorização, pronunciada

pela voz de uma confissão, pois, como afirma Luiz Felipe Pondé, a “única forma de conhecer

uma pessoa, saber o que ela é, o que pensa, ou a experiência que ela tem, é deixá-la narrar-se” 252.

O exercício de escrever autoriza a pesquisa sobre a culpabilidade íntima registrada tanto

nos sucessos quanto nos insucessos da vida. O abismo existente entre o poder divino e o humano

facilita autorreferência do sujeito, que é agente e porta-voz da própria vida, ou seja, é a partir da

primeira pessoa (o autor) que se explica a adoção da perspectiva de que uma segunda pessoa tem

de nós mesmos (o leitor). Assim, o “eu” refratado dessa relação seria dependente da relação entre

participantes da argumentação autobiográfica, pois não há reflexão que não se deixe reconstituir

como discurso interiorizado.

Contudo, o movimento reflexivo é tributário de uma relação dialógica prévia, que não fica

sitiada em um ambiente solitário de intimidade construído à margem de uma comunicação entre o

ser e o mundo. Para Lunatchárski, isso era

algo que certamente nunca poderia ter acontecido com Górki. Não importava a quantidade de fuligem vinda das lamparinas e as várias e estranhas fantasias religiosas que se acumularam nos porões da classe média onde ele passou parte de sua vida, ele rapidamente desenvolveu uma imunidade contra Deus em toda as suas formas. É muito mais fácil imaginar Górki como um profeta do desespero, xingando uma humanidade

251 G. Raspútin é um bom exemplo da comercialização da fé. Considerado um homem santo e milagroso que, com a sua presença performática, convenceu dos mais simplórios camponeses à realeza russa. 252 PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. A filosofia da religião em Dostoiévski. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 161.

198

malfadada do que um santo a la Tolstói, com uma auréola sobre a cabeça e a mão a abençoar (LUNACHARSKY, 1965, p. 219). 253

A autonomia da afeição religiosa havia sido suplantada no menino após um processo de

intimidação. Aleksiei era obrigado por seus patrões a participar dos rituais religiosos, sendo o

mais importante deles, a confissão. O pecado e o delito, passíveis de qualquer existência, iam se

transfigurando em atos confessionais. Obviamente, só há confissão porque se subentende a culpa,

portanto, esses dois fatores juntos pressupõem uma única realidade individual que se desloca para

o plano da linguagem. Sendo assim, podemos ver em Górki uma prática religiosa (a confissão)

como um atalho para o autobigráfico, uma vez que ele torna a si mesmo em um objeto de

conhecimento. A autoanálise feita entre as paredes do confessionário, além de ser um “desabafo”

diante do Supremo, é um narrar da própria vida. Segundo V. Barákhov,

próprio conceito de indissolubilidade entre –homem e Deus– se torna um fator importante na definição das ilimitadas possibilidades sociais e estéticas creditadas por Górki ao gênero humano. A ideia de Deus cresceu na mente de Górki juntamente com a pessoa dele. Foi apreendida no crescente espaço do mundo espiritual do escritor, enraizada em sua filosofia como uma espécie de eixo ligado às considerações acerca da sua concepção-mito da possibilidade de conhecimento e transformação da realidade.

Em palestra proferida no dia 30 de março de 1920, na Universidade Operário-Camponesa, incentivando nos ouvintes a necessidade de conhecimento e educação, ele disse: “-Se você pegar a ideia mais abstrata e a mais grandiosa já criada pelo homem, a ideia de Deus – o altíssimo, o ser mais sensato, onipresente, onipotente, que tudo vê e tudo sabe – essa ideia não é nada mais do que um desvio do próprio homem, das melhores qualidades da alma” (BARÁKHOV, 2004, p. 136-137). 254

253 CITAÇÃO ORIGINAL: “One thing certainly could never have happened to Gorky. No matter how much soot from the iconlamps and the various strange religious fantasies had accumulated in middle-class cellars where he had spent a part of his life, he had quickly developed an immunity against God in all shapes and forms. It is much easier to imagine Gorky as the prophet of dark despair, cursing an ill-starred humanity, than as a saint a la Tolstoi, with a saintly halo above his shaggy head and his head and his hand raised in blessing”. 254 CITAÇÃO ORIGINAL: “Сама неразрывность понятий - человека и бога - становится важнейшим фактором формирования социальных и эстетических взглядов Горького на безграничные возможности человеческого гения. Идея бога росла в сознании Горького по мере роста самого человека, захватывала в духовном мире писателя все более широкое пространство, укореняясь в его мировоззрении как своего рода ось, на которой крепилось созданное его во ображением мифо-представление о возможности познания и преобразования окружающей действительности. В лекции, прочитанной 30 марта 1920 года в Рабоче-крестьянском университете, убеждая слушателей в необходимости знаний, образования, он говорил: Если взять самую отвлеченную идею, самую величественную идею, самую громадную идею когда-либо созданную людьми, идею бога - самого высшего, самого разумного существа, вездесущего, всесильного, всевидящего, всезнающего, всесотворившего - и эта идея есть не что иное, как отвлечение человеком от самого себя, лучшего свойства своей души”.

199

A confissão é um apelo da consciência que, numa macrovisão, pode ser interpretada como

uma atitude discursiva de um narrador divagante que não se furta à intimidade, pois a suposição

refletida que faz um indivíduo ser tal qual como pensa é justamente a imaginação. E, é aí que o

caráter confessional ganha espaço, pois Górki comete certas insinceridades involuntárias. Muitos

aspectos saltam desse comportamento, porém, o mais evidente deles é a relação entre a

sinceridade e a autenticidade de quem escreve. A seguir, temos um exemplo até engraçado do

comportamento de Aleksiei frente às obrigações religiosas que deveria cumprir pelo “bem” da

coletividade. Em sua primeira ida ao confessionário, o menino não sabe como se portar e, num

ato sincero, abre as portas para a verdade imaginativa e para a ironia sobre um cânone

inquestionável.

– Bem, ajoelhe-se aí! Quais são seus pecados? Cobriu minha cabeça com um veludo pesado, eu sufocava com o cheiro de cera e incenso, falar era difícil, não dava vontade. – Obedece aos mais velhos? – Não. – Diga, sou pecador! Inesperadamente, para mim mesmo, deixei escapar: – Roubei hóstias. – Como foi isso? Onde? – perguntou o sacerdote, depois de pensar um pouco e sem se apressar. – Na porta da Santíssima Trindade, na do Sudário, na de São Nicolau... – Ora, ora, em todas as igrejas! Isso, meu irmão, não está bem, é um pecado, compreende? – Compreendo. – Diga: sou pecador! Coisa absurda. Roubou para comer? – Umas vezes, comi; outras vezes, eu perdi o dinheiro no jogo de malha e era preciso levar a hóstia para casa, por isso eu roubava... Padre Dorimedont se pôs a murmurar algo, de modo imperceptível e com ar cansado, em seguida formulou mais algumas perguntas e, de repente, perguntou com severidade: – Você não leu livros de edição ilegal? Naturalmente, não compreendi e perguntei: – O quê? – Não leu livros proibidos? – Não, nenhum... – Os seus pecados foram perdoados... Levante-se! Espiei pensativo, o seu rosto: parecia pensativo e bondoso. E eu me sentia constrangido, envergonhado: me mandando para a confissão, meus patrões disseram horrores dela, me convencendo a confessar honestamente todos os meus pecados. – Eu joguei pedras no caramanchão da sua casa – declarei. O pope levantou a cabeça e disse: – Isto também não está bem! Vá embora... – Joguei pedras também no cachorro... – O seguinte! – chamou padre Dorimedont, sem fixar o olhar em mim. Fui embora, me sentindo enganado e ofendido: ficara tão tenso, com medo da confissão, mas aquilo saíra nada terrível e era até pouco interessante! (GÓRKI, 2007b, p. 107-108)

200

Para Aleksiei, o imaginário religioso repousa na figura física da Igreja que, imponente,

causa impacto e revela uma primeira resistência dos “velhos crentes” russos, que começavam a se

opor às mudanças litúrgicas introduzidas pelo então Patriarca Níkon. Segundo Schnaiderman,

Górki “não [pôde] deixar de reservar muito espaço à presença [desses] “velhos crentes”, pois

naquela região todo o cotidiano estava marcado por essa oposição 255” (GÓRKI, 2007b, p 8).

Oposição alimentada pela produção de ícones que passou a se desenvolver como uma linha de

montagem, visto que “a produção corrente dos santeiros estava completamente comercializada e

decadente” (GÓRKI, 2007b, p. 8).

Compreender as relações entre produção literária, cultura religiosa e imaginária, é

aprofundar o conhecimento sobre a re-elaboração divina no imaginário cristão de Górki. Vejamos

como o menino enxerga essa força celestial que mantinha o pensamento russo nos trilhos da fé.

Gostava de freqüentar igrejas; parado em algum canto, onde havia mais espaço e era mais escuro, gostava de olhar de longe para a iconóstase: ela parecia derreter-se ao fogo das velas, escorrendo em riachos densos, de ouro, para o chão cinzento, de pedra, junto ao púlpito; moviam-se docemente os vultos escuros dos ícones; tremelicava alegre a renda de ouro da Porta Real256, as chamas das velas estavam suspensas no ar azulado, feito abelhas, feito abelhas de ouro, e as cabeças das mulheres e moças lembravam flores257 Tudo em volta fundia-se harmoniosamente com o canto do coro, tudo vivia uma existência de conto de fadas, toda a igreja balançava-se lentamente, como um berço, balançava-se num vazio de treva, denso como o piche.

Às vezes tinha a impressão de que a igreja estava profundamente imersa na água de um lago, e que se escondeu de tudo sobre a terra, a fim de levar uma vida peculiar, que não se assemelhava a nada. Provavelmente, essa sensação era despertada em mim pelo relato da vovó sobre a cidade de Kitej, e muitas vezes, balançando-me, cochilando, com tudo o que me cercava, embalado pelo coro, pelo balbuciar das rezas, pelos suspiros das pessoas, eu repetia comigo mesmo um relato constante, dolorido: Os malditos tártaros cercaram, Com a sua grande força imunda, A nossa gloriosa cidade de Kitej, Cercaram-na em clara hora matinal... Ai Senhor, nosso Deus, Nossa Virgem Santíssima! Ai, em ajuda de vossos escravos, Fazei com que possam terminar as matinas, Ouvir até o fim as Sagradas Escrituras! Ai, não permitais que o tártaro

255 Para mim, não ficou claro se Schnaiderman se referiu apenas à cidade de Górki ou se num plano maior fez menção à Rússia. 256 Nas igrejas russas, a Porta Real se localiza no meio da iconóstase. 257 Imagem produzida pelos lenços de diversas cores que as mulheres russas devem usar sobre a cabeça ao entrar nas igrejas.

201

Cubra de irrisão a Santa Igreja, De vergonha, a essas mulheres e donzelas, Que apanhe qual brinquedo as criancinhas, E de morte cruel aos anciãos! E ouviu então o Senhor Sabaoth, E ouviu também a Virgem, mãe de Deus, Aqueles suspiros humanos, Aquelas tristezas de cristãos. E disse o Senhor Sabaoth Ao luminoso arcanjo Miguel: Vai, Miguel: Abala a terra sob a cidade de Kitjei E mergulha-a no lago; Que os homens nela rezem, Sem cessar, e sem cansaço, Das matinas às vésperas, E das vésperas às matinas, Todos os ofícios divinos da Igreja, Pelos séculos dos séculos258 (GÓRKI, 2007b, p. 99-100).

Logo nos primeiros cinco capítulos, Aleksiei se vê cobrado a comparecer às missas

habitualmente, porém, ele ainda não entende a necessidade desse ato se tornar uma fonte de

crescimento. Confuso, ele recorre ao que está mais próximo que é a lembrança de uma história

popular contada pela avó que, para ele, ganha ares de prece. Nesse momento, as histórias

constróem teias de significado que incidem em todos os âmbitos da vida, deixando a fala

responsável por toda uma organização individual do autor com prerrogativas de poder.

Na igreja, eu não rezava: envergonhava-me de repetir, perante o Deus da vovó, as zangadas orações do vovô e os chorosos salmos; estava certo de que o Deus da vovó não podia gostar daquilo, tal como eu não gostava; ademais, estavam impressas em livros e, por conseguinte, Deus as conhecia de cor, a exemplo de todas as pessoas alfabetizadas.

Por isso, na igreja, nos momentos em que o coração se apertava por algo com a doce tristeza, ou quando mordiam e arranhavam as miúdas ofensas do dia que passara, eu procurava compor minhas próprias orações; bastava-me pensar no meu infausto destino, e as palavras se juntavam por si, sem esforço, em queixas:

Senhor, senhor, eu me aborreço! Quero crescer bem depressa! Não tenho mais paciência de viver, Dá vontade de me enforcar – perdão Senhor! Meu estudo não dá resultado

258 Na tradição popular russa são comuns as evocações das histórias sobre os tártaro-mongóis. Historicamente, a Rússia permaneceu trezentos anos sob o jugo tártaro, do século XIII ao XV.

202

Aquela boneca do diabo, vovó Matriona, Rosna comigo como um lobo, Minha vida é muito amarga! Lembro até hoje muito das minhas “orações”; o trabalho do cérebro na

infância deposita-se sobre a alma por meio de cicatrizes demasiado profundas; muitas vezes, elas não se fecham a vida inteira259 (GÓRKI, 2007b, p. 101-102. Grifo meu).

A posição que Aleksiei toma diante de sua própria condição de “filho de Deus” é

interessante, pois caracteriza o discurso religioso como resistência. Aleksiei é um doador de

sentido, que projeta uma rachadura no pensamento dogmático, fato que reserva à literatura de

Górki o papel de excitar a consciência de quem o lê. Dentro da visão autobiográfica, esse

aparente despojamento da cristandade talvez tenha revelado inconscientemente o desejo de uma

outra existência, mais bonita e mais livre. Portanto, a aproximação de Deus fez com que

Ganhando meu pão começasse a converter em símbolos uma realidade que merece atenção.

Ele mesmo entendeu essa figura [de Deus] que, para ele, era algo de especial não só na autobiografia como no caminho espiritual. Disso, Piechkóv começou a desconfiar bem cedo. Devemos, portanto, limpar a acidez de muitos anos expressada no título da seguda parte da trilogia e refletir: o que significa estar entre os homens? Há outra alternativa? E, é possível estar entre os homens? (...)

Tudo isso porque um dia, fugindo da religião boa da avó, ele deu mais ouvidos aos pensamentos do avô sobre as pessoas. De repente, Aleksiei teve um pensamento que definiria para sempre o seu destino espiritual “Duas forças impedem o homem de viver como ele quer: Deus e as pessoas”.

Deus foi banido de sua alma, mesmo o Deus da avó. Quanto mais ele tinha o Deus do avô na mente, mais rapidamente ele percebia que o Deus bom não estava presente em tudo, mas existia a avó Akulina, a simpática, boa e generosa anciã. Mas o Deus do avô, o Deus verdadeiro, criador e juiz de todas as coisas existe! E puniu injustamente [o menino] Aleksiei. Ele [Aleksiei] ainda não compreendeu todo insulto que sofreu e nem o transformou em sua verdade 260 (BASSÍNSKI, 2008, p. 48-49).

259 É importante perceber, aqui, a presença do homem-escritor Górki que por um instante suspende a voz de Aleksiei para usar as suas próprias lembranças de forma clara e incisiva. CITAÇÃO ORIGINAL:

“Он сам понимал, что это фигура. Но что ему предстоит какой-то особый, и не только биографический, но и духовнофилософский путь, Пешков стал подозревать рано. Почистим кислотой за много лет потускневший смысл названия второй части автобиографической трилогии и задумаемся: что значит быть в людях? Есть ли альтернатива? Можно ли быть не в людях?(...)

А все потому что, что однажды, отходя от доброй религии бабушки и больше прислушиваясь к дедовым рассуждениям о людях и человеках, алексей вдруг к мысли, которая навсегда определит его духовную судьбу. Человеку мешают жить, как он хочет, две силы: бог и люди.

Бог изгнан из души его. Даже добрый бог бабушки. Тем более что, обладая цепкин умом деда, он быстро понял, что нет этого доброго бога вовсе, а есть бабушка Акулина, жалостливая старуха, отзывчивая, большая и щедрая. Зато бог дедушки, Бог настоящий, Творец и Судия сущего, Он есть! И этот бог несправедливо наказал Алексея”. Он еще не осмыслил всей обиды до конца, не претворил ее в свою правду.

203

Viver, conhecer e reinventar o passado, fazendo uma análise crítica do presente para dar

sentido ao futuro, corresponde com o crescimento humano no curso do tempo enquanto processo

identitário. Nessa construção de Aleksiei, Górki transforma as determinações do seu mundo

exterior em autodeterminações do menino, vislumbrando uma aliança entre subjetividade e

objetividade. No entanto, essa determinação que direciona o caráter de Aleksiei pressupôs uma

finalidade que pode ter sido de cunho pessoal, mas também funcionou como um ideário coletivo

do povo russo. Aleksiei adota um jeito tão próprio de interiorizar conhecimentos em um universo

simbólico que é capaz de conduzir uma nova ordem na compreensão da ação humana. Por sua

vez, a religiosidade atua nas obras, articulando a ficção com a realidade popular, ora agindo como

meio de dominação, ora como artifício de subversão da ordem, sob a forma de realidade de uma

encarnação.

Era bom na igreja, eu descansava ali do mesmo modo que na floresta e no campo. O pequeno coração, que já conhecia inúmeras ofensas e que estava sujo da cruel rudeza da existência, banhava-se em devaneios imprecisos, ardentes.

Mas eu ia à igreja somente por ocasião dos grandes frios ou quando uma tempestade de neve varria furiosa a cidade, quando se tinha a impressão de que o céu se congelara, que o vento o pulverizara em nuvens de neve e que a terra, congelando-se também sob os montões nevados, nunca mais ressucitaria (GÓRKI, 2007b, p. 102).

Górki, solto na religiosidade, atribui sólidos significados aos elementos de sua realidade e

elabora um discurso sobre ela que rapidamente assume função interpretativa ao ser

autobiografada. Para irmos adiante, porém, devemos pensar além das marcas religiosas,

atentando para a dúbia conceituação desse ato de fé que se apresenta sob as máscaras de recusa

ou de reinvenção. Sendo assim, é um fato marcante que acompanha grande parcela de Ganhando

meu pão o reinventar da concepção da Providência Divina. Górki declina a praxe de que cai sobre

os ombros de Deus o sofrimento periclitante russos. Para ele, a cobrança celestial não existia. O

seu posicionamento diante da Providência não contempla o pagamento do sofrimento com a sina

e sim uma relação igual entre os seres dotados de razão com a mão de Deus.

A fé, pela qual estão prontos a sofrer, com gosto e com grande auto-admiração, é indiscutivelmente uma fé bem firme, mas lembra roupa muito usada; ensebada, coberta de toda espécie de sujeira, é somente por essa razão que o trabalho destruidor do tempo a afeta um pouco. Idéias e sentimentos se acostumaram à membrana apertada, pesada, dos

204

preconceitos e dogmas e, embora eles tenham perdido as asas, sejam disformes, vivem comodamente aconchegados.

Essa fé por hábito é um dos fenômenos mais tristes e perniciosos da nossa vida; nos seus limites, como à sombra de um muro de pedra, tudo o que é novo cresce devagar, deformado, torna-se caquético. Nessa fé escusa, há poucos raios de amor, há demasiadas ofensas, rancor e inveja, sempre aliados ao ódio. A chama dessa fé é um brilho fosforescente de putrefação (GÓRKI, 2007b, p. 279).

Contudo, a tessitura de um discurso religioso, mesmo que por linhas breves, sinaliza um

tipo de utopia imaginada enquanto universo simbólico de sentido da realidade vivida. Esse

caráter messiânico da fé gorkiana pode dar uma feição a um protesto e um braço contra as

injustiças que, segundo ele, não eram planos de Deus. Górki sentiu a inflexibilidade da vida,

porém não se curvou a posturas resignadas impostas pelo tradicionalismo atordoante e insistiu na

crítica ao fatalismo institucionalizado.

No entanto, os pensamentos do autor e do coletivo convergem e se misturam em um só

sujeito que é Aleksiei. Nessa dualidade é possível perceber um encontro dos tempos passado e

presente através do qual o garoto enfrenta a prática retórico-ideológica da sociedade russa,

usando desobrigadamente os instrumentos da própria tradição eslava. No trecho abaixo, fica

óbvia a comercialização dos símbolos religiosos, fato que ia totalmente contra a presença divina

pensada por Górki.

O outono já estava avançando quando o navio deixou de trafegar, e eu ingressei como aprendiz de uma oficina de pintura de ícones, mas, no dia seguinte, a minha patroa, uma velinha suave e bebadazinha, me declarou, como o seu linguajar de Vladimir:

– Agora os dias são curtinhos, as noites são compridas, então você irá de manhã para a loja, ajudar nas vendas, e, de noite, trate de aprender!

(...) Decorei depressa os preços dos ícones, pelas dimensões e pelo acabamento, decorei os diferentes ícones de Nossa Senhora, mas não era fácil lembrar a função de cada santo.

(...) Nos dias de feira, quarta e quinta, o comércio ia bem, apareciam a todo momento no terraço mujiques e velhas, às vezes famílias inteiras, secretárias do Rito Antigo, de além-Volga, uma gente desconfiada e taciturna , habitantes do mato.

(...)–O que deseja, respeitável senhor? Saltérios explicados e comentados, livros de Iefriem Sírin, de Kiril, manuscritos em eslavo eclesiástico, missais, venha dar uma espiada! Por encomenda, pintamos quem quiser, os santos todos e todas as Nossas Senhoras! Talvez queira encomendar uma particular, de família? Nossa oficina é a melhor da Rússia! O melhor comércio da cidade! (GÓRKI, 2007b, p. 261)

Em tom jocoso há uma crítica à sociedade patriarcal, porém, devemos levar em conta que

o romance é um encontro de tempos heterogêneos; o do próprio escritor à época que viveu, à

época que escreveu, à época em que publicou e as diferentes épocas em que o livro foi lido por

205

nós. A obra, portanto, é fruto de conhecimentos internos e externos de uma existência repleta de

incoerências e incertezas, resultado da consciência do desconcerto do mundo. Entretanto, a

verdade de Górki não exclui a “mentira” da autobiografia, pois ela serve como base de decoração

indispensável para a obra, obtendo, em seu nível literário, a sua “verdade”. O menino que articula

o relato autobiográfico é um arauto dos discursos de outrem, uma vez que as suas palvaras estão

submetidas a condições exteriores. A seguir, temos algumas palavras de Tolstói, autor que

creditava somente a Deus a existência humana. Palavras estas lembradas por Górki.

(...) –A verdade não é necessária. E está certo: Para que precisa da verdade? Vai morrer mesmo. (...) – Se o homem aprendeu a pensar, seja lá o que for que ele pense, ele sempre pensa na sua morte. Como todos os filósofos. O que são verdades, uma vez que a morte virá?

Depois foi dizendo que a verdade é uma só para todos – o amor a Deus (GÓRKI, 2006, p. 34).

Assim que reconheci o fator autobiográfico em Górki, percebi também a posição da Igreja

como referência cultural e como um horizonte do imaginário coletivo, que em muito influenciou

o universo artístico do autor. A relação existente entre religiosidade e fermentação revolucionária

provoca um tipo de “pacto autobiográfico” entre o autor e seu testemunho que o insere em um

“entre-lugar”. Os lugares do testemunho e da ambiência, na verdade, se fundem em um só eixo de

análise quando o que está em jogo é o exercício de renovação da narrativa ficcional proposta por

Górki.

Apoiando-se em uma visão particular de fé, Górki recorre ao mito religioso para explicar

o avanço do veneno capitalista. Segundo ele, seu tempo russo sucumbia cada vez mais

profundamente ao excesso da Palavra.

A religião, segundo Górki, escraviza; a ciência liberta. Porém, a noção de “identidade” está indissociálvelmente ligada à noção de “liberdade”, e para a ciência não, há liberdade. A lei da necessidade, o determinismo-são a base do pensamento científico. Eis o porquê a ciência conhece apenas a indivisibilidade, o gênero e espécies impessoais. A pessoa, bem como a liberdade, não são conceitos científicos, mas religiosos. 261

261 MEREJKÓVSKI, D. S. Relíguia Górkogo. Artigo disponível no site: www.lib.ru e acessado em janeiro de 2013. CITAÇÃO ORIGINAL: “Религия, по мнению Горького, порабощает; наука освобождает личность. Но самое понятие "личности" неразрывно связано с понятием “свободы”, а для науки нет свободы: закон необходимости, детерминизм -- основной закон научного мышления. Вот почему наука не знает "личностей", а знает только “неделимые”, “ особи” безличных “родов” и “видов”. Понятие "личности", так же, как понятие "свободы" -- вовсе не научное, а религиозное”.

