paulani - economia e retórica - o capítulo brasileiro

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  • Revista de Economia Poltica, vol. 26, n 1 (101), pp. 3-22 janeiro-maro/2006

    Economia e Retrica: o captulo brasileiro

    LEDA MARIA PAULANI*

    Economics and Rhetoric: the Brazilian Chapter. Considering the rise of thediscussion about the rhetoric of economics at the beginning of the 1980s, the paperaims to show: 1) the relation between the origin of this issue in the academic fieldand the ascension of the so labeled neoliberalism as a doctrine and a collectionof capitalist practices perceived at the same time; and 2) the consequences producedby this idea, overseas born, when it meets a peripherical reality like the Brazilianone. In the first case, we are going to show the importance of Hayeks reflectionsabout the inadequateness of neoclassical discourse to the aim of ideologically legit-imate the market society. In the second we are going to point out that, taking theconsequences of the rhetoric project in Brazil, it can be seeing as an additionalchapter of the ideas out of its place that comes marking the Brazilian history ofthe ideas.

    Key-words: rhetoric; economics; Hayek; neoliberalism; peripherical capitalism.JEL Classification: A11; A12; B41.

    A despeito de no ter sido o primeiro a lidar com essas questes h umtexto de Willie Henderson, sobre a metfora na economia, publicado em 1982(Backhouse, 1998:419) , a discusso sobre retrica e cincia econmica popu-larizou-se de vez com o artigo de D. McCloskey, The Rethoric of Economics, pu-blicado no Journal of Economic Literature, em 1983. As frases bombsticas deMcCloskey (1983:508) a cincia econmica literatura, a forma de argu-mentao dos economistas no muito distinta do mtodo empregado por Cce-ro e Homero em seus discursos e novelas, a metfora no um substituto svezes utilizado para o significado, ela o prprio significado tiveram um im-pacto enorme na cidadela dos economistas, ainda que no tenham tido nenhumimpacto no andamento corrente de seu ofcio acadmico, a no ser, como era de

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    * Professora do Departamento de Economia da FEA/USP. E-mail: [email protected]. Submetido:Setembro 2004; aceito: Abril 2005.

  • se esperar, a criao de mais um nicho especializado de discusso. Uma perguntaque fica no ar : por que esse assunto aterrizou na cincia econmica no inciodos anos 80? O objetivo do presente texto mostrar: 1) a relao que existe en-tre o surgimento dessa discusso nos meios acadmicos de economia e a ascen-so do assim chamado neoliberalismo enquanto doutrina e a coleo de prti-cas capitalistas verificada na mesma poca; e 2) os desdobramentos que produzesse tipo de idia, nascida alm-mar, ao encontrar uma realidade econmica peri-frica como a brasileira. No primeiro caso mostraremos a importncia das consi-deraes de Hayek sobre a inadequabilidade do discurso de corte neoclssico pa-ra o objetivo de legitimar ideologicamente a sociedade de mercado. No segundocaso indicaremos que, analisados os desdobramentos do projeto retrico no Bra-sil, ele pode ser considerado como mais um captulo das idias fora do lugar, quevm marcando a histria do iderio brasileiro.

    NEOLIBERALISMO, PS-MODERNISMO E RETRICA NA ECONOMIA

    Como se sabe, do ponto de vista de seu contedo, o assim chamado neolibe-ralismo no constitui propriamente uma teoria, conformando to-somente umconjunto de regras de conduo da poltica econmica prescritas para que o mer-cado, tendo seu lugar de direito usurpado pelo Estado ao longo dos 30 anosdourados, seja nele recolocado. Seu feitio , portanto, essencialmente prescriti-vo. Mas por que tem ele esse perfil? Para responder essa questo preciso recu-perar brevemente a histria dessa doutrina.

    Depois da desastrosa experincia da crise de 29, vai ganhando fora umaprtica intervencionista do Estado que encontra sua matriz terica na Teoria Ge-ral do Emprego do Juro e do Dinheiro, que Keynes publica em 1936. Cria-se,com isso, uma espcie de consenso a respeito da necessidade de uma certa regu-lao externa ao prprio sistema, que soma, perda de espao social j experi-mentada concretamente pelo liberalismo, um adversrio terico altura da orto-doxia neoclssica.

    Na etapa que ento se inicia, o mercado tem papel inegavelmente importan-te, mas no menos importantes so o Estado, o planejamento, as polticas pbli-cas. Tudo se passou como se, depois de algumas grandes crises, e duas guerrasmundiais, o Ocidente tivesse finalmente encontrado o ponto de equilbrio entreos resultados da estreita bitola do mercado, de um lado, e a imperiosa (iluminis-ta?) necessidade de rearranj-los, de outro. As idias implcitas no referido con-senso encontraram seu habitat natural no estado do bem-estar social, no contro-le keynesiano da demanda efetiva e na regulao fordista do sistema1 e o

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    1 No mundo subdesenvolvido, particularmente na Amrica Latina, esse mesmo esprito, em contatocom a realidade diferenciada que a existia, tomou a forma do desenvolvimentismo. Apoiado funda-mentalmente nas idias cepalinas, o desenvolvimentismo percebia a necessidade de que o Estado,

  • capitalismo deslanchou tranqilo por trs dcadas, crescendo de modo sustenta-do em todo esse perodo. Nesse contexto, advogar a reduo da presena do Es-tado ou insistir no carter virtuoso do mercado era quase uma heresia. Os libe-rais estavam ento completamente na defensiva.2

    No entanto, nesse ambiente, que, logo aps o trmino da segunda guerra,nasce o neoliberalismo. Segundo Perry Anderson (1995), trata-se de uma reaoterica e poltica veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar, noapenas aquele em acelerada construo na Europa do ps-guerra, mas tambmaquele que implementara o New Deal americano. Hayek o protagonista desseataque apaixonado contra qualquer limitao dos mecanismos de mercado porparte do Estado, para ele uma ameaa letal no s liberdade econmica comotambm poltica. O Caminho da Servido, que ele publicara em 1944, trans-forma-se numa espcie de bblia da nova doutrina3 e Hayek torna-se, ao final dosanos 40, o centro de um grupo de intelectuais afinados com essas idias.

    Na certido de nascimento do movimento, o ano de registro 1947, ocasioem que Hayek convoca, para uma reunio em Mont Plerin (Suia), aqueles quecompartilhavam seu credo. Dentre os que acorreram ao chamado, encontravam-se Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins e Ludwig Von Mises. O pro-psito da Sociedade de Mont Plerin era combater o keynesianismo e o solida-

