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  • Presidente da Republica Fernando Henrique Cardoso

    Ministro de Estado da Educao Paulo Renato Souza

    Secretrio Executivo Luciano Oliva Patrcio

  • Educao para jovens e adultos Ensino Fundamental Proposta

    Curricular - 1o Segmento

    Vera Maria Masago Ribeiro (coordenao e texto final) Cludia Lemos Vvio

    Dirceu da Silva Margarete Artacho de Ayra Mendes

    Maria Ambile Mansutti Maria Clara Di Pierro

    Maria Isabel de Almeida Orlando Jia

    Sao Paulo/Braslia, 1999

    3a Edio

  • Secretaria de Educao Fundamental Iara Glria Areias Prado Departamento de Poltica da Educao Fundamental: Mrcia Ferreira da Silva (Diretora Substituta) Coordenao-Geral de Educao de Jovens e Adultos Leda Maria Seffrin

    AO EDUCATIVA - ASSESSORIA, PESQUISA, INFORMAO

    Av. Higienpolis, 901 CEP 01238-001 So Paulo - SP Brasil Tel. (011) 825.5544 Fax: (011) 66-1082 E-mail: [email protected]

    Diretoria: Marlia Pontes Sposito Carlos Rodrigues Brando Pedro Pontual Nilton Bueno Fischer Vicente Rodriguez

    Secretrio Executivo: Srgio Haddad

    EDUCAO PARA JOVENS E ADULTOS ENSINO FUNDAMENTAL

    PROPOSTA CURRICULAR PARA O 1o SEGMENTO

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Educao para jovens e adultos: ensino fundamental: proposta curricular 1o segmento/coordenao e texto final (de) Vera Maria Masago Ribeiro- So Paulo. Ao educativa: Brasilia: MEC, 1999 239p.

    1. Educao de jovens e adultos. 2 Ensino Fundamental. 3 currculo.

    CDU: 374(81)

  • Sumrio

    Apresentao............................................................................... 5 Nota da equipe de elaborao.................................................... 7 Introduo................................................................................... 13 Breve histrico da educao de jovens e adultos no Brasil ........ 19 Fundamentos e objetivos gerais.................................................. 35

    Lngua Portuguesa....................................................................... ' 49 Fundamentos e objetivos da rea........................................... 51

    A linguagem oral .......................................................... 52 A linguagem escrita ...................................................... 53 A anlise lingstica...................................................... 59 Sntese dos objetivos da rea de

    Lngua Portuguesa ................................................ 60 Blocos de contedo e objetivos didticos ............................. 62

    Linguagem oral.............................................................. 62 Sistema alfabtico e ortografia..................................... 67 Leitura e escrita de textos .............................................. 73 Pontuao ...................................................................... 90 Anlise lingstica......................................................... 92

    Matemtica ................................................................................. 97 Fundamentos e objetivos da rea ......................................... 99

    Noes e procedimentos informais ............................... 100

  • A Matemtica na sala de aula ....................................... 101 A resoluo de problemas ............................................. 103 Os materiais didticos .................................................. 105 Os contedos ................................................................. 107 Sntese dos objetivos da rea de Matemtica ............... 109

    Blocos de contedo e objetivos didticos ............................. 111 Nmeros e operaes numricas .................................. 111 Medidas ......................................................................... 139 Geometria...................................................................... 146 Introduo Estatstica ................................................ 152

    Estudos da Sociedade e da Natureza............................................ 161 Fundamentos e objetivos da rea ......................................... 163

    Os contedos ................................................................. 164 Os conhecimentos dos jovens e adultos e as

    aprendizagens escolares ........................................ 167 Estratgias de abordagem dos contedos..................... 169 As fontes de conhecimento ............................................ 171 Sntese dos objetivos da rea de

    Estudos da Sociedade e da Natureza..................... 172 Blocos de contedo e objetivos didticos............................. 174

    O educando e o lugar de vivncia................................. 174 O corpo humano e suas necessidades........................... 179 Cultura e diversidade cultural ...................................... 184 Os seres humanos e o meio ambiente ........................... 190 As atividades produtivas e as relaes sociais ............. 197 Cidadania e participao ............................................. 203

    Planejamento e avaliao ..................................................... 209 Bibliografia ................................................................................... 231 ndice pormenorizado .................................................................. 236

  • Apresentao

    Este documento deve constituir-se em subsdio elaborao de projetos e propostas curriculares a serem desenvolvidos por organi-zaes governamentais e no-governamentais, adaptados s realidades locais e necessidades especficas.

    Diante das necessidades apontadas pelo quadro das condies de trabalho dos educadores, este Ministrio entende a conquista da au-tonomia pedaggica como uma meta a ser atingida e, portanto, atua sob a convico de que o trajeto dessa conquista exige o zelo do esforo coletivo.

    Assim, este trabalho representa para o MEC a possibilidade de colocar disposio das secretariai estaduais e municipais de educao e dos professores de educao de jovens e adultos um importante instrumento de apoio, com a qualidade de referencial que lhe conferida pelo notrio saber de seus autores.

    Secretaria de Educao Fundamental Ministrio da Educao

    Educao de jovens e adultos

  • Nota da equipe de elaborao

    A iniciativa de elaborar esta proposta curricular surgiu no mbito de Ao Educativa, organizao no-governamental que atua na rea de educao e juventude, combinando atividades de pesquisa, assessoria e informao. Para realizar esse trabalho, Ao Educativa constituiu uma equipe com experincia na educao de jovens e adultos e na formao de educadores. Contou tambm com o apoio de vrias pessoas e instituies que acompanharam o processo de diferentes maneiras.

    Concluda em junho de 1995, uma verso preliminar da proposta foi submetida apreciao de um grupo de onze educadores ligados a diferentes programas de educao de jovens e adultos empreendidos no mbito da sociedade civil. O grupo reuniu-se para esse fim em seminrio realizado por ocasio da III Feira Latino-Americana de Alfabetizao, promovida pela Raaab Rede de Apoio Ao Alfa-betizadora no Brasil em Braslia, no ms de julho de 1995. Esses educadores, ligados a organizaes no-governamentais e movimentos populares, examinaram a proposta e fizeram crticas e sugestes a essa primeira verso, tendo alguns elaborado pareceres por escrito.

    Durante o segundo semestre de 1995, com o apoio da Secretaria de Educao Fundamental do MEC, foi possvel ampliar o mbito das consultas, por meio da realizao de um novo seminrio, dessa vez reunindo educadores ligados a programas governamentais de educao de jovens e adultos, e da solicitao de pareceres de espe-

    Educao de jovens e adultos

  • Nota da equipe de elaborao

    cialistas em educao de adultos e nas reas curriculares abrangidas pela proposta. O seminrio teve lugar em So Paulo, em dezembro de 1995, reunindo dezoito dirigentes e tcnicos ligados a secretarias municipais e estaduais de educao de vrias regies do pas, alm de representante da Secretaria de Educao Fundamental do MEC. Alguns dos participantes elaboraram tambm pareceres por escrito, que se somaram aos dezoito que nos foram enviados por especialistas ligados a diversas universidades e centros de pesquisa em educao.

    J no primeiro semestre de 1996, quando o MEC manifestou Comisso Nacional de Educao de Jovens e Adultos a inteno de co-editar e distribuir esta proposta curricular, sua verso preliminar foi tambm enviada a todos os membros dessa comisso, que se com-prometeram a apreci-la.

    Com base nos debates gerados nos seminrios e pareceres rece-bidos, iniciou-se o trabalho de reviso da verso preliminar, at se chegar forma em que a proposta se apresenta nesta edio. Todo esse processo de consulta foi sumamente valioso para a equipe de elaborao, que pde contar com indicaes de alta qualidade para o aperfeioamento desta proposta. Muitas das crticas e sugestes re-cebidas puderam ser incorporadas ao texto que ora apresentamos. Houve aquelas, entretanto, que no puderam s-lo, pelo menos no de modo que se respeitasse integralmente a intencionalidade com que foram formuladas, seja porque se afastavam da orientao geral as-sumida pela equipe, seja porque avaliamos que sua assimilao estava alm de nossas capacidades no momento.

    Limitaes apontadas como problemticas no texto preliminar e que no nos sentimos em condies de superar nesta verso dizem respeito, por exemplo, sua abrangncia. A presente proposta faz referncia apenas s quatro primeiras sries do ensino fundamental, quando o direito ao ensino fundamental de oito sries representa uma conquista legal que ainda exige todo empenho para se transformar em conquista efetiva. Alm dessa limitao relativa s sries abrangidas, foram apontadas limitaes quanto s reas de conhecimento: a ausncia, nesta proposta, de orientaes especficas paras as reas

    Ao Educativa / MEC

  • Nota da equipe de elaborao

    de Educao Artstica e Educao Fsica ou, de forma mais geral, um tratamento no suficiente das linguagens no-verbais. Outro ponto que por alguns foi considerado insuficientemente enfatizado diz respeito educao para o trabalho, aspecto que sem dvida da maior relevncia em se tratando de ensino fundamental dirigido a jovens e adultos. Selecionamos como exemplos essas limitaes de carter mais geral apontadas nas consultas por considerar que so aspectos prioritrios a serem trabalhados em futuras iniciativas do gnero.

    Os temas que geraram mais polmica por ocasio dos seminrios foram menos os relativos ao contedo poltico-pedaggico da proposta do que os relativos ao modo como poderia ser utilizada. Questionou-se, por exemplo, em que medida uma proposta como essa, co-editada e distribuda por um rgo federal, no acabaria sendo consumida como modelo prescritivo e limitador da necessria flexibilidade que essa modalidade educativa deve ensejar. Alm disso, em que medida uma proposta curricular distribuda nacionalmente poderia contribuir de maneira efetiva para o aperfeioamento das prticas educativas com jovens e adultos quando outras polticas complementares como a de formao de educadores no correspondem ao mnimo desejvel?

    Considerando esses questionamentos, essencial reafirmar que o esprito de nossa iniciativa foi o de oferecer uma proposta curricular como subsdio ao trabalho dos educadores e no o de estabelecer "o currculo" que merecesse ser simplesmente aplicado, seja em escala local, regional ou nacional. Animar o debate em torno da questo curricular, suscitar a divulgao de propostas alternativas ou comple-mentares elaboradas por outras equipes, impulsionar iniciativas de formao de educadores e provimento de materiais didticos so as metas mais importantes que almejamos como resultado deste trabalho. Certamente, a mera existncia de uma proposta curricular como esta no possibilitar o alcance dessas metas sem que haja decidido empenho dos podres pblicos em apoiar iniciativas nesse sentido, com o esprito democrtico e pluralista que convm ao desenvolvimento curricular no campo da educao de jovens e adultos.