206

Pela descrição da unidade religiosa exposta na trilogia, a Igreja se torna cada vez mais

monolítica e irretocável no tempo: a mesma, ontem, hoje e sempre. Segundo Górki, o mistério

divino da comunhão fraterna, que é eterno, passou a se indentificar com experssões jurídico-

sociais mutáveis e perecíveis. Para que se cumprisse a exigência de ser indivisível, a Igreja

necessitava de uma superorganização e funcionários fiéis que cuidassem dela. Funcionários, não

só de tempo integral, mas de vida integral, vinculados a ela por uma dependência econômica,

cultural ou afetiva. Eis, então, o cristão, irretocável no tempo e no espaço e encarregado de

preservar a todo custo uma unidade visível.

Entretanto, essa unidade aparentemente salvadora conservou a Igreja num estado de crise

permanente, questionado por Górki, pois, de um Alto pretendia-se conduzir um mundo pluralista

à unidade monolítica; de outro, afirmava-se como uma realidade equidistante do mundo,

compondo o cenário multiforme da vida. Na realidade, o que acontecia era a expressão máxima

de dominação e marginalização. Antagonismo que negou a natureza da Igreja. Como resposta,

vemos um Górki acreditando que a uniformidade da Igreja era um mal, pois o momento era de

transformação e, era dever do homem aprender a ser uno e múltiplo em Cristo através de uma

Igreja una em Cristo e múltipla nos homens.

O “Deus construído” não era visto apenas como uma nova religião para as massas, mas como uma saída, um verdadeiro caminho para aqueles que estavam imersos no labirinto do “Deus procurado”. No entanto, a expressão da religiosidade não depende apenas dos acontecimentos e dos diálogos, mas está intimamente ligado à sua impressionante mistura de gêneros. Nunca antes em seus romances, Górki usou um narrador em primeira pessoa e, em parte, ele sem dúvida fez isso aqui porque o tratamento de temas religiosos era ligado diretamente a ricas tradições.262

A contrução da imagem de Deus263 foi muito mais idealizada do que colocada em prática.

Na autobiografia, Górki esteve sempre entre a criação e a história, porém, quando Aleksiei entrou

262 SHERR, Barry. God-Building or God-Seeking? Gorky´s Confession as Confession. Artigo publicado no Slavic and East European Journal e acessado pelo site JSTOR em abril de 2010. CITAÇÃO ORIGINAL: “God-building in seen not only as a new religion for the masses, but also as the way out, the true path, for those immersed in the seeming labyrinth of God-seeking. However, the expression of religiosity in the novel does not just depend on the events and dialogue, but is also closely linked to its striking mixture of genres. Never before in his novels had Gorky used a first-person narrator, and in part he no doubt does so here because the treatment of religious themes had been closely associated with rich traditions”. 263 O Deus construído era um conceito proposto por eminentes marxistas. Não se tratava de culto ao ateísmo, mas uma criação de uma nova religião baseada na humanidade e que não reconhecia existências sobrenaturais. Esse tema é amplamente debatido no livro Confissão, de Górki. Porém, não pretendo entrar no mérito dessa questão, pois o que está em evidência é pesquisar como a religiosidade permeou o relato confessional do autor.

207

em contato direto com a consciência do processo revolucionário, se decepcionou, ao notar que a

força motriz da construção de um ideal nada mais era do que a economia selvagem unida a

manobras políticas. A religião se tornou uma fé contábil e aos poucos deixou à parte a esperança

no ser humano. Contudo, a religiosidade nos ajuda a refeltir sobre o papel social do romancista e

sobre as formas de interpretação da realidade e da história permitidas pela ficção. Para Scherr,

os elementos que compõem o “Deus construído”, que admitidamente predominam as últimas partes do romance, estabelecem um senso comum. Influenciado pelas correntes intelectuais de sua época, ele se interessou muito por essa conduta religiosa para explorar o potencial revolucionário que ela tinha. O que é ponto crítico para Górki, é a noção de que muitos dos problemas sofridos pela humanidade vêm do desenvolvimento histórico da consciência individual do “eu”.

Um dos principais ganhos que observo do caráter autobiográfico gorkiano não é apenas

uma descrição dos aspectos subjetivos que sua literatura carrega, tão pouco é uma tentativa de dar

excessiva exaltação ao gênero, mas é a insistência na coerência de uma imagem que coordena a

construção da subjetividade de uma individualidade que se encontrou numa espécie de terceira

margem de uma sociedade patriarcal.

Ao mesmo tempo, render-se à ciência como um conjunto homogêneo de conhecimentos

integrados no modelo de uma estrutura conceitual pré-concebida, capaz de racionalizar a

experiência de vida seria dar um impulso rumo à destruição. O ser humano põe a sua razão e

emoção a serviço de uma imagem monstruosa, cuja verdade é, contraditoriamente, forjada na

“mentira criada”. Górki,

para reconstruir o passado, se baseou em dois tipos de material: factuais (datas, nomes de pessoas, descrição de eventos) e subjetivos (reações pessoais do autor com eventos e pessoas, a história de seu desenvolvimento interior, as sensações e pensamentos lembrados). Mas, a informação factual nem sempre é necessária, pois, na medida em que o autor se baseia na memória, ele está sujeito a errar ao lembrar datas ou eventos específicos. Tanto o material factual quanto o subjetivo podem ser distorcidos, consciente ou inconscientemente, pelos próprios esforços do escritor para reconstruir o “eu”264.

Talvez seja por isso que o esforço de dar outro olhar interpretativo a uma autobiografia

até hoje não tenha sido atingido, pois, na ideia pré-estabelecida de “confere com o original”, a

imposição de uma nova “verdade” rouba a imaginação, concentrando-a toda na ficção da

264 SCHERR, Barry. Gor’kij´s Childhood: the autobiography as fiction. Slavic and East European Journal, v. 23, n. 3, 1979, p. 333.

208

verdade, exigindo, a cada novo momento, um comprometimento com uma nova abstração.

Apenas quando se consegue resgatar a metáfora originária, aceitando-a tal como ela é, que será

possível recuperar aquela “intuição” primeira, aquele impulso imaginativo, característico do

intelecto de Górki.

Como ficcionista, Górki devolveu ao homem russo a capacidade de acreditar, de

“ludibriar” a natureza do engodo de uma representação imposta à coletividade sob o nome de

“verdade”. Assim, sua escrita autobiográfica é uma atualização de um sujeito sempre em

evolução.

4.3 A GRAFIA DA VIDA: O LIVRO

Ame o livro. Ele tornará a sua vida mais fácil. Como um amigo, ele o ajudará a entender a confusão dos pensamentos, sentimentos e acontecimentos. Ele lhe ensinará a respeitar as pessoas e a si mesmo e acenderá no coração e na mente um sentimento de amor e paz para a humanidade 265 (GÓRKI).

Seriam corpos letrados realmente viajantes?266

O homem e a literatura há muito tempo estão ligados. Essa ligação é viceral, já que é

impossível definir um sem a colaboração do outro. Certa vez, Antônio Candido disse que não há

homem instruído ou analfabeto que possa viver sem a literatura, sem a fabulação. Imaginemos

que fosse possível passarmos apenas um dia, “vinte e quatro horas sem mergulhar no mundo da

ficção e da poesia” 267. Será que conseguiríamos ser, ao menos por esse dia, pessoas

265 Palavas de Górki retiradas do site http://nabrk.kz/ru/meropriyatiya/odnakniga. CITAÇÃO ORIGINAL: “To reconstruct the past, the autobiographer draws upon two kinds of material: some of it factual (dates, names of people, description of events), the rest inherently more subjective (the author´s personal reactions to events and people, the history of his inner development, the sensations and thoughts he recalls). But even the factual information is not always accurate. To the extent that the author relies on memory, his is liable to err when recalling specific dates or events. Both the factual and subjective material can be distorted, either consciously or subconsciously, by the writer´s very efforts to reconstruct the “I””. CITAÇÃO ORIGINAL: “Любите книгу, она облегчает вам жизнь, дружески поможет разобраться в пестрой и бурной путанице мыслей, чувств, событий, она научит вас уважать человека и самих себя, она окрыляет ум и сердце чувством любви к миру, к человечеству”. 266 Menção ao título do livro Corpos letrados, corpos viajantes, que tem como um de seus organizadores, Luiz Edmundo Bouças Coutinho, professor da cadeira de poética da Faculdade de Letras-UFRJ. 267 CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

209

completamente reais e concretas? Isso só seria possível se a literatura nos fosse apresentada

simultaneamente como satisfação e como necessidade.

Nesse mundo das letras, procuraremos atingir o objetivo da presente análise, que será

buscar, através das leituras assíduas de Aleksiei, uma senda que possa conceder o encaixe entre

homens e literatura, identificando uma conduta teórica que nos leve a descobrir porque essa

relação é tão institivamente estabelecida.

Partindo da postura do leitor, compreendemos o impacto que a arte exerce na vida, seja

ele de conforto ou de afronta. Inicialmente, a figura que lê é um receptor de primeira linha que se

dispõe completamente a ser parte integrante do “efeito estético” promovido pelos livros. Como

não há um efeito sem uma causa, nos ateremos novamente às contribuições iserianas diretamente

ligadas à vocação humana e por meio das quais desponta a literatura.

Se a literatura nasce de diversas categorias, não podemos deixar de considerar que ela se

constitui também de conjuntos: de fatos, de obras, de autores, de sentimentos, de ações, enfim,

ela se origina de tudo aquilo que pode ser agregado. A literatura é uma combinação de elementos

de vinculação à realidade natural ou social dos homens com elementos de manipulação técnica 268. Na trilogia gorkiana é possível que se entenda a literatura como uma transposição do real para

o ficional, que utiliza, além dos recursos técnicos, uma predisposição ao abstrato, ou seja, ela não

carece do concreto para desempenhar na vida humana alguma lógica e se vale de si mesma para

oferecer satisfações variadas para aqueles que a recepcionam.

Em Ganhando meu pão, descobrindo o fascínio da poesia e da prosa, Aleksiei se delicia

com o novo mundo que se descortina. Daí nasce uma relação de gratidão e préstimo, pois a

criação literária correspondeu de imadiato às necessidades de representação de mundo que ele

tinha. Ainda nos primeiros capítulos, notamos que a literatura está dentro da literatura e se

transforma em algo dialeticamente colocado, pois suscita uma visão do mundo real e ao mesmo

tempo dá a oportunidade de transcendência. Mesmo que a literatura se deixe construir sobre bases

pragmáticas, ela age em Górki como um truque ao despertar nele uma “revivescência”, dado que

“quanto mais escasso [for] o enxoval dos testemunhos, maior torna-se o prazer de conjecturar e,

antes que o tempo os desbote para sempre, [deve-se] colorir com fantasia a pobreza e as lacunas

dos documentos”269.

268 Conceito descrito no livro Literatura e sociedade. 269 RIPELINO, Angelo Maria. O truque e a alma. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 320.

210

O primeiro contato de Aleksiei com a literatura foi através dos livros santos que lhe eram

impostos por seu avô materno durante a aprendizagem da gramática russa. Entretanto, a primeira

vez que o menino abriu um livro por conta própria foi no convés de um navio. A vida já era dura

para um menino de dez anos e uma certa dose de “fingimento” era bem-vinda. Fingimento que se

configurava pelas obras que se apresentavam como um processo de convivência entre o texto e o

leitor, ambos envolvidos no ato de criação e na recriação das histórias. Para viajarmos nessa

ilusão, proponho que leiamos a tradução do conto “Um leitor”, de Górki, que transmite uma

consciência dos leitores ao reconhecerem a ilusão nas obras e não a criticam, pois sabem que

transitar pelo ilusório talvez “revele algo sobre nós” 270. A utilização desse conto, escrito em

1895, objetiva facilitar a compreensão da ação literária dentro da ficção. O conto revelará como

ocorre o início das relações ficcionais e reais entre leitor e literatura e levará uma meada à trilogia

e às atribuições autobiográficas.

Leiamos.

270 ISER, Wolfgang. Teoria da recepção. In: ROCHA, João Cezar de Castro (org). Teoria da ficção. Indagações à obra de Wolfgang Iser. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999, p. 65.

211

UM LEITOR

Era noite quando saí da casa de onde eu li um conto meu, já publicado, para pessoas

amigas. Por ele, recebi muitos elogios e, emocionado, fui caminhando vagarosamente pela rua deserta. Pela primeira vez na minha vida, senti intensamente a alegria de viver.

Isso aconteceu em fevereiro. A noite estava clara, o céu estava sem nuvens e coberto de estrelas. O frio se espalhava com energia pelo chão coberto com uma exuberante camada de neve que acabara de cair. Os galhos das árvores, debruçados sobre as cercas, jogavam em meu caminho caprichosos desenhos feitos pelas sombras. Os flocos de neve brilhavam alegremente à luz azulada e carinhosa da lua. Não havia nem um ser vivo em lugar algum e o ruído da neve sob os meus pés era o único som que rompia o silêncio imponente daquela noite memorável.

“Como é bom ser alguém na Terra, estar entre as pessoas!” E, sem qualquer economia de cores vivas, a imaginação pintou o meu futuro... – É, você escreveu uma coisinha linda! É verdade – pelas minhas costas, disse alguém

como que meditando. Eu me assustei com aquela coisa inesperada e virei para trás. Olhando-me de cima a

baixo, um homenzinho vestido de preto se aproximou de mim, sorrindo maliciosamente. Nele tudo era agudo: o olhar, as maçãs do rosto, o queixo com cavanhaque. Toda a sua figura pequena e seca saltava aos olhos pela sua profunda estranheza. Ele andava fácil e silenciosamente, como se deslizasse na neve. Eu não o havia visto no local onde eu li o meu conto e era compreensível que tivesse ficado surpreso com as palavras dele. De onde ele veio? Quem é ele?

– O senhor... também escutou? – perguntei. – Sim, eu tive o prazer. Ele falava com voz forte. Seus lábios eram finos, o bigode preto não escondia o sorriso

constante, o que me causou uma impressão desagradável. Eu senti que por trás daquele sorriso havia um pensamento cáustico e pouco lisonjeiro em relação a mim. Mas eu estava de muito bom humor para prestar atenção àquelas características do meu companheiro, que, tendo surgido como uma sombra perante meus olhos, logo desapareceu diante do meu contentamento pessoal.

Eu andava ao seu lado, aguardando o que ele iria dizer, esperando secretamente que ele esticasse os momentos agradáveis que vivenciei naquela noite. O ser humano é ganancioso, pois a sorte raramente lhe sorri.

– É bom sentir-se excepcional? – perguntou ele. Eu não vi nada de mais na pergunta e me apressei em concordar com ele. – He, he, he! – de forma cínica e tensa ele riu, esfregando as mãos de dedos finos como

garras. – O senhor é um homem alegre – disse eu friamente, ofendido com a risada. – Sim, eu sou uma pessoa alegre – concordou ele sorrindo, e balançou a cabeça. – Além

disso, sou muito curioso... Eu sempre quero saber de tudo, este é o meu maior desejo. Isso é o que me dá ânimo. Por exemplo, agora, eu quero saber: quanto custa o seu sucesso?

Eu olhei para ele e respondi a contragosto: – Cerca de um mês de trabalho. Talvez um pouco mais... – Aha! – ele prosseguiu animadamente. – Um pouquinho de trabalho, seguido de uma

partícula de experiência de vida, que é algo que sempre vale alguma coisa. Mas isso não é caro, quando por esse preço o senhor adquire a consciência, de que num dado momento, alguns milhares de pessoas compartilham do seu pensamento lendo o seu trabalho. Mais tarde,

212

adquirem-se esperanças de que com o tempo... he, he, he! E quando o senhor morrer... he, he, he!... Por tudo isso, pode-se oferecer mais um pouco do que o senhor nos deu, não é verdade?

Olhando para mim com afiados e maliciosos olhos negros, ele deu mais uma risada ferina. Eu olhei para ele de cima para baixo e perguntei em tom frio e ofendido:

– Desculpe, com quem tenho o prazer de conversar? – Quem sou eu? O senhor não adivinha? Eu ainda não vou lhe dizer quem sou. Por acaso

conhecer o nome de uma pessoa para o senhor é mais importante do que saber o que ela tem a dizer?

– É claro que não... Mas tudo isso é muito estranho – respondi. O companheiro me segurou pela manga do casaco, riu baixinho e disse: – Que seja estranho. E por que não às vezes se permitir sair da trivialidade, do

ordinário? E se o senhor não se importa, falemos francamente. Imagine que eu seja um leitor. Por exemplo, um certo leitor que seja muito curioso e que deseje saber para que e como se faz um livro. Vamos conversar.

– Oh, como não! – disse eu. ... Agradam-me os encontros e as conversas que não podemos ter todos os dias.

Eu já estava mentindo para ele, pois tudo aquilo estava se tornando desagradável. Pensei: “O que ele quer? E por que razão eu me permito dar a esse encontro com um desconhecido, na rua, um caráter de disputa? No entanto, eu ainda caminhava vagarosamente ao lado dele, tentando expressar no meu rosto alguma atenção para com o meu companheiro. Eu lembro do quão difícil isso foi para mim. Mas, mesmo assim, eu ainda estava de bom humor e não queria ofender o homem, recusando-me a falar com ele e, então, decidi tomar mais cuidado com o que falava.

Atrás de nós, a lua brilhava no céu e nossas sombras estendiam-se sob nossos pés. Fundidas numa mancha escura, elas se arrastavam pela neve à nossa frente. Eu olhava para elas e sentia dentro de mim um surgimento de algo tal, que, como essas sombras, era escuro e imperceptível, mas que também estava a minha frente.

O meu companheiro ficou em silêncio por um tempo e depois falou em tom confiante de quem é dono de seus pensamentos:

– Não há nada mais importante e curioso na vida do que os motivos das ações humanas, não é verdade?

Eu balancei a cabeça. – Você concordou! Então, vamos falar com sinceridade. Não perca a oportunidade de

falar francamente enquanto você ainda é jovem! “Que homem estranho!” – pensei, e, interessado em suas palavras, perguntei -he

sorrindo: – Mas sobre o que vamos falar? Ele me olhou nos olhos com a familiaridade de um velho amigo e exclamou: – Vamos falar sobre os propósitos da literatura! – Pode ser... Mas me parece que já está ficando tarde. – Oh, ainda não é tarde para você!... Surpreso, eu fiquei paralisado diante dessas palavras. Ele havia falado com tanta

seriedade que tudo soou como uma alegoria. Eu parei, desejando perguntar-lhe alguma coisa, porém ele pegou-me pelo braço e me conduziu à frente, devagar, mas insistentemente, e disse:

– Não pare, pois, comigo, você está num bom caminho... Diga, o que a literatura quer? Você está a seu serviço e deve saber disso.

213

Meu espanto aumentava em detrimento do meu autocontrole. - O que esse homem quer? Quem é esse homem?

– Ouça – disse eu –, concorde que tudo o que aconteceu conosco... – Tem bastante fundamento, acredite! Na verdade, nada no mundo é feito sem uma razão

suficiente... Vamos nos apressar, mas não nos adiantando, e sim nos aprofundando. Sem dúvida, esse esquisitão era interessante, porém ele me irritava. Novamente, fiz um

movimento impaciente para frente. O homem me observava e me disse calmamente: – Eu entendo que neste momento seja difícil para o senhor definir os objetivos da

literatura. Vou tentar fazer isso... Ele suspirou e com um sorriso, me olhou nos olhos. – Você concorda comigo se eu disser que o objetivo da literatura é ajudar o homem a

entender a si mesmo? Elevar a sua autoconfiança, desenvolver nele o desejo pela verdade e de luta contra a vulgaridade dos seres humanos, encontrar o que ele tem de bom, despertar nele a vergonha, o brio e a coragem, fazer o possível para garantir que as pessoas se tornem fortes e nobres e que elas possam inspirar as suas vidas no espírito sagrado da beleza. Esta é a minha fórmula; ela, obviamente, está incompleta, esquemática. Complete-a com tudo o que possa inspirar a vida e me diga: – Você concorda comigo?

– Sim, é isso!... – eu disse. – É mais ou menos isso. Costuma-ser pensar que, em geral, a tarefa da literatura é enobrecer o homem...

– Está vendo a que grande causa você se dedica! – disse o homem de forma persuasiva, e novamente deu uma risada irônica: – He, he, he!

– Por que você está dizendo isso? - perguntei, fingindo que a risada dele não havia me magoado.

– O que você acha? – Falando francamente... – comecei, procurando uma maneira de feri-lo, mas me calei. O

que significa falar francamente? Esse homem não é um tolo e deve saber como são tênues os limites da sinceridade humana e como o amor-próprio os protege com tanta firmeza. Olhando para o rosto do meu companheiro, eu me senti profundamente ofendido com o seu sorriso. Nele havia muita ironia e desprezo! Percebi que estava começando a sentir medo de alguma coisa e isso me obrigou a me afastar dele.

– Adeus! Eu disse de maneira seca, levantando o chapéu. – Por quê? – ele retrucou em voz baixa. – Eu não gosto de piadas que não tenham senso de medida. – Já vai? ... Isso é problema seu. Mas saiba que se o senhor for embora nunca mais nos

encontraremos. Ele enfatizou a palavra “nunca” e ela soou em meus ouvidos como a badalada fúnebre

de um sino. Eu odeio essa palavra: ela sempre me lembra algo duro e frio semelhante a um martelo que se destina a destruir as esperanças das pessoas. Essa palavra me fez parar.

– Do que o senhor precisa? Perguntei com angústia e raiva. – Vamos nos sentar aqui. Disse ele sorrindo mais uma vez. E, de maneira firme, me puxou

pela mão. Nesse momento, estávamos na alameda do jardim da cidade em meio a imóveis e

congelados cachos de acácias lilases. Sobre a minha cabeça, pairava o luar e eu tive a impressão que aqueles cachos rijos, cobertos pela geada, penetraram em meu peito e tocaram o meu coração.

Perplexo e confuso com a extravagância do meu companheiro, olhei para ele e me calei.

214

“Esse indivíduo é doente” – pensei, pretendendo me encorajar e explicar a mim mesmo as atitudes dele. Mas, de alguma forma, ele adivinhou o meu pensamento.

– O senhor acha que eu sou louco? Deixe disso! Mas que maneira ruim e nociva de pensar! Encobrindo-nos com ela, com frequência nos recusamos a compreender uma pessoa só porque ela é mais original do que nós. E como esse pensamento resolutamente sustenta e acentua o triste desdém nas relações que temos uns com os outros!

– Oh, sim – disse eu, me sentindo cada vez mais envergonhado diante daquele homem. Mas, me desculpe, eu já vou indo. Já está na minha hora.

– Vá! - disse ele, encolhendo os ombros. Vá! Mas saiba que você está se apressando em se perder...

Meu companheiro soltou a minha mão e eu me afastei. Ele permaneceu no jardim da colina que vai até o Volga, coberta com um manto branco de neve e entrecortada por trilhas escuras. Na frente dele, se abria ampla vista da silenciosa e triste planície, do outro lado do rio. Aquele homem ficou no jardim, se sentou em um dos bancos, começou a olhar para o horizonte e eu andei ao longo da alameda, sentindo que não conseguiria deixá-lo. Mas continuei andando. Eu andava e pensava “Devo andar devagar ou rápido para mostrar ao homem que estava lá sentado o pouco que ele significava para mim”.

Ele assobiava baixinho algo familiar. Eu conhecia aquela canção engraçada e triste sobre um cego que assumiu o papel de liderança entre os demais cegos. Mas por que ele está assobiando essa canção? - pensei.

Ali eu percebi que a partir do momento que encontrei aquele homenzinho, eu havia entrado para o círculo duvidoso das sensações excepcionais e estranhas. O meu humor recente, tranquilo e satisfeito, se envolveu em uma névoa de expectativa de algo importante e penoso:

Como você pode ser um líder se não conhece o caminho? – lembrei-me da letra da canção que o homem assobiava.

Eu me virei e olhei para ele. Apoiando um cotovelo no colo e amparando a cabeça com uma das mãos, ele olhava para mim e assobiava. O bigode dele se mexia iluminado pela luz da lua. Eu decidi voltar, movido por um sentimento fatídico. Rapidamente andei até ele, me sentei ao seu lado e lhe disse sem me perturbar, porém com vivacidade.

– Ouça, vamos falar com simplicidade... – Isso é indispensável para as pessoas. – Disse ele, assentindo com a cabeça. – Eu sinto que você exerce uma influência sobre mim e, obviamente, tem algo a me dizer,

não? – Finalmente, você teve coragem para ouvir! – disse ele, dando uma risada, que agora

era mais suave e até parecida com a alegria que eu pude perceber nela. – Então fale! - disse eu. – E se puder, fale sem estranhezas... – Oh, está bem! Mas o senhor admite que as excentricidades foram necessárias para

atrair a sua atenção para mim? Agora, a atenção para com as coisas simples e compreensíveis está se embotando como se elas fossem frias e duras em demasia, mas nós não sabemos como aquecê-las e amaciá-las – nós mesmos estamos frios e duros.