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    mais do que controlador de demanda efetiva, atuasse como alavanca dos investimentos necessriospara que essas economias superassem o estgio atrasado em que se encontravam. Completando oconjunto de realidades que contribuam para a manuteno desse esprito, em quase tudo contr-rio s mximas liberais, o ento chamado segundo mundo tambm fazia sua parte, j que umaeconomia inteiramente planejada parecia forte o suficiente para desafiar e intimidar a maior econo-mia capitalista do planeta. 2 Uma das teses mais instigantes sobre o significado desse perodo foi elaborada por Francisco de Oli-veira. Resumidamente se poderia denomin-la como a tese do surgimento do antivalor. Para ele,ao longo dos anos dourados do capitalismo, o chamado Welfare State, oriundo das polticas keyne-sianas anticclicas, constituiu-se no padro de financiamento pblico da economia capitalista. Nessenovo padro, o fundo pblico, funcionando numa esfera pblica estruturada a partir de regras uni-versais e pactadas, passa a ser o pressuposto do financiamento da acumulao de capital assim comoo pressuposto do financiamento da reproduo da fora de trabalho. Esse novo arranjo institucionalteria operado uma verdadeira revoluo copernicana nos fundamentos da categoria do valor comonervo central tanto da reproduo do capital quanto da fora de trabalho. Levado s ltimas conse-qncias, continua Francisco de Oliveira, o padro do financiamento pblico implodiu o valor co-mo nico pressuposto da reproduo ampliada do capital, desfazendo-o parcialmente enquanto me-dida da atividade econmica e da sociabilidade em geral (1998:27). O carter radical da tese indicao inequvoca da magnitude das mudanas operadas no funcionamento do sistema a partir dops-guerra. A reviravolta que comea em meados dos 70, e que vai tirar os (neo)liberais da defensivapara coloc-los na posio oposta, funcionou ento, para parafrasear Francisco de Oliveira, comouma espcie de vingana do valor. A partir de ento no s a atividade econmica volta a ser in-teiramente dominada por seus imperativos, como tambm a sociabilidade vai ficando inteiramentesubmetida a suas exigncias. 3 Segundo Anderson, no referido livro, o alvo imediato de Hayek era o Partido Trabalhista ingls, svsperas da eleio geral de 1945 (que ele de fato venceria). Hayek implacvel e sentencia: Apesarde suas boas intenes, a social-democracia moderada inglesa conduz ao mesmo desastre que o na-zismo alemo uma servido moderna (Hayek, apud Anderson, 1995:9).

  • rismo reinantes e preparar as bases para um novo capitalismo no futuro, um ca-pitalismo duro e livre de regras (Anderson, 1995:10). Para esses crentes nas ini-gualveis virtudes do mercado, o igualitarismo promovido pelo estado do bem-estar destrua a liberdade dos cidados e a vitalidade da concorrncia, da qualdependia a prosperidade de todos.

    No por acaso Hayek o principal personagem desta recriao do liberalis-mo. Consideraes como essas radicam numa concepo de individualismo mar-cadamente distinta daquela que embasava a teoria neoclssica. Em seus escritosde meados dos anos 30, Hayek havia elaborado uma crtica arrasadora quiloque ele chama de falso individualismo que, para ele, est na base das constru-es neoclssicas. Retomando seu argumento, o nico antdoto possvel contrateorias que deduzem a ao individual a partir da apreenso de estruturas sociaisautnomas seria a explicao dos resultados sociais em termos das aes indivi-duais e isso era precisamente o que a economia neoclssica no fazia. Com seuindividualismo racionalista, como Hayek o denomina, e com seu pressupostoacerca do conhecimento objetivo dos fatos (informao perfeita), a teoria neo-clssica estaria reduzindo todos os indivduos, por particulares que fossem suasespecficas situaes, a tomos de comportamento idntico e previsvel. Sendoassim, o timo social (equilibrado e eficiente) podia ser ento a priori desenha-do, e, o pior de tudo, acabava por retirar do indivduo a primazia que ele deviater como fonte por excelncia da ao.4

    Para as convices liberais de Hayek, essa concluso era desastrosa e preci-sava ser questionada. Alm dos maus resultados do debate sobre o clculo so-cialista, a flagrante derrota que em pouco tempo o keynesianismo impusera aoparadigma neoclssico e a importncia prtica que ganhara na realidade socialdo ps-guerra certamente fortaleceram em Hayek sua percepo da necessidadede recuperar os princpios liberais que ele via enfraquecidos e desguarnecidos deuma teoria econmica que lhe servisse de fundamento.5 Assim, ao invs da insis-tncia, contraprodutiva para ele,6 na tentativa de demonstrar a capacidade de o

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    4 O verdadeiro individualismo a nica teoria capaz de tornar compreensvel a formao de resul-tados sociais espontneos. E, enquanto as teorias planejadoras levam necessariamente concluso deque os processos sociais s podem ser postos a servio de fins humanos se forem submetidos ao con-trole da razo humana, e assim levam direto ao socialismo, o verdadeiro individualismo acredita, aocontrrio, que se deixados livres, os homens freqentemente obtm um resultado melhor do que arazo humana possa planejar ou prever. (Hayek, 1948a: 10-1).5 A revoluo keynesiana jogou por terra por um bom tempo no apenas a teoria neoclssica e seusepgonos. O prprio Hayek teve sua luz ofuscada pelo brilhante sucesso das idias keynesianas. Aolongo dos anos 30, a academia inglesa viu Hayek surgir, inicialmente, como uma estrela de primeiragrandeza na constelao dos economistas e, posteriormente, terminar a dcada completamente apa-gado, ofuscado em grande medida pela avalanche keynesiana. Ao longo desse perodo, ele conseguiuconquistar coraes e mentes de vrias geraes de economistas para depois perder pouco a poucoseus mais eminentes seguidores (Andrade, 1997:176).6 Nossa anlise [do equilbrio], ao invs de mostrar quais informaes as diferentes pessoas devempossuir a fim de obter aquele resultado, cai no pressuposto de que todo mundo sabe tudo e, elimina,assim, qualquer soluo real para o problema. (1948b:51)

  • mercado atingir o equilbrio e, mais que isso, o equilbrio timo, tratava-se ago-ra de defend-lo enquanto nica instituio capaz de respeitar a primazia do in-divduo, entendido corretamente este ltimo como particularidade inserida numcontexto social cuja totalidade lhe escapa. Neste sentido, qualquer intromissodo Estado torna-se perniciosa e, nessa medida, irracional, pois parte do princpiode que resultados sociais promissores podem ser intencionalmente buscados, oque, para ele impossvel. A defesa do laissez faire torna-se, portanto, a peachave desta verso sculo XX do liberalismo.

    A nova doutrina que Hayek funda, e para a qual atrai os conservadores deseu tempo, prescinde por isso completamente da assim chamada cincia econ-mica. O neoliberalismo , em primeiro lugar, normativo: o mercado deve domi-nar tudo e o Estado deve ficar reduzido ao papel de preservar as instituies quepermitam o funcionamento do primeiro. Em decorrncia disso, ele essencial-mente prescritivo, arrolando as medidas que devem ser tomadas para que sejaconstrudo (ou reconstrudo) esse mundo ideal, completamente organizado pelomercado. No h papel a, portanto, para a cincia econmica. A norma quedefine essa doutrina no decorre da constatao cientfica (que seria em prin-cpio produzida pelo paradigma neoclssico) de que essa sociedade a melhorpossvel e/ou de que o mercado o demiurgo de um processo que maximiza uti-lidades e lucros e minimiza custos, produzindo o timo social. As pretensescientficas da teoria atrapalham a consecuo dos objetivos concretos e prticosda economia capitalista. A cincia no demonstra nem pode demonstrar nada;ela no prova que esse mundo o mais eficiente possvel, que nele todos osagentes podem ver realizadas suas pretenses; ela no diz que esse estado de rea-lizao mtua de desejos de oferta e demanda eterno e durar para sempre. Acincia est muda, desnecessria, mais atrapalha que ajuda. Deste ponto de vis-ta, a cincia econmica torna-se uma espcie de fico literria que pouca rela-o tem com o mundo real.

    No mera coincidncia a semelhana dessa conseqncia da era neolibe-ral com as vertentes ps-modernas que advogam que no h distino entre o va-lor de verdade das proposies cientficas e o valor de verdade das proposiesliterrias (caso explcito de McCloskey, no que tange cincia econmica). Oque est na raiz dessa proximidade o ponto em comum que existe entre aquiloque Habermas denomina ps-modernismo anrquico (desconstrucionismo e re-lativismo em destaque) e aquilo que ele chama de ps-modernismo conservador,a saber, que ambos despedem-se dos fundamentos autoconscientes da razo quecaracterizaram o esprito moderno em sua origem, o primeiro lamentando e o se-gundo aplaudindo a autonomia conseguida pela objetivao social desse esprito.

