pedro madeira, liberdade de expressão
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Liberdade de expressãoPedro MadeiraKing's College London
A recente publicação de várias caricaturas sobre o profeta
Maomé numa revista dinamarquesa tem suscitado várias
reações diferentes, sendo frequentemente posta a questão de
quais devem ser os limites da liberdade de expressão.
O princípio do dano
O problema de saber quais os limites da liberdade de
expressão faz parte de um problema mais amplo: o problema
de saber quais os limites da liberdade civil. É importante frisar
que este problema cai no âmbito da filosofia política, e não da
metafísica. O problema metafísico da liberdade é,
essencialmente, este: será que a existência das leis da
natureza torna impossível o livre-arbítrio — a livre capacidade
de fazer escolhas e tomar decisões? Não é este o problema em
que estamos, de momento, interessados. O problema em que
estamos, de momento, interessados é: em que casos pode o
estado legitimamente interferir na liberdade dos cidadãos?
Acho que o ponto natural de partida para tentar responder a
este problema é a defesa de Mill em Sobre a
Liberdade daquele que veio a ser conhecido como o "princípio
do dano". (Mais para a frente explicarei por que razão acho que
é o ponto de partida natural para a discussão. Por agora estou
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só preocupado em explicar o que é.) Mill formula-o do seguinte
modo, no primeiro capítulo de Sobre a Liberdade:
"É o princípio de que o único fim para o qual as pessoas estão justificadas, individual ou coletivamente, em interferir na liberdade de ação de outrem, é a autoproteção. É o princípio de que o único fim para o qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a vontade deste, é o de prevenir um dano a outros."
A ideia do princípio do dano é, portanto, que só é permissível
limitar a liberdade de alguém para garantir a segurança de
outra pessoa. O princípio do dano, tal como está formulado,
tem vários problemas: um dos mais sérios é a sua recusa
(quase) absoluta de leis paternalistas: leis que visam impedir
que a pessoa faça mal a si própria. Se o princípio do dano
fosse integralmente respeitado, então não seria possível
obrigar as pessoas a usar cinto de segurança. Este parece um
exemplo bastante inofensivo de uma lei paternalista. Mill aceita,
de facto, a implementação de algumas leis que poderiam ser
consideradas paternalistas (Mill acharia, por exemplo, que seria
legítimo impedirmos uma pessoa de tomar uma bebida
envenenada caso a pessoa não soubesse que estava
envenenada) — mas isso não interessa agora. Falo sobre isso
mais detalhadamente na minha introdução a Sobre a
Liberdade (Edições 70, no prelo).
Ponhamos de parte esse problema e concentremo-nos no
seguinte: se concordamos com o princípio do dano, então qual
deve ser a nossa posição em relação à liberdade de
expressão? Lembremo-nos de que o princípio do dano implica,
em termos práticos, que o ónus da prova está sempre do lado
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de quem quer proibir, e não do lado de quem quer permitir. Mill
argumenta que a liberdade de expressão deve ser quase total.
A única excepção mencionada por Mill (no princípio do terceiro
capítulo) é o caso da pessoa que está numa manifestação em
que os ânimos estão exaltados e grita certas palavras de
ordem que constituem uma incitação à violência. Mill acha que
não é permitida liberdade de expressão para dizer tais palavras
de ordem em tais circunstâncias. É importante frisar que
as mesmas palavras de ordem, ditas noutras circunstâncias,
seriam permitidas. Parafraseando Mill: deve ser permitido
escrever um artigo para o jornal a defender que a propriedade
privada é um roubo; mas não deve ser permitido dizê-lo à porta
da casa de um latifundiário perante uma turba exaltada.
O princípio do dano e as caricaturas de Maomé
Será que o princípio do dano é ou não favorável à publicação
de caricaturas como as que foram recentemente publicadas
sobre Maomé? Como já foi dito, o ónus da prova está sempre
do lado de quem quer proibir, e não do lado de quem quer
permitir; por isso, o ónus da prova está do lado de quem quer
proibir a publicação do tipo de caricaturas em questão. Só vejo
três tipos de argumentos que alguém que aceite o princípio do
dano mas se oponha à publicação pode usar: o argumento de
que a publicação das caricaturas constitui um dano; o
argumento de que a publicação das caricaturas constitui uma
incitação à violência; e o argumento de que a própria revista
dinamarquesa, antevendo as graves consequências da
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publicação das caricaturas, se devia ter coibido de as publicar,
por um acto de autocensura. Olhemos para estes três
argumentos à vez.