Parece-me que queremos sonhar novamente com lindos devaneios, com quimeras e com coisas estranhas, pois a vida criada por nós em cores pobres é monótona e sem graça. A realidade é que nós um dia quisemos construir ardentemente algo que se quebrou e nos destruiu... O que fazer, então? Talvez devamos fazer com que a ficção e a imaginação ajudem o homem a se elevar para além da Terra, a fim de reencontrar nela o espaço uma vez perdido, não é mesmo? Afinal, o homem já não é mais o rei da Terra, é escravo da vida. Curvando-se diante dos fatos, ele perdeu o orgulho de sua primazia, não é? Através dos fatos estabelecidos

215

pela vida, o homem conclui e diz para si: “Eis uma lei imutável!” E, obedecendo a ela, ele não percebe que impõe a si mesmo um obstáculo para uma vida livre e criativa onde haja a luta pelo direito de transcender, de criar. Mas o homem não luta mais, ele se adapta... Por que deveria lutar? Onde estão os ideais que o levariam a realizar façanhas? É por isso que a vida é tão pobre e chata e é por isso que se esgotou a criatividade do espírito humano. Algumas pessoas estão cegamente à procura de algo que inspire a mente, que restaure a fé do povo em si mesmo. Frequentemente, elas não rumam em direção ao que é eterno, ao que une as pessoas, ao que leva a Deus. Quem desviar do caminho da verdade estará perdido! Como se trata de muita gente, não precisamos incomodá-las e nem ter pena delas. O mais importante é o desejo da alma em encontrar Deus e, se na vida existem almas envoltas pela vontade de chegar a Deus. Ele estará com elas e as revigorará, pois a busca pela perfeição é interminável, não é mesmo?

– Sim, é assim mesmo – disse eu. – No entanto, você sabe se conformar. – Disse o meu companheiro, rindo de forma ferina.

Depois, olhando ao longe, ele fez uma pausa. Pareceu-me que ele se calou por muito tempo e eu suspirei impacientemente. Ele então me fez uma pergunta vaga:

– Quem é o seu Deus? Antes de fazer essa pergunta, ele falava suavemente e eu tinha prazer em ouvi-lo. Como

todas as pessoas pensantes, ele estava um pouco triste. Era-me próximo, eu o compreendia e o meu desconforto desaparecia. Eis que de repente ele fez uma pergunta de difícil resposta para um homem do nosso tempo que fosse honesto consigo mesmo. – Quem é o meu Deus? Se eu soubesse!

Fiquei impressionado com a questão e, diante disso, quem no meu lugar manteria a presença de espírito? Ele me olhava com seus olhos afiados, sorria e esperava pela minha resposta.

– Você se cala em demasia para uma pessoa que poderia me dar uma resposta. Talvez você me responda algo se eu lhe fizer mais duas perguntas: O que você prega exatamente quando escreve e milhares de pessoas lêem seu trabalho? E já pensou sobre o seu direito de ensina?

Pela primeira vez, eu olhei atentamente para dentro de mim. Que ninguém pense que eu me louvo ou me rebaixo para atrair a atenção das pessoas. A mendigos não se pede esmolas. Eu descobri em mim inúmeros bons sentimentos, bons desejos e tudo aquilo que chamam de bom, mas o sentimento que une tudo isso, o pensamento que abrange todos os fenômenos da vida, eu não encontrei em mim. Em minha alma há um ódio constante e latente e, às vezes, saltam dela faíscas de raiva. Mas há em minha alma mais dúvidas. Às vezes elas agitam minha mente e oprimem o meu coração de tal maneira que, por muito tempo, me fazem conviver com um vazio interior. Nada me anima na vida, o meu coração fica congelado, morto, a mente fica adormecida e a imaginação, esmagada pelos pesadelos. E assim, cego, surdo e mudo eu vivo muitos dias e noites, sem desejar nada, sem compreender nada. Nessas ocasiões, penso que já sou um cadáver e apenas por um estranho equívoco ainda não fui enterrado. A consciência do horror de uma existência é maior com a consciência da necessidade de viver, pois na morte, há menos sentido e mais obscuridade. Provavelmente, ela nos tira até mesmo o prazer de odiar.

O que então eu realmente prego, sendo como eu sou? O que eu posso dizer às pessoas? O que já foi e o que sempre é dito para o público, e sempre encontra ouvintes, mas não

faz dele pessoas melhores? Será que eu tenho o direito de propagar essas ideias e conceitos sob os quais fui criado, se eu mesmo, por muitas vezes, não os aceitei como mandamentos? Será que se eu os contradisser, significa que a crença na verdade deles é mais sincera do que a minha

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crença baseada no meu “eu”?... O que devo responder àquele homem que estava sentado ao meu lado? Ele já estava cansado de esperar pela minha resposta e falou novamente:

– Eu não colocaria essas questões para você se eu não soubesse que a sua ambição ainda não destruiu a sua honra. Você tem a coragem para me ouvir e, a partir disso, concluo que o seu amor próprio é racional e, para aumentá-lo, você não foge nem do suplício. Para isso, eu amenizarei a sua posição diante de mim e falarei com você como um acusado e não como um criminoso.

– …Houve um tempo em que entre nós viviam grandes mestres do discurso, finos conhecedores da vida e da alma humana, pessoas que se inspiraram em um esforço indomável de alcançar a perfeição da existência, conduzidas pela profunda fé no homem. Eles criaram livros que nunca cairão no esquecimento, pois mostram as eternas verdades e a beleza indestrutível que emanam de suas páginas. As imagens descritas são vivas e ganham alma através da força da inspiração. Nesses livros há tanto a coragem quanto uma raiva fumegante. Neles, o amor é sincero e livre e não há sequer uma palavra supérflua. É de lá, eu sei, que você começa a alimentar a sua alma... mas você deve alimentar mal a sua alma, pois o seu discurso sobre a verdade e o amor soa falso e hipócrita, como se você se forçasse a falar sobre eles. Você é como a lua, emite uma luz que não lhe pertence, a sua luz é triste e opaca, gera muitas sombras, ilumina sem força e não aquece ninguém. Você é um indigente para dar às pessoas algo realmente valioso. Você o faz não pelo deleite supremo de enriquecer a vida com a beleza do pensamento e da palavra, e sim muito mais a fim de elevar um fato casual de sua existência à escala de fenômeno necessário às pessoas. Você é um indigente ao dar presentes, é somente um agiota que oferece um grão de sua experiência em troca de uma porcentagem de atenção. A sua pena arranha a realidade de maneira frouxa, remexe lentamente as miudezas da vida. Escrevendo os sentimentos corriqueiros das pessoas comuns, talvez você desvende algumas pequenas verdades de suas mentes, mas será que você poderia criar para elas uma pequena ilusão que eleve suas almas? ... Não! Você tem certeza de que isso lhe é útil – remexer no lixo corriqueiro e não ser capaz de encontrar nele nada além de tristezas, pequenas verdades que somente estabelecem que o homem é mau, estúpido, desonesto e que ele depende inteiramente e para sempre de uma massa de condições externas, que ele é impotente e desgraçado, sozinho e entregue a própria sorte? Sabe, talvez já o tenham convencido disso, pois a sua alma está fria e a inteligência obtusa. E não é para menos! Ele olha para sua imagem nos livros, e eles – principalmente os livros escritos com astúcia, frequentemente confundida com o talento, – sempre hipnotizam algumas pessoas. Ele olha para si na imagem de vocês e, vendo como ele é estúpido, não enxerga nenhum meio de se melhorar. Será que você pode fazer isso, quando você mesmo... mas eu vou poupá-lo porque, me ouvindo, eu sinto que você não pensa num meio de me contestar e de se justificar. Você sabe como mostrar a ele essa possibilidade?

É isso, pois o professor, se ele for honesto, deve ser sempre um aluno atento. Todos vocês, atuais mestres da vida, tiram muito mais das pessoas do que lhes dão... , pois vocês vêem e falam apenas dos defeitos. Mas um homem deve ter dignidade; você a tem? E o que o diferencia de uma dezena de pessoas cinzentas que você descreve tão cruel e rigorosamente, julgando-se o denunciante das falhas em prol do triunfo da virtude? Mas será que você percebe que as virtudes e os defeitos, devido aos seus esforços para defini-los estão apenas misturados como fios brancos e pretos de dois novelos que, pela proximidade, tornaram-se cinzas. Deus o enviaria à Terra... Ele escolheria pessoas mais fortes do que o senhor… Ele iluminaria o coração delas com a paixão pela vida, pela verdade, pelas pessoas e, como uma luz, Ele flamejaria nas trevas de nossa vida como faróis de sua força e sua glória. Você exala o

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cheiro das tochas do Diabo e essa fumaça, penetrando nas mentes e nas almas, as envenenam com o fel da incredulidade. Diga-me, o que você ensina?

Eu sentia no rosto o bafejo quente daquele homem e, com medo de encontrar o seu olhar, não o encarei. As suas palavras caíram em minha mente como fagulhas que me causavam dor. Eu entendia horrorizado o quanto era difícil responder a simples perguntas... e não respondi nada.

– Então. Eu sou um ávido leitor de tudo o que o senhor escreve e de tudo o que escrevem outros semelhantes a você e pergunto: Para que o senhor escreve? O senhor escreve muito... Quer despertar bons sentimentos nos corações das pessoas? Mas usando palavras frias e sem vida, não conseguirá, não! E o senhor não só não pode dar à vida algo de novo, como também o velho o senhor oferece numa imagem velha, enrugada e amassada. Lendo-o, uma pessoa não aprende nada e não se envergonha de nada, a não ser do senhor. Tudo é comum, comum. Pessoas comuns, pensamentos comuns, acontecimentos... Quando falarão sobre o espírito perturbado e da necessidade de reanimá-lo? Onde está o apelo à criação da vida, onde estão as lições de coragem e as palavras estimulantes que inspiram a alma?

– Você pode me dizer: a vida não fornece outra imagem exceto aquelas que nós reproduzimos. Não fale assim, pois para um homem que possui o dom da palavra, confessar a sua impotência diante da vida e constatar que ele não pode se levantar é algo vergonhoso e lamentável. E se você está no mesmo nível da vida, se não pode criar, pela força da imaginação, imagens que não estão na vida, mas que são necessárias para a sua construção, qual é o propósito do seu trabalho? E como você justifica a sua profissão? Pense. Você não prejudica as pessoas quando sobrecarrega a memória e a atenção delas com o lixo fotográfico de suas vidas vazias? Pois – Reconheça! – você não sabe descrever de que modo o retrato da sua vida provoca no homem uma vergonha vingativa e um desejo pungente de criar outras formas de viver... Você pode acelerar o pulso da vida e introduzir energia nela como outros fizeram?

O meu estranho companheiro parou por um minuto e eu fiquei em silêncio pensando em suas palavras.

– Eu vejo ao meu redor muitas pessoas inteligentes, porém, entre elas, há poucas pessoas nobres e, mesmo aquelas que são, possuem uma alma arruinada e doente. E, por alguma razão, o que eu vejo é isto: quanto melhor o homem, mais pura e honesta é a sua alma. Quanto menor é a energia da alma, mais dolorosa e pesada é a sua vida. A solidão e a tristeza são a sina de tais pessoas. Por mais que eles tenham anseio de uma coisa melhor – eles não têm força para criá-la. Será que eles estão tão arruinados e miseráveis porque não lhes foi dado no tempo certo o auxílio de uma palavra que dê alento à alma?

–... E ainda – continuou meu estranho companheiro - você é capaz de suscitar numa pessoa uma risada alegre que purifique a alma? Veja, as pessoas se esqueceram completamente de como é bom dar uma boa risada. Elas riem com malícia, com mesquinhez e frequentemente riem através das lágrimas, mas você nunca ouvirá deles um riso alegre, sincero, aquele riso que deveria vibrar dentro do peito dos adultos, pois uma risada cura a alma... Para o homem, rir é indispensável, pois o riso é uma das poucas vantagens que ele tem sobre os animais. Será que você consegue provocar nas pessoas algum tipo de riso que não seja um riso de censura, um riso vulgar que zomba de você, um homem que só é engraçado porque é patético? Entenda, o seu direito de pregar deve ter base suficiente na sua capacidade de suscitar sentimentos sinceros nas pessoas, com os quais, como com martelos, elas deverão destruir algumas formas de vida para que outras sejam criadas, mais livres, no lugar das mais acanhadas. Raiva, ódio, valentia, vergonha, revolta e, finalmente, o desespero, são alavancas que podem destruir tudo na Terra.

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Você pode criar essas alavancas? Você pode colocá-las em movimento? Para ter o direito de falar às pessoas, você precisa ter na alma ou um grande ódio por suas falhas ou um grande amor por seu sofrimento. Se não houver em sua alma esses sentimentos, seja humilde e pense muito bem antes de dizer qualquer coisa...

O dia já estava clareando, mas a minha alma se afundava cada vez mais na escuridão. Mas o homem, para quem não havia segredos na minha alma, continuava falando e, às vezes, me vinha o pensamento:

“Ele é mesmo uma pessoa?” Porém, absorto pelas palavras, eu não podia pensar nesse mistério e novamente as

palavras dele perfuravam minha mente como agulhas. – Não obstante, a vida avança em amplitude e profundidade, embora avance lentamente,

pois você não tem a força e a capacidade de acelerar o movimento dela. A vida se desenvolve e, a cada dia, as pessoas aprendem a questionar. Quem vai lhes dar a resposta? Deveriam ser vocês, apóstolos impostores. Mas vocês entendem suficientemente a vida para explicá-la aos outros? Vocês compreendem as demandas de seu tempo e prevêem o futuro? E o que você pode dizer para despertar o homem, corrompido pela torpeza da vida e caído em desânimo? Ele está desanimado, seu interesse pela vida e a vontade viver com dignidade exaurem-se. Ele só quer viver como um porco e – você ouve? Ele já ri descaradamente quando se pronuncia a palavra “ideal”: o homem se transforma numa pilha de ossos cobertos de carne e pele grossa – esse desagradável amontoado não é movido pelo espírito, mas sim pela luxúria. Ele requer atenção – e rápido! Ajude-o a viver, enquanto ele ainda é um homem! Mas o que vocês podem fazer para estimular nele a sede de viver, apenas se lamentam, gemem ou descrevem com indiferença o seu apodrecimento? Sobre a vida, paira o cheiro da decadência; a covardia e a subserviência impregnam o coração, a preguiça amarra as mentes e as mãos com grilhões macios... O que vocês trazem para esse caos abominável? Como vocês todos são pequenos e patéticos! E vocês são muitos! Ah, se eu fosse um homem severo e amoroso com um coração impetuoso e uma mente poderosa e abrangente! No sufocamento do vergonhoso silêncio ressoariam sábias palavras que, como as badaladas de um sino, talvez estremecessem as desprezíveis almas dos mortos-vivos...

Depois dessas palavras, ele ficou em silêncio por muito tempo e eu não olhei para ele. Não me lembro mais se havia em mim mais vergonha ou mais horror.

– O que você pode me dizer? Perguntou desinteressado. – Nada! – respondi. Novamente houve um silêncio. – Como você vai viver agora? – Não sei! - respondi. – O que você vai falar? Eu me calei. – Não há sabedoria mais alta que o silêncio!... Dolorosa foi a pausa entre as palavras dele e a risada que veio depois. Com prazer, ele

riu como um homem que há muito tempo não ria tão fácil e agradavelmente. O meu coração sangrava por causa dessa risada detestável

– He-he-he! E este é você – um professor da vida? Você que é facilmente confundido. Agora eu acho que você já sabe quem eu sou, não? He, he, he. Cada um de vocês, rapazes que já nasceram velhos, se confundiriam se quisesse ter algum assunto a tratar comigo. Só quem vestiu a armadura da mentira, do descaramento e do cinismo, não vacilará perante o tribunal

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de sua própria consciência. Veja só como você é forte: um empurrãozinho – e você cai. Diga-me algo em sua defesa, algo que refute o que eu disse! Liberte o seu coração da vergonha e da dor. Nem que seja por um minuto, seja forte e confiante, eu retirarei o que disse na sua cara. Eu me inclinarei perante você... Mostre que em seu coração há algo que me ajude a reconhecer em você um professor. Eu preciso de um professor porque sou um homem. Eu me desviei na escuridão da vida e procuro a saída para a luz, para a verdade, para a beleza e para uma nova vida. Mostre-me o caminho! Eu sou um homem – me abomine, me bata, mas me tire do lodo da minha indiferença pela vida! Eu quero ser melhor do que sou - como fazer isso? Ensine-me!

Eu pensava: será que eu consigo satisfazer as exigências que o homem tem o direto de me apresentar? A vida se esvai e cada vez mais, as mentes das pessoas estão cada vez mais envoltas na escuridão da dúvida e precisam encontrar logo uma solução. Onde está o caminho? De uma coisa eu sei – não precisamos buscar a felicidade. Para que felicidade? Não é na felicidade que está o sentido da vida e o homem não se satisfará com o prazer pessoal: apesar de tudo, ele é superior a isso. O sentido da vida está na beleza e na força com que se perseguem metas. E é preciso que a vida tenha um objetivo elevado. Isso seria possível – mas não na vida antiga em que todos estão apertados e onde não há liberdade para o espírito.

E ele novamente riu, mas desta vez baixinho, o riso de um homem cujo coração estava consumido por pensamentos.

– Quantas pessoas passaram pela Terra, mas poucos monumentos foram erguidos para elas. E por quê? Vamos amaldiçoar o passado – Ele desperta inveja demais, pois no presente não há pessoas que deixem após sua morte um vestígio de sua passagem sobre a Terra. O homem está dormitando e se transformando num animal. Ele precisa de um açoite e de um carinho ardoroso de amor depois da chicotada. Não tenha medo de lhe causar dor: se você lhe bate com amor, ele entenderá o seu golpe e o aceitará como algo merecido. E quando ele sentir dor e vergonha de si mesmo, acaricie-o calorosamente – e ele renascerá... Homens? Todos ainda são crianças, embora, às vezes surpreendam com a crueldade de suas ações e deturpação de suas mentes. E eles necessitam sempre de amor, de constante preocupação para que lhes seja dado sempre alimento fresco e saudável a sua alma. Você sabe amar as pessoas?

– Amar as pessoas? – perguntei em dúvida, pois de fato não sei se amo as pessoas. É necessário ser sincero – eu não sei a resposta. Quem poderá afirmar: eu amo as pessoas! A pessoa fizer uma autoanálise atenta pensará muito nessa pergunta antes de decidir responder: eu amo. Todos sabem como está distante de cada um de nós o nosso próximo.

– Está calado? Não importa, eu o entendo mesmo calado... Já estou indo... – Já? – perguntei baixinho, pois, por mais amendontrador que ele tenha sido para mim,

eu era ainda mais amendontrador para mim mesmo... – Sim, estou indo...virei procurá-lo algumas vezes. Espere! E ele se foi. Não percebi quando ele se foi. Ele saiu rápido e silencioso, como desaparecem as

sombras... Quanto a mim, fiquei ainda muito tempo sentado no banco do jardim sem sentir o frio que fazia e sem notar que o sol já havia surgido com seus raios brilhando claramente nos galhos das árvores cobertos de gelo. Eu achava estranho ver esse dia claro e o sol brilhando indiferente, como sempre fez, e essa terra cansada vestida com um manto de neve que cegava com seu brilho os raios de sol...

M. Górki 271

271 GÓRKI, M. Sobrânie sotchinenii. Tom 5. Moscou: Gossudarstvennoie izdatiel’stvo khudojestvennoi litieraturi. 1962, p. 244. Grifo meu.

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O conto Um leitor fará a vez de preâmbulo de um assunto que é básico para um

questionamento literário, quando se leva em conta a figura para a qual a literatura se dedica: o

leitor.

– Será mesmo que a literatura é necessária?

Se a literatura é impressindível para o ser humano, ela deve também ser tratada como um

bem durável, dado que a necessidade de ficcionalização se espalha por todos os braços de uma

sociedade, cuja função

(...) está ligada à complexidade de sua natureza, que explica inclusive o seu papel contraditório mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão de mundo dos indivíduos e dos grupos; ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente272.

Se algo nos faz falta, é compreensível que façamos um trabalho para preencher esses

vazios das nossas “realidades”. Lacunas que seriam pontos cegos de uma existência se elas não

representassem o entrosamento entre texto e leitor. As duas extremidades dessa relação estão

igualmente envolvidas no ato criativo quando se dá o ato da leitura. Dessa maneira, o autor não se

esconde de sua ficcionalidade e permite que o leitor “escolha” se aquilo sobre o que a obra fala é

ilusão ou não. No entanto, essa consciência não gera desconfiança, pois, nós, leitores, temos

apreço às experiências ilusórias porque isso talvez faça algum sentido em nosso íntimo.

Pelas instâncias - autor, texto e leitor - perpassam de forma simultânea categorias como o

real, o imaginário e o fictício que, juntas, conferem comunicabilidade à literatura. É a partir dessa

tríplice aliança que a comunicação é medida, já que a compreensão da obra não conserva sentido

recluso em si, pois há sempre quem cumpra o ofício de dar significado a ela. Ao tratarmos de

autobiografias, a ficção é o nome do jogo e a sua dinâmica está diretamente ligada à simbiose

entre aquilo que é criado pelo autor (o fictício) e o que é espontâneo (o imaginário). Ambos os

conceitos se conectam as disposições humanas de onde se pode entender o caminho da auto-

interpretação levada a cabo pelo processo literário. A trilogia gorkiana, especialmente o segundo

272 Trecho retirado do site do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, USP: http://dtllc.fflch.usp.br, em janeiro de 2011.

221

volume, se porta como um canal que nos ajudará a compreender porque a ficcionalização é

indispensável para o ser humano e porque a literatura diz tanto a respeito de nós mesmos.

Depois de ter exercido alguns ofícios como padeiro, vendedor e tintureiro, Aleksiei

continua sua viagem pela vida, desta vez, com um passaporte nas mãos conseguido por sua avó

junto a uma delegacia do trabalho. O embarque era em um navio que, pelo rio Volga, fazia o

translado de pessoas humildes, presidiários e materiais dos mais variados tipos. A Aleksiei foi

oferecido um salário de dois rublos mensais para que ocupasse a posição de lavador de pratos,

proposta que o animou. Entregue pela avó materna ao gerente da embarcação, o menino foi

imediatamente apresentado ao cozinheiro, que estava sentado à mesa, na popa do navio.

– O lavador de pratos. Afastou-se [o gerente] no mesmo instante e o cozinheiro fungou, eiriçou os

bigodes negros e disse: – Vocês contratam o primeiro diabo que aparece, contanto que seja mais

barato... Sacudiu zangado a cabeçorra, de cabelos negros, inflou com o esforço as

bochechas e gritou com voz sonora: – Quem é você? (...) (...) – Coma! Tem pai e mãe? Sabe roubar? Ora, não tenha medo, aqui todos

são ladrões, vão acabar ensinando! (...) As pessoas do nosso navio são peculiares; todas elas, velhos e moços,

homens e mulheres, me pareciam iguais. (...) De manhã à noite eles, bebem, comem e sujam uma infinidade de pratos e talheres; meu trabalho consiste em lavar os pratos e limpar os garfos e facas, me ocupo disso das seis da manhã até quase meia-noite (GÓRKI, 2007b, p. 118).

Smúri era o nome do cozinheiro que acolheu o menino e, de sua maneira, tentou protegê-

lo da influência nociva que poderia receber com a convivência com os marujos. Um dia, após

desaprovar uma conversa de tom libidinoso, Smúri se revolta e tem uma atitude que mudou para

sempre a visão que Aleksiei tinha da vida.

– Piechkóv, fora daqui! Chegando ao seu camarote, enfia nas minhas mãos um livro de capa de couro e

deita em seu beliche, encostado à geladeira. – Leia! (GÓRKI, 2007b, p. 121)

Aleksiei começa a ler em voz alta o livro indicado, mas aos poucos percebe o livro não o

agradava, para de ler, mas logo continua, obrigado pelo cozinheiro. Quando o homem se dá conta

que o livro também não era de seu gosto, diz ao menino:

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– Apanhe outro... Para a minha desgraça, em seu baú preto, rodeado de ferros, há muitos livros:

Os preceitos de Omir, Memórias da artilharia, Cartas do Lorde Sedengali, Sobre o percevejo, inseto nocivo, e a sua destruição, seguido de conselhos contra outros insetos que o acompanhavam; havia livros sem começo nem fim. Às vezes, o cozinheiro me obrigava a remexer em todos e dizer os títulos para ele; eu lia enquanto ele resmungava zangado:

– Como escrevem, os pilantras... Parece até que dão na cara da gente, sem saber por quê. Guervássi! E para que preciso desse Guervássi? Umbráculo...

As palavras estranhas, os nomes desconhecidos, penetravam insistentemente na memória, faziam cócegas na língua, vinha uma vontade de repeti-los a todo instante: Talvez o sentido aparecesse por meio daqueles sons? (...)

Um dia perguntei para ele: – Por que o senhor cozinha, e outros matam e roubam? – Eu não cozinho, mas preparo comida. Quem cozinha são as mulheres. – disse,

sorrindo depois de pensar um pouco, acrescentou: - A diferença entre as pessoas é a estupidez. Um é inteligente, outro menos, um terceiro é imbecil de vez. E, para ficar mais inteligente, é preciso ler os livros certos, magia negra e... que mais? É preciso ler todos os livros, então se conseguirá encontrar os certos...