    Da, alis, o carter dbio das leituras ps-modernas anarquistas, que so asmais comumente identificadas com o rtulo do ps-modernismo. A despeito desua aparncia, por assim dizer, radicalmente radical, essas correntes acabampor referendar, por outros caminhos, a mesma objetivao social do esprito damodernidade (o capitalismo contemporneo) para a qual os conservadores ba-tem palmas abertamente. Eagleton (1998:126-7) coloca bem a questo, apontan-

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  • do a ambigidade dessas posturas que so, a um s tempo, radicais e conserva-doras. Para ele, uma caracterstica marcante das sociedades capitalistas de hojeencontra-se no fato de elas serem, em razo da prpria lgica do mercado, tan-to libertrias como autoritrias, tanto hedonistas como repressoras, tanto mlti-plas como monolticas, de modo que os indivduos surgem como meros refle-xos passageiros dessa grande rede descentrada de anseios e cobias, marcadapelo efmero e pelo descontnuo. Mas, alerta Eagleton, esse sistema, que no temcomo acomodar o metafsico de maneira adequada, tambm no pode simples-mente abrir mo dele.7 Para manter em ao toda a anarquia potencial cevadanas prprias foras do mercado, agora vitaminadas pela aplicao do receiturioneoliberal, so necessrias slidas bases polticas e a insistncia nos valores tradi-cionais. Mas a contradio fica a instalada, porque quanto mais esse sistemaapela para valores metafsicos para se legitimar, mais suas atividades racionali-zantes, secularizantes ameaam esvazi-los.

    essa contradio que encontra no discurso ps-moderno um tradutor al-tura. O ps-modernismo radical na medida em que desafia o sistema que ain-da precisa de fundamentos metafsicos e sujeitos auto-idnticos; contra essascoisas ele mobiliza a multiplicidade, a no-identidade, a transgresso, o anti-fun-damentalismo, o relativismo cultural. Enquanto encarna esse enfant terrible, ele rechaado violentamente pelos homens de negcios, j que, segundo Eagleton,tal postura representa um assalto contra tudo aquilo que esses profissionais maisamam. No nvel do mercado, porm, o sujeito autnomo que povoa os sonhosmetafsicos daqueles que tocam o andamento da vida material, no lhes serve denada e constitui um enorme estorvo. O mundo dos shopping centers e da mdiano sobrevive sem pluralidade, fragmentao e efemeridade e sem um espao pa-ra a submisso de toda essa autonomia aos doces encantos do mercado e do consu-mo. Muitos profissionais de negcio, continua Eagleton, so, nesse sentido,ps-modernos naturais. Assim, em sua permanente ambigidade, o ps-moder-nismo, por um lado, ataca o sistema com sua prpria lgica, mas, por outro, oreafirma e para ele uma necessidade, funcionando como uma espcie de caixade ressonncia metafsica de suas necessidades anrquicas, agora ainda mais in-fladas.

    Em outras palavras, o ps-modernismo anrquico, ao atentar difusamente

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    7 Contrariando Adorno, Eagleton afirma que a mercadoria no pode ser a prpria ideologia, pelomenos por enquanto e ironicamente ele completa: poderamos imaginar uma fase futura do siste-ma em que isso seria verdade, em que ele fez um curso em alguma universidade norte-americana, li-vrou-se dos prprios fundamentos e deixou para trs toda essa histria de legitimao retrica. Comefeito, existem aqueles que alegam que precisamente isso que est em marcha hoje: que a hegemo-nia no tem mais relevncia, que o sistema no se importa se acreditamos nele ou no, que ele nosente necessidade de garantir nossa cumplicidade espiritual, desde que faamos mais ou menos o queele exige. Ele no tem mais de passar pela conscincia humana para se reproduzir, s manter essaconscincia em permanente estado de distrao e contar, para sua reproduo, com seus mecanismosautomatizados. Mas o ps-modernismo pertence, nesse aspecto, a uma poca de transio, em que ometafsico, como um fantasma inquieto, no pode nem ressuscitar nem morrer com dignidade. Se elepudesse deixar de existir, o ps-modernismo sem dvida morreria com ele (1998:127-8).

  • contra o sistema, parecendo desafiar a ordem social com sua pregao pela no-identidade, pela transgresso, pelo relativismo, pela desconstruo, serve, ao mes-mo tempo e por isso mesmo, para realiment-lo: a aparncia desafia o sistema,para que sua essncia possa ser ratificada. Um indivduo cuja autonomia e inde-pendncia se reduzem sua capacidade de escolher a marca e o modelo do bone da jaqueta que vai vestir para transgredir e desconstruir a ordem instituda, po-de ser qualquer coisa, menos o indivduo efetivamente autnomo dos sonhos dateoria e da metafsica dos grandes valores (o Bem, a Razo, a Individualida-de). A destruio do indivduo, sua idiotizao, aparece como afirmao incon-dicional da individualidade na sua capacidade de se impor e at destruir a ordemestabelecida.8

    Como se viu, pelo caminho oposto, o ps-modernismo anrquico desgua,tanto quanto o ps-modernismo conservador, no mesmo reservatrio da ratifica-o incondicional do capitalismo duro, intransigente e livre de regras que a eraneoliberal produziu.9 Na seara especfica da cincia econmica, McCloskey,com sua pregao em defesa do projeto retrico, que vai se encarregar de per-

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    8 A fora dessa dubiedade e sua enorme capacidade de fazer o papel ideolgico que lhe cabe ficam vi-sveis no fato de que sua mstica leva de roldo intelectuais altamente sofisticados. Seno vejamos:Meus dois lindos netos esto em Orlando, fazendo o aprendizado de meninos ricos. E eles so mui-to ricos. Seus quartos competem com qualquer loja de brinquedos de So Paulo. Eles no possuemapenas um exemplar do ltimo boneco importado. Fazem questo de ter todas as modalidades da s-rie (...) No ltimo telefonema lhes perguntei: de que esto mais gostando?, e a resposta veio unni-me: compramos um monte de brinquedos novos (...) Tudo parece indicar assim que o mundo con-temporneo do consumo deixou de produzir idiotas robotizados. E ainda: O universo do consumoest passando por um processo de diversificao de tal modo inesperado e fantstico que destri porcompleto todos os prognsticos a respeito de sua funo e de seu papel alienante (...). As casas se tor-nam discotecas, videotecas, acervos de cultura para todos os gostos (...).O menino mais pobre da pe-riferia de So Paulo sabe perfeitamente que roupa vestir, que msica quer ouvir, a que programa as-sistir (...). E finalmente: No acredito na estandartizao (...). No acredito nisso (...). Essepessimismo no se sustenta (...). Voc se lembra que todo mundo imaginava que, por causa da comu-nicao de massa, haveria estandartizao. Mas considere a televiso. Veja o nmero de canais quevoc pode escolher. Portanto ocorre justamente o contrrio.As duas primeiras falas so de Jos Ar-thur Giannotti, famoso filsofo brasileiro, em artigo publicado na Folha de S. Paulo de 19/11/1995.A ltima de Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da Repblica (1995-2002), tambm conhe-cido como prncipe dos socilogos brasileiros, em entrevista Folha de S. Paulo em 13/10/1996.Essas e outras preciosidades fazem parte do Dicionrio de Bolso do Almanaque Philosophico Zero Esquerda (Petrpolis, Vozes, 1997), compilado por Paulo Eduardo Arantes, as duas primeiras no ver-bete O Patriarca e o Bacharel, e a ltima no verbete Sacadura Cabral e Gago Coutinho. 9 Mas h mais no captulo da congruncia entre conservadorismo e radicalidade ps-moderna e seusvnculos com a doutrina neoliberal. Num ensaio instigante em que mostra as relaes entre o pensa-mento de cada um dos componentes do mais importante quarteto de tericos europeus da direitaintransigente, cujas idias agora do forma (...) a grande parte do mundo mental da poltica ociden-tal do final do sculo XX Carl Schmitt, Michael Oakeshott, Leo Strauss e Friedrich von Hayek Anderson (2002:319-44), mostra que, para Oakeshott, a idia de governo como uma associaocivil baseada no orgulho da individualidade livre exclua categoricamente o objetivo coletivo. Sen-do assim, ficava no ar a pergunta sobre o que que motivaria ento essa associao, ou seja, por querazo esses orgulhosos indivduos embarcariam nessa canoa, assinando um contrato com esse tatgratuit, uma entidade abstrata desprovida de objetivos. A resposta a que ele chega que essa associa-o no ditada pela virtude, mas apenas modelada pela linguagem. Segundo o mesmo Anderson,