    Educao de jovens e adultos

  • Nota da equipe de elaborao

    Finalmente, desejamos agradecer as pessoas e instituies que colaboraram diretamente na realizao deste trabalho, isentando-os, entretanto, de qualquer responsabilidade sobre o seu resultado:

    Pela participao nos seminrios de consulta: Adelaide Maria Costa Silva (Secretaria Municipal de Educao, Rio Bran-co-AC); Adriano Pedrosa de Almeida (Universidade Federal de Pernambuco); Alda Maria Borges Cunha (Universidade Catlica de Gois); Cludio Jos Schimidt Villela (Secretaria de Estado da Educao, Paran); Cristina Schroeter (Adi-tepp Associao Difusora de Treinamento e Projetos Pe-daggicos, Curitiba-PR); Eliana Barreto Guimares (Secretaria de Estado da Educao, Bahia); Elisabete Carlos do Vale (MEB Movimento de Educao de Base, Mossor-RN); Idabel Nascimento Silva (Secretaria Municipal de Educao, Macei-AL); Ivaneide Medeiros Nelson (Secretaria de Estado da Educao, Rio Grande do Norte); Ivone Meireles (Cecup Centro de Educao e Cultura Popular, Salvador-BA); Joo Francisco de Souza (Secretaria Municipal de Educao, Olinda-PE); Jos ngelo Gomes Ferreira (Mova Movi-mento de Alfabetizao de Diadema-SP); Jos Leo da Cunha (MEB Movimento de Educao de Base, Braslia-DF); Laura Emlia de Carvalho Meireles (MEB Movimento de Educao de Base, Teresina-PI); Leila Maria Girotto Belinatti (Secretaria Municipal de Educao/Fundao Municipal para a Educao Comunitria, Campinas-SP); Liana S. Borges (Se-cretaria Municipal de Educao, Porto Alegre-RS); Luis Ma-rine (Secretaria Municipal de Educao, Diadema-SP); Maria das Neves Bessa Teixeira (Secretaria de Estado da Educao, Cear); Maria Helena Caf (Universidade Catlica de Gois); Maria Luisa Angelim (Universidade de Braslia); Maria Luiza Latour Nogueira (Ministrio da Educao e do Desporto); Maria Regina Martins Cabral (Associao de Sade da Periferia, So Lus-MA); Maria Salete Maldonado (Se-

    Ao Educativa / MEC

  • Nota da equipe de elaborao

    cretaria Municipal de Educao, Recife-PE); Maria Silvia Torres Ventura (Secretaria Municipal de Educao, Santos-SP); Pedro Garcia (Nova Pesquisa e Assessoria em Edu-cao, Rio de Janeiro-RJ); Robson Jesus Rusche (Secretaria do Estado da Administrao Penitenciria/Fundao Dr. Manoel Pedro Pimentel/Funap, So Paulo-SP); Zlia Granja Porto (Secretaria de Estado da Educao, Pernambuco).

    Pelo envio de pareceres escritos: Adelaide Maria Costa Silva (Secretaria Municipal de Educao, Rio Branco-AC); Alda Maria Borges Cunha (Universidade Catlica de Gois); An-gela B. Kleiman (Universidade Estadual de Campinas); Ario-valdo Umbelino de Oliveira (Universidade de So Paulo); Clia Garcia, Francisco Cludio Barbosa Lima, Francisco Machado Neto, Jos Dimas Vasconcelos, Ricardo Leo R. Gomes e Teresa Maria da Conceio Arajo Lima (Secretaria de Estado da Educao, Cear); Da Ribeiro Fenelon (Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo); Departa-mento de Ensino Supletivo (Secretaria de Estado da Educao, Paran); Dione Lucchesi de Carvalho (Colgio Santa Cruz, So Paulo-SP); Elisabete Carlos do Vale (MEB Movimento de Educao de Base, Mossor-RN); Ernesta Zam-boni (Universidade Estadual de Campinas); Equipe de Educao Bsica de Jovens e Adultos (Secretaria de Estado da Educao, Mato Grosso); Equipe Multidisciplinar/Seo de Projetos Especiais/Seo de Educao de Jovens e Adultos (Secretaria Municipal de Educao, Santos-SP); Gabriela Barbosa (Associao de Educao Catlica, So Paulo-SP); Gerncia de Educao Bsica de Jovens e Adultos (Secretaria de Estado da Educao, Bahia); Helena Henry Meirelles (Colgio Santa Cruz, So Paulo-SP); Hugo Lovisolo (Universidade Estadual do Rio de Janeiro); Jos Maurcio de Figueiredo Lima (Universidade Federal de Pernambuco); Laura Emlia de Carvalho Meireles (MEB Movimento de Edu-

    Educao de jovens e adultos

  • Nota da equipe de elaborao

    cao de Base, Teresina-PI); Leila Maria Girotto Belinatti (Se-cretaria Municipal de Educao/Fundao Municipal para a Educao Comunitria, Campinas-SP); Liana S. Borges (Secretaria Municipal de Educao, Porto Alegre-RS); Lilian Lopes Martin da Silva (Universidade Estadual de Campinas); Luciola Licinio de Castro Paixo Santos (Universidade Federal de Minas Gerais); Magda Becker Soares (Universidade Federal de Minas Gerais); Manoel Oriosvaldo de Moura (Universidade de So Paulo); Maria do Carmo Martins (Pon-tifcia Universidade Catlica de So Paulo); Maria Isabel Infante (Unesco/Orealc, Santiago do Chile); Maria Regina Martins Cabral (Associao de Sade da Periferia, So Lus-MA); Marta Kohl de Oliveira (Universidade de So Paulo); Nlio Bizzo (Universidade de So Paulo); Pedro Garcia (Nova Pesquisa e Assessoria em Educao, Rio de Janeiro-RJ); Projeto de Educao do Assalariado Rural Temporrio (Curi-tiba-PR); Robson Jesus Rusche (Secretaria do Estado da Ad-ministrao Penitenciria/Fundao Dr. Manoel Pedro Pi-mentel/Funap, So Paulo-SP); Vera Barreto (Vereda Centro de Estudos em Educao, So Paulo-SP); Vivian Leyser da Rosa (Universidade Federal de Santa Catarina).

    Pelo apoio financeiro que viabilizou a execuo desse trabalho: MEB Movimento de Educao de Base; MEC Ministrio da Educao e do Desporto; EZE Evange-lische Zentralstelle fr Entwicklungshilfe E.V (Alemanha); IAF Inter American Foundation (EUA); ICCO Organizao Interclesial de Cooperao para o Desenvolvimento (Holanda).

    So Paulo, julho de 1996

    Ao Educativa /MEC

  • Introduo

    Por que uma proposta curricular

    A educao de jovens e adultos vem se atualizando ante novas exigncias culturais e novas teorias pedaggicas

    O objetivo deste trabalho oferecer um subsdio que oriente a elaborao de programas de educao de jovens e adultos e, conse-qentemente, tambm o provimento de materiais didticos e a formao de educadores a ela dedicados.

    Na reflexo pedaggica sobre essa modalidade educativa, tem especial relevncia a considerao de suas dimenses social, tica e poltica. O iderio da Educao Popular, referncia importante na rea, destaca o valor educativo do dilogo e da participao, a considerao do educando como sujeito portador de saberes, que devem ser reconhecidos. Educadores de jovens e adultos identificados com esses princpios tm procurado, nos ltimos anos, reformular suas prticas pedaggicas, atualizando-as ante novas exigncias culturais e novas contribuies das teorias educacionais.

    Muitos professores que integram os programas de educao de jovens e adultos tm ou j tiveram experincias com ensino regular infantil e, baseados nessa experincia, colocam-se questes. Os mtodos e contedos da educao infantil servem para os jovens e adultos? Quais as especificidades dessa faixa etria? Procurando responder a essas indagaes e aos desafios apresentados por seus alunos, vo tentando adaptaes, mudanas de postura, de estratgias e de contedos.

    Educao de jovens e adultos

  • Introduo

    O que se observa, entretanto, que os educadores se ressentem de um marco mais global que os ajude a articular as inovaes me-todolgicas e temticas numa proposta abrangente e coerente. exa-tamente um marco global que se quis estabelecer nesta proposta, es-perando que ele encoraje os educadores a implementar programas de educao de jovens e adultos e a trabalhar pela sua qualidade.

    A Constituio Federal de 1988 estendeu o direito ao ensino fundamental aos cidados de todas as faixas etrias, o que nos esta-belece o imperativo de ampliar as oportunidades educacionais para aqueles que j ultrapassaram a idade de escolarizao regular. Alm da extenso, a qualificao pedaggica de programas de educao de jovens e adultos uma exigncia de justia social, para que a ampliao das oportunidades educacionais no se reduza a uma iluso e a escolarizao tardia de milhares de cidados no se configure como mais uma experincia de fracasso e excluso.

    Em que consiste a proposta

    As orientaes curriculares aqui apresentadas referem-se alfa-betizao e ps-alfabetizao de jovens e adultos, cujo contedo cor-responde s quatro primeiras sries do Io grau. Elas no constituem propriamente um currculo, muito menos um programa pronto para ser executado. Trata-se de um subsdio para a formulao de currculos e planos de ensino, que devem ser desenvolvidos pelos educadores de acordo com as necessidades e objetivos especficos de seus programas.

    A educao de jovens e adultos correspondente a esse nvel de ensino caracteriza-se no s pela diversidade do pblico que atende e dos contextos em que se realiza, como pela variedade dos modelos de organizao dos programas, mais ou menos formais, mais ou menos extensivos. A legislao educacional brasileira bastante aberta quanto carga horria, durao e aos componentes curriculares desses cursos. Considerando positiva essa flexibilidade, optou-se por uma pro-

    Uma proposta curricular deve ser um subsdio para educadores desenvolverem planos de ensino adequados aos seus contextos

    Ao Educativa / MEC

  • Introduo

    0 currculo deve expressar princpios e objetivos da ao educativa: que tipo de pessoa e de sociedade se deseja formar

    Objetivos gerais devem ser desdobrados em objetivos especficos que possam orientar a prtica

    posta curricular que avana no detalhamento de contedos e objetivos educativos, mas que permite uma variedade grande de combinaes, nfases, supresses, complementos e formas de concretizao.

    Como qualquer proposta curricular, esta no surge do nada; sua principal fonte so prticas educativas que se pretende generalizar, aperfeioar ou transformar. O primeiro captulo dedicado a um breve histrico da educao de jovens e adultos no Brasil, no qual se desta-cam solues e impasses pedaggicos gerados nessas prticas. Espera-se que essa histria ajude os educadores a situar e compreender melhor o significado e o motivo do que aqui se formula como proposta.