Ele me aconselhava constantemente: – Você deve ler! Se não compreender um livro, leia-o sete vezes; se ainda não

compreender, leia doze vezes... (GÓRKI, 2007b, p. 123)”

Esse encontro profetizou o que estava por vir: a transformação do menino em leitor

compulsivo e, posteriormente, em escritor (no plano real).

Aleksiei começou a perceber que o que estava escrito nos livros era um mundo de

possibilidades abertas diante dos olhos. Eram probabilidades obtusas, de certo, opostas à

realidade concreta e, para alcançá-las, era preciso imaginar e fazer do imaginário um interruptor

da recriação de suas realidades. Ao ter o primeiro contato com a literatura, Aleksiei se convenceu

de que havia muitos livros a serem desbravados e que demandavam dele um esforço máximo.

Em Ganhando meu pão, Górki previlegia em Aleksiei a experiência da leitura como uma

maneira de elevar a consciência ativamente. Nessa proposta de novas descobertas, Górki faz com

que sua obra tenha duplo efeito; concede ao menino a sensação libertadora e nos concede uma

maior participação em seu texto, nos dando a possibilidade de concretizar a obra por meio de

várias interpretações individuais. Trata-se de uma “generosidade limitada”, pois tanto Aleksiei

quanto os leitores, devem construir o texto de modo a torná-lo internamente coerente.

Daí a sua abordagem absolutamente peculiar da arte e da literatura. Para percebê-las como conjunto único da existência humana, Górki logo chegou a convicção de que

223

ambos – arte e literatura – devem ajudar o homem em sua busca por uma vida autenticamente feliz273.

Para Górki, o ato da leitura é um ponto de apoio a partir do qual o leitor constrói suas

representações. A qualidade estética de sua obra está na “estrutura de realização” narrativa e na

forma como ela se organiza, pois são as estruturas textuais que propiciam ao leitor experiências

reais de leitura. Em outras palavras: “o papel do leitor representa, sobretudo, uma intenção que

apenas se realiza através dos atos estimulados no receptor. Assim entendidos, a estrutura do texto

e o papel do leitor estão intimamente ligados” (ISER, 1996, p.75).

Se para Górki, o literário se realiza na leitura, podemos ficar confusos com a

probabilidade da literatura possuir dupla existência; uma forma independente da leitura e uma

forma potencial executada pelo ato de ler. Entretanto, esse pensamento não acarreta dúvidas, pois

o objeto literário não é o texto objetivo e nem a experiência subjetiva, mas a interação entre os

dois, “o texto ficcional deve ser visto principalmente como comunicação, enquanto a leitura se

apresenta em primeiro lugar como uma relação dialógica” e inteligente (ISER, 1996, p. 123).

Tinha cerca de quatorze anos quando aprendi a ler com consciência. Naquela época, não me atraía apenas o enredo dos livros e a variedade dos eventos descritos, mas começava a apreciar a beleza das descrições para meditar sobre os personagens de homens e mulheres que surgiam no texto vislumbrando vagamente os propósitos do autor e sentindo a diferença entre o que se falava nos livros e o que infundia na vida”274. (GORKI, 1981, p. 98)

O pensamento de Górki tem uma certa consonância pelo menos um ponto de vista dos

formalistas russos275, no que concerne à valorização da obra enquanto estrutura textual e à noção

de “estranhamento”. O estranhamento ocorre porque a literatura autobiográfica força uma

273 GÓRKI, Maksim. Pensamientos sobre la titeratura y el arte. Moscou: Progreso, 1981, p. 5. Trecho retirado do prefácio escrito por Aleksandr I. Ovcharenko, em 1975. CITAÇÃO ORIGINAL: “De ahí su enfoque absolutamente peculiar del arte y de la literatura. Al percibirlos como um conjunto único de la existencia humana, Górki pronto llegó a la convicción de que ambos – el arte y la literatura – debían ayudar al hombre em su búsqueda del camino hacia uma vida autenticamente feliz. Uno de los leitmotiv de la obra de Górki es el problema de como elevar al máximo la eficácia del arte”. 274 CITAÇÃO ORIGINAL: “Tenía cerca de catorce años cuando aprendi a leer a conciencia. Em aquella época no solo me atraía la trama de los libros, el desarrollo que com mayor o menor interes presentaban los acontecimientos descritos, sino que comenzaba ya a apreciar la belleza de lãs descripciones, a meditar em los caracteres de los hombres y mujeres que aparecían em el argumento, vislumbrando vagamente los propósitos del autor y palpando com alarma la diferencia entre aquello de lo que se hablaba em los libros y lo infundia la vida”. 275 Não pretendo aproximar Górki do pensamento formalista que se instaurou na Rússia na década de 20, cujos pressupostos eram a desvinculação da obra de arte de qualquer condicionante histórico e a valoração de sua essência. A referência a essa corrente crítica apoiou-se unicamente no fato de que a literatura realmente “força” um repensar sobre a vida.

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consciência e uma revisão de expectativas. Melhor dizendo, a literatura quando contesta o que é

familiar, desperta o leitor para o que lhe é familiar e para as regras que estabelecem essa

normalidade, fazendo com que, a partir da observação e do contraste, ele passe a ter consciência

crítica da sua realidade. Assim, a literatura situa o leitor em seu momento histórico. Segundo

Górki,

(...) somente no campo da arte, na criação da alma, o povo russo deu mostras de uma incrível força, criando, em condições horríveis, uma literatura marvilhosa, uma pintura assombrosa e uma música original cujas manifestações são admiradas no mundo todo. O povo estava silenciado, as asas da alma estavam atadas, mas seu coração estava cheio de cenas de grandes artistas da palavra, da música e das cores 276 (GORKI, 1981, p. 84).

Talvez seja por isso que desde o início da narrativa de Ganhando meu pão, Aleksiei tenha

prezado a atemporalidade e o deslocamento das obras literárias, ao notar que os textos não se

comunicavam apenas com ele, um leitor contemporâneo, mas, dialogaram com outros públicos

anteriores sem perder o aspecto inovador 277. Quando lia, Aleksiei somava simultaneamente à

leitura todo o seu estofo de hábitos sociais, históricos e culturais e, a esse tipo de “coleção”,

damos o nome de repertório.

276 CITAÇÃO ORIGINAL: “(...) solo em el campo del arte, em la creación del alma, el pueblo ruso há dado muestras de uma fuerza asombrosa, creando em unas condiciones horribles uma maravillosa literatura, uma pintura asombrosa y uma música original cuyas manifestaciones admira el mundo entero. Las bocas del pueblo se hallaban cerradas, atadas las alas del alma, pero su corazón engendro de cenas de grandes artistas de la palabra, el sonido y los colores”. 277 Essa perspicácia de Aleksiei reflete uma reverência feita a grandes nomes da arte russa, como exemplificado nas palavras: “O gigante Púchkin é o nosso grande orgulho e a expressão mais completa das forças espirituais da Rússia. Ao seu lado, o mago Glinka e o maravilhoso Briúlov, Gógol, escritor decepcionado com ele mesmo e com os homens, o melancólico Turguêniev, o amargo Liérmontov, o bravo Niekrássov, Tolstói, o grande rebelde, e nossa consciência enfrema - Dostoiévski, Kramskéi, Repin, Mússorgski, o inimitável, Leskov, o homem que consumiu toda a sua força e sua vida criando o tipo positivo do homem russo e, finalmente, o grande compositor Tchaikóvski e Ostróvski e o charme das palavras. Tão distintos um do outro, como só pode acontecer em nosso país, a Rússia, onde na mesma geração se encontram homens que parecem de séculos distintos a ponto de serem psicologicamente diferentes e incompatíveis” (GÓRKI, 1981, p. 84). CITAÇÃO ORIGINAL: “El gigante Pushkin es nuestro gran orgullo y la más plena expressión de las fuerzas espirituales de Rusia, a su lado el mago Glinka y el maravilloso Briulov, Gógol escritor despiadado consigo mismo y com los hombres, el melancólico Turguéniev, el amargado Lérmontov, el airado Nekrásov, el gran rebelde Tolstói, y nuestra conciencia enfrema – Dostoiévski, Kramskói, Repin, el inimitable Músorgski, Leskov, hombre que consumió todas sus fuerzas y su vida em crear el tipo positivo del hombre ruso y, finalmente, el gran lírico Chaikovski, el encantador de la palabra Ostrovski, tan distintos el uno del outro como sólo puede ocurrir em nuestro país, Rusia, donde em la misma generación se encuentran hombres que parecen de siglos distintos, hasta tal punto son psicologicamente diversos e incompatibles”.

225

No romance, vários persongens contribuíram para que Aleksiei aumentasse os horizontes

de sua leitura. Entre eles, estava a exuberante Rainha Margot,278 “fornecedora” de livros, que

despertou nele uma inocente paixão e o ajudou a perpetuar a sua rede de contatos, “vividos

intensamente, [que] o enriqueceram com visadas rebeldes, amargas, contraditórias, muitas das

quais passariam, sub-repticiamente, a fazer parte de seu ideário” 279.

Eu inventava toda espécie de espertezas para ler. (...) A literatura tirada debaixo da cama me prestou um grande serviço: conquistei o direito de levar as revistas para a cozinha e desfrutei a possibilidade de ler à noite”. (...) Em geral, toda a vida no estrangeiro, como tratam dela os livros, é mais interessante, mais leve, e melhor que a vida que eu conheço: no estrangeiro, não se briga com tanta freqüência e tão selvagemente, não se zomba tão cruelmente de uma pessoa (...), Não rezam a Deus com a mesma fúria. (...)

Aparece principalmente que, tratando de malfeitores, de gente ávida e ignóbil, os livros não indicam neles aquela inexplicável crueldade, aquela ânsia de escarnecer das pessoas, que me é tão conhecida e que observei com tamanha freqüência. Um malfeitor de livro é cruel de maneira prática, quase sempre se pode compreender porque ele é cruel, mas eu via uma crueldade sem objeto, sem sentido, com a qual o homem apenas se divertia, sem esperar qualquer vantagem (GÓRKI, 2007b, p. 195-205).

A identificação entre leitor e texto surge como consequência do confronto do horizonte de

expectativas do leitor e da obra. Durante a leitura, o leitor utiliza estratégias de seleção por meio

das quais confronta suas expectativas com as do texto. Essas estratégias são responsáveis pela

organização da bagagem que traz o leitor, por meio das perspectivas do narrador, dos

personagens e do próprio enredo.

Criado o conceito da perspectividade, a importância da relação texto/leitor aumenta ainda

mais, ou seja, vê-se o texto como um sistema perspectivístico em que os elementos textuais são

selecionados através das estratégias e combinados por meio do repertório. Durante a leitura,

deflagra-se um passeio a terrenos extratextuais que contém vários elementos que podem se

incorporar à obra de ficção. Esses elementos são originários da vida e são tidos como material de

referência. Uma vez colocados na ficção, são continuamente embaralhados e ganham uma função

diferente da que tinham no mundo “real”, estabelecendo um intercâmbio entre os dois mundos.

E por que a perspectividade pode ser melhor percebida nas autobiografias? Dada

coexistência de dois mundos e as constantes incursões no mundo real como busca de inspiração

278 “Rainha Margot, personagem de Alexandre Dumas, foi um apelido dado por Aleksiei a uma mulher que havia se mudado para mesmo condomínio onde ele morava. 279 BERNARDINI, Aurora. Revoluções Russas. Especial para a Folha, no caderno Mais!, de 14 de outubro de 2007. Artigo disponível no site: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1410200713.htm e acessado em janeiro de 2013.

226

ficcional, o autor alterna entre realidade e imaginação no ato da criação. Porém, não podemos

esquecer que autor, texto e leitor formam uma trinca que interage com constância, portanto, o

leitor tem a sua relevância quando assume a conduta de recepetor da obra, mesmo sem ter o

alcance aos mesmos referenciais do autor. Sendo assim, ele precisa visitar sozinho o real com o

propósito de entender as perspectivas do texto. Toda a carga emocional, o estofo valoral e

informativo que todos nós temos serve de ponto de referência ao interagirmos com o mundo

ficcional, pois ela ativa o imaginário e presentifica o fictício. Dessa fusão, surge a literatura.

No texto de Górki, a perspectividade interna possui uma estrutura que Iser denomina de

estrutura de tema e horizonte, que é responsável pela condução do ato da leitura, uma vez que o

leitor, não sendo capaz de compreender todas as possibilidades do texto, faz uma escolha entre

uma e outra. A perspectiva escolhida pelo leitor em algum momento da leitura é o tema, ao passo

que o horizonte passa a ser uma perspectiva já superada, e que, ou serve como pano de fundo

para o tema atual, ou se transforma em um novo tema. Essa combinatória é uma espécie de

engrenagem que faz com que as perspectivas do leitor possam emergir tanto do tema, num

primeiro plano, quanto do horizonte, num segundo nível. Assim, o ponto de vista do leitor se

move alternadamente, ou seja, o que era tema pode se transformar em horizonte e vice-versa.

Freqüentemente, conto a ele (Iakóv) toda espécie de histórias que li nos livros; todas elas se emaranharam, se confundiram em mim, fervendo, numa história bem comprida de uma vida inquieta, bonita, repleta de fogosas paixões, loucas proezas, uma nobreza purpúrea, êxitos fantásticos, duelos e mortes, nobres palavras e ignóbeis ações. Rocambole assumia para mim os traços cavalheirescos de La Molle, Aníbal, Colonne; Luís XI, os de pai Grandet; o tenente de cavalaria Otletáiev se confundia com Henrique IV. Essa história, em que eu, conforme a inspiração, modificava os caracteres das pessoas e transferia os acontecimentos, constituía para mim um mundo em que eu era livre como o Deus do vovô: também ele brincava com tudo a seu bel-prazer. Não me impedindo de ver a realidade tal como era, não esfriando a minha vontade de compreender as pessoas vivas, esse caos livresco protegia com uma nuvem transparente, mas intransponível, de uma porção de lama infecta, das peçonhas da existência (GÓRKI, 2007b, p. 254).

Abrindo os livros, a perspectiva de Aleksiei às vezes divergia das perspectivas das obras

que ele avidamente lia, fato que ocasionou uma convergência de horizontes, conduzindo-o para

uma reflexão sobre suas concepções de vida e visões de mundo. Isso tornou a leitura uma

comunicação efetiva, um diálogo a partir do qual o menino exerceu uma atividade produtiva, pois

os textos o forçavam a uma tomada de posição diante de cada obra. “A leitura só se torna um

227

prazer no momento em que nossa produtividade entra em jogo, ou seja, quando os textos nos

oferecem a possibilidade de exercer as nossas capacidades” (ISER 1999, p.10).

Imerso no texto, Aleksiei alterna o seu ponto de vista entre a protensão (expectativa sobre

o que virá) e a retenção (perspectiva do presente) e, como uma dialética, cada leitura terminada

fica como uma lembrança que é reprojetada num novo horizonte que ainda virá. “Desse modo, no

processo de leitura, interagem incessantemente expectativas modificadas e lembranças

novamente transformadas” (ISER, 1999, p. 17). Portanto, o leitor é a chave para intercalar os

horizontes dos textos. Dessa forma, a estrutura do horizonte da leitura se mostra como um ato de

criação que depende, entre outras coisas, da capacidade de representação de quem lê quaisquer

obras.

Na trilogia, o texto é transformado na consciência do leitor em uma teia de relações que

favorecem o encontro do passado e do futuro no momento da leitura, ou seja, no presente. A

partir da literatura, Aleksiei experimenta representações da realidade e não a realidade dele

propriamente dita, pois o efeito de real é proveniente das imagens criadas. Após a leitura de cada

obra, Aleksiei mesmo cria as imagens que são direcionadas pelos textos e que constituem o

significado do texto. É tarefa do leitor representar a totalidade dos aspectos evidenciados pelo

texto literário, arrumando o acúmulo de informações prévias que recebem seu aspecto temporal

em sua fantasia.

A mulher do capitão deu um volume de Gógol para ele; li “A vingança terrível”280, que me agradou muito, mas o Smúri gritou zangado:

– Bobagem, conto de fadas! Eu sei que existem outros livros... Tirou-me o volume, apanhou com a mulher do capitão um outro e ordenou para

mim, sombrio: – Leia o Tarás281... não é assim que se chama? Procura aí. Ela diz que é bom...

Mas, bom para quem? Para ela é, mas para mim talvez não seja. (...) No trecho em que Tarás desafia Ostáp para lutar com ele, o cozinheiro riu

com estrépito. – É isso mesmo. E então? Você é instruído, e eu sou forte! Cada coisa que

publicam os camelos... Ouvia com atenção, mas freqüentemente resmungava: – Bobagem! É impossível cortar um homem dos ombros ao traseiro, é

impossível! E não se pode levantá-lo sobre uma lança: a lança se quebraria! Eu já fui soldado...

A vingança de Andrii provocou-lhe asco. – Uma tonteira nojenta, hein? Por causa de uma mulher! Pff... Mas no ponto em que o Tarás mata o filho com um tiro, o cozinheiro deixou as

pernas penderem da cama, apiou-se nela com os braços, torceu o copo e chorou;

280 Conto fantástico de Nikolai Gógol. 281 Trata-se da novela Tarás Bulba, também de Gógol.

228

lágrimas escorreram devagar pelas suas faces, pingando sobre o convés; fungava, murmurando:

– Ah, meu Deus... meu Deus... E, de repente, gritou para mim: – Mas leia, osso do demônio! Tornou a chorar, e ainda mais forte e amargamente, no momento em que Ostáp

grita, antes de morrer: “Pai! Estás me ouvindo?” – Está tudo perdido – soluçava o Smúri. – Tudo, hein? Já é o fim? Eh, coisa

maldita! E existiu essa gente, esse Tarás? Hein? – Si-i-im, isto é que era gente... (GÓRKI, 2007b, p. 126-127)

Neste capítulo, o foco incidiu sobre figura do leitor, a partir de uma perspectiva de leitora

que sou e por ter sido “cobaia” das mesmas sensações pelas quais passaram Górki e Aleksiei.

Aqui, foi estabelecido um diálogo entre leitores, sobre leitores e para leitores. Apesar de

sabermos que as teorias literárias que antecederam à década de 60 se ocuparam em demasia com

a figura criadora do autor, ao passo que o leitor ficou em segundo plano282, uma pergunta ainda

paira no ar: o que realmente acontece quando lemos uma autobiografia?

Ao tentarmos responder à pergunta, primeiramente, devemos abrir espaço para que o

leitor seja parte integrante do processo literário. Com isso, passaremos a considerar para esse fim,

a estética da recepção. Sabemos que as teorias sobre a recepção são várias, então, para nós, a

palavra de ordem é o raciocínio, a aceitação de que o fictício simplesmente não acontece se não

houver alguém para liberar a imaginação. Na citação acima, fica claro o jogo entre leitor e texto.

Numa primeira análise, uma das primeiras relações, antes mesmo do convívio com a mulher

contramestre e com a Rainha Margot, é entre Súmri, o cozinheiro tripulante, e Nikolai Gógol,

autor de duas das primeiras obras literárias que Aleksiei conheceu.

O cozinheiro é admirador de boas histórias, porém, ele se reveste de desconfiança e

sempre questiona a possibilidade de uma cena ser ou não explicável no mundo real. Smúri não se

entrega placidamente à imaginação e prefere fincar os “pés no chão” da previsibilidade. Ao pedir

que Aleksiei abrisse um livro e o lêsse, o cozinheiro compra o ingresso para imaginação e para as

282 É sabido que por muito tempo se tentou diminuir o abismo existente entre história e literatura, porém, estreitando brevemente conhecimentos a esse respeito, cito em primeiro plano a teoria literária marxista por ela ter sido relevante para a literatura gorkiana. A teoria da literatura de Marx se originou de uma visão sociológica da estética, procurando estabelecer um elo entre a literatura e a realidade social. Eram consideradas literárias as obras que provocassem algum tipo de reflexão acerca dos poderes sociais e cívicos. Sob esse prisma, a figura do leitor aparece como um sujeito que nivela suas experiências individuais aos interesses dos princípios materialistas.

Já na década de 20, surgiram os formalistas russos, que defendiam a valoração apenas da realidade do texto literário em detrimento da reflexão sobre a realidade social. O alvo de interesse era a essência da obra. Logo, o leitor seria apenas um seguidor de pistas, adequando um procedimento específico para cada leitura.

229

diversas formas de desenlace que, dispostos e compartilhados mentalmente, também permitem as

futuras interpretações do menino.

Na cena, a ficção gogoliana é o dispositivo que aciona a imaginário, tanto de Smúri que o

rejeita, quanto de Aleksiei que o guarda. Smúri não crê de imediato na obra, pois traz consigo

outras experiências externas que o deixam preso em seu ceticismo. Ao dizer que já havia sido um

soldado e que por esse motivo não poderia aceitar a ideia de que alguém fosse cortado de modo

longitudinal, ele usa o imaginário para trabalhar perspectivas, porém, não se atém a pormenores e

acaba concordando que possivelmente está diante de uma verdade. O ato da seleção em Smúri

imagina a morte de um personagem, a partir de informações vindas do extratexto, e remonta a

história da novela através da leitura. A mudança na crença do cozinheiro é evidente se levarmos

em consideração as várias demonstrações emotivas do receptor.

Portanto, essa remodelagem da história caracteriza um autodesnudamento, pois o mundo

criado por Gógol é o mundo do “como se” (ISER, 1996, p. 69), em que Smúri acredita ser

verdade. Nessa mistura entre o imaginário de Smúri e o fictício de Gógol há uma explosão

criativa capaz de transpor o mundo real para o ficcional. Tarás Bulba, como realidade fingida283,

funcionou como um indicativo do quão próximos estamos dos personagens inventados que

ganham vida nos livros. Como leitor, Aleksiei sente que a leitura é uma espécie de termômetro

medidor de paradigmas para a auto-interpretação da vida real, como transcritos em uma de suas

conclusões.

Lemos depois Ivanhoé. Smúri gostou muito de Ricardo Plantageneta. – É um rei de verdade! – disse, com ar significativo. Mas o livro me pareceu

aborrecido. Em geral, nossos gostos não concordavam; fiquei muito entusiasmado com a

Novela de Tomás Jonas, tradução antiga de A história de Tom Jones, em enjeitado, mas o Smúri resmungou:

– Tolice! O que eu tenho a ver com esse Tomás? Pra que preciso dele? Devem existir outros livros...

Certa vez, disse a ele que sabia existirem outros livros, uns proibidos, clandestinos; podia-se lê-los apenas de noite, no porão.

Arregalou os olhos, ficou arrepiado. – O quê-ê? Que mentiras são essas? – Não estou mentindo, o pope me perguntou sobre eles na confissão, e antes eu

também vi gente lendo e chorando... O cozinheiro me encarou com expressão sombria e perguntou: – Quem é que chora? – A senhora estava ouvindo. E a outra até fugiu de medo...

283 Uso o termo “realidade fingida” pela novela tratar da afiada e feroz descrição dos cavaleiros cossacos em vista de vasta pesquisa realizada por Gógol sobre o folclore e a história da Ucrânia.

230

– Acorde, você está delirando! – disse o Smúri, cobrindo lentamente os olhos e, depois, numa pausa, balbuciou:

– Naturalmente, em alguma parte existe... alguma coisa escondida. Não pode deixar de existir... Eu estou fora da idade, e também meu gênio não dá para isso... Bem, assim mesmo...

Podia passar uma hora inteira falando com semelhante eloqüência... Sem saber como, me acostumei a ler e apanhava o livro com gosto; aquilo

de que tratavam os livros se distinguia agradavelmente da vida, cada vez mais pesada (GÓRKI, 2007b, p. 128. Grifo meu).

Por esse pensamento, é possível notar que não temos meios para definir o fictício e o

imaginário dentro de conceitos pré-existentes. Porém, eles existem, jogam, e nos fazem

decodificar o processo criador em nossas mentes e receber o fato de que ser leitor é uma condição

que aflora nos homens, na medida em que é aceito o jogo textual. Aleksiei era um bom jogador,

mesmo que fosse aspirante. Como em uma partida de xadrez, ele mexe as pedras como convém,

mas não bloqueia o jogo da emoção da obra literária e deixa que ela contribua para com a sua

subjetividade.

E havia muitas outras coisas que, me deixando ardentemente perturbado, não me permitiram compreender os homens: eram bons ou maus? Dóceis ou desbragados? E por que eram tão cruéis, tão avidamente malvados, tão vergonhosamente dóceis?

Interroguei o cozinheiro sobre isso, mas ele dizia, não raro amargo, envolvendo o rosto com a fumaça do cigarro:

– Eh, que diabo te faz cócegas?! É gente, ora, gente... Uns inteligentes, outros tolos. Você deve ler livros e não murmurar. Nos livros, quando são os certos, tudo deve estar dito...

(...) Tive vontade de agradá-lo: presenteá-lo com um livro. Em Kazan, comprei sobre o cais, por cinco capeques, a Lenda de como um soldado salvou Pedro, O Grande284, mas naquela hora o cozinheiro estava bêbado, zangado não ousei dar o presente e primeiro li a Lenda. Ela me agradou muito: era tudo tão simples, compreensível, interessante e conciso. Estava certo de que o livro daria prazer ao meu professor.