  • correr esse movimento. Consideremos ento a discusso levantada por McClos-key e os acertos que ela involuntariamente produz.

    Como j adiantamos, h pelo menos uma espcie de coincidncia temporalentre a aplicao efetiva dos princpios pregados pelo duro liberalismo funda-do por Hayek ao fim da segunda guerra e a ecloso da polmica sobre a retri-ca na cincia econmica. entre meados dos anos 70 e o incio dos anos 80 quetudo acontece. Como demonstramos, por conta do predomnio do receiturioneoliberal, a prpria idia de uma cincia econmica comea a no fazer sen-tido. A noo tipicamente conservadora, austraca e hayekiana das virtudes ina-tas dos sistemas construdos por gerao espontnea impregna, mais do que sepossa imaginar, o iderio liberal contemporneo. Com esse tipo de viso noadianta contra-argumentar com as iniqidades e mazelas que um sistema com-pletamente desregulado inevitavelmente produz: ele considerado sempre o me-lhor que se poderia atingir, preservada a sagrada autonomia dos indivduos. Ecomo os interesses afinados com esse iderio, interesses que marxistas-braudelia-nos e ps-keynesianos rotulam de altas finanas, tomaram a dianteira na com-petio surda que travam desde que o capitalismo capitalismo com outras for-mas de acumulao, a exigncia universal que se passa a ouvir por toda parte eque ganha contornos de uma objetividade natural que Marx no chegou a co-nhecer nem em seus piores pesadelos uma s: mercado, mercado, mercado...10

    Sendo assim, a cincia torna-se uma adereo dispensvel (e, na maior parte dasvezes, problemtico).

    Bem feitas as contas, a relao entre neoliberalismo prtico e economia te-rica de incompatibilidade. O paradigma que deveria servir-lhe de sustentaoterica acaba por se contradizer, como bem mostra Hayek. Quanto aos demais,ou lhe so absolutamente estranhos, ou o ameaam. Logo, no h porque procu-rar sarna para se coar. O simulacro de teoria macroeconmica apresentada pe-los novos clssicos, mais o servio prestado pelos assim chamados novos key-

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    foi Carl Menger quem primeiro defendeu a proposta terica do benefcio das instituies sociais ge-radas por crescimento espontneo e para ilustrar os mritos do mercado, ele o comparou a duas ou-tras invenes humanas, igualmente no planejadas: o direito e a linguagem. Como se sabe, dissol-ver tudo na linguagem um dos expedientes prediletos do ps-modernismo anrquico, particularmenteem sua verso desconstrucionista.10 Sobre isso afirma Hobsbawm: Era, portanto, provvel que a moda da liberalizao econmica emarketizao, que dominara a dcada de 1980 e atingira o pico de complacncia ideolgica aps ocolapso do sistema sovitico, no durasse muito. A combinao da crise mundial do incio da dcadade 1990 com o espetacular fracasso dessas polticas quando aplicadas como terapias de choque nospases ex-socialistas j causava reconsideraes entre alguns entusiastas (...) Contudo, dois grandesobstculos se erguiam no caminho de um retorno ao realismo. O primeiro era a ausncia de umaameaa poltica digna de crdito ao sistema, como antes tinham parecido ser o comunismo e a exis-tncia da URSS, ou de uma maneira diferente a conquista nazista da Alemanha. Estes (...) pro-porcionaram o incentivo para que o capitalismo se reformasse. (...) O segundo obstculo era o pr-prio processo de globalizao, reforado pela desmontagem de mecanismos nacionais para protegeras vtimas da livre economia global dos custos sociais daquilo que se descrevia orgulhosamente [numeditorial do Financial Times de 1993] como o sistema de criao de riqueza hoje encarado em todaparte como o mais efetivo que a humanidade j criou (1995:552, itlicos meus).

  • nesianos somam o suficiente para produzir as coordenadas tcnicas e os mode-los (como os de target inflation) segundo os quais devem operar os gestores dasfinanas pblicas e das polticas monetria e cambial na pilotagem de juros, cm-bio e supervits. A poltica econmica entendida em seu sentido mais amplo notem mais lugar. H um deslocamento da cincia pela tcnica, da Economicspor uma espcie de Business Administration de Estado, que tem por nico obje-tivo preservar a estabilidade monetria custe o que custar e garantir o respeitoaos contratos.11 Os organismos multilateriais como o FMI e o Banco Mundialficam encarregados de alcanar esses mesmos objetivos em termos planetrios.12

    No demais observar que o carter puramente prescritivo do iderio neoliberale sua difcil vinculao a um corpo terico que lhe garanta o suporte cientficodifere muito da relao estreita que havia, na fase anterior, entre as polticas deregulao de demanda e/ou as prticas desenvolvimentistas, de um lado, e a teo-ria keynesiana, de outro.13

    Portanto, no contexto do que aqui estamos chamando era neoliberal, pou-co importa o que continua a existir dentro dos muros da academia com o rtulode teoria econmica; so incuos os debates a travados, pouco importa quemvence, a cada round, a luta das idias. Aquilo que aparece como debate econ-mico restringe-se, no mais das vezes, a discusses sobre como pilotar as finan-as pblicas e os preos macroeconmicos mais importantes, de forma a condu-zir, com o maior lucro possvel, os negcios correntes.

    Assim, se no h mais nenhuma ponte entre o mundo da cincia econmicae o mundo externo, onde se trava a concreta e dura batalha capitalista,14 o co-