    O captulo seguinte dedicado exposio de alguns fundamentos nos quais se baseou a formulao de objetivos gerais da presente proposta para a educao de jovens e adultos. Qualquer projeto de educao fundamental orienta-se, implcita ou explicitamente, por concepes sobre o tipo de pessoa e de sociedade que se considera desejvel, por julgamentos sobre quais elementos da cultura so mais valiosos e essenciais. O currculo o lugar onde esses princpios gerais devem ser explicitados e sintetizados em objetivos que orientem a ao educativa. Nos fundamentos desta proposta, delineia-se uma viso bastante geral da situao social que vivemos hoje, das necessidades educativas dos jovens e adultos pouco escolarizados, do papel da escola e do educador. A elaborao de currculos baseada nessas indicaes, inevitavelmente genricas, exigir dos educadores o esforo de complement-las com anlises de seus contextos especficos, a partir dos quais podero formular de modo mais preciso os objetivos de seus programas.

    Os captulos seguintes so dedicados ao desdobramento dos ob-jetivos gerais em contedos e objetivos mais especficos. Eles esto organizados em trs reas: Lngua Portuguesa, Matemtica e Estudos da Sociedade e da Natureza. Para cada uma dessas reas, expem-se consideraes sobre sua relevncia e sobre a natureza dos conhe-cimentos com que trabalha. Renem-se ainda algumas indicaes metodolgicas e alguns aportes das teorias sobre o ensino e a apren-dizagem de seus contedos. Os objetivos propostos para cada rea

    Educao de jovens e adultos

  • Introduo

    tratam de concretizar os objetivos educativos gerais, delimitando-os em campos de conhecimento.

    Para cada rea, so definidos blocos de contedos com um elenco de tpicos a serem estudados. Para cada tpico, h um conjunto de objetivos didticos, que especificam modos de abord-los em diferentes graus de aprofundamento. Pelo seu grau de especificidade, esses objetivos oferecem tambm muitas pistas sobre atividades didticas que favorecem o desenvolvimento dos contedos.

    Os objetivos didticos referem-se aprendizagem de contedos de diferentes naturezas. Predominantemente, eles se referem a contedos de tipo procedimental, ou seja, ao aprender a fazer. Referem-se tambm aprendizagem de fatos e conceitos que os educandos tero oportunidade de conhecer. Contedos referentes a atitudes e valores, dada a sua natureza, esto melhor contemplados nos objetivos gerais ou de rea; ainda assim, nos casos pertinentes, objetivos atitudinais foram relacionados tambm a tpicos de estudo especficos.

    Expressando diferentes graus de aprofundamento em que um tpico de contedo pode ser abordado, os objetivos didticos podem orientar tambm decises quanto seqenciao do ensino. Para as reas de Lngua Portuguesa e Matemtica, h indicaes mais detalhadas quanto s formas mais adequadas de abordar cada bloco de contedo nos estgios iniciais e nos estgios mais avanados das aprendizagens. Com relao aos Estudos da Sociedade e da Natureza, considerou-se que a seqenciao poderia ser feita considerando-se apenas os interesses ou necessidades dos educandos. Ou seja, qualquer dos tpicos de contedo pode ser tratado com alunos iniciantes ou avanados, desde que se considere o grau de domnio que tenham da representao escrita ao lado da possibilidade de lanar mo de recursos audiovisuais e da interao oral.

    Propor parmetros para a seqenciao do ensino uma tarefa particularmente complicada em se tratando de educao de jovens e adultos, pois os programas podem variar bastante quanto durao, carga horria, aos critrios de organizao das turmas e seriao. bastante comum a existncia de turmas multisseriadas, reunindo

    Nesta proposta so sugeridos blocos de contedo e tpicos de estudo, organizados em trs reas

    Os objetivos didticos especificam modos de abordar os tpicos de estudo em diferentes graus de aprofundamento

    Ao Educativa / MEC

  • H sugesto de critrios de avaliao para certificao e encaminhamento dos jovens e adultos para o segundo segmento do 1 grau

    Introduo

    pessoas com diferentes nveis de domnio da escrita e da Matemtica, de conhecimentos sobre a sociedade e a natureza. Mesmo nos programas cujos critrios de enturmao obedecem a alguma seriao, a heterogeneidade sempre uma caracterstica forte dos grupos.

    Acreditamos que a forma de apresentao aqui adotada pode facilitar a definio, por parte dos programas, do grau de apro-fundamento dos contedos mais adequado s suas prioridades edu-cativas, s caractersticas de suas turmas e durao dos cursos. Nos programas seriados, por exemplo, pode-se optar por trabalhar alguns contedos em todas as sries, em graus progressivos de apro-fundamento. recomendvel, inclusive, que os contedos mais es-senciais sejam retomados em diversas sries. Outros contedos podem ser distribudos entre as sries e tratados ento no nvel de profundidade correspondente. Essa forma de apresentao dos objetivos didticos visa ainda ajudar os educadores a enfrentar a heterogeneidade das turmas, pois indica como abordar um mesmo tpico com os alunos iniciantes e com os mais avanados.

    Finalmente, um ltimo captulo trata do planejamento e da ava-liao. A encontram-se sugestes de como planejar unidades didticas que favoream o estabelecimento de relaes entre os diversos contedos, tornando seu desenvolvimento mais interessante para alunos e professores, o trabalho do dia-a-dia mais rico e estimulante. A avaliao, por sua vez, abordada como parte constitutiva do pla-nejamento. So sugeridos tambm critrios de avaliao especifica-mente orientados para decises associadas certificao de equiva-lncia de escolaridade e ao encaminhamento dos jovens e adultos para o segundo segmento do 1 grau.

    Em todos os captulos, h notas com indicaes bibliogrficas para os educadores que desejam se aprofundar em temticas especficas. Com esse conjunto articulado de objetivos e contedos educativos, referncias e sugestes didticas, pretendeu-se esboar um mapa que orientasse as opes das equipes envolvidas na elaborao curricular e no planejamento. Essas opes, entretanto, devem referir-se principalmente aos contextos educativos de que participam. somente

    Educao de jovens e adultos

  • Introduo

    nos contextos especficos que este mapa pode associar-se a paisagens vivas, que de fato orientem os caminhos dos educadores e educandos. Cabe lembrar ainda que existem experincias de educao bsica de jovens e adultos que desenvolvem trabalhos mais sistemticos nas reas de Educao Fsica e Educao Artstica e que avaliam positivamente o impacto dessas reas no desenvolvimento geral dos educandos. Essa , entretanto, uma prtica muito pouco generalizada. H tambm programas que desenvolvem trabalhos especficos de preparao profissional. Este projeto curricular no abrange essas reas, mas consideramos importante que os educadores exercitem a liberdade de opes que essa modalidade educativa permite e exige para adequar seus programas s necessidades e interesses dos jovens e adultos.

    Ao Educativa/MEC

  • Breve histrico da educao de jovens e adultos no Brasil

    No processo de redemocratizao do Estado brasileiro, aps 1945, a educao de adultos ganhou destaque dentro da preocupao geral com a universalizao da educao elementar

    Alfabetizao de adultos na pauta das polticas educacionais

    A educao bsica de adultos comeou a delimitar seu lugar na histria da educao no Brasil a partir da dcada de 30, quando fi-nalmente comea a se consolidar um sistema pblico de educao elementar no pas. Neste perodo, a sociedade brasileira passava por grandes transformaes, associadas ao processo de industrializao e concentrao populacional em centros urbanos. A oferta de ensino bsico gratuito estendia-se consideravelmente, acolhendo setores sociais cada vez mais diversos. A ampliao da educao elementar foi impulsionada pelo governo federal, que traava diretrizes educacionais para todo o pas, determinando as responsabilidades dos estados e municpios. Tal movimento incluiu tambm esforos articulados nacionalmente de extenso do ensino elementar aos adultos, es-pecialmente nos anos 40.

    Com o fim da ditadura de Vargas em 1945, o pas vivia a efer-vescncia poltica da redemocratizao. A Segunda Guerra Mundial recm terminara e a ONU Organizao das Naes Unidas alertava para a urgncia de integrar os povos visando a paz e a de-mocracia. Tudo isso contribuiu para que a educao dos adultos ga-nhasse destaque dentro da preocupao geral com a educao elementar comum. Era urgente a necessidade de aumentar as bases eleitorais

    Educao de jovens e adultos

  • Breve histrico da educao de jovens e adultos no Brasil

    para a sustentao do governo central, integrar as massas populacionais de imigrao recente e tambm incrementar a produo.

    Nesse perodo, a educao de adultos define sua identidade to-mando a forma de uma campanha nacional de massa, a Campanha de Educao de Adultos, lanada em 1947. Pretendia-se, numa primeira etapa, uma ao extensiva que previa a alfabetizao em trs meses, e mais a condensao do curso primrio em dois perodos de sete meses. Depois, seguiria uma etapa de "ao em profundidade", voltada capacitao profissional e ao desenvolvimento comunitrio. Nos primeiros anos, sob a direo do professor Loureno Filho, a campanha conseguiu resultados significativos, articulando e ampliando os servios j existentes e estendendo-os s diversas regies do pas. Num curto perodo de tempo, foram criadas vrias escolas supletivas, mobilizando esforos das diversas esferas administrativas, de profissionais e voluntrios. O clima de entusiasmo comeou a diminuir na dcada de 50; iniciativas voltadas ao comunitria em zonas rurais no tiveram o mesmo sucesso e a campanha se extinguiu antes do final da dcada. Ainda assim, sobreviveu a rede de ensino supletivo por meio dela implantada, assumida pelos estados e municpios.

    A instaurao da Campanha de Educao de Adultos deu lugar tambm conformao de um campo terico-pedaggico orientado para a discusso sobre o analfabetismo e a educao de adultos no Brasil. Nesse momento, o analfabetismo era concebido como causa e no efeito da situao econmica, social e cultural do pas. Essa concepo legitimava a viso do adulto analfabeto como incapaz e marginal, identificado psicolgica e socialmente com a criana. Uma professora encarregada de formar os educadores da Campanha, num trabalho intitulado Fundamentos e metodologia do ensino supletivo, usava as seguintes palavras para descrever o adulto analfabeto:

    A Campanha de Educao de Adultos lanada em 1947 alimentou a reflexo e o debate em torno do analfabetismo no Brasil

    Dependente do contacto face a face para enriquecimento de sua experincia social, ele tem que, por fora, sentir-se uma criana grande, irresponsvel e ridcula [...]. E, se tem as res-

    Ao Educativa / MEC

  • Breve histrico da educao de jovens e adultos no Brasil

    Durante a campanha, idias preconceituosas sobre adultos analfabetos foram criticadas; seus saberes e capacidades foram reconhecidos

    ponsabilidades do adulto, manter uma famlia e uma profisso, ele o far em plano deficiente. [...]