Mas, quando entreguei o presente, ele o amassou em silêncio numa bolota redonda e atirou-o na água.

– Aí está o que eu faço com o seu livro, bobalhão! – disse, taciturno. – Eu ensino você como a um cachorro, e você está sempre querendo comer a caça, hein?

Bateu o pé e voiciferou: – Que livro é esse? Já li todas as tolices! O que está escrito nele é verdade? Fala

de uma vez! – Não sei. – Mas eu sei! Cortando-se a cabeça de um homem, ele cairá escada abaixo, e os

outros não subirão mais para o feneiro; os soldados não são tolos! Eles incendiaram o feno, e pronto! Compreendeu?

284 Piotr A. Românov, ou Pedro, o Grande (1672-1725). Tsar que governou o Estado Russo, modernizando-o artística e politicamente. Partindo desse reinado, rico em investimentos como a indústria naval e as universidades, começamos a entender de forma elucidativa os avanços do pensamento estético e literário russo daquele tempo.

231

– Compreendi. – Aí é que está Eu sei de coisas sobre o tsar Piotr, isto não aconteceu com ele.

Vá embora... Compreendi que o cozinheiro tinha razão, mas o livro, apesar de tudo, me

agradava; comprei mais uma vez a Lenda, li novamente e me convenci, surpreendido, de que o livro de fato era ruim. Isso me deixou confuso, e passei a tratar o cozinheiro ainda mais atenta e confiantemente, e ele, por alguma razão, dizia cada vez com maior freqüência e tristeza:

– Eh, como se deveria instruir você! Aqui não é lugar para você... (GÓRKI, 2007b, p. 144-146. Grifo meu)

Aleksiei buscou nos livros as respostas para seus questionamentos no ato individual da

leitura285. Como isso em vista, estamos diante de possíveis efeitos que as obras são capazes de

causar. Como na trilogia se privilegiou a experiência da leitura de diversos autores nacionais e

internacionais, é preciso que entendamos que esse movimento é uma forma de elevar a

consciência de modo ativo e ressaltar a importância da independência dela diante dos

direcionamentos textuais.

Se o texto literário é formado de hiatos, é justamente na leitura que ele se realiza com

plenitude, pois “[ele] é um sistema de tais combinações e assim deve haver também um lugar

dentro do sistema para aquele a quem cabe realizar a combinação. Este lugar é dado pelos vazios

no texto, que assim se oferecem para a ocupação pelo leitor286. Portanto, podemos afirmar que o

verdadeiro objeto literário não é o texto objetivo e nem uma experiência individual subjetiva e

sim uma integração entre os dois, dado que “o não-dito é constitutivo para o que diz o texto, a sua

“formulação” pelo leitor provoca uma reação quanto às posições manifestadas pelo texto, que,

por via de regra, apresentam realidades simuladas” (ISER apud COSTA LIMA, 2001, p. 105).

Ao desconstruir familiaridades, Górki põe em vigor o seu propósito de provocar o leitor a

ser mais atento aos contrastes e nuances que a obra contém, a fim de alcançar uma consciência

maior de sua realidade.

(...) Faz muito mal ler livros, principalmente quando jovem – diz ela. – Perto de nossa casa, em Grebiechók, uma moça de boa família leu tanto que acabou se apaixonando pelo diácono. (GÓRKI, 2007b, p. 171)

(...) Ceando, os quatro287 me azucrinavam, lembrando as minhas transgressões intencionais e involuntárias, me ameaçando com a perdição, mas eu já sabia que diziam

285 Ao meu ver, o acúmulo de leituras mais tarde deságua no tema mais difícil proposto na trilogia de Górki, que é o sentido da vida. 286ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: COSTA LIMA, L. A literatura e o leitor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 91. 287 Nesta passagem, Aleksiei já está em terra firme morando com a família da irmã de sua avó, para quem trabalhava como serviçal. Composta por marido, mulher, sogra, filha e netos, essa família representou um grande obstáculo para

232

tudo aquilo não por maldade, nem devido a bons sentimentos, mas simplesmente por desfastio. E era estranho ver como eles eram insignificantes e ridículos em comparação com as pessoas do livro (GÓRKI, 2007b, p. 184).

Lendo, Aleksiei se situa em seu momento histórico, porém se afasta dele toda vez em que

lhe é permitido ter novas experiências. Fazendo parte de um todo, Aleksiei rearruma na cabeça o

conjunto de informações sociais, culturais e históricas que angariou ao longo de seu crescimento.

Põe na cena um conglomerado de normas já existentes, fazendo com que o leitor reforce a sua

reciprocidade com a obra. Podemos dizer então que durante as leituras, Aleksiei utiliza várias

estratégias de seleção de repertório por meio das quais confronta suas esperanças com as

esperanças das obras que lê. Essa esperteza de Górki foi a responsável pela organização de todo o

repertório do menino construído pelas perspectivas do narrador (o próprio garoto), dos demais

personagens e pelo próprio enredo (a vida). Vejamos, a seguir, o espelhamento das perspectivas

de Aleksiei ao praticar o ato da leitura.

Fico surpreso, sem nada dizer: pode-se acaso perguntar o que pensa uma pessoa? E não se pode responder a essa pergunta, pois sempre se pensa em muita coisa ao mesmo tempo: em tudo o que se passa aos nossos olhos, naquilo que eles viram ontem e um ano atrás; tudo isso está emaranhado, indistinto, tudo se move, se transforma.

Os folhetins da Folha de Moscou eram insuficientes para passar aquelas horas noturnas, eu me propus a ler as revistas que estavam debaixo da cama, no quarto de dormir.

(...) A literatura tirada de baixo da cama me prestou um grande serviço: conquistei o direito de levar revistas para a cozinha e desfrutei a possibilidade e ler à noite.

Para a minha felicidade, a velha passou a dormir no quarto das crianças, pois a babá começara a beber desbragadamente. Víktoruchka não me estorvava. Quando todos adormeciam, ele se vestia sem fazer barulho e desaparecia até de manhã. Eles levavam a vela da cozinha para dentro de casa, e eu não tinha dinheiro para comprar velas; então, passei a juntar às escondidas sebo grudado aos castiçais, guardava-o numa lata de sardinhas, derramava ali óleo de lamparina e, torcendo fios para fazer pavios, acendia de noite, sobre o fogão, uma chama com muita fumaça.

Quando eu dobrava a página do enorme volume, a lingüeta vermelha sobre o pavio afundava a todo o momento no liquido fétido, a fumaça corroia os meus olhos, mas todos esses incômodos desapareciam no deleite com que eu examinava as ilustrações e lia as explicações anexas.

Essas ilustrações dilatavam a terra perante mim, enfeitando-a com cidades fantásticas, mostrando-me altas montanhas e as belas praias marinhas. A vida crescia

menino em sua busca pela literatura. Era habitual ao menino escutar frases desencorajadoras que o fizessem desistir do prazer da leitura. No mesmo prédio onde morava essa família, também residia a esposa do contramestre da alfaitaria da cidade, uma mulher de fundamental importância no romance, pois era ela quem supria as necessidades intelectuais do menino, emprestando-lhe livros, a mesma aititude que tomara o cozinheiro Smúri, considerado, por Aleksiei, o seu primeiro “professor”.

233

maravilhosa, a terra se tornava mais atraente, mais rica de gente, mais abundante em cidades e muito mais variada (GÓRKI, 2007b, p. 196. Grifo meu).

A mistura de perspectivas do menino-leitor se movimenta de forma randômica e configura

o conceito iseriano da perspectividade, em que o texto é dotado de uma estrutura fixada em dois

pilares: o tema e o horizonte, e essas duas bases funcionam como guias do ato de ler, já que o

leitor normalmente não consegue captar todas as perspectivas produzidas pelo texto. Optando por

uma das guias, num certo grau de leitura, Górki escolhe a perspectiva que constitui um tema que

automaticamente eleva o horizonte à condição de perspectiva ultrapassada, que faz o papel de

cenário para o tema atual ou se transmuta em um novo tema. Mas, o que faz um leitor transitar de

maneira tão rápida por essas perspectivas? Basta observarmos o comportamento de Aleksiei

como leitor, ao perceber que

as discrepâncias que continuamente surgem entre as perspectivas do herói e dos personagens menores provocam uma série de mudanças de posições no ponto de vista do leitor. Segue daí que sempre é uma posição apenas que pode se tornar temática. Em conseqüência, a outra posição, perde a sua relevância temática, condicionamento, porém, sua colocação como horizonte, a atribuição do tema correspondente” (ISER apud COSTA LIMA, 2001, p. 127).

Durante o exercício autobiográfico proposto por Górki, sua maestria é notada quando ele

faz com que as perspectivas do texto e do leitor discordem em vários pontos. Isso acontece

porque dentro da trilogia existe um intermitente conflito contestador de ideias entre Aleksiei e as

obras literárias, e também, numa escala maior, há a relação entre nós, leitores de Górki, com a

própria trilogia. Ao mesmo tempo, nos deparamos com as perspectivas do autor, do narrador e

das nossas. Esse aparente embaraço conduz à fusão dos horizontes de todas as partes envolvidas

no ato da leitura, nos levando a refletir melhor acerca de nossas concepções de mundo.

Essa relação faz com que a leitura seja uma comunicação real, a partir da qual o leitor

deixa de ser um mero receptor passivo e passe a ter pleno domínio de sua postura produtiva, uma

vez que o texto o obriga a se posicionar. Atuando sobre o leitor, o fictício, como estrada do

imaginário, incide na realidade individual. Na autobiografia, é interessante notar que os pedaços

da realidade de Górki colocados no texto são estranhos a Aleksiei, pois ele ainda é uma criança

imersa em várias realidades.

234

Assim, Aleksiei se torna um agente perceptivístico, pois consegue se mover no interior do

texto e aprende a preencher os seus vazios com combinações diferentes de seu repertório herdado

do passado. Para Aleksiei, “a leitura só se [tornou] um prazer no momento em que [a sua]

produtividade [entrou] em jogo, ou seja, quando os textos [ofereceram a ele] a possibilidade de

exercer as [suas] capacidades” 288. Princípio produtivo que começa a se condensar com muita

força no menino.

Eu lia no barracão, onde ia rachar lenha, ou no sótão, o que era igualmente incômodo, frio. Às vezes se o livro me interessava ou era necessário lê-lo mais depressa, me levantava de noite e acendia a vela, mas a velha patroa, tendo percebido que as velas diminuíam de noite, passou a medi-las com um graveto, escondendo-o depois. Se de manhã faltava na vela um vierchók289, ou se eu, não tendo encontrado aquele graveto, não quebrara nele um pedaço correspondente à parte queimada da vela, começava na cozinha uma gritaria furiosa, e uma vez Víktorutchka disse, indignado, do seu estrado:

– Deixe de latir, mamãe! Não se pode mais viver! Claro que ele queima velas porque lê livros, pega com o vendeiro, eu sei! Vá ver lá no sótão...

A velha correu para o sótão, encontrou não sei que livro e o fez em pedaços. Isso, naturalmente me magoou, mas o desejo de ler fortaleceu-se ainda mais

(GÓRKI, 2007b, p. 190-191).

No que diz respeito à autobiografia, o regaste de uma vida provoca a mudança constante

das expectativas, num processo que revela a estrutura não só de uma só vida, como de dois

pontos de vista, o do narrador que lia e o do autor que leu. Ao meu ver, o que ocorre na

autobiografia de Górki, é que o leitor se reveza entre a expectativa sobre aquilo que virá e a

perspectiva do presente (o real) e, esse revezamento é feito de maneira dialética, visto que toda a

leitura realizada já é uma lembrança, e aquilo que é lembrado acaba sendo arremessado para um

novo horizonte. Assim, a história continua e se torna inesgotável, pois a memória é uma máquina

que recicla a vida através do “processo da leitura [onde] interagem incessantemente expectativas

modificadas e lembranças novamente transformadas” (ISER, 1999, p. 17). O horizonte em

questão é uma imagem representativa de todas as possibilidades que a leitura proporciona, se

mostrando como um ato de criação que elocubra pontos de vista.

Novamente, estou lendo livros grossos de Dumas pai, Ponson du Terrail, Montepin, Zaconnais, Gaboriau, Aimard; engulo esses livros depressa, um após outro e estou alegre. Sinto que participo de uma vida incomum, que me perturba docemente,

288 ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad: Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed 34, 1999, v. 2, p. 10. 289 Antiga medida russa equivalente a quatro centímetros.

235

infundindo ânimo. De novo, a minha iluminação improvisada fumega, fico lendo noites a fio, até de manhã, meus olhos aos poucos adoecem, e a velha patroa me diz, amável:

– Espere um pouco seu papa-livros, os seus olhos vão estourar, você vai ficar cego!

No entanto, compreendi muito depressa que, em todos esses livros interessantemente emaranhados, apesar da variedade de acontecimentos (...) se tratava sempre do seguinte: as pessoas boas são infelizes e perseguidas pelas más; estas são sempre mais inteligentes e têm mais sucesso que aquelas, mas, no final, algo imperceptível vence as pessoas más e as boas triunfam obrigatoriamente. (...) Essa uniformidade não só tornava aborrecida, mas suscitava também confusas desconfianças.

Às vezes, desde as primeiras páginas, percebia-se quem ia vencer e quem seria derrotado, e, apenas se tornava claro o nó dos acontecimentos, procurava-se desatá-lo com a força da fantasia. Deixando a leitura do livro, você pensa nele como num problema de aritmética, e cada vez com maior freqüência consegue resolver com acerto quem dos heróis chegará ao paraíso de todo o bem-estar, e quem será emaranhado no grande nó.

Mas, por trás de tudo isso, vejo de relance o faiscar de uma verdade viva e significativa para mim, os traços de uma outra vida, de outras relações (GÓRKI, 2007b, p. 204).

Observamos que no corrente fluxo de leitura que Aleksiei impõe a si mesmo, passado e

futuro se fundem no presente. É através das expectativas do menino, reagrupadas, que o texto

literário é transformado em consciência. As relações entre leitor e texto são tão fortes que, muitas

vezes, o leitor tem a impressão de que é possível se transportar para o mundo descritos nas

páginas dos livros. As imagens de Górki revelam muito mais do que dizem, elas revelam

representações de realidade que o “leitor nunca retirará do texto a certeza explícita de que a sua

compreensão é a justa” (ISER apud COSTA LIMA, 2001, p. 87).

Claramente, nessas relações há desníveis, porém, o leitor pode “tapar os buracos”

deixados pelo texto, a fim de desvendar a totalidade dos aspectos destacados pela obra literária,

pois “é na seqüência das representações [que] o objeto literário vai se apresentando contra um

pano de fundo de um outro que já pertence ao passado” (ISER, 1999, p. 77). Entretanto, a

ativação da memória não invalida o fato de que há uma relação transformadora que atua do texto

para fora e de fora para dentro desse mesmo texto, dependendo de quem se observa e de como se

descreve literariamente.

Fundamentalmente lancei mão de materiais autobiográficos, porém me situei na posição de observador dos acontecimentos, evitando sair como força ativa para não incomodar a mim mesmo, aquele que contava a história. Isto não quer dizer que tivesse medo de introduzir algo "de mim" na realidade criada por mim, a “invenção de que falava I. S. Turguêniev e sem a qual não há arte. Porém quando o autor, ao representar algo se fixa muito em si mesmo, e sua inteligência, conhecimentos, precisão da palavra, penetração

236

da vista, quase inevitavelmente estraga, deforma aquilo que se chama “verdade artística290 (GÓRKI, 1981, p. 257).

Por fim, a questão do jogo aplicado à história pode ser um exercício interessante,

sobretudo no que diz respeito ao dialogismo entre passado e presente com a mediação de quem se

auto-interpreta.

290 CITAÇÃO ORIGINAL: “Fundamentalmente he echado mano de materiales autobiográficos, pero me he situado em la posición de observador de los acontecimientos, evitando salir como fuerza activa para no molestarme a mi mismo, el que contaba la historia. Esto no quiere decir que tuviera miedo de introducir em la realidad por mi creada algo “de mi”, la “invención de la que hablaba I. S. Turguéniev y sin la cual no hay arte. Pero cuando el autor, al representar algo se fija demasiado em si mismo, em su inteligência, conocimentos, precisión de la palabra, penetración de la vista, casi inevitablemente estropea, deforma aquello que se llama “verdad artística”.

237

Ilustração 41: Família Serguêievitch,1882- 1883

Ilustração 42: O jovem Aleksiei Piechkóv

Ilustração 43: Nikolai Evréinov. Kazan, 1885

(Estudante que incentivou Aleksiei a ingressar na universidade)

238

Ilustração 44: Cidade de Kazan, inicio do século XX

Ilustração 45: Universidade de Kazan, onde Aleksiei (Górki) pretendia estudar

239

CAPÍTULO 5

5.1 A PRIMEIRA VOZ: O SELO QUE AUTENTICA UMA SENTENÇA

É necessário ter-se nascido numa sociedade civilizada para se ter a resignação de viver nela toda a vida sem nunca sentir o desejo de libertar-se dessa esfera de convenções fátuas, de venenosas mentiras consagradas pelo uso de ambições mesquinhas e partidarismos acanhados, de diversas formas de falta de sinceridade, em uma palavra, de toda a loucura da vaidade que gela o coração, corrompe a inteligência e, tão insensatamente se chama de vida civilizada (GÓRKI).291

Numa autobiografia, há a preocupação exacerbada com o enunciador. Isso ocorre devido

ao enfoque dado ao falante de si mesmo. Após a observação de sua habilidade artística, Górki se

vê capaz de preencher os vazios que ficaram presos em volta dos temas de sua vida. Assim,

temos um homem-escritor fragmentado semelhante ao indivíduo Michel Montaigne, cujos

Ensaios são partes unidas de um todo formador de um indivíduo. Em cada ensaio, se fazem

presentes emoções boas e más, leituras e, principalmente, reflexões frente às transformações

pessoais e sócio-políticas que o cercavam.

Górki, a exemplo de Montaigne, encara um indivíduo que, ao buscar compreender-se e ao

tomar a si mesmo como objeto de autoexame, empreende por extensão a compreensão do homem

plural. Esse pensamento libertador é o que possibilita a escolha do objeto de estudo e discuti-lo

sem se nortear por parâmetros científicos, mas através da pesquisa de si mesmo. E, se Górki se

coloca como objeto de análise, devemos reconhecer que a voz que ele inicialmente escuta é a voz

que o convida a buscar a re-apropriação de si, da coerência íntima e da serenidade contemplativa

diante das agitações e dos agitadores humanos. Portanto, a exigência do “próprio” e da estreita

relação consigo mesmo é o que determina a prioridade da fala em primeira pessoa na trilogia

gorkiana. Segundo Montaigne, era necessário que fosse seguido o caminho da virtude num

mundo em ruínas. Para isso, ele se lança na escrita para homenagear o amigo La Boétie. Escreve

291 Citação retirada do conto Konoválov, de Górki.

240

não para si, mas para alguém que possa reconhecê-lo. Assim como filósofo francês, Górki

também concede ao leitor a possibilidade de participar de sua narrativa por meios de conversas.

Pessoas que há muito tempo possuem minha estima perguntaram-me o que eu pensava da Rússia. Tudo o que eu penso de meu país, ou para falar mais exactamente, do povo russo e dos camponeses que constituem a sua maioria, é para mim muito penoso. Ser-me-ia mais agradável não responder à pergunta, mas conheci demasiadas coisas e passei por demasiadas experiências para ter o direito de calar-me. Peço, todavia, que compreendam o seguinte: não pretendo condenar nem justificar ninguém – conto simplesmente que formas assumiu a massa de minhas impressões. 292

Górki escreve o “eu” com uma forma única de estabelecer uma conversa que se dá por

meio de um comportamento uníssono. A prioridade da enunciação é de um narrador de si. Esse

fato parece ilógico e se revela porque o “eu” está em constante movimento. Desse modo, o ato de

escrever fez com que Górki descobrisse cada vez mais coisas sobre o seu “eu”, pois as suas

partes, uma vez dissipadas, se unem a ele, moldando o homem pela ficção.

Na autobiografia, Górki eternaliza o seu “eu” e questiona o “eu” das pessoas que lêem as

suas obras. E, exatamente por essa razão que se deflagra uma reflexão humanista da visão

literária do autor, já que ele realiza o seu “eu” mediante o “outro”, Aleksiei. A narração dos fatos

é um pretexto para a reflexão, porque

aparentemente, somos só diferenças. Per se, cada homem já é um agregado de peças dessemelhantes; em conjunto, somos outras tantas diversidades. Algo entretanto nos iguala, Montaigne poderia haver dito: a arrogância e a frivolidade de nossa razão (...). É em nome pois da radical diversidade de cada um que se humilha a razão. Desta maneira cada portador dessa heterogeneidade assume o direito de se fazer ouvir e transmitir indiscrições pessoais. Tudo isso põe o autor na órbita do autobiográfico.293

Em face das infinitudes do ser humano, a escrita em primeira pessoa é uma volta a si, que

nasce da inquietude que acompanha o indivíduo. Montaigne crê que “é possível achar toda a

filosofia moral numa vida popular e privada tanto quanto numa vida feita de matéria mais rica:

cada homem leva em si a forma inteira da condição humana”294. Com isso, o indivíduo esbarra

em seu “eu” imaginário e se defronta com toda a pressão que ele exerce sobre o “eu” real, que o

leva para um vazio interior e que favorece a percepção de que “escrever é lidar com vazios”

292 GÓRKI, Maximo. Psychologia do povo russo. Trad. Elias Davidovitch. Rio de Janeiro: Coleção Minha Livraria, s/d, p. 5. Grifo meu. 293 COSTA LIMA, Luiz. Limites da voz. Montaigne, Schlegel, Kafka. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005, p. 65. 294 MONTAIGNE, M. Ensaios. Livro III. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1972.

241

(COSTA LIMA, 2005, p. 64). Montaigne afirma ainda que o “eu” imaginário sugere à fuga de si

mesmo, porém, em Górki, o que acontece é uma articulação e uma coexistência entre os “eus”

pautadas na força da rememoração, que é um verídico e recíproco dom de si. Górki, no

meio de sua glória, [se] manteve infinitamente modesto. Se falava sem cessar de si próprio não era de maneira nenhuma para se analisar. Pelo contrário. Caso extremamente raro, o autor de uma obra tão vasta, na qual o elemento autobiográfico ocupa tão grande lugar, desinteressa-se do seu “eu”. Se de tempos a tempos diz que “a sua alma o faz sofrer”, que está triste e desgostoso, é sempre em relação com os factos exteriores precisos, resultantes de uma ordem social detestável que quer demolir. Não fala para mostrar em que o seu “eu” se distingue dos outros, mas para assegurar que é semelhante a toda gente. Em nenhum momento, esse homem que conheceu vivo uma glória sem igual jamais cedeu à vaidade. Por tudo isso, importa fazer justiça quanto a uma lenda de que Górki não é de modo nenhum responsável e que projecta sobre a sua memória uma sombra de ridículo que não mereceu (GOURFINKEL, 1964, p. 104).

Nessa troca mútua entre imaginação e realidade, a faculdade criativa se prejudicaria, pois

no processo paulatino de construção do ser montaigniano, tudo que é inerente ao imaginário é

uma provocação, é um assédio a todos aqueles que sucumbem aos seus feitiços que fazem com

que os indivíduos julguem que são capazes “de ver o que não estão vendo” (COSTA LIMA,

2005, p. 71). É possível que Montaigne tenha se angustiado ao se deparar com a força

“opressora” do imaginário. Nesse debate, porém, podemos apontar uma outra via para ordenação

de momentos: a literatura, aquele movimento artístico que não se limita à técnica ou às

denotações do verdadeiro.

Parto do princípio que o resultado literário não apresenta o que o autor tem a oferecer de

orgânico, mas que efeito ele provoca ao ser lido. Na autobiografia gorkiana, o fictício não seria

mais eficiente se estivesse mais próximo da realidade, porém se tornou mais participativo por

elaborar uma estética que não são meras semelhanças, mas, efeitos.

A nossa existência sempre foi trágica, mas o homem converteu esses inúmeros dramas em obras de arte. E eu não conheço nada mais assombroso ou mais maravilhoso do que esta transformação (GORKY, 1973, p. 25. Grifo meu).295

295 CITAÇÃO ORIGINAL: “Our existence has always and everywhere been tragic but man has converted these numberless tragedies into works of art. I know nothing more astonishing or more wonderful than this transformation”.