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    11 Ainda que com outros propsitos e referindo-se no teoria econmica que deveria sustentar cien-tificamente o sistema, mas, contrariamente, teoria que mostra suas fraquezas, Eagleton (1998:14)faz uma observao que vai na mesma direo: No h sentido em continuar trabalhando a duraspenas no Museu Britnico, consumindo montes de teoria econmica indigesta, se o sistema mostra-sesimplesmente inexpugnvel.12 bem verdade que esse movimento tem feies relativamente diferentes no centro e na perife-ria, se ainda estamos autorizados a utilizar o jargo dos tempos do desenvolvimentismo. Se idnti-ca a preveno contra tudo que tenha qualquer parentesco com o Estado e a louvao de tudo quefavorea o mercado e a livre iniciativa, a regra da abertura comercial irrestrita, por exemplo, valemais para a periferia do que para o centro. Da mesma maneira, contrariamente pobre Amrica La-tina, vergastada sob a exigncia de descomunais supervits primrios, os EUA podem se dar ao luxode fazer um dficit do tamanho do PIB brasileiro (foi o que aconteceu em 2003). Finalmente, para fa-lar s nas diferenas mais gritantes, o desmonte da rede de proteo social construda ao longo dos30 anos dourados no centro, particularmente na Europa, no foi to grande, nem teve tantos efeitosdeletrios quanto a desconstruo, na Amrica Latina, de um Estado do bem estar social que mal co-meava a ser erguido. Mas em qualquer caso trata-se de diferenas de prescrio e de conduo pr-tica das polticas de reconduo do mercado ao lugar principal que lhe havia sido usurpado.13 No caso da periferia latino americana, as idias cepalinas, particularmente a deteriorao dos ter-mos de troca que Prebisch demonstrara, vieram fornecer o complemento necessrio para conferir aoEstado o papel de destaque que a teve entre o ps-guerra e a chamada crise das dvidas.14 Roger Backhouse (1998:420) lembra o artigo de Bloor e Bloor, de 1993, em que os autores, analisan-do uma amostra de papers acadmicos sobre as estratgias de hedge, chegam interessante conclusode que os fatos do mundo real no so centrais para a cincia econmica. No por acaso, a lembran-a de Backhouse encontra-se no verbete Rhetoric do The Handbook of Economic Methodology.

  • nhecimento dito cientfico ali produzido, as polmicas e controvrsias geradaspelos confrontos entre diferentes paradigmas podem perfeitamente, como querMcCloskey, ser vistos como uma falao, uma conversa, cujo resultado inte-ressa apenas a quem dela participa, um debate em que os contendores podemser grosseiros e grites ou educados e amantes da Sprachethik, mas cujo evolver determinado em si e por si mesmo, no por um mvel externo chamado ver-dade, no pela busca do desvendamento das relaes que efetivamente presi-dem o comportamento da economia moderna.

    Sendo assim, a cara ps-moderna das consideraes mccloskeyanas mostra-se perfeitamente adequada para traduzir, pelo menos no que diz respeito eco-nomia, o estado-das-artes da relao entre teoria e realidade, entre cincia e ver-dade nesta era neoliberal. Encontra-se a no s o amlgama entre cincia eliteratura tpico do desconstrucionismo, quanto a verdade relativa de todas ascrenas tpica do pragmatismo.15 Para completar a receita, a freqente exortaoda Sprachethik oriunda do neoiluminismo germnico como providncia absolu-tamente necessria para aprimorar mais essa conversao da humanidade. As-sim, se McCloskey erra na conduo do tema, pois no se sabe muito bem comodefinir sua exortao em defesa da retrica na cincia econmica, ele acerta semquerer na traduo involuntria que acaba por fazer do estado atual da relaoentre cincia positiva e normativa. Em outras palavras, dada a sem-cerimniacom que os valores do mercado so no s apregoados como caninamente de-fendidos, torna-se desnecessrio, para a sua sorte e para a sorte dos interesses aele atrelados, qualquer verniz cientfico que atue como disfarce para se tomaruma pela outra. Alm do mais, se isso fosse necessrio, provavelmente o neolibe-ralismo como prtica no teria o sucesso que vem experimentando h quasetrs dcadas, j que, como demonstrou Hayek, o paradigma que deveria servir-lhe de sustentao cientfica presta exatamente o servio contrrio.

    Eis ento que a comunidade acadmica dos economistas pode ficar posta emseu sossego, travando seus debates e disputando suas idias, usando o mtodofalseacionista ou o (sic) mtodo retrico, estapeando-se ou praticando a Sprache-thik. Nada do que acontece nessa cidadela tem qualquer importncia que seja pa-ra o andamento corrente da vida material do planeta. Acerta McCloskey, portan-to, quando identifica a cincia econmica a uma falao, a uma grande conversa,que s interessa a quem dela participa, pois nenhum vnculo tem com o que ocor-re extramuros. McCloskey torce para que essa conversao seja mais educada,humana, e para que os economistas sejam mais modestos. Mas no tem nenhu-ma expectativa quanto aos mundos que seriam construdos caso as idias dos eco-nomistas fossem transformadas em receitas prticas. Atirando no que viu, ou noque sentiu (leia-se, a vaga ps-moderna que tomou de assalto as humanidades apartir dos 70), McCloskey acertou no que no viu. Foi a tradutora involuntria

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    15 Para uma discusso mais detalhada dos diversos e em muitos casos incompatveis sentidos em queMcCloskey usa o termo retrica, bem como a dificuldade da surgida para enquadrar metateorica-mente suas consideraes, vide Paulani (1996) e Paulani (1999).

  • da situao concreta hoje experimentada, em que o comando das economias na-cionais, com raras excees, depende muito mais das burocracias dos bancos cen-trais e tesouros nacionais e da aplicao de no mais que meia dzia de regras,do que de um suposto menu de polticas econmicas que produziria resultadosdistintos a cada mudana de governo promovida pelo processo democrtico.

    Esse deslocamento da Economics pela Business Administration, que ganhaassim uma contraparte estatal, o responsvel, junto com a completa naturaliza-o dos fenmenos econmicos, pela situao aparentemente paradoxal de quesejam hoje economistas os profissionais mais procurados pela mdia para emitirsuas opinies sobre o andamento e as perspectivas da vida material da socieda-de. Se o que ocorre no mundo acadmico no tem rigorosamente nenhuma con-seqncia para o dia-a-dia da vida econmica, como se explica isso? A respostano difcil de adivinhar. Os supostos economistas atuam a sempre como tc-nicos. No diferem em nada dos meteorologistas a quem se pergunta sobre otempo amanh ou na semana que vem. Mas a cincia no tem nada que ver comisso. Ela tem muito menos importncia do que a Meteorologia, que, bem ou mal,ainda que eles errem muito, sustenta as opinies dos meteorologistas.

    Assim, o mundo da cincia econmica pode ser deixado a si mesmo com suahermenutica e seus cacoetes. As conseqncias da pregao de McCloskey indicamque temos tambm a uma manifestao inequvoca dessa situao. A despeito daacolhida extremamente favorvel que teve por parte dos economistas alheios aosmainstream, o trabalho de McCloskey no teve rigorosamente nenhuma conseqn-cia para o andamento do ofcio acadmico dos economistas, a no ser, como j assi-nalamos, a criao de mais um nicho especializado de discusso. Os polmicos de-bates que gerou no afetaram em nada, nem a forma de se fazer essa cincia naacademia, nem sua relao com o mundo externo. Sendo assim, no faz de fato mui-ta diferena entender-se a produtividade marginal do trabalho, para retomar umexemplo de McCloskey, como uma varivel cientfica que faz parte de um determi-nado paradigma ou como uma esperta metfora do discurso neoclssico.16

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    16 Duayer escreve um artigo/conto muito interessante em que, ao final, fala com criativa ironia dadiscusso sobre a retrica na Economia. Um professor de Economia est prestes a entrar no Cu. Vaicom a conscincia tranqila e confiante de ter l seu lugar, j que, jamais em sua atividade profis-sional envolvera-se com valores ou discutira fins, mas cuidara to-somente de ensinar assalariada-mente os meios mais eficientes para a consecuo de fins exteriormente postos (1998:144). Abrup-tamente interrompido por um anjo que lhe mostra estar no caminho errado, sendo o seu o doInferno. Entre perplexo e indignado, o cndido professor protestou de tal veredicto, subentenden-do, em seu sincero espanto, grave equvoco na sublime ordenao que lhe coubera, pois consideravatremenda injustia ter de assumir os nus de eventuais malefcios causados por valores subjacentes cincia que difundira com raro e profissional zelo[...] (1998:145). Depois de algumas peripcias queno impedem o personagem de ter de se atirar no fogaru, Duayer conclui: assim enleados em defi-nitiva e estonteante indeterminao, o professor, o narrador e o leitor podemos todos, menos o anjo, claro, buscar guarida na retrica, refgio tranqilo, porto seguro, da vertigem provocada pela re-cente descoberta da textualidade do mundo. Na ausncia de cho para ancoragem, paz e sossego so-mente no seio do consenso, da opinio relevante. Pois, se no h salvao, j que no se pode saber ocerto e o errado, o bem e o mal, mais seguro pecar em grupo. No qualquer grupo, mas o grupodos especialistas e de suas instituies, o grupo da cincia normal. Na pior das hipteses, calhandohaver triagem celeste, a companhia no Inferno est garantida (1998:159).