    O analfabeto, onde se encontre, ser um problema de definio social quanto aos valores: aquilo que vale para ele sem mais valia para os outros e se torna pueril para os que dominam o mundo das letras.

    [...] inadequadamente preparado para as atividades con-venientes vida adulta, [...] ele tem que ser posto margem como elemento sem significao nos empreendimentos co-muns. Adulto-criana, como as crianas ele tem que viver num mundo de egocentrismo que no lhe permite ocupar os planos em que as decises comuns tem que ser tomadas.1

    Durante a prpria campanha, essa viso modificou-se; foram adensando-se as vozes dos que superavam esse preconceito, reconhe-cendo o adulto analfabeto como ser produtivo, capaz de raciocinar e resolver seus problemas. Para tanto contriburam tambm teorias mais modernas da psicologia, que desmentiam postulados anteriores de que a capacidade de aprendizagem dos adultos seria menor do que a das crianas. J em artigo de 1945, Loureno Filho argumentara neste sentido, lanando mo de estudos de psicologia experimental realizados nos Estados Unidos nas dcadas de 20 e 30.

    A confiana na capacidade de aprendizagem dos adultos e a difu-so de um mtodo de ensino de leitura para adultos conhecido como Laubach inspiraram a inciativa do Ministrio da Educao de produzir pela primeira vez, por ocasio da Campanha de 47, material didtico especfico para o ensino da leitura e da escrita para os adultos.

    O Primeiro guia de leitura, distribudo pelo ministrio em larga escala para as escolas supletivas do pas, orientava o ensino pelo m-todo silbico. As lies partiam de palavras-chave selecionadas e or-ganizadas segundo suas caractersticas fonticas. A funo dessas

    1 Apud Vanilda Pereira Paiva, Educao popular e educao de adultos, 2a ed., Rio de Janeiro, Loyola, 1983.

    Educao de jovens e adultos

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    palavras era remeter aos padres silbicos, estes sim o foco do estudo. As slabas deveriam ser memorizadas e remontadas para formar outras palavras. As primeiras lies tambm continham pequenas frases montadas com as mesmas slabas. Nas lies finais, as frases com-punham pequenos textos contendo orientaes sobre preservao da sade, tcnicas simples de trabalho e mensagens de moral e civismo.

    Alfabetizao e conscientizao

    No final da dcada de 50, as crticas Campanha de Educao de Adultos dirigiam-se tanto s suas deficincias administrativas e financeiras quanto sua orientao pedaggica. Denunciava-se o carter superficial do aprendizado que se efetivava no curto perodo da alfabetizao, a inadequao do mtodo para a populao adulta e para as diferentes regies do pas. Todas essas crticas convergiram para uma nova viso sobre o problema do analfabetismo e para a consolidao de um novo paradigma pedaggico para a educao de adultos, cuja referncia principal foi o educador pernambucano Paulo Freire.

    O pensamento pedaggico de Paulo Freire, assim como sua pro-posta para a alfabetizao de adultos, inspiraram os principais pro-gramas de alfabetizao e educao popular que se realizaram no pas no incio dos anos 60. Esses programas foram empreendidos por in-telectuais, estudantes e catlicos engajados numa ao poltica junto aos grupos populares. Desenvolvendo e aplicando essas novas diretrizes, atuaram os educadores do MEB Movimento de Educao de Base, ligado CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil, dos CPCs Centros de Cultura Popular, organizados pela UNE Unio Nacional dos Estudantes, dos Movimentos de Cultura Popular, que reuniam artistas e intelectuais e tinham apoio de administraes municipais. Esses diversos grupos de educadores foram se articulando e passaram a pressionar o governo federal para que os apoiasse e estabelecesse uma coordenao nacional das iniciativas. Em

    A pedagogia de Paulo Freire inspirou os principais programas de alfabetizao e educao popular do incio dos anos 60

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    Antes apontado como causa da pobreza e da marginalizao, o analfabetismo passou a ser interpretado como efeito da situao de pobreza gerada pela estrutura social

    janeiro de 1964, foi aprovado o Plano Nacional de Alfabetizao, que previa a disseminao por todo Brasil de programas de alfabetizao orientados pela proposta de Paulo Freire. A preparao do plano, com forte engajamento de estudantes, sindicatos e diversos grupos estimu-lados pela efervescncia poltica da poca, seria interrompida alguns meses depois pelo golpe militar.2

    O paradigma pedaggico que se construiu nessas prticas baseava-se num novo entendimento da relao entre a problemtica educacional e a problemtica social. Antes apontado como causa da pobreza e da marginalizao, o analfabetismo passou a ser interpretado como efeito da situao de pobreza gerada por uma estrutura social no igualitria. Era preciso, portanto, que o processo educativo interferisse na estrutura social que produzia o analfabetismo. A alfabetizao e a educao de base de adultos deveriam partir sempre de um exame crtico da realidade existencial dos educandos, da identificao das origens de seus problemas e das possibilidades de super-los.

    Alm dessa dimenso social e poltica, os ideais pedaggicos que se difundiam tinham um forte componente tico, implicando um profundo comprometimento do educador com os educandos. Os analfabetos deveriam ser reconhecidos como homens e mulheres produtivos, que possuam uma cultura. Dessa perspectiva, Paulo Freire criticou a chamada educao bancria, que considerava o analfabeto pria e ignorante, uma espcie de gaveta vazia onde o educador deveria depositar conhecimento. Tomando o educando como sujeito de sua aprendizagem, Freire propunha uma ao educativa que no negasse sua cultura mas que a fosse transformando atravs do dilogo. Na poca, ele referia-se a uma conscincia ingnua ou intransitiva, herana de uma sociedade fechada, agrria e oligrquica, que deveria ser transformada em conscincia crtica,

    2 Dois bons estudos sobre a histria da educao de adultos no Brasil, das origens criao do Mobral em 1970, so os livros de Celso de Rui Beisiegel, Estado e educao popular (So Paulo, Pioneira, 1974), e de Vanilda Pereira Paiva, Educao popular e educao de adultos (op. cit.).

    Educao de jovens e adultos

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    necessria ao engajamento ativo no desenvolvimento poltico e eco-nmico da nao.3

    Paulo Freire elaborou uma proposta de alfabetizao de adultos conscientizadora, cujo princpio bsico pode ser traduzido numa frase sua que ficou clebre: "A leitura do mundo precede a leitura da palavra". Prescindindo da utilizao de cartilhas, desenvolveu um conjunto de procedimentos pedaggicos que ficou conhecido como mtodo Paulo Freire. Ele previa uma etapa preparatria, quando o alfabetizador deveria fazer uma pesquisa sobre a realidade existencial do grupo junto ao qual iria atuar. Concomitantemente, faria um levantamento de seu universo vocabular, ou seja, das palavras utilizadas pelo grupo para expressar essa realidade. Desse universo, o alfabetizador deveria selecionar as palavras com maior densidade de sentido, que expressassem as situaes existenciais mais importantes. Depois, era necessrio selecionar um conjunto que contivesse os diversos padres silbicos da lngua e organiz-lo segundo o grau de complexidade desses padres. Essas seriam as palavras geradoras, a partir das quais se realizaria tanto o estudo da escrita e leitura como o da realidade.

    Antes de entrar no estudo dessas palavras geradoras, Paulo Freire propunha ainda um momento inicial em que o contedo do dilogo educativo girava em torno do conceito antropolgico de cultura. Utilizando uma srie de ilustraes (cartazes ou slides), o educador deveria dirigir uma discusso na qual fosse sendo evidenciado o papel ativo dos homens como produtores de cultura e as diferentes formas de cultura: a cultura letrada e a no letrada, o trabalho, a arte, a religio, os diferentes padres de comportamento e a sociabilidade. O objetivo era, antes mesmo de iniciar o aprendizado da escrita, levar o educando a assumir-se como sujeito de sua aprendizagem, como ser capaz e responsvel. Tratava-se tambm de

    Paulo Freire elaborou uma proposta de alfabetizao de adultos conscientizadora, cujo princpio bsico era: "A leitura do mundo precede a leitura da palavra"

    0 objetivo era, antes mesmo de iniciar o aprendizado da escrita, levar o educando a assumir-se como sujeito de sua aprendizagem

    5 Pedagogia do oprimido (17a ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987) uma obra clssica de Paulo Freire, em que o autor expe a filosofia educativa que orientou sua atuao no campo da alfabetizao de adultos.

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    Os materiais didticos produzidos nesse perodo referiam-se realidade imediata dos adultos, problematizando-a

    ultrapassar uma compreenso mgica da realidade e desmistificar a cultura letrada, na qual o educando estaria se iniciando.

    Depois de cumprida essa etapa, iniciava-se o estudo das palavras geradoras, que tambm eram apresentadas junto com cartazes contendo imagens referentes s situaes existenciais a elas relacionadas. Com cada gravura, desencadeava-se um debate em torno do tema e s ento a palavra escrita era analisada em suas partes componentes: as slabas. Enfim, era apresentado um quadro com as famlias silbicas com as quais os alfabetizandos deveriam montar novas palavras.

    Com um elenco de dez a vinte palavras geradoras, acreditava-se conseguir alfabetizar um educando em trs meses, ainda que num nvel rudimentar. Numa etapa posterior, as palavras geradoras seriam subs-titudas por temas geradores, a partir dos quais os alfabetizandos aprofundariam a anlise de seus problemas, preferencialmente j se engajando em atividades comunitrias ou associativas.

    Nesse perodo, foram produzidos diversos materiais de alfabe-tizao orientados por esses princpios. Normalmente elaborados regional ou localmente, procurando expressar o universo vivencial dos alfabetizandos, esses materiais continham palavras geradoras acompanhadas de imagens relacionadas a temas para debate, os quadros de descoberta com as slabas derivadas das palavras, acrescidas de pequenas frases para leitura. O que caracterizava esses materiais era no apenas a referncia realidade imediata dos adultos, mas, principalmente, a inteno de problematizar essa realidade.4

    0 Mobral e a educao popular

    Com o golpe militar de 1964, os programas de alfabetizao e educao popular que se haviam multiplicado no perodo entre 1961

    4 Uma descrio de como o chamado mtodo Paulo Freire era operacionalizado, acom-panhada de uma sntese de seus fundamentos filosficos, pode ser encontrada no livro O que o mtodo Paulo Freire, de Carlos Rodrigues Brando (2a ed., Coleo Primeiros Passos, So Paulo, Brasiliense, 1981).

    Educao de jovens e adultos

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    e 1964 foram vistos como uma grave ameaa ordem e seus promotores duramente reprimidos. O governo s permitiu a realizao de programas de alfabetizao de adultos assistencialistas e conservadores, at que, em 1967, ele mesmo assumiu o controle dessa atividade lanando o Mobral Movimento Brasileiro de Alfabetizao.