242

Como exposto acima, a opinião de Górki é a de que existe uma transformação da tragédia

(história real) em obra de arte (ficção). Ele tem consciência de que esse poder de aprimoramento

é mágico e daí vem a reconhecimento de seu recurso estético utilizado na autobiografia, pois

na luta pela liberdade do seu “eu”, o indivíduo perdeu completamente o contato com o coletivo e se encontrou em um terrível vácuo que logo sugou suas forças. Lá, começou uma luta anárquica entre ele e a sociedade – uma imagem apresentada pelo curso da história mundial – uma luta que está além dos poderes do indivíduo devastado e impotente de hoje (GORKY, 1973, p. 79).296

É evidente que essa transformação disponibiliza reforços sociais generalizados para a

emissão de comportamentos autobiográficos: escrever sobre o mundo íntimo subjetivo e falar

sobre ele, basicamente. Enaltecer o discurso subjetivo é valorizar a crença amplamente difundida

de que existe um “eu” interior com a função de causa. É muito mais complexo buscar em Górki

os determinantes de suas nuances autobiográficas do que simplesmente se extasiar com o que é

escrito.

Apesar de sua narrativa começar com o pronome “eu”, ela pode não se apresentar como

uma declaração genuína de um discurso honesto e fidedigno, então, que subjetividade seria a

gorkiana? O “eu” de Górki falsamente nos autoriza acreditar que o enunciado define o

enunciador. Em seu texto, foi menos importante a expressão verbal em si, quando o “eu” é uma

simples resposta formal. O que vale é saber como foi mantida a expressão verbal da obra, já que

na trilogia há um apoio na incerteza e no impreciso, isto é, há um passeio pelas possibilidades e

talvez por isso no relato autobiográfico seja latente a sensação de não existir outro exemplar de

um ser diferente daquele já habitamos.

Às vezes, eu tinha êxito e, ao ver como os rostos inchados se iluminavam com uma tristeza humana, ao passo que os olhos rebentavam de ofensa e de raiva, sentia-me em festa e pensava com orgulho que eu “trabalhava no povo”, “ilustrava o povo”.

Porém, é claro, na maioria das vezes eu experimentava a minha impotência, a minha falta de conhecimento, a minha incapacidade de responder às questões mais simples da vida, do dia-a-dia. Então eu me sentia lançado num fosso escuro, onde as pessoas fervilhavam como vermes cegos, sem pretender outra coisa senão esquecer a realidade nas tabernas e nos abraços frios das prostitutas (GÓRKI, 2007c, p. 54).

296 CITAÇÃO ORIGINAL: “In the struggle for the liberty of his “I”, the individual completely lost touch with the collective and found himself in a terrifying vacuum that soon wore down his forces. There began an anarchic struggle between the individual and society – a picture presented to us by the course of world history – a struggle that is beyond the powers of the devastaded and impotent individual of today”.

243

Aos olhos do já adolescente Aleksiei, quase tudo no homem era vaidade. A ausência de

substância nas ações humanas havia se tornado a regra e não a exceção. Desde cedo, o jovem

percebeu que se movia num mundo de aparências e que essas aparências não eram mais tidas

como fenômeno capital, mas real em si. Górki questiona pouco o mistério que se esconde por trás

do visível, mas se deixa livre para entender o “mistério” de cada acontecimento singular, ou seja,

ele procura chamar atenção para aquilo que é ordinário. Para o autor, o homem é frágil, porém

sem pessimismo, Górki tenta trazê-lo de volta ao mundo. Assim, se tem claro que qualquer que

seja a duração de cada vida, ela é sempre completa.

Em Minhas universidades, Aleksiei se inclina aos pensamentos revolucionários (tal como

Górki), entretanto, aos poucos, se esclarece do fato de que toda ideia de revolução pressupõe um

ideal e uma crença numa ordem a ser seguida a qualquer custo, numa Rússia que se encontrava

corrompida pelos próprios regimes de governo (tanto a monarquia quanto o socialismo). Essa

consciência política misturada ao caráter humano do autor trouxe um tom prudente à voz

autobiográfica. O curso natural da vida talvez seja a chave para entender que mesmo não tendo

acesso a qualquer outro nível de realidade, quer por ser à época inacessível, quer pelo fato do

menino já estar inserido na única realidade que havia, só restava então mergulhar no mundo tal

como ele era. Esse mundo “tal qual” era exigia obediência e a natureza que nele havia surgia

como “coisas fora de nós”.

Entretanto, Górki se coloca contra essa obediência a um mundo incoerente e,

diferentemente de muitas filosofias, não separa a natureza da arte humana, pois, para ele, a

natureza e a razão não se opõem. Górki não trata a razão com uma arrogante ferramenta para

controlar a natureza justamente por saber que ela não é algo estável e ordenado e sim uma peça

que revela a fragilidade do “eu”.

Eu sentira que havia muito a necessidade de compreender como surgira o mundo em que vivia e de que modo ele era inteligível para mim. Este desejo natural e, em essência, bem modesto, cresceu em mim numa necessidade invencível, e me pus, com toda energia da juventude, a incomodar com insistência os conhecidos com questões “infantis” 297 (GÓRKI, 2005, p. 289).

Na trilogia, a definição de natureza surge bem amplificada e abarça a realidade como algo

mutante. Górki não aprovava que o hábito do conformismo tornasse o povo cego e insensível ao 297 Citação retirada do conto de Górki Sobre os malefícios da filosofia, de 1923.

244

comum, fazendo com que a ânsia pela maravilha da imaginação o levasse a considerar o

cotidiano um motivo de insatisfação e não uma razão a mais para buscar o desconhecido. A todo

instante, parece que Górki nos adverte que o conhecido não é tão seguro quanto aparenta ser.

Sim, era preciso fazer algo. Era indispensável livrar-me dessas visões e colóquios noturnos com diferentes pessoas, que apareciam diante de mim se que se soubesse por que, e desapareciam imperceptivelmente, mal voltava a consciência da realidade; tornava-se necessário abandonar essa vida demasiado interessante no limiar da demência. Eu já atingira uma condição tal que, mesmo em pleno dia, à luz do sol, ficava tenso, na expectativa de fantásticos acontecimentos (GÓRKI, 2005, p. 299).

A vida interior da primeira voz parece vir de um vazio deixado pela falta de referência

externa, sendo assim, ela é ao mesmo tempo um resíduo e uma resposta. E, se ela possui esse

caráter original, se torna uma condição para que o autor possa criar uma realidade também

original. Com a referência externa confusa, muitas vezes causando asco, a voz de Aleksiei é

liberada para que atue no campo da opinião e do julgamento isentos de subserviência.

A escrita autobiográfica de Górki o entrega completamente à interioridade. O elemento de

julgamento moral sobre a instabilidade do homem russo vai se amenizando, na medida em que

ele aceita esses desequilíbrios como parte integrante da condição humana. Quando Górki fala de

si e dedica toda a sua obra à análise de suas experiências corriqueiras, não pretende se colocar

como um modelo a ser seguido, mas quer observar atentamente qualquer ser humano. No

contexto gorkiano, é interessante notar que uma possível vaidade de escrever sobre si se restringe

a um sentimento que o autor tinha de ser uma pessoa coerente. Um homem a mais, cuja

transitoriedade que experimentou em cada coisa, experimentou igualmente em si, fazendo dele

mesmo um autolaboratório.

– É terrível a quantidade de inteligência gasta sem nenhum propósito, é terrível – respondeu em voz baixa. – E que inteligência!

Falava muitas vezes, e de forma convincente, sobre a beleza e a força do pensamento:

– No fim, meu caro, é a inteligência que decide tudo, é ela a alavanca que, com o tempo, deslocará o mundo inteiro.

– E o que servirá de apoio? – perguntei. – O povo – respondeu com convicção, sacudindo a cabeça. – Em especial, o senhor, o seu cérebro. Eu gostava muito dele, acreditava em Bájenov com sinceridade. Numa tarde calma, deitado a seu lado na estepe, contei o que disse o policial

Nikíforitch a respeito da piedade, e o que disse um tolstoiano sobre o Evangelho e sobre Darwin.

Depois de me ouvir com atenção e em silêncio, respondeu:

245

– Quanto a Darwin, é uma verdade que não me agrada, como não me agradaria o inferno, se fosse verdade. Mas, veja bem, meu caro: quanto menos atrito há nas peças da máquina, melhor ela funciona. Na vida é o contrário: quanto mais forte é o atrito, mais depressa a vida caminha rumo ao seu objetivo e rumo a uma racionalidade maior. A racionalidade também é justiça, harmonia de interesses. Quando raciocinamos de forma coerente, é preciso reconhecer que a luta é uma boa lei da vida. E nisso o seu policial tem razão: se a vida é luta, a piedade não tem cabimento (GÓRKI, 2007c, p. 210).

A trilogia é marcada pelo cunho altamente pessoal. Porém, o que poderia ser um

narcisismo de um escritor maduro, na verdade, foi um processo de crescimento inevitável. Em

Minhas universidades, é patente a chegada da contemporaneidade e o que é questionado é o

surgimento de um “eu” sem a subjetividade, ou seja, um “eu” criado no campo da ciência pelo

advento progresso. Porém, para Górki, o homem é o seu melhor espelho e o seu melhor livro.

Como aluno das universidades da vida, ele aprendeu rápido que não se tem alcance à verdade

genuína e que aquilo que agita as “verdades possíveis” nada mais são do que as representações

que fazemos delas. Retomando Montaigne,

Quantas coisas pouco verossímeis são afirmadas por gente dignas de fé! Se seus testemunhos não bastam para nos convencer, sejamos ao menos prudentes em nosso julgamento, pois considerá-las impossíveis é vangloriar-se de saber até onde vão a possibilidade e a impossibilidade, o que, sem dúvida, é presunção exagerada (MONTAIGNE, 1972, p. 240).

Com a valorização da máquina, Górki sabia que o discurso moderno se desenvolveu

através de um enfoque no homem que não recorreu à sua dimensão maior. Contudo, ele viabiliza

uma outra via de pensamento quando entende a construção da subjetividade como uma

interioridade capaz de ser compartilhada. Houve, então, uma aceitação das ambiguidades da

realidade e, para que isso acontecesse plenamente, bastou que Górki vivesse, circulando pelos

mais variados terrenos por onde passou.

5.2 PERCORRENDO AS MARGINÁLIAS: O LAUREADO

Desde os dez anos tenho vivido às minhas próprias custas, nunca pude estudar, sempre devorei a vida e trabalhei, e a vida ia me esquentando com murros, alimentando-me do bom e do mau. Finalmente me aqueceu e me pôs em movimento. E eis que disparo. Mas

246

embaixo de mim não há trilhos; sinto com frescor e com alguma força, mas não sei pensar (GÓRKI). 298

O passar dos anos consiste na compreensão das mudanças dos homens ao longo da vida.

Na busca dos “porquês” dessas transformações, residem aspectos práticos que nos favorecem a

desenrolar uma autobiografia que são: a percepção de mundo por meio de nossas sensações e o

traquejo no controle desses altos e baixos que forçosamente ocorrem. O tempo e o crescimento,

aos poucos, estabelecem os contornos de uma moral sensitiva e modeladora de condutas.

Ao refletir de maneira autobiográfica, Górki escreve das alturas com um olhar que

sobrevoa a realidade e a vê conjuntamente com imagens que se referem a uma forma de entender

o seu trabalho como observador. Na trilogia, é proposta uma literatura que desmistifique um

pouco história da Rússia. Para isso, o tempo não se porta como opressor da imaginação, mas sim

como um elemento decisivo e aglutinador de sentido.

Na narrativa, o decorrer do tempo do discurso é gerado pela dimensão psicológica de

Aleksiei. O tempo filtrado pelas vivências dele serve de referencial da mudança dos fatos

ocorridos. Os acontecimentos são mostrados pela voz narrativa sem uma sequência lógica, pois

ao mesmo tempo em que está no passado, relatando suas aventuras de infância, o menino avança

para o presente, com o pensamento já modificado pelas agruras da vida e até salta para o futuro,

na tentativa de prever como seria daí a alguns anos.

Eu tinha uma atração pelo Volga, pela música da vida do trabalho; essa música até hoje embriaga de prazer o meu coração, tenho uma lembrança bonita do dia em que experimentei pela primeira vez a poesia heróica do trabalho.

(...) E o turbilhão pegava os sacos, carregava, jogava corria de novo e pegava mais um, e me parecia que eu mesmo e todos à minha volta começávamos a girar numa dança tempestuosa, me parecia que aquelas pessoas podiam trabalhar daquela maneira terrível e alegre sem se cansar, sem se poupar – durante meses, durante anos. (...)

Passei aquela noite numa alegria que nunca havia experimentado, o desejo de viver a vida inteira naquele êxtase de atividade meio louco iluminou a minha alma. Ondas dançavam junto às bordas, a chuva chicoteava os conveses, o vento assoviava sobre o rio na bruma cinzenta do amanhcer, homens seminus e molhados corriam de modo impetuoso e incansável, e gritavam, riam, deliciados com a própria força, com o próprio trabalho (GÓRKI, 2007, p. 40-42).

298 Essa epígrafe é um trecho de uma carta escrita por Górki para Tchékhov, entre 6 e 15 de janeiro de 1899.

247

Pelo decurso temporal ser de ordem psicológica, temos uma narrativa fragmentária, sem

divisões por capítulos, porém, com grande interação com a história. Minhas universidades

instaura algumas discussões acerca do destino russo e das prováveis consequências dos

desdobramentos de uma revolução que batia à porta. Górki utiliza a ficção sem se desvencilhar

das próprias experiências e vai tecendo comentários bastante críticos, contando com o seu

narrador fictício como porta-voz.

Seria pretencioso definir o tempo, no entanto, vale lembrar que os momentos conflituosos

dos personagens de Górki nos fazem compreender o vai-e-vem do tempo da memória. A vida

acidentada cria uma brecha temporal que destrói completamente a linearidade dos fatos e dá

complexidade à narrativa. Assim, Aleksiei transpõe a frágil linha do espaço e do tempo e utiliza a

memória interior para narrar suas vivência e deixar clara a sua maneira de sentir.

O sonho frustrado de ingressar em uma universidade inicia o terceiro livro da

autobiografia e essa decepção é mais um ponto de retomada em meio a tantas lembranças

conflituosas do narrador. Por isso, o decorrer do tempo do discurso é gerado pela dimensão do

tempo psicológico. Dessa forma, Aleksiei vai desfiando a história, onde o presente recua para o

passado, voltando novamente para o presente e a qualquer momento levando para um futuro bem

próximo.

Pois bem, – quem diria, lá fui eu para estudar na universidade de Kazan. Quem incutiu em mim a idéia de da universidade foi N. Evréinov, estudante do

liceu, um jovem simpático, bonito, com os olhos carinhosos de mulher. Morava no sótão da mesma casa que eu, muitas vezes me via com um livro na mão, isso despertou o interesse dele, fizemos amizade e Evréinov tratou logo de me convencer de que eu era dotado de “faculdades excepcionais para a ciência” (...) Evréinov disse que, em Kazan, eu ia morar na casa dele, faria o curso do liceu durante o outono e o inverno, prestaria “um ou outro” exame (...), na universidade me dariam uma bolsa de estudos e depois de cinco anos eu seria um sábio. Tudo era muito simples porque Evréinov tinha dezenove anos e um bom coração. (...)

– Para que o senhor veio [perguntou a mãe de Evréinov a Aleksiei] – Estudar, na universidade. – (...) O senhor descasca bem as batatas. Ora, como poderia não saber? E lhe contei do meu trabalho no navio a vapor.

Ela perguntou: – O senhor acha que isso é o bastante para entrar na universidade? (...) O excelente rapaz [Evréinov] desejava com sinceridade fazer de mim um

homem, prometia-me isso com toda a convicção, mas não tinha tempo nem as demais condições necessárias para ocupar-se de mim a sério. O egoísmo e a leviandade da juventude não lhe permitiam ver com que força renhida, com que astúcia, a sua mãe cuidava dos assuntos domésticos. (...) Quanto a mim, fazia tempo que eu conhecia muito bem os complicados truques da química e da economia da cozinha, eu percebia muito bem a habilidade da mulher, diariamente obrigada a enganar o estômago dos filhos e ainda alimentar um rapaz de fora [Aleksiei]. (...) Era natural que cada pedaço de pão que

248

eu recebesse caísse na minha alma como uma pedra. Comecei a procurar algum trabalho, qualquer um. Eu saía de casa, de manhã, para não almoçar ali, mas quando o tempo estava ruim eu ficava no terreno baldio, dentro do porão. Ali, sentindo o cheiro dos cadáveres dos gatos e cachorros, sob o rumor da chuvarada e o suspiro do vento, logo percebi que a universidade era uma fantasia e que eu agiria de modo mais sensato se partisse para a Pérsia (GÓRKI, 2007, p. 21-23).

O tempo gorkiano pode ser compreendido como psicológico, pois os momentos

lembrados levados a cabo pelo fluxo da memória de Aleksiei são a válvula que ejeta toda a

subjetividade do narrador. Em Minhas universidades, nós, leitores, devemos prestar atenção para

uma estrutura narrativa diferente dos dois primeiros volumes. No terceiro livro, Górki faz muitas

mudanças espaço-temporais e mostra mãos hábeis para colocar a sua existência e a de Aleksiei

em paralelo, aproximando aparentemente trinta anos que separavam as lembranças do menino

(que eram o tempo da alma) das páginas escritas pelo autor (que viraram a trama).

Entre o “tempo lógico” de Aristóteles e o “tempo da alma” de Santo Agostinho, Ricoeur irá construir a sua própria proposta de uma interação de perspectivas para a narrativa histórica. Estes dois modelos de tempo, o tempo exterior da intriga e o tempo interior da alma, são os dois pólos a serem colocados em interação pela narrativa histórica proposta por Paul Ricoeur, que busca acomodar o tempo interno agostiniano à intriga aristotélica. 299

Tudo o que aconteceu no tempo interior de Aleksiei tem a duração que deseja a voz

narrativa e transcorre no momento desejado, pois a não marcação do tempo cronológico

caracteriza o psicológico. Vejamos, à guisa de ilustração, uma observação de Anton Tchékhov,

em resposta à declaração de Górki em assumir ter sido um sujeito errante.

Sobre a vida errante. Isto, ou seja, a vida errante, é uma coisa boa e atraente, mas com os anos, de certo modo, a gente se torna pesada e gruda ao lugar. E a própria profissão literária, em si, é absorvente. No meio de fracassos e desenganos, o tempo passa rapidamente, não se percebe a vida presente, e o passado, quando eu era tão livre, parece que já não é meu, mas de um estranho (ANGELIDES, 2001, p. 68).300

O presente contido na trilogia (lê-se o cotidiano de Aleksiei) fez com que Górki não tenha

o seu passado destacado de seu interior e nem completado num futuro. A memória é jogada num

presente que ainda se desenvolve. Ainda segundo Ricoeur, vale salientar que a experiência do 299 BARROS, José D`Assunção. Paul Ricoeur e a narrativa histórica. In: História, imagem e narrativas, n. 12, p. 5. ISSN: 1808-9895. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro-UFRRJ. 300 Essas palavras foram escritas em uma carta enviada de Tchékhov para Górki, datada do dia 3 de janeiro de 1899.

249

tempo se dá pela busca de uma referência num espaço conhecido, algo gravado na alma como

memória. Assim, o que há é a expectativa (de algo futuro), a atenção (ao que é) e a memória

presente de algo que passou. E, é justamente essa noção de tempo psicológico que facilita o

entendimento da estrutura temporal na narrativa gorkiana.

Dentro das lembranças nem sempre ordenadas está presente a relação com todos os

personagens que povoaram a vida de Górki ao longo da narrativa. Os retalhos que saem da mente

de Aleksiei fazem um cruzamento de tempos e locais com uma dor moral que se intensifica e que

impede uma linearidade de pensamentos.

Sozinho eu vagava pelos corredores e recantos da Marússovka, observando como viviam as pessoas novas para mim. A casa estava repleta daquelas pessoas e parecia um formigueiro. Pairava um cheiro azedo, corrosivo, e sombras densas, hostis, escondiam-se por todos os cantos. Desde a manhã até tarde da noite, a casa bramia; as máquinas de costura matraqueavam sem parar, as coristas de opereta punham a voz à prova, o estudante arrulhava escalas no registro de baixo, o ator semilouco e embriagado declamava em voz alta, as prostitutas, de ressaca, berravam histéricas, e me ocorria a pergunta natural, mas insolúvel:

“Para que tudo isso?” (GÓRKI, 2007c, p. 33)

Enquanto Aleksiei caminha pelo mundo russo, o seu olhar seleciona objetos e sensações

que serão transformados em palavras por Górki que, mesmo sendo o “dono” dessas lembranças,

não se preocupou em exprimir a verdade do instante. A sensação de retorno ao passado

desencadeia evocações descontroladas que ora recuam, ora avançam, justificando as imagens

espontâneas do autobiógrafo.

– É o seu destino... “É isso”, pensei, “alguém também me arrasta, me empurra para cantos ruins,

me mostra coisas sórdidas, tristes, e pessoas de matizes estranhos. Estou cansado de tudo isso”.

Talvez não tenha pensado com tais palavras, mas exatamente essa idéia se acendeu no cérebro, exatamente naquela noite angustiante senti pela primeira vez um cansaço do espírito, um mofo corrosivo no coração. A partir de então, passei a me sentir pior, comecei a olhar para mim mesmo como a um estranho, friamente, com olhos hostis e alheios.

Eu via que em quase todas as pessoas combinavam-se, de modo canhestro e embaraçoso, contradições não só nas palavras e nas ações, mas também nos sentimentos, e o seu jogo caprichoso me oprimia de forma especialmente aflitiva. Eu era arrastado em todas as direções – para as mulheres e para os livros, para os operários e para os estudantes alegres, mas eu estava sempre deslocado e não vivia “nem lá, nem cá”, rodava que nem um pião, enquanto uma mão invisível, mas forte, me fustigava freneticamente com um azorrague invisível (GÓRKI, 2007c, p. 109).

250

Em Minhas universidades, esse jogo espaço-temporal subitamente expressa um possível

desnorteamento do narrador. Em plena ebulição do pensamento revolucionário, a narração

entrecortada dos fatos não deixa Aleksiei estabelecer uma linearidade. O coeficiente disso são

falas interrompidas cheias de impressões próprias com a intenção de dar algo de concreto à

abstração caótica dos instantes.

A autobiografia gorkiana causa dúvidas aos leitores quanto à veracidade dos fatos, uma

vez que a voz narrativa se apresenta cambiante ao fazer uma junção entre o presente, o passado e

o futuro. Mesmo que Aleksiei se apresente confuso diante da vida e conduza a narrativa baseada

na recordação e nos sentimentos de Górki, vamos conhecer, de qualquer maneira, apenas uma

versão dos fatos, manipulada ou não.

Minha avó morreu. Eu soube da sua morte sete semanas depois do enterro, por meio de uma carta enviada por um de meus primos. Na breve carta – sem vírgulas -, ele contava que a avó caiu quando estava pedindo esmolas no átrio de uma igreja e quebrou a perna. No oitavo dia, “pegou o fogo de Santo Antônio”301. Mais tarde, eu soube que os dois primos, a irmã deles e seus filhos – gente jovem, saudável – viviam à custa da velha, comiam com as esmolas que a avó arrecadava. Nem passou pela cabeça deles chamar um médico.

Na carta dizia: “Enterramos a avó no cemitério Pedro e Paulo onde todos os nossos familiares

acompanharam a gente e também os mendigos eles gostavam dela e choraram. O avô também chorou nos enxotou e ficou lá na sepultura a gente olhou de trás dos arbustos como chorava ele também vai morrer logo”.

Não chorei, apenas – eu me lembro – foi como se um vento me envolvesse (...) Recordei aqueles dias muitos anos depois, quando li um conto muito verdadeiro

de A. P. Tchékhov sobre um condutor de carroça que conversava com um cavalo a respeito da morte de seu filho (GÓRKI, 2007c, p. 79).

Essa oscilação do narrador é compreensível, haja vista que a memória fervilhante de

Aleksiei provoca lembranças desorganizadas em contraste com as impressões precisas do

presente de Górki. Durante a narrativa, a variedade dos pensamentos confere a Aleksiei um

deslizar nos três tempos verbais, indo de um a outro à vontade, à medida que os seus sentimentos

afloram. Com isso,

a experiência em primeira mão das duras condições de vida da imensa maioria da população parecia dar uma feição mais sincera à figuração das classes humildes e trabalhadoras em seus textos, mais direta e brutal do que em outros ficcionistas russos. Vinha embasada pelo crivo da autenticidade. O profundo humanismo proverbialmente atribuído à prosa russa de ficção do século XIX, aquele olhar afetivo diante das pequenas

301 Gangrena.

251

vidas sem sentido, de personagens simples e extraviados, porém dotados de um universo interior riquíssimo, de personalidades e desejos complexos [que] apareciam aos leitores de Górki como a renovação de um legado literário grandioso, por via da experiência pessoal.302

Minhas universidades é um texto diferenciado, pois “finaliza” um exercício

autobiográfico com um poderoso posicionamento indicador de que tanto a história quanto a

ficção trabalham com o objetivo de provocar o ato de leitura com a tarefa de refigurar o material

que ambos têm em comum: o tempo. O ato de ler que direcionou a conduta intelectual de Górki e

que aguça a curiosidade de Aleksiei são congregadas num momento essencial. Nesse livro final,

Górki concretiza uma intencionalidade que tem por princípio a refiguração de um tempo comum

à história e à ficção.