  • O CAPTULO BRASILEIRO DA RETRICA

    A despeito da extrema polmica que gerou, o assim chamado projeto ret-rico, resultante das investidas metodolgicas de McCloskey, no abalou a for-ma de os economistas fazerem cincia, nem sua relao com a realidade econ-mica em si mesma. Contudo, no foram nulos seus desdobramentos objetivos,ganhando tal projeto duas feies distintas: por um lado, como j assinalamos,criou-se mais um nicho especializado de pesquisa, de modo que passaram a sur-gir em profuso as chamadas anlises retricas dos discursos produzidos peloseconomistas (de ontem e de hoje e das mais variadas correntes tericas);17 por ou-tro, partindo da firme convico de que a retrica tem extrema importncia nes-se discurso, chegando a substituir a prpria cincia, seus adeptos dispuseram-sea realizar uma srie de entrevistas com os economistas, certos de que elas pode-riam revelar mais mistrios sobre a vida intestina desse discurso, do que poderiafaz-lo a v investigao acadmica dos livros e papers.

    O primeiro produto desta ltima empreitada foi o livro organizado por ArjoKlamer Conversations with Economists. Klamer dirigiu as conversas de modoa expor o tumultuado ambiente da cincia econmica, particularmente depois doadvento das expectativas racionais e da conseqente ascenso dos chamadosnovos clssicos. Coerente com a idia da natureza retrica dessa cincia, Kla-mer buscou mostrar, por meio da investigao conversativa desse episdio, ainsustentabilidade da pretenso de objetividade da Economia, em contraste comseu enorme apetite persuasivo. A concluso a que chega que as entrevistas con-firmam essa viso de cincia econmica em termos de comunicao. Na ausn-cia de padres uniformes e testes empricos claros, os economistas, continua Kla-mer, so forados a confiar no seu julgamento, e argumentam de forma a tornarseu argumento persuasivo. Este processo deixa um espao para elementos noracionais, tais como estilo e envolvimento pessoais e disciplina social. Eu afirmoque as entrevistas evidenciam esta viso da discusso de problemas econmi-cos[...] (1988, 245-6).

    Essas concluses indicavam o acerto da deciso de ir buscar na viva voz dosexpoentes de cada corrente de pensamento as artimanhas retricas que servemde escudo ao debate cientfico. Os discpulos brasileiros desse projeto, aposta-dores de primeira hora em suas perspectivas, fizeram o mesmo por aqui. Assim,com o professor Jos Mrcio Rego frente, surgiu, em 1996, publicado pela edi-tora 34, o livro Conversas com Economistas Brasileiros. No entanto, a especi-ficidade do contexto brasileiro acabou por alterar tanto a forma quanto o resul-tado do projeto. Os prprios idealizadores, de uma certa maneira, admitem isso:As divergncias entre os economistas brasileiros guardam diferenas em relao

    14 Revista de Economia Poltica 26 (1), 2006

    17 No Brasil podemos citar: Anuatti (1996); Bianchi e Salviano Jr. (1996); Bianchi e Salviano Jr. (1999);Bianchi (2002); Dib (2003); Gala (2003); Fernndez et alii (1997); Fernndez e Pessali (2003). Forado Brasil temos, entre outros: Bazerman (1993); Denton (1988); Galbraith (1988); Mirowski (1987);Warsh (1988); e a prpria McCloskey (1994).

  • s apresentadas por Klamer (...) Apesar de partirmos de uma mesma metodolo-gia, nossas preocupaes so essencialmente diversas. As condies histricas epolticas brasileiras geraram uma classe de economistas profissionalmente dife-renciados (p. 10).

    Essas declaraes indicam que, desde o incio, os organizadores do trabalhopressentiram as dificuldades de reproduzir aqui a experincia dos colegas ameri-canos. Dado o poder efetivo que os economistas detiveram e detm em nossopas,18 torna-se muito difcil reduzir suas divergncias s querelas terico-meto-dolgicas, confinando-as ao suposto mundo puramente conversativo da aca-demia. No por acaso, o livro brasileiro foi organizado, no como o de Klamer,pelas correntes de pensamento, mas pelas geraes dos economistas entrevista-dos. Sendo assim, o que resultou do projeto foi menos a revelao dos mistriosda arte persuasiva dos economistas, encobertos na assepsia dos textos acadmi-cos, do que parte significativa da histria recente do pas. Malgrado a intenoinicial, o resultado da verso brasileira da empreitada retrica mostrou-se, porisso, muito mais interessante do que o da matriz americana.

    Assim, por exemplo, acompanhamos, trinta anos depois, a avaliao quefaz, sobre o PAEG, um de seus mais influentes mentores, Roberto Campos. Nodeixa de ser curiosa sua tentativa de justificar a contraditria situao em queele, um liberal convicto, ento se colocou, ao idealizar um amplo programa deplanejamento a longo prazo, com profunda interveno do Estado na economia.Foi pura ingenuidade, afirma Campos, imaginar que o Governo tivesse a ca-pacidade de substituir o empresariado e o mercado e planejar a longo prazo(Campos, apud Rego et alii, 1996:46-7). O PAEG, no entanto, foi implementadoe acabou por determinar a conformao futura da realidade econmica brasilei-ra. Da mesma maneira, est presente no livro parte da histria anterior do de-senvolvimento econmico brasileiro, particularmente a influncia decisiva das te-ses cepalinas (ver os depoimentos de Celso Furtado e Maria da Conceio Tavares)e, praticamente em sua ntegra, o conturbado perodo que se seguiu ao milagre,quando o problema inflacionrio avultou em importncia e determinou, por qua-se duas dcadas, a feio do debate econmico no Brasil.

    Neste ltimo caso, talvez mais do que nos anteriores, o cotejo entre idias erealidade, bem como a interao mtua de ambas as esferas, tornou-se extrema-mente visvel. A discusso sobre a natureza inercial da inflao brasileira e sobrea necessidade de programas no ortodoxos para combat-la ganhou a mdia efoi se intrometendo decisivamente no cotidiano de todos os brasileiros, j que asidias dos economistas, mais do que adeptos, foram ganhando carne e osso,objetivando-se em sucessivos planos de estabilizao. Estes ltimos, por seu la-do, iam encontrando pela frente, a cada vez, uma realidade diferente, precisa-mente por conta da concretizao de idias econmicas anteriores. Detenhamo-nos por um momento nesse processo.

    15Revista de Economia Poltica 26 (1), 2006

    18 Veja a esse respeito o trabalho da Profa. Maria Rita Loureiro, Os Economistas no Governo, Riode Janeiro, Editora da Fundao Getlio Vargas, 1997.