    Era a resposta do regime militar ainda grave situao do anal-fabetismo no pas. O Mobral constituiu-se como organizao autnoma em relao ao Ministrio da Educao, contando com um volume significativo de recursos. Em 1969, lanou-se numa campanha massiva de alfabetizao. Foram instaladas Comisses Municipais, que se responsabilizavam pela execuo das atividades, mas a orientao e superviso pedaggica bem como a produo de materiais didticos eram centralizadas.

    As orientaes metodolgicas e os materiais didticos do Mobral reproduziram muitos procedimentos consagrados nas experincias de incios dos anos 60, mas esvaziando-os de todo sentido crtico e problematizador. Propunha-se a alfabetizao a partir de palavras-chave, retiradas "da vida simples do povo", mas as mensagens a elas associadas apelavam sempre ao esforo individual dos adultos anal-fabetos para sua integrao nos benefcios de uma sociedade moderna, pintada sempre de cor-de-rosa.

    Durante a dcada de 70, o Mobral expandiu-se por todo o territrio nacional, diversificando sua atuao. Das iniciativas que derivaram do Programa de Alfabetizao, a mais importante foi o PEI Programa de Educao Integrada, que correspondia a uma condensao do antigo curso primrio. Este programa abria a possibilidade de continuidade de estudos para os recm-alfabetizados, assim como para os chamados analfabetos funcionais, pessoas que dominavam precariamente a leitura e a escrita.

    Paralelamente, grupos dedicados educao popular continuaram a realizar experincias pequenas e isoladas de alfabetizao de adultos com propostas mais crticas, desenvolvendo os postulados de Paulo Freire. Essas experincias eram vinculadas a movimentos populares que se organizavam em oposio ditadura, comunida-

    Depois do golpe

    militar de 1964,

    grupos que atuavam

    na alfabetizao de

    adultos foram

    reprimidos; o governo

    passou a controlar as

    iniciativas com o

    lanamento do Mobral

    Grupos dedicados

    educao popular

    continuaram a realizar

    experincias

    pequenas e isoladas

    de alfabetizao de

    adultos com

    propostas mais

    crticas

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    Na dcada de 80, essas pequenas experincias foram se ampliando, construindo canais de troca de experincia, reflexo e articulao

    des religiosas de base, associaes de moradores e oposies sindicais. Paulo Freire, que fora exilado, seguia trabalhando com educao de adultos no Chile e depois em pases africanos.

    Com a emergncia dos movimentos sociais e o incio da abertura poltica na dcada de 80, essas pequenas experincias foram se am-pliando, construindo canais de troca de experincia, reflexo e arti-culao. Projetos de alfabetizao se desdobraram em turmas de ps-alfabetizao, onde se avanava no trabalho com a lngua escrita, alm das operaes matemticas bsicas. Tambm as administraes de al-guns estados e municpios maiores ganhavam autonomia com relao ao Mobral, acolhendo educadores que se esforaram por reorientar seus programas de educao bsica de adultos. Desacreditado nos meios polticos e educacionais, o Mobral foi extinto em 1985. Seu lugar foi ocupado pela Fundao Educar, que abriu mo de exe-

    Educao de jovens e adultos

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    cutar diretamente os programas, passando a apoiar financeira e tec-nicamente as iniciativas de governos, entidades civis e empresas a ela conveniadas.

    Educao bsica de jovens e adultos: consolidando prticas

    Nesse perodo de reconstruo democrtica, muitas experincias de alfabetizao ganharam consistncia, desenvolvendo os postulados e enriquecendo o modelo da alfabetizao conscientizadora dos anos 60. Dificuldades encontradas na prtica geravam reflexo e apontavam novas pistas.

    Um avano importante dessas experincias mais recentes a in-corporao de uma viso de alfabetizao como processo que exige um certo grau de continuidade e sedimentao. Desde os anos 50, eram recorrentes as crticas a campanhas que pretendiam alfabetizar em poucos meses, com perspectivas vagas de continuidade, depois das quais se constatavam altos ndices de regresso ao analfabetismo. Os programas mais recentes prevem um tempo maior, de um, dois ou at trs anos dedicados alfabetizao e ps-alfabetizao, de modo a garantir que o jovem ou adulto atinja maior domnio dos instrumentos da cultura letrada, para que possa utiliz-los na vida diria ou mesmo prosseguir seus estudos, completando sua escolarizao. A alfabetizao crescentemente incorporada a programas mais extensivos de educao bsica de jovens e adultos.

    Essa tendncia se reflete nos materiais didticos produzidos. Para a alfabetizao inicial, as palavras geradoras com suas imagens co-dificadoras e quadros de famlias silbicas vm em muitos casos acompanhadas de exerccios complementares; normalmente, exerccios de montar ou completar palavras com slabas dadas, palavras e frases para ler e associar a imagens, bem como exerccios de coordenao motora. Alguns materiais partem de frases geradoras que, gradativamente, vo compondo pequenos textos. Revela-se uma

    Um avano importante dessas experincias mais recentes a incorporao de uma viso de alfabetizao como processo que exige um certo grau de continuidade e sedimentao

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    Outro indicador da ampliao da concepo de alfabetizao no sentido de uma viso mais abrangente de educao bsica a crescente preocupao com relao iniciao matemtica

    preocupao crescente de ofertar materiais de leitura adaptados aos neo-leitores. Para os nveis de ps-alfabetizao, os materiais so mais escassos. Os mais originais so aqueles que aproveitam textos escritos pelos prprios educandos como textos de leitura. A maioria, entretanto, reproduz os livros didticos utilizados no ensino primrio regular, adaptados para uma temtica mais adulta. Os textos, sempre simplificados, referem-se ao mundo do trabalho, problemas urbanos, sade e organizao poltica como temas geradores ou tpicos curriculares de Estudos Sociais e Cincias. Entre as propostas de exerccios de escrita, aparecem os questionrios nos quais se solicita a reproduo dos contedos dos textos ou se introduzem tpicos gramaticais.

    Outro indicador da ampliao da concepo de alfabetizao no sentido de uma viso mais abrangente de educao bsica a crescente preocupao com relao iniciao matemtica. Muitas vezes, a preocupao foi posta pelos prprios educandos, que expressavam o desejo de aprender a "fazer contas", certamente em razo da funcionalidade que tal habilidade tem para a resoluo de problemas da vida diria. De fato, considerando-se a incidncia das representaes e operaes numricas nos mais diversos campos da cultura, fundamental incluir sua aprendizagem numa concepo de alfabetizao integral.

    Um princpio pedaggico j bastante assimilado entre os que se dedicam educao bsica de adultos o da incorporao da cultura e da realidade vivencial dos educandos como contedo ou ponto de partida da prtica educativa. No caso da educao de adultos, talvez fique mais evidente a inadequao de uma educao que no interfira nas formas de o educando compreender e atuar no mundo. A anlise das prticas, entretanto, mostra as dificuldades de se operacionalizar esse princpio. Muitos materiais didticos, geralmente os produzidos em grande escala, fazem referncia a "trabalhadores" ou "pessoas do povo" genricas, com as quais difcil homens e mulheres concretos se identificarem. Em outros casos, a suposta realidade do educando retratada apenas em seus aspectos negativos pobreza, sofrimento,

    Educao de jovens e adultos

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    injustia ou apenas na sua dimenso poltica. Ocorre tambm a re-duo dos interesses ou necessidades educativas dos jovens e adultos ao que lhes imediato, enquanto sua vontade de conhecer vai muito alm. Perde-se assim a oportunidade criada pela situao educativa de se ampliarem os instrumentos de pensamento e a viso de mundo dos educandos e dos educadores.

    Outra questo metodolgica diz respeito ao carter crtico, pro-blematizador e criativo que se pretende imprimir educao de adultos. Educadores fortemente identificados com esses princpios da prtica educativa conseguem estabelecer uma relao de dilogo e enri-quecimento mtuo com seu grupo. Promovem situaes de conversa ou debate em que os educandos tm a oportunidade de expressar a riqueza e a originalidade de sua linguagem e de seus saberes; conseguem reconhecer, comparar, julgar, recriar e propor. Entretanto, na passagem para o trabalho especfico de leitura e escrita ou matemtica, torna-se mais difcil garantir a natureza significativa e construtiva das aprendizagens. Na alfabetizao, o exerccio mecnico de montagem e desmontagem de palavras e slabas vai se sobrepondo construo de significados; os problemas matemticos do lugar memorizao dos procedimentos das operaes. Muitas vezes, com a inteno de simplificar as mensagens, j que se trata de uma iniciao cultura letrada, os textos oferecidos para leitura repetem a mesma estrutura e estilo, expondo uma viso unilateral dos temas tratados. Produz-se, assim, uma dissociao entre os momentos de "leitura do mundo", quando os educandos so chamados a analisar, comparar, elaborar, e os momentos de "leitura da palavra" (ou dos nmeros), quando os educando devem repetir, memorizar e reproduzir.

    Um princpio pedaggico j bastante assimilado entre os que se dedicam educao bsica de adultos o da incorporao da realidade vivencial dos educandos como contedo ou ponto de partida da prtica educativa

    Novas perspectivas na aprendizagem da leitura e da escrita

    A partir de meados da dcada de 80, difundem-se entre os educadores brasileiros estudos e pesquisas sobre o aprendizado da ln-

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    Reforam-se os argumentos crticos s cartilhas de alfabetizao que contm palavras e frases isoladas, fora de contextos significativos que auxiliem sua compreenso

    gua escrita com bases na lingstica e na psicologia, que lanam novas luzes sobre as prticas de alfabetizao. Esses estudos enfatizam o fato de que a escrita e a leitura so mais do que a transcrio e decifrao de letras e sons, que so atividades inteligentes, em que a percepo orientada pela busca dos significados. Reforam-se os argumentos crticos s cartilhas de alfabetizao que contm palavras e frases isoladas, fora de contextos significativos que auxiliem sua compreenso. Entretanto, mesmo nas propostas pedaggicas em que se pode constatar uma preocupao de trabalhar com palavras ou frases significativas, observa-se uma nfase muito grande nos procedimentos do mtodo silbico, de montagem e desmontagem de palavras. Como o mtodo prescreve a apresentao de padres silbicos que vo sendo introduzidos um de cada vez, fatalmente as frases ou textos resultantes so artificiais, enunciados "montados", mais do que mensagens "de verdade".