Depois de tudo o que eu tinha visto, a vida dos bons e ajuizados intelectuais parecia-me enfadonha, sem cor, parecia manter-se à parte da confusão sombria e semilouca que engendrava a rotina pegajosa dos intermináveis dias da semana. Quanto mais atentamente observava, mais inquieto e incomodado eu me sentia. Parecia-me que os intelectuais não se davam conta do seu isolamento na cidadezinha imunda, onde todos se mostravam alheios e hostis a eles (...) e não tinham o menor interesse pela questão da importância do papel do indivíduo no processo histórico (GÓRKI, 2007c, p. 205. Grifo meu).

O imaginário gorkiano está ligado às considerações do “ter sido”, que para ele não

significou desprezar o cunho realista de suas memórias, mas aceitar certa configuração do tempo

nas considerações históricas ocorridas em determinados períodos de sua vida. Em Górki, a

história “reinscreve o tempo da narrativa no tempo do universo” (RICOEUR, 1994, p. 317),

como propõe Paul Ricoeur, em Tempo e narrativa. O imaginário representa, então, o principal

ponto para a construção da história, pois para relacionar o tempo vivido ao tempo do mundo foi

preciso contar com certos elos que conduzissem essa coexistência de tempos e que a tornassem

legível. Para Górki, a imaginação funcionou como um mecanismo para traduzir o tempo.

Inventar é extrair de uma soma de dados reais o sentido fundamental que lhe dá uma forma de imagem: assim se faz o realismo. Mas se a esse sentido do dado real se acrescenta, através do impulso da idéia conforme a lógica do desejo, a possibilidade de aperfeiçoar assim a sua imagem, obter-se-á o romantismo (...); trata-se de um impulso útil, dado que ajuda a sugerir o vínculo que une o desejo à realidade.303

302 GÓRKI, Maksim. A velha Izerguil e outros contos. Trad. Lucas Simone. São Paulo: Hedra, 2010, p. 17. Introdução de Bruno Gomide. 303 GÓRKI, M. ZDANOV, A. Literatura, filosofia e realismo. Trad. Serafim Ferreira. Venda Nova-Amadora: Torres & Abreu Ltda, 1971, p. 32.

252

A proximidade entre a história e a ficção fica ainda mais clara no último volume, pois a

“função representativa da imaginação histórica se [aproximou] mais uma vez do ato de se

afigurar (...)” (RICOEUR, 1994, p. 332). Inteligentemente, Górki abre espaço para uma mais

sintonia ao perceber que construía a sua autobiografia fiel a um pensamento detentor de duas

matrizes (memórias e criações), que recorrem às mediações imaginárias no processo de

refiguração do tempo, fato que justifica os empréstimos tomados da história pela literatura e vice-

versa. O preenchimento do tempo gorkiano se apresenta de forma intuitiva, pois os

detalhes através das obras nas quais Górki colocou-se em cena (como protagonista) refletem as cores mais variadas, os mais diversos meios nos quais viveu. Porém, a sua infância permaneceu impenetrável, como se estivesse enterrada numa espécie de bruma misteriosa e perturbadora.

Frequentemente, admiradores e amigos suplicaram ao escritor para fazer algumas confidências. Eles queriam saber por quais provações ele havia passado, como se formara este autodidata genial, ao mesmo tempo terno e violento, gentil e revoltado.

Górki sempre se mostrou esquivo a estas curiosidades. Lembranças extremamente dolorosas o impediam de invocar esses momentos longínquos, de desnudar tantas misérias morais, de desvendar tantas crueldades, de reavivar tantas feridas ainda abertas.304

Para que essa relação entre história e ficção na autobiografia fosse nivelada, Górki pôde

sempre contar com um “pacto” com a leitura no qual a voz de sua narração atuava em parceria

com os leitores implicados em suas rotinas. Talvez,

(...) o motivo de tais deslocamentos no tempo [tenha ocorrido] pela memória de Górki [que] se guiou pela preocupação de ressaltar o significado histórico e das palavras. Detalhes, por vezes ínfimos, são escolhidos e valorizados não por conta de um possível efeito pitoresco. À luz dos trinta anos que separam a redação do livro e os fatos nele narrados, tais pormenores [ganharam] densidade e [deixaram] entrever o seu potencial alcance histórico (GÓRKI, 2007c, p. 12).305

Assim, a escrita autobiográfica gorkiana nos provoca ao levantar a hipótese de que “a

ficção é quase histórica, tanto quanto a história é quase fictícia” (RICOEUR, 1994, p. 329). Com

isso, a interação entre autor e leitor se intensifica a ponto de virar um pacto no momento da

leitura onde se encerra a crença ingênua de que os acontecimentos relatados acabam pertencendo

304 GÓRKI, Maxime. En gagnant mon pain. Mémoires autobiographiques. Trad. Serge Perky. Paris: Calmann-Levy Éditeurs, 1923. Prefácio. 305 Citação retirada do prefácio de Minhas universidades, escrito por Rubens Figueiredo.

253

somente ao passado da voz narradora. Nesse ponto, o talento de Górki transborda, pois ele

consegue mostrar que a sua ficção se assemelha à história, lidando com acontecimentos

possivelmente irreais como se fossem fatos passados ao mesmo tempo em que revela que a

história também se assemelha à ficção, quando relata acontecimentos reais completados pela

vivacidade da presença narrativa de Aleksiei.

O “real” de outrora vivido por Górki não é o bem mais precioso de seu texto, mas sim a

maneira pela qual o autor visita esse “real” e o apresenta ao público. Estabelecendo um arco no

tempo, Górki traz a história russa para dentro de sua ficção, relembrando sua amizade com M.A.

Romas e seu envolvimento com o movimento populista russo quando se recuperava da tentativa

de suicídio. Recordemos, por exemplo, que o populismo foi um fato histórico decisivo para o

caráter revolucionário da Rússia. Górki o recria ao por na voz de Romas considerações mais

elaboradas e melhor avaliadas sobre a situação política vigente.

Mais tarde, no quarto, enquanto fumava o cachimbo, com as costas largas apoiadas na estufa e de olhos semicerrados, Romas soltava fios de fumaça na própria barba e, compondo lentamente as palavras num discurso claro e simples, disse que já havia percebido, desde muito tempo, como eu desperdiçava inutilmente os anos da juventude.

– O senhor é um homem capaz, teimoso por natureza e, pelo visto, com boas intenções. O senhor precisa estudar, sim, é isso, de maneira que os livros não ocultem as pessoas. Um velhinho sectário dizia, com muita razão, “Todo conhecimento vem o homem”. As pessoas nos ensinam de maneira mais dolorosa, ensinam com brutalidade, a ciência delas crava na gente com mais força.

Ele dizia algo que eu já sabia, que antes de tudo é preciso despertar a inteligência dos aldeões. Mas, mesmo nas palavras já conhecidas, eu captava um sentido mais profundo, novo para mim.

– Aqueles estudantes falam muito de amor ao povo, mas eu lhe digo o seguinte: é impossível amar o povo. Isso são palavras, o amor ao povo... (...) Amar significa concordar, condescender, não reparar, perdoar. É assim que é preciso aproximar-se de uma mulher. Mas será possível não reparar na ignorância do povo, concordar com os equívocos de seu pensamento, condescender com todas as suas infâmias, perdoar a sua bestialidade? É possível?

– Não – Aí está! Vocês lá não param de ler e recitar Nekrássov, mas, sabe, com

Nekrássov não se vai muito longe! É preciso convencer o mujique: “Você, meu irmão não é uma pessoa ruim em si mesmo, porém vive de um jeito ruim e não é capaz de fazer nada para que a vida fique melhor, mais fácil. Um animal selvagem talvez cuide melhor de si do que você, o animal se defende melhor. Mas de você, mujique, de você veio tudo: a nobreza, o clero, os sábios, os tsares... todos foram mujiques. Está vendo? Entendeu? Bem, aprenda a viver de um jeito que não possam bater em você (GÓRKI, 2007c, p. 122).

254

O que vemos é um personagem histórico (que não é o único) migrando para o espaço

autobiográfico, fato que reinterpreta uma importante passagem da história russa. A fala de Romas

condensa os discursos histórico e fictício, informa sobre o passado e ainda abre uma nova versão

sobre o comportamento dos personagens históricos. Assim, temos um Górki do “futuro” com

pensamentos amadurecidos que narra um Aleksiei do passado e revisita um momento histórico

com um olhar bem mais abrangente do que aquele em tempo real, pois, por exemplo, “não

[havia] nenhuma evidência que comprov[asse] a hipótese de que Górki estava particularmente

interessado no momento controverso entre marxistas e populistas306”. Portanto, toda a amplitude

de conhecimento oferecida pela literatura abre uma janela para que se reflita sobre outros saberes.

Diplomado pela vida, Górki fez com que a sua trilogia passasse por um permanente

processo de reconfiguração da realidade. O tempo foi filtrado pelo sujeito criador e, em razão do

seu caráter referencial, acabou se tornando um tempo subjetivo. De certa maneira, a autobiografia

gorkiana guardou um grau maior de objetividade, uma vez que o real aparece dissolvido pela

vivência de alguém que, ao escrever, valorizou a força do momento.

Gorky é puro autodidacta, um homem que não adquiriu coisa alguma nas escolas, e que se cultivou, a si próprio, nos intervallos do trabalho manual. Emergiu subitamente das baixas camadas populares que descreve. Estes talentos libertos da formação clássica teem por vesês um sabor acre, e impõe-se com força elementar do povo que os envia.307

O autodidatismo e o largo conhecimento da história nacional e mundial contribuíram para

uma autorreferencialidade que não se pauta apenas na ordem denotativa como mecanismo de

referência. Esse processo se destaca através da escrita autobiográfica que põe em evidência as

características discursivas. Mostra-as de forma radical e induz o leitor a se tornar sensível à

condição do texto enquanto objeto de um tipo de “autolinguagem” que, perante si, estremece, se

desagrega, se indefine ou se fragmenta para se tornar dizível.

306 YEDLIN, Tovah. Maxim Gorky. A political biography. Connecticut: Wesport Press, 1999. CITAÇÃO ORIGINAL: “There is no evidence to support the assumption that Gorky was particularly interested at the time in the controversy between marxsists and the populists”. 307 VOGÜE, Melchior. Máximo Gorky. A obra e o homem. Lisboa: Tavares Cardoso, 1905.

255

5.3 MAKSIMIZANDO A VIDA

Se fala muito de si não é por estar obcecado pelo seu passado pessoal: -Falo de mim com demasiada freqüência? É exacto. Como, porém, proceder doutro modo? - Sou a testemunha da luta entre o passado e o renovo. Deponho no tribunal da história perante a juventude laboriosa que demasiado ignora o passado maldito, o que a impede de apreciar suficientemente o presente que ela também não conhece bastante (GÓRKI).

O HOMEM308

I

Nos momentos de fadiga do espírito, quando a memória aviva as sombras do passado e

delas sopra um vento frio no coração, quando o pensamento, como um desapaixonado sol de outono ilumina o caos ameaçador do presente e gira feroz sobre a confusão do dia, sem forças para elevar-se mais alto, para voar e avançar – nas horas difíceis do cansaço do espírito eu conclamo à minha presença a figura majestosa do Homem.

Homem! É como um sol nascendo no meu peito, e na sua clara luz lentamente caminha – para a frente! Para cima! – o trágico e maravilhoso Homem!

Vejo sua fronte orgulhosa, seus olhos profundos e corajosos e, neles, os raios do destemido Pensamento, aquela força grandiosa que nos momentos de cansaço cria deuses, e nos momentos de ânimo os derruba.

Perdido no deserto do universo, sozinho num pequeno pedaço de terra, que voa em velocidade imperceptível para algum lugar dentro do espaço imensurável, torturado por uma martirizante pergunta: – Para que eu existo? – corajosamente ele avança – para a frente! Para cima! – pelo caminho da vitória sobre todos os mistérios da terra e do céu.

Ele avança, irrigando com o sangue do coração seu caminho árduo, solitário e altivo, e com esse sangue ardente cria as eternas flores da poesia; habilmente transforma em música o grito melancólico de sua alma rebelde; da experiência, cria as ciências e, com cada passo seu embelezando a vida, semelhante ao Sol que enfeita a Terra com seus raios generosos, ele se move cada vez mais alto e mais distante, como uma estrela-guia para a Terra...

Armado apenas com a força do Pensamento, que ora se assemelha a um relâmpago, ora é frio e calmo como uma espada, o Homem, livre e orgulhoso, marcha para longe, guiando seus semelhantes, acima da vida, sozinho entre os mistérios da existência, sozinho no meio da multidão dos seus erros, e todos eles se abatem sobre seu coração orgulhoso como um peso que o oprime, tortura sua inteligência, causando-lhe imensa vergonha e compelindo-o a eliminá-los.

Ele avança! Dentro do seu peito os instintos urram: a hedionda voz da soberba exige esmolas, como um mendigo insolente. Como a hera se prende ao muro, os fios tenazes dos

308 A escolha desse conto se deu por seu caráter metafórico que resume a veia humanista de Górki.

256

apegos enredam seu coração, sugam seu sangue e em altas vozes exigem concessões, desejando dominar todos os seus sentimentos e ter o poder sobre sua alma.

Nuvens de insignificâncias cotidianas são como lama e sapos nojentos no seu caminho. Assim como os planetas giram em torno do Sol, o Homem é rodeado por suas criações: o

sempre faminto Amor, atrás do qual claudica a Amizade; à sua frente, cansada, vai a Esperança; o Ódio, abraçado pela Ira, faz soar as cadeias da paciência presas aos seus braços, e a Fé olha com olhos escuros para seu rosto rebelde e espera que ele se refugie nos seus abraços tranquilos...

Ele conhece todos esses membros de sua triste comitiva – monstruosos, imperfeitos, frágeis produtos do seu espírito criador!

Vestidos com farrapos de antigas verdades, contaminados pelo veneno dos preconceitos, eles caminham hostilmente atrás do Pensamento, sem conseguir acompanhar seu voo, assim como o corvo não consegue acompanhar o voo da águia, e competem com ele, apenas raramente fundindo-se com ele numa chama poderosa e criadora.

Está também presente a eterna companheira do Homem – a Morte, muda e misteriosa, sempre pronta a dar um beijo no seu coração ardente de desejo de viver.

Ele conhece todos os participantes do seu séquito imortal e, por último, descobre mais um – a Loucura...

Alada, poderosa como um turbilhão, ela acompanha o Homem com seu olhar hostil e envolve o Pensamento com suas asas, tentando atraí-lo para sua dança selvagem...

E somente o Pensamento é amigo do Homem, é o único que não o abandona, e apenas sua chama ilumina os obstáculos do seu caminho, os mistérios da vida, os segredos obscuros da natureza e o negro caos que habita o seu coração.

Livre amigo do Homem, o Pensamento olha para todos os lados com seu olhar arguto e lança uma luz impiedosa sobre tudo: as armadilhas astuciosas e pérfidas do Amor, o desejo de humilhar e humilhar-se e, atrás dele, o rosto sujo da Sensualidade; a impotência assustada da Esperança, acompanhada por sua irmã, a Mentira, sempre bem vestida e enfeitada, pronta para consolar a todos com palavras bonitas e enganosas.

O Pensamento lança luz no coração mole da Amizade e ilumina sua cautela precavida, sua curiosidade vazia e cruel, as manchas podres da inveja e os germes da calúnia que nelas existem.

O Pensamento percebe a força do Ódio negro e sabe que, se tirarem suas correntes, ele destruirá tudo na terra, e não poupará nem os tenros brotos da justiça.

Na paralisada Fé, o Pensamento ilumina seu maldoso apetite por um infinito poder, que anseia por escravizar todos os sentimentos, e as garras ocultas do fanatismo cruel, a impotência de suas asas pesadas e a cegueira de seus olhos vazios.

O Pensamento entra em luta até com a Morte: para ele, que do animal criou o Homem, ele, que inventou uma infinidade de deuses, sistemas filosóficos, ciências – chaves para os segredos do mundo – para ele, independente e imortal, é repugnante e hostil essa força infecunda e muitas vezes estupidamente cruel.

Para ele, a Morte é como uma catadora de lixo que ronda os fundos dos quintais e recolhe no seu saco sujo os restos inúteis, apodrecidos, mortos, mas que, às vezes, rouba descaradamente algo forte e saudável.

Impregnada pelo cheiro da podridão, coberta com o manto do horror, muda, impassível, impessoal, a Morte está sempre diante do Homem como um mistério negro e carrancudo, e o Pensamento a estuda com zelo – criador e luminoso como o Sol, cheio de uma ousadia louca e da consciência orgulhosa da imortalidade...

257

Assim o Homem caminha, rebelde através da apavorante escuridão dos mistérios da vida – para adiante! para cima! Sempre para adiante e para cima!

II

Eis que ele se cansa, vacila e geme; o coração assustado procura a Fé, e em altos brados

pede os ternos carinhos do Amor. E três pássaros, filhos da Fraqueza – o Desânimo, o Desespero e a Melancolia, aves

negras e monstruosas – pairam funestos sobre sua alma, entoando soturnamente um canto que afirma que ele é um inseto, que sua consciência é limitada, que o Pensamento é impotente, que o sagrado Orgulho é ridículo e que, não importa o que ele faça, ele morrerá!

Seu coração dilacerado estremece ao ouvir esse canto falso e cruel; agulhas da dúvida espetam seu cérebro e nos seus olhos brilha uma lágrima de amargura...

E, se o Orgulho que há nele não fica indignado, o terror da Morte autoritariamente o impele para a prisão da Fé e do Amor, sorrindo triunfante, atraindo-o para seus abraços, escondendo em ruidosas promessas de felicidade a triste impotência de tornar-se livre e o despotismo voraz do instinto...

Aliada com a Mentira, a tímida Esperança entoa-lhe um canto sobre a silenciosa felicidade da resignação, e com palavras suaves e bonitas embala o espírito sonolento, atirando-o no lodo da melíflua Preguiça e nas garras do Tédio, filho desta.

E, induzido por sentimentos míopes, ele se apressa em encher sua mente e seu coração com o veneno agradável daquela Mentira cínica, que ensina abertamente que para o Homem não há outro caminho que não seja o da pocilga da tranquila auto-satisfação.

Mas o Pensamento é orgulhoso e o Homem lhe é caro – ele parte para uma luta feroz com a Mentira, e o campo de batalha é o coração do Homem.

Como a um inimigo, ela o persegue; como um verme, ela corrói sem descanso seu cérebro; como a seca, devasta seu peito; como um carrasco, tortura o Homem, apertando sem compaixão seu coração com o frio estimulante da saudade da verdade da vida, severa e sábia verdade da vida, que cresce, mesmo que seja devagar, e que é claramente visível através da escuridão dos enganos, como uma flor flamejante, nascida do Pensamento.

Mas, se o Homem foi incuravelmente envenenado pela mentira e tristemente crê que na terra não há felicidade maior do que manter a alma e o estômago cheios, que não há deleite maior do que a saciedade, a tranquilidade e as pequenas comodidades da vida, então, prisioneiro desse sentimento vitorioso, o Pensamento abaixa suas asas e dormita, deixando o Homem em poder de seu próprio coração.

E, semelhante a uma nuvem contagiosa, a Vulgaridade podre, filha do Tédio vil, vem de todos os lados, arrastando-se sobre o Homem, envolvendo com uma poeira cinzenta corrosiva seu cérebro, seu coração e seus olhos.

E o Homem se perde por sua fraqueza transformado num animal sem Orgulho e Pensamento...

Mas, se explode nele a indignação, ela despertará o Pensamento, e o Homem novamente caminhará para a frente, sozinho, através dos espinhos dos seus erros, sozinho entre as centelhas calcinantes de suas dúvidas, sozinho no meio das ruínas de antigas verdades!

Majestoso, altivo e livre, ele olha corajosamente nos olhos da verdade e diz para suas dúvidas:

– Vocês mentem quando dizem que sou fraco, que minha consciência é limitada! Ela cresce! Eu sei, eu vejo e sinto isso: ela cresce dentro de mim! Eu avalio o tamanho da minha

258

consciência pela força dos meus sofrimentos, e sei que se ela não crescesse, eu não sofreria mais do que sofria antes...

– Mas a cada passo eu sempre quero mais, sempre sinto mais, enxergo cada vez mais longe, e esse rápido crescimento dos meus desejos é o poderoso crescimento de minha consciência! No momento, dentro de mim, a conciência é semelhante a fagulhas. E daí? As fagulhas são as mães dos incêndios! No futuro, serei um incêndio na escuridão do universo! Eu fui chamado para iluminar o mundo, para derreter a escuridão de seus mistérios, para encontrar a harmonia entre mim e o mundo, para criar em mim mesmo a harmonia e, iluminando todo o caos sombrio da vida nesta terra sofredora, coberta, como uma doença de pele, com uma casca de desgraças, tristeza, amargura, ódio – varrer toda essa sujeira má para a sepultura do passado!

– Fui chamado para desembaraçar os nós de todos os erros e enganos que amarram as pessoas assustadas num novelo sangrento e asqueroso de animais que devoram uns aos outros!

– Fui criado pelo Pensamento para derrubar, destruir, pisotear tudo o que é velho, tudo o que é apertado e sujo, tudo o que é mau, e criar o novo nos alicerces inabaláveis de liberdade, beleza e respeito às pessoas, que foram criadas pelo Pensamento.

– Eu, um inimigo intransigente da miséria vergonhosa dos desejos humanos, quero que cada pessoa seja um Homem!

– Toda essa vida é sem sentido, vergonhosa e repugnante, onde o trabalho escravo e extenuante de uns tem a única finalidade de permitir que outros se fartem de pão e de satisfações do espírito!

– Que sejam amaldiçoados todos os preconceitos, prevenções e hábitos que aprisionam o cérebro e a vida das pessoas, como uma teia viscosa. Eles perturbam a vida, oprimindo os seres humanos – eu os destruirei!

– Minha arma é o Pensamento, e a firme confiança na liberdade do Pensamento, na sua imortalidade e no eterno crescimento de sua criação é a fonte inesgotável de minha força!

– Para mim, o Pensamento é o eterno farol na escuridão da vida, o único verdadeiro, é a luz nas trevas de seus erros desprezíveis; vejo que ele arde cada vez mais claro, sua luz alcança cada vez mais profundamente os abismos dos mistérios, e eu caminho, iluminado pelos raios do eterno Pensamento, seguindo-o, cada vez mais para o alto e para a frente!

– Para o Pensamento não existem verdades indestrutíveis, não há coisas sagradas inabaláveis, nem na terra, nem no céu! Tudo foi criado por ele, e isso lhe dá o direito sagrado e inalienável de destruir tudo o que possa impedir sua liberdade de crescer.

– Eu reconheço tranquilamente que os preconceitos são fragmentos de antigas verdades, e as nuvens de erros que agora rodeiam nossa vida foram formadas com as cinzas de antigas verdades, incineradas pela chama do próprio Pensamento, que em alguma época as criou.

– E tenho consciência de que são vencedores não aqueles que colhem os frutos da vitória, mas apenas aqueles que continuam no campo de batalha...

– O significado da vida, eu vejo na obra, e ela deve ser autossuficiente e ilimitada. – Eu caminho para que minha luz arda cada vez mais clara e para iluminar cada vez

mais profundamente a escuridão da vida. E a morte, para mim, é minha recompensa. – Eu não necessito de outras recompensas, pois vejo que o poder é indigno e tedioso, a

riqueza é pesada e tola, a glória é um preconceito, nascido da incapacidade das pessoas de se avaliarem e de seu costume submisso de se humilharem.

– Dúvidas! Vocês são apenas centelhas do Pensamento, nada mais do que isso. Testando a si mesmo, ele gera vocês por um excesso de vigor, e as alimenta – com sua própria força!

259

– Chegará um dia em que no meu peito se fundirão numa chama imensa e criativa o mundo dos meus sentimentos e o meu Pensamento imortal, e com essa chama eu queimarei e expulsarei da minha alma tudo o que é obscuro, cruel e mau, e serei semelhante àqueles deuses que meu pensamento criou e cria!

– Tudo está no Homem – tudo existe para o Homem! Eis que, novamente, majestoso e livre, erguendo para o alto sua orgulhosa cabeça,

lentamente, porém com passos firmes, ele caminha sobre as ruínas de antigos preconceitos, sozinho na névoa cinzenta dos erros e enganos; atrás dele há uma nuvem pesada de poeira do passado, e à sua frente estende-se um amontoado de incertezas que o espera impassível.

Elas são incontáveis, como as estrelas nos abismos do firmamento – para o Homem o fim da jornada não existe!

Assim caminha o rebelde e insubmisso Homem – para a frente e para cima! Sempre para a frente e para cima!

M. Górki

1903

O presente conto confirma o quanto é difícil trabalharmos com textos embasados na

pulsão da vida. A infinitude do mundo e a abstração do homem são pontos que fazem turva a

busca por uma meada que nos leve a uma conclusão. A dificuldade, no entanto, é o estímulo da

literatura gorkiana que, além da capacidade de entreter, entrega aos leitores, vias para o

autoconhecimento e para o entendimento da notável participação da literatura no processo de

humanização do homem.