  • Independentemente do mrito em si das tentativas de estabilizao, particu-larmente para um pas como o Brasil que convivia com altas taxas de inflaodesde a metade dos anos 70, o fato que a estabilidade monetria era, j em mea-dos dos 80, condio sine qua non para colocar os pases perifricos na rota doscapitais ciganos, que circulam pelo globo em busca de valorizao financeira.Com taxas de inflao no civilizadas, como as detidas ento pelo Brasil, nohavia o mnimo de segurana necessrio para essas operaes. No por acaso, a partir do final da mesma dcada de 80 que se intensificam as presses para queos pases ento denominados emergentes desregulamentem seu mercado de ca-pitais, internacionalizem a emisso de papis pblicos e securitizem suas dvi-das.19 Por isso, nessa poca, no Brasil, principalmente considerando-se a especi-ficidade de nossa realidade inflacionria, os economistas acadmicos eram instadosa encontrar solues no convencionais para o problema, dada a evidente in-capacidade da receita monetarista em lidar com ele. Assim, se em outros pasesda Amrica Latina o problema das altas taxas de inflao desandou logo em hi-perinflao e foi resolvido, regra geral, com programas do tipo currency board,no Brasil, as altas inflaes persistiam, sem se transformar em processos hiperin-flacionrios. A natureza muito particular de nosso processo de indexao queproduzia essa situao, requerendo, portanto, um outro remdio. No por aca-so, portanto, aqui, no Brasil, e no em qualquer outro pas da Amrica Latina,que surge a teoria da inflao inercial (Paulani, 1997). Dadas algumas diferenasentre os economistas que abraaram as teses inercialistas, no havia uma, masduas receitas delas derivadas: o choque heterodoxo e a moeda indexada (Bier etalii, 1987). Uma verso um pouco diferenciada da segunda dessas receitas, alia-da a uma posio cambial muito mais confortvel do que a existente em 1986 ano da aplicao do primeiro plano heteredoxo de estabilizao que vai fi-nalmente lograr a estabilidade em 1994 (Plano Real).

    Esta recapitulao sumria do episdio alta inflao inflao inercial planos heterodoxos teve o propsito de mostrar que, nas circunstncias do Bra-sil de meados dos 80, a relao dos economistas entre si e deles com a realidadeconcreta do pas podia ser qualquer coisa, menos uma conversao inconse-qente, para deleite apenas daqueles nela envolvidos, os quais estariam pleitean-do o Oscar da persuaso. Muito ao contrrio, a disputa era real e concreta e con-tinuou real e concreta, com as diversas vises, inclusive as ortodoxas, sucedendo-seno comando da poltica econmica at o alcance da estabilidade em 1994. Poisbem, toda essa histria est inequivocamente presente no livro organizado porRego e seus companheiros. Em particular, so extremamente reveladores dessecomplexo movimento de interao entre idias e realidade os depoimentos deAndr Lara Resende e Prsio Arida.

    Isto posto, a concluso que, a despeito da pretenso inicial de seus ideali-zadores, esta primeira experincia de ouvir os economistas brasileiros constituiuuma contraprova poderosa da fragilidade do projeto retrico inaugurado por

    16 Revista de Economia Poltica 26 (1), 2006

    19 Vide a esse respeito Chesnais, (1998:29-31).

  • McCloskey e Klamer. Se verdade que, numa economia de mercado, a realidadeeconmica provida de uma objetividade que se tece s costas dos agentes e queconforma a matria-prima a partir da qual os economistas produzem seus con-ceitos e modelos abstratos, no menos verdade que h a tambm um amplo es-pao para inverter a mo de direo e caminhar das idias para sua objetivao.Se no parece haver parmetros, como alegam os defensores do projeto retrico,para avaliar o valor de verdade das proposies tericas, a partir do momentoem que as idias se objetivam e passam a conformar essa mesma realidade noh mais como confinar as divergncias ao limitado mundo da pragmtica. Suadimenso semntica impe-se inseparavelmente, pouco importando, no caso con-creto aqui comentado, que essas idias tenham sido forjadas no s pela espe-cificidade da realidade brasileira, mas primordialmente pela inadequabilidadedessa realidade s novas exigncias do capitalismo.

    Essa possibilidade de que as idias dos economistas atravessem os murosda academia e aterrizem em carne e o osso no mundo real, conduzidas pelos car-gos pblicos ocupados por esses cientistas, muito maior num pas como o Bra-sil, no por acaso chamado de a Repblica dos Bacharis.20 Na apresentao segunda edio da mesma experincia, publicada em 1999, os autores admi-tem explicitamente esta caracterstica de nossa realidade: Esses economistas[os entrevistados da segunda leva] tiveram, em maior ou menor medida, vncu-los com a Universidade. Isso demonstra a forte interligao que existe na socie-dade brasileira entre os meios acadmicos e polticos, principalmente em se tra-tando da esfera econmica. Essa promiscuidade entre o econmico e o polticotem sido maior no Brasil do que em outros pases. Nos Estados Unidos, porexemplo, os economistas tm razovel poder de influncia na gesto econmica(...) Porm, dificilmente um acadmio americano (ou algum que no abraouexplicitamente a carreira poltica) se tornou gestor mximo da poltica econ-mica daquele pas, ao contrrio do que ocorre aqui no Brasil (Rego e Mante-ga, 1999:30-1).

    Talvez por isso, nessa segunda srie de conversas, sua vinculao ao proje-to retrico praticamente desaparece. No h meno sobre ela na longa Intro-duo escrita por Rego e Mantega. Mais que isso, o Prefcio escrito por Belluz-zo, segundo os organizadores um entusiasta do projeto, muito mais um libelocontra a dominncia do iderio liberal no capitalismo contemporneo, do quequalquer tipo de anlise da aventura retrica, ou qualquer avaliao sobre o su-cesso desse segundo momento da empreitada brasileira. Alm disso, enquantoum texto que se define explicitamente pela heterodoxia e mostra as fragilidades eequvocos das anlises ortodoxas, ele se constitui, por isso mesmo, numa tpicapea modernista, dessas que tm apreo pela verdade e que certamente atrai-riam as boutades de McCloskey.

    sintomtico, alis, que Belluzzo encerre o referido Prefcio com a frase a

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    20 Loureiro (1997) mostra com profuso de detalhes os desdobramentos e as conseqncias concretasdessa peculiaridade nacional, particularmente no caso dos economistas.

  • seguir, j que ela se ope frontalmente ao projeto retrico, se por ele se enten-der o dissolvimento da cincia na literatura: Hoje, mais do que nunca, a crticada sociedade existente no pode ser feita sem a crtica da Economia Poltica (Bel-luzzo, 1999:25). Afirmar a necessidade da crtica da Economia Poltica implicaidentificar, no discurso produzido pela cincia econmica de hoje, dificuldadessemelhantes em sua natureza quelas que Marx se especializou em desvendar nosdiscursos cientficos de seus contemporneos e cuja finalidade no outra se-no a de mostrar a verdade sobre a forma de funcionamento do capitalismo.

    CONSIDERAES FINAIS

    O mais do que nunca que Belluzzo coloca na frase anteriormente referidapermite retomar uma questo j considerada e que aparentemente entra em con-tradio com o que aqui se escreveu sobre a interao entre idias econmicas erealidade no caso do Brasil. Refiro-me ao acerto involuntrio de McCloskey que,ao identificar a cincia econmica a uma conversa movida pela vontade de per-suadir mais do que pela busca da verdade, acertou sem querer no estado atual,ou seja, ps-consolidao do neoliberalismo, da relao entre economia normati-va e positiva. Dada a natureza basicamente prescritiva desse iderio, cujo nicoobjetivo libertar o mercado das amarras intervencionistas que lhe foram sendocolocadas ao longo dos trinta anos dourados, a assim chamada cincia eco-nmica resume-se hoje s tecnicalidades necessrias para pilotar, de acordo comas necessidades da acumulao privada e sob a ditadura dos credores que carac-teriza esta fase da histria capitalista, as duas dimenses inescapavelmente p-blicas das economias de mercado: a moeda e as finanas do Estado (Belluzzo,1999:16). H assim, conforme j assinalei, um deslocamento da Economics poruma sorte de verso estatal da Business Administration. Sendo assim, deixamde existir os vnculos entre cincia econmica e poltica econmica, de modo quepodem ficar os economistas sossegados, disputando seus campeonatos na arte depersuadir, enquanto o mundo real segue impassvel sua marcha.