    Especialmente os trabalhos da psicopedagoga argentina Emlia Ferreiro trouxeram indicaes aos alfabetizadores de como ultrapassar as limitaes dos mtodos baseados na silabao. Pesquisando as concepes sobre a escrita de crianas pr-escolares, essa autora mos-trou que, convivendo num ambiente letrado, elas procuravam com-preender o funcionamento desse sistema de representao, chegando escola com hipteses e informaes prvias sobre a escrita que eram desprezadas pelas propostas de ensino. Emlia Ferreiro realizou ainda um estudo junto a adultos analfabetos, mostrando que tambm eles tinham uma srie de informaes sobre a escrita e elaboravam hipteses semelhantes s das crianas.5

    As propostas pedaggicas para a alfabetizao comeam a incor-porar a convico de que no necessrio nem recomendvel montar uma lngua artificial para ensinar a ler e escrever. Os adultos anal-fabetos podem escrever enunciados significativos baseados em seus conhecimentos da lngua, ainda que, no incio, no produzam uma

    5 Emlia Ferreiro, Los adultos no alfabetizados y sus conceptualizaciones dei sistema de escritura, Mxico, Instituto Pedaggico Nacional, 1983.

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    escrita convencional. com essas produes que o educador dever trabalhar, ajudando o aprendiz a analis-las e introduzindo novas informaes. Com relao leitura, tambm se procura ampliar o universo lingstico, utilizando-se uma diversidade maior de textos, que vo de jornais e enciclopdias a receitas e embalagens. A formao de um bom leitor no depende s da memorizao das correspondncias entre letras e sons mas tambm do conhecimento das funes, estruturas e dos estilos prprios dos diferentes tipos de texto presentes na nossa cultura.

    Essas reorientaes do trabalho com a lngua escrita comearam recentemente a se fazer presentes nas propostas pedaggicas para adul-tos. Para a fase inicial da alfabetizao, algumas experincias aban-donaram as palavras geradoras como pontos de partida, introduzindo outros procedimentos como o trabalho com os nomes dos alunos ou os chamados textos coletivos, grafados pelo alfabetizador a partir de sugestes ditadas pelos alfabetizandos. Surgem assim materiais di-dticos com maior diversidade de textos e propostas de escrita.

    No necessrio nem recomendvel montar uma lngua artificial para ensinar a ler e escrever

    Novos significados para as aprendizagens escolares

    Alm desses estudos sobre a alfabetizao inicial, os educadores brasileiros tm entrado em contato tambm com estudos que tematizam as relaes entre pensamento e linguagem, pensamento e cultura, cultura oral e cultura letrada, conceitos espontneos e conceitos cientficos.

    Com relao ao ensino de Matemtica para jovens e adultos, a questo pedaggica mais instigante o fato de que eles quase sempre, independentemente do ensino sistemtico, desenvolvem procedimentos prprios de resoluo de problemas envolvendo quantificaes e cl-culos. H jovens e adultos analfabetos capazes de fazer clculos bastante complexos, ainda que no saibam como represent-los por escrito na forma convencional, ou ainda que no saibam sequer explicar como chegaram ao resultado, e pesquisas foram feitas para investigar a natu-

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  • Os jovens e adultos desenvolvem procedimentos prprios de resoluo de problemas envolvendo quantificaes e clculos

    Breve histrico da educao de jovens e adultos no Brasil

    reza desses conhecimentos e o seu alcance. O desafio, ainda pouco equacionado, como relacion-los significativamente com a aprendiza-gem das representaes numricas e dos algoritmos ensinados na escola.

    Com relao ao ensino das Cincias Sociais e Naturais, evidencia-se a limitao das abordagens que visam apenas a aprendizagem de conhecimentos imediatamente teis para os jovens e adultos. Sem negar o valor de informaes teis que a escola pode veicular, impe-se a tarefa de orientar os educandos para uma compreenso mais abrangente dos fenmenos, para a qual podem contribuir conceitos cientficos e informaes das mais diversas fontes.

    Ainda h poucs estudos nessa direo aplicados ao ensino de jovens e adultos. Ainda assim, abordagens tericas que enfatizam o papel do ensino sistemtico no desenvolvimento do pensamento de-senham novas pistas para integrar de forma mais dinmica a "leitura do mundo" e a "leitura da palavra" na educao critica e criativa que os educadores de jovens e adultos desejam realizar.6

    Desafios para os anos 90

    No mbito das polticas educacionais, os primeiros anos da dcada de 90 no foram muito favorveis. Historicamente, o governo federal foi a principal instncia de apoio e articulao das iniciativas de educao de jovens e adultos. Com a extino da Fundao Educar, em 1990, criou-se um enorme vazio em termos de polticas para o setor. Alguns estados e municpios tm assumido a responsabilidade de oferecer programas na rea, assim como algumas organizaes da sociedade civil, mas a oferta ainda est longe de satisfazer a demanda. Acompanhando a falta de polticas para estender o atendimento, h uma grande falta de materiais didticos de apoio, de estu-

    6 O livro Metodologia da alfabetizao: pesquisas em educao de jovens e adultos, de Vera Masago Ribeiro et al. (Campinas/So Paulo, Papirus/CEDI, 1992), traz um balano dos principais estudos realizados no Brasil nos anos 70 e 80, contemplando vrias das problemticas aqui referidas.

    Educao de jovens e adultos

  • Breve histrico da educao de jovens e adultos no Brasil

    dos e pesquisas sobre essa modalidade educativa, tendo os educadores de enfrentar com poucos recursos sua tarefa.7

    A histria da educao de jovens e adultos no Brasil chega dcada de 90, portanto, reclamando a consolidao de reformulaes pedaggicas que, alis, vm se mostrando necessrias em todo o ensino fundamental. Do pblico que tem acorrido aos programas para jovens e adultos, uma ampla maioria constituda de pessoas que j tiveram passagens fracassadas pela escola, entre elas, muitos adolescentes e jovens recm-excludos do sistema regular. Esta situao ressalta o grande desafio pedaggico, em termos de seriedade e criatividade, que a educao de jovens e adultos impe: como garantir a esse segmento social que vem sendo marginalizado nas esferas scio-econmica e educacional um acesso cultura letrada que lhe possibilite uma participao mais ativa no mundo do trabalho, da poltica e da cultura.

    A histria da educao de jovens e adultos chega dcada de 90 reclamando a consolidao de reformulaes pedaggicas, necessrias a todo o ensino fundamental

    7 Os artigos de Maria Clara Di Pierro e Srgio Haddad publicados no peridico Em

    Aberto (v. 11, n. 56, Braslia, Inep, out.-dez. 1992) trazem balanos das polticas mais recentes de educao bsica de jovens e adultos, com dados sobre demanda e atendimento.

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  • Fundamentos e objetivos gerais

    No Brasil, h mais de 35 milhes de pessoas maiores de catorze anos que no completaram quatro anos de escolaridade

    O pblico dos programas de educao de jovens e adultos

    No Brasil, h mais de 35 milhes de pessoas maiores de catorze anos que no completaram quatro anos de escolaridade. Esse grande contingente constitui o pblico potencial dos programas de educao de jovens e adultos correspondentes ao primeiro segmento do ensino fundamental. Alm dos 20 milhes identificados como analfabetos pelo Censo de 1991, esto includas nesse contingente pessoas que dominam to precariamente a leitura e a escrita que ficam impedidas de utilizar eficazmente essas habilidades para continuar aprendendo, para acessar informaes essenciais a uma insero eficiente e autnoma em muitas das dimenses que caracterizam as sociedades contemporneas. Em pases como o Brasil, marcados por graves desnveis sociais, pela situao de pobreza de uma grande parcela da populao e por uma tradio poltica pouco democrtica, baixos nveis de escolarizao esto fortemente associados a outras formas de excluso econmica e poltica. Famlias que vivem em situao econmica precria enfrentam grandes dificuldades em manter as crianas na escola; seus esforos nesse sentido so tambm mal recompensados, j que as escolas a que tm acesso so pobres de recursos e normalmente no oferecem condies de aprendizagem adequadas.

    Educao de jovens e adultos

  • Fundamentos e objetivos gerais

    No pblico que efetivamente freqenta os programas de educao de jovens e adultos, cada vez mais reduzido o nmero daqueles que no tiveram nenhuma passagem anterior pela escola. tambm cada vez mais dominante a presena de adolescentes e jovens recm-sados do ensino regular, por onde tiveram passagens acidentadas. Em levantamento realizado no programa de educao bsica de jovens e adultos do municpio de So Paulo, em 1992, apurou-se que 26% do alunado tinha at dezoito anos de idade e 36% tinha entre dezenove e 26.] Na cidade do Recife, apurou-se que, dos alunos de programas para jovens e adultos das redes municipal e estadual, 48% tinha de treze a dezoito anos de idade e 26%, de dezoito a 24 anos.2 A presena dos adolescentes tem sido to marcante que se comea a pensar em programas ou turmas especialmente destinadas a essa faixa etria.

    A quase totalidade dos alunos desses programas, includos os adolescentes, so trabalhadores. Com sacrifcio, acumulando respon-sabilidades profissionais e domsticas ou reduzindo seu pouco tempo de lazer, dispem-se a freqentar cursos noturnos, na expectativa de melhorar suas condies de vida. A maioria nutre a esperana de continuar os estudos: concluir o 1 grau, ter acesso a outros graus de ensino e a habilitaes profissionais.

    No pblico que freqenta os programas de educao de jovens e adultos, cada vez mais reduzido o nmero daqueles que no tiveram nenhuma passagem anterior pela escola

    0 contexto social

    As exigncias educativas da sociedade contempornea so cres-centes e esto relacionadas a diferentes dimenses da vida das pessoas: ao trabalho, participao social e poltica, vida familiar e comunitria, s oportunidades de lazer e desenvolvimento cultural.

    1 Secretaria de Educao (municpio de So Paulo), Perfil dos educandos de Suplncia I, Suplncia II e regular noturno da RME (So Paulo, 1992).

    2 Secretaria Municipal de Educao (Recife), Perfil dos alunos de EB]A (Recife, 1995).

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  • Fundamentas e objetivos gerais

    Ser cada vez mais necessria a capacidade de se comunicar e de se reciclar continuamente.de buscar e relacionar mformaes diversas

    A dimenso econmica

    O mundo contemporneo passa atualmente por uma revoluo tecnolgica que est alterando profundamente as formas do trabalho. Esto sendo desenvolvidas novas tecnologias e novas formas de organizar a produo que elevam bastante a produtividade, e delas depende a insero competitiva da produo nacional numa economia cada vez mais mundializada. Essas novas tecnologias e sistemas organizacionais exigem trabalhadores mais versteis, capazes de com-preender o processo de trabalho como um todo, dotados de autonomia e iniciativa para resolver problemas em equipe. Ser cada vez mais necessria a capacidade de se comunicar e de se reciclar continuamente, de buscar e relacionar informaes diversas.