“O homem” reflete a estrutura preponderante na trilogia autobiográfica, que é a evolução

de um ser humano que está no mundo e que cresce na tentativa de sobreviver nele. A jornada

longa e tortuosa requer adaptações, porém, diante do turbilhão da vida, o que se espera é uma

confluência entre o acúmulo de experiências e o desejo de que o homem evolua e se transforme

várias vezes em novos homens. A soma entre as vivências e o conhecimento, por sua vez, pode

resultar em literatura, dado que ela tem a capacidade de armazenar tudo aquilo já produzido no

mundo. Aqui, a literatura se apresenta como uma grande biblioteca, facilitadora da constante

procura pelo conhecimento.

– Veja, tudo pronto! Escrito com o sumo do coração! Sim, sim... com o coração...

Seu rosto se ruboriza, os olhos inundavam-se com lágrimas de bêbado, mas certa vez, sóbrio, leu para mim um conto que acabara de escrever sobre um mujique, o qual, na hora de um incêndio, salvava do fogo e da morte o cavalo predileto do comissário de polícia rural, uma hora antes dessa façanha, tinha quebrado dois dentes do

260

heróico mujique por causa do roubo de uma cravija. O mujique sofreu uma queimadura grave, portou-se de forma heróica, foi levado para o hospital.

Stárostin leu até o fim essa história comovente e desatou a chorar de alegria, balbuciou, encantado:

– Como é bonito, como está escrito com a alma! Pois é, meu irmão, aí está! Aprenda, entre no fundo da alma...

O conto me desagradou muito, mas também fiquei à beira de chorar ao ver a alegria do autor. Seu sentimento sincero emocionou-me também com sinceridade.

Mas por que chorava aquele homem desagradavelmente ridículo? Pedi que me desse o manuscrito e li de novo em casa. Não, o conto estava escrito de um jeito meloso e premeditadamente sentimental, como as falsas súplicas que os “sofredores infelizes” redigem para as viúvas ricas e bondosas. No entanto, o que provocara as lágrimas sinceras e a alegria infantil do autor?

– Não gosto do conto – confessei a Stárostin. Enquanto arrumava com amor as páginas do manuscrito, soltou um suspiro: –Você é um bruto! E um obtuso. – O que comove o senhor nesse conto? – A alma! – gritou, irritado. – Nele, a alma resplandece! Depois de gritar comigo até ficar satisfeito, tomou um gole de vodca e

começou a falar um tom sério: – Aprenda! Você escreve poemas, e isso é besteira. Ninguém precisa disso. (...)

Lembre: nos versos, Púchkin pôs a perder o seu talento excepcional. A prosa, aí está a verdadeira literatura, a sagrada e honrosa prosa.

Ele mesmo serviu para mim como a personificação daquela prosa sagrada. (...)

(...) A juventude e a instrução precária não me impediam de perceber com inquietação que, na “sagrada e honrada prosa”, podiam abrigar-se dramas pesadões e vulgares (GÓRKI, 2004c, p. 204. Grifo meu).

Desse trecho, sintetizamos que o homem que se humaniza durante o curso da vida vive

cercado de conhecimentos que se tornam a extensão da sua alma. Górki, manejando a

experiência, mostra que a sua literatura está cheia de vida prática e que por isso mesmo pode ser

assimilada por todos que a lêem. Na autobiografia gorkiana, indispensáveis no texto são as

memórias privativas que, obviamente assimétricas e de acesso aleatório, garantem um estado de

conservação tão incerto quanto as visitas que fazemos a elas. Visitas que dão o ritmo

representativo da imagem pessoal e do tom natural de comunicabilidade da obra.

Mesmo considerando o fato de Górki se apresentar através de Aleksiei, chego à conclusão

de que não há nada menos transparente do que uma autobiografia. Ao abrigar o jogo entre velar e

revelar, Górki escreve a sua história escondendo e mostrando singelas evidências de que, mais do

que um artista, ele é um criador da palavra. Pensar em um Górki detentor de um estatuto próprio

de ficção não seria demasiado estranho, uma vez que a autobiografia é a expressão subjetiva da

intimidade. Seu texto se constrói, a partir de um sujeito de enunciação que toma a si mesmo como

objeto de conhecimento, modernizando, com isso, a um típico exame de consciência. Górki

261

transforma suas “confissões” em uma literatura intimista que caracteriza boa parte dos textos

modernos, cuja base é a subjetividade viabilizada por uma “mentira sincera”, produzida numa

época onde foi possível criar, a partir de si próprio (a existência) tudo o que era normativo (a

história). Para Gourfinkel,

O homem de Górki, fraco e cheio de defeitos, mas devorado por uma sede espiritual e conhecendo, na sua degradação, os clarões da alegria suprema, esse homem é o herói eterno da literatura russa. Sem dúvida a ele se deve a explosão produzida pelo irromper dessa literatura no Ocidente, no fim do século XIX. Em plena euforia progressista duma época eminentemente raciocinante, a Rússia impunha uma vez mais a inquietação da criatura. Ao retomá-la, Górki, pelos seus limites, simplificava-lhe os dados e punha-os ao alcance de um público novo, inexperiente em arte, mas sedento de humano (GOURFINKEL, 1964, p. 96).

Na literatura russa, esse olhar sobre si é muito diferente do que se conhecia em matéria de

entrega pessoal. Não vemos em Górki um homem perto do juízo final, mas alguém diante da

crueldade social. Enquanto ele divaga em linhas, nós entendemos que o seu “eu” anda por um

caminho de contestação.

Parece-me que não assimilei tais fantasias dos romances que li, mas sim as criei

e as desenvolvi a partir de um sentimento de contradição da realidade, pois: “Eu vim ao mundo para não concordar”. Além disso, havia em mim uma recordação estranha, confusa: Em algum lugar além das fronteiras da realidade e em algum momento no início

da infância, experimentei uma espécie de violenta explosão do espírito, o doce tremor de uma sensação-ou melhor, de um pressentimento de harmonia-, provei uma alegria mais radiosa do que o sol da manhã, quando desponta (GÓRKI, 2007c, p. 232).

Ao criar Aleksiei, Górki “participa do evento da vida e não está submetido, portanto, à

ideia de unidade temática e estrutural”309, como observa Cristóvão Tezza. O teor da

reflexibilidade gorkiana vem do aumento gradativo da percepção das inrrupções cotidianas. Essa

também é uma característica marcante do discurso autoconsciente gorkiano, que conseguiu

imprimir na trilogia um contato constante com a realidade que não atrapalhou em nada o processo

reflexivo de interpretação.

Além disso, devemos considerar que a distância temporal (e emocional) entre o autor e o

narrador conduz a uma semelhança entre eles. Assim, é através dos cortes abruptos contidos em

309 TEZZA, Cristóvão. Literatura e biografia. Conferência apresentada no XI Congresso Internacional da ABRALIC. São Paulo-USP, junho de 2008.

262

Minhas universidades, que Górki se porta como autor e intérprete de si mesmo, mesmo sem se

delatar. Na ficção, essa relativa separação entre autor-Górki e o narrador-Aleksiei é o que torna

possível a transformação da autocompreensão em interpretação, justificando a presença da

subjetividade no discurso autobiográfico. As circunstâncias que provocam o autoentendimento

são difusas e dependentes de personalidades únicas, o que torna o ato criador uma produção de

um sujeito escritor de si, satisfeito com a condição de não ter o controle absoluto sobre a sua

construção.

Górki sugere que consideremos o tempo como lacunar e a continuidade temporal como

uma obra, como um trabalho do seu sujeito. Ele valoriza a inserção do sujeito na construção do

processo temporal proposto pela autobiografia. As possíveis lacunas e rupturas pelas quais passa

a narrativa são frutos da continuidade incerta do tempo, pois “[na] relação com a vida, havia algo

semelhante à confiança de uma criança na ilimitada habilidade de um mágico – todos os truques

apresentados são interessantes, porém o mais interessante ainda está por vir. Vão apresentá-lo

agora mesmo, talvez, amanhã – um dia vão apresentar” (GÓRKI, 2007c, p. 258).

Para Górki, a humanidade caminahava para um triste patamar de hipocrisia. Sem um

estilo refinado, porém agudo na constatação da miséria do homem, Górki fez de seu Máximo,

alguém que foi crítico ao responsabilizar cada um pelas escolhas feitas no curso da vida, atitude

que se tornou a natureza da auto-invenção do seu relato autobiográfico.

263

Ilustração 44: Na Finlândia Ilustração 45: Em Moscou

Ilustração 46:Górki em sua volta à Rússia, Ilustração 47: Apartamento da rua Kronviérski, em

em 21 de dezembro de 1913 Leningrado, onde Górki viveu de 1914 até 1921

.

264

Ilustração 48: Górki em 1906 Ilustração 49: Górki e Lênin em reuniões do

partido RSDRP

Ilustração 50: Górki em Sorrento (Itália), onde permaneceu Ilustração 51: Com Stefan Zweig,

de 1921 à 1924. Com Leonid Andrêiev em Sorrento

265

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto eu olhava como a corrente do Volga tremia numa faixa bordada de luz e como, depois de surgir em algum ponto distante na escuridão, o curso do rio desaparecia na sombra negra da margem montanhosa – eu sentia que meu pensamento ficava mais bem disposto e mais aguçado. Era fácil, então, pensar em coisas inapreensíveis por meio de palavras, em coisas estranhas a tudo o que eu vivera (...)

Coisas lidas nos livros tomam a forma de fantasias estranhas, a imaginação sem cessar, tece pinturas de beleza incomparável e a gente parece flutuar no ar suave da noite, seguindo o rio (GÓRKI, 2007c, p. 140).

Em 1923, aos 54 anos de idade, Górki coloca um ponto final em sua autobiografia,

concluindo um de seus trabalhos mais substanciais e homogêneos. Vivia em Sorrento, Itália, após

uma passagem pela Alemanha. Viagens que na verdade foram advertências de Lênin motivadas

pelos constantes embates político-ideológicos promovidos pelo autor e que desagradavam ao

líder revolucionário.

Nesses anos 20, a produção gorkiana ainda era intensa. Sua literatura ganhou força e mais

alcance na integração com diferentes nichos políticos que deram asas a críticas ao governo

soviético. Após a morte de Lênin, em 1924, Górki permaneceu na Itália e só pôde ir a então

União Soviética, a partir de 1928, acompanhado de forças militares. Somente em 1931, o escritor

voltou à URSS em definitivo, envolvido por um esquema de exaltação ao seu talento orquestrado

por Stálin. Já capturado por uma teia de interesses, Górki participa do I Congresso de Escritores

Soviéticos, em 1934, como o orador mais ilustre entre os congressistas. Como “prêmio”, recebeu

o título de “fundador” do realismo socialista. Entretanto, Stálin tinha um olhar cauteloso em

relação a Górki. Em 20 de outubro de 1917, o futuro líder russo escreve no jornal Via operária as

seguintes palavras:

A Revolução Russa derrubou muitas autoridades. Seu poder se manifestou, entre outras coisas, em não reverenciar “grandes nomes”. Ela se valia deles ou os lançava ao esquecimento caso não quisessem aprender com ela. Uma série desses grandes nomes depois foi derrubada pela revolução. Em geral, Plekhânov, Kropótkin, Brechkóvskaia, Zassúlitch, e todos aqueles velhos revolucionários somente são notáveis porque são velhos. Tememos que os louros desses “pilares” não deixem Górki em paz. Temos medo de que Górki seja fatalmente arrastado para o esquecimento. Pois bem, todos são livres! A revolução não sabe ter piedade e nem enterrar seus mortos.310

310 BASSÍNSKI, Pável. Strásti po Maksimu. Górki: 9 dnei posle smerti. Moscou: Astrel, 2011, p. 387.

266

Repatriado, Górki passou a viver sob uma “liberdade condicional”. Sua fama ultrapassava

fronteiras, mas a vigilância stalinista era onipresente. O estadista sabia que como aliado Górki lhe

renderia muito, porém, como desafeto poderia colocar em risco o andamento das ambições

políticas. A cada passo, Górki era vigiado e isso lhe causou um rápido desagrado com o governo.

Sitiado em sua própria pátria, Górki passou a apoiar uma conspiração contra Stálin, promovida

pelos direitistas. Reza a história que a consequência dessa “insubordinação” foi o assassinato de

seu filho, Maksim, em circunstâncias sombrias e mal explicadas.

A perda do filho levou o escritor a uma apatia difícil de ser superada. Magro e sofrendo de

sequelas respiratórias, senteciou-se à reclusão, morrendo no dia 17 de junho de 1936, antes de

concluir a sua última obra, A vida de Klim Sanguim. Apesar ter tido um funeral repleto de

honrarias, sua morte é cercada de mistério, pois um envenenamento não comprovado pela versão

oficial da história russa sempre foi motivo de desconfiança.

O futuro de Górki de um jeito ou de outro fluiu em seu curso. Aquilo que o destino lhe

reservou um dia virou a história a ser contada por seus biógrafos espalhados pelo mundo.

Passando de geração em geração, a biografia de Górki chegou até a mim sob forma de inspiração.

No decorrer dos estudos dedicados a esta tese, os livros Infância, Ganhando meu pão e Minhas

universidades, tornaram-se “inclassificáveis”. Entretanto, essa conclusão não é frustrante. Ela é o

resultado de um discurso digressivo de um narrador que se dispôs a dialogar com o leitor, não se

furtando à intimidade.

Górki, sem dúvida, foi um escritor que rompeu com uma hierarquização de ideias e

acontecimentos. Sua autobiografia estabeleceu um território criativo que se deu através do

choque entre a vida e o destino. A negativa em categorizar e classificar tudo e todos e a não

filtragem de ideias é o principal ganho da literatura autobiográfica gorkiana. O exercício de “falar

de si” é concebido de uma maneira em que a livre existência de episódios criados, a partir de

histórias pessoais, não se apresenta como uma cadeia de eventos cuidadosamente selecionados.

Tais acontecimentos se originaram de pensamentos independentes de um “escritor que tinha um CITAÇÃO ORIGINAL: “Русская революция низвергла немало авторитетов. Ее мощь выражается, между прочим, в том, что она не склонялась перед <громкими именами>, она их брала на службу либо отбросывала их в небытие, если они не хотели учиться у нее. Их, этих <громких имен>, отвергнутых потом революцей, - целая вереница: Плеханов, Кропоткин, Брешковская, Засулич и вообще все те старые революционеры, которые только тем и замечательны, что они старые. Мы боимся, что лавры этих <столпов> не дают спать Горькому. Мы боимся что Горького <смертельно> потянуло к ним, в архив. Что ж, вольному воля!.. Революция не умеет ни жалеть, ни хоронить своих мертвецов”.

267

coração inteligente. E (...) [justamente] esse coração inteligente que fez de Górki (...) revelar todo

o vigor de sua compaixão pelo ser humano” 311.

Ao navegar pela vida, Górki observou todos os estilos da existência humana e coletou

informações referenciais importantes para a fase mais madura de sua ficção. A trilogia evidencia

a vida normal como uma aventura sem a necessidade de vagar sem destino pela imaginação. A

existência de Aleksiei durante os anos narrados foi cheia de pequenos desafios e deles saiu a

melhor perspectiva para que houvesse o exercício autobiográfico coerente com o real e com o

ficcional simultaneamente. A normalidade do cotidiano cercou Górki de uma aura especial cuja

força o fez aprimorar a sua perícia em observar cumulativamente aquilo que estava ao seu redor.

Essa completa normalidade do personagem gorkiano concedeu às obras um efeito de fluidez do

tempo, elemento de suma importância para a dissolução das fronteiras entre o real e o ficcional.

Ao longo das páginas, a noção de separação entre o que é criado e o que é histórico se

desconstrói. Ultrapassando os limites do mero decalque do real, Górki usa como substância de

ficção a própria biografia, mais especificamente a relação dele com o mundo no período

compreendido entre os seus cinco e vinte anos de idade. Assim, o processo pelo qual o referencial

memorialístico do escritor passou até ser transformado em ficção foi desenvolvido através de

técnicas bem apuradas desse escritor autodidata. Técnicas que atribuíram um bom grau de

ficcionalidade aos três livros. A fim de corroborar com os aspectos de ficcionalidade presentes na

trilogia, em três dos cinco capítulos, apresentei a tradução dos contos “Um acompanhamento”,

“Um leitor” e “O homem”. Esses contos serviram especialmente para fosse possível sentir a

influência da subjetividade num texto de Górki que não fosse tido como autobiográfico à

primeira vista.

O processo, no entanto, se deu através de traduções de trabalho, uma vez que não domino

todas as técnicas das quais um tradutor experiente dispõe. Coube, então, à Maria Aparecida

Pereira Botelho Soares312 a correção criteriosa dos contos “Um leitor” e “O homem”.

Aventurando-me nesse âmbito, o meu aprendizado maior foi o de ser uma produtora de sentido

enquanto intérprete. Uma vez percorrido o caminho traçado pela pesquisa autobiográfica, traduzir

pequenas obras justificou a certeza da interferência, mesmo dosada, da minha subjetividade no

311 GÓRKI, Maksim. Pequenos Burgueses. São Paulo: Hedra, 2010, p. 13. Introdução de Elena Vássina. 312 Tradutora de várias obras russas, dentre as quais destacam-se: Notas do subsolo, de Dostoiévski, A felicidade conjugal e O diabo, de Tolstói, A dama do cachorrinho e outros contos e Um negócio fracassado e outros contos de humor, de Tchékhov.

268

discurso de Górki. Porém, consciente de que não há representação perfeita do texto original,

contribuí para que a busca pela máxima correspondência com as mensagens veiculadas pelos

originais fosse preservada.

A identificação entre mim e Górki, portanto, tornou mais efetivas as traduções, uma vez

que houve a chance para que ocorresse um intercâmbio humano. A partir daí, o sentido das

mensagens dos contos de Górki incluíram aspectos culturais que foram decodificados,

compartilhados e difundidos pelo exercício tradutório. Os contos unidos à trilogia evidenciam a

construção da narrativa gorkiana como um constante embaralhamento temporal dos

acontecimentos vividos, ou seja, o presente, o passado e o futuro apresentam-se de maneira

concomitante. Assim, a autobiografia gorkiana não se confirma como uma “genuína confissão”,

pois Górki conseguiu criar um mundo baseado no real, preponderantemente ficcional, afinal

ele denunciou aquela mesma vida russa que hoje nós endeusamos sob o nome de “matriz nacional”, pois ele foi contra o que nós consideramos nossas características nacionais. Ele nos ensinou a não sermos passivos, a discordar, a não parar. Em suma: nos ensinou a sair de um pântano que agora, depois de muitos anos de tempestades e enganos, parece tão acolhedor. (...) É por isso que atualmente, na habitual reviravolta do caminho histórico russo, vale a pena lembrar, ler e reler o singular, inconstante e pujante escritor Maksim Górki. Chega de nos perguntarmos se Górki existiu.

Sim, ele existiu.313 E se assim duvidarmos de que os episódios descritos na narrativa aconteceram igualmente

na realidade ou de que os personagens foram ou agiram exatamente da maneira apresentada nos

três livros, a “autobiografia tratada literariamente”314 terá cumprido o papel questionador da

literatura russa. Afinal, nas palavras do próprio Górki, “às vezes, a mentira explica melhor que a

verdade o que se passa na alma” 315.

313 BIKOV, Dmitri. Bil li Górki? Moscou: Astriel, 2008, p. 103 (versão e-book). CITAÇÃO ORIGINAL: “Ведь он обличал ту самую русскую жизнь, которую мы сегодня обожествляем под именем «национальной матрицы». Ведь он выступал против того, что мы сегодня считаем своей национальной спецификой. Ведь он учил не мириться, не соглашаться, не останавливаться – словом, вылезать из того болота, которое сегодня, после многих лет бурь и путаницы, выглядит таким уютным (...) Именно поэтому сегодня, на очередном переломе русского исторического пути, стоит помнить, читать и перечитывать странного, неровного и сильного писателя Максима Горького.

Хватит спрашивать себя, был ли Горький. Он – был”. 314 CANDIDO, Antônio. Ficção e confissão. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999, p. 64. 315 Frase retirada do site: www.quemdisse.com.br, código S5FZX5JM6ZL8H5217165.

269

Ilustração 52: Górki Ilustração 53: Górki com seu filho (Maksim), sua nora

(Nadiejda) e suas netas, Marfa e Dária

Ilustração 54: Com as netas, Marfa e Dária

270

Ilustração 55: Górki, em visita à URSS, e Stálin, 1930 Ilustração 56: Górki em sua chegada à

URSS, em 27 de maio de 1931

Ilustração 57: Górki e A. Zdânov no I congresso de escritores soviéticos (à esquerda) e no enterro de seu filho,

Maksim-1934

Ilustração 58: Casa de campo de Górki. Entre um grupo de estudantes, Górki com Romain Rolland ao seu lado esquerdo

271

Ilustração 59: Górki em seu leito de morte, 1936 Ilustração 60: Cortejo fúnebre liderado por Stálin Stálin Stálin

Ilustração 61: Público presente no funeral de Górki

Ilustração 62: Muro do Kremlin onde as cinzas de Górki foram guardadas

272

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PRODUÇÕES CINEMATOGRÁFICAS RUSSAS

A mãe. Direção de Vsevolod Pudovkin, 1924.

A greve. Direção de Serguei Eisenstein, 1924.

O encouraçado Potemkin. Direção de Serguei Eisenstein, 1925.

Arca russa. Direção de Aleksandr Sokúrov, 2008.

Réquiem a Lênin. Direção de Dziga Vertov, 1924.

O espelho. Direção de Andrei Tarkóvski, 1974.

A infância de Górki. Direção de Mark Donskói, 1935.

286

ANEXOS (Créditos das fotos e das reportagens antigas: internet)

287

LISTA DOS ANEXOS: ANEXO a: Denúncia de Górki contra o tsar

ANEXO b: Sobre a detenção de Górki

ANEXO c: Opinião de Górki sobre a Rússia

ANEXO d: Sobre a prisão de Górki em Riga

ANEXO e: Entrevista com Górki

ANEXO f: Sobre a contribuição financeira de Górki para o partido comunista

ANEXO g: Sobre o encontro de Górki e Mark Twain

ANEXO h: Sobre a passagem de Górki pela Alemanha

ANEXO i: Sobre o processo sofrido por Górki e confisco da obra A Mãe

ANEXO j: Sobre a vida em Cápri e a visita a Roma

ANEXO k: Sobre a passagem de Górki pelos Estados Unidos da América

ANEXO l: Sobre a opinião de Górki acerca da situação política da Rússia

ANEXO m: Sobre a publicação de Ganhando meu pão

ANEXO n: Notícias de Górki no Brasil

ANEXO o: Sobre a massa russa

ANEXO p: Sobre a morte de Górki

288

Anexo a:

289

Copyright © The New York Times Published: April 9, 1905

290

Anexo b:

291

Anexo c:

292

293

294

Anexo d:

295

Anexo e:

296

Published: November 6, 1910Copyright © The New York Times

297

Anexo f:

298

299

Anexo g:

300

Anexo h:

302

Anexo i:

303

Anexo j:

304

Anexo k:

305

Anexo l:

306

307

Anexo m:

308

Anexo n:

309

Anexo n:

310

311

Anexo p:

June 19, 1936

OBITUARY

Maxim Gorky Dies At Moscow Villa

Special Cable to THE NEW YORK TIMES

MOSCOW, June 18.--Maxim Gorky, most famous of contemporary Russian novelists, died shortly before noon today of heart disease, the result of pulmonary congestion following grip. He had been ill for two weeks. His heart weakness had already given rise to anxiety, which was greatly accentuated yesterday. He died in his country villa, about thirty miles from Moscow, at the age of 68.

Gorky had become one of the most popular figures in the U.S.S.R. in recent years as he gradually passed from a sympathizer to one of the warmest supporters of the Soviet regime. He played a leading role at the International Writers Congress in Moscow in the Summer of 1934. His photograph in the congress hall was nearly as large as Stalin's.

Although he did not participate in politics directly and was not a member of the Bolshevist party, he championed the Soviet cause unequivocally. Tverskaya Street, one of the leading thoroughfares of Moscow, was named Gorky Street in his honor.

There will be a great public funeral on Saturday or Sunday and the body will lie in state in Moscow for twenty-four hours previously.

Tribute From London

Special Cable to THE NEW YORK TIMES

LONDON, June 18.--The Times of London in an appreciation of Maxim Gorky says:

"If any of his works survive as literature and not merely as documents in the stages of the Russian Revolution, they may be not his novels and short stories for which he became famous in early life, but the odd,

312

unchronicled volumes of reminiscence on which he worked when his health permitted after the downfall of the old regime. Collectively called 'My Universities,' they make as fascinating a gallery of curious portraits and pictures of outlandish ways of life as can be found in the works of Dickens at his most fantastic.

"The success of his plays was probably due more to admirable presentation by the Moscow Art Theatre than to intrinsic merit."

Comment From Shaw

By The Associated Press

LONDON, June 18.--George Bernard Shaw, informed of the death of Maxim Gorky, said today:

"I dare say it's time for all us nineteenth century writers to clear out. You'd better prepare my obituary. You never know."