    Na Repblica dos Bacharis, porm, as coisas so diferentes. Por mais que arelao de exterioridade entre cincia econmica e poltica econmica nessa faseda histria do capitalismo esteja tambm aqui presente afinal o pas se encon-tra, desde o incio dos anos de 1990, e agora decentemente trajado (leia-se, comestabilidade monetria) na era neoliberal a presena concreta dos economistasnos cargos econmicos mais importantes da Repblica impede que essa desvin-culao tenha no Brasil os mesmo efeitos que tem nos pases centrais. O acertoinvoluntrio de McCloskey no se reproduz por aqui, tornando mais fcil perce-bera fragilidade do projeto retrico. Que bom seria, diria um cidado brasilei-ro qualquer lendo as boutades deMcCloskey, se o Plano Collor e seu seqestrode ativos tivesse vivido apenas nas conversas dos economistas, e se os modelosde target inflation no saltassem das pginas dos papers para o board do BancoCentral. Assim, dadas as idiossincrasias da realidade social brasileira, a tentativa

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  • de desenvolver aqui o projeto retrico revela, muito mais do que em sua ma-triz de origem, a relao extremamente complicada que posturas como a deMcCloskey tm com o fato de que, mesmo na era neoliberal, no so nulos osvnculos entre saber econmico e poder econmico. Muito mais do que conver-sas e argumentos persuasivos, a atividade dos economistas conforma realidadese/ou confirma realidades que a teia social do capitalismo e suas exigncias voconstruindo.

    A presena, mais do que nunca necessria, segundo Belluzzo, da crticada Economia Poltica, deve-se justamente ao fato de que, no atual momento, arelao entre teoria e prtica muito mais distante do que j foi. Tudo se passacomo se fosse muito mais fcil atacar, por exemplo, o keynesianismo, por suaevidente relao com as polticas de regulao da demanda efetiva, do que a ma-croeconomia dos novos clssicos, apartada do mercado deixado a si mesmo,mas efetivamente presente na teorizao da forma de pilotar juros, cmbio e fi-nanas pblicas. O fato de a aplicao dessas receitas ser muito mais cobradados pases perifricos do que dos centrais, e de serem operadas aqui por econo-mistas vinculados Universidade refora ainda mais a possibilidade de se en-xergar as fragilidades e contradies do projeto retrico.21

    E temos com isso os sinais suficientes para concluir que se trata aqui de maisum captulo das idias fora do lugar, descobertas por Roberto Schwarz no en-saio famoso de 1973. O que Schwarz mostra a, como se sabe, que a cincia daeconomia poltica e o iderio liberal importados e aclimatados ao Brasil escra-vista produziram uma reviravolta digna de nota, fazendo com que se prestassem ajustificar uma realidade em tudo incompatvel com a realidade onde esses discur-sos haviam sido produzidos e onde eram necessrios ideologicamente, visto justi-ficarem a aparncia da nova ordem social que se impunha a passos largos. E o quetornava a incompatvel realidade e iderio no era apenas o trabalho escravo, deimediato incongruente com a economia poltica e sua categoria de trabalho livre,mas a mediao representada pelo favor, na qual se enredava toda a multidodos homens livres de ento, vale dizer, nem proprietrios, nem escravos. Vale apena reproduzir: Adotadas as idias e razes europias, elas podiam servir e mui-tas vezes serviram de justificao, nominalmente objetiva, para o momento dearbtrio que da natureza do favor (...) Assim, com mtodo, atribui-se indepen-dncia dependncia, utilidade ao capricho, universalidade s excees, mritoao parentesco, igualdade ao privilgio. Combinando-se prtica de que, em prin-cpio, seria a crtica, o Liberalismo fazia com que o pensamento perdesse o p(1981:17-8). Mais ainda, Schwarz quis chamar a ateno para a vantagem doatraso brasileiro no que concerne capacidade para perceber o ideolgico dessesiderios: Inscritas num sistema que no descrevem nem mesmo em aparncia, as

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    21 No caso especfico do Brasil, sobrou de toda essa discusso, alm das bem-vindas anlises retricasdos textos econmicos, um grande apreo, que no difcil de explicar, pelos livros de entrevistascom os bacharis em geral, visto que a atividade no se restringiu mais aos economistas (j h edita-dos Conversas com Filsofos Brasileiros e Conversas com Historiadores Brasileiros).

  • idias da burguesia viam infirmada j de incio, pela evidncia diria, a sua pre-tenso de abarcar a natureza humana. Se eram aceitas, eram-no por razes queelas prprias no podiam aceitar. Em lugar de horizonte, apareciam sobre um fun-do mais vasto, que as relativiza: as idas e vindas de arbtrio e favor. Abalava-se nabase sua inteno universal. Assim, o que, na Europa, seria verdadeira faanha dacrtica, entre ns podia ser a singela descrena de qualquer pachola para quem uti-litarismo, egosmo, formalismo e o que for so uma roupa entre outras, muito dapoca, mas desnecessariamente apertada (1981:22-3).

    A mesma facilidade do pachola de Schwarz reencontramos aqui. Para o ci-dado brasileiro comum, no mnimo bizarra a idia de que as discusses doseconomistas no visam a outra coisa seno girar em torno de si mesmas. Maisdo que idia, conclumos, trata-se aqui de uma facetada ideologia contempor-nea, que, se funciona razoavelmente no centro do sistema-mundo capitalista, en-guia na periferia e pe a nu sua natureza. No surpreende, portanto, o resulta-do do captulo brasileiro do projeto retrico, que objetivamente revela, ao invsde velar, a incongruncia que tm, com a realidade capitalista de hoje, essas hi-pteses to na moda. Mais do que as competncias persuasivas dos interlocuto-res e seu suposto dficit de objetividade, as conversas com economistas brasilei-ros revelam os contornos da histria brasileira do sculo XX, empurrada, de umlado, pela dinmica capitalista global, e conformada, de outro, pela objetivaodas idias produzidas pelos economistas a partir dessa mesma realidade. Ficaaqui, portanto, mais evidente do que no centro do sistema que, se h hoje algumpapel para a retrica, ele o inverso do que advogam seus cultuadores. A anliseretrica, ao invs de desembocar no vale-tudo relativista, mostra-se instrumentopoderoso para fazer a crtica da sociedade existente, no mnimo porque ajuda adesembrulhar, da teia de idias e ideologias em que ela aparece envolvida, a his-tria concreta.

    E voltamos com isso frase de Belluzzo. A crtica da Economia Poltica, oucrtica do discurso econmico, busca desvendar, por trs da pretensa cientificida-de desses textos, constrangimentos de natureza ideolgica, enganos involunt-rios, prescries normativas disfaradas de conhecimento positivo etc., e no hcomo efetivar essa operao de desvendamento sem atentar para a retricadesses discursos e as armas que eles utilizam para se fazerem ouvir. Encarado des-sa perspectiva, qual seja, a da anlise retrica do discurso econmico, o projetoretrico comeou na metade do sculo XIX, pelas mos de um pensador mou-ro, e continua hoje extremamente atual, apesar de seu idealizador ser dado ami-de como cachorro morto.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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