    O outro lado da moeda do avano tecnolgico a diminuio dos postos de trabalho, que torna a disputa pelo emprego mais acirrada. Nveis de formao mais elevados passam a ser exigidos na disputa pelos empregos disponveis. A um grande nmero de pessoas, impe-se a necessidade de buscar formas alternativas de se inserir na economia,

    Educao de jovens e adultos

  • Fundamentos e objetivos gerais

    por meio do auto-emprego, organizao de microempresas ou atuao no mercado informal. A inveno dessas formas alternativas tambm exige autonomia, capacidade de iniciativa, de comunicao e re-ciclagem constante. Portanto, podemos dizer que, de forma geral, uma insero vantajosa no mercado de trabalho exige hoje uma melhor formao geral e no apenas treinamento em tcnicas especficas.

    No Brasil, alguns setores de ponta da indstria e dos servios j assimilaram esses avanos tecnolgicos. Entretanto, sabemos que essas inovaes convivem com a manuteno de formas de trabalho tradi-cionais, que utilizam tecnologias arcaicas e onde a maioria exerce funes que exigem pouca qualificao. Nas zonas urbanas, alunos de programas de educao de jovens e adultos normalmente so em-pregados com baixa qualificao no setor industrial, comercial e de servios, e uma grande parte atua no mercado informal. Nas zonas rurais, so pequenos produtores ou empregados de empresas agrcolas. Nessas funes, eles tm poucas oportunidades de utilizar-se da leitura e escrita e escassas oportunidades de aperfeioamento, acabando por limitar-se a conhecimentos especficos do ofcio, em muitos casos transmitidos oralmente por familiares ou companheiros mais experientes.

    No aspecto econmico, o Brasil tem de enfrentar ainda uma so-matria de problemas antigos e modernos: produzir mais para suprir as carncias materiais de grandes parcelas da populao, distribuir a riqueza mais eqitativamente e cuidar para que uma explorao pre-datria no esgote os recursos naturais de que dispomos. Parece haver um razovel consenso de que para se atingir essas metas preciso elevar o nvel de educao de toda a populao. Reforando argumentos nesse sentido, tem sido muito apontado o exemplo de pases asiticos que conseguiram um importante desenvolvimento econmico baseado num investimento macio em educao. Trabalhadores com uma formao mais ampla, com mais iniciativa e mais capacidade de resolver problemas e aprender continuamente tm mais condies de trabalhar com eficincia e negociar sua participao na distribuio das riquezas produzidas.

    Uma insero vantajosa no mercado de trabalho exige hoje uma melhor formao geral e no apenas treinamento em tcnicas especficas

    Trabalhadores com capacidade de resolver problemas e aprender continuamente tm mais condies de trabalhar com eficincia e negociar sua participao na distribuio das riquezas produzidas

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  • Fundamentos e objetivos gerais

    Para participar politicamente de uma sociedade complexa como a nossa, preciso dominar instrumentos da cultura letrada

    A dimenso poltica

    Neste ponto nos remetemos s exigncias educativas que a socie-dade nos impe no mbito poltico. A possibilidade de os diversos setores da sociedade negociarem coletivamente seus interesses est na essncia da idia de democracia. Na histria da civilizao moderna, o ideal de democracia sempre contemplou o ideal de uma educao escolar bsica universalizada. Atravs dela, pretende-se consolidar a identidade de uma nao e criar a possibilidade de que todos participem como cidados na definio de seus destinos. Para participar politicamente de uma sociedade complexa como a nossa, uma pessoa precisa ter acesso a um conjunto de informaes e pensar uma srie de problemas que extrapolam suas vivncias imediatas e exigem o domnio de instrumentos da cultura letrada. Um regime poltico democrtico exige ainda que as pessoas assumam valores e atitudes democrticas: a conscincia de direitos e deveres, a disposio para a participao, para o debate de idias e o reconhecimento de posies diferentes das suas.

    Na ltima dcada, o Brasil vem reconstruindo as instituies democrticas e nesse processo a educao tem um papel a cumprir com relao consolidao da democracia em nosso pas. Um grande nmero de pessoas ainda no tem acesso a informaes necessrias para fazer sua opo poltica de forma mais consciente. Alm disso, os longos anos de autoritarismo que marcaram a nossa histria desafiam a educao a desenvolver atitudes e valores democrticos. preciso ter em mente que a democracia no se esgota na eleio de representantes para os podres Executivo e Legislativo, ela deve implicar tambm a possibilidade de maior participao e responsabilidade em todas as dimenses da vida pblica.

    A dimenso cultural

    Assim, chegamos s exigncias educacionais que a prpria vida cotidiana impe crescentemente. Para se ter acesso a muitos dos be-nefcios da sociedade moderna, preciso ter domnio dos instrumentos da cultura letrada: para se locomover nas grandes cidades ou de

    Educao de jovens e adultos

  • Fundamentos e objetivos gerais

    uma localidade para outra, para tirar os documentos ou para cumprir um sem-nmero de procedimentos burocrticos, para mover-se no mercado de consumo e, finalmente, para poder usufruir de muitas modalidades de lazer e cultura.

    At no mbito do convvio familiar, surgem cada vez mais exi-gncias educacionais. Para educar crianas expostas aos meios de comunicao, num mundo com to rpidas transformaes, os pais precisam constantemente se atualizar, precisam ter condies para apoiar os filhos em seu percurso escolar, cuidar de sua sade etc. At para planejar a famlia, para que se possa ter quantos filhos se deseje e se possa cri-los preciso ter acesso informao, referenciar-se a valores e assumir atitudes para as quais a educao pode contribuir.

    Vemos assim que promover a educao fundamental de jovens e adultos que no tiveram a oportunidade de cumpri-la na infncia importante para responder aos imperativos do presente e tambm para garantir melhores condies educativas para as prximas geraes. Melhorar o nvel educacional de um pas um desafio grande e com-plexo, que exige esforos em todos os nveis.3

    Para educar crianas expostas aos meios de comunicao, num mundo com to rpidas transformaes, os pais precisam constantemente se atualizar

    Diversidade cultural e cultura letrada

    No item anterior, caracterizamos o pblico dos programas de educao de jovens e adultos como um grupo homogneo do ponto de vista scio-econmico. Do ponto de vista sociocultural, entretanto, eles formam um grupo bastante heterogneo. Chegam escola j

    3 A partir do conceito de necessidades bsicas de aprendizagem, em Que (e como) necessrio aprender (Campinas, Papirus, 1994), Rosa Maria Torres faz um balano das principais exigncias do mundo contemporneo com relao educao escolar, incluindo tambm indicaes sobre a educao de jovens e adultos. Nos Anais do Encontro Latino-Americano sobre Educao de Jovens e Adultos Trabalhadores esto publicadas conferncias de vrios especialistas, com abordagens atualizadas sobre essa modalidade educativa, especialmente na sua relao com os processos produtivos e com a problemtica da hete-rogeneidade cultural.

    Ao Educativa / MEC

  • Fundamentos e objetivos gerais

    Os jovens e adultos j possuem alguns conhecimentos sobre o mundo letrado, que adquiriram em breves passagens pela escola ou na realizao de atividades cotidianas

    com uma grande bagagem de conhecimentos adquiridos ao longo de histrias de vida as mais diversas. So donas de casa, balconistas, ope-rrios, serventes da construo civil, agricultores, imigrantes de dife-rentes regies do pas, mais jovens ou mais velhos, homens ou mu-lheres, professando diferentes religies. Trazem, enfim, conhecimentos, crenas e valores j constitudos. a partir do reconhecimento do valor de suas experincias de vida e vises de mundo que cada jovem e adulto pode se apropriar das aprendizagens escolares de modo crtico e original, sempre da perspectiva de ampliar sua compreenso, seus meios de ao e interao no mundo.

    Os jovens e adultos j possuem alguns conhecimentos sobre o mundo letrado, que adquiriram em breves passagens pela escola ou na realizao de atividades cotidianas. inegvel, entretanto, que a participao dessas pessoas nessas atividades muito precria, limitada e dependente. Por exemplo, um recm-chegado na cidade grande pode demorar muito tempo para sair do bairro onde mora e se aventurar, de nibus, num passeio ao centro da cidade. Para ler uma carta que chegou do interior, essa mesma pessoa depender da boa vontade dos outros. As informaes que recebe pelo rdio e pela televiso podem ser assimiladas de forma incompleta e fragmentada. Por exemplo, a pessoa pode saber que o jogo do Brasil na Copa do Mundo ser transmitido por satlite, mas ter uma noo muito vaga do que um satlite. Pode votar nas eleies para a Cmara Federal sem saber o que compete a um deputado federal. Alm disso, se as pessoas pouco letradas podem criar estratgias alternativas para resolver problemas prticos simples, tais como saber o destino de um nibus ou preencher um formulrio, elas se encontram radicalmente excludas da possibilidade que nossa cultura oferece de estudar uma cincia ou ler literatura, de ser mdico ou operrio especializado.

    Vemos, portanto, que, apesar de as pessoas pouco letradas pos-surem muitos conhecimentos vlidos e teis, elas esto excludas de outras muitas possibilidades que a nossa cultura oferece. Muitas vezes elas interpretam essa desvantagem como incapacidade, a ponto de no reconhecerem como tal aquilo que sabem ser conhecimento

    Educao de jovens e adultos

  • Fundamentos e objetivos gerais

    til e vlido. A excluso do conhecimento que se adquire na escola marca essas pessoas profundamente pela imagem que fazem de si e pelo estigma que a sociedade lhes impe. por isso que muitas delas, mesmo tendo outras responsabilidades no trabalho e em casa, decidem estudar.

    Os jovens e adultos e a escola

    Expectativas

    Com base na experincia ou em pesquisas sobre o tema, sabemos que os motivos que levam os jovens e adultos escola referem-se predominantemente s suas expectativas de conseguir um emprego melhor. Mas suas motivaes no se limitam a este aspecto. Muitos referem-se tambm vontade mais ampla de "entender melhor as coisas", "se expressar melhor", de "ser gente", de "no depender sempre dos outros". Especialmente as mulheres, referem-se muitas vezes tambm ao desejo de ajudar os filhos com os deveres escolares ou, simplesmente, de lhes dar um bom exemplo.

    Todos os adultos, quando se integram a programas de educao bsica, tm uma idia do que seja a escola, muitas vezes construda baseada na escola que eles freqentaram brevemente quando crianas. Quase sempre, apesar de se referirem precariedade dessas escolas, lembram delas com carinho e sentem com pesar o fato de terem tido de abandon-la ou de nunca terem tido chance de freqent-la. provvel que esperem encontrar um modelo bem tradicional de escola, com recitao em coro do alfabeto, pontos copiados do quadro negro, dis-ciplina rgida, correspondendo a um modelo que conheceram ante-riormente. Com relao aos educandos com essas expectativas, o papel do educador ampliar seus interesses, mostrando que uma verdadeira aprendizagem depende de muito mais que ateno s exposies do professor e atividades mecnicas de memorizao.