Primeiro argumento contra a publicação das caricaturas
De acordo com o primeiro argumento contra a publicação das
caricaturas, a própria publicação de caricaturas do profeta
Maomé constitui um dano para todos os muçulmanos, pelo que
não deviam ter sido publicadas. Este é um mau argumento pela
seguinte razão: coloca demasiado baixa a fasquia do tipo de
comportamentos que podem ser considerados danos. Se
aceitássemos que a publicação das caricaturas constituía um
dano, então várias coisas que intuitivamente não consideramos
serem danos seriam considerados danos. Suponhamos que eu
professo a religião X, que defende que o simples facto de uma
qualquer pessoa dizer em público que não acredita no nosso
deus é ofensivo para nós, e constitui um dano. É evidente que
tal coisa nunca poderia constituir um dano — dizermos que
discordamos de uma pessoa nunca poderia, por si só, ser
considerado um dano. No entanto, se aceitássemos que a
publicação das caricaturas constituía um dano a todos os
muçulmanos, então seria difícil não considerar também um
dano a todos os que professassem a religião X o simples facto
de se dizer em público que não se acreditava no deus de X.
Logo, de modo a não colocarmos demasiado baixa a fasquia
do tipo de comportamentos que podem ser considerados
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danos, devemos considerar que a publicação das caricaturas
de Maomé não constituiu um dano.
(Um aparte: sempre que apresento este argumento, muitas
pessoas reclamam que a analogia entre o islamismo e a minha
religião fictícia não colhe porque a minha religião é fictícia e o
islamismo é uma religião real. Mas isso não tem qualquer
importância para o argumento. O exemplo da religião fictícia
serve apenas para testarmos as nossas intuições sobre o que
deve ou não ser considerado um dano. Para além do mais, não
parece muito difícil acreditar que uma tal religião tenha existido.
Quando penso, por exemplo, na Inquisição Espanhola, não me
custa a acreditar que muitas pessoas reais tenham sentido que
a simples existência de pessoas com crenças diferentes das
suas constituísse um dano à sua fé. Por isso, o meu exemplo
talvez não seja tão rebuscado como possa à primeira vista
parecer.)
Há uma lição muito importante a extrair daqui: o facto de um
comportamento ser de mau gosto não significa que constitua
um dano. Para ilustrar melhor este ponto, gostaria de
apresentar um exemplo verídico. Há um ano ou dois houve na
Inglaterra alguma consternação pública porque um conhecido
cómico de stand-up fez uma piada de mau gosto sobre um
inglês que havia sido raptado por terroristas no Iraque. Todos
os dias pareciam surgir nos meios de comunicação
informações contraditórias sobre a dita vítima: uns dias dizia-se
que estava vivo, outros dias dizia-se que estava morto. O
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cómico disse então qualquer coisa como: "Não acham que eles
[os terroristas] deviam simplesmente resolver o assunto de uma
vez por todas?" Penso que a maior parte das pessoas
concordará que se tratou de uma piada de muito mau gosto.
Mas devia o cómico em questão ser proibido de dizer essa
piada? Não.
É importante ter em mente que a liberdade de expressão é um
problema político, e não ético. Perguntar quais são os limites
da liberdade de expressão é perguntar em que casos pode o
estado legitimamente interferir na liberdade dos cidadãos. Não
é perguntar em que casos é imoral dizer algo em público. O
comportamento do cómico de stand-up foi imoral, mas não nos
passaria pela cabeça dizer que devíamos proibi-lo de se
comportar assim. É bom que nem todas as coisas imorais
sejam proibidas por lei. Não nos encontrarmos com um amigo à
hora marcada porque nos apeteceu ficar em casa a ver
televisão e não nos demos ao trabalho de desmarcar o
encontro é uma atitude condenável — mas não deve ser
punida por lei.
Em conclusão: a publicação das caricaturas de Maomé não
constituiu um dano aos muçulmanos.
Segundo argumento contra a publicação das caricaturas
Passemos ao segundo argumento contra a publicação das
caricaturas. De acordo com este argumento,
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independentemente de a publicação das caricaturas ter ou não
constituído um dano aos muçulmanos, é de qualquer modo
verdade que constituiu uma incitação à violência, pelo que não
deviam ter sido publicadas. Este é um mau argumento
essencialmente pela mesma razão pela qual o primeiro
argumento é mau: coloca demasiado baixa a fasquia do tipo de
comportamentos que podem ser considerados incitações ao
dano. Tomemos o caso dos terroristas americanos que há
alguns anos puseram bombas em clínicas que realizavam
abortos. Suponhamos que um jornal qualquer publicava
caricaturas sobre esses bombistas, e que os bombistas
retaliavam colocando bombas nesses jornais. Depois de isso
acontecer, faria sentido dizer que quaisquer novas publicações
de caricaturas sobre os bombistas constituiriam uma incitação
à violência? É evidente que não. Publicar novas caricaturas
depois de outros jornais terem sido alvo de ataques talvez
fosse algo arriscado para a segurança das pessoas a trabalhar
no jornal, mas não constituiria, certamente, uma incitação à
violência. No entanto, se considerássemos que a publicação
das caricaturas de Maomé constituía uma incitação à violência,
então também teríamos de considerar que tais caricaturas
sobre os bombistas também constituiriam uma incitação à
violência. Logo, a publicação das caricaturas de Maomé não
constituiu uma incitação à violência.
É natural que surja agora uma dúvida ao leitor: parece
simplesmente falso que a publicação das caricaturas — tanto
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no caso real como no caso imaginário — não constitua uma
incitação à violência. É importante esclarecer esta dúvida para
se entender cabalmente as duas objecções apresentadas aos
possíveis argumentos contra a publicação das caricaturas. É
importante ter isto em mente: os termos "dano" e "incitação à
violência" têm sido usados ao longo deste artigo como termos
normativos, e não como termos descritivos. O que isso significa
é, essencialmente, o seguinte: não basta que um
comportamento constitua um dano ou uma incitação à
violência, no sentido comum — descritivo — de "dano" e
"incitação à violência", para que seja um dano ou uma incitação
à violência no sentido normativo dos termos. No sentido
comum do termo "dano", os presidentes dos clubes de futebol
portugueses passam a vida a provocar dano uns aos outros —
mas tais não são danos no sentido normativo do termo, e não
devem ser proibidas. Do mesmo modo, gritar incentivos a um
pugilista durante um combate de boxe constitui uma incitação à
violência no sentido comum de "incitação à violência" — mas
não no sentido normativo, e não deve ser proibido. Neste
artigo, pois, "dano" e "incitação à violência" significam, à falta
de termos melhores, dano ilegítimo e incitação ilegítima à
violência.
Podemos, então, reformular as duas conclusões até agora
alcançadas: a publicação das caricaturas de Maomé não
constituiu um dano ilegítimo aos muçulmanos; e a publicação
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das caricaturas de Maomé não constituiu uma incitação
ilegítima à violência.
Terceiro argumento contra a publicação das caricaturas
De acordo com o terceiro argumento contra a publicação das
caricaturas, não é tanto o caso que o estado devesse proibir a
publicação — as próprias pessoas que publicaram as
caricaturas deviam ter tido o bom senso de não as publicar. Ou
seja, este argumento não defende a não publicação das
caricaturas por proibição superior; mas sim que, sabendo as
pessoas da revista que a publicação das caricaturas traria
graves problemas, elas próprias deviam ter-se coibido de as
publicar por um acto de auto-censura. Suspeito que muitas das
pessoas que se opuseram à publicação das caricaturas se
estariam a basear neste argumento, e não nos outros dois que
já discuti. É por isso fundamental explicar este argumento em
pormenor.
Antes de mais, é importante perceber a diferença subtil entre
este argumento e o segundo argumento. O segundo argumento
procura mostrar que a publicação das caricaturas foi
moralmente equivalente ao caso da pessoa que grita palavras
de ordem incendiárias em frente da casa de um latifundiário
perante uma turba exaltada. Este terceiro argumento não
procura estabelecer uma conclusão tão forte. Só procura
estabelecer o seguinte: independentemente de publicar as
caricaturas ter ou não sido moralmente equivalente a gritar
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palavras de ordem incendiárias perante uma turba exaltada, é
de qualquer modo verdade que, sabendo as pessoas da revista
que a publicação das caricaturas traria graves problemas, elas
próprias deviam ter-se coibido de as publicar por um ato de
autocensura. Penso que este terceiro argumento também não
funciona; passo a explicar porquê.
Li recentemente que a Opus Dei defende que certas partes do
novo filme de Ron Howard, O código Da Vinci, baseado no livro
com o mesmo nome de Dan Brown, devem ser cortadas,
porque podem dar aos espectadores uma ideia errada da Opus
Dei. Urge agora perguntar às mesmas pessoas que defendem
que a revista dinamarquesa se devia ter autocensurado e não
publicado as caricaturas: deverá Ron Howard autocensurar-se
também e cortar as partes do filme com as quais a Opus Dei
não está satisfeita? Vejamos as duas opções à vez.
Suponhamos que dizem que sim. Isso constituiria,
efetivamente, uma redução ao absurdo da posição de que a
revista dinamarquesa se devia ter coibido de publicar as
caricaturas por um ato de autocensura. Ou seja: não faz
sentido dizer que essas partes devem, por um ato de
autocensura, ser retiradas do filme só porque não são do
agrado da Opus Dei (porque isso colocar-nos-ia numa encosta
escorregadia em direção a uma sociedade onde nada que
tivesse a possibilidade remota de ofender alguém devesse
passar o teste da autocensura e ser publicado); logo, se ao
defendermos que a revista dinarmaquesa se devia ter coibido
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de publicar as caricaturas por um ato de autocensura estamos
comprometidos com a posição de que essas partes que não
agradam à Opus Dei devem, por um ato de autocensura, ser
retiradas do filme, então devemos simplesmente rejeitar a
posição de que a revista dinarmaquesa se devia ter coibido de
publicar as caricaturas por um ato de autocensura. Podemos
agora começar a vislumbrar que tipo de sociedade é que seria
gerada por uma cultura de autocensura supostamente baseada
no bom senso e no respeito mútuo — e é evidente que não
parece sítio em que a maior parte de nós quisesse viver.
Suponhamos agora que as pessoas que defendem que a
revista dinamarquesa se devia ter coibido de publicar as
caricaturas por um ato de autocensura dizem que Ron
Howard não devia retirar, por um ato de autocensura, essas
partes que não agradam à Opus Dei. Nesse caso, é de
perguntar: será que só nos devemos autocensurar e não
publicar uma opinião ou uma caricatura quando haja o risco de
os potenciais ofendidos retaliarem violentamente? Esta seria
uma atitude digna dos mais fervorosos seguidores
da Realpolitik — uma doutrina cínica da vida política (que no
século XX teve talvez em Henry Kissinger o seu expoente
máximo) de acordo com a qual os estados devem tomar
decisões unicamente com base no seu próprio interesse, e não
em ideais como a justiça e a fraternidade.
Eu consideraria que o simples facto de a posição de que a
auto-censura é justificada apenas quando haja a forte
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possibilidade de os potenciais ofendidos retaliarem
violentamente se basear unicamente em razões puramente
egoístas, e não em princípios morais, já seria suficiente para
minar essa posição. No entanto, dado o grande número de
adeptos (assumidos ou envergonhados) da Realpolitik, é
provável que esta minha posição receba um sorriso
condescendente. Por isso, vale também a pena notar que
fomentar a autocensura apenas quando haja a forte
possibilidade de os potenciais ofendidos retaliarem
violentamente não é sequer uma boa ideia em termos egoístas!
Isto por uma razão simples: coibirmo-nos sistematicamente de
criticar pessoas de quem discordamos, para não provocarmos
a sua ira, é algo que cheira, na melhor das hipóteses, a
hipocrisia (dado que os muçulmanos que ficaram ofendidos
com as caricaturas obviamente já sabiam que algumas das
ideias implícitas nas mesmas estavam amplamente difundidas
na Europa); e cheira, na pior das hipóteses, a um paternalismo
altamente ofensivo (porque pode fazer que esses mesmos
muçulmanos sintam que os ocidentais acham que eles são
bárbaros com os quais não vale a pena discutir). E comprar a
paz com o forte risco de incorrer em suspeitas de hipocrisia e
paternalismo é estar a comprar uma paz podre.
É interessante observar que, neste aspecto, os estados (e, de
um modo geral, grandes grupos de pessoas) não parecem
comportar-se de modo muito diferente de pessoas individuais.
É sabido que, quando duas pessoas estão irritadas uma com a
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outra, o mais pequeno incidente pode levar a grandes
discussões. Mas a solução para o problema não é
simplesmente evitar a todo o custo a discussão; isso
provavelmente só aumentaria a tensão e eventualmente faria
que qualquer discussão que viesse a rebentar causasse
inevitavelmente uma rutura irreversível. A mesma coisa se
passa, creio, no caso dos estados (e, de um modo geral,
grandes grupos de pessoas): evitar a todo o custo querelas
(comparativamente) pequenas como esta das caricaturas, e
causar assim a suspeita de hipocrisia e de paternalismo, que
por sua vez levam a uma subida da tensão, poderá talvez servir
para assegurar a paz a curto prazo, mas também aumenta
fortemente a possibilidade de que um dia venha eventualmente
a ocorrer uma rutura irreversível.
Gostaria ainda de fazer outra simples constatação empírica. A
verdade é esta: de um modo geral, é mais fácil termos respeito
por pessoas acerca das quais fazemos piadas do que por
pessoas em relação às quais estamos sempre de pé atrás para
termos o cuidado de não as ofender. Não percebo exatamente
por que razão são as coisas assim. O meu palpite é este:
fazermos piadas sobre as pessoas ajuda-nos a sentir empatia
por elas; ajuda-nos a sentir que são seres imperfeitos como
nós, e não seres estranhos de outra galáxia. Assim, não posso
deixar de aqui mencionar a resposta absolutamente exemplar
dada por Miguel Góis no blog do Gato Fedorento a dois leitores
que o criticaram por ter feito uma piada a gozar com a doença
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de Stephen Hawking (veja-se a piada original no arquivo de 28
de Julho de 2004 e a resposta aos leitores em 12 de Agosto do
mesmo ano em http://gatofedorento.blogspot.com/). Diz ele que
evitar a todo o custo fazer piadas sobre deficientes constitui
"uma perversa forma de os inferiorizar". E dá mais abaixo, na
mesma resposta, um exemplo revelador de como toda essa
preocupação em fazer humor politicamente correto se acaba
por revelar uma forma encapotada de paternalismo: em várias
séries e filmes americanos, os negros costumavam ser
retratados como pessoas simpáticas "para além do
humanamente possível". Isto faz-me exatamente pensar na
atitude de alguns intelectuais que procuram a todo o custo
evitar dizer o que quer que seja de negativo em relação aos
muçulmanos — supostamente para mostrar respeito por eles, e
não os hostilizar. Tal como no caso referido por Miguel Góis, a
solução não é essa. Góis menciona então o caso exemplar da
série Tudo em família, que incluía a personagem de Lionel
Jefferson: "Mr. Jefferson é a personagem negra mais antipática
e arrogante que jamais surgiu no pequeno écran; Lionel
parodia justamente a figura do negro simpatiquíssimo e
submisso". Penso que a solução a adotar em relação ao
islamismo deve ser semelhante: não devemos ter medo de
brincar com o islamismo; a longo prazo, brincar com o
islamismo ajudará aqueles de entre nós que não são
muçulmanos a sentir empatia por eles, e a encará-los como
seres imperfeitos como todos os outros, e não como seres
estranhos de outra galáxia.
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Para além da importância da liberdade de expressão para o
estabelecimento de relações fraternas entre pessoas de
diferentes proveniências, crenças e meios sociais, que até aqui
realcei, é preciso também não esquecer que, como Mill
defende no segundo capítulo de Sobre a Liberdade, um dos
grandes benefícios da liberdade de expressão é o facto de que
constitui um importante motor para a busca da verdade. Pois se
a opinião que se procura censurar for verdadeira, então
censurá-la priva-nos de descobrir a verdade; e se a opinião
censurada for falsa, então censurá-la priva-nos de
conseguirmos fornecer uma mais robusta defesa da nossa
posição. Parafraseando Mill, quando as opiniões não são
questionadas e confrontadas, tornam-se em opiniões "mortas"
— coisas que repetimos sem saber muito bem porquê. Por
isso, censurar uma opinião é sempre mau para a preservação
da saúde da democracia — quer essa opinião seja verdadeira,
ou não.
Em suma: a censura é sempre uma coisa má, quer seja
imposta superiormente, ou autoimposta; quer seja uma
censura de jure — imposta por lei — ou uma censura
meramente de facto — não imposta por lei, mas inculcada na
mente das pessoas. Como já disse, fazer por instalar um clima
em que não se publiquem caricaturas ou opiniões só para
evitar o risco de ofender outras pessoas nada augura de bom.
O princípio do dano não permite proibir a publicação das caricaturas de Maomé
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Como já foi dito, o ónus da prova está sempre do lado de que
quem quer proibir, e não do lado de quem quer permitir. Por
isso, o ónus da prova está do lado de quem quer proibir a
publicação de caricaturas como as que foram recentemente
publicadas. Foram analisados os três principais argumentos
conta a publicação das caricaturas. Mostrou-se que todos os
argumentos são maus. Por isso, a conclusão geral a retirar
deste artigo é que quem aceite o princípio do dano, tal como
está formulado, deverá também aceitar que o estado não deve
proibir a publicação de caricaturas como as que foram
recentemente publicadas.
O diretor da revista dinamarquesa que publicou as caricaturas
disse que perguntarem-lhe se se arrependia de ter publicado
as caricaturas era como perguntarem a uma vítima de violação
se se arrependia de ter ido com uma minissaia para a discoteca
na sexta à noite. Acho que esta resposta acerta em cheio no
alvo: tanto a revista como a hipotética vítima de violação
fizeram algo que tinham todo o direito a fazer, mas sofreram
por isso.
Princípio do dano: o ponto de partida natural
Tal como prometido no início do artigo, passo agora a dizer por
que razão penso que o princípio do dano constitui o ponto de
partida natural para a discussão dos limites da liberdade civil.
Penso isso porque, por um lado, um princípio mais liberal, que
procure limitar ainda mais os casos de intervenção legítima do
estado na liberdade dos cidadãos, corre o perigo de nos
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empurrar para o anarquismo; e um princípio menos liberal terá
de ser teoricamente muito complicado para conseguir
responder às objeções que nos chamam a atenção para
exemplos aparentemente positivos de paternalismo, como a lei
que nos obriga a usar cinto de segurança (o que não quer dizer
que um princípio menos liberal não seja afinal verdadeiro, claro:
a verdade não costuma ser simples).
Devo repetir que não acho que o princípio do dano seja o fim
da discussão — acho que é o princípio da discussão. Talvez
uma analogia ajude a entender o que quero dizer. Quando se
ensina lógica aos alunos, começa-se por ensinar-lhes lógica
clássica, e não lógicas intuicionistas ou para consistentes.
Porquê? Bom, porque tanto as lógicas intuicionistas como as
para consistentes se afastam, de algum modo, da lógica
clássica: as lógicas intuicionistas rejeitam a lei da bivalência; as
lógicas para consistentes rejeitam a lei da não-contradição.
Para que os alunos entendam bem as lógicas intuicionistas e
para consistentes — e venham a conseguir formar uma posição
informada sobre elas, positiva ou negativa — têm primeiro de
dominar a lógica clássica. Como dizia o meu professor de
lógica: primeiro aprende a andar de bicicleta como deve ser;
depois, se quiseres, já podes guiar sem mãos.
Penso que a mesma coisa se passa com o princípio do dano.
Primeiro devemos todos ter a humildade de tentar entendê-lo e
perceber quais as suas vantagens e desvantagens. Depois, se
quisermos, podemos então abandonar o princípio do dano e
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tentar defender uma posição que penda mais para o
anarquismo, ou para o paternalismo.
Conclusão
Num interessante artigo que escreveu recentemente para
o Der Spiegel, Ibn Warraq começou por citar John Stuart Mill.
Passo a transcrever a citação:
"É estranho que os homens admitam a validade dos argumentos a favor da livre discussão, mas objetem a que sejam "levados ao extremo"; não vendo que a menos que as razões sejam boas para um caso extremo, não são boas para qualquer caso."
Aceitar os argumentos até aqui apresentados e mesmo assim
estar reticente em relação à legitimidade da publicação das
caricaturas seria estar a cometer o erro para que Mill alerta.
Seria como se um proprietário de escravos aceitasse os nossos
argumentos a favor da posição de que é errado bater nos
escravos, e depois logo de seguida nos perguntasse se não
fazia mal bater-lhes só às quintas-feiras.
Pedro Madeira
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