    Com relao aos adolescentes, essa situao tende a ser diferente. Especialmente nos centros urbanos, eles esto normalmente re-

    Apesar de as pessoas pouco letradas possurem muitos conhecimentos vlidos e teis, elas I esto excludas de outras muitas possibilidades que a nossa cultura oferece

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  • Fundamentos e objetivos gerais

    Experincias passadas de fracasso e excluso normalmente produzem nos jovens e adultos uma auto-imagem negativa

    tornando depois de um perodo recente de sucessivos fracassos na escola regular. Tm, portanto, uma relao mais conflituosa com as rotinas escolares. Com relao a eles, o grande desafio a reconstruo de um vnculo positivo com a escola e, para tanto, o educador dever considerar em seu projeto pedaggico as expectativas, gostos e modos de ser caractersticos dos jovens.

    A imagem que os educandos tm da escola tem muito a ver com a imagem que tm de si mesmos dentro dela. Experincias passadas de fracasso e excluso normalmente produzem nos jovens e adultos uma auto-imagem negativa. Nos mais velhos, essa baixa auto-estima se traduz em timidez, insegurana, bloqueios. Nos mais jovens, comum que a baixa auto-estima se expresse pela indisciplina e auto-afirmao negativa ("se no posso ser reconhecido por minhas qualidades, serei reconhecido por meus defeitos"). Em qualquer dos casos, ser fundamental que o educador ajude os educandos a reconstruir sua imagem da escola, das aprendizagens escolares e de si prprios.

    Os produtos possveis da educao escolar no se reduzem ao aprendizado da leitura, escrita e matemtica

    Conquistas cognitivas Mas o que, de fato, a educao escolar pode trazer de novo para

    esses jovens e adultos que j so cidados e trabalhadores, que j esto integrados de um modo ou de outro em nossa sociedade? Podemos enumerar algumas conquistas bem evidentes, como o domnio da leitura e da escrita, das operaes matemticas bsicas e de alguns conhecimentos sobre a natureza e a sociedade que compem as dis-ciplinas curriculares. Mas os produtos possveis da educao escolar no se resumem a esses mais evidentes. Muitos estudiosos e pesquisadores da cognio humana trataram de estudar as diferenas cognitivas, ou diferenas nas formas de pensamento, entre pessoas que dominam a escrita e que passaram por vrios anos de escolarizao e pessoas que no o fizeram.

    Muitos desses estudos concluem que pessoas com mais tempo de escolaridade tm mais facilidade para realizar operaes mentais a partir de proposies abstratas ou hipotticas, operando com categorias que no so as organizadas pela experincia imediata. Esse tipo de opera-

    Educao de jovens e adultos

  • Fundamentos e objetivos gerais

    o cognitiva est bastante relacionado com a escrita e com o desen-volvimento do pensamento cientfico. Atravs da escrita nos chegam informaes dos sculos passados, de outras partes do mundo ou de mundos imaginados; ela impe uma relao mais distanciada entre os interlocutores. Com base na escrita tambm se desenvolveram as cin-cias modernas, que organizam os dados da experincia em categorias e leis gerais, formulando proposies altamente abstratas.

    Outra caracterstica importantssima das formas de pensamento letrado e cientfico diz respeito chamada metacognio, ou seja, capacidade de tomar conscincia das operaes mentais, de pensar sobre o pensamento e, assim, poder control-lo melhor. A metacognio a marca distintiva do pensamento cientfico: diferentemente de uma pes-soa que resolve problemas prticos do cotidiano ou de um orculo que adivinha o futuro, o cientista tem de demonstrar ou justificar seus pos-tulados e teorias. Essa capacidade de pensar sobre o pensamento est relacionada com o domnio da escrita de forma mais geral: um texto escrito uma forma de pensamento plasmado no papel, como se no papel pudssemos "ver o pensamento", retomar quantas vezes quiser-mos seu ponto de partida ou cada um de seus enlaces. comum as pes-soas recorrerem escrita para "organizar as prprias idias". A escrita nos ajuda a controlar nossa atividade cognitiva quando, por exemplo, fazemos uma lista de compras antes de ir ao supermercado e riscamos cada item medida que os compramos. A escrita amplia de forma geral a capacidade de planejamento, quando podemos anotar no papel todas as tarefas que temos a cumprir nos prximos meses e conferir periodicamente quais ainda no foram cumpridas.

    A vida na sociedade moderna oferece uma srie de oportunidades para desenvolvermos essas formas de pensamento autoconsciente e que transcendem nosso contexto de vivncia. Mas a escola , sem dvida, um lugar privilegiado para se desenvolv-las e, certamente por isso, as pessoas que a freqentam por muitos anos levam vantagens nesse aspecto. Isso porque a escola o lugar onde as pessoas vo para aprender coisas, tendo a oportunidade de pensar sem estarem premidas pela necessidade de resolver problemas reais imediatos. Por exem-

    A escola um lugar I privilegiado para se I desenvolver o pensamento reflexivo

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  • Fundamentos e objetivos gerais

    plo, ao conferir o troco que lhe deu o cobrador de um nibus, a pessoa tem de fazer uma operao rpida, empurrada pelo passageiro que vem atrs. Na escola, ela poder resolver, com calma, um grande nmero de operaes de subtrao usando diferentes procedimentos, represent-las no papel, compreender o porqu do "empresta um", chegar a uma compreenso ampla sobre o funcionamento do sistema de numerao decimal. Ela aprender na escola um conjunto de conceitos que no tm nenhuma utilidade prtica imediata mas que podem ajudar a organizar o sistema de conceitos que compem sua estrutura cognitiva. Na escola, ela exercita a realizao de tarefas segundo planos ou instrues prvias. Todas essas aprendizagens colaboraram para desenvolver essa modalidade cognitiva que definimos como caracterstica do letramento.4

    Aprendizagem de atitudes e valores importante tambm ter em vista que o valor que a escola pode ter

    para esses jovens e adultos transcende em muito a mera aquisio de conhecimentos ou essas conquistas intelectuais a que nos referimos. Ao avaliarem sua passagem por programas de educao fundamental, muitos jovens e adultos tematizam conquistas que dizem respeito sua auto-imagem e sua sociabilidade: "agora eu me sinto mais seguro, no tenho vergonha de falar"; "a escola era o lugar onde eu podia encontrar amigos e conversar"; "na escola a gente aprende a conviver com gente diferente" etc.

    4 Atualmente, tm sido divulgados no Brasil diversos estudos que tematizam a alfabe-tizao no apenas como aprendizagem ou domnio do cdigo escrito, mas como "condio sociocultural", a que muitos autores tm preferido chamar de letramento. Angela Kleiman reuniu um bom conjunto de artigos sobre a temtica em Os significados do letramento (Campinas, Mercado das Letras, 1995). No de sua autoria, desenvolve o conceito de letramento em duas de suas vertentes, relacionado-o a prticas escolares junto a jovens e adultos. Outros artigos tratam das relaes entre oralidade e letramento e discutem diversos aspectos relacionados estigmatizao sofrida por pessoas adultas analfabetas ou pouco escolarizadas em nossa sociedade. A conceituao exposta neste item sobre modalidades de pensamento que podem ser desenvolvidas por meio do uso da linguagem escrita e da escolarizao foi tomada do artigo de Marta Kohl de Oliveira, que tambm faz parte da obra.

    Educao de jovens e adultos

  • Fundamentos e objetivos gerais

    Somados a esses aspectos, devemos lembrar tambm que a escola um espao especialmente propcio para a educao da cidadania: um espao para se aprender a cuidar dos bens coletivos, discutir e participar democraticamente, desenvolver a responsabilidade pessoal pelo bem-estar comum.

    0 educador de jovens e adultos

    Algumas das qualidades essenciais ao educador de jovens e adultos so a capacidade de solidarizar-se com os educandos, a disposio de encarar dificuldades como desafios estimulantes, a confiana na capacidade de todos de aprender e ensinar. Coerentemente com essa postura, fundamental que esse educador procure conhecer seus edu-candos, suas expectativas, sua cultura, as caractersticas e problemas de seu entorno prximo, suas necessidades de aprendizagem. E, para responder a essas necessidades, esse educador ter de buscar conhecer cada vez melhor os contedos a serem ensinados, atualizando-se constantemente. Como todo educador, dever tambm refletir perma-nentemente sobre sua prtica, buscando os meios de aperfeio-la.

    Com clareza e segurana quanto aos objetivos e contedos edu-cativos que integram um projeto pedaggico, o professor deve estar em condies de definir, para cada caso especfico, as melhores estratgias para prestar uma ajuda eficaz aos alunos em seu processo de aprendizagem. O educador de jovens e adultos tem de ter uma especial sensibilidade para trabalhar com a diversidade, j que numa mesma turma poder encontrar educandos com diferentes bagagens culturais.

    especialmente importante, no trabalho com jovens e adultos, favorecer a autonomia dos educandos, estimul-los a avaliar cons-tantemente seus progressos e suas carncias, ajud-los a tomar cons-cincia de como a aprendizagem se realiza. Compreendendo seu prprio processo de aprendizagem, os jovens e adultos esto mais aptos a ajudar outras pessoas a aprender, e isso essencial para pessoas que,

    A escola deve ser um espao para se aprender a discutir e participar democraticamente, desenvolvera responsabilidade pessoal pelo bem-estar comum

    E especialmente importante, no trabalho com jovens e adultos, favorecer a autonomia dos educandos, estimul-los a avaliar constantemente seus progressos e suas carncias

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  • Fundamentos e objetivos gerais

    como muitos deles, j desempenham o papel de educadores na famlia, no trabalho e na comunidade.

    Tambm uma responsabilidade importante dos educadores de jovens e adultos favorecer o acesso dos educandos a materiais educativos como livros, jornais, revistas, cartazes, textos, apostilas, vdeos etc. Deve-se considerar o fato de que se trabalha com grupos sociais des-favorecidos economicamente, que tm pouco acesso a essas fontes de informao fora da escola.

    Finalmente, os educadores devem atentar para o fato de que o processo educativo no se encerra no espao e no perodo da aula pro-priamente dita. O convvio numa escola ou noutro tipo de centro edu-cativo, para alm da assistncia s aulas, pode ser uma importante fonte de desenvolvimento social e cultural. Por esse motivo, importante tam-bm considerar a dimenso do centro educativo como espao de con-vvio, lazer e cultura, promovendo festas, exposies, debates ou tor-neios esportivos, motivando os educandos e a comunidade a freqent-lo, aproveitando essa experincia em todas as suas possibilidades.

    Sntese dos objetivos gerais

    Que os educandos sejam capazes de:

    Dominar instrumentos bsicos da cultura letrada, que lhes permitam melhor compreender e atuar no mundo em que vivem.

    